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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, LETRAS E CIÊNCIAS EXATAS ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO “O PILÃO DE PILAR LEMBRANÇAS”: A RETÓRICA CONFESSIONAL NA POÉTICA MEMORIALISTA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio Siscar São José do Rio Preto Agosto de 2010

Memorialismo Drummond - Tese

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tese sobre drummond

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    INSTITUTO DE BIOCINCIAS, LETRAS E CINCIAS EXATAS

    ADRIANA HELENA DE OLIVEIRA ALBANO

    O PILO DE PILAR LEMBRANAS:

    A RETRICA CONFESSIONAL NA POTICA MEMORIALISTA DE CARLOS

    DRUMMOND DE ANDRADE

    Orientador: Prof. Dr. Marcos Antnio Siscar

    So Jos do Rio Preto

    Agosto de 2010

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    Albano, Adriana Helena de Oliveira.

    O Pilo de pilar lembranas : a retrica confessional na potica memorialista de Carlos Drummond de Andrade / Adriana Helena de Oliveira Albano. - So Jos do Rio Preto : [s.n.], 2010.

    198 f. ; 30 cm.

    Orientador: Marcos Antnio Siscar Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas

    1. Literatura brasileira Histria e crtica. 2. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 Crtica e interpretao. I. Siscar, Marcos Antnio. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas. III. Ttulo.

    CDU 869-1.09

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    Adriana Helena de Oliveira Albano

    O Pilo de Pilar Lembranas: a retrica confessional na potica

    memorialista de Carlos Drummond de Andrade

    Tese apresentada para obteno do ttulo de Doutora em Letras, rea de Teoria da Literatura junto ao programa de Ps-Graduao em Letras do Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Campus de So Jos do Rio Preto.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Marcos Antnio Siscar Professor Livre Docente UNICAMP Campinas Orientador Prof. Dr. Flvia S. Nascimento Professora Doutora UNESP So Jos do Rio Preto Prof. Dr. Susanna Busato Professora Doutora UNESP So Jos do Rio Preto Prof. Dr. Marcos Aparecido Lopes Professor Doutor UNICAMP Campinas Prof. Dr. Wilton Jos Marques Professor Doutor UFSCAR So Carlos

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    Este trabalho dedicado a Maria Aparecida de Oliveira Albano

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    AGRADECIMENTOS minha me, Maria Aparecida, pela espera sofrida e pelo apoio incondicional nesta etapa e

    em todas as outras de minha vida.

    s minhas irms, Alexandra e Andria, pela compreenso, apoio e presena marcante em

    todas as dificuldades da vida.

    s amigas, Audrey, Clarice, Dbora, Joelma, Patrcia e Stael, por dividirem as angstias, as

    risadas e pelo ouvido atento.

    amiga-irm Dione e famlia, pela presena em muitos momentos.

    Ao companheiro Andr, pela presena, amor e compreenso mesmo em terras to distantes.

    colega da ps, Carolina Bernardes e famlia, pelo acolhimento e ajuda.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Marcos Antnio Siscar, por acreditar em meu trabalho.

    s professoras Dra. Flvia Nascimento e Dra. Lcia Granja, pela leitura de minha tese e

    pelas importantes sugestes, por ocasio do exame de qualificao.

    Aos funcionrios da Seo de Ps-graduao da UNESP-IBILCE, especialmente Silvia

    Emiko, pela colaborao na resoluo de vrios problemas de modo sempre simptico e

    eficiente.

    CAPES, por ter tornado o trabalho possvel.

    A todos que, de diferentes maneiras, me ajudaram na elaborao da tese e, por algum

    motivo, no foram citados.

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    Poesia, marulho e nusea, poesia, cano suicida, poesia, que recomeas

    de outro mundo, noutra vida. (...)

    Azul, em chama, o telrico reintegra a essncia do poeta

    e o que perdido se salva... Poesia, morte secreta.

    Carlos Drummond de Andrade

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    SUMRIO

    INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10 1. O CAMINHO DO OUTRO: PERCURSO DE RECONHECIMENTO . . . . . . . . . . . . 24 1.1. Breve olhar sobre a estrutura potica gauche e suas relaes com as memrias. . . . .25 1.2. A subjetividade cindida pela temporalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 1.3. Finitude como promessa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 2. SOBRE UMA DVIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 2.1. A potica da justificativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71

    2.2. Espao interno/externo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103

    2.3. Memria da Casa-grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125

    3. A RETRICA DA CONFISSO AUTO-IMUNITRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .138

    3.1. As marcas da religiosidade: o fundo que subsiste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..139

    3.2. O movimento confessional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .154 3.3. A transitividade do discurso potico: o valor do passado re-significado . . . . . . . . . 171

    CONSIDERAES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .185 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191

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    RESUMO

    Este trabalho pretende investigar a retrica confessional na potica memorialista de Carlos Drummond de Andrade. Observaremos como esta forma de escrita negocia conceitos da tradio religiosa, como pecado e perdo, em estreita relao com problemticas sociais e filosficas. O cerne do estudo so os trs livros mais caracteristicamente memorialistas escritos pelo autor: Boitempo & A Falta que Ama (1968), Menino Antigo (1973) e Esquecer para Lembrar (1979). Utilizaremos os fundamentos tericos de Jacques Derrida acerca da caracterstica auto-imunitria do texto autobiogrfico, sua possibilidade de articular as vivncias pretritas do sujeito como forma de desprendimento de si mesmo em busca de uma auto-avaliao que proporcione o auto-conhecimento e a auto-purificao. Pretende-se, dessa forma, enriquecer o campo crtico da lrica do itabirano por meio desse olhar que incide sobre a escrita, no para reiterar nem julgar os pressupostos poticos, mas para ajudar a revelar os impasses constitutivos da experincia escrita.

    Palavras-chave: Drummond memria confisso Derrida.

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    ABSTRACT

    This work intends to study the rhetoric confession in the memoirist poetic of Carlos Drummond de Andrade. We will observe how this form of writing negotiates concepts of religious tradition as a sin and forgiveness in close relation with the social and philosophical issues. The focus of the study are the three books most characteristically memoirists written by the author: Boitempo & A falta que ama (1968), Menino Antigo (1973) and Esquecer para lembrar (1979). We will use theoretical fundamentals of Jacques Derrida about the "self-immunity" characteristic of the autobiographical text and its ability to articulate the subject preterit experiences as form of detachment from himself in search of an self-assessment that provides self-knowledge and self-purification. We intend to enrich the "critical" field of the itabirano's lyric through this view that focus on writing. We don't want to reiterate or dismiss their assumptions, but to help reveal the constitutive dilemmas of the experience in writing.

    Key words: Drummond memory confession Derrida.

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    INTRODUO

    Os trs livros propriamente memorialistas de Carlos Drummond de Andrade,

    Boitempo& A Falta que ama (1973), Menino Antigo (1974) e Esquecer para Lembrar

    (1979), s recentemente passaram a ser enfocados decisivamente pela crtica. provvel que

    a ateno tardia tenha se dado porque alguns crticos consideraram esses livros obras

    menores dentro da produo potica drummondiana. A situao de desinteresse parece

    confirmar o posicionamento crtico segundo o qual os Boitempos constituem uma espcie de

    crnica autobiogrfica em forma de poema. Jernimo Teixeira, em trabalho interessante no

    tocante a seu projeto de anlise, no realiza o estudo de nenhum poema dessas obras,

    embora analise e reconhea a importncia de poemas em forma de crnica, como Morte

    do leiteiro e Desaparecimento de Lusa Porto, presentes em A rosa do povo. Teixeira

    afirma que Boitempo antes a obra de um cronista em verso (TEIXEIRA, 2005, p. 14) e

    que Drummond no ir mesmo muito longe depois de Lio de Coisas (p. 230).

    Silviano Santiago, de sua parte, faz a anlise de alguns poemas de Boitempo I e II,

    em Carlos Drummond de Andrade, relacionando-os com o restante da produo

    drummondiana. Na contra-mo da crtica de valor, considera os livros como um momento de

    definio histrica da subjetividade por ela mesma: Como sabemos, s muito recentemente,

    em Boitempo e Menino Antigo, que o poeta se entrega de novo re-construo da

    incorprea face, resumo de existido (SANTIAGO, 1976, p. 58). Antnio Cndido no

    descarta o interesse dos livros em A educao pela noite e outros ensaios quando aborda

    questes semelhantes, pois afirma que, nas primeiras duas obras propriamente de memria,

    o poeta constri, num clima de poesia e fico, a verdade que o mundo do eu e o eu como

    condio do mundo (CANDIDO, 2003, p. 56). Afirma tambm que esse intuito

  • 11

    autobiogrfico no ocorre sob o aspecto de auto-anlise, dvida, inquietude, sentimento de

    culpa, ou seja, as vestimentas com que aparece na maioria da lrica de Drummond (p.56).

    Contrariamente ao que afirma Cndido, consideramos que as caractersticas centrais

    da obra drumondiana esto presentes nos livros memorialistas, mas se apiam em temas e

    articulaes da subjetividade que tratam do legado da infncia como escavao arqueolgica

    que promove a releitura e a reconstruo do ambiente pretrito. Todavia, ao fazer ouvir os

    tambores do cl, reabrem a ferida no cicatrizada desde Os Bens e o Sangue. Tenta a

    identificao subjetiva em meio s contradies sociais no ambiente da infncia e

    adolescncia na casa grande e nos internatos. A problemtica desponta na relao dessa

    tentativa de resgate com a concretizao do eterno desajuste, alm da perda provocada pelo

    tempo que corri, destruindo os smbolos de toda uma gerao de Andrades a venda da

    casa da infncia e dos animais, alm da vinda da minerao que transforma a paisagem.

    A trilogia dos Boitempos reitera muitas articulaes que re-apresentam as

    preocupaes e tendncias constantes na potica dos livros anteriores uma vez que negociam

    foras provenientes dos vastos campos da experincia: experincia literria, experincia

    vivida e aquela rearticulada a partir do passado tornado presente por meio da escritura.

    Nosso interesse recai justamente sobre a articulao dos sujeitos que despontam no

    texto memorialista. O tecido potico drummondiano oferece ao leitor o drama do sujeito

    individual com suas tenses e afetos. Sugerem a perplexidade da subjetividade diante da

    violncia que compreende o espao representativo das relaes desde o momento do

    nascimento via tecido autobiogrfico ( difcil nascer novo) at a percepo da

    aproximao do fim (O morto Drummond / sorri lembrana).

    Drummond, memorialista principalmente em sua primeira e ltima fase, d

    continuidade ao ciclo iniciado em Alguma poesia, quando volta a falar de suas experincias

    pueris de modo contundente nos trs livros estudados aqui. Os recorrentes recursos

  • 12

    estilsticos presentes na lrica rememorativa so aqueles que fazem parte da obra do autor,

    acrescidos da fora da recriao potica rememoradora que se estabelece a partir da

    fragmentao e tentativa de reconstituio do relato pretrito. A repetio de vocbulos, os

    perodos curtos, o barroquismo, a linguagem coloquial e a reflexo sobre o comportamento

    do homem-social, assim como a ausncia de pontuao e ritmo dos poemas, que ressaltam

    os momentos de tenso de certas passagens significativas para o menino antigo, so

    marcantes.

    No momento em que Drummond escrevia seus livros propriamente memorialistas,

    aproximadamente de 1960 a 1980, a escrita das memrias era uma constante, mas o estudo

    destas ainda se encontrava, no Brasil, preso aos modelos estabelecidos pelo gnero. A crtica

    posterior tentou, inclusive, propor distines operacionais entre autobiografia e memria,

    como Silviano Santiago, no ensaio Prosa literria atual no Brasil (1989), que caracteriza a

    primeira relativamente vida individual, formao da personalidade, e a segunda

    relativamente representao de acontecimentos exteriores, vividos ou presenciados. Mais

    recentemente, os estudos de Jacques Derrida (2002b) sobre a autobiografia consideram toda

    escrita como sendo autobiogrfica, na medida em que envolve alguma forma de falar de

    si. Para o autor, no Ocidente, estamos sempre revelando algo de nossa prpria histria

    quando decidimos escrever sobre determinado tema. Nem o discurso cientfico foge regra,

    na medida em que o desejo pelo objeto estudado parte da necessidade ntima em estreita

    relao com as experienciaes daquele que escreve, com sua histria ntima.

    Dessa forma, nossa visada sobre o assunto, ao mesmo tempo em que aborda a

    retrica1 do gnero memorialstico em sua inscrio de poca e o sentido cultural do

    mecanismo da memria na poesia, assim como as particularidades que o cercam, focalizar

    1Lembramos que o termo retrica no remete a nenhum uso especializado da palavra, mas o conjunto de procedimentos que do forma de discurso ao aspecto que ela nomeia, no caso do nosso trabalho, a retrica confessional inclui temas e dispositivos poticos que propem aspectos confessionais nesse discurso.

  • 13

    o aspecto confessional e auto-imunitrio nos Boitempos. A noo de imunidade e auto-

    imunidade pertence a outros campos de estudo e tomamos de emprstimo a explicao de

    Jacques Derrida (2004) para o termo que aquela que tambm fazemos uso:

    O 'imune' (immunis) est isento dos encargos, de servios, impostos e obrigaes (munus, raiz do 'comum' da comunidade). Esta franquia ou iseno foi, em seguida, transportada para os domnios do direito constitucional ou internacional (imunidade parlamentar ou diplomtica); mas esta tambm faz parte da histria da Igreja crist e do direito cannico; a imunidade dos templos era tambm a inviolabilidade do asilo que alguns podiam encontrar a (...). , sobretudo, no domnio da biologia que o lxico da imunidade desenvolveu sua autoridade. A reao imunitria protege a inden-idade do corpo prprio, produzindo anticorpos contra antgenos estranhos. Quanto ao processo de auto-imunizao que, de maneira muito particular, nos interessa aqui, consiste para um organismo vivo, como se sabe, em se proteger, em suma, contra sua autoproteo, destruindo suas prprias defesas imunitrias. Como o fenmeno desses anticorpos se estende a uma ampla rea da patologia e se recorre, cada vez mais, a virtudes positivas dos imunodepressores destinados a limitar os mecanismos de rejeio e facilitar a tolerncia de certos implantes de rgos, apoiar-nos-emos nesta ampliao para falar de uma espcie de lgica geral da auto-imunizao. (DERRIDA, 2004, p.61)

    Consideramos que a retrica confessional (movimento de justificao e desculpa) se

    estabelece orientando a gama temtica (o ambiente campesino, a descrio da casa paterna,

    o espao dos internatos, a relao com o catolicismo) no movimento que promete a

    integridade da identidade do sujeito e ao mesmo tempo a desestabiliza: retrica auto-

    imunitria na medida em que a confisso tenta a redeno, a purificao, o estado anterior ao

    erro. Porm, nesse caminho, reimprime a dvida, promove mais culpa ao reinscrever a

    falta. Reage contra a auto-proteo no processo auto-imunitrio, pois a desculpa que o ato

    confessional engendra torna a performance confessional redundante desde seu incio. A

    reflexo autobiogrfica que se d por meio das memrias arquiva a falta confessada e

    garante sua sobrevivncia no processo infinito de auto-acusao. No caso das memrias

    drummondianas, esse olhar auxiliar no desvelamento da escritura potico-autobiogrfica

  • 14

    que ocorre muitas vezes como espao confessional que negocia a auto-acusao, produzindo

    mais texto potico e mais culpa, num movimento circular de alta produo potica.

    Inicialmente, a respeito da culpa social, foi observado por Vagner Camilo (2001),

    principalmente nos livros Claro Enigma e Novos Poemas, um implacvel sentimento de

    culpa (CAMILO, 2001, p. 77) na potica do itabirano, que se percebe na separao operada

    entre o intelectual-artista e o proletariado. Ao analisar poemas como O Arco de Novos

    Poemas, Camilo prope que a analogia com o arco-ris representa uma reunio de metades

    separadas: Nela, o homem encontra a possibilidade de mobilizar os sentidos dispersos

    (voz e ouvido) e de salvar-se da queda (p. 142). Sobre Remisso, tambm de Claro

    Enigma, afirma que o ttulo remete no s idia de perdo de uma falta ou de uma dvida,

    como tambm a de um lenitivo, alvio ou consolo de um sofrimento (p. 194). Apesar de

    Vagner Camilo defender que seria bobagem evocar a justificativa bblica do pecado

    original (p. 238) para sua anlise da culpa social na lrica drummondiana, essa matriz

    bblica nos parece ser um bom ponto de partida para a anlise crtica mais detida da

    problemtica, principalmente nos Boitempos, uma vez que essa culpa significada

    especialmente a partir das relaes que estabelece com o universo simblico que rodeia a

    figura paterna, muitas vezes comparada figura do Deus e que se estende genealogia.

    Naturalmente, a anlise da culpa social com fundo histrico se sustenta e necessria,

    todavia percebemos que o fundo bblico, irradiado para o restante da obra, tambm est

    presente nessa culpa. importante notar que o prprio Camilo, no processo de interpretao

    dos poemas, acaba por citar as Escrituras quando busca a genealogia cultural dessa culpa.

    Observamos, portanto, que a presena da atitude que podemos definir como culpa, como

    interiorizao do sentimento do erro, mesmo em desacordo com a perspectiva camiliana,

    remete o assunto ao campo do cristianismo.

  • 15

    De sua parte, analisando No se mate, de Brejo das almas, Jernimo Teixeira

    considera que, no mesmo movimento em que se torna estranho a si mesmo (...), Drummond

    tambm estabelece uma atmosfera familiar, um retiro confessional (TEIXEIRA, 2005, p.

    113). Sobre Poema de sete faces, Teixeira afirma ainda: O momento mais dolorido do

    poema a prece da quinta estrofe, uma parfrase evanglica (Meu Deus, porque me

    abandonaste...). Comparando a figura do pai com o Deus bblico no poema, A mesa, de

    Claro Enigma, o autor afirma que esse pai onipresente capaz de perdo, mas s depois da

    ira oscilao de temperamento que encontramos no Deus da Bblia, vingador em Sodoma

    e Gomorra, indevassvel nos anos de cativeiro babilnico, compassivo nos Evangelhos,

    novamente vingador no Apocalipse (p. 119). Jos Guilherme Merquior (1975), ainda que de

    modo bem distinto, a respeito de Sentimento do Mundo, considera que o sentimento em

    questo tambm o de culpa.

    S agora percebo / que condenado fui / a fazer e provar / a pena interior. Seu nome

    (e tremo) Deus do catecismo, nesse trecho de Ele ntido que o retorno estabelece

    relao com a Bblia, pois a casa o microcosmo do poder garantido h muito tempo

    figura paterna, inegvel e irreconcilivel. Uma origem relacionada ao conhecimento como

    morte (Ado perde o poder de imortalidade quando toma conhecimento do bem e do mal e

    pode escolher entre eles), como mortalidade e vergonha (vergonha pelo conhecimento da

    nudez, por sentir-se nu e saber-se pecador sem crime, o que se torna a condio da

    existncia). Desse modo, no se pode deixar de considerar a matriz crist em sua

    fenomenalidade na potica da culpa presente nos livros memorialistas. No se trata,

    entretanto, de moralizar ou cristianizar essa culpa, mas de observar o texto em sua retrica

    de dvida e confisso, no movimento de auto-justificao circular que engendra a culpa

    desde a origem, assim como a des-culpa na relao que estabelece com a confisso.

  • 16

    Dentro do gnero da memria, da autobiografia, o relato de vida nos parece construir

    a retrica performtica de confisso do eu heterogneo, atravessado pelo passado, presente e

    futuro. Nesse sentido, para Derrida (2002b), o homem um animal autobiogrfico, e a

    autobiografia, esta histria de si, dentro do discurso tradicional, depois do pecado original

    torna-se confisso, testemunho de um erro inaugural, dvida estabelecida entre criador e

    criatura. O sentimento, segundo o autor francs, oriundo do discurso ocidental judaico-

    cristo que percebe o ser humano como criado por outro ser e por isso deve sua existncia

    e j nasce endividado. Ou seja, embora no se identifique com a questo religiosa, esse

    extrato genealgico permite compreender a estrutura da relao confessional com mais

    preciso. O que acontece tambm porque o itabirano provm de um contexto familiar e

    social intimamente ligado aos princpios religiosos e, principalmente, como veremos ao

    longo desse estudo, os significantes da doutrina crist e catlica so uma constante nas

    memrias, mesmo quando acontece pela via negativa, quando os critica.

    A propsito do valor literrio, como os formalistas russos j afirmavam, somente

    luz das teorias que os fatos literrios se tornam perceptveis, e se as teorias morrem ou se

    transformam, os fatos confirmados ou descobertos graas a ela permanecem. Interessa-nos,

    portanto, um olhar que no imprima a questo do valor, pelo menos num primeiro momento,

    para que seja possvel destacar elementos de interesse relativos obra memorialista. At

    certo ponto, esse olhar toca em afirmaes como a de Affonso Romano de SantAnna, em

    Carlos Drummond de Andrade: anlise da obra, que, em relao obra drummondiana

    ento escrita at Boitempo, observa: Pode-se mesmo traar uma curva que, partindo de

    Alguma Poesia atinge seu pice altura de Rosa do Povo para, em seguida, declinar em

    relao a Boitempo. Esse movimento ascendente no expressa exatamente o valor de um

    livro sobre outro. uma linha descritiva, que apenas assinala graficamente a curva do drama

    existencial do personagem gauche. (SANT ANNA, 1977, p. 17)

  • 17

    O trabalho investigar o trao memorialstico na potica de Carlos Drummond de

    Andrade, principalmente nos livros de memria supracitados, observando o sentido e o

    modo como se manifesta nele a retrica da confisso. Observaremos como esta escrita

    negocia conceitos da tradio religiosa, como pecado e perdo, em estreita relao com

    problemticas de ordem social e filosfica. Mais especificamente, trata-se de observar a

    negociao entre culpa e confisso, averiguando seus mecanismos estilsticos a partir da

    relao de heterogeneidade do sujeito que se estabelece no texto memorialista. Nossa

    hiptese de leitura que a singularidade desta negociao se d no horizonte do discurso

    sobre confisso e culpa descrito por Derrida como estratgia de resgate da subjetividade

    cindida. As vrias faces da culpa, presentes em toda obra de Drummond, dizem respeito no

    apenas a uma culpa social e no exatamente a uma culpa de ordem religiosa, mas tomam

    forma a partir da fenomenalidade que une essas camadas da experincia a outras, como a

    relao com a figura paterna e com tudo aquilo que ela significa: as vantagens e

    desvantagens da posio social ocupada pelo filho de fazendeiro, a inadequao vida

    campesina e a relao com a sexualidade. Veremos como o trao de auto-acusao diz

    respeito a um escopo mais abrangente, capaz de fazer a ponte entre diferentes campos da

    experincia (social, religiosa, filosfica, psicanaltica). Textos sobre memria e

    autobiografia, como os de Paul de Man e Jacques Derrida, oferecero esteio discusso.

    O primeiro captulo, que se intitula O Caminho do 'outro': percurso de

    reconhecimento apresenta consideraes gerais sobre trilogia para compreendermos a

    complexa relao que o texto autobiogrfico estabelece com precria constituio da

    subjetividade, que se formula e reformula durante a escrita, alm da temporalidade instvel

    nos movimentos de ida e vinda do passado contaminado pelo presente. Para isso, analisamos

    os primeiros poemas que abrem cada um dos trs livros e funcionam como prefcio,

    anunciando o pacto autobiogrfico (LEJEUNE, 2008).

  • 18

    Segundo Lejeune (2008) Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais

    geral, literatura ntima), preciso que haja relao de identidade entre autor, narrador e

    personagem. (p.15). Dessa forma, observamos que tal relao estabelecida nesses poemas

    iniciais como pacto com o leitor na medida em que apresentam o sujeito da enunciao ora

    como eu atual, ora desdobrando-se no menino que viveu as experincias no passado, o que

    ocorre tambm ao longo dos trs livros. O sujeito atual que produz o texto inseparvel do

    personagem, do menino antigo. A relao de identificao entre os eus estabelecida no

    texto que remete ao nome na capa do livro, mas lembramos que o nome do autor apenas

    aponta para um conjunto de discursos j escritos, no para a pessoa do autor que, na

    verdade, inidentificvel como sujeito para a literatura, campo em que nos localizamos.

    Muitas vezes, percebemos nos poemas a fala da criana armada do olhar reflexivo e

    crtico do adulto que escreve. Podemos dizer que esse um-no-outro, a alternncia

    dramtica, manifesta o modo de articulao dos impasses do sujeito diante dos

    acontecimentos descritos. A justaposio de diferentes camadas temporais indica o jogo

    constante de reorganizao e fragmentao do eu que remete sempre para o nome de autor

    margem do texto. Nome prprio que sela a verdade da enunciao, do endereamento do

    texto dirigido aos leitores, assinado, reconhecido. Pacto estabelecido desde os ttulos

    Boitempo, Menino Antigo e Esquecer para Lembrar, que sugerem a ruminao do processo

    de escrita rememorativa e o espao rural da infncia, a tentativa do retorno ao menino que

    foi e a atualidade da escrita de memria na medida em que reconstruda pelo sujeito

    presente a si. Tais consideraes vo auxiliar na compreenso de como a retrica

    confessional produz mais culpa na medida em que a escrita das memrias articula a ausncia

    daquele que viveu as experincias e a dissoluo de tudo o que compunha o espao pretrito,

    assim como prope a precariedade da prpria estrutura textual: os vazios e a recriao

    potica, impossibilitando o retorno e o pagamento da dvida.

  • 19

    O segundo captulo, Sobre uma dvida, refere-se ao sentimento de culpa que

    orienta a escrita dos poemas na tentativa de reconciliao com o passado familiar e, em

    consequncia, consigo. O discurso de justificao coloca a auto-acusao e afirma a culpa,

    re-significa-a trazendo todas as queixas e mgoas para o presente da escrita. O passado

    pueril reescrito sob o estigma do desajuste, do acontecimento irreconcilivel. A desculpa

    ento adiada indefinidamente, j que re-inaugura a dvida.

    Por fim, no terceiro captulo, A retrica da confisso auto-imunitria, observamos

    como o texto potico se realiza por meio da retrica que tenta disfarar o movimento

    incessante da culpa, na medida em que a potica confessional acontece no s em relao

    aos atos passados que geraram alguma culpa, mas em relao ao momento da escrita,

    produo dos poemas dos trs Boitempos. Os erros cometidos (o desinteresse pelos

    trabalhos realizados pelo pai na fazenda, a ruptura com o passado de homens da terra, a

    utilizao sexual da negra, a expulso do colgio) no causam dano ao sujeito, o que o causa

    sua escrita, leitura e interpretao, a relao que inaugura com outras estruturas

    significativas (a necessidade do eu atual de retorno quele universo da origem para tentar a

    reconciliao, a tentativa de pagamento da dvida contrada pela escolha individual da

    prpria descoberta do mundo). no campo da potica que todos os acontecimentos se

    realizam e se desconstroem rumo expresso mais ntima do eu lrico.

    De forma mais centrada, faremos recurso a estudos de Jacques Derrida sobre o

    assunto, como em F e saber, em que est presente a noo da auto-imunidade do

    testemunho. Neste texto, encontrado em A Religio, o autor francs afirma que o movimento

    auto-imunitrio acontece como tentativa de restituio que arrasta o inimigo, A palavra

    onda impe-se a ns para sugerir essa reduplicao de uma vaga que se apropria disso

    mesmo a que, enrolando-se, parece se opor (...). Aliando-se, ento, com o inimigo,

    hospitaleira dos antgenos, arrastando o outro consigo, a onda aumenta e infla com a

  • 20

    potncia adversa. No caso dos poemas memorialistas, arrasta a falta, a desagregao no

    momento mesmo da confisso dessa falta, o que produz mais poesia, mais sentimento de

    culpa pelo rompimento com a genealogia, cerne do movimento de desculpa.

    Em O animal que logo sou, encontramos a noo do homem como animal

    autobiogrfico culpado. Derrida recua at o momento do pecado original e numa leitura

    filosfica afirma que o erro consistia, ao mesmo tempo, em desobedecer a ordem divina, no

    conhecimento do bem e do mal e da nudez, assim como na vergonha por estar nu. O que vai

    nos interessar sobre essa leitura o rompimento da condio de um no-saber sobre si e tudo

    o que se seguiu a isso. Quando o homem passa a conhecer e a reconhecer sua condio de

    estar nu, com seu sexo exposto, ele se envergonha, perde sua pureza original, cobre-se e, em

    seguida, quando tal fato dado a conhecer, severamente punido. Os animais, segundo

    Derrida, no se sentem nus porque so nus, para eles no existe a condio de nudez. Assim,

    podemos concluir que no h um pensamento do bem e do mal sem o sentimento da nudez,

    sem sentir-se impuro, j que foi a partir desse acontecimento que fomos expulsos do paraso.

    Os trs fatores, o conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da prpria nudez e a

    punio, esto intimamente ligados. O saber sobre si mesmo que implica o conhecimento de

    estar nu envolve todo o comportamento humano, toda sua forma de representao, pois no

    h como pensar separadamente o saber e a tcnica e tudo que est relacionado a esse vivente

    depois do erro inaugural:

    o vesturio responde a uma tcnica. Ns teramos ento que pensar juntos, como um mesmo tema, o pudor e a tcnica. E o mal e a histria, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o nico [animal] a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. (DERRIDA, 2002b, p. 18)

    Por fim, o autor estabelece a relao entre a autobiografia e a confisso lembrando

    que o homem o nico animal que conta a sua prpria histria, que est sempre se

  • 21

    lembrando dos atos passados, recordando, passando em revista a histria do homem. um

    animal autobiogrfico, e esta autobiografia, a histria de si, depois do pecado original

    torna-se confisso, testemunho de um erro inaugural, uma dvida estabelecida entre criador e

    criatura.

    Para a interpretao das memrias do itabirano, tais formulaes importam-nos na medida

    em que tornam mais ntima a relao entre autobiografia e confisso, entre o texto

    autobiogrfico e escritura como remorso.

    Em Salvo o nome, consideraes acerca da relao com o nome que prope

    primeiramente uma reflexo sobre si, autobiogrfica. Assim tambm a confisso, uma

    relao primeiramente com o outro de si que a divide, pois antes de se direcionar ao outro

    externo, a Deus, um testemunho diante de si, j que Ele tudo sabe e tudo v. o arquivo

    de sua relao a si. Deseja-se mais dizer a si do que ao outro. A assinatura sela a dvida para

    consigo no adeus do envio proposto pelo arquivamento. Tal arquivamento, entretanto, abre

    caminho para o post scriptum, para alguma marca sobre acontecimentos singulares de

    linguagem (1995, p.36). Derrida l a confisso como uma teologia negativa na medida em

    que o essencial da confisso consiste na relao a si primeiramente e no a Deus. O papel do

    testemunho da falta torna-se a sobrevivncia de uma autodestruio onto-lgico-semntica-

    interna (p.36). Para os estudos aqui realizados entendemos que tal autodestruio tambm

    se opera dentro do prprio processo confessional na medida em que produz mais culpa no

    acontecimento auto-imunitrio, pois segundo o trabalho de imunizao auto-imunitria, a

    confisso realiza o arquivamento da culpa, a marca da dvida para alm da confisso.

    de grande valia Papel-mquina, em que Derrida faz uma leitura do estudo de Paul

    De Man sobre as Confisses de Rousseau, ligando-as as de Santo Agustinho, para

    estabelecer uma genealogia da linguagem da desculpa no Ocidente,

    H nisso uma memria, h tambm uma histria e um arquivo da

  • 22

    confisso, uma genealogia das confisses: da palavra confisso, da instituio crist bastante tardia que leva esse nome (...). Agostinho e Rousseau, ambos autores de Confisses, falam mais freqentemente a linguagem da desculpa que a do perdo. (p.44)

    Nesse caminho, apresenta a escrita como mquina de desculpar, mas tambm de culpar ao

    remarcar a falta cometida, Quanto mais se desculpa, mais se declara e mais se sente

    culpado. Culpado por desculpar. Desculpando-se. Quanto mais se desculpa a si mesmo,

    menos se inocenta. (p.67). Derrida no utiliza a expresso auto-imunidade, mas tais

    estudos auxiliam na compreenso da relao entre auto-imunidade e confisso, pois esta

    estabelece que aquilo que poderia inocentar, livrar a subjetividade do erro cometido, acaba

    por produzir maior sentimento de culpa, reproduzindo-a, arquivando-a. Tambm ser de

    grande valia a leitura das Confisses de Rousseau feita por Paul de Man em Alegorias da

    Leitura, na medida em que coloca consideraes que corroboram as anlises derridianas

    sobre a confisso ao mesmo tempo que observam que a desculpa engendrada por ela o

    reconhecimento da culpa tornado-a indesculpvel: culpa narrada transformada em culpa a

    narrar As desculpas no apenas acusam, mas tambm executam o veredicto implcito em

    suas acusaes. Movimento que nas memrias drummondianas produz muito mais texto

    potico, porque reabre o que a desculpa da inaptido e incompetncia em relao aos

    trabalhos do campo parecia ter fechado: o sentimento de desagregao, de isolamento e de

    distanciamento das origens.

    Observadas tais perspectivas, a anlise pontual e detalhada de poemas ser feita no

    sentido de averiguar de que maneira se estabelece o aspecto confessional e qual o sentido

    que ele tem no universo especfico de suas questes. A hiptese do carter auto-imunitrio

    (da estratgia de auto-anulao que estabelece o salvamento ou a instaurao da

    subjetividade) ser posta prova pela via da observao das contradies da subjetividade.

  • 23

    Importa-nos, mais do que uma resposta, procurar descrever a questo que o sujeito se coloca

    a si mesmo, encontrando-se virtualmente onde no diz.

    Lembramos ainda que os poemas estudados que pertencem aos livros memorialistas

    encontram-se, respectivamente nas seguintes publicaes editadas separadamente: Boitempo

    & A Falta que Ama (1973), Menino Antigo (1974) e Esquecer para Lembrar (1979). Os trs

    Boitempos no so organizados separadamente na Poesia Completa, publicada pela editora

    Nova Aguilar, possuem um s ttulo Boitempo e o conjunto intitulado A Falta que ama no

    est includo nas memrias. Utilizamos as edies separadas porque entendemos que a

    ordem dos ttulos prope um modo de leitura e no pode ser descartado.

  • 24

    PRIMEIRO CAPTULO

    O Caminho do Outro: percurso de

    reconhecimento

    O texto o contexto do poeta Ou o poeta o contexto do texto? (...)

    O texto-coisa me expia Com o olho de outro.

    Murilo Mendes

  • 25

    1.1. Breve olhar sobre a potica gauche e sua relao com as memrias

    O projeto intelectual drummondiano traduz-se no movimento exploratrio da

    linguagem que nasce como problema desde os primeiros livros escritos. A noo da poesia

    como fruto do trabalho rduo na oficina textual prope o olhar crtico sobre a estrutura. O

    autor mostra-se consciente dos processos que atravessam o fazer potico. Em decorrncia

    disso, sua produo literria, como j sabido, carrega em si a temtica de ruptura e introduz

    perspectivas discursivas que se colocam como anti-modelo do que tradicionalmente se

    considerava alta poesia. Tal caminho de criao estilstica mostra-se coerente com a

    posio subjetiva de descentramento em relao ordem social que encontramos nos

    Boitempos e uma instncia fundamental no processo da poesia modernista, como afirma

    Jos Guilherme Merquior em Notas em Funo de Boitempo (I) (1997, p. 59). Estilo que

    ocorre como modo de articular forma e contedo, pois a gaucherie se manifesta tambm na

    linguagem, na (ausncia de) rima e no ritmo. Outro recurso comum da estilstica das

    memrias poticas a utilizao da linguagem coloquial pela via irnica para exprimir algo

    com a inteno de dar sentido a algo diverso, encoberto, mas no anulado pelo primeiro,

    criando o efeito de fundir em um nico enunciado aquilo que se diz quilo que se quer dizer.

    Estratgias de estilo presentes nos Boitempos que traduzem o posicionamento de construo

    potica questionadora que no realiza simplesmente o movimento da recusa quando critica a

    ordem familiar, interiorana, escolar e literria.

    Pode-se observar nesses livros uma tendncia da viso indagadora que nunca o

    abandonar, e que, no espao de confisso dos livros memorialistas, volta-se para ele

    mesmo, pois o texto reflete acerca daquilo que prope. A construo da identidade numa

    estrutura circundante de expressividade potica articula-se com as figuras que remetem ao

    ambiente familiar da infncia e resulta no discurso atravessado por silncios, lirismo contido

  • 26

    e na associao do estrato semntico e rtmico. Como afirma Affonso Romano de

    SantAnna, o texto drummondiano converte o que seria simplesmente biogrfico em

    elemento bibliogrfico (SANTANNA, 1977, p. 27-28), pois estabelece a gaucherie na

    linguagem potica, negociando os impasses, as dvidas e as culpas ao problematizar aquilo

    que coloca. No caso das memrias, essa caracterstica da potica itabirana promove o

    reconhecimento e a diferena em relao aos significantes da genealogia.

    A potica drummondiana assume, desde o incio, o lugar de si: abre a histrica

    literria em Alguma poesia com a voz ordenando: Vai, Carlos, ser gauche na vida. O

    anjo torto que vive nas sombras d incio trajetria potica do mesmo modo que as

    autobiografias quando partem do acontecimento do nascimento. Na potica do itabirano, o

    nascimento alegoricamente profetizado pelo anjo torto, que no contexto mineiro

    reconhecidamente O Torto, anjo mau. Todavia, desde os primeiros livros at os Boitempos,

    um anjo desajustado e no mau que apresenta sua incompatibilidade com o meio na

    tentativa de interpretao do estar-no-mundo. A significao do impasse, da travessia

    desviada e da marca do esquerdo, tambm podem ser analisadas por meio do ttulo do

    famoso e amplamente interpretado poema No meio do caminho. Esse poema carrega em si

    importantes aluses, como a relacionada Divina Comdia, de Dante Alighieri, pois a frase

    inicia a viagem pelo inferno, Nel mezzo del cammin di nostra vita (No meio do caminho

    de nossa vida), guiada pelo poeta Virglio, e expressa, desse modo, o caminho da busca pela

    via literria que nunca ausente nos livros.

    Para traar uma trajetria at os livros memorialistas, podemos dizer que em Alguma

    Poesia (1930), o poeta estabeleceu a atmosfera gauche, inaugurando o estilo de ironia

    contundente, de reflexo das relaes familiares e de ambientao da cidade natal, estilo que

    no abandonou nos livros seguintes e que nos Boitempos surge como negociador do desejo

    de confisso que veremos no terceiro captulo. Em Brejo das Almas (1934) o humour e a

  • 27

    ironia ganham continuidade e o desacerto com o mundo se intensifica. Em Sentimento do

    Mundo (1940), Jos (1942) e A Rosa do Povo (1945), o poeta trabalha sentimentos

    universais como a fraternidade e o amor entre os homens, mas sempre pela via do olhar

    subjetivo. A partir de Claro Enigma, parte para a potica metafsica classicizante que quase

    abandona os temas universais. Estabelece-se ento a relao mais estreita com o contar

    autobiogrfico que remonta ao passado da infncia e adolescncia, como percebido em

    poemas como Encontro, A Mesa, Os Bens e o Sangue e Canto Negro. Nesse

    sentido, esse ltimo livro se aproxima dos Boitempos, pois tambm considera a memria

    pasto de poesia e cria terreno para as memrias poticas, na medida em o torna mais

    firme. O tempo pretrito, como outras tantas esfinges, diante do incauto viajante

    (MURRY, 1968, p. 15) passa a ser constitutivo da linguagem do impasse e da dvida.

    O primeiro livro, Boitempo & A Falta que Ama composto por dez subdivises cujos

    ttulos Caminhar de Costas, Vida Paroquial, Morar, Bota e Espora, Notcias de

    Cl, Um, Percepes, Relaes Humanas e Outras Serras apresentam o trabalho de

    ruminao que transforma tempo e espao em algo novo. Em A Falta que Ama, os vinte e

    nove poemas no possuem subttulo. No total, esse volume possui 113 poemas cujos temas

    predominantes so a casa paterna, os personagens que compem tal ambiente e a

    hereditariedade. No segundo livro, Menino Antigo, a fala infante retoma o lugar, revisita o

    passado escravocrata e a moral religiosa de modo contundente. So 126 poemas distribudos

    em quatro subttulos: Pretrito mais que perfeito, Fazenda dos 12 Vintns ou do Pontal,

    Repertrio Urbano e O Pequeno e os Grandes, sendo que este ltimo subttulo

    composto por setenta e dois poemas. Esquecer para Lembrar o volume mais extenso,

    possui 201 poemas, subdivididos em dez partes: Intimao, poema prefcio, Bens de

    Raiz, Fazenda dos 12 Vintns ou do Pontal e Terra em Redor, Morar Nesta Casa,

    Notcias de Cl, O Menino e os Grandes, Repertrio Urbano, Primeiro Colgio,

  • 28

    Fria Friburgo e Mocidade Solta. Nota-se que o ltimo volume, que compreende

    tambm parte da adolescncia nos internatos, ausente nos dois primeiros, contm trs ttulos

    muito prximos aos ttulos dos outros dois volumes como forma de complementar e dar

    continuidade ao conjunto potico por meio do retorno casa e s relaes de dvida

    (Morar e Morar Nesta Casa, Fazenda dos 12 Vintns ou do Pontal e Fazenda dos 12

    Vintns ou do Pontal e Terra em Redor e O Pequeno e os Grandes e O Menino e os

    Grandes). A particularidade da trilogia memorialista consiste no fato de que sua potica no

    familiar, na medida em que ressurge como presente na linguagem do menino e, ao

    contrrio de Infncia, o prosasmo e o verso livre no se fazem presentes como modo de

    harmonizar o solo de sua viagem, mas propem a problemtica da subjetividade em meio

    torrente de fatos exteriores movimentados por sentimentos ntimos.

    1.2. A subjetividade cindida pela temporalidade

    Para complementar o entendimento geral dos Boitempos e principalmente sua

    complexa relao subjetiva e temporal, faremos inicialmente a articulao de alguns poemas

    importantes para a compreenso dos trs livros com os conceitos tericos que adotamos para

    explicitar a relao entre o autor, o nome e a assinatura. Utilizaremos os primeiros poemas

    de cada livro e a seguir, no prximo subitem, dos ltimos. Esse caminho se realiza por dois

    motivos: primeiramente com o intuito de tornar mais firme o solo das reflexes sobre a

    culpa e a retrica confessional dos dois prximos captulos, pois averiguamos que tanto a

    subjetividade como o sentimento de culpa nascem no prprio texto que os atesta e os

    reproduz, so estruturais pelo fato de a confisso impossibilitar algum modo de redeno.

    Quando o texto potico expressa as cenas constantes de reiterao do meio familiar e do

    ambiente do entorno, atesta o distanciamento e a perda, e a partir desse acontecimento, ou ao

    mesmo tempo, o que se estabelece o eu estilhaado, em cacos, cujo desajuste se intensifica

    medida que o mundo extinto/recriado condena-o pelo fracasso nas relaes familiares, no

  • 29

    trato com a terra e ainda nos internatos. Fracasso que, confessado, distancia a possibilidade

    de conciliao e d continuidade expresso da culpa e da desculpa, produzindo uma mais

    valia, produzindo mais texto potico. O segundo motivo ocorre porque os livros

    apresentam a trajetria de introduo e concluso, logo, a pontuao dos poemas iniciais e

    finais so importantes para a interpretao. Entre a anlise das partes iniciais e finais,

    interpretaremos outros poemas de cada livro para apresentar de que modo o que se anunciou

    no prefcio se d no desenvolvimento dos livros.

    Os poemas de abertura determinam tanto a estrutura empreendida quanto o

    movimento pretendido. A estrutura da escrita acontece como envio, como destinao sem

    endereo que, no entanto, arquivada e assinada, e cuja assinatura atesta a ausncia do

    portador do nome, seu distanciamento a ser significado e interpretado como articulao da

    proposta esttica a se realizar. Segundo Derrida em O Carto-Postal: de Scrates a Freud e

    alm, escrevemos sobre um suporte a ser enviado e cada letra promove j o distanciamento

    de si: a partir do momento em que, instantaneamente, o primeiro trao de uma letra se

    divide e deve suportar a partio para identificar-se, h apenas cartes-postais, pedaos

    annimos e sem domiclio fixo (p.63). No momento do envio, no h destinatrio a no ser

    o outro que se articula na escrita por meio da introjeo (conceito terico prximo ao

    conceito tambm derridiano de iterabilidade):

    quem escreve deve se perguntar o que lhe pedem para escrever, ento ele escreve ditado por algum destinatrio (...) 'algum destinatrio' acaba, portanto, medida que a abordagem, a aproximao, a apropriao, a introjeo progridem, por no poder pedir mais nada que no seja soprado por mim. Tudo se corrompe assim, h apenas espelho, no mais imagem, eles no se vem mais. (p. 162-163).

    Movimento de rememorao complexo em que o trabalho com o eu e com o menino

    negociado com o tempo num retorno impossvel, mas perseguido, prometido, que mais

    dispersa do que rene. Esse processo um-no-outro determinado a partir da

    subjetividade e torna-a o lugar em que as temporalidades so negociadas sem a presena

  • 30

    plena de qualquer identidade. Movimento que remete o discurso para alm dele, para seus

    imponderveis. Nesse espao, percebemos o trabalho com os sentimentos recalcados que

    despontam no presente do ato da escritura.

    As memrias poticas so o suporte da confisso culpada que dispersa a

    subjetividade ao invs de identific-la. O texto do itabirano negocia passado, presente e

    futuro e ainda a subjetividade que passa a ser o filtro reformulador daquilo que deseja

    transportar para a folha em branco. Provoca a desarticulao da subjetividade potica,

    centrada a partir da agoridade que determina o passado e o futuro a partir de si. Na

    disperso da identidade, provocada pela temporalidade instvel, a confisso que poderia

    proporcionar o retorno ao estado de inocncia, no se realiza, pois o retorno perseguido

    impossvel.

    Como forma de indicar essa mecnica, observamos que a trilogia memorialista

    traz, no incio, a configurao que mostrar ao leitor a trajetria empreendida, o projeto da

    escrita. O eu do texto vai apresentar, nas primeiras linhas, o mecanismo de seu trabalho, o

    jogo entre o eu como sujeito e como objeto. O subttulo Caminhar de costas, da primeira

    parte de Boitempo, poderia ser o principal, compreendendo todos os outros encontrados

    nesse primeiro livro. O trabalho de caminhar de costas seria aquele adotado na

    composio de todos os poemas das oito partes seguintes. A reconstruo e a reflexo da

    vida pretrita pela via potica marcam-se por oscilaes e descontinuidades do sujeito lrico,

    ressaltando o carter mutvel do objeto. As estratgias de composio da lrica gauche se

    fazem presentes nas descries do ambiente e dos acontecimentos, apresentando

    questionamentos que determinam o olhar sobre o meio e sobre si, selecionando, eliminando,

    ampliando ou minimizando os fatos poticos.

    Dentro desta perspectiva, podemos afirmar que quando o autor decide narrar sua

    vida, o que se coloca primeiramente em tal campo formado pela heterogeneidade no

  • 31

    aquele sujeito que vivenciou tais experincias, mas sim sua relao com o nome prprio,

    com o nome que lhe dado (SISCAR, 2000, 160-186). Nesse momento, percebemos por

    meio da potica dos Boitempos, que o nome pertence a um outro, um nome do outro em si.

    Descoberta que Conduz o leitor e analista a pensar nessa constituio como forma de

    suplementao do significado da escrita e leitura na medida em que revelam o jogo de

    dissoluo dos contornos do sujeito potico. ento que se inicia o processo lrico na

    articulao dos eus que repentinamente caracteriza a representao do pensamento que se

    move por questionamentos acerca da prpria origem e constituio. Percebemos tambm

    que se no possvel a identidade nica centrada na subjetividade nascida na trama potica,

    torna-se tambm impossvel que a identidade do autor seja a do personagem.

    A estrutura do texto memorialista intenta apresentar uma sntese do vasto mundo

    potico partindo da relao que estabelece com o nome que carrega uma tenso, um

    conjunto de experincias pessoais pertencentes ao personagem criado na escritura e que

    carrega essa tenso, pois

    Sua potica marcadamente autobiogrfica, memorialstica, constituindo-se quase uma grande narrativa de verso de experincias pessoais, experincias essas que percorrem o longo caminho de 85 anos bem vividos. (MALARD, 2005, p. 12-13)

    O trabalho artstico recebe o crivo da rememorao que desarticula a potica e a deixa turva,

    ao mesmo tempo em que a revela por meio desse processo.

    Os primeiros poemas de cada um dos Boitempos funcionam como prefcio e nos do

    uma advertncia. Isso se d na medida em que colocam a escrita como processo de

    constituio do texto subjetivo, ou seja, colocam como tema o problema da inexatido de tal

    escritura, do preenchimento de vazios que compem o ato. Recriam um sujeito delimitado

    pelo texto que aparece como uma das faces da persona do autor, como pacto, a afirmao,

    no texto, dessa identidade, remetendo, em ltima instncia, ao nome do autor, escrito na capa

  • 32

    do livro (LE JEUNE, 2008, p.26). O texto das memrias possui regras e organizaes

    prprias e o sujeito da escrita no se confunde com a pessoa do autor, pois

    um autor no uma pessoa. uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um s tempo, no texto e no extratexto, ele a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsvel e o produtor de um discurso. (LE JEUNE, 2008, p. 23)

    O poema-prefcio que abre o primeiro livro da trilogia proposta na introduo nos

    orienta rumo s consideraes do eu potico como resumo de existido:

    De Cacos, de buracos de hiatos e de vcuos de elipses, psius faz-se, desfaz-se, faz-se uma incorprea face, resumo de existido. Apura-se o retrato na mesma transparncia: eliminando cara situao e trnsito subitamente vara o bloqueio da terra. E chega quele ponto onde tudo modo no almofariz do ouro onde tudo modo no almofariz do ouro: uma Europa, um museu, o projeto amar, o concluso silncio. (ANDRADE, 1973, p. 7)

    O ttulo In Memria faz referncia ao projeto escritural de morte daquele que

    escreve e d lugar ao texto, morte como metamorfose. O jogo de sonoridade proporcionado

    pela paronomsia (elipses / psius, transparncia / trnsito) assim como o significado dos

    vocbulos, precrios e evanescentes (incorprea, transparncia), reafirmam a proposta de

    reconstituio sem garantia de totalidade. Assim como as slabas, ou as palavras, quando

  • 33

    inseridas em outros agrupamentos, ou contextos, adquirem novo sentido, aquele

    reconstitudo de acordo com o desejo atual do sujeito escrevente, as memrias tambm vo

    se fazer a partir da necessidade do eu do texto em seu presente. No espelho da escritura, o

    escritor reconhece-se como outro na tentativa de auto-determinao que busca, nas imagens

    da infncia, o reconhecimento de si.

    O terceiro verso, na aliterao do fonema /s/ assinala a inconstncia e a

    imaterialidade da escrita sem limites definidos, assim como o jogo de palavras faz-se,

    desfaz-se, faz-se. Existe certa impessoalidade naquilo que se est apresentando, pois uma

    incorprea face feita, sem a referncia a quem a tenta construir. O trabalho de

    rememorao resumido no movimento rtmico de rapidez e dissoluo que os versos curtos

    sugerem, traduzindo que o espao pretrito no poder ser retomado. H o distanciamento

    do sujeito em relao ao trabalho da escrita, que se constri sozinha, sem o pai, e ao

    mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, sem um final previsvel ou desejado, j que,

    subitamente, inesperadamente, o movimento perpassa o no concreto e torna-se

    incomensurvel, vara / o bloqueio da terra. Cada parte do contar potico experimenta sua

    modificao alm da modificao geral ocasionada por cada tema inserido no contexto das

    memrias. Tal movimento de tentativa de reunio de si mesmo provoca o trabalho de

    reconhecimento infinito na medida em que nunca se realizar, s se fazendo a posteriori

    como rastro2. O rastro estabelece que na escrita para que algo se estabelea preciso

    2 No processo complexo de interiorizao do nome realizado pelo texto, desenvolveremos aqui uma anlise ligada ao conceito de memria principalmente influenciada pelos estudos que Derrida faz sobre o pensamento de Freud, em A Escritura e a Diferena, a respeito da constituio da psique humana. Segundo o autor francs, Freud quem primeiramente apresenta a memria de uma forma no fisiolgica. Ele a descreve psiquicamente e determina sua formao a partir do rastro mnsico proveniente da repetio de experincias. um processo complexo que consiste na atuao de um conjunto de foras diferenciais produzidas por meio da percepo e de acordo com a excitao. Desse processo a resultante ser o rastro mnsico. Cada uma das foras, sozinha, no significa nada, mas em relao a outras produz o sentido que formar o rastro. Este consiste na marca provisria, que tambm estar em relao a outras marcas, para a inscrio de um novo rastro na memria, e assim sucessivamente. A representao psquica de Freud para a memria descrita por Derrida como a resistncia que provocaria a abertura ao arrombamento do rastro. Tal acontecimento se daria da seguinte forma: um conjunto de foras diferenciais provenientes de experincias vividas provocaria o arrombamento, a abertura de um caminho por onde o rastro se inscreveria, rastro como resultante da relao diferencial.

  • 34

    primeiramente o seu rastro, que corre o risco de desaparecer posteriormente para que outro

    tome o seu lugar. A realidade do texto memorialista consiste em seu rastro,

    Ele , com efeito, contraditrio e inadmissvel na lgica da identidade. O rastro no somente desapario da origem, ele quer dizer (...) que a origem sequer desapareceu, que nunca foi constituda a no ser retrospectivamente por uma no-origem, o rastro, transformado assim em origem da origem. (DERRIDA apud NASCIMENTO, 2001, p. 141)

    Os conceitos tericos de Derrida sobre a constituio da escritura literria, ou para

    uma cincia da escrita, propem aspectos que identificamos na potica das memrias e no

    processo de reconstituio do tempo pretrito. Como nestas o sujeito heterogneo, e

    Qualquer inscrio na psique j supe um rastro, que poder ser apagado. Sua condio de existncia ser negociador de foras diferenciais sempre, para que outro rastro possa existir. Aquilo que est sendo inscrito passa a ser ento o prprio rastro, fazendo-se e refazendo-se sempre, a cada nova experincia. Por isso impossvel nos remetermos a uma origem, pois esta renovada a cada negociao do rastro. A conscincia do indivduo, antes tida como principal parte do psquico, ento observada como um de seus constituintes e no mais seu universo total. Ela passa a ser vista como parte do conjunto, como uma de suas galxias, perdendo o status anterior e inovando a conceituabilidade temporal. Os conceitos de temporalidade determinavam que a conscincia era dada a partir da noo do presente. Toda a percepo era entendida como formada apenas por aquilo que acontece no presente, e dele se estenderia, frente, o futuro e, atrs, o passado, ambos ausentes porque seus acontecimentos no estariam presentificados ao ser na forma de presena. Entretanto, no h como garantir uma forma de conscincia que possua a realidade do vivido no presente, que possa apreend-la em sua originalidade. S podemos, ao contrrio, questionar tal fato na medida em que s conseguimos perceber aquilo que nos faculta significar, o que torna o presente e a sua realidade fatores simblicos. Alm disso, como j percebemos no tocante formao do rastro, h uma srie de elementos agindo nessa empresa, elementos que no se separam e s tm importncia em relao a outros. Poderamos citar, na ordem do psquico, agentes como: a memria, o inconsciente, a conscincia e o pr-consciente, assim como a formao do sentido e do rastro, como resultante da organizao desses elementos. Tudo estaria ainda se relacionando, em diferena, com o social e o meio natural. Graas ao fato de no podermos voltar a um estgio anterior puro que conseguimos elaborar novas formulaes a respeito da vida, sempre renovada. Caminho aberto como o resultado provisrio de foras atuando infinitamente e de forma diferencial. A repetio em diferena provocada pela excitao causada pelo contato com o meio a responsvel pelo acontecimento do rastro. O rastro s se transforma em marca mnsica por meio da repetio em diferena e da forma da excitao. A inscrio do rastro proporcionada pela diversidade de foras. A constituio do sujeito, da psique e, portanto, da memria, tudo de forma imbricada, funciona como uma mquina e forma aquilo que chamamos trao. Entendemos por trao aquilo que deixa a marca no indivduo, mas que pode ser apagada, e rastro como um vestgio, um caminho aberto que traa sua via para necessariamente se apagar, o que a condio de sua existncia. O rastro nunca ser sentido como presente conscincia, mas na condio de dar abertura para um acontecimento que ainda est se fazendo, que ainda est por vir, o trao. Essa explicao nos serve no sentido de que um rastro existe para ser apagado para que um novo rastro se instale, tambm para ser apagado. Rastro da escrita que em cada releitura promove novo significado. Cada movimento rememorativo registrado est sobre um rastro antes presente e que deixou seu rastro. Rastro do rastro, a potica das memrias sempre renovada e desdobra-se de forma criativa de acordo com a proposta esttica que o autor deseja construir, de acordo com aquilo que move o texto: o retorno ao tempo mtico da origem. Affonso Romano de Sant`Anna aproxima-se dessa idia quando afirma, Na poesia drummondiana ocorre exatamente a eliminao das categorias temporais pela fuso de todas elas numa durao nica. Atinge o estado de contemplao que mescla o antes e o depois, o espao presente e o espao ausente (SANTANNA, 1977, p. 172).

  • 35

    move-se pelas temporalidades, s poder compor uma incorprea face e nunca um sujeito

    pleno, completo, mas algo sempre inacabado e pronto a se fazer e refazer. Para recompor a

    identidade, o texto articula o eu atual, o menino antigo e aquele que surge na escritura. A

    descrio de si a partir da escrita do maior nmero possvel de experincias que estabelece a

    partir do contato com a existncia pretrita surge como tentativa de totalizao, como modo

    de esgotar a subjetividade, de esvazi-la da problemtica que carrega: a impossibilidade

    do retorno. Todo o esforo da produo acaba por ampliar o conceito do fazer potico, que

    se torna a fico da verdade textual que consiste no despedaamento: outro texto passa a ser

    definido e possui a prpria realidade, seu prprio drama.

    O projeto de escrita das memrias, num primeiro momento, busca a expresso da

    percepo do ambiente itabirano da infncia motivada pela descrio objetivo-narrativa que

    se d quando o texto utiliza-se de uma linguagem direta, descritiva. Entretanto, o que

    percebemos, e de grande valia, que o ritmo e a carga das palavras invertem a forma de

    expresso que passa a outro plano, um plano subjetivo que carrega consideraes a respeito

    da finitude e do sentimento de dissoluo e perda. A linguagem volta-se para a expresso da

    subjetividade quando um objeto ou acontecimento perturba a cena, que deixa de ser mera

    descrio. Processo que produz a tenso determinante para as reflexes empreendidas no

    trabalho que realizaremos. o que ocorre no poema Estrada, em que a cena da vida dos

    tropeiros delineia o sentimento de solido do eu lrico:

    O cavalo sabe todos os caminhos, o cavaleiro no. A trompa ecoa no azul longe e no peito do viajante perdido. Afinal os homens se encontram, ningum na terra sozinho. Caadores chegam em festa barbas fascam ao sol entre veados mortos

  • 36

    e ladridos. O brao aponta o rumo o brao goza a turbao. Oi neto de boiadeiros oi filho de fazendeiros que nem sabes teus carreiros! Que mais sabes? Foge o tropel da trompa na poeira. Tudo na terra sozinho. (ANDRADE, 1973, p. 60)

    No plano abstrato, percebemos o sentimento de pertencimento e separao, um sendo

    o oposto direto do outro. O primeiro evocado pela segunda e terceira estrofes, em contraste

    com a quarta e quinta, que propem a inaptido e o isolamento. O ritmo se torna intenso pela

    falta de pontuao e pelos versos curtos, apresentando a movimentao dos cavaleiros, a

    alegria do encontro e do sentimento de pertencimento que trazem a genealogia, assim como

    o aspecto pessoal complementado pelos substantivos neto e filho. quando o poema

    passa a outro plano e os contornos do ambiente descrito se perdem. O estado de nimo se

    modifica e desloca-se para o sujeito lrico que se revela e se desoculta, no presente. O

    mundo anterior dissolvido na poeira e o personagem sem carreiros, na repetio da

    cena, o diferente e por isso sua prpria solido se generaliza e contamina tudo, Tudo na

    terra sozinho. O poema que inicia com certa objetividade, na representao do encontro

    expressa as contradies essenciais (ningum na terra sozinho e Tudo na terra

    sozinho), que desviam o rumo da leitura. Se a chegada dos viajantes, num primeiro

    momento, identificou a subjetividade lrica e estabeleceu o ambiente campestre como seu

    lugar, a ausncia dos cavaleiros reposicionou-a no silncio e na solido do presente da

    escrita.

    A leitura dos poemas memorialistas, diferentemente dos outros livros, nos incita a

    construir a histria do sujeito textual por meio dos signos entrelaados que caracterizam os

    personagens pitorescos da cidade natal. A descrio dos comportamentos desvela o contexto

  • 37

    das vivncias do menino antigo. Ao recriar os personagens da infncia, o autor ilumina o

    cenrio provinciano assinalando os desvios de conduta, os comportamentos amorais com

    os quais negociou a individualidade.

    As personas aparecem num tom de objetividade que busca a crtica descritiva, fato

    que podemos observar na fala do presidente da Cmara em Cautela: O presidente

    tesoureiro do ouro em p / tributo do povo a regncia trina / v l se vai abrir sesso. /

    Presida quem quiser, / que esse ouro aqui ladro nenhum vai roubar, em que coloca o poder

    poltico arbitrrio; de Cafas-Leo: o terrvel personagem das histrias contadas pelo pai

    em Didtica, Cafas-Leo terrvel. Come um boi / no almoo, uma boiada no jantar. /

    Seu arroto fulmina; sua bota / esmaga distrados no caminho, que denuncia o sentimento de

    medo estimulado pelas histrias narradas pelo pai; da estranha que vaga na noite em

    Mulher vestida de Homem: Dizem que noite Mrgara passeia / vestida de homem da

    cabea aos ps. Vai de terno preto, de chapu de lebre / na cabea enterrado, assume o ser

    diverso que nela se esconde, que apresenta a diversidade sexual; ou do delegado em O

    doutor ausente: Nosso delegado / no de prender. / Prefere, sossegado, / ler. / (...) A

    estante, a garrafa semi-oculta, / a cavalgada dos possveis impossveis. / Matou! Roubou!

    Defloramento... / Deixa pra l., em que tambm denuncia a ineficincia da instituio.

    A caracterizao dos personagens principais da genealogia, como o av e o pai,

    quase sempre expressa por meio de suas falas e aes que no drama existencial se voltam

    para o sujeito escrevente e provocam seu reposicionamento:

    calar botina apertada ir missa, que preguia (...) Manh que prometia caramujos msicos mgicos maduros sabores de tato, barco de leituras secretas sereias... apodrecida

  • 38

    No vai? Pois no vai missa? Ele precisa de couro.

    Coronel, vem bater, vem ensinar a viver a exata forma de vida. (p. 95)

    O prazer pueril expresso pela aliterao do m assinala o ritmo e d dinamismo ao

    poema, assim como a aliterao do s, que conota vivacidade e prazer. Estratgias que

    propem o olhar irnico e tentam se distanciam dos imperativos familiares por meio da

    desqualificao comparativa. Atestam a satisfao de um espao (o mundo de sonhos

    infantes) e o tdio (estar na igreja ouvindo a missa) provocado por outro. A atitude de

    agressividade do pai, presente nas memrias como figura rgida que no se abre, estabelece

    o lugar social rigoroso ocupado por ele na origem e no destino do sujeito lrico,

    contextualizando o crculo de intimidao em que a reflexo erige.

    Gesto e Palavra indica o caminho de interpretao, pois determina as

    caractersticas do personagem paterno e a funo que exerce: funo castradora da voz que

    prescreve comportamentos. A voz do personagem-menino introduzida nesse poema coloca

    sua condio no meio familiar e confirma o pacto de identificao entre o menino antigo,

    o narrador e o escritor. Atesta e rearticula tambm a latente tenso na relao com o pai

    que faz com que o rememorar no seja um processo nostlgico, mas que traz, cada vez mais,

    conflitos, obstculos que reproduzem o obstculo que o sentimento de isolamento em

    relao origem.

    A gaucherie do comportamento diante das leis paternas, mineiras, sociais, polticas,

    literrias e religiosas, expressa o olhar do sujeito que no se habitua transmisso de

    tradies embasadas em conhecimentos slidos e durveis, por isso questiona-as e por isso

    construiu a prpria personalidade. Essa poesia, marcada por uma profecia, caminha sob

    seu termo, caminha torta, oscilatria. Mas nem por isso deixa de garantir um carter lrico-

  • 39

    especulativo. O questionamento mais dos afetos do que da via racional, apesar da tentativa

    da linguagem em ser objetiva. Movimento que apresenta a tenso com a hereditariedade e

    reafirma o projeto da escrita potica do passado inserido no presente contnuo, pois a relao

    eu/pai continua imutvel, mesmo depois de tantas mudanas temporais. Veremos esse

    aspecto mais detidamente no captulo seguinte.

    Tambm no curto poema Liquidao, ainda no primeiro livro, apesar de escrito em

    terceira pessoa, na voz passiva, orientando ao distanciamento, percebemos nos versos a

    interioridade do sentimento que no visa o efeito objetivo da descrio da casa buscado pela

    estrutura de citao:

    A casa foi vendida com todas as lembranas todos os mveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo

    seus imponderveis por vinte, vinte contos (1973, p. 49)

    A ausncia de pontuao nos seis versos garante o ritmo acelerado da percepo que

    no deseja a descrio de cunho lrico, podendo esquivar-se do sentimento despertado pela

    aniquilao. A vrgula no ltimo verso o nico momento de pausa que induz reflexo,

    traz tona a realidade do fato da perda por meio do valor monetrio de tudo o que esteve

    presente ali. O contedo dos versos inverte o que a forma pretende, pois apesar de retornar

    realidade no fim, o poema no apresenta os contornos da casa, nem suas partes. A falta de

    nitidez se estabelece por meio da complexidade de sentimentos: da lembrana, dos

    pesadelos, dos pecados cometidos e no cometidos. O elemento sonoro do bater de

    portas e o vento encanado remetem realidade temporal da cotidianidade perdida. A casa

    torna-se emblema da perda proporcionada pela passagem do tempo. O poema articula o

    objetivo, a casa e seu valor monetrio com o subjetivo, tudo aquilo que pertence ao

  • 40

    sistema de valores do eu lrico e que, negativos ou no, no entram em tal negociao, no

    podem ser negociados, pois o que contm incomensurvel. a confisso daquele que se

    afastou e permitiu a deteriorao dos emblemas de identificao e herana no par

    desaparecimento/reaparecimento, o retorno a si do retorno do processo de perda e resgate.

    O valor persuasivo dos poemas-prefcio, em relao aos livros que abrem, est

    relacionado ao modo de leitura que encerram. Trazem os contornos do lugar e da condio

    do sujeito lrico diante dos acontecimentos. A relao entre as figuras da escrita movida

    pelas referncias que indicam o sujeito lrico e o ambiente em que se encontra. Esse

    ambiente projeta a subjetividade para alm dos seus limites: em direo descoberta e

    revelao que trazem a pulso de um sem lugar, o desejo de retorno que encontra a

    barreira do tempo e por isso dificulta a reconciliao com o passado. No poema que abre

    Menino antigo, percebemos a indeterminao como resultado da busca de significao,

    assim como o processo temporal, complexo e suplementar ao sujeito:

    No Hotel dos Viajantes se hospeda incgnito. L no ele, um mais-tarde sem direito de usar a semelhana. No sai para rever, sai para ver o tempo futuro que secou as esponjeiras e ergueu pirmides de ferro em p onde uma serra, uma serra, uma cl, um menino literalmente desapareceram e surgem equipamentos eletrnicos Est filmando seu depois. (...) A cmara olha muito olha mais e capta a inexistncia abismal definitiva / infinita. (974, p. 3)

    Em Documentrio percebemos a perda de entusiasmo em relao ao poema-

    prefcio anterior. No h mais o desejo de reconstituio, este verifica-se irrealizvel. O

  • 41

    projeto inicial se modificou subitamente. O eu lrico se movimenta entre os

    acontecimentos, uma grande movimentao est contida no poema que afirma a

    desintegrao. Os termos incgnito, mais tarde, sem direito de usar a semelhana,

    tempo futuro, desapareceram, abismal conotam o distanciamento de tudo o que era

    conhecido. A modernidade, o tempo, literalmente fizeram desaparecer o menino, sua

    genealogia e seu habitat, nada mais resta, o tempo dissolveu tudo. Isso ocorre porque nos

    Boitempos, a recordao e a tentativa de repetio da experincia no retomam um ponto

    passado na linha do tempo, pois nem a linha nem o ponto esto l.

    No h possibilidade de definio, o texto s pode marcar a passagem para a via

    potica das impresses provocadas pela perda. A metfora do hotel empregada para

    descrever o espao tambm dinmico, sem fixidez interna no qual os sujeitos habitam

    temporariamente. o lugar alheio e, ao mesmo tempo, que pertence ao viajante

    momentaneamente. A separao do adjetivo incgnito em nico verso d a importncia do

    seu significado, porque a subjetividade no somente desconhecida em relao aos demais,

    mas em relao a si mesmo, e por isso no sai para rever, e sim para ver esse futuro. O

    menino e o velho esto enxergando o novo ao mesmo tempo, pois o tempo paradoxal:

    no a sucesso de tempos, mas a irrupo constante de tempos. Um acontecimento

    potico nico e imprevisvel que se constitui por uma mecnica em que no h origem nem

    centro organizador e em que cada constituinte da experincia influencia o outro, cada um

    sendo responsvel pela formao do outro.

    A inexistncia abismal garante a reatualizao do sujeito lrico, compe a

    contemporaneidade das experincias do menino antigo como se-fazendo, como forma de

    auto-constituio pela repetio na diversidade inaugurada pela variante de espaos e

    situaes descritas que desencadeiam os processos objetivo-subjetivos. Uma agoridade

    sempre dada como a ser inaugurada como originria, ao mesmo tempo em que nega tal

  • 42

    condio no momento em que passa a significar a interioridade a partir da exterioridade.

    Acontecimento que ao invs do ser ou no ser, formaria um ser no sendo a partir de si, do

    sendo em si, diferindo-se pela ausncia de semelhana que a escrita poder comportar. Esse

    aspecto torna cada vez mais distante a possibilidade de redeno para o texto autobiogrfico-

    confessional, pois a culpa pelo isolamento em relao hereditariedade reproduz-se na

    distncia cada vez maior que o texto estabelece em relao quele que iniciou o texto,

    produzindo um novo acontecimento, um novo remorso.

    No espao do hotel, lugar exteriormente esttico, mas internamente dinmico, o

    sujeito ter que se adaptar. o ambiente estranho no qual preciso renegociar as

    experincias atravs do contato constante com o novo, o diferente trazido pela escrita. Da

    mesma forma se d o processo de inscrio do rastro. Uma nova experincia estabelece

    novas negociaes que vo ger-lo. O hotel surge como espao sem fronteiras, topos do

    desconforto, lugar de novas experincias e de desfamiliaridade, assim como o texto

    memorialista para o escrevente, pois remarca o impasse e a impossibilidade, a culpa que

    no pode ser resolvida e que restabelece a condio do sujeito como endividado.

    A metfora do hotel como leitura do espao textual que significa a heterogeneidade

    do personagem gauche refora o carter de inevitabilidade da presena da subjetividade

    cindida a partir da qual o personagem se escreve, ou se confessa liricamente.

    Dessa forma, podemos dizer que no h previso do acontecimento potico, pois no

    existe um texto na folha de papel como transcrio de outro texto interior ou inconsciente. A

    prpria existncia da potica autobiogrfica implica modificao da escritura, pois o sujeito,

    ao descrever o mundo rural da antiga Itabira de sua prpria criao, coloca a si como ponto

    de ruptura com esse mundo e com a nova realidade por ele inaugurada.

    A proposta de abertura nos indica que nas pginas seguintes o leitor no vai

    encontrar um passado de experincias pueris, ou do tempo remoto trazido para o presente e

  • 43

    transposto no papel, mas a escrita que vai alm de si mesma apresentando o acontecimento

    inexorvel. Escrita no confivel, palavra cortada / na primeira slaba (ANDRADE, 1973,

    p. 155), carregada de surpresas e perigos: Era todo o passado / presente presidente / na

    polpa do futuro / acuando-te no beco (p. 179), trazendo o indesejvel, o que foi recalcado,

    para renegociao de culpas ou injustias cometidas. O passado expresso dentro do

    presente que est em processo de escritura, um presente sob o olhar do adulto que caminha,

    avalia, narra, e, por isso, est sujeito a toda forma de interpretao, de julgamento e

    confisso. Processo que abre possibilidade de renegociao, que a promete, mas a promessa

    no se realiza porque o espao hbrido de descoberta d-se sem a presena do caminho

    linear.

    A composio das poesias fora um trabalho de preenchimento na tentativa de

    conciliao das partes que o indivduo consegue reunir. Nesse trabalho, a utilizao das

    vrias vozes possibilita que o sujeito lrico habite vrios espaos e transite livremente pela

    obra potica. Isso acontece na medida em que o caminhar tem sua frente o fim, a morte:

    Falta pouco para o mundo acabar (...) Agora que ele estava principiando / a confessar / na

    bruma seu semblante e melodia (p. 176). ento necessrio ser dinmico e contar todos os

    fatos presentes na memria, complementando-os, num trabalho arqueolgico.

    Apesar de a maioria da crtica defender que os Boitempos conservam muitas marcas

    da prosa pelo tom narrativo e coloquial, percebemos que este um recurso de orientao da

    leitura que tenta tornar oblquos os temas ntimos que refletem. A dico que se mascara e

    desvia a linguagem autocntrica, disfara a presena do eu ntimo, o que no a torna

    impessoal, nem relegado[a] exterioridade de uma moral de fbula (MERQUIOR, 1997,

    p.65). Apesar de alguns poemas apresentarem essa estrutura, todavia a obra no deve ser

    reduzida a isso. A emotividade expressa ora em sua opacidade, ora nas relaes que

    estabelece com o mundo externo, pois essa sua realidade, a realidade do projeto esttico.

  • 44

    Ao descrever os ambientes, a subjetividade lrica se realiza e impe sua marca, caracteriza-

    se a partir desse outro que surge na tenso entre a passagem do objetivo para o subjetivo. O

    lirismo nasce ento do entrelaamento que o texto faz prevalecer e do momento da tenso

    que essa ruptura estabelece.

    Os sistemas simblicos que expressam as consideraes do eu lrico (a relao com a

    finitude por meio do sentimento de dissoluo dos objetos, a busca de razes perdidas no

    tempo, o sentimento de desfamiliaridade) garantem a presena do sujeito desajustado que

    deixa de ser contingente e passa a ser essencial e recorrente. Desse modo, fatores como

    presena e perda aparecem na potica por meio da inverso promovida pelas antteses (como

    no poema j estudado Estrada, na anttese pertencimento/solido) que desconstroem a

    realidade primeira instalada no plano objetivo.

    Enquanto os personagens da cidade da meninice so expressos em tom de ironia e

    distanciamento, sem a presena de um lirismo marcante, como personas perifricas na

    autobiografia potica dos Boitempos, ocorre que, nas composies em que o sujeito se volta

    para o ambiente da casa da infncia, a poesia exibe um mundo singular indizvel fora do

    contexto literrio. A caracterizao dos espaos no s desperta a imagem na escrita, mas

    garante o seu retorno, sua presena persistente, imediatamente acessvel, assim como os

    afetos despertados por essa rememorao:

    Por que este nome, ao sol? Tudo escurece de sbito na casa. Estou sem olhos. Aqui decerto guardam-se guardados sem forma, sem sentido. quarto feito pensadamente para me intrigar. O que nele se pe assume outra matria e nunca mais regressa ao que era antes. Eu mesmo, se transponho o umbral enigmtico, fico outro ser, de mim desconhecido. (...) O quarto escuro em mim habita. Sou o quarto escuro. Sem lucarna. Sem culo. Os antigos

  • 45

    condenam-me a essa forma de castigo. (ANDRADE, 1974, p.104)

    O questionamento inicial traz consigo o contraste entre a iluminao e a escurido

    que parte do quarto escuro e contamina o ambiente da casa. O quarto metfora do sujeito

    e tambm produz o efeito de metonmia. Metfora porque no decorrer dos versos este

    cmodo torna-se a representao do eu lrico por substituio. Efeito metonmico porque o

    menino, ao habit-lo, torna-se parte constitutiva, um est contido no outro. O processo

    potico expressa o nvel da reflexo que busca o autoconhecimento que, entretanto, se

    encontra enigmtico, no umbral, como forma de castigo, de condenao. A

    subjetividade encontra-se no ambiente isolado, ntimo da casa que posta como a histria de

    sua experincia mais interior, como o dirio potico. O aspecto momentneo do

    acontecimento, de sbito, estendido, e a relao sujeito/objeto torna-se metamrfica, um

    modifica o outro num processo de mo dupla, apresentando a unidade entre o quarto e o

    menino. No h autoconhecimento, o eu est Sem lucarna. / Sem culo e condenado

    busca infinita de si a partir da origem. No caminho de descoberta, que se reinicia a todo

    momento, as barreiras so reiteradas de novas formas e em novos contextos, contudo,

    encarnam os sentimentos no presente daquele que escreve.

    A proposta dos livros focaliza a percepo de uma constante no retorno ao

    passado/presente: a problemtica temporal presente na marca autobiogrfica, memorialista.

    O estudo dos textos realiza a abertura dessa constante em uma gama de significaes,

    trazendo outros pontos culminantes e decisivos para as interpretaes, uma vez que

    apresentam o dilogo com as tradies mineiras da infncia e os signos que compem a

    negociao para a re-significao de acordo com o tema de cada poema no presente da

    escrita. A abordagem potica, por meio das metforas, d vazo ao efeito da marca

    confessional que retorna em todos os espaos. Assim, a escrita torna-se o lugar em que a

    persona potica desconstri a unidade do sujeito que se realiza na heterogeneidade e se

  • 46

    apresentado ora como o narrador que descreve as experincias do menino que fora, ora

    como o prprio menino que observa o trabalho realizado a posteriori. O que podemos notar

    em Primeiro conto:

    O menino ambicioso no de poder ou glria mas de soltar a coisa oculta no seu peito escreve no caderno e vagamente conta maneira de sonho sem sentido nem forma aquilo que no sabe. Ficou na folha a mancha de tinteiro entornado, mas to esmaecida que nem mancha o papel. Quem decifra por baixo a letra do menino, agora que o homem sabe dizer o que no mais se oculta no seu peito. (p. 79)

    Sem conseguir o trabalho final, acabado, o escritor tenta construir a si por meio do

    texto. Aqui, o processo da escrita do menino, demonstrado pela via potica da infncia, o

    adulto acaba por concluir no prprio poema: o que se oculta no peito transformado em

    poema e ao mesmo tempo em trabalho do eu ao construir as memrias. O contar maneira

    de sonho assinala a desorganizao com que carrega sua verdade que aparece no texto

    precoce tornando-o absurdo no tempo passado. A palavra mancha adquire outro sentido no

    quarto verso da ltima estrofe, transforma-se em presena do estilo do escritor, sua

    assinatura, a marca que permanece, ainda que esmaecida. A produtividade do processo

    escritural acontece no processo de metamorfose entre o menino ambicioso e o homem

    escrevente. Este ltimo torna audvel o que ocultado, tenta escutar o segredo labirntico

    que parte do menino, caminha em direo cambiante para o adulto que novamente

    reconhece-o. O poema estabelece a origem fantasmtica, imaginria da produo literria

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    que to onrica quanto o poema provm de expor aquilo que no mais / se oculta no

    seu peito.

    A utilizao de diferentes vozes na composio potica autobiogrfica acontece

    como consequncia do desejo de reconstruo do eu em busca do auto-conhecimento que a

    escrita promete. Encontramos ainda outras formas de mscaras que analisaremos nesse

    captulo: a analogia com a figura literria de Robinson Cruso no poema Fim e a

    utilizao do personagem Jos.

    A analogia com esses significantes alarga e complementa a interpretao, mas

    tambm inaugura uma nova realidade a partir das estratgias lingusticas. Pela via da potica

    autobiogrfica, o texto drummondiano significa e subverte, ao mesmo tempo, o contrato de

    leitura aberto em Alguma Poesia na medida em que assume a inaptido em relao aos

    assuntos do mundo e, ao mesmo tempo, afirma o desejo de identificao e de reconciliao

    com ele. A viagem ao inferno no livro de Dante que nos remete tanto ao poema No meio

    do caminho quanto ao Poema de sete faces, j que em ambos a conotao se direciona

    para a problemtica existencial de ordem proftica ligadas passagem, condio de

    estar-no-mundo como impasse apresenta uma forma de purificao em direo

    eternidade. Podemos entender que a poesia drummondiana est relacionada ao modo de

    reflexo que constri uma experincia, desde o inicio autobiogrfica e confessional que

    culmina nos livros memorialistas.

    Poema importante no tocante estrutura da prpria escrita memorialista, Trs

    compoteiras revela tanto o olhar daquele que busca as vivncias pretritas, quanto o

    processo de reconstruo dessas vivncias na escrita:

    Quero trs compoteiras de trs cores distintas que sob o sol acendam trs fogueiras distintas. No para pr doce

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    em nenhuma das trs. Passou a hora de doce, no a das trs compoteiras, e quero todas as trs. para pr o sol em igual tempo e ngulo nas cores diferentes. para ver o sol lavrando no bisel reflexos diferentes. Mas onde as compoteiras? Acaso se quebraram? No resta nem um caco de cada uma? Os cacos ainda me serviam se fossem trs das trs. Outras quaisquer no servem A minha experincia. O sol sol de todos mas os cristais so nicos, os sons tambm so nicos se bato em cada cor uma pancada nica. Es