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Memórias de tempos antigos - livro de mitos de povos indígenas do Xingu Parque Indígena do Xingu e Terra Indígena Panará Projeto de Formação de Professores Indígenas ATIX/ISA São Paulo, 2005 Direitos autorais: Narradores: Akatua Aweti, Itsautaku Waurá, Haitsehü Kuikuro, Koka Kamaiurá, Kôkômba Suiá, Mbeni Suiá, Takumã Kamaiurá. Professores indígenas do Parque Indígena do Xingu e gestores de associações indígenas: Aisanain Paltu Kamaiurá, Amutu Waurá, Arapawa Tsulupe Waurá, Aigi Nahukuá, Amatiwana Matipu, Arautará Kamaiurá, Arupajup Kaiabi, Aturi Kaiabi, Awajatu Aweti, Awae Trumai, Awasiu Kaiabi, Hwintxi Suiá, Ibene Kuikuro, Iokoré Ikpeng, Jeika Kalapalo, Jemy Kaiabi, Kaman Nahukuá, Kaomi Kaiabi, Korotowï Ikpeng, Krekreasã Panara, Maiua Ikpeng, Makaulaka Aweti Mehinaku, Matari Kaiabi, Matariwa Kamaiurá, Mutuá Kuikuro Mehinaku, Nhokretxi Suiá, Sirawan Kaiabi, Tempty Suiá, Tariwaki Suiá Kaiabi, Tahugaki Kalapalo, Tariajup Kaiabi, Tarinu Yudjá, Tahurimã Juruna, Takap Pi’yu Trumai Kaiabi,Tangeu’i Kaiabi, Tarupi Kaiabi, Yabaiwa Yudja, Ugise Kalapalo, Yaconhongrátxi Suiá, Yapariwa Yudja Kaiabi, Yunak Yawalapiti, Waranaku Aweti, Wary Kamaiurá Organização: Estela Würker e Maria Cristina Troncarelli (ISA) Colaboração: Camila Gauditano Projeto gráfico/Editoração: Vera Feitosa (ISA) Apoio à editoração: Cláudio Aparecido Tavares (ISA) Coordenação do Programa Xingu do ISA: André Villas-Bôas Coordenação Adjunta do Programa Xingu: Paulo Junqueira Coordenação do Projeto de Formação de Professores Indígenas: Maria Cristina Troncarelli Equipe de educadores: Camila Gauditano, Rosana Gasparini, Paula Mendonça Apoio a esta publicação: Ministério da Educação/SECAD Universidade Federal de Minas Gerais/ Faculdade de Letras/Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterras: escrita, leitura, traduções Apoio ao projeto: Terre dês Hommes Fundação Rainforest da Noruega Fundação Nacional do Índio - Funai Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena/Ministério da Educação Memórias de tempos antigos livro de mitos de povos indígenas do Xingu ATIX / ISA desenho central da capa: Makaulaka Aweti Mehinaku

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Memórias de tempos antigos - livro de mitos de povos indígenas do XinguParque Indígena do Xingu e Terra Indígena Panará

Projeto de Formação de Professores Indígenas ATIX/ISA

São Paulo, 2005

Direitos autorais:Narradores: Akatua Aweti, Itsautaku Waurá, Haitsehü Kuikuro, Koka Kamaiurá, Kôkômba Suiá, Mbeni Suiá, Takumã Kamaiurá.Professores indígenas do Parque Indígena do Xingu e gestores de associações indígenas: Aisanain Paltu Kamaiurá, Amutu Waurá, Arapawa Tsulupe Waurá, Aigi Nahukuá, Amatiwana Matipu, Arautará Kamaiurá, Arupajup Kaiabi, Aturi Kaiabi, Awajatu Aweti, Awae Trumai, Awasiu Kaiabi, Hwintxi Suiá, Ibene Kuikuro, Iokoré Ikpeng, Jeika Kalapalo, Jemy Kaiabi, Kaman Nahukuá, Kaomi Kaiabi, Korotowï Ikpeng, Krekreasã Panara, Maiua Ikpeng, Makaulaka Aweti Mehinaku, Matari Kaiabi, Matariwa Kamaiurá, Mutuá Kuikuro Mehinaku, Nhokretxi Suiá, Sirawan Kaiabi, Tempty Suiá, Tariwaki Suiá Kaiabi, Tahugaki Kalapalo, Tariajup Kaiabi, Tarinu Yudjá, Tahurimã Juruna, Takap Pi’yu Trumai Kaiabi,Tangeu’i Kaiabi, Tarupi Kaiabi, Yabaiwa Yudja, Ugise Kalapalo, Yaconhongrátxi Suiá, Yapariwa Yudja Kaiabi, Yunak Yawalapiti, Waranaku Aweti, Wary Kamaiurá

Organização: Estela Würker e Maria Cristina Troncarelli (ISA)

Colaboração: Camila Gauditano

Projeto gráfico/Editoração: Vera Feitosa (ISA)

Apoio à editoração: Cláudio Aparecido Tavares (ISA)

Coordenação do Programa Xingu do ISA: André Villas-BôasCoordenação Adjunta do Programa Xingu: Paulo JunqueiraCoordenação do Projeto de Formação de Professores Indígenas: Maria Cristina TroncarelliEquipe de educadores: Camila Gauditano, Rosana Gasparini, Paula Mendonça

Apoio a esta publicação: Ministério da Educação/SECAD • Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Letras/Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterras: escrita, leitura, traduções

Apoio ao projeto:Terre dês HommesFundação Rainforest da NoruegaFundação Nacional do Índio - FunaiCoordenação Geral de Educação Escolar Indígena/Ministério da Educação

Memórias de tempos antigoslivro de mitos de povos indígenas do Xingu

ATIX / ISAdesenho central da capa: Makaulaka Aweti Mehinaku

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Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação Fernando Haddad

Secretário-executivoJairo Jorge da Silva

Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ricardo Henriques

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Memórias de tempos antigos

livro de mitos de povos indígenas do Xingu

Apoio

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

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CGEEI – Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena

Coordenador Kleber Gesteira e Matos UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

Reitora Ana Lúcia Almeida Gazzola FALE – Faculdade de Letras

Diretora Eliana Amarante de Mendonça Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterras:

escrita, leitura, traduções Coordenadora Maria Inês de Almeida

A Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) foi fundada em 1995 para defender o patrimônio territorial, ambiental e cultural dos povos indígenas do Parque Indígena do Xingu (PIX). Possui sede no Posto Indígena Diauarum e escritório na cidade de Canarana – MT. É composta por um Conselho Político que inclui lideranças das 14 etnias do PIX.A Atix atua na fiscalização dos limites do Parque, participa na gestão dos sistemas de saúde e educação, no desenvolvimento de atividades para geração de renda e na promoção e resgate cultural.Conselho:Makupá Kaiabi (presidente), Alupá Trumai (vice-presidente), Kamikia Trumai (secretário), Ianukulá Kaiabi Suiá (secretário executivo), Winti Suyá (diretor executivo), Karin Juruna (diretor de cultura), Tymair‰ Kaiabi (diretor de projetos)

sedeRua Três Passos, 93 – Centro78640-000 Canarana – MT – Brasiltel: 0 xx 66 [email protected]@primeisp.com.br

O Instituto Socioambiental (ISA) é uma associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundada em 22 de abril de 1994, por pessoas com formação e experiência marcante na luta por direitos sociais e ambientais. Tem como objetivo defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambien-te, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que promovam a sustentabilidade socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biológica do país.

Para saber mais sobre o ISA consulte www.socioambiental.org

Conselho Diretor: Neide Esterci (presidente), Sérgio Mauro [Sema] Santos Filho (vice-presidente), Adriana Ramos, Beto Ricardo, Carlos Frederico Marés

Secretário executivo: Beto Ricardo

Secretário executivo adjunto: Enrique Svirsky

Apoio institucional:ICCO – Organização Intereclesiástica para Cooperação ao Desenvolvimento NCA – Ajuda da Igreja da Noruega

São Paulo (sede)Av. Higienópolis, 90101238-001 São Paulo – SP – Brasiltel: 0 xx 11 3660-7949 / fax: 0 xx 11 [email protected]ília (subsede)SCLN 210, bloco C, sala 11270862-530 Brasília – DF – Brasiltel: 0 xx 61 3035-5114 / fax: 0 xx 61 [email protected]. Gabriel da Cachoeira (subsede)Rua Projetada 70 – Centro – Caixa Postal 2169750-000 São Gabriel da Cachoeira – AM – Brasiltel: 0 xx 97 3471-2182/1156/2193 / fax: 0 xx 97 [email protected] (subsede)Rua 06, nº 73, Conjunto Vila Municipal, Adrianópolis 69057-740 Manaus – AM – Brasiltel/fax: 0 xx 92 3648-8114/3642-6743Canarana (casa do ISA)Av. São Paulo, 181 – Centro78640-000 Canarana – MT – BRtel: 0 xx 66 3478-2362

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Apresentação

O mito vem do começo, vem da origem dos acontecimentos. Os mitos trazem a história de como tudo aconteceu no mundo, muito antes de existir a escrita e que permanece na cultura

de cada povo. O mito explica a origem do ser humano, do planeta, dos recursos naturais, da música, das festas, dos alimentos e das coisas que existem e fazem parte da cultura.

Mostra tudo que aconteceu há muito tempo atrás.É a história de antigamente que revive hoje em dia e existe para fortalecer a cultura de uma

sociedade, para transmitir as experiências dos nossos antepassados. São histórias sagradas.Os mitos são guardados na memória das pessoas, passados de pais para filhos e hoje em dia

são também escritos. O mito também é ciência, através dele conhecemos a vida dos antepassados, a geografia, palavras antigas, músicas, o modo de viver de cada cultura.

Os mitos são importantes para organizar as relações sociais, a ética e a conduta dos seres humanos em suas comunidades.

desenho de Wary Kamaiurá

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Existem mitos engraçados e outros que deixam a gente triste. Às vezes nos mitos também ocorrem transformações, quando são contados por diferentes pessoas, isso acontece sempre

com as histórias que são contadas e recontadas. Cada narrador também coloca um tipo de beleza diferente, a sua criatividade, na sua forma de contar.

Se não existissem os velhos para nos contar os mitos, as histórias de nossos povos se perderiam no tempo.

Nas aulas da prof. Carmen Junqueira vimos que existiu um pesquisador que disse que o sonho de uma pessoa era o seu mito particular e que o mito era o sonho da sociedade. Portanto, para

ele, o mito é um sonho público e o sonho é um mito particular.

Takap Pi’yu Trumai Kaiabi, Jemy Kaiabi, Iokore Ikpeng, Kaomi Kaiabi, Korotowï Ikpeng, Jowosipep Kaiabi, Tarupi Kaiabi

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Índice

Mitos de origemA origem da água (Aweti) ............................................................................................ 11

Como surgiu o dia e a noite (Waurá) .......................................................................... 33

Origem do dia para o povo Kuikuro .......................................................................... 43

Os gêmeos Sol e Lua e a origem da festa Kuaryp (Aweti) ....................................... 45

Janaryt e Tumej (Aweti) .............................................................................................. 49

A lagoa Makawaja (Aweti) ........................................................................................... 50

Origem da lagoa ‘Ypawu (Kamaiurá) .......................................................................... 52

A origem do dia para o povo Kamaiurá .................................................................... 54

Origem dos porcos (Kamaiurá) ................................................................................... 57

Origem das araras (Kalapalo) ...................................................................................... 61

O rapaz que virou sucuri (Kalapalo) ........................................................................... 62

O homem, o Raposo e sua esposa (Kuikuro) ............................................................ 63

Awara’i, o homem raposa (Trumai) ............................................................................ 66

A origem do pequi (Nahukuá)...................................................................................... 68

O rapaz que pisou no sapo (Waurá) ........................................................................... 70

Origem do fogo e da arraia (Nahukuá) ....................................................................... 73

As estrelas Pomtanom, criadoras do Ratkat, o martim-pescador (Ikpeng) ........... 75

As meninas Pomtanom e Mïrïtko, a muriçoca (Ikpeng) ............................................ 79

Atparumpakno, origem das músicas de ninar (Ikpeng) ........................................... 80

Origem do tamanduá (Ikpeng) .................................................................................... 82

A origem dos pajés (Kaiabi) ........................................................................................ 83

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Um grande pajé (Kaiabi) .............................................................................................. 84

Origem do fumo para o povo Kaiabi ......................................................................... 86

Origem da ariranha (Kaiabi) ....................................................................................... 88

Origem do carapanã (Kaiabi) ..................................................................................... 90

A origem da menstruação para o povo Kaiabi ......................................................... 92

Lua, o rapaz que foi para o céu (Kaiabi) ................................................................... 93

O homem que foi transformado em veado (Kaiabi) ................................................. 95

Ana†txïbï Itxïtxïbï (Yudjá) ........................................................................................... 96

A canoa dada pelo espírito (Yudjá) ........................................................................... 97

Origem da pimenta (Yudjá) ......................................................................................... 99

A origem do povo K†sêdjê ....................................................................................... 100

Origem dos alimentos (K†sêdjê) .............................................................................. 102

Teptiritxi (K†sêdjê) ..................................................................................................... 103

Origem do nome (K†sêdjê) ....................................................................................... 105

Origem do dia e da noite para o povo K†sêdjê ...................................................... 106

A origem do fogo (Panará) ........................................................................................ 108

Histórias de guerraOs dois meninos Ajanga remiara ‘yret (Kaiabi) .......................................................111

Petxitxi Porên (K†sêdjê) .......................................................................................... 118

O primeiro contato do povo Enumania com o branco (Aweti) ............................. 126

A muriçoca terrível (Yudjá) ........................................................................................ 130

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Histórias de namoroNgotára kôt meni txejkô kãm mby – um namoro proibido (K†sêdjê) ................... 133

As moças que foram com os homens lagartas (Kaiabi) ........................................ 141

Kama (Kamaiurá) ........................................................................................................ 143

Karakarajt, o espírito do peixe (Kamaiurá) .............................................................. 145

O rapaz que morreu de repente (Mehinaku)............................................................. 148

O marido mentiroso (Nahukuá) ................................................................................. 149

Kuima’e pajé (Kaiabi) ................................................................................................ 151

Outras históriasEpawa, as abelhas xupé (Yudjá) ............................................................................... 155

História do povo Jagamü (Nahukuá) ........................................................................ 158

História de Kunhãmaru, a mulher enterrada (Kamaiurá) ........................................ 160

História do sapo Arutsam (Kamaiurá) ...................................................................... 164

História do pequi (Kamaiurá) .................................................................................... 171

História de Kanasü (Kuikuro) .................................................................................... 174

Amigo com amigo (Kalapalo) .................................................................................... 175

Os sapos e os caçadores (Yudjá) ............................................................................. 177

O homem que teve medo do bicho (K†sêdjê) ........................................................ 178

História do bacurau (Yawalapiti) ............................................................................... 180

A onça e o sapo (Trumai) ........................................................................................... 182

Kãikuãrim – uma história antiga (K†sêdjê) ............................................................. 183

A coruja e a onça (Kaiabi) ......................................................................................... 185

História do homem que escapou do KupÞkasák (K†sêdjê) .................................. 186

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Mitos de origem

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A origem da água

História narrada por Akatua Aweti e escrita por Makaulaka Aweti Mehinaku

No princípio não havia água para todos. Entretanto, Wamutsini e sua esposa, que foram os primeiros a existir no mundo, tinham sua água particular, que não davam e nem mostravam para ninguém. Wamutsini tinha um riozinho e enganava seu pessoal, que acreditava não existir água nem peixes. Ele fez um riozinho bem pequeno com peixinhos chamado kwãzy, um tipo de cascudinho. Mas ele tinha a água escondida em algum lugar, no galho de uma árvore enorme com muitos peixes.

Wamutsini havia feito seis filhas e um filho. Ele cortou sete troncos e transformou em gente. Uma das filhas se chamava Tanumakalu e o rapaz Warakuni. Tanumakalu tinha se casado com um rapaz do povo da onça e tiveram dois filhos gêmeos. Quando estava chegando o dia do nascimento dos filhos, ela morreu. Sua própria sogra, chamada Uperiru, matou-a por causa de um peido. Ela era uma velha que peidava muito. Quando Tanumakalu estava varrendo a casa a sogra fiava algodão na porta, de repente a sogra peidou, bem na hora que um pedacinho de algodão pulou e grudou na boca de Tanumakalu. Para tirá-lo da boca ela teve que cuspir, como se estivesse cuspindo por causa do cheiro do peido da sogra. A sogra achou ruim e matou-a.

Depois da morte da filha, Wamutsini foi salvar os gêmeos retirando-os de dentro da terra. E assim os gêmeos sobreviveram no mundo e cresceram. Apesar de serem crianças, começaram a ser poderosos, pois eram netos do senhor Wamutsini. Os nomes deles eram Kami (Sol), que era o mais velho e Keri (Lua), o mais novo. Kami e Keri são os nomes do Sol e Lua na língua Yawalapiti, na língua Aweti dizemos Kwat e Taty.

Quando ficaram adultos, jovens poderosos, pensaram e se perguntaram porque não havia água, mesmo porque viviam tomando banho no riozinho, matando os peixinhos chamados kwãzy (cascudinho) para comer. Chegou uma hora em que os irmãos perguntaram para seu avô Wamutsini:

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– Ô vovô!– Oi.– Quem é o dono da água?– Quem será? É o avô de vocês, Janaryt, a única

pessoa que tem água – disse Wamutsini.– É mesmo, vovô, ele é o dono da água?– Sim, ele é o dono da água. Janaryt é o nome

dele. Tem duas casas (ne´ototapat), nelas tem muito peixe. Dentro das casas ficam as panelas cheias de peixes (ytapyete). A panelinha makula’jyt e a panela tawytu’jyt estão cheias de peixes. Ele é capaz de fazer água e também peixes. Assim é o avô de vocês, Janaryt.

– Onde ele mora, vovô?– Ah, ele mora para lá – e indicou o seu dedo para

o sul.– É mesmo, vovô? Nós vamos visitá-lo.– Então está bom, podem ir visitá-lo, podem ir.– Nós vamos sim, visitar e ver nosso avô Janaryt, o

mais famoso fazedor de água.O avô deles, Wamutsini, aconselhou-os como

deveriam agir:– Lá, você deve fingir que seu irmão Keri é sua

esposa.Logo depois partiram para este lugar. Chegaram ao

final da trilha (japope apyrype) e ali ficaram parados para Kami poder disfarçar o seu irmão como esposa. Colocou

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uluri nele, passou urucum na testa, colocou o cabelo comprido como mulher e fez a cesta para seu irmão. Assim que tudo ficou pronto disseram:

– Vamos!Continuaram a caminhada como se fossem um

casal. E assim foram andando para entrar na aldeia. Quando estavam chegando, o pessoal os viu. Logo Kami (Sol) falou para uma pessoa da aldeia, que era o Janarywatu:

– Somos nós, vovô. Onde está o vovô Janaryt? – perguntou Kami para Janarywatu.

– Ele está lá, vive naquela casa.A casa de Janaryt era enorme. Ele avisou para seu

irmão:– Janaryt, o neto de nosso chefe (Kajezekwa) está

aqui.– Para cá meus netos, venham aqui – disse

Janaryt.Os dois foram atravessando a aldeia em direção a

casa dele.– É você, neto?– Sim, sou eu. Vim aqui para visitar você, vovô.– É mesmo, pode vir aqui me visitar, eu estou aqui,

coitado, sozinho e sem filhos.A esposa dele, que era o irmão disfarçado,

descarregou a cesta.– Podem se deitar na rede, meus netos.

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E assim foi conversando e contando coisas. Enfim Janaryt falou:– Vocês chegaram num momento em que eu estou sem ter o que comer, depois eu tentarei

procurar comida em algum lugar para vocês.À tarde ele falou para sua esposa:– Aripi, faça beiju para mim, eu vou tentar caçar alguma coisa para os nossos netos. Ela fez beiju e ele arrumou a rede de pesca. Quando tudo estava pronto, avisou Kami

que ia pescar. Só que para ninguém saber em que lugar iria, foi pelo caminho por onde eles chegaram. Ele estava escondendo a água desses dois. Quando anoiteceu voltou pelo mesmo caminho e entrou nas duas casas onde estavam as águas com os peixes nas panelas. Lá ele arrumou uma coisa para matar os peixes (opy’´at).

Os dois irmãos começaram a prestar atenção em tudo que ele fazia nesta casa, matando e comendo peixe à noite. Eles ficavam sem dormir, só para saber o que acontecia ali.

Quando já estava amanhecendo, Janaryt saiu da casa e voltou pelo caminho que tinha ido. Lá ele ficou fazendo hora e quando eram sete horas, chegou da pescaria pelo caminho que tinha ido pescar. Fez isso só para o Sol e o Lua não saberem em qual rio ele tinha ido pescar. Estava enganando os dois irmãos. Os espertos irmãos não duvidaram de nada.

Janaryt entrou na casa com bastante peixe.A esposa dele pegou murupep para colocar os peixes, tinha peixe-cachorro, matrinchã e

piau. Kami falou:– Você chegou, vovô?– Sim, neto, é que eu fui pescar para vocês – disse Janaryt, escondendo o lugar

do peixe.Janaryt achava que eles haviam dormido à noite e que não tinham visto nada. Falou para

sua esposa:– Acenda o fogo para eu poder assar o peixe para nossos netos, que eles devem estar

morrendo de fome.

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Ela acendeu o fogo, o marido abriu dois peixes, a piranha de cabeça vermelha (pakanjãgyt), o peixe-cachorrinha (zozowit) e mais outros dois peixes. Primeiramente assou o pakanjãgyt e o zozowit, depois os outros dois tipos de peixe.

Assim que ficaram prontos, assados, Janaryt perguntou para a mulher se o beiju já estava pronto. A mulher disse que sim. O beiju com que iriam comer o peixe não era bom (tsyryry loleput). Ele pegou os dois peixes que havia assado primeiro, pakanjãgyt e zozowit:

– Ô neto, aqui estão os peixes, podem comer – disse Janaryt.

Ele olhou para o peixe e disse:– Esse peixe que você trouxe não é peixe vovô.

Isso aí é kanuwãryt (alimento proibido). O nosso vovô Wamutsini nos contou que você iria nos oferecer primeiro o peixe que não comemos.

Quando disse isso, Janaryt pegou aqueles peixes de volta e disse rindo:– Ô, menino esperto, isso aqui é mesmo kanuwaryt, um peixe que não comemos. Alguém

que não acredita nisso, poderá comê-los e perderá os cabelos em poucos anos – avisando, para os netos, o que esses tipos de peixes causam no ser humano.

Depois disso ele foi pegar os peixes verdadeiros.– Vocês podem comer, meus netos – disse ele, oferecendo o verdadeiro peixe que havia

assado por último.O neto olhou para ele e disse:– Esse é o verdadeiro peixe, vovô.– Sim, esse é o peixe verdadeiro. Kami falou para Janaryt que o avô Wamutsini já tinha contado para eles tudo o que ele iria

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oferecer primeiro.– Ele é meu irmão mais velho, por isso ele sabe

de tudo isso. Comam bem o peixe, não quebrem suas espinhas.

Eles comeram o peixe quebrando as espinhas, mesmo tendo sido avisados, só para provocar e descobrir os segredos de Janaryt. Quando terminaram de comer, Kami disse:

– Aqui estão as espinhas de peixe, vovô.– Ah, vocês quebraram as espinhas!Pegou as espinhas e logo foi pegar o barbante

para enfiar nos buraquinhos dos esqueletos que haviam sido quebrados pelos dois. Assim que ficou tudo pronto ele disse:

– Vamos tomar banho, neto?– Vamos.Janaryt pegou os peixes que tinha aberto para assar e os ossos. Foram andando no caminho até a beira do rio. Ele ficou levantando as mãos com água na

beira e depois pegou o esqueleto do peixe e ficou limpando. Primeiramente pegou o esqueleto da piranha de cabeça vermelha e jogou no rio. Logo o esqueleto se transformou em peixe vivo nadando na água. Um deles falou:

– Olhe só nosso avô, veja só como ele é!Pegou o esqueleto do peixe-cachorro e os esqueletos dos peixes verdadeiros que

comeram. Nesse lugar eles viram onde sempre o avô jogava as espinhas dos peixes que comia no seu dia-a-dia. Eles ficaram tomando banho e Janaryt disse:

– Viram como eu vivo e como eu sou? Vou vivendo de peixes que tenho aqui e os peixes vivendo comigo.

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– Sim, vovô, estamos vendo. Nosso avô Wamutsini nos contou sobre você. Ele nos contou que você, nosso avô, sabe fazer peixe.

– É, ele também tem peixe e água. Wamutsini, avô de vocês, é dono da água. Eu não sei porque esse avô de vocês não mostra e nem conta sobre os peixes para vocês, ele é mais velho do que eu. Eu que sou mais novo sei de tudo isso – disse Janaryt contando para os dois irmãos tudo o que Wamutsini vivia escondendo deles.

– É, acho que seu irmão tem água e peixe. Não sabíamos disso, acho que ele está escondendo da gente – disse Kami sobre seu avô Wamutsini.

– Claro, o avô de vocês está escondendo o peixe, sim. Que ruim, ele nunca dá peixe e água para ninguém (tekaratytu kitã e´ijamu† wepira’yrete me´ã, we´yete me´ã). Não sei porque ele fez o riozinho onde toma o banho. Não sei o que será do rio dele para tomar banho! Quanta coisa ele faz. Para enganar vocês ele fez os peixinhos kwãzy naquele riozinho. Por que ele está enganando vocês com os kwãzy? Por que não mostra o peixe verdadeiro para nossos netos comerem? – disse Janaryt, contando tudo o que o avô deles fazia.

O avô Wamutsini estava ouvindo, de longe, tudo o que diziam dele.– Pode ser que seu irmão esteja escondendo os peixes da gente sim, vovô – disse Kami.Acabaram de tomar banho e voltaram para casa. Janaryt perguntou para sua esposa se

já tinha moqueado os peixes. Ela respondeu que sim. E o resto ainda não estava tratado. Ele fez um jirau dentro de casa e deixou os peixes em cima, pedindo para que a esposa moqueasse os peixes. Quando assaram, ele pegou os peixes e pediu que os netos comessem. Enquanto comiam Janaryt disse:

– Vejam como eu vivo e estou vivendo sempre assim, sobrevivendo de peixes.– Sim vovô, estamos vendo, achamos você muito legal, gostamos muito de você –

responderam os netos. Dentro da casa só haviam panelinhas guardadas, dentro delas os peixes faziam muitos

barulhinhos. Eles dormiram mais uma noite. Assim que amanheceu foram tomar banho. Quando

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retornaram a casa, um deles disse:– Ô avô! Já vamos embora.– É mesmo, vocês já vão embora?– Nós vamos embora, mas vamos voltar. Se nós ficarmos com fome, voltaremos – disse ele

despedindo-se de Janaryt.– Podem vir, meus netos. Quando vocês estiverem com fome podem vir e assim vocês vão

levando os peixes – disse Janaryt para os netos.– Sim vovô, viremos sempre para comer peixe junto com vocês.– Podem vir meus netos, mas eu sei que o avô de vocês tem peixe lá, como eu disse para

vocês.– Pois é, eu não sei o que está havendo com seu irmão, não sei se está escondendo esse

segredo de nós dois – disse Kami sobre seu avô Wamutsini.– Sim, ele está escondendo de vocês.Enquanto conversavam foram desamarrando suas

redes para sair. Janaryt perguntou onde estavam os cestos deles para guardar os peixes, colocou os peixes dentro e disse:

– Aqui estão os peixes, vocês podem levar para comer.

– Nós já vamos.Despediram-se e foram andando no meio da

aldeia. Despediram-se mais uma vez do outro avô, Janarywatu:

– Já vão indo netos?– Já estamos indo, vovô.– É mesmo. Está bom então, podem ir embora.

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– Nós voltaremos para visitar nosso avô Janaryt. Quando quisermos peixes estaremos visitando novamente vocês – disse Kami.

– Podem vir, estamos aqui, coitados de nós, sem filhos. Não temos filhos – disse Janarywatu.

Foram andando no caminho até o final da trilha onde se prepararam. Ali Kami pediu ajuda para seu irmão descer a cesta que carregava em sua cabeça. Então Keri, que estava enfeitado com enfeite de mulher para enganar seu avô Janaryt, tirou os enfeites que usou para parecer mulher. Janaryt pensou que eles fossem um casal, mas era só para enganá-lo. Tirou o uluri de seu irmão e logo o uluri se transformou numa árvore que se chama tuwai´yp. Depois tirou o cinto dele que se transformou em cobra. O urucum da testa dele se transformou em periquito de testa vermelha (ywiryt) e mais uma vez ele se transformou em tukupei angan. Eles fizeram um cesto que era tatitumajãku. Assim que ficou pronto deixaram o cesto majãku nesse lugar. Só levaram o cesto tatitumajãku. Eles carregaram este cesto nas costas e voaram para chegar no caminho da aldeia. Lá eles pousaram e foram andando. Chegaram na aldeia com bastante peixe. O avô deles Wamutsini disse:

– Já chegaram, meus netos?– Já chegamos.– Vocês viram o avô de vocês?– Vimos.– Ele é fazedor de peixe, esse avô de vocês. Já viram?– Já vimos.Contaram tudo o que aconteceu com eles naquele lugar. Contaram sobre aquele peixe

que foi oferecido primeiro para eles e também que Janaryt falou muito sobre Wamutsini, que ele tinha água. Wamutsini respondeu que ele estava mentindo. Mas Kami continuou dizendo tudo que Janaryt havia falado sobre ele, que tinha peixe e água, que era dono da água e que era seu irmão mais velho.

– Vovô, ele perguntou também porque você não dava peixe nem água para nós – disse

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Kami.– Ele falou que você estava escondendo peixe da gente – completou o outro.Wamutsini achou engraçado dizer que ele estava mentindo e riu. – Vovô, nós vamos brigar com nosso avô Janaryt para todos terem peixes, para nossos

bisnetos poderem comer peixe. Só ele está comendo peixe, se considerando proprietário dos peixes.

– É mesmo, briguem com o avô de vocês – disse Wamutsini.

– Nós vamos quebrar a água dele!– Podem ir. Mas eu vou aconselhar como deverão agir. Vão até o final do caminho deles

(japope apyrype). Ali vocês vão exercitar seu pessoal e calcular quantas pessoas caberão nessa aldeia em forma de círculo. Vocês já viram qual é o tamanho desta aldeia. Vocês devem usar munutsi (uma máscara grande de formato redondo e uma saia caída). Vai ser assim: um munutsi fica ali e outro munutsi fica lá. Isso para ele não descobrir onde vocês estarão. Mesmo assim ele descobrirá e saberá que são vocês. Levem junto com vocês o avô Ut´watu. Acontece que Janaryt irá flechar vocês com mitexewurawywo. É isso que vai acontecer, ele vai matar vocês. Outra coisa: vocês dois usarão somente o coquinho de tucum, não usem qualquer coisa. Acontece que os peixes vão engolir vocês durante a atração da água. Desça o rio para o lado sul e seu irmão desce o rio para o lado leste. Então vocês trarão as águas para cá, até a nossa aldeia. Assim que chegarem aqui, vocês farão a água voltar para fazer correnteza. Você fará a água correr para lá e seu irmão fará a água correr para cá.

E mais uma vez ele disse:– Usem coquinho, não usem outra coisa! Só usem coquinho de tucum. Podem partir.Assim Wamutsini finalizou suas palavras. Os netos partiram para a aventura. Chegaram no

final da trilha da aldeia de Janaryt (japope apyrype). Lá eles juntaram as estrelas para serem suas ajudantes. Juntaram as estrelas conforme o tamanho da aldeia. Fizeram várias máscaras munutsi e karytu. Fizeram uma máscara enorme de peixe (pira´yt emunutsi). Quando terminaram de vestir as máscaras começaram a gritar. A pessoa que estava na frente gritou primeiro:

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– Kaaaaá kaaaaá – gritaram as pessoas.O avô Janarywatu ouviu e disse para seu irmão Janaryt:– Janaryt, lá vem os netos de nosso chefe (kajezekwat emijãmuj‰) para quebrar as

panelas de água. Lá vem nossos netos para quebrar as panelas de nossas águas!– Ká Kaaá – foram gritando as pessoas com a máscara munutsi.– Ká Kaaaá – foram gritando outras pessoas nas máscaras kwalowyt.E foram entrando na aldeia. Janaryt disse furiosamente para si mesmo:– O que será que meus netos farão comigo? Então por isso que eles vieram me visitar?

Então podem vir, podem vir que eu vou matar vocês, vou matar vocês, sim!Eles formaram um círculo em volta da aldeia, gritando. Todos eles ficaram iguais com as

máscaras munutsi, outras pessoas ficaram com máscaras diferentes: munutsi, pira´yt emunutsi, nipitap, karytu, aturuwa, kuwã´hã´ãlu e outra que se chama tuwau´ywytu. Essa máscara, tuwau´ywytu, irá quebrar as caixas d´água, ela que irá flechar as caixas dos peixes devoradores. As outras máscaras só serão usadas como tapetes para quebrar as outras caixas.

Eles foram se aproximando da beirada da aldeia em forma de círculo. Janaryt estava em frente de sua casa com sua esposa vendo essa gente. Ela disse:

– Esses são os netos de nosso chefe (kajezekwat emijãmuj‰ ujame)?– Não, não são eles ainda.Ela sabia que os irmãos estariam escondidos em alguma dessas máscaras. Por isso toda

vez que essas máscaras munutsi passavam na sua frente ela perguntava se eram eles. Quando a fila se formou em círculo, ela perguntou de novo:

– Esses são os netos de nossos chefes (kajezekwat emijãmuj‰ ujame)?– Sim, são eles mesmos – respondeu o marido.– Então pode flechá-los.Ele esticou o arco, flechou Kwat e depois flechou seu irmão Taty. E assim ele ia flechando

as pessoas com flecha de ponta de cera (tutui´agytu) que incha a pele e mata (mitezewurat rywo).

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Todos correram para quebrar as panelas d´água que estavam nas duas casas (ototap wywo). Entraram nas casas e quebraram várias panelas: as caixas de peixes e outras também.

– Do meio, do meio, do meio – disse Janaryt para as pessoas que estavam quebrando as caixas d´água.

É que entre essas panelas havia uma enorme que tinha um bicho que explode e mata gente, por isso que ele falava “do meio, do meio”.

– É mentira dele, é mentira dele, é mentira dele – diziam os irmãos para seu pessoal que estava na briga.

Quando Janaryt dizia “do meio, do meio”, o avô Wamutsini estava ouvindo de longe. Aí ele repetiu a mesma coisa que seus netos diziam:

– É mentira dele, é mentira dele, é mentira dele, não acreditem nele!Janaryt falou isso só para eles quebrarem a panela do meio e serem engolidos por sua

explosão, era isso que ele estava querendo. Continuaram quebrando muitas panelas d´água. Restaram apenas as caixas dos bichos devoradores. Aí disseram:

– Esse aqui vai flechar essas caixas – disseram para os poderosos tuwau´ywytu – Agora sim, podem flechar as caixas do meio!

E assim flecharam essas caixas onde estavam os bichos devoradores:

– Pruuuuuk! – os bichos fizeram barulho.Mesmo assim flecharam todas as caixas dos bichos

devoradores. A caixa maior, onde estava o bicho que explode, ninguém flechou.

– Do meio, do meio, do meio – dizia Janaryt.Mas eles não mexeram nela porque os bichos que

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moravam naquela caixa devorariam todos eles com sua explosão. Só sobrou essa caixa. Enquanto isso as casas da comunidade foram inundando. A casa dele e a de seu irmão

(nato´o janarywatu) não inundaram. As casas do meio (ne´ototap) inundaram todas e a parte que não molhou foi a de cima (ok pepuwãjyt´wazatsu otepÞju). A água foi subindo mais, fazendo barulho:

– Pruk, pruk!!– Então por isso que meus netos vieram me visitar naquele dia, para fazer isso comigo, me

sacanear? – disse para si mesmo Janaryt vendo todo esse tumulto.Finalmente todos se juntaram para conversar com Janaryt, retirando suas máscaras. Kwat

disse:– Vovô, quero saber se você vai aceitar as nossas máscaras.– Você deve aceitar.– Eu não, não posso.– Aceite sim, se não vamos matar você.– Eu não, não posso, não vou aceitar de jeito nenhum.Ficaram insistindo para que ele ficasse com as máscaras. Pegaram Janaryt para matar,

então ele disse:– Está bem, ficarei com elas.Kwat disse:– É claro! Olhe, assim que esses peixes que você fez matarem os netos, você oferecerá

seus espíritos para eles (wemunutsi motowapat). Então o espírito que fizer mal a alguém, poderá ser dono dele (tsã nemitwãt). E assim será a regra deste peixe, oferecerá seu espírito para alguém. Será também seu dono e dará suas máscaras para alguém – disse Kwat explicando com detalhe para Janaryt qual será a regra destas máscaras.

Pediram para Ut´watu chupar a marca das flechas da pele que inchava. Ele ficou chupando com a ponta de sua flecha todas essas marcas que inchavam a pele das pessoas (mite zew

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urap). Todos eles voltaram ao normal. Assim que Ut’watu terminou de chupar todas as marcas de ponta de flecha, Kwat disse para as estrelas:

– Vocês podem retornar para o lugar de vocês. Nós já vamos partir.As estrelas foram embora para seus lugares no céu. Depois disso Kwat tirou um coquinho

de tucum e uma abóbora (tezu´apitek).– Você usa esse coquinho, eu uso esse outro também – disse Taty para Kwat.– Não, você usa essa abóbora – disse ele para seu irmão Taty.

Eles entraram dentro do coquinho e da abóbora.– Agora você me joga – disse Kwat para seu irmão.Eles pegaram uma vara de tazy´yzat e puxaram a ponta de cima dela para baixo. Kwat

sentou na ponta e o irmão jogou no alto para cair no meio do rio. Taty soltou essa vara e Kwat pulou alto até cair no meio do rio. Ele já estava dentro do coquinho, ficou rodando no meio do rio – “Pooooó”. Um peixe o engoliu. Ele ficou lá na boca do peixe e escapou por debaixo da língua.

– Que bom que o peixe devorou você Kwat, bem feito – disse Janaryt para Kwat.Janaryt cantou:– Nukeri nukeri kami nau akama pai (Kwat já está morto)!Quando estava cantando, Kwat saiu da água em cima de uma casa inundada (ne´ototap

apo).– Vovô! – disse Kwat.– Oi – respondeu ele.– O que você estava falando de mim?– Nada.– Eu ouvi o que você estava falando de mim. Eu não vou morrer, eu nunca vou morrer –

disse Kwat para Janaryt, em cima da casa (ne´ototap apo) inundada.Logo depois pulou na água e foi descendo o rio que agora é chamado de Steinen. Taty

disse:

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– Agora vocês me joguem no rio!Eles o jogaram e foi rodando – “Pooooó”. O peixe o

engoliu.– Bem feito que o peixe te comeu! – disse Janaryt

para Taty, e ficou cantando de novo:– Nukeri nukeri keri nau akama pai (Keri, ou Taty, já

está morto)!Quando estava cantando, Keri saiu da água em

cima de outra casa inundada e disse:– Vovô!– Oi.– O que você estava dizendo de mim?– Nada.– Ouvi o que estava falando de mim. Eu não vou morrer, eu nunca vou morrer, vovô.Logo depois se meteu dentro d’água e foi embora. Mas ele estava dentro da abóbora

(tezu´apitek) que não iria aguentar o ataque dos peixes. Depois de toda essa luta, começou o percurso da água para a aldeia deles. Kami começou

a descer o rio limpo que mais tarde foi chamado de Steinen. Keri desceu o rio que é hoje o Kuluene. Durante o percurso os peixes tentavam devorar Keri. Keri ainda escapava destes peixes, a abóbora estava até aquele momento aguentando o ataque dos peixes. Bem no meio do caminho, em um lugar chamado Araruwytyp, a abóbora dele não aguentou mais e se quebrou – “Pooooó”... E ele foi devorado pelo Tak‰tawatu, um peixe enorme.

Logo que o peixe o engoliu, o avô Wamutsini ouviu o barulho lá da aldeia e disse para si mesmo, muito nervoso e com muita tristeza:

– Ai, Kami deixou o seu irmão ser engolido! Já tinha falado para eles só usarem coquinho. Ficou bravo com Kami por ter feito isso com seu irmão. Enquanto isso o rio foi descendo

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sozinho. Wamutsini tinha feito uma cigarra que ficou berrando na aldeia, para que o rio que Keri estava levando andasse naquela direção.

Às 13:00 horas a água que Kami conduzia chegou na aldeia. As pessoas foram ver esse rio chegando. Foi quando Wamutsini disse para Kami:

– Por sua culpa devoraram seu irmão. Eu falei para vocês usarem só coquinho de tucum, eu falei para vocês. Devoraram seu irmão, jamais vamos vê-lo ou encontrá-lo de novo, nunca mais, por sua culpa.

– É mesmo vovô, agora eu entendi.Eles chamaram a ave Korokoro. Transformaram Korokoro em gente e pediram que ela

cavasse um enorme buraco na aldeia, para a água entrar e parar. Primeiro cercaram a água, fazendo a correnteza voltar por trás. Enquanto isso cavaram um buraco enorme e muito fundo. Um buraco ali, outro ali e mais um buraco ali. Assim que os buracos ficaram todos prontos deixaram a água entrar neles. Foram enchendo um por um até encherem todos. Kami começou a pescar. Ele pescava os peixes e logo abria a barriga deles para ver se encontrava seu irmão. Depois de abrí-los mandava-os de volta e assim foi pescando e pegando muitos peixes. Mas não encontrava nada. O peixe que comeu seu irmão não estava lá. Anoiteceu.

Pela manhã tentou novamente procurar seu irmão. Às 12h00, Wamutsini sentiu tristeza e falou para si mesmo:

– Ah, não vou encontrar mais o meu neto! Nunca mais verei meu neto!Keri já tinha apodrecido na barriga desse peixe que o devorou. Esse peixe já devia ter feito

cocô. Às 13:00 horas o peixe Cará (Kazãpep) apareceu na frente de Wamutsini, boiando na beira do rio. Logo que ele viu Kazãpep, chamou seu neto Kami e disse:

– Ô neto, vem flechar esse Cará, fleche nossa isca.Kami foi se aproximando e esticou o arco. Na hora que ele ia flechar, o peixe Cará virou

gente e disse:– O que é que há, neto? Você tem que matar aquele que devorou seu irmão. Ele está lá

no fundo na casa dos homens (ototap), na barriga do peixe Tak‰tawatu, foi ele que devorou teu

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irmão. Ele está lá deitado. Faça o fumo, neto, para eu poder levar para ele.Neste momento Wamutsini e Kami ficaram sabendo toda a realidade sobre Keri: quem o

comeu e onde estava. Quando o fumo (pe) ficou pronto, enfiou em sua ponta um pequeno anzol invisível, com a linha invisível do lado que fumamos. Kami disse:

– Pode levar, vovô.Ele se meteu dentro d’água e sumiu. Quando chegou na casa dos homens ele disse:– Ô pajés, venham aqui para a gente fumar.Todo mundo se levantou para fumar, a única pessoa que não se levantou foi Tak‰tawatu.

O Cará olhou para ele e disse:– Ô pajé, venha aqui para a gente fumar.– Ah! É que eu estou com a barriga muito cheia, estou cansado!– Então venha aqui para a gente fumar.Kazãpep, o Cará, levantou e disse:– Fique aqui do meu lado.Ele sentou do lado dele. E começou a dar fumo

para cada pajé. Um pouco de fumo ainda estava com ele quando levantou para dar para Tak‰tawatu. Ele ficou fumando, fumando.

– Vou esperar um pouquinho mais, um pouquinho mais – dizia o Cará consigo mesmo.

Esperou um pouco mais e quando o cigarro estava quase no meio, do jeito que queria, puxou a linha invisível por cima. Puxou, puxou, para que Kami soubesse o sinal, para puxar lá de cima. Kami puxou com força e acabou entrando certo na boca de Tak‰tawatu. A linha e o anzol

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que eram invisíveis se transformaram em linha grossa com anzol.– Ai, o que você fez comigo? – disse Tak‰tawatu

Logo o Cará saiu correndo da casa, foi para fora da água e disse para Kami:– Pegou muito bem, neto, o anzol entrou muito certo na boca dele!Ficaram puxando, puxando, devagarinho Tak‰tawatu se mexeu lá no fundo. O Cará disse:– Pode puxar, neto.Ficaram puxando, puxando, nada. Então devagarinho foi levantando. O Cará disse de novo:– Ele ainda está rodando dentro da casa, despedindo-se da casa dele.Continuaram puxando, puxando juntos, mas o peixe Tak‰tawatu resistia. – Ele ainda está se despedindo, andando dentro de casa – disse o Cará.Continuaram puxando, puxando com força.– Ele vai sair, ele vai sair! Já saiu de dentro de casa. Está correndo! Mais uma vez vai

correr para dentro de casa! Vai fazer a última despedida de sua casa! O Cará ouvia tudo o que acontecia lá no fundo:– Agora que vai sair, puxem com mais força!Puxaram juntos, puxaram mais e logo o peixe Tak‰tawatu apareceu boiando.– Lá vem ele, neto!Continuaram puxando juntos, até a beira do rio e com mais força, arrastando o peixe para o

chão. Logo Kazãpep, o Cará, se escondeu de Tak‰tawatu.Abriram a barriga dele até o ânus. Tiraram a tripa, encontraram os ossos de Keri e os

guardaram.– Está pronto vovô – disse Kami para Wamutsini.– Espere! – disse Wamutsini.Puxaram o peixe Tak‰tawatu e o jogaram na água. Ficou lá, boiando na água de barriga

aberta. Kami disse para esse peixe:

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– Vovô, você só pode se mostrar para alguém que perderá a alma.Ele ficou boiando na água de barriga aberta no leito do rio. Logo depois carregaram os

ossos de Keri para a aldeia. Deixaram os ossos no meio da casa. Quebraram as folhas de tejãng´yp e deixaram os ossos em cima delas. Depois Kami fez a forma de gente no chão, com todas as partes do corpo, braços e dedos. Em cima dela Kami deixou as folhas desse tejãng´yp. Pegou os ossos de seu irmão e foi montando em forma de gente em cima dessas folhas. Kami começou a rezar para os ossos de seu irmão, para que se transformasse em gente. Mas nada. Kami disse para seu avô Wamutsini:

– O que podemos fazer com seu neto?– Vá na casa de Nute´yp, dono do fumo, busque o fumo – respondeu ele.Quando ele chegou lá, Nute´yp disse:– Você está aí?– Sim, estou aqui, ezowa itutu.

– O que você quer?– Pedir um pouco do seu fumo.Nute´yp foi tirando o fumo que tinha e disse:– Toma.Kami levou o fumo para seu avô, que o enrolou com a folha pe´op. Quando ficou pronto,

Wamutsini e Kami recomeçaram a rezar os ossos. Ficaram rezando, rezando e nada. Wamutsini disse:

– De onde seu avô tirou e pegou esse fumo para você?– Da esteira (peu’pauti).

– O verdadeiro fumo dele está em cima da porta (otenypy apo).– É mesmo? Eu vou lá buscar então.– Então pode ir e pode também matar os filhos dele.Kami voltou para a casa de Nute´yp e perguntou para seus filhos:

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– Onde estão os pais de vocês, meninos?– Eles foram para a roça. Ele matou todos os filhos de Nute´yp e subiu no jirau para se esconder (mi´ak´ytaete). Um

pouco depois os pais dos meninos chegaram da roça. Nute´yp entrou na casa, viu seus filhos mortos e disse:

– Ah! Você matou os seus tios? O avô de vocês já havia dito para vocês usarem somente o coco de tucum, por que você deu a abóbora para seu irmão usar? Foi isso que o avô de vocês tinha falado! E por isso você matou seus tios? Fique irritado com você mesmo, neto, não adianta matar seus tios! Não pode matá-los! Eu não sou como vocês, correndo para lá e para cá procurando as rezas, eu vou recuperar os seus tios – disse ele muito irritado por Kami ter matado seus filhos.

Ele achou que Kami não estava ali escondido, mas ele ainda estava ali. Ele matou os filhos de Nute’yp de propósito, só para ouvir a reza dele e pegar o fumo que usará para rezar pelos seus filhos e recuperá-los.

Ele e sua esposa pegaram seus filhos e juntaram seus corpos ali mesmo, estavam chorando por causa da morte de seus filhos. Nute´yp levantou-se para pegar o fumo com a folha. Ele desamarrou a esteira de fumo que estava em cima da porta e ficou fazendo cigarros. A esteira ficou aberta. Ficou rezando por um filho, rezando, rezando. Depois a esposa dele rezou pelo filho também. Depois ele rezou de novo e daqui a pouco o filho dele levantou.

– Há! Há! Há! Eu estava dormindo pai!– Dormindo nada, seu sobrinho matou vocês.E depois foi rezando pelo outro filho e a mesma coisa aconteceu.– Há! Há! Há! Eu estava dormindo pai!– Dormindo nada, seu sobrinho matou vocês.Neste momento Kami desceu do jirau e foi direto pegar o fumo que Nute´yp usou.– Eu vim buscar isso aqui, vovô.

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Pegou tudo que ele tinha e saiu da casa correndo com o fumo. Nute´yp disse:

– Me dê um pouco do fumo, neto!– Você já tem, vovô, você tem aí.– Por que seu avô, que é mais velho do que nós,

não tem fumo? Ele não cuida disso?Wamutsini ouviu de longe o que ele estava

dizendo e riu. Kami levou o fumo para o avô.– Já está aqui, vovô.– Você ouviu a reza dele?– Eu ouvi a reza dele.– Então está bom, pode começar a rezar o que

ouviu.Fizeram o cigarro e começaram a rezar como Nute’yp. Kami disse para o Cupim

(Kurup†´†):– Vovô, ajude a transformar seu neto em gente novamente!Kurup†´† pegou a terra e jogou em cima dos ossos para transformar Keri em gente. Então

os dois começaram a rezar, rezaram várias vezes. Deixaram os pombos voarem por cima do corpo de Keri, fazendo barulho para que ele pudesse se mexer e voltar ao normal. O Kurup†´† já estava lá junto com os ossos produzindo a carne debaixo da terra. Eles não desistiram de rezar e assim os pombos voaram várias vezes por cima do corpo para que Keri voltasse ao normal e para que ele pudesse se mexer. Até que, enfim, ele se mexeu e tirou suas cobertas de folhas.

Keri levantou, já como gente. Ficou em pé e disse:– Há! Há! Há! Eu estava dormindo, Kami!– Dormindo nada, por culpa de seu irmão você foi devorado pelo bicho devorador – disse

Wamutsini.31

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– É mesmo? Não lembro de nada!– Claro que não, o bicho (Kat) engoliu você, foi culpa de seu irmão.Enquanto o ouvia, Keri foi relaxando e esticando seu corpo.– É mesmo, vovô? Quer dizer que eu fui engolido pelo Kat?– Sim, por culpa do seu irmão.– Foi para fazer isso comigo que você falou para a gente quebrar as águas de nosso avô?

Então foi por isso que você falou para a gente brigar com o nosso avô? Quebrar a água dele? Você me falou isso!

Kami não respondeu nada, ficou calado. Keri disse para seu irmão:– Tudo bem Kami, então deixe que seremos a história de alguém, seremos uma história

contada para os filhos. Eles contarão essa história para os filhos deles e assim nós vamos ser eternos.

É assim que acaba a história dos dois gêmeos, Kami (Sol) e Keri (Lua), e do avô Wamutsini, depois de toda essa aventura. Tudo isso aconteceu num lugar chamado Myrenã, que

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Como surgiu o dia e a noite

História narrada por Itsautaku Waurá, traduzida, escrita e ilustrada por Arapawa Waurá

Kuwamutõ (Deus), Yapojeneju (a mulher do mato) e o homem Onça são deuses. A mulher do mato criou-se num buraco de cupim. Esses três foram as primeiras pessoas que apareceram no mundo. O Sol e o Lua são os filhos do homem Onça, a mãe deles foi criada por Kuwamutõ com troncos de madeira.

Vou contar a história do mundo, como era antes do Sol e do Lua nascerem.Kuwamutõ (Deus) foi tirar embira para fazer armadilha para pegar peixe num lugar

chamado Yaponatowo. Ele estava tirando embira e andou um pouco mais longe, até que encontrou a aldeia das onças. As onças estavam percebendo o cheiro dele. O chefe das onças pediu para o seu povo matá-lo.

– Vamos matá-lo! – O chefe da aldeia disse para as pessoas de seu povo. Eles foram atrás de Kuwamutõ e o cercaram. Kuwamutõ disse para o chefe das onças:– Você não pode me matar, sobrinho. Eu tenho uma filha para se casar com você.O Onça respondeu:– Está bem.Assim o Onça voltou para casa. As onças

também voltaram para a aldeia. Kuwamutõ foi direto falar com sua filha, a mulher do mato. Foi ela que o pai ofereceu para o Onça. Ele contou para sua filha.

– Olá, minha filha, quase eu morri. O Onça queria me matar, por isso eu ofereci você para se casar com ele.

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– Eu não, eu não quero casar com o homem Onça, a mulher do mato disse para seu pai.Nesse tempo ainda não existia o dia, só havia escuridão. Os vagalumes iluminavam as

casas das pessoas, este era o nosso fogo antes de aparecer o dia. Kuwamutõ respondeu para a filha:

– Está bem, vou fazer algumas filhas para o Onça.Kuwamutõ foi então fazer as mulheres. Ele cortou dois troncos de Kwarup, oito pedaços de

pau brancos, dois pedaços de pau yusemisu, cortou dez pedaços de pau. Esses pedaços de pau eram compridos, a ponta deles parecia um pescoço de gente.

Kuwamutõ transformou esses paus até eles ficarem prontos. Ele fez cabeça, braços e pernas, colocou taquarinha para ser a vagina e assim transformou os troncos em mulheres. Depois ele matou um pássaro (aquele que fica sempre em cima do aguapé) chamado kamonapuwa. Para experimentar essa mulher criada o pássaro transou com ela. A primeira vez que eles fizeram sexo ele a furou. Esse pássaro transou com a mulher até gozar e sair esperma. O pássaro não conseguiu mais andar normalmente, ele ficou mais fraco. Kuwamutõ rezou o pássaro para ele ficar desse jeito e disse-lhe:

– Pode ficar sempre assim mesmo, você não vai mais conseguir andar normalmente.

Cinco paus foram transformados em mulheres para o Onça. Quando elas ficaram igual gente, logo foram para a aldeia do Onça.

No caminho para a aldeia das onças elas encontraram um pássaro chamado wele.

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Ele namorou uma das mulheres e quando a furou, ela morreu na hora. As colegas a deixaram lá mesmo. Elas continuaram caminhando e encontraram outra pessoa que se chamava Kapukuwa. Era um homem com um pênis muito grande, igual a uma cobra. Kapukuwa transou com uma das mulheres e na hora que a furou ela também morreu. As três colegas a deixaram lá mesmo, como tinha acontecido com a outra.

Sobraram três moças, que foram andando até encontrar o Tatu. O Tatu estava sem o pênis, tinha deixado em casa. Ele voltou para casa em busca do pênis, mas as mulheres não o esperaram. Quando ele voltou, ficou sem graça porque queria transar com elas. As moças continuaram a andar até encontrar um buritizeiro. Uma das mulheres pediu para as irmãs tirarem buriti para fazer um cinto.

– Vá lá, minha irmã, tirar fibra de buriti para nós fazermos cinto (é por isso que até hoje nós chamamos aquele lugar de Cinto, lá onde aconteceu essa história).

– Vá você.– Não, vá você.Elas ficaram discutindo, até que uma delas respondeu:– Eu vou lá.Ela subiu no buritizeiro até onde fica o talo do buriti. Enquanto estava descendo, já no

meio do tronco, uma das mulheres jogou mutucas para picarem a moça. Então ela não aguentou segurar-se lá em cima, soltou as mãos e caiu em cima do talo de buriti, que estava apontando para cima e cutucou bem a sua vagina. Ela morreu na hora. É por isso que os frutos do buriti ficam avermelhados na ponta, é o sangue da mulher.

As duas moças que sobraram a deixaram lá e foram andando até chegar no porto do Onça. As pessoas dessa aldeia foram tomar banho.

Primeiro veio banhar uma mulher que era parente da ema, Kuta-kuta. Ela era muito feia. Ela disse:

– Ôba, eu estou bem bonita. Por que os homens não gostam de mim se eu tenho corpo bonito, rosto bonito, perna grossa e estou pintada?

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Ela saiu da água e subiu para a casa. As duas moças ficaram lá olhando e logo jogaram um mutuca nela. As mutucas picaram a mulher feia:

– Ai, ai, ai, ai!Ela soltou a cabaça, que caiu e

quebrou. Ela foi buscar outra cabaça, voltou ao rio, pegou água, mas a cabaça quebrou novamente. Ela voltou para buscar outra cabaça. Quando entrou na casa, uma mulher começou a brigar com ela:

– Vamos matá-la, arranhá-la, bater nela. Ela está acabando com nossas cabaças.

– Vamos bater nela, responderam as outras.As pessoas correram atrás dela e a seguraram. Ela começou a gritar:– Ai, ai, ai, ai! Vocês não podem fazer isso. Parem com isso que eu vou contar uma coisa

que aconteceu comigo.As pessoas a soltaram e ela disse assim:– Lá no porto tem duas mulheres, e elas são muito bonitas.As pessoas se pintaram, se enfeitaram e foram convidar as duas moças para irem até

a aldeia. Naquele tempo ainda não tínhamos o dia, só existia a escuridão. O homem Onça foi buscá-las na beira do rio e disse:

– Venham para cá, minhas noivas, foi para mim que seu pai ofereceu vocês, por isso que eu vim buscá-las.

Uma das moças disse para sua colega:– Vamos lá com ele, companheira. Ele mesmo disse isso, vamos lá com ele.

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– Não, ele não é parecido com o Onça.– Mas ele mesmo disse isso.– Não é ele.– Vamos lá.– Ele não é parecido com o Onça, ele tem dentes grandes.O Onça voltou para casa. Depois dele, todos os animais vieram, mas elas não mudaram de

idéia. Até que veio o Lobo. Ele foi até a beira buscar as mulheres e ficou lá de pé:– Venham para cá, minhas companheiras.Uma delas disse para a colega:– É ele mesmo.– Não é ele.– Vamos lá, colega.– Está bem, vamos lá.Elas se levantaram, pegaram na mão dele e foram até a aldeia. Quando o pessoal da

aldeia viu o Lobo com as moças, começou a gritar para ele. Uma moça disse para sua colega:– Olhem, elas foram para a casa do Lobo.Quando elas chegaram na casa, logo o Lobo pegou umas frutas chamadas yalatapa para

as mulheres socarem com massa de mandioca. O Lobo sempre socava isso para comer e beber. As moças socaram a massa e quando terminaram, o Lobo foi avisar o pessoal para pescarem para as mulheres da aldeia:

– Oh, rapaziada, amanhã nós vamos pescar para as mulheres. Os homens não responderam para o Lobo, porque não gostavam dele. Para ele nós

somos peixes. Depois do Lobo, o Onça foi ao centro da aldeia dizer para seu pessoal:– Amanhã nós vamos pescar para as mulheres.As pessoas responderam:– Vamos pescar amanhã.

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Os homens foram na pescaria. Quando todos foram embora é que o Onça foi atrás. Ele foi jogando flechas até encontrar seu pessoal no mato. No meio da caminhada ele sentia dor nos olhos. Ao encontrar as pessoas, o Onça disse:

– Pessoal, eu estou sentindo alguma coisa nos meus olhos.As pessoas responderam:– Você não pode ir com a gente, nós mesmos vamos matar peixe para você. Volte para a

aldeia e fique em paz.O Lobo estava preocupado com as moças porque o Onça podia roubá-las. Ele falou:– Vamos lá, pajé, venha pescar com a gente.O pessoal do Onça disse para ele:– Pode voltar para a aldeia.O Onça voltou para a aldeia. Ele foi jogando flechas para frente até chegar perto da aldeia.

Chegou perto da casa das moças porque ele queria roubá-las. Ele jogou uma flecha perto das moças para elas entregarem para ele:

– Venham para cá, por favor, tragam minha flecha, minhas queridas.Uma das moças disse para a colega:– Vamos lá, irmã, entregar a flecha para ele.Elas se levantaram, pegaram a flecha e foram com o Onça até sua casa. Ele arranjou

massa de polvilho para elas fazerem mingau e beiju para o pessoal dele comer na pescaria. Quando elas terminaram de preparar a comida as pessoas do povo do Onça foram nos matar, lá onde vivíamos nesse tempo. O Onça matou as pessoas que foram pescar. O pessoal dele matou muitas crianças e jovens para comer. Quando os pescadores chegaram em casa, o marido delas assou um braço de criança e ofereceu para as mulheres comerem. Elas não gostaram de ver essa criança morta, sentiram saudade e tristeza. Começaram a chorar e ficaram muito tristes por causa das mortes. Elas pegaram a mão da criança morta e desenharam essa mão, desenharam bem bonito. É por isso que a nossa mão está toda desenhada. Elas disseram para o

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marido:– Nós queremos comer peixe assado, essa carne nós não podemos comer. Essa carne é

nosso corpo, é da nossa família.Assim o Onça foi pescar para as mulheres. É por isso que até hoje as onças comem peixe.

As mulheres adoraram comer peixe. Elas ficaram muito tempo vivendo com o Onça, foi assim que ele engravidou uma das

mulheres. Duas crianças cresceram na barriga da mãe. Quando estava quase chegando no tempo das crianças nascerem, a sogra foi varrer a casa delas. Ela se chamava Periru. Essa mulher era peidadora, peidava o tempo todo. As noras ficavam sempre na porta da casa, fiando algodão para fazer rede. Na hora que o algodão não ficou bem fiado, a nora grávida tirou o algodão da boca e começou a cuspir. A sogra chegou perto dela e esfaqueou seu pescoço, achando que ela estava cuspindo com nojo do seu peido. A mulher morreu com as crianças na barriga. Logo nessa hora, o Onça mandou uma formiga ver as crianças na barriga da mãe. É aquela formiga vermelha. Ela entrou pela vagina e viu duas crianças gêmeas. A formiga voltou pelo ânus, mas o Onça não aceitou, ele mandou a formiga voltar pelo mesmo caminho. A formiga disse para o Onça:

– Pode pegar suas crianças.O Onça cortou a barriga da

esposa e tirou duas crianças. Primeiro tirou o Sol, depois tirou o Lua. Ele enterrou a mãe delas.

Quando essas crianças cresceram, já estavam com quatro anos de idade, é que apareceu o dia e a noite.

Então apareceu o dia e a noite.

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No dia seguinte eles foram comer amendoim lá no jardim da avó deles. Eles ficaram só um pouco no jardim e lá escutaram um pássaro cantando para eles:

– Kuy-kuy juto, kuy kuy juto! (os meninos sem mãe estão comendo o meu amendoim).Esse pássaro estava avisando os dois que eles não tinham mãe. Ele falou isso muitas

vezes e as duas crianças ficaram escutando. O Sol perguntou para o Lua:– Como o pássaro disse?O Lua contou para o Sol:– Os meninos sem mãe estão comendo o meu amendoim.O Sol perguntou:– Será que nós somos os que não têm mais mãe?– Não sei, Sol.Eles se levantaram e voltaram para casa. Sentaram-se num canto na porta da casa e

ficaram muito tristes, chorando por causa da mãe. A irmã da mãe é quem cuidava deles. Depois de algum tempo ela perguntou:

– Por que vocês estão chorando?O Sol respondeu para a irmã de sua mãe:– Nós não temos mais mãe, você não é nossa mãe, ela morreu há muito tempo atrás. Nós

estamos tristes por causa da nossa mãe.– É verdade, há muito tempo atrás a mãe de vocês morreu. Ela está enterrada no meio da

aldeia.Eles foram até o túmulo da mãe e ficaram chorando em cima dela, falando com ela, até que

ela falou com eles.– Mamãe!– Oi.– Mamãe!

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– Oi. – Mamãe!– Oi.Eles ficaram conversando com a mãe, até que a cabeça dela apareceu no chão. A avó

disse para eles:– Não façam isso, ela desapareceu há muito tempo para dar lugar para a sua criação no

futuro.Se a avó não tivesse dito isso, as pessoas viveriam mesmo depois de morrer.Passou muito tempo, eles cresceram e o Sol pensou em fazer coisas para nós, em

transformar as pessoas em gente verdadeira como nós, brancos e índios. O Sol e o Lua fizeram três tipos de flechas para transformar em gente. O Sol fez milhares de flechas e rezou-as, assim elas se transformaram em pessoas. Os índios do Alto Xingu são flecha de taquarinha, os brancos e americanos são flecha de pau branco. Os índios do Baixo Xingu e os Kaiapó são todos de origem das flechas de taquarinha preta, por isso eles são bravos. O Sol fez arma de fogo e ofereceu para os índios, mas eles não sabiam usá-la e não quiseram pegar essas armas. Logo ele ofereceu para os brancos, que sabiam usá-las. Se nossos antepassados soubessem usar as armas, nós mesmos ficaríamos como os brancos.

O Sol pensou de novo em fazer o dia, para as pessoas do mundo sobreviverem em paz. Primeiro ele amarrou um Urubu. De repente ele e o Lua rolaram a cabeça do Urubu numa pedra, mas não apareceu o dia. Depois ele amarrou um pássaro que se chama Ujujaya. Ele fez da mesma forma que fez com o Urubu, nem assim apareceu o dia. Então ele amarrou uma ararinha chamada Kaokao. Apareceu um pouquinho o alvorecer. Nesse momento, as pessoas que estavam acostumadas a viver na escuridão se transformaram em bichos, em espíritos. Foi então que o espírito dono do jatobá se transformou no homem do mato e na mulher do mato. Eles não aguentaram viver na claridade do dia, como vivemos hoje.

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Finalmente o Sol amarrou um Urubu-rei e o dia apareceu, como é até hoje em dia.Quando o Sol terminou de raspar a cabeça do Urubu-rei e apareceu o dia, começou a

nascer a claridade, mas ainda estava muito quente. O céu tem três camadas, por isso nós não morremos na quentura. Se o céu fosse só um, nós não iríamos aguentar o calor.

Nesse tempo o Sol nascia no norte e morria no sul. Do norte ao sul demorava muito tempo, um dia demorava quatro anos. De manhã, das sete às nove horas acontecia o tempo da seca e da chuva, entre dez e doze horas outro tempo de seca e chuva. Entre treze e quinze horas mais um tempo de seca e chuva, entre dezesseis e dezoito horas outro tempo de seca e chuva. Nesse tempo as pessoas ficavam com fome e sede, não conseguiam alimentação, não buscavam mandioca, não trabalhavam por causa da quentura. Quando anoitecia, a noite durava o mesmo tempo do dia. Os dois rapazes não gostaram do mundo desse jeito.

O Lua trabalhava à noite, o Sol trabalhava de dia. Eles não gostaram de viver dessa maneira e pensaram de novo:

– Vamos mudar de lugar, o Sol pode nascer desse lado, e apontaram para o leste. Eles viraram e assim o Sol começou a nascer no leste e se pôr no oeste. Eles gostaram

desse jeito que existe até os tempos atuais. Assim o Sol ficou nesse lugar mesmo. O Lua ficou de noite e Sol ficou de dia. Era isso que eles estavam querendo, até agora existe o dia e a noite e nós estamos vivendo em paz.

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Origem do dia para o povo Kuikuro

História contada por Haitsehü Kuikuro, escrita e ilustrada por Arautará Kamaiurá

Antes não existia o dia nem o sol, só existia a noite. Os dois irmãos gêmeos, Tai‰gi e seu irmão Aulukumã viviam na escuridão. Insatisfeitos com a escuridão, Aulukumã pensou em fazer uma visita à aldeia do Urubu-rei (Uguhu kuegü).

Na aldeia de Uguhu kuegü, Aulukumã conheceu uma linda menina, filha do Urubu-rei e resolveu casar-se com ela. Aulukumã ficou três dias na aldeia da esposa. Depois desse período ele falou para seu sogro que iria voltar para sua aldeia com a esposa. O Urubu-rei deixou sua filha ir com o marido. Então o casal voltou para a aldeia de Aulukumã.

Aulukumã viu o dia na aldeia do Urubu-rei, enquanto em seu mundo tudo era escuro. Passaram-se três noites e o dia não amanhecia. A esposa de Aulukumã perguntou para o marido:

– Por que o dia não está amanhecendo?– No mundo em que vivemos não existe o dia, respondeu Aulukumã.A esposa resolveu pendurar a esteira que ela havia trazido de sua aldeia na porta da casa.

Durante dez dias ela saiu na porta da casa para ver o dia chegar, até que ele veio clareando o horizonte azul. Ela chamou seu marido:

– Venha ver o dia chegar, o sol já está chegando para clarear o nosso mundo!

Vendo o dia chegar, Aulukumã ficou muito feliz e disse:

– O dia tem que ficar sempre assim, para a humanidade procurar comida na claridade do dia.

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Tai‰gi aproximou-se do irmão e disse:– Por que você se casou com essa mulher se ela não é sua prima? Você se casou com sua

tia, isso está errado.Tai‰gi estava com ciúme do irmão porque ele tinha se casado com uma menina bonita, a

filha do Urubu-rei. Ele tinha uma esposa feia e resolveu enganar o irmão. Enganou-o casando-se com a cunhada. Eles trocaram de esposas.

Assim foi a origem do dia para o povo Kuikuro.

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Os gêmeos Sol e Lua e a origem da festa Kuaryp

História narrada por Akatua Aweti, escrita e ilustrada por Waranaku Aweti

Quando Sol e Lua ainda eram crianças foram para a aldeia do pai deles. Lá eles cresceram e ficaram adolescentes.

– Oh! Meninos, vocês podem ir para a aldeia de Wamutsini, avô de vocês – assim falou o pai dos meninos Kwaza.*

Na aldeia do avô, um lugar chamado Morená, eles se tornaram homens poderosos e falaram para o avô:

– Vovô, nós vamos fazer uma festa em homenagem à nossa mãe.

– Está bem, podem fazer a cerimônia da sua mãe junto com seu pai.

Eles voltaram para a aldeia do pai. O nome do pai dos Kwaza é Itsumaryt, o homem onça. Eles permaneceram muito tempo com seu pai. Um dia o povo do seu pai ouviu a opinião dos dois irmãos a respeito da realização de uma cerimônia para homenagear a morte de sua mãe. Os irmãos disseram ao povo do pai:

– Foi por isso que nós viemos nessa aldeia, para realizar essa festa.

* Kwaza é o termo usado para designar os dois irmãos gêmeos, Sol e Lua.

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No dia seguinte o tronco do Kuaryp foi cortado pelo povo do homem onça. Cinco dias depois eles foram pescar e demoraram dez dias para retornar à aldeia. No dia seguinte as pessoas decidiram convidar o outro povo. Os jywy (cascudinhos) foram escolhidos para convidar seu próprio povo, que é peixe. Eles foram indicados por compreenderem a língua dos peixes. Eles saíram para convidar o povo da aldeia Yku’a, a aldeia dos peixes, conforme tinham sido orientados pelo Sol e pelo Lua (Kwaza). Chegando lá eles gritaram, iniciando assim o grito das pessoas que vão sempre fazer convite aos outros povos:

– Kaaako kaaako! – gritaram eles. O povo peixe escutou esse grito e todo o pessoal da aldeia respondeu:– Uhu! Lá vem as pessoas que chegaram para nos convidar.Eles foram recebidos, sentando-se em um banco no pátio, eram três Moretá, ou

convidadores. Os peixes perguntaram qual era a mensagem deles. Tati’i watu cumprimentou um deles, depois Myzyka watu cumprimentou outro e por último Nipiaw watu cumprimentou o que ainda não tinha sido cumprimentado. Essas pessoas que fizeram os cumprimentos são chefes. Eles conversaram e na despedida os três Moretá disseram:

– Vocês podem ir depois atrás da gente.– Está bem, mas como é que nós vamos?– Amanhã vocês deverão sair.– Quem é o dono dessa festa?– É uma festa realizada pelos Kwaza (Sol e Lua). Eles irão homenagear o falecimento de

sua mãe.Em seguida eles saíram e retornaram para sua aldeia. Lá no meio do caminho eles

acamparam. Quando amanheceu eles seguiram caminhando e chegaram bem no final da tarde gritando:

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– Kaaako kaaako!O pessoal da aldeia respondeu:– Uhu! Os Moretá estão voltando.Um dos Moretá foi falar no centro da aldeia, o pessoal segurou a sua mão, levando-o para

a casa dos homens. Ele sentou-se e contou:– O povo da aldeia Yku’a está vindo.Depois de alguns dias o povo peixe chegou na foz do rio. Esses convidados foram

caminhando até encontrar Katsini, que era uma pessoa antiga que estava pescando com flecha.– Ali está Katsini pescando – disseram os peixes.No momento em que Katsini ia flechar o peixe, eles jogaram água nele, fazendo-o cair na

água.– Katsini! – disse o povo peixe – venha conosco participar da festa Kuaryp para você nos

ajudar nas lutas.– Está bem, eu vou com vocês.Eles levaram Katsini junto com eles e dormiram cinco dias no caminho, até que chegaram

na aldeia. À tarde o pessoal da aldeia escutou os convidados peixes gritando. Quando escureceu os Moretá chegaram no acampamento levando mingau e beiju com peixe para eles comerem. Ao amanhecer, os peixes convidados começaram a se preparar para a festa, todos se pintaram. Quando o sol apareceu os Moretá foram buscar os convidados no acampamento:

– Morekwaza (caciques), vamos comigo para dentro da aldeia.Os peixes responderam:– Uhu! Vamos lá.Ao entrar na aldeia eles se agruparam. Os primeiros lutadores da aldeia da onça foram

Airaminá, o homem anta. Ao lado dele estava Ajanamari, que é gente. Os lutadores eram todos onças. Os lutadores dos peixes foram os filhos de Nauri, o filho dele era baixinho. Nauri lutou com Airaminá e o derrubou, depois seu irmão foi lutar com Ajanamari e também o derrubou.

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Para dar continuidade, lutaram coletivamente até terminar o huka-huka. No final os Kwaza foram cumprimentar os caciques peixes, levando-lhes mingau e peixe moqueado. Os Kwaza cumprimentaram os peixes.

Os donos da luta huka-huka são os Kwaza, eles foram os que deram início ao Kuaryp, fazendo uma homenagem à sua mãe depois de sua morte. Por isso até hoje nós realizamos essa

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Janaryt e Tumej

Awajatu Aweti

Desde o começo do mundo existem os donos dos rios, Janaryt e Tumej. Essas pessoas que assumiram a responsabilidade de cuidar dos rios no mundo, para que eles fossem reconhecidos como os donos da águas doces e dos mares. Os dois se dividiram para tomar conta das águas. Tumej responsabilizou-se por algumas lagoas sagradas, como a lagoa Makawaja e a lagoa Alahatua, que nosso povo Aweti chama de Ywarawyry. Essas lagoas existem aqui no Parque Indígena do Xingu. Janaryt responsabilizou-se pelos rios principais e pelos mares. Janaryt é dono dos rios Kuluene, Kurizevo, Batovi, Ronuro, Steinen, Arraia e Suiá-Missu. O plano de Janaryt e Tumej era distribuir essas águas no mundo para seus netos, que somos nós.

Primeiramente as águas foram descobertas pelos netos de Wamutsini, o Sol e o Lua. A intenção do Sol e do Lua era trazer a água no mundo para sustentar a vida dos seus netos. Na época em que eles existiram ainda não havia água aqui na Terra. O Sol e o Lua resolveram destruir a grande caixa d’água do seu avô Janaryt no Brasil, eles sabiam que nós iríamos habitar esse mundo. Se eles não pensassem nisso, a água não existiria. Foi a preocupação deles por nós que fez a água existir em todos os países do mundo.

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A lagoa Makawaja

História narrada por Akatua Aweti e escrita por Awajatu Aweti

Existe uma lagoa que nós chamamos Makawaja. Esta lagoa é sagrada. A lagoa foi descoberta pelo povo Kamaiurá, há muito tempo atrás quando eles foram pescar.

Eles viram que a lagoa Makawaja estava cheia de peixes. Quando eles estavam pescando viram galos numa praia flutuante, no meio da lagoa. Esses galos não são galos comuns, são galos sobrenaturais que vivem dentro da água.

Os pescadores voltaram para a aldeia e contaram para todos o que tinham visto durante a pescaria. Todos queriam conhecer esta lagoa e resolveram voltar lá. Quando todos chegaram à lagoa viram os galos sobrenaturais e ficaram admirados com sua beleza, os galos eram bonitos com penas de várias cores. Alguns ficaram com vontade de pegar os galos e começaram a discutir como fariam isso. Mas, por enquanto, resolveram voltar para a aldeia.

Depois de muita discussão, ouviram a opinião do pai de um menino. Esse menino foi escolhido para pegar os galos. Para preparar o menino o pai foi buscar ervas no mato. O menino ficou cinco meses em reclusão, crescendo e se fortificando com as ervas. As ervas serviram especialmente para tirar o peso do menino durante a reclusão, para que o menino não afundasse no pântano da ilha flutuante. Para testar o seu peso, todo dia o menino pisava numa casa mole de cupim, até que um dia a casa de cupim não quebrou sob os pés do menino.

Antes de irem pegar os galos, eles fizeram mais um teste. O pai do menino o levou para pegar um veado. De fato, o menino conseguiu correr muito mais rápido do que o veado e conseguiu pegar o veado pela perna. A família ficou contente com ele.

Então chegou o momento de conseguirem os galos encantados. O menino e quatro colegas do pai saíram de madrugada, para chegarem à lagoa antes dos galos saírem da água. Chegaram na beira antes da alvorada e se esconderam no mato. Só o menino foi para a ilha flutuante

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levando consigo grãos de milho e palha. Ele espalhou o milho na praia como isca para os galos, depois construiu um esconderijo para ele com a palha.

Depois de algum tempo os galos começaram a sair da água, mas o menino continuou quieto observando e esperando mais um pouco. Saiu um galo de cada vez, eram galos de tipos e cores diferentes. Um dos homens que estava escondido indicou para o menino quais os galos que ele deveria pegar. Ele tinha escolhido um casal: a galinha era toda branca e o marido era cheio de pontinhos pretos.

O menino correu e pegou primeiro o macho. Os galos encantados começaram a voar, irritados, mas mesmo assim ele conseguiu capturar a galinha. Nesse momento, muitos bichos encantados começaram a sair da água. O menino tentou fugir correndo para um lado, mas logo surgiu na sua frente um outro bicho d’água. Correu para o outro lado, mas aconteceu novamente, diante dele emergiu mais um bicho encantado. Eram uma onça, um porco, uma cobra, o fogo d’água e muitos outros seres. Todos os seres sobrenaturais foram perseguindo o ladrão de seus galos.

Finalmente o menino conseguiu escapar por uma brecha entre os bichos. Os bichos estavam atrás dele, mas ainda bem que ele conseguia correr muito rápido. Ele fugiu com toda velocidade direto para sua aldeia, os bichos sempre o perseguindo. Seus colegas fizeram um desvio longe do caminho, para evitar que encontrassem os bichos. O menino correu, correu, sem parar. Só quando ele estava quase chegando na aldeia os bichos d’água finalmente desistiram e voltaram para a lagoa Makawaja.

No outro dia foi realizada uma reunião na aldeia. O menino e seus colegas apresentaram os galos para a comunidade e explicaram como eles conseguiram pegar os bichos encantados. Os antepassados Kamaiurá, apesar de saberem que eram galos encantados, resolveram criá-los.

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Origem da lagoa ‘Ypawu

História narrada por Takumã Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Essa lagoa antigamente era uma aldeia, na época não tinha lagoa. No local da lagoa Ypawu existia a aldeia Mawaiaka. Lá morava Mawaiaka, sua esposa, seus filhos e sua família. No lugar chamado Morená havia um homem chamado Apytyia, ele que começou a tomar a raiz kumanaum, que usamos como erva medicinal no período da reclusão. A mãe de Apytyia viu uma pomba e falou para seu filho:

– Filho, a pomba está tomando a sua raiz.O rapaz foi espantar a pomba e ela saiu voando.– Pô, pô, pô, pô, pô, pô... Foi bem alto voando com a cabeça para cima.

Ela veio trazendo o caldo da raiz na barriga. Veio trazendo até em cima da aldeia Mawaiaka. Ela abaixou a cabeça em cima da aldeia e derramou o caldo da barriga, derramou esse caldo com todos os tipos de peixe. A aldeia virou uma lagoa.

Alagou toda a aldeia e as piranhas e os bichos d’água comeram todas as pessoas. A pomba mesmo que criou os bichos d’água para comerem a família de Mawaiaka. Quando Mawaiaka veio da roça, ele não viu mais nada de sua casa e de sua família. Ele viu que a aldeia estava alagada pela água. Ele tentou

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encontrar o filho, foi para lá e para cá procurando. Ele fez ilha uma aqui, fez outra ilha em outro lugar, procurando o filho e nada, desistiu. O bicho d’água comeu toda sua família, acabou com eles.

Essa lagoa não era lagoa, foi feita de água da raiz chamada kumana‰. Mawaiaka permaneceu ali, ele colocou nome em cada lugar. Essa lagoa era grande, diminuiu para ele poder procurar o filho. Mas ele não encontrou o filho e ficou triste. Essa lagoa surgiu da água da pomba, é água da raiz.

Foi assim a origem da lagoa ‘Ypawu, que era a aldeia do Mawaiaka. Por isso nós

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A origem do dia para o povo Kamaiurá

Matariwa Kamaiurá

Há muito tempo atrás o dia não existia para os povos indígenas. Os índios viviam na escuridão, sem luz e sem fogo. Eles sofreram muito por falta do dia e de alimentação. Os povos indígenas tinham dificuldade de enxergar longe.

Enquanto isso, o predador se aproveitava da escuridão para atacar os índios que viviam no escuro. Esses predadores eram as onças, por isso os índios sofreram muito. Eles ficavam mudando de lugar, fugindo das onças, mas elas continuavam atacando. Quando elas atacavam, todos se espalhavam correndo para lá e para cá e assim os índios foram diminuindo.

Jay e Kwat (Lua e Sol) foram procurar o dia para os índios, solucionando o problema. Eles viram os índios sofrendo nas garras dos inimigos. Os dois saíram para fazer uma anta de mentira, que ficou igualzinho a uma anta de verdade. Depois colocaram mandioca dentro da anta para ficar fedorenta. Finalmente eles pegaram cera para fazer a Mosca. A Mosca era enorme, parecida com pombo. Ela era a mensageira.

Jay e Kwat mandaram a mensageira até o céu para avisar o Urubu-rei para ele vir à Terra comer anta e eles se esconderam embaixo da unha da anta morta. A mensageira voou para o céu levando a mensagem para o Urubu-rei. Quando ela chegou na aldeia do Urubu-rei, ele perguntou:

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– Qual é a novidade que o senhor está trazendo aqui para nós, senhor mensageiro?

O mensageiro respondeu, mas o Urubu-rei não compreendeu a palavra dele. A mosca só falava pelo nariz. O Urubu-rei chamou seu tradutor, o Xexéu, mas ele também não entendeu a palavra da Mosca. Ele perguntou duas vezes e mesmo assim não entendeu. Mais uma vez o Urubu-rei chamou outro tradutor, o Xexéu preto, que traduziu a mensagem. O Xexéu preto perguntou:

– O que o senhor mensageiro quer?Ele respondeu: – Eu vim avisar o Urubu-rei que a comida está estragando lá embaixo.O Xexéu preto traduziu para o Urubu-rei, que ficou muito feliz quando ouviu essa novidade.

O Urubu-rei desceu com o seu pessoal para comer a anta morta. Como ele era esperto, ao pousar num galho de árvore percebeu que aquela não era uma anta verdadeira. O Urubu-rei não acreditou e chamou o seu pajé Bem-te-vi para analisar se a anta estava realmente morta. O Bem-te-vi fumou seu cigarro e disse:

– Senhor Urubu-rei, a anta está morta mesmo. Você pode descer em cima dela.

O Urubu-rei desceu em cima da perna dela. Jay e Kwat o surpreenderam, tentando agarrá-lo. O Urubu-rei quis voar, mas não conseguiu. Jay e Kwat já tinham agarrado sua perna e falaram:

– Nós não vamos matar você, vovô. Eles começaram a conversar com o Urubu-rei sobre o sofrimento

dos índios na escuridão. Os irmãos pediram para ele arrumar o dia e o Urubu-rei concordou. Ele mandou seu amigo buscar o dia, trazendo um

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cocar falso. Só veio aumentando a escuridão. O Urubu-rei disse para seu amigo:– Traga o dia verdadeiro para nossos netos.Mas ele não trouxe o dia verdadeiro. Jay e Kwat reclamaram para o Urubu-rei:– Meu amigo, por favor, traga logo o dia para nós. Os nossos netos estão sofrendo muito,

precisando da claridade do dia.Mais uma vez o Urubu-rei mandou outro amigo buscar o cocar certo, trazendo o dia

verdadeiro para os índios. Finalmente o dia veio aparecendo. Jay, Kwat e o Urubu-rei ficaram olhando para o céu e para o horizonte aonde o sol veio nascendo. Eles agradeceram ao Urubu-rei pela ajuda, mandando-o de volta para o céu. Jay e Kwat ficaram felizes. Os índios, que até então viviam no escuro, também ficaram felizes quando viram o sol nascendo. Eles começaram a andar longe e conseguiram e n x e r g a r o s i n i m i g o s , c o m e ç a r a m a pescar, roçar e fazer suas casas.

Assim surgiu o dia para os povos indígenas.

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Origem dos porcos

História narrada por Koka Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Os porcos começaram a existir assim:Uma senhora foi ver a roça do filho. Ela viu que o porco tinha comido a mandioca e voltou

para casa. Quando a senhora voltou, disse para o filho:– Filho, o porco está comendo a sua roça.– É mesmo, mãe? Amanhã eu vou lá ver, eu vou matá-lo.No outro dia de manhã ele foi. Ele viu a mandioca toda branca mordida pelo porco. Ele viu

o caminho do porco e foi seguindo o rastro até encontrá-lo no mato. Chegou num lugar cheio de cipó timbó. Entrou no meio do cipó timbó, que era a casa dos porcos. Um dos porcos disse:

– O que foi moço?– Por...– Ele está falando porco!Os porcos levantaram todos para mordê-lo.– Você falou por...– Não, não, eu não falei!– Você falou sim!– Não, eu vou contar a verdade, eu vim

caçar pássaros!– Você falou por...– Não, não, eu não falei isso não, vocês

estão mentindo!

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No meio dos porcos tinha uma moça bonita, filha de um dos porcos, que falou:– Eu quero casar com você!O homem casou com ela. Eles estavam trabalhando. Ele viu os porcos, todos com dentes

grandes. Ele estava só olhando para eles, pensando:– Eles são assim tão esquisitos!Tinha uma mulher, mãe de menino novo, que ficava só deitada, porque era preguiçosa.

Assim que a perereba ficou pronta para beber ela foi a primeira a levantar. Então um dos porcos disse:

– Você não vai trabalhar? Quando a perereba está pronta você é a primeira a levantar para tomar.

– Eu estou com criança pequena, por isso que eu não vou com vocês para a roça. O homem, dono da roça, ficou só olhando e pensando consigo mesmo:– É assim que vocês estão fazendo com a minha roça...No outro dia os porcos foram buscar mandioca na roça do rapaz.– Vamos para a roça.- Então eu também vou, disse o rapaz.Só ficou aquela mulher preguiçosa. Eles foram, o rapaz foi na frente, abriu a cerca,

entraram na roça e começaram a tirar muitas mandiocas:– Puxa, é assim que eles estão comendo a minha roça, agora que eu estou vendo como

eles fazem!Até o período da tarde o rapaz não tinha aparecido na casa dele, os porcos tinham roubado

o rapaz para viver com eles. A mãe do rapaz ficou desesperada e disse:– Para onde meu filho foi? Será que a onça comeu meu filho?Ela foi à roça para ver se encontrava o filho. Nada. Voltou... Enquanto isso, as porcas trabalharam a mandioca o dia todo e fizeram perereba. A mãe do

menino, que era preguiçosa, foi a primeira a levantar para tomar.

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– Viu! Você não vai pegar mandioca conosco, mas é a primeira a querer tomar!– É que eu estou com criança pequena!– Pra tomar perereba você levanta logo! Você é muito preguiçosa!O homem dono da roça falou:– Amanhã eu vou ver a minha mãe, estou com saudades dela.A esposa dele falou:– Mas você volta, não é?– Eu vou voltar.No outro dia, bem de manhã, o rapaz foi embora para a casa da mãe. Quando ele chegou,

a mãe ficou assustada.– Ah ah! Meu filho está chegando! Onde você esteve, meu filho?O rapaz contou a história:– Aquela hora que eu saí para ver a minha roça, eu fui na casa dos porcos, agora eu vi

como é o jeito dos porcos viverem. Eles me casaram lá, mãe!– Por que você não trouxe sua mulher, filho?– Eu não posso trazer, mãe!Ele saiu da casa e foi para o centro da aldeia avisar o pessoal:– Olha pessoal, quero que vocês vão amanhã na minha roça matar os porcos. Amanhã

eu vou levá-los para a roça. Vocês podem esperar no caminho, porque a roça é cercada. Eu vou abrir a cerca para os porcos entrarem, então eu vou gritar para avisar vocês.

Avisou o pessoal dele para todos matarem os porcos. – Eu vou voltar agora para a casa dos porcos, disse o rapaz.Quando ele chegou na casa dos porcos, disse:– Viu? Não falei que ia voltar? Estou voltando novamente. Amanhã nós vamos pegar

mandioca na roça. Amanhã tem que ir todo mundo.

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Todas as mulheres ficaram contentes.– Está bem, amanhã vamos todas buscar mandioca!No outro dia de manhã o rapaz falou:– Vamos mulherada, pegar mandioca na roça! Tem que ir todo mundo, para vocês pegarem

bastante.Aquela mulher preguiçosa não foi. Se todos os porcos tivessem ido, não existiria porco

hoje. Aquela que ficou com o filho foi quem continuou criando os porcos.As porcas e os porcos chegaram na roça e começaram a arrancar mandioca: Trok... Trok...

Trok! O rapaz entrou por último e fechou a cerca para os porcos não saírem mais de volta.– Kaõõõõ! Venham logo!O pessoal correu para a roça. Os porcos também correram, mas não conseguiram sair

mais da cerca. Os homens mataram todos os porcos dentro da roça.– Adeus porcos! Isso aconteceu porque vocês ficavam roubando a minha roça!Depois que mataram todos, cada pessoa pegou carne e levou para casa para poder comer.

Quando o rapaz chegou em casa, disse para a mãe:– Uma porca não veio, mãe, ficou lá, não vieram todos, se tivessem vindo todos, não

teríamos mais porcos.Por isso hoje em dia ainda tem muitos porcos comendo mandioca.

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Origem das araras

Tahugaki Kalapalo

No princípio do mundo um velho chamado Kuatüngü, avô dos rapazes Aulukumã e Tai‰gi, arranhou com uma arranhadeira todas as partes do corpo do seu neto Aulukumã. Quando o sangue do neto saiu, Kuatüngü colocou numa cuia velha e rezou.

Depois de rezar, Kuatüngü tampou e guardou a cuia bem direitinho. Passaram-se cinco dias e o sangue se transformou numa filhotinha de arara bem vermelha. Kuatüngü ouviu o grito da ararinha e foi ver como estava o sangue do neto, chegou perto e viu uma ararinha linda. Pegou-a na mão e levou-a para o seu neto criar. Assim a arara começou a existir para o povo Kalapalo.

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O rapaz que virou sucuri

Ugise Kalapalo

Antigamente havia um rapaz que namorava uma mulher casada. O marido dela foi pescar e pegou muitos peixes. Ele encontrou uma cobra e matou-a, cortou um pedaço da cobra e colocou dentro da barriga do peixe, para dar para a mulher comer com seu namorado. Ele voltou para a aldeia trazendo os peixes para sua mulher e escondeu o peixe que estava com carne de cobra. Sua esposa dividiu os peixes que ele trouxe para a mãe, para o irmão da mãe e para o tio. Depois de comerem, o marido comentou com a mulher:

– Tem peixe aqui, pode moquear para você comer amanhã. Então ele deu para ela o peixe recheado com cobra.

– Está bem.No dia seguinte, lá pelas cinco horas da madrugada, a mulher saiu para a roça e levou o

peixe que estava com o pedaço de cobra. O namorado foi atrás dela para se encontrarem. Na roça ela disse para o namorado:

– Você quer comer?– Eu quero.Quando terminou de comer, o rapaz virou uma cobra sucuri e foi para o rio. Hoje em dia é o

espírito da sucuri que ajuda os lutadores a ganharem as lutas.

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O homem, o Raposo e sua esposa

Mutua Mehinaku Kuikuro

Certo dia um homem foi no mato buscar material para fazer flecha. Ele andou bem dentro do mato e quando queria retornar para a aldeia não conseguiu, ficou perdido. Quando viu que o sol estava desaparecendo, chorou muito. Quando parou de chorar ficou pensando:

– Onde eu vou dormir? Já sei, vou dormir lá em cima, eu vou dormir lá em cima da árvore para o bicho não me pegar.

Subiu na árvore, dormiu e sonhou sobre o que aconteceu com ele. Às quatro horas da manhã ele acordou de repente, ouvindo música de uma flauta muito linda. Ele desceu da árvore e resolveu se aproximar bem devagarinho. Ele abriu uma picada, o dia começou a clarear e o sol nasceu. Ele encontrou uma bela estrada e começou a andar nela até chegar perto de uma aldeia, na qual encontrou duas casas. Ele se perguntou:

– Que povo será esse?Era a aldeia do Raposo.Ele se aproximou de uma das casas e viu uma linda mulher saindo de dentro dela. Ele ficou

louco por ela e assobiou. Quando ela ouviu, logo olhou para ele, que estava gesticulando. Ela se perguntou:

– Quem será este homem?A mulher se aproximou dele, bem ressabiada, porque ela o estava vendo pela primeira

vez:– Quem é você?– Eu vim para conversar com você – ele mentiu para ela, porque era um homem perdido.– Está bem, vamos entrar na nossa casa.– Eu não posso, senão seu marido vai nos encontrar.

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– Não, ele nunca entra na casa, ele fica sempre tocando flauta Jakuí na casa dos homens, ele não vai perceber você. Ele só entra quando fica com fome e sede. Vamos entrar.

Essa mulher era a esposa do Raposo, que tocava flauta sem parar. Enquanto isso, o homem namorava a esposa do senhor Raposo. Na casa do Raposo havia muito esperma pendurado. O senhor Raposo sempre chamava atenção da esposa, para ela não passar por baixo do esperma. Ele dizia:

– Quando você varrer a casa, não precisa passar debaixo desse meu negócio, senão ele engravida você. Se você não acreditar em mim, ele vai pingar dentro da sua vagina. Eu quero que você acredite. Depois ele ia para a casa dos homens tocar flauta e levava sua comida. Na aldeia do senhor Raposo não tinha mais gente, só eles dois estavam morando nessa aldeia bonita.

Quatro dias depois o homem engravidou a esposa do Raposo.O tempo foi passando, até que a moça sentiu as dores do parto e o bebê conseguiu sair da

barriga da mãe. Quando o Raposo ouviu o choro do bebê, foi correndo vê-lo. Ele disse:– Primeiro eu tenho que comparar se ele é parecido comigo, para saber se é realmente

meu filho. Olhou primeiramente os dedos do menino comparando com os seus, e viu que não eram

iguais. Comparou o seu rosto com o do bebê e viu que as fisionomias eram diferentes. Então ele ficou muito bravo devido ao filho ser de outro homem:

– Eu sabia logo que outra pessoa engravidou você, minha mulher. Eu vou matar essa criança.

Quando o homem ouviu que o Raposo queria matar seu filho, logo saiu do esconderijo gritando:

– Não, senhor! Ele é meu bebê, por favor, não o mate. Eu que vou matá-lo!O homem pegou um pedaço de pau para bater no senhor Raposo.Logo o Raposo correu para o mato, gritando:– Socorro! Não me mate, eu vou mostrar e contar sobre os remédios para você, meu neto. Eles pararam de correr. O homem disse:

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– Conte logo, vovô, senão eu mato você. O senhor Raposo disse:– Essa folha é um remédio, você vai tirá-la para levar para seu filho. Você vai colocar na

água, depois vai dar banho no seu filho para que ele não fique chorando direto. Agora, deixe-me em paz.

– Está bem, vovô, você pode ir embora.

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Awara’ i, o homem raposa

Takap Pi’yu Kamalla Trumai Kaiabi

Awara’i é o mito de um homem raposa que adotou uma menina que cresceu e com ele se casou. Mas sua esposa o traiu, pois namorava um caçador.

Na nossa cultura Trumai, quando uma mulher casada tem caso com outro homem e o marido não sabe, dizemos que ele é Awara’i.

Awara’i tocava a flauta jakui, que na língua Trumai chamamos de Kut. Ele tocava a flauta com vários animais.

Certo dia, o namorado da moça, não resistindo mais ao namoro escondido, resolveu flechar o marido dela. Awara’i havia dito para sua esposa que já desconfiava desse namoro. A moça enganou seu marido por muito tempo dizendo que a filha que tinham era dele.

Quando o rapaz flechou Awara’i, ele saiu correndo falando que ia fazer cocô na cinza do fogo. No caminho gritou, chorou, para dar azar aos homens. Ele voltou correndo para sua aldeia e tapou as flautas de jakui, por isso essas flautas não têm o mesmo som que tinham antes. Antigamente a flauta jakuí era ouvida muito longe.

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Se Awara’i grita na aldeia, sabemos que está contando uma história triste. Quem ouve o choro dele como gente, pode ter certeza que algo de ruim está para acontecer. Pior ainda é ouvir o grito dele no centro da aldeia. Quando ele grita e chora, as pessoas saem para falar para ele ir embora e deixar as pessoas em paz.

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A origem do pequi

Aigi Nahukua

Um homem Jacaré namorava com as esposas de Agagati, o Nambu. Agagati tinha cinco mulheres. Sempre elas iam na roça, que ficava perto do córrego. Elas sempre se pintavam antes de ir à roça. Depois de arrancar mandioca, as mulheres se juntavam na beira do córrego e gritavam chamando o Jacaré para namorar com elas. O marido delas não sabia que isso acontecia.

Um dia Agagati foi na roça e encontrou uma cutia que estava no meio do caminho. Ele quis flechá-la, mas logo a Cutia se transformou em homem e disse:

– Não me mate, eu vou contar uma história para você.

– O que? Tem alguma coisa? Conte logo!

– Suas esposas estão namorando o Jacaré, por que você não o mata?

– Onde?– Lá na roça.– Vamos lá ver.– Vamos.

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Eles foram até a roça e as esposas dele estavam desenterrando mandioca. Eles se esconderam na beira do córrego. Quando elas acabaram o serviço foram chamar o Jacaré para vir namorá-las. Chamaram até ele vir. O Jacaré começou a transar com elas, primeiro namorou a mais velha, depois outra, depois outra e no final ele namorou a mais nova.

Agagati preparou a flecha e matou o Jacaré na cabeça. Agagati ficou bravo e até bateu nas esposas. Elas ficaram lá chorando, até que resolveram enterrá-lo.

Passaram-se três dias e elas foram ver o lugar onde o namorado foi enterrado. Elas viram

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O rapaz que pisou no sapo

Amutu Waurá

À noite uma pessoa que era o chefe da pescaria falou para todo mundo bater timbó no dia seguinte. De madrugada as mulheres prepararam beiju e mingau, os homens prepararam suas flechas. No dia seguinte o chefe da pescaria saiu de casa chamando todo mundo.

As pessoas andaram atrás dele e, no meio do caminho, viram um sapo. Todo mundo falou para não pisar no sapo para não coçar o pé. Todos se cuidaram para não pisá-lo.

Havia dois rapazes que vinham andando atrás da fila. Quando chegaram no lugar onde estava o sapo, também foram avisados para não pisarem nele. Um dos rapazes acreditou, mas o outro não deu importância, pisou no sapo e todos continuaram a caminhada.

Depois de andarem um pouco o rapaz sentiu o pé coçar e começou a esfregar o pé no chão. Todas as pessoas estavam sabendo o que ia acontecer. Ele começou esfregando o pé no chão e pouco a pouco começou a esfregar o pé numa árvore. Ele estava sentindo muita coceira e entrou no mato para procurar uma árvore com espinhos. O rapaz não estava se sentindo bem, toda hora esfregando o pé na árvore até começar a fazer uma ponta no pé. Assim ele se transformou num bicho chamado Tunupixatoju. Todas as pessoas sabiam da sua transformação, bateram timbó com pressa e foram embora. Eles pegaram muitos peixes, mas o medo fez com que voltassem rápido para casa.

Chegando em casa, fecharam as portas e contaram para suas esposas o que tinha

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acontecido. Não havia ninguém na casa dos homens, estavam todos quietos em casa comendo seus peixes. Tunupixatoju foi até o meio da aldeia e começou a fazer molecagem. Se alguém risse dele, entrava na casa e matava a pessoa. Até que ele foi na casa da mãe e da esposa. A mãe disse:

– Não precisa mais voltar para a aldeia porque você é bicho. Vá para o mato.A esposa também falou para ele ir para o mato e ele desapareceu. Passaram-se alguns

dias e a mulher dele foi na roça buscar mandioca. Chegando na roça, ouviu um barulho e Tunupixatoju apareceu, virando o cú para lá e para cá. A mulher não quis rir, começou a chorar e disse:

– Você não precisa aparecer mais.Ela voltou para a aldeia e no outro dia foi buscar mandioca novamente. Tunupixatoju

apareceu novamente virando o cú para lá e para cá.Passaram-se alguns meses e a irmã caçula pediu para ir à roça com ela. Primeiro ela

não quis, mas depois decidiu chamar a irmã. No meio do caminho contou sobre Tunupixatoju e quando chegaram na roça, pediu que ela não risse dele. Enquanto tiravam mandioca, escutaram o barulho do bicho. A irmã mais velha pediu para a mais nova se esconder num monte de lixo e falou para ela não dar risada dele. A irmã mais velha ficou tirando mandioca sozinha. Tunupixatoju chegou e peguntou:

– Quem se escondeu de mim?– Aqui não tem ninguém.Ele começou a fazer brincadeira perto da mulher e de repente escutou alguém rindo

baixinho.– Aqui tem alguém, eu ouvi gente rindo. Eu acho que tem alguém escondido. Eu vou matar

alguém.A mulher respondeu:– Aqui não tem ninguém.

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A irmã mais velha deu sinal para ela não rir. Tunupixatoju continuou a fazer brincadeira e ficou atento. Esse bicho queria matar a mulher, por isso estava fazendo molecagem. Ele escutou risos novamente e perguntou:

– Aqui tem alguém? Eu ouvi, alguém está rindo de mim.– Não tem ninguém.Tunupixatoju não acreditou. Ele correu e pisou nas costas da irmã mais nova, matando-a. A

irmã mais velha gritou:– Nããão! Por que você matou minha irmã?Ela pegou um pedaço de pau e correu atrás dele, queria matá-lo, mas não conseguiu.

Então ela disse:– Desapareça no mato e nunca mais volte!

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Origem do fogo e da arraia

Aigi Nahukua

Certa vez o criador Ta‰gi fez um passeio pelo mundo inteiro a fim de criar alguma coisa para a humanidade. Antigamente não existia fogo. Um dia Ta‰gi pensou em fazer uma arraia. Ele tirou cipó da várzea, descascou e pegou o fio do cipó, enrolou bem redondo e colocou um rabo. Na pontinha desse rabo ele colocou um ferrão com uma folha de um tipo de capim. Ele jogou na água e, ao cair, transformou-se em uma arraia. Ela correu e se escondeu. Ta‰gi procurou-a com o pé e a arraia deu uma ferroada nele. Ele levou um susto, mas não sentiu dor. Ta‰gi pegou a arraia e passou pimenta esmagada sobre o seu ferrão, soltando-a novamente na água. Quando ele foi procurá-la novamente, levou uma ferroada muito dolorida porque seu ferrão ficou ardido como pimenta.

Ta‰gi começou a gritar e a chorar porque não aguentava a dor. O pássaro chamado Uguhügu, filho do Urubu-rei que fica no céu, estava sentado sobre o galho de uma árvore, cantando e sorrindo bem ao lado de Tai‰gi. Pensando que Uguhügu estivesse fazendo gozação dele, Ta‰gi ficou muito chateado e disse para o pássaro:

– Pare de rir de mim, vá pegar o fogo para mim.O pássaro voou, foi embora para o céu. Chegando em casa ele disse para seu pai:– Pai, tem gente que está gritando lá embaixo no outro mundo, não sei quem é. Quando eu

estava cantando ele brigou comigo porque achou que eu estava brincando com ele. Ele até pediu para eu levar o fogo para ele. É por isso que eu vim buscar o fogo.

O pai respondeu:– Vá embora, meu filho, e leve rapidamente o fogo. Ele é mau e pode nos matar. Ele é

Ta‰gi.O pássaro desceu com o fogo até a Terra, colocando-o do outro lado do rio. Ele disse para

Ta‰gi:

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– Aqui está o seu fogo.Ta‰gi pediu para a barata buscar o fogo para ele no outro lado do rio. Quando ela estava

trazendo, a brasa caiu na sua cabeça. Ela jogou o fogo na água e ele apagou. Foi Ta‰gi que rezou o fogo para a brasa cair na cabeça da barata. Ele ficou com inveja da barata trazer o fogo por cima da água para ele. Em seguida ele pediu para a cobra buscar o fogo. Ela foi muito ligeira, correu depressa sobre a água e conseguiu colocar o fogo onde o criador tinha juntado lenha para acendê-lo. Ta‰gi não conseguiu rezá-la. Em seguida o pássaro foi embora. Ao voar sobre Ta‰gi ele disse:

– Procure o fogo na flecha.– Está bem – respondeu Ta‰gi.

– Procure na pedra, procure no pé de urucum.Assim surgiu a arraia e o fogo através de Ta‰gi.

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As estrelas Pomtanom, criadoras do Ratkat, o martim-pescador

Maiua Poampo Ikpeng

Era uma vez dois meninos gêmeos que sempre aprontavam muitas coisas, eles sempre se transformavam em vários seres como homem, mulher, peixes, animais, aves e insetos. Eles eram poderosos.

Havia um homem chamado Ratkat, o martim-pescador, casado, com seis filhos, morando no campo onde sustentava sua família. Ele sempre pescava só com flecha, era bom na pontaria e pegava diversos peixes, moqueava e comia. As pessoas iam lá e ele oferecia peixe para as visitas.

Certo dia a avó dos gêmeos disse:– Eu me lembro daquele lugar onde sempre me alimentava de peixes.Ela só falou uma vez, eles ficaram duvidosos, fizeram a pergunta entre si:– O que será que nossa sogra disse?Chamaram a avó de sogra, mas na verdade era a avó deles.– Vamos fazer a pergunta? – Vamos.– Onde fica esse lugar, vovó?Ela respondeu balançando a cabeça. – Para onde ela apontou a cabeça primeiro?– Para lá. Vamos procurar esse lugar?– Vamos.Ao mesmo tempo pediram para a avó preparar beiju para eles. Saíram bem cedo,

chegaram lá e viram Ratkat pescando em cima de um galho de árvore na beira do rio, esperando

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peixe. Os dois disseram:– Olhe o pescador lá, irmão!O irmão mais novo ensinou o irmão mais velho a ter cuidado e então os dois

transformaram-se em tucunaré, o peixe no qual sempre se transformavam para pegar flecha. Os dois mergulharam e foram até perto do pescador. Ratkat os viu boiando como tucunarés bem grandes. Mais uma vez o irmão caçula orientou o outro para ter cuidado. Ao vê-los, o pescador animou-se e se preparou para flechá-los. Os dois tucunarés se aproximaram. O pescador atirou uma flecha no irmão mais novo. Ele só segurou-a, levando-a para longe e boiando. Ao ver a flecha, o irmão mais novo ficou contente e disse:

– Nossa, como é linda a flecha!O irmão mais velho ficou triste porque ele não ganhou e disse:– Agora eu vou ficar na frente, você atrás.– Cuidado, irmão.Raktak ficou triste porque tinha perdido um tucunaré bem grande e também a sua flecha.

Os rapazes voltaram lá, o pescador deu flechada no irmão mais velho, a flecha pegou bem na cabeça e ele morreu. O pescador ficou contente. Pomta, o irmão mais novo, ficou triste e disse:

– Eu pedi para você ter cuidado, irmão, mas você não me obedeceu.Ele fez uma reza para que o pescador guardasse todos os ossos do seu irmão e voltou

para a casa da avó. Ela perguntou:– Onde está seu irmão?– Ele ficou lá, falou que ia esperar mais alguns dias.Ela, preocupada, aconselhou seu neto para não deixá-lo sozinho. No dia seguinte ele voltou

lá para ver seu irmão. O pescador tinha saído para buscar mandioca na roça, ficaram somente os seis filhos na casa. Ele entrou na casa e disse:

– Onde estão nossos pais?– Eles saíram, foram buscar mandioca, você poderia ter chegado ontem, que comemos um

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tucunaré bem grande!– Ah é? Então onde estão os ossos, vocês guardaram?– Estão ali no cesto.

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– Tragam aqui.Os meninos pegaram o cesto de ossos, deram para ele e falaram:– Vamos cozinhar para a gente tomar o caldo!Ele mandou os meninos saírem alguns minutos, e disse:– Assim que estiver pronto eu grito e vocês vêm.– Está bem.Os meninos saíram. Pomta pegou um balde de água, colocou em cima do jirau, acendeu o

fogo e deixou a água ferver. Quando ficou bem quente ele gritou:– Está pronto! Está pronto!Os meninos chegaram sem saber o que iria acontecer, Pomta jogou a água quente neles.

As crianças gritaram chorando:– Ai! Ai! Ai! Os pais ouviram os gritos e vieram correndo da roça. Pomta jogou a água quente nos dois.

Eles gritaram, choraram, Pomta pegou as folhas sagradas e bateu neles até que começaram a se transformar no pássaro Ratkat, o martim-pescador. Depois disso, Pomta juntou todos os ossos do irmão, montou o esqueleto, tirou a folha sagrada, esfregou e começou a pingar nos olhos, até que o irmão se mexeu. Ele pingou mais, até o irmão voltar a ser como era antes. Eles voltaram para a

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As meninas Pomtanom e Mïrïtko, a muriçoca

Iokore Kawakum Ikpeng

Era uma vez duas meninas Pomtanom, muito espertas. Elas se transformavam em peixes e animais. As duas meninas eram gêmeas. Elas aprontavam coisas ruins também. Um dia elas saíram para matar Mïrïtko, a muriçoca. Elas moravam em uma aldeia e a muriçoca morava em outra.

Essa muriçoca matava muitas pessoas. Ela chupava o sangue das pessoas que chegavam em sua aldeia e assim elas morriam. Um homem veio contar para as irmãs Pomtanom sobre a muriçoca. As duas meninas falaram entre elas:

– Olha irmã, vamos lá ver o pessoal. Não sei o que está acontecendo.Logo que elas estavam saindo para a outra aldeia, falaram para a mãe:– Mãe, nós vamos lá na outra aldeia ver o pessoal. Não sei se a doença está acabando

com eles, nós vamos lá para ver.De manhã bem cedo elas saíram caminhando, até que chegaram na outra aldeia quase

ao anoitecer. No meio da casa dos homens elas amarraram a rede e foram se deitar. Logo que anoiteceu, a muriçoca começou a se mexer e fazer barulho. Elas ficaram deitadas. Lá pela meia-noite a muriçoca começou a se levantar e foi chupar o sangue das meninas Pomtanom. Quando a muriçoca chegou do lado da irmã mais velha, a irmã mais nova falou para ela:

– Olha irmã, você não pode errar, bata com cuidado para não errar. Logo que a muriçoca se aproximou, a irmã mais velha errou. A muriçoca voltou para o lugar

dela. Ficou quieta durante um minuto e começou a se aproximar de novo, foi para o lado da irmã mais nova. A muriçoca chegou lá e a menina matou-a. Ao morrer, ela derramou muito sangue. Ela era grande, mas quando as duas meninas a mataram, ela diminuiu de tamanho, porque o sangue dela derramou-se todo. O sangue que derramou se transformou

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Atparumpakno, origem das músicas de ninar

Korotowï Ikpeng

Um homem chegou da caçada e sua esposa pediu para a mãe pegar o bebê, porque ela ia preparar a caça que o marido trouxe do mato:

– Mãe, pegue meu filho que eu vou cuidar dos bichos que meu marido trouxe.A mãe pegou o neto e começou a dançar com ele sem cantar. Dançou, dançou, dançou e

de repente um carrapato mordeu-a no rego. Ela arrancou-o e disse para o genro:– Genro, tirei um carrapato da cabeça do meu neto.– Onde está ele?– Aqui.O rapaz comeu o carrapato e voltou para a rede. A sogra começou a cantar:– Ïpru warantu agulï aramprungmo a ã ã! – o pai de vocês comeu carrapato do meu rego!– Ah, é verdade, sogra? Comi o carrapato do seu rego?Ele desceu da rede, foi para fora e vomitou muito.Depois de muito tempo, o genro matou um bacurau. Ele abriu a boca do bacurau, soltou

esperma na boca dele e fechou. Depenou o pássaro e, quando chegou em casa, ao invés de entregá-lo para a esposa, deu para a sogra.

– Sogra, matei um bacurau para você e já depenei. Ele tem muita gordura.– Está bem, meu genro, vou assar e comer.Ela assou e realmente estava muito gorduroso. Ela comeu tudo, bebeu muita água e

deitou-se na rede.O rapaz pegou o filho no colo, começou a dançar e cantar:

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– Ïmu pano agulï onutkom a ã ã! – a avó de vocês comeu bacurau com meu esperma!O genro cantou três vezes, até ela perceber e dizer:– Ah é, genro? Comi o bacurau com seu esperma?Ela desceu da rede, saiu para fora e vomitou muito.Assim é a origem das músicas de ninar.

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Origem do tamanduá

Pitoga Ikpeng

Para o povo Ikpeng antigamente não existia o tamanduá. Havia dois irmãos, o mais velho convidou o mais novo para caçar:

– Irmão, vamos caçar tamanduá?– Vamos.Logo que entraram na mata o irmão mais novo,

que era esperto, viu uma palmeira de tucum. Eles a derrubaram, tiraram o palmito, amarraram e cortaram a palha. Eles fizeram uma cauda com essa palha. O irmão mais novo pediu para o outro carregá-la nas costas. O mais velho ficou bravo e disse:

– Eu não pedi para nós amarrarmos o palmito?Enquanto o mais velho estava carregando

a cauda, o mais novo foi cutucando o boneco de tamanduá. Esse boneco era leve, mas quanto mais cutucava mais pesado ficava. Até que o irmão mais velho derrubou-o das costas e disse:

– Que bicho é esse?– Esse bicho é o tamanduá que você pediu

para nós caçarmos.O irmão mais velho perguntou se todas as

pessoas podem comê-lo ou somente os mais velhos. O mais novo respondeu que qualquer pessoa pode comê-lo. Assim apareceu o tamanduá.

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A origem dos pajés

Jamanary Kaiabi

Há muito tempo atrás os Kaiabi não conheciam facilmente as doenças causadas por espíritos da natureza e almas, nem a reza para curar as pessoas que ficavam doentes.

Nesse tempo antigo um rapaz, chamado Tuiararé, sempre sonhava com várias coisas que ninguém sonhava. Ele contava para sua família o que via e aprendia em seus sonhos e a sua família obedecia as orientações dele. Ele sonhava com coisas boas e ruins. No sonho ele enfrentava todos os seres que vinham atacá-lo, ele voava, conhecia outros lugares, conversava e era orientado pelos espíritos. Sonhando ele aprendia as falas de todos os seres, pessoas, animais, aves, peixes, espíritos e aprendia os nomes dos remédios. Quando ele acordava, ficava relembrando o que viu e aprendeu no sonho.

Ele ia ao mato e encontrava os remédios que aprendeu durante o sonho, tirava os remédios e usava nas pessoas que estavam doentes. Ele também sabia rezar para curar os doentes.

Assim o povo Kaiabi passou a ser salvo das doenças causadas por espíritos, tudo começou com esse primeiro pajé.

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Um grande pajé

Tymair‰ Kaiabi

Antigamente não existiam os brancos no Brasil, quem existia no Brasil eram somente os índios. Naquele tempo tinha um grande pajé que era famoso e respeitado. As pessoas que moravam com ele ficavam com medo só porque ele era um grande pajé.

Este pajé tinha visto um ninho de gavião no mato e falou para sua esposa:– Eu vi um ninho de gavião, assim que os filhotinhos nascerem vou buscar para nós

criarmos. Só que tinha gente que viu esse ninho de gavião e falou a mesma coisa que o pajé:– Eu vi um ninho de gavião, assim que nascer filhote eu vou buscar para criar. Essa segunda pessoa que viu o ninho tomou a frente do pajé e foi tirar o filhote de gavião.

Depois que o outro homem tinha tirado o ninho, o pajé foi lá para ver se o filhote de gavião ainda estava lá. Depois que o pajé viu que os filhotes já tinham sido tirados, ficou muito triste e bravo, chegou na sua aldeia e falou para suas filhas:

– Filhas, façam farinha de milho com amendoim, massa de mandioca (kanape), beiju com amendoim e farinha de pimenta.

Neste momento o pajé já estava preparando o seu fumo e chamando os seus espíritos. As filhas prepararam todas as comidas e foram contar para seu pai que a comida já estava pronta. O pai disse:

– Filhas, tragam as comidas aqui para fora.As filhas obedeceram e levaram as comidas onde o pai tinha falado e começaram a chamar

as pessoas que estavam morando na aldeia:– Pessoal, venham todos aqui fora para ver o que vou fazer conosco, com nossa terra e

com nosso mundo. Vou chamar o meu espírito que é o branco!

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Todo mundo que estava presente se preocupou:– Onde o branco vai descer?– Os brancos vão descer em outras terras, não

é aqui. Eles vão chegar aqui mais para frente, nós não vamos ver, quem vai ver serão os nossos netos, os filhos dos nossos filhos e os filhos dos filhos dos nossos filhos.

Foi assim que os brancos apareceram no Brasil, foi um grande pajé que chamou os brancos, só por causa daquele filhote de gavião que alguém pegou

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desenho de Matari Kaiabi

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Origem do fumo para o povo Kaiabi

Awasiu Kaiabi

Antigamente não tinha fumo para a sociedade Kaiabi. Naquela época existia um velho, grande pajé, que sonhava com um pé de fumo enorme no céu. Naquela época ancestral o pajé utilizava só o timbó e o cabelo de milho para curar. O pajé resolveu contar o sonho dele para a sociedade Kaiabi. Ele dizia que lá no céu tinha um pé de fumo muito grande.

Havia uma ave chamada Uru’i, ela veio do céu. Essa ave comeu semente de fumo lá do céu. Quando Uru’i veio do céu na época da chuva, deu um temporal muito forte. Depois que choveu, Uru’i cantou na beira do mato ao entardecer.

Só tinha um Uru’i cantando. O povo Kaiabi matou com flecha essa ave Uru’i enquanto ela estava cantando.

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O pessoal tirou o papo do Uru’i e jogou no lixo. Depois de algum tempo nasceu uma muda do fumo naquele local. O pajé ficou muito satisfeito quando viu a muda do fumo.

Antigamente ninguém usava fumo, somente o pajé que fumava. Naquela época ancestral o pajé falava para o povo Kaiabi:

– Vocês não podem fumar, senão o fumo vai levar vocês para o céu.

Os rapazes, as moças e as crianças não fumavam naquela época, todo mundo ficou com medo.

– O fumo só serve como remédio, para curar os pacientes – dizia o pajé.Só depois de muito tempo apareceu o seringueiro, quando o povo Kaiabi estava localizado

no rio Telles Pires, no estado do Mato Grosso. Foi aí que viram os seringueiros fumando e aprenderam a fumar com eles.

A partir daí o povo Kaiabi não utilizou mais o fumo somente como remédio, todo mundo começou a fumar. O fumo não apareceu de repente, Uru’i que trouxe do céu. Essa ave existe até hoje no Parque Indígena do Xingu. Atualmente algumas pessoas plantam fumo, a maioria das pessoas não planta mais.

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Origem da ariranha

Matari Kaiabi

Antigamente não existia ariranha, ela era gente. Havia uma mulher entre o povo Kaiabi que era casada, mas gostava de namorar o homem anta. O marido dela não sabia de nada. Essa mulher sempre fazia mingau e pamonha e levava no mato para seu namorado anta. Até que um

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dia o marido dela desconfiou e seguiu-a. Ele foi cuidadosamente, para a mulher não descobrir. Quando ela chegou no lugar onde sempre namorava a anta, gritou assim:

– Kawiã Kytaã kore... Kawiã Kytaã kore...O homem anta ouviu e veio correndo, tomou mingau, comeu pamonha e depois namorou

a mulher. O marido estava espiando quietinho e assim descobriu que sua mulher o traía. Quando chegou em casa, não disse nada. No dia seguinte ele fez as flechas arupat, takwat e pirapewasi. Ele fez três tipos de flecha e ficou só esperando a esposa sair outra vez. No dia seguinte a mulher preparou mingau e pamonha e levou novamente para o mato. Seu marido a seguiu com as flechas venenosas. Quando chegou no lugar de namorar, ela gritou:

– Kawiã Kytaã kore... Kawiã Kytaã kore...Logo a anta veio, comeu e bebeu o mingau. Quando começaram a namorar, o marido

esticou seu arco com toda a força e disparou a flecha contra o homem anta. Ao ver o namorado flechado, ela gritou desesperadamente, como uma ariranha:

– Não o mate! Não o mate!Caiu na água e transformou-se em ariranha. Até agora a ariranha grita como essa mulher

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Origem do carapanã

Tarupi Kaiabi

Era uma vez o Carapanã, que antigamente era gente. Ele queria se casar com uma moça linda do povo Kaiabi. O Carapanã foi pedir a mão da filha do homem às sete horas da noite, por isso o pai e a mãe da moça não o examinaram, achavam que era um rapaz bonito. Mas era feio, tinha perna fina, bunda fina e braço fino.

Desde que se casou com a moça, ele não amanhecia com ela na rede, de madrugada ele saía para pescar e voltava só às oito horas da noite.

O pai da moça perguntou para a filha:– Onde está seu marido, filha?– Ele foi pescar, pai.No dia seguinte ele perguntou de novo para a filha e ela respondeu a mesma coisa para o

seu pai.Todos os dias a filha respondia a mesma coisa para o pai, até que um dia ele resolveu ir

atrás do genro. Ele foi se aproximando devagar para ver o genro. Quando chegou bem perto começou a falar consigo mesmo:

– Nossa, eu deixei minha filha casar com um homem feio, como ele é feio! Por isso que ele nunca amanheceu na rede com a minha filha.

O pai da moça ficou lá conversando sozinho, de repente o genro olhou para o sogro e pulou na água, foi parar perto do chiqui (armadilha para pegar peixe). O sogro perguntou para ele:

– Você matou alguma coisa?– Eu matei bastante peixe, sogro.– Ah é, então pode trazer peixe?– Espere sogro, depois eu vou levar.

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– Está bem, eu vou indo embora na frente.– Pode ir, daqui a pouco eu vou.O homem chegou em casa e contou para a filha:– Filha, você se casou com um homem esquisito, nós precisamos queimá-lo, ele é um

bicho feio. A filha ficou sem palavras, não respondeu ao pai dela.O pai falou de novo:– Filha, amanhã você pega ele, segura, só para vermos o jeito dele, tá?Um pouco antes de amanhecer, ele queria descer da rede e a esposa segurou-o até o dia

clarear. Todo mundo se levantou, mas ele ficou na rede com vergonha do pessoal, até que ele desceu de sua rede. Todos os curiosos ficaram olhando para ele, que realmente era um bicho mesmo. O pai da moça pediu para o pessoal fazer uma fogueira bem grande e jogaram o bicho no fogo. Depois que o fogo apagou, o pai pediu para sua filha pegar água e molhar a cinza, mas ela não foi. Ela ficou triste, não queria ver a cinza do marido. O pai ficou com raiva, pegou o abanador e falou:

– Você vai enjoar da picada de Carapanã, filha.Ele abanou toda a cinza do homem e, à tarde, o Carapanã começou a picar as pessoas.

Antigamente, antes dessa história acontecer, não tinha Carapanã.

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A origem da menstruação para o povo Kaiabi

Jemy Kaiabi

A menstruação começou com o homem, mas como o homem tem pênis, é diferente da mulher, o sangue pingava e não combinou. O criador pensou em experimentar na mulher, convidando-as para visitar o rapaz que estava em reclusão. Logo que a mulher chegou lá começou a sangrar pela vagina.

Ao ver que na mulher a menstruação estava dando certo e não incomodava, o criador acabou com a menstruação no homem e passou para a mulher, porque combinou. Se a mulher não tivesse ido visitar o homem que estava em reclusão, nós teríamos menstruação todo mês igual a elas, ia ficar muito chato para nós homens.

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Lua, o rapaz que foi para o céu

Aturi Kaiabi

Eu vou contar a história do Lua e do seu pai.No começo dos tempos o sol era muito quente. Um dia o pai do Lua não estava agüentando

a quentura do sol. Então ele inventou de fazer uma peneira grande para colocar em cima da casa dele. Ele começou a fazer a peneira e o filho Lua perguntou:

– Pai, para que o senhor está fazendo essa peneira?– Estou fazendo a peneira para colocar em cima da nossa casa.– Pai, quando você terminar eu vou colocar a peneira lá em cima.– Você não vai levar, pode deixar que eu levarei a peneira.O pai e o filho ficaram discutindo entre eles. Todas as vezes que o filho ia ver o pai fazendo

peneira, ele pedia ao pai:– Deixe eu levar a peneira, pai.– Não, você não pode levar.– Eu vou levar.Até que o pai terminou a peneira e o filho insistiu, pedindo para o pai liberar a peneira para

ele levar lá em cima. O pai enjoou dos pedidos do filho:– Então leva, filho. Mas olhe, eu quero que você leve a peneira e deixe bem baixa. Não leve

lá em cima, está bem?– Está bem pai, pode deixar que eu vou deixar bem perto.O Lua pegou a peneira e começou a subir. Quando ele subiu numa altura de cinquenta

metros, o pai falou:– Aí está bom! Pode deixar aí mesmo.

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– Deixe eu levar mais um pouco, pai!– Está bem.O pai falou de novo:– Aí está bom, filho!– Não pai, eu vou levar mais um pouco.– Deixa aí mesmo, filho.– Não, eu vou levar mais um pouco.Então o pai começou a ficar nervoso com o filho. Ele falou para o filho deixar lá mesmo.– Eu vou levar mais um pouco, pai.– Então leve a peneira junto com você e fique

para sempre lá em cima.Por isto nós temos a lua no céu, que é esse

rapaz, que ficou lá em cima até hoje.

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O homem que foi transformado em veado

Sirawan Kaiabi

Vou contar a história de um homem que estava derrubando a roça. Ele saiu bem cedo para a roça. Chegou lá e sentou-se para amolar o machado, terminou de amolar e foi perto de uma grande árvore. O homem começou a cortar esta árvore.

De repente chegou um homem, que chamamos Maram‰’jangat, que transformava pessoas em bichos:

– Olá, o que você está fazendo?– Eu estou derrubando a minha roça.– Está bem, pode terminar de derrubar.O homem continuou a derrubar a árvore e Maram‰’jangat jogou um cisco de pau no olho

dele. O homem foi se transformando em veado, ficou mexendo os olhos e não estava enxergando direito, pediu para Maram‰’jangat ajudá-lo. Logo ele enfiou o dedo no olho, mas só piorou tudo, ficou ruim de enxergar, ele puxou a orelha e falou:

– O que você está fazendo comigo?– Não se preocupe, sua orelha já ficou grande.Depois que ele puxou a orelha, enfiou uma pedra na boca para

tirar todos os dentes, só deixou os da frente e de baixo, os de cima ele não tem. Também tirou três dedos, ficaram só dois. Puxou o pescoço, a cabeça, o rabo, a perna e o braço. Assim que homem da roça foi se transformando em veado. Por isso que o veado gosta da capoeira e da roça nova.

Depois Maram‰’jangat mandou-o embora e disse:– Você era a pessoa que estava derrubando roça, agora virou

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Ana†txïbï Itxïtxïbï

Tahurimã Yudja

Antigamente Ana†txïbï Itxïtxïbï casou-se com uma mulher Yudja. Ele trabalhava com os parentes da mulher dele, faziam casa, roça e canoa. Quando o sogro trabalhava, ele ajudava, fazia roça grande e dividia para os parentes de sua mulher.

Como a roça era muito grande, a família da mulher não conseguia plantar em todos os lugares que ele tinha dado. Ana†txïbï Itxïtxïbï conseguia plantar todos os seus alimentos e também era bom na flecha. A família da sua mulher gostava dele porque era um homem trabalhador. Ele tinha machado e foice, feitos com um tipo de metal. No tempo da roçada ele fazia a medida da roça só jogando a foice e ela roçava sozinha. Ele só precisava ir atrás dela e jogar novamente para cortar e roçar. Ele jogava o machado e este derrubava as árvores sozinho. Assim levava somente quatro dias para fazer o trabalho, dois dias na roçada e dois dias na derrubada.

Ana†txïbï Itxïtxïbï queria dar o machado e foice para nós. Os namorados da mulher dele falavam mal de Ana†txïbï Itxïtxïbï. Ele não gostou e por isso não deixou o machado dele para nós:

– Eu vou embora para o céu e não vou distribuir essas ferramentas para vocês. Continuem com as ferramentas de vocês mesmos.

Então foi embora e só deixou uma roça enorme com os alimentos para seu sogro, sua sogra e sua ex-mulher comerem.

desenho de Tarinu Yudja

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A canoa dada pelo espírito

Tahurimã Yudja

Um homem Yudja foi deixado pelo pessoal na aldeia junto com sua mulher, sem canoa. O pessoal dele tinha ido dançar em outra aldeia. Eles ficaram tristes, pensando como poderiam fazer para ir à festa. No dia seguinte ele saiu para procurar pau e fazer uma canoa. De repente, ele encontrou um espírito. O espírito perguntou:

– O que você está fazendo?– Estou procurando pau para fazer uma canoa.O espírito contou qual era o pau bom para fazer canoa, ele contou o nome do pau. Eles

derrubaram, cortaram e mediram. O espírito pediu para ele voltar lá no mês seguinte. O homem foi para casa e quando chegou sua esposa perguntou:

– E aí, meu marido, derrubou um pau?– Derrubei.– Que dia você volta lá?– Eu volto só no mês que vem.No outro mês ele voltou para pegar a canoa. Ela estava pronta e dentro havia remo e

banco. Ele voltou para casa e contou para a mulher. Os dois foram lá, desamarraram a canoa, puxaram e jogaram no rio. No outro dia eles foram atrás do pessoal. Quando chegaram na outra aldeia todo mundo ficou curioso para ver a sua canoa.

Naquele tempo os Yudja faziam canoa de qualquer jeito. Os Yudja viram a canoa desse homem, todos gostaram da canoa dele. Um parente dele pediu para ele ensinar como se faz canoa e qual a madeira usada. Então o dono da canoa levou o homem pra derrubar a madeira. Depois de derrubar o pau o homem pediu para o parente voltar só no mês seguinte. Esse parente acabou voltando logo e quando ele chegou, espantou o espírito que estava fazendo a canoa para

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ele. Os espíritos correram dele e deixaram a canoa sem terminar, porque ele voltou antes de um mês, conforme combinado com o homem que o levou para cortar pau para a canoa. Ele voltou para a aldeia e contou:

– Tinha gente lá no mato perto da canoa, eles correram.O outro homem respondeu:– Eu te avisei.Quando ele saiu, o espírito chegou nele e disse:– Não chegou ainda a hora de você ensinar o seu pessoal. Você tem que dizer ao seu

pessoal que tem que esperar um mês. Então agora vocês mesmos que irão derrubar o pau e fazer canoa sozinhos.

Assim o pessoal aprendeu a fazer canoa sozinho, sem a ajuda do espírito, por isso até hoje nós Yudja sabemos fazer canoa.

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Origem da pimenta

Yapariwa Yudja

O povo Yudja não conhecia a pimenta. Certo dia um homem foi na sua roça e viu muitos alimentos como banana, batata e mamão. Ele também viu as pimentas nos pés amadurecendo e gostou. Aproximou-se delas pensando e perguntou para si mesmo:

– Para que será que serve isto?E assim, de repente, o passarinho wititi respondeu:– Oi! O que você está falando? Não, não estou vendo esta planta.O passarinho começou a explicar sobre todos os alimentos que ele estava vendo. Quando

terminou de explicar, disse para os homens:– Daqui para frente, toda vez que vocês virem os passarinhos wititi comendo banana, não

podem reclamar.Ele falou isso porque o passarinho ajudou os seres humanos, explicou sobre os alimentos

da roça para o homem que não sabia. O homem Yudja voltou a perguntar sobre a pimenta:– E essa, para que serve?– Essa aí é uma mistura gostosa para a comida.O rapaz perguntou como se usava a pimenta e qual era o nome dela. Mas o passarinho

não contou nada. Ele apenas pediu para o rapaz tirar uma pimenta do pé e morder. E assim, depois de morder a pimenta o rapaz saiu doido dizendo:

– É pimenta, é pimenta!

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A origem do povo K†sêdjê

Tariwaki Kaiabi Suiá

Antigamente só existia um pequeno grupo de homens e nessa época ainda não existiam as mulheres. Um dia, um desses homens resolveu entrar no mato para caçar e encontrou uma onça com filhote. Ele matou a onça e pegou o filhote para criar. Com o tempo a onça cresceu e o homem resolveu fazer sexo com ela. Ele foi morar sozinho com ela, longe dos outros homens. Construiu uma aldeia e ficou lá, vivendo com a onça, que já considerava sua esposa. Com o tempo essa onça deu à luz uma criança, uma menina. Essa onça foi dando filhos a esse homem e acabou ensinando ao marido como utilizar o fogo.

Nessa época outro homem do grupo também saiu para o mato a fim de fazer borduna e arco. Isso aconteceu pouco tempo depois do outro amigo ir morar sozinho. Esse rapaz também teve a sorte de encontrar uma moça desconhecida, AjkÞnkwâj. AjkÞnkwâj, não aguentando mais fazer sexo com todos os homens, falou para o marido:

– Eu não aguento mais, vou morrer. Quando eu morrer, cada um de vocês pegará um pouco do meu sangue, embrulhará bem na folha de árvore e guardará.

Cada homem pegou um pouco do sangue de baixo do

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ventre quando ela morreu e fizeram como tinham combinado com ela. Depois de guardar o sangue, eles resolveram fazer uma caçada no mato. Durante o período da caçada os pacotes de sangue se transformaram em mulheres. Em cada casa havia uma mulher esperando por eles, fazendo os deveres de casa. Uma das mulheres não conseguiu se desamarrar porque o homem fez um nó muito duro. Ela só conseguiu se desamarrar na hora em que ele chegou. Ela preparou a comida atrasada, por isso existem pessoas preguiçosas. Casando entre eles, filhos de onça com filhos de AjkÞnkwâj, o grupo foi se multiplicando e assim se multiplicou o povo K†sêdjê.

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Origem dos alimentos

Kaomi Kaiabi

Há algum tempo atrás nosso povo não tinha variedades de alimentos, vivíamos comendo pouca comida. Havia uma senhora que tinha cada tipo de alimento na sua barriga e a sua família sempre pedia para ela tirar comida de lá. Assim ela tirava comida da barriga diariamente. Até que um dia ela não suportava mais e pediu para sua filha falar para o genro fazer uma roça bem grande. Depois da conversa das duas, a filha passou todas as explicações para o marido e assim foi decidido.

O genro fez uma roça conforme sua sogra pediu. Quando chegou o dia da queimada, a filha pintou a mãe e foram para o meio da roça. Aquela senhora ficou lá cantando, enquanto o genro ia tocando fogo por todo lado. A filha teve pena da mãe e ficou muito triste, chorando. O fogo vinha com muita violência e queimou a mulher, até que ela explodiu. Após a explosão nasceram todos os alimentos que existiam dentro dela. Depois desse acontecimento todo mundo ia lá na roça e colhia. Os alimentos não paravam de nascer no mesmo lugar de onde haviam sido tirados. Eles colhiam e logo no dia seguinte nascia outro. Isso durou muito tempo.

Um dia uma mulher que estava desanimada e com muita preguiça foi na roça. Enquanto ela estava colhendo milho, a palha machucou sua mão, então ela reclamou:

– Acabe de uma vez e não nasça nunca mais.Foi assim que chegou o fim da produção que nascia sozinha no mesmo lugar.A filha imaginou:– Eu acho que alguém fez alguma reclamação, é por isso que os alimentos não nasceram

mais sozinhos.E é por isso que precisamos plantar a roça hoje em dia.

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Teptiritxi

Tempty Suiá

Teptiritxi estava dançando com seu companheiro. Enquanto todos dançavam, a esposa dele estava em casa com a sogra.

À meia-noite, os asájê (que significa velhos, na língua K†sêdjê) mandaram os rapazes trazerem a esposa de Teptiritxi para a casa dos homens, para poderem transar com ela. Ela não quis ir. Os rapazes voltaram e os asájê perguntaram:

– Onde está a mulher?– Ela não quis vir.Um dos asájê falou:– Vocês estão brincando, vão chamá-la de novo.Os rapazes voltaram para chamá-la, mas ela já tinha saído para a casa da mãe dela. Eles

perguntaram para a sogra:– Sua nora está aí?– Sim, ela está.Eles procuraram, mas não a encontraram.Os asájê ficaram bravos quando souberam que ela foi para outra casa, assim fizeram o

marido dela se transformar em veado. A máscara pô grudou toda nas costas, nos cabelos e na cabeça dele. A mulher foi pedir para o marido ficar junto dela:

– Venha ficar comigo, talvez aconteça alguma coisa com você.Teptiritxi separou-se de seu companheiro e foi dançar com a esposa. Depois que eles

dançaram muito, sentiram calor. Ele falou:– Vamos descansar.A mulher retirou sua máscara, mas ele não conseguiu tirar a dele, já tinha grudado na pele,

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no cabelo e na cabeça. Ele chamou a atenção da mulher:– Você está vendo, você não podia ter feito isso. Eu vou embora.Quando estava amanhecendo os mbôkájê gritaram para ele parar. Ao nascer do sol ele

falou para seu pai, sua mãe, seu irmão e sua irmã:– Não me cerquem, deixem-me ir embora.Assim ele partiu. Seu pai e sua mãe deixaram comida no caminho, mas ele não comeu,

já tinha se transformado em veado, só comia folhas. Ele foi caminhando até encontrar um lago muito grande e ficou na beira. Os bichos atravessaram o lago até a ilha onde todos os bichos se juntaram e dançaram com ele. Nesse lugar o pessoal da aldeia ia toda noite para ouvir e aprender todas as músicas. Depois que Teptiritxi se transformou em veado, os bichos levaram-no para o céu.

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Origem do nome

Yaconhongrátxi Suiá

Há muito tempo atrás, na minha sociedade K†sêdjê, não existiam os nomes das pessoas. Moças e rapazes eram chamados de Wakme e AjtÞk por seus pais. Os K†sêdje moravam perto de outro povo chamado KupÞkrõtxi, que morava no buraco e matava regularmente os K†sêdje. Um dia os K†sêdje resolveram matar os KupÞkrõtxi, mas não conseguiram. Eles acabaram com esse povo com a fumaça, acenderam fogo e foram abanando para dentro do buraco, que acabou sufocando os KupÞkrõtxi. Um menino KupÞkrõtxi foi colocado dentro de uma panela de barro por sua mãe e só ele conseguiu escapar da fumaça.

Ao entardecer uma pessoa entrou no buraco e viu muitos KupÞkrõtxi mortos. Ao ver a panela de barro, levantou a tampa e encontrou o menino, levando-o para a aldeia. Esse menino sempre brincava com seus colegas atrás da casa. Ele levou seus amigos para longe da casa e deu nome para eles. Ao entrarem em suas casas, os meninos contaram seus nomes para os pais.

O menino foi levado para o centro da aldeia e deu nome para cada pessoa. Esse menino KupÞkrõtxi deu nome para os K†sêdje, por isso usamos os nomes que temos até hoje.

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Origem do dia e da noite para o povo K†sêdjê

Nhokretxi Mehinaku Suiá

Antigamente Mbyt e Mbytyrwâ (Sol e Lua) eram gente. Eles são muito importantes para o povo K†sêdjê. Os velhos contam que naquele tempo o dono do dia e da noite era o urubu de duas cabeças.

Um dia Mbyt e Mbytyrwâ resolveram fazer uma anta para enganar o Urubu de duas cabeças que mora no céu. Eles chamaram a mosca. Ela chegou e perguntou para os dois:

– Por que vocês me chamaram?– Nós chamamos você para convidar o

Urubu-rei de duas cabeças, que mora no céu, para ele vir comer carne de anta morta.

A mosca foi ao céu e convidou o Urubu-rei. Ele desceu do céu para comer carne de anta morta. Ele ficou longe da anta porque já sabia que Mbyt e Mbytyrwâ iam fazer alguma coisa ruim com ele. O Urubu-rei pediu para três pajés fumarem para ver se alguém não estava dentro da anta morta. Mbyt e Mbytyrwâ estavam escondidos dentro da unha da anta. Mbyt estava na unha direita e seu irmão Mbytyrwâ estava na unha esquerda.

O pajé Hwêkã fumou e não descobriu os dois. O pajé Mitygy também não descobriu. O Urubu-rei mandou ainda o pajé que se chamava Wákrã fumar. Ele fumou e morreu um pouquinho. Levantou e logo disse para o Urubu-rei:

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– Oh, Urubu-rei! Tem gente aqui dentro.Enquanto o pajé Wákrã estava contando para o Urubu-rei, Mbyt e Mbytyrwâ saíram da

unha da anta e seguraram o Urubu. O Urubu-rei disse:– Não façam isso comigo, meus netos, o que vocês querem fazer comigo?Mbyt e Mbytyrwâ perguntaram:– Onde estão seus cocares para fazer o dia e a noite aparecerem?– Por que vocês querem saber?– Nós precisamos muito de seus cocares. Será que você pode dá-los para nós?O Urubu-rei perguntou:– Será que vocês conseguem agüentar a claridade?– É claro que nós aguentaremos. Por isso que nós fizemos essa anta para você.O Urubu-rei pensou e tirou primeiro um cocar feito de penas de jaburu e deu para Mbytyrwâ

(Lua). Ele tirou outro cocar de pena de arara vermelha e deu para Mbyt (Sol). Depois ele disse:– Agora vocês não podem fazer coisas ruins com nossos netos e não podem reclamar

também. Vocês podem fazer alguma coisa ruim só de vez em quando. Foi assim que surgiu o dia e a noite para o mundo.

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A origem do fogo

Krekreasã Panara

Meu povo antigo não tinha fogo, sofria comendo carne crua. Por isso meu povo foi procurar o fogo.

Quando essas pessoas foram visitar o Urubu que o nosso pessoal descobriu o fogo. O Urubu era dono do fogo.

Quando o Urubu foi bater timbó na lagoa, ele falou para o pessoal que foi visitá-lo na aldeia:

– Cuidado com o fogo!– Não se preocupem porque nós vamos tomar

cuidado.Quando ele entrou na lagoa para bater timbó, o

pessoal que ficou tomando conta apagou o fogo do Urubu. Mais tarde, quando o Urubu chegou da lagoa para assar os peixes, não tinha mais fogo. Então ele começou a perguntar para as pessoas que estavam na casa, mas essas pessoas esconderam o fogo na garganta delas.

Havia um rapaz que corria muito. De repente, ele começou a correr e o Urubu correu atrás dele para pegar o fogo, mas não conseguiu alcançá-lo. Então o Urubu disse para o rapaz:

– Você pode levar o fogo, nós ficaremos sem fogo. Assim nós vamos comer só carne podre.

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Histórias de guerra

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Os dois meninos Ajanga remiara ‘yret

Aturi Kaiabi

Dois meninos viveram muitos anos querendo saber o paradeiro de seu pai. A avó deles nunca contou que o pai fora morto por um gigante chamado Ajang. Ela tinha medo que eles perdessem a guerra contra o Ajang também. Para enganá-los a avó contava que o pai deles tinha sido morto num acidente com os insetos como a formiga, o marimbondo, a aranha, o formigão, o piolho de cobra e também por causa de cobra.

De tanto ouvir que o pai havia morrido num acidente provocado pelos insetos, os meninos andavam matando qualquer bichinho que encontravam pelo mato.

Um dia esses meninos, já rapazes, foram bater timbó junto com o pessoal da aldeia. Chegando no local da pescaria começaram a matar os peixinhos. Quando terminaram de matar os peixes eles tiraram cipó para fazer uma fieira de peixes. Enquanto tiravam cipó estavam bem escondidos, fora do caminho. Os donos do timbó pensavam que eles já tinham ido para a aldeia, mas eles estavam lá mesmo, ouvindo a conversa. Um homem falou com o outro:

– Você matou muitos peixinhos?– Não, os filhos do homem que foi

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assassinado pelo gigante mataram todos os peixes.

Os meninos estavam ouvindo o que aquelas pessoas estavam dizendo. O irmão mais novo perguntou para o mais velho:

– O que eles estão falando?– Eles estão falando que nós somos filhos

do homem que foi assassinado e que quem matou o nosso pai foi um homem gigante.

– Por que a vovó fala para nós que nosso pai sofreu um acidente com os insetos?

Os rapazes choraram, lembrando de seu pai. Quando acabaram de chorar, ficaram com raiva e foram embora. Chegando em casa o rapaz pegou o pilão e colocou em cima do ombro, dizendo para a avó:

– Assim que eu vou lutar com o homem gigante, vovó.

– Coitados dos meus netos! Quem disse para vocês que seu pai foi morto pelo homem gigante? Coitadinhos dos meus netos! Vocês são ainda muito pequenos, o seu pai que era grande não conseguiu ganhar a guerra contra o homem gigante.

O menino disse para a avó:– Você mentiu para nós, você disse que nosso pai sofreu um acidente, que foi picado

pelos insetos. Agora nós vamos lá matar o homem gigante. O meu pai perdeu a guerra contra

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este homem porque não sabia guerrear contra ele. Eu vou ganhar a guerra, eu quero vingar a morte de meu pai.

A avó não queria que eles fossem, mas ela viu que os dois não iriam obedecê-la, então começou a aconselhar os netos:

– No caminho por onde vocês vão passar tem um sapo bem grande que pode jogar veneno e a pessoa morre envenenada. Perto de onde está o sapo a gente escuta as abelhas fazendo barulho. Não andem pelo caminho. É preciso ir escondidos, pelo mato, com muito cuidado. O sapo está sempre de costas para o caminho e virado de frente para fora do caminho. Vocês devem ir pela frente do sapo, só assim conseguirão matá-lo. Quando vocês chegarem lá na aldeia do homem gigante, logo na chegada, tem um buraco bem grande. No fundo desse buraco tem pauzinhos afiados. Estes pauzinhos matam as pessoas que caem no buraco. Quando vocês chegarem na aldeia desse homem podem gritar e ele virá. Assim que ele vier, vocês têm que reparar nos braços dele. Dizem que ele tem um braço gordo que é mais fraco, e outro braço que é fininho, mas tem muita força. Na hora que ele chegar perto, vocês devem pegá-lo pelo braço gordo. Assim vão ganhar a guerra.

Os rapazes acabaram de escutar a avó, seguindo todos os seus conselhos e orientações.Depois de prepararem tudo para a viagem os dois irmãos começaram a caminhar. Quando

chegaram no lugar do sapo venenoso, andaram com muito cuidado. Eles foram se aproximando do sapo, até que o viram. O sapo estava de costas para o caminho. Eles fizeram uma volta para ficarem bem pertinho do sapo e começaram a flechá-lo. O sapo jogava veneno apenas no caminho, que era por onde as pessoas se aproximavam dele. Foi assim que eles conseguiram matar o sapo.

Depois de matar o sapo, os dois abraçaram-se e choraram, lembrando do pai. Seguiram pelo caminho, andando dois dias até chegar na aldeia do

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homem gigante. Próximo da aldeia eles viram um buraco bem grande. O irmão mais velho falou para o mais novo se esconder no mato e começou a gritar:

– Sajuetyetyga ‘eje enee kiã jangupianga iwera koooooo!O homem respondeu:– Ooooo...Logo o homem apareceu andando pelo caminho. Era um homem bem grande, alto, forte,

de pênis e escrotos grandes. Quando o homem chegou perto deles perguntou:– O que vocês querem, coitadinhos? Vocês são tão pequenos. O pai de vocês que era

grande, forte e valente não conseguiu escapar de mim!O rapaz pegou no braço esquerdo do homem gigante, que era o mais fraco e começou a

dançar com ele, cantando assim:– Kokaty ekwap jejywa’i’i katy ejo ejo.O homem gigante cantava dizendo para o rapaz que ele devia passar para o outro lado, o

lado do braço pequeno. O rapaz falou para o homem gigante que não ia mudar de lado, ia ficar do mesmo lado. Ele ficou rodando em volta do buraco segurando o braço mais fraco do homem gigante até ele se cansar. O rapaz aproveitou para levá-lo mais perto do buraco com pauzinhos afiados. Quando estavam bem na beira do buraco ele aproveitou e empurrou o homem gigante lá dentro. Assim que o gigante caiu, o rapaz aproximou-se do irmão mais novo, abraçaram-se e choraram. Depois que acabaram de chorar, o irmão mais velho gritou novamente, chamando a esposa do homem gigante:

– Sa juety etyk a’ eje ewe kia jongupianga iwera koooooo.

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A mulher respondeu:– Ooooooo...A mulher apareceu andando pelo mesmo caminho que o marido veio. Era uma mulher bem

grande, alta, forte e seus lábios vaginais eram bem grandes, arrastando no chão. Ela aproximou-se do rapaz e perguntou:

– O que você quer, menino? Coitadinho! Você é tão pequeno, o seu pai que era grande, forte e valente, não conseguiu escapar de nós.

O rapaz pegou o braço esquerdo da mulher e começou a cantar, batendo os pés e rodeando o buraco. O canto era assim:

– Kokoty ekurap jejywa’i’i katy ejo ejo.A mulher cantava uma música mandando o rapaz pegar o braço mais fino dela. O rapaz

dizia para a mulher que ia segurar o braço esquerdo mesmo. Ele ficou rodeando o buraco como havia feito com o marido dela. A mulher começou a ficar cansada e o rapaz aproveitou para levá-la próxima ao buraco. Quando chegaram bem perto do buraco, ele aproveitou e empurrou-a para dentro. Ela caiu furando todo o corpo.

Depois que ele derrubou a mulher no buraco, gritou duas vezes, para ver se apareciam mais gigantes, mas ninguém gritou mais respondendo o seu grito. O rapaz disse para o irmão:

– Vamos ver se tem mais gente? E foram pelo caminho que era bem

grande, aberto e reto. Eles andaram somente na beira do caminho. Quando estavam quase chegando na aldeia dos gigantes, viram uma pessoa caindo do teto da casa e correndo no mato. Os dois entraram na casa e viram uma criança presa no chiqueiro. Tiraram o menino dali e o levaram até a beira do rio para banhá-lo. O menino estava todo sujo de merda. O rapaz perguntou

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para o menino se tinha mais homens gigantes, ele respondeu que não. Eles perguntaram também sobre a pessoa que caiu do teto da casa e ele respondeu que não sabia quem era.

Depois de verem tudo que havia dentro da casa e na aldeia dos gigantes, os dois cortaram taquara para fazer flauta e tocar quando regressassem à aldeia deles. Quando estavam chegando perto da aldeia, começaram tocar a flauta de taquara para avisar o pessoal de casa que eles ganharam a guerra contra o homem gigante. O pessoal da casa ouviu os gritos dos rapazes e a avó deles pediu para os Mait (espíritos) ficarem em silêncio porque os guerreiros estavam chegando. Os Mait não gostaram, perguntaram para um outro Mait o que a mulher tinha falado para eles. O outro Mait respondeu que ela tinha falado para eles ficarem em silêncio, pois eles eram muito barulhentos. Eles não gostaram da chamada de atenção da mulher e resolveram sair à procura de uma terra bem distante daquela.

Primeiro eles entraram no caminho das formigas gigantes no fundo na terra. Os Mait conseguiram chegar numa outra terra, embaixo desta. Eles chegaram primeiro numa terra fértil, boa para plantar. Depois de ver toda a terra eles foram ver o rio, mas o rio era muito poluído de sangue, cabelos e ossos. Não dava para morar neste lugar. Eles voltaram para esta terra novamente e contaram para o pessoal da aldeia o que viram e que não dava para morar na terra situada embaixo desta, porque o rio era muito poluído.

Os Mait resolveram subir até o céu a procura de uma terra melhor para viver. Lá eles viram uma terra boa com muita mata e o rio clarinho, bom para beber. Os Mait gostaram tanto da terra que eles descobriram no céu, que voltaram alegres e contentes.

Quando chegaram nesta terra começaram a se preparar para fazer a mudança para o céu. Eles balançaram a casa para tirá-la do lugar. Quando conseguiram soltá-la, subiram em direção ao céu. Chegando

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lá perceberam que as mulheres Kaiabi tinham ido com eles. Eles pegaram as mulheres, bateram nas mãos delas e as jogaram para baixo. Elas caíram na terra, transformando-se em sapos que chamamos de “ju’ipopep”.

Ao mesmo tempo os Mait queriam derrubar uma árvore sagrada que tem lá no céu. Os homens começaram a cortá-la. Quando estava estalando para cair, um homem que é Mait também e que já morava lá no céu perguntou:

– Vocês vão derrubar a árvore?– Nós vamos derrubar para acabar com o pessoal lá de baixo.– Está bem, então eu vou embora.Quando ele foi embora o sol logo escureceu. O pessoal que

estava cortando a árvore decidiu ir para casa e derrubar a árvore no dia seguinte. Quando eles foram embora o Mait voltou e trouxe pedaços de madeira para colocar dentro da árvore e transformá-la novamente do jeitinho que estava, como se os outros Mait não tivessem rachado árvore. No dia seguinte os homens foram lá de novo, mas a árvore já tinha se regenerado. Eles tentaram cortar outra vez, mas a madeira foi se transformando em árvore mais forte e resistente. Então eles desistiram e foram embora para casa.

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Petxitxi Porên

História narrada por Kôkômba Suiá, escrita e ilustrada por Kaomi Kaiabi

Um homem chamado Porên foi namorar com Tágrárá, esposa de Petxitxi. A sogra e as cunhadas ficaram zangadas e brigaram com ela.

Petxitxi estava na casa dos homens. Quando ele entrou na casa dela viu a esposa chorando e perguntou:

– Por que você está chorando?A esposa contou que a família dele tinha brigado com ela. Ao entardecer ele perguntou à

mãe:– Por que vocês brigaram com ela?A mãe contou a

história, mas ele só ouviu, não falou nada. Mais tarde ele disse para a esposa:

– Prepare alguns alimentos porque nós vamos visitar seus pais.

À noite ele foi no centro da aldeia e avisou o pessoal que no dia seguinte ele estaria saindo para outra aldeia da esposa. De manhã eles se foram.

À tarde chegaram

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no acampamento onde o pessoal costumava dormir quando ia para aquela aldeia. Petxitxi colheu jenipapo. A esposa mastigou o jenipapo e pintou o marido. Eles pernoitaram ali e de manhã cedo continuaram a viagem.

À tarde eles pararam próximos da aldeia e esperaram anoitecer. Quando anoiteceu, eles entraram na aldeia Mesándjê, andando de porta em porta, escutando as vozes das pessoas. Quando chegaram na última casa Tágrárá reconheceu a voz de sua mãe, que estava contando uma história para a família. Ela chamou:

– Mãe, ô mãe!A irmã falou:– Mãe, alguém está chamando você.– Quem poderia estar me chamando, será que é a minha filha que ficou com saudade e

veio me visitar?Ela saiu, viu a filha e começou a chorar. Logo a filha disse:– Fique quieta que eu vou entrar com seu genro.Pôren, um rapaz da aldeia dos Mesándjê, viu Tágrárá e Petxitxi entrarem na casa e foi

falando alto:– Chegou pessoal, chegou pessoal!Foi contando para todo mundo. Os Mesándjê falaram:– Contem para o nosso cacique Wêtmbytxi.Wêtmbytxi e o pessoal perguntaram sobre Petxitxi:– Ele é grande e forte?

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Pôren respondeu:– Ele é enorme!O pessoal sempre chamava Petxitxi para ao centro da aldeia, mas ele não queria ir porque

sabia que os Mesándjê queriam matá-lo para comer. A mulher dele estava chorando. Petxitxi estava deitado com a esposa e perguntou:

– Por que você está chorando?– O pessoal vai matar você.– Deixe o pessoal me matar.O pessoal pediu para o cacique Wêtmbytxi chamar Petxitxi. Ele falou:– Deixe para amanhã.No dia seguinte Porên foi chamar Petxitxi:– O pessoal está chamando você.– Daqui a pouco irei.

No mesmo instante ele foi para a casa dos homens. Wêtmbytxi e o pessoal estavam esperando lá. O cacique ficou imaginando quem seria essa pessoa. Quando Petxitxi saiu da casa o cacique Wêtmbytxi afastou a palha da parede e reconheceu seu irmão chegando.

– Eu sabia que era você que estava chegando. Se eu não pensasse bem, durante a noite eu teria feito alguma coisa errada com você.

Quando Petixtxi entrou, Wêtmbytxi ao invés de pedir para ele sentar-se à sua frente, pediu para sentar ao seu lado. Os Mesándjê falaram baixinho:

– O que será que vai acontecer?Wêtmbytxi falou para o pessoal:

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– Podem sair, podem sair, é o meu irmão que chegou.Todos saíram e um dos homens comentou:– Vocês vão se arrepender por ciúmes de suas esposas.Wêtmbytxi falou para Petxitxi:– Se você fosse outro eu ia matá-lo para o pessoal comer, mas como somos irmãos, eu não

posso fazer nada com você.Depois de conversar, Wêtmbytxi perguntou:– Você comeu alguma coisa?– Não comi nada.– Vamos na casa de nossa família para comer alguma coisa.E saíram juntos. Depois de comer, Wêtmbytxi convidou o irmão para banhar no córrego.

Depois do banho eles voltaram para a aldeia. À noite Petxitxi avisou Wêtmbytxi que iria voltar para a aldeia dos K†sêdjê. Petxitxi e sua esposa voltariam juntos. Wêtmbytxi disse:

– O pessoal está fazendo festa, o que você acha de participar?

– Então eu vou buscar os enfeites do meu filho.No dia seguinte ele foi e sua esposa ficou. Tágrárá

ficou namorando com Porên. Quando Petxitxi voltou da aldeia dos Kisêdjê o seu filho contou:

– Pai, a mãe foi na roça com alguém buscar batata, olhe o machado dele ali.

Petxitxi pegou o machado de Porên e colocou em cima do telhado. Porên e Tágrárá chegaram da roça e foram banhar. O menino foi encontrar a mãe e contar que seu pai tinha chegado.

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Tágrárá disse:– Qual pai? Você não tem pai certo.Porên correu para pegar seu machado de pedra. O machado estava no alto, ele ficou

pulando até conseguir tirar. Ele foi até a porta e disse para Petxitxi:– Droga! Você está se achando muito valente!Tágrárá ao invés de entrar na casa, ficou do lado de fora. Quando ela entrou os dois não

conversaram. À tarde Petxitxi foi na casa do irmão. Wêtmbytxi e falou:– Eu estou muito bravo.Petxitxi sabia do que se tratava. Wêtmbytxi falou:– Vamos matar quem está namorando sua mulher, enganando você.– Vamos, vamos matá-lo.Já estava escurecendo quando os dois pediram para o pessoal reservar a roupa Pô para

eles dançarem. Eles viram Porên e então resolveram de que lado iriam circular na dança para encontrarem com ele. Quando chegaram perto dele, agarraram sua roupa. Porên disse:

– Não façam isso, não sejam crianças, nós somos adultos.Os dois agarraram Porên e fecharam sua boca. Wêtmbytxi disse:– Bata você primeiro, desconte o que ele está fazendo com você, depois eu vou bater.Assim eles mataram Porên. O pessoal viu e contou para todo mundo. Os Mesándjê

carregaram o morto até onde eles tratavam gente para comer. Os Mesándjê comeram Porên. Petxitxi falou para Wêtmbytxi:

– Você está interessado em morar com os Mesándjê?– Por que?– Eu queria combinar uma coisa.– O que é?– Vamos matar esse pessoal.

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Wêtmbytxi concordou com a idéia de Petxitxi e disse:– A sua esposa deixou você como se fosse qualquer pessoa, desprezando você.Os Mesándjê resolveram procurar um lugar para fazer aldeia nova. Wêtmbytxi perguntou

para Petxitxi:

– Quando você vem atrás de mim?– Daqui um mês, assim que nascer a próxima lua.Wêtmbytxi disse:– Eu vou na frente com a nossa família, você vem me procurando.Petxitxi voltou para a aldeia dos K†sêdjê. Ficou lá se preparando, fazendo flechas, até

chegar o dia que ele tinha marcado para voltar na aldeia dos Mesándjê. Antes de sair ele avisou o pessoal que ia atrás da esposa para ver se ela aceitava voltar com ele. Ele avisou que ia matar os Mesándjê e que Wêtmbytxi iria ajudá-lo nessa guerra.

Jamtô, filho de Petxitxi e Tágrárá, vivia procurando seu pai. Ele tirava flores de algodão, colocava no caminho para pegar borboletas com uma peneira e cantava para as borboletas juntarem. O passarinho cantava e Jamtô dizia:

– Meu pai Petxitxi deve estar chegando com alimento. Eu estou sozinho, com fome.

No dia seguinte os K†sêdjê saíram e pernoitaram no acampamento. No outro dia continuaram a caminhar e chegaram na aldeia onde Jamtô estava pegando borboletas. Quando o menino viu seu pai foi correndo contar para os avós. O avô saiu da casa e foi acenando para o pessoal parar. Eles conversaram, se aproximaram e entraram na casa. Petxitxi disse para a sogra:

– Estou indo atrás de sua filha para ver se ela

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concorda em voltar comigo.Os pais de Tágrárá disseram:– Pode ir, mas se ela não aceitar, deixe ela em paz.No dia seguinte bem cedinho, eles foram atrás dos Mesándjê. Eles caminharam vários dias,

pernoitando em acampamentos, até que encontraram um braseiro novo. Os K†sêdjê acamparam perto dos Mesándjê. Antes do sol nascer Wêtmbytxi levou sua família na frente, a fim de protegê-la e voltou para encontrar com Petxitxi e seu pessoal. O grupo de Petxitxi se adiantou e passou na frente, sem que os Mesándjê percebessem. O grupo de Wêtmbytxi retornou e colocou-se atrás dos Mesándjê. Eles nem perceberam a emboscada. Petxitxi estava esperando sua esposa passar com os Mesándjê. Ela vinha com o pessoal e seu namorado. Um homem, brincando com ela, perguntou:

– Coitada, você está com saudade do Petxitxi?– Que nada, nem estou com saudade dele.Petxitxi quebrou um galho para que sua esposa

o visse. Tágrárá olhou e disse:– Estou aguardando você ainda.Ela mostrou seu corpo para que ele se

acalmasse. Petxitxi se aprontou para flechar. Ele e seu pessoal deram gritos de guerra. Petxitxi ficou com tanta raiva que atirou uma flecha em Tágrárá e matou-a. Os Mesándjê foram atacados por todos os lados.

Quando a briga acabou, Petxitxi e Wêtmbytxi conversaram:– Talvez nós nunca mais nos vejamos.– Essa é a última vez que nos encontramos.

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Eles partiram para longe um do outro. Petxitxi retornou até a casa do sogro. A sogra perguntou:

– Cadê a sua esposa?– Tentei fazer com que sua filha voltasse a viver comigo, mas ela não se comportou.A mãe dela disse:– Deixe-a assim mesmo, ela está sendo boba.Petxitxi pediu à sua sogra para levar Jamtô. Ela entregou o neto.O pessoal queria matar os dois velhos, mas Petxitxi disse:– Deixem minha sogra e meu sogro irem embora, a saudade e a tristeza irão matá-los.

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O primeiro contato do povo Enumania com o branco

História narrada por Akatua Aweti, escrita e ilustrada por Awajatu Aweti

Antes do contato com Karl von den Steinen e Orlando Villas-Bôas os brancos surgiram na terra do povo Enumania.*

Antigamente o povo Enumania estava indo pescar na lagoa que nós chamamos Mototat, que significa “que dá coceira”. Quando eles chegaram no campo os homens da turma do Paulo viram os Enumania passando por lá. Porém, os Enumania não viram os brancos porque eles se esconderam na mata cerrada. Os brancos quiseram matar os Enumania, mas o capitão deles não permitiu. Eles tinham medo das armadilhas que os índios estavam carregando, os brancos acharam que as armadilhas de pesca eram armas de fogo.

Os Enumania continuaram a andar pelo caminho para a lagoa Mototat. Eles pescaram e voltaram para a aldeia. No caminho de volta passaram pela beira de uma lagoa chamada Iawalapyna e encontraram o lixo de comida deixado pelos brancos. Um dos índios falou para o outro:

– Pessoal, esse é o lixo da comida dos

* Enumania é um dos povos de língua tupi que possivelmente chegou à região das cabeceiras do rio Xingu no século XVIII e se aliou aos Aweti, no contexto de conflitos e apaziguamento das relações entre os povos de diferentes línguas que formaram o complexo cultural alto-xinguano. Descendentes dos Enumania vivem entre os Aweti atuais.

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brancos, eles apareceram por aqui.Os Enumania continuaram a caminhada para a aldeia e antes de chegarem lá começaram

a gritar, avisando que alguma coisa tinha acontecido. Os pescadores trouxeram peixes, levaram para o centro da aldeia para todos comerem. Então eles conversaram sobre os acontecimentos. Uma pessoa perguntou:

– Por que vocês vieram gritando?Alguém respondeu:– Nós encontramos o lixo da comida dos brancos lá na beira do Iawalapyna.– Para onde eles foram?– Para a beira do campo.No dia seguinte o povo Enumania foi atrás dos brancos. Eles saíram da aldeia de

madrugada, foram caminhando até a beira do rio Kurisevo. Pegaram a canoa e desceram remando até alcançar Ararawyry. Eles estavam esperando amanhecer. Quando amanheceu ouviram toc, toc, toc. Um deles perguntou:

– Vocês escutaram um barulho?– Eu escutei – cada um respondeu.Então eles seguiram pelo córrego e

encostaram a canoa no fim do córrego. De lá foram caminhando na direção do barulho e chegaram onde os brancos estavam tirando mel. Os Enumania cercaram os brancos, começaram a gritar e correram para pegá-los. Dois homens estavam embaixo da árvore, três estavam em cima dela. Quando os índios correram, dois brancos fugiram para dentro da mata.

Os índios falaram para os três brancos que estavam em cima da árvore descerem. Um deles desceu e os Enumania o pegaram. A mesma coisa aconteceu com o segundo homem que desceu. Paulo ficou em cima da árvore com medo dos índios. Um dos índios falou:

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– Desça daí, branco!Paulo respondeu através de sinais com a mão, pedindo para os índios não o matarem.– Pode descer, branco, nós não vamos matar você.– Eu sou capitão, vocês não podem me matar – explicou o Paulo.Depois que Paulo pulou para o chão, o índio o pegou. Eles levaram os três brancos para o

acampamento, arrumaram as coisas que levariam para a aldeia. Acharam no acampamento três armas de fogo, redes, alimentos, facões, facas, machados, linhas de pesca, anzóis, limas e outras coisas. Levaram tudo para a canoa. Os três homens capturados foram carregados nos ombros pelos Enumania.

Eles subiram o rio de volta para a aldeia. Alcançando o porto, seguiram caminhando pelo mato. Quando chegaram perto da aldeia gritaram para avisar o pessoal de lá que estavam trazendo os brancos. O cacique perguntou para as pessoas:

– Pessoal, como nós vamos fazer com os brancos?Um deles, chamado Mohory, disse:– Eu vou criá-los como meus filhos.Paulo falou para o cacique:– Eu sou o capitão, meu nome é Paulo.O cacique perguntou:– É mesmo? O senhor é capitão?Os três foram levados para a casa de Mohory. Lá desamarraram as pernas de Paulo

porque ele disse para o cacique que era capitão, os outros dois brancos continuaram amarrados nas pernas e nas mãos. Depois de alguns dias eles foram desamarrados e ficaram morando junto dos Enumania. Viveram durante um ano na aldeia. Os dois brancos quiseram matar os índios. Então Paulo avisou para Mohory:

– Olha pai, eles estão querendo matar vocês.Mohory foi avisar o pessoal no centro da aldeia:

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– Pessoal, os dois brancos estão querendo nos matar.– Quem disse?– O meu filho de criação que contou para mim, por isso que eu vim avisar vocês.No dia seguinte os Enumania resolveram matar os dois homens. Eles inventaram de

fazer uma casa, só para disfarçar. Convidaram os dois brancos para buscar a palha do telhado lá na mata, bem longe os dois foram mortos. Depois voltaram para a aldeia. Somente Paulo ficou morando com eles, até que se acostumou a viver lá, aprendeu o idioma dos Enumania e os índios resolveram casá-lo. Ele casou com uma moça da aldeia e engravidou-a. Nasceram gêmeos e a mãe das crianças morreu. Paulo ficou viúvo. Os parentes dela enterraram os bebês gêmeos que mataram sua mãe. Um ano depois desses acontecimentos Paulo resolveu ir embora para sua cidade, que era Cuiabá. Ele despediu-se das pessoas e de seu pai Mohory Enumania, perguntando para a comunidade que presentes ele poderia trazer, caso ele voltasse. Os índios pediram várias coisas para ele, como pagamento aos parentes da esposa que faleceu.

No dia seguinte Paulo subiu o rio Kurisevo de canoa. Ele pediu para alguns índios o acompanharem, mas ninguém estava disposto a ir com ele. Todos tinham medo dos brancos e de alguma coisa que pudesse ocorrer durante a viagem pelo rio. Eles não foram para a cidade com Paulo.

Paulo viajou sozinho e ficou um tempo morando na cidade. Depois retornou para a aldeia e trouxe um monte de coisas para os índios: facões, facas, anzóis, linhas de pesca, espelhos, machados, limas etc. Quando chegou na aldeia todo mundo foi buscar as coisas na beira do rio. Ele pediu para seu pai levar os objetos que ele trouxe para o centro da aldeia. Mohory pediu para a comunidade ajudá-lo a carregar os objetos para o centro da aldeia, contou os objetos para o chefe e se propôs a distribuí-los. Todos ficaram satisfeitos com ele ao receber os objetos. Os índios respeitavam Paulo, tratando-o muito bem. Os índios não o discriminavam e o tratavam como cacique da aldeia. Paulo ficou morando lá mais dois anos, até que resolveu ir embora para Cuiabá. Ele disse para seu pai e para a comunidade que ia somente viajar, mas na realidade estava indo embora.

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A muriçoca terrível

Karin Yudja

O povo Yudja guerreava com os inimigos, matava muita gente de outro povo e voltava para a aldeia. Certa vez eles foram muito longe, não deu para voltar no mesmo dia e acabaram dormindo num determinado lugar. Mais ou menos onze horas da noite eles começaram a dormir. Como já conheciam o lugar, eles sabiam que ali morava um espírito forte. Depois que os guerreiros adormeceram apareceu o dono do lugar, que era uma muriçoca muito grande, do tamanho do sapo-boi. Ela matava a pessoa sugando seu sangue.

Ao amanhecer quase todo mundo estava morto. Poucos guerreiros sobreviveram, mas como a muriçoca sugou seu sangue, não conseguiam andar, estavam magros e fracos. Aqueles que estavam mortos não tinham sangue nenhum. As pessoas que sobreviveram voltaram para sua aldeia e contaram o que aconteceu.

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Histórias de namoro

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Ngotára kôt meni txejkô kãm mbyUm namoro proibido

História narrada por Mbeni Suiá transcrição e tradução de Tempty Suiá

Antigamente todos os rapazes dormiam na casa dos homens, que fica no meio da aldeia.Uma moça se apaixonou pelo próprio irmão e deitava sempre com ele. Ela se deitava

sempre, mas demorou muito para as pessoas descobrirem. O pessoal estava querendo caçar, fazer uma caminhada durante muitos dias pelo mato, demoraria muito para voltar. O rapaz perguntou para o amigo dele:

– Como é que nós vamos fazer, amigo?– Vamos ficar aqui esperando o pessoal voltar.– Está certo, vamos esperar na aldeia.O pessoal perguntou:– Vocês vão ficar?– Sim, nós vamos ficar.– Está bem.Os dois rapazes ficaram. Quando começou a anoitecer, a irmã foi deitar com ele e com o

amigo. Toda noite ela se deitava com eles. Eles tentavam saber quem vinha à noite para namorá-los:

– Amigo, quem deita com a gente de noite?– Não sei.– Como é que nós podemos fazer para descobrir?– Se ela voltar essa noite você tem que segurá-la, eu já segurei muito na outra noite.

Segure para a gente ver quem é essa pessoa.

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À noite ela apareceu, o amigo agarrou pelas costas e o irmão dela agarrou pela frente. Quando a madrugada chegou, ela se mexeu e saiu, foi para casa. Ela sempre dizia:

– Me deixa, me solta, já está amanhecendo.Ela falava e ia embora. O pessoal que saiu para caçar já estava quase voltando.– Vamos nos pintar para descobrir quem é ela. Vamos buscar jenipapo.Eles trouxeram jenipapo e o amigo levou para casa. O rapaz falou para a mãe e para a

irmã:– Preparem jenipapo para nós pintarmos nosso corpo.O rapaz perguntou para o colega:– Como é que nós podemos pintar?– Vamos pintar o desenho de casco de tracajá.Os dois rapazes pintaram todo o corpo e ficaram lá na casa dos homens. Antigamente

o pessoal dormia no chão. Quando anoiteceu, ela apareceu. Ela veio e deitou no meio deles. O amigo deitou por trás e a segurou, o próprio irmão dela deitou de frente e a abraçou, eles pensaram que era outra pessoa, outra moça. Desde o começo da noite até amanhecer, o jenipapo manchou todo o corpo dela. Antes de clarear o dia ela foi embora para casa. O irmão dela convidou o amigo para ir até a beira do rio acender fogo e esperar a mulherada ir banhar, só para eles descobrirem quem era. Eles ficaram na beira do rio até o sol nascer. Tinha muita gente banhando, moças e meninas, mas eles não viram ninguém com o corpo manchado de jenipapo. Chegando na casa dos homens ele disse para o amigo:

– Eu vou para minha casa e você vai para a sua, repare nas suas irmãs e eu vou ver as minhas irmãs.

O amigo chegou em casa e a mãe pediu para as irmãs levarem comida para ele. O outro entrou em casa e sentou olhando as irmãs dele. A mãe falou para a filha:

– Leve comida para seu irmão.O primeiro olhou, mas não tinha ninguém manchado de jenipapo. O segundo viu a irmã

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dele cheia de manchas de jenipapo no corpo. Ela banhou de madrugada, passou urucum, mas seu corpo ainda estava preto. Ela levou a comida enquanto ele ficou olhando para ela. Ele chamou a mãe:

– Tirê, Tirê! Por que sua filha está gostando de mim? Será que ela está pensando que eu sou outra pessoa?

A mãe respondeu:– Eu não sabia. Eu pensei que ela ia se deitar com outro rapaz.– Tirê, vou casar com Kenkwâdji (irmã).– Você pode se casar com sua própria irmã.Ele voltou para a casa dos homens, o amigo dele também.– Como está sua família? – Ela está bem.– Nossa irmã é que deitava sempre com a gente.– É mesmo?– É sim, eu vou casar com nossa irmã.– Você pode casar, foi ela que procurou a gente.À tarde ele voltou para a casa dos homens e confirmou para o amigo que ia se casar com a

irmã:– Ela podia gostar de outro, foi ela que errou, ela atrapalhou a nossa vida.Ele foi para a casa dos pais onde estava sua irmã e falou para a mãe:– Tirê, vou casar com minha irmã.– Está bem, pode casar com sua própria irmã, mas não brigue com ela, vocês são

parentes. Eles se casaram, mas não viviam bem, brigavam sempre. Ela convidava o marido para

tomar banho no rio, mas ele não conversava com ela. No caminho ele reclamava e batia nela. A

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mãe ouviu e falou para o filho:– Não bata na sua esposa porque ela é sua irmã. O rapaz não se dava bem com ela. Eles se casaram quando o pessoal foi caçar, isso

aconteceu no início das chuvas, o pequi do campo já começava a cair.O pessoal estava pegando cascudo no córrego, tinha muito cascudo no buraco. No começo

da chuva o rio enche e junta muito cascudinho. A irmã falou para o marido:– O pessoal disse que tem muito cascudo naquele lugar, talvez o buraco já encheu de

água. Vamos pegar cascudos.Ele não respondeu. Ela falou de novo:– Vamos lá.– Eu não quero ir.– Não, não faça isso!A mãe disse:– Não bata na sua irmã.Eles foram até onde o pessoal sempre pegava cascudo. Ela perguntou:– Quem vai pegar primeiro, você ou eu?– Eu. – Está bem, vá você.Quando ele estava quase mergulhando, ela jogou água nele, deixando-o muito bravo.– Não jogue água em mim porque eu estou sentindo frio.Ele mergulhou e ela segurou seus pés. Ele mexeu os pés quando pegou muitos cascudos,

e ela puxou o irmão da água. Tinha muito cascudo lá no fundo do buraco. Ele ficou mergulhando até sentir frio.

– Agora você vai lá dentro para pegar cascudo grande.Ela mergulhou e pegou só cascudo pequeno.

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– Entre lá no fundo e pegue um grande!– Me tire logo quando eu mexer meus pés.Ela mergulhou, mexeu os pés e ele a tirou da água. Quando mergulhou de novo, ele

empurrou seus pés e soltou, deixou-a ir embora. Ele esperou, esperou, nada... – É isso que você estava querendo comigo, deixe a água matar você. Ele tirou cipó para carregar os cascudos, banhou, pegou o colar e o brinco dela e foi

embora. Quando estava quase chegando em casa a irmã mais nova viu:– Tirê, meu irmão está chegando sozinho!– Cadê sua irmã?– Eu bati nela e deixei-a para trás. Ele colocou os cascudos em casa. A mãe assou para ele comer. Quando terminou de

comer a mãe perguntou:– Cadê sua irmã?- Eu a deixei para trás porque ela estava doida.– Vamos procurar sua irmã, disse a mãe para a irmã mais nova.Quando chegaram no local, chamaram bem na beira do rio, procurando e chamando, até

que escutaram:– Hô!– Tirê, tirê, fique quieta, não grite!A mãe olhou e viu sua filha barbuda e com um pinto na coxa.– Coitada da minha filha. O que aconteceu com você? O que seu irmão fez com você?– Seu filho que me jogou.A mãe chorou. Sua filha disse:– Pode ir, tirê. Assim que você chegar na aldeia, convide as mulheres em cada casa. Avise

minha tia, minha avó, diga a elas que eu pedi para você juntá-las.

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A mãe voltou para a aldeia com a filha menor. À tarde ela foi em cada casa, convidando as mulheres. Elas combinaram entre elas de acabar com os maridos, que só atrapalhavam suas vidas:

– Vamos matá-los! E todas elas concordaram.– Tragam só as meninas, não levem os meninos.– O que nós vamos dizer para sair para o mato?– Digam que lá o pequi já está começando a sair.– Está bem, vamos dizer isso para os homens não descobrirem.No dia seguinte elas foram para o mato, a mulher que se transformou em homem já tinha

derrubado uma árvore hwinkátxi e fez borduna, escudo, lança e flecha para as moças. Foram as mulheres que fizeram hwinká para segurar os homens. Elas pegaram os enfeites dos maridos que tinham saído para caçar. Depois que terminaram a mulher falou:

– Se alguma de vocês tiver um menino que queira vir, traga. Vamos matá-lo primeiro e depois nós sairemos da aldeia.

Elas voltaram para a aldeia e ficaram lá até amanhecer. Um dos meninos, chamado Nhõtê, chorou e pediu para a mãe levá-lo. Uma das mulheres disse:

– Traga-o, vamos matá-lo primeiro.Elas levaram o menino até bem perto da mulher que tinha se transformado em homem,

fizeram uma casinha de palha bem pequena para ele ficar dentro. A mãe pediu para que ele ficasse ali mesmo. As mulheres se pintaram e começaram a dançar. Elas cantaram muito alto e isso deixou o menino com medo. Ele disse:

– Vou embora, senão minha tia, minha irmã e minha mãe vão me matar.Ele saiu da casinha e colocou um pedaço de lenha no seu lugar, cobrindo com folhas,

como as mulheres tinham feito com ele. Elas ainda estavam dançando quando ele foi embora. Ele correu muito, atravessou um córrego. Correu mais e atravessou outro córrego. Correu mais

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ainda e atravessou o último córrego. Quando as mulheres terminaram de dançar, correram até a casinha de palha e começaram a bater com a borduna. A mulher que tinha se transformado em homem foi na frente e bateu muito, até que ela disse:

– Vamos tirar a palha e as folhas.Elas só encontraram um pedaço de lenha. Essa mulher falou:– Nossa! Talvez o menino já tenha chegado até os homens e contado para eles.Elas correram atrás do menino. Quando chegaram no terceiro córrego, viram a água suja.

Foram até o caminho de buriti, procuraram, mas nada dele. Elas correram até outro caminho de buriti e viram o menino quase chegando na aldeia. Elas gritaram. O menino olhou para trás e viu a mãe, as irmãs e a tia correndo. Ele continuou correndo e gritou para o pai:

– Pai, minha mãe e minha irmã vão nos matar.O pai foi lá e pegou no braço do menino, levando-o para casa. Ele escondeu seu filho e

voltou para a porta, esperando as mulheres chegarem. A irmã do pai do menino ia matá-lo, mas ele flechou e matou muitas mulheres. A mulher que se transformou em homem foi direto para a casa dos homens falando:

– Homens, olhem a gente aqui! O marido e o amigo estavam fazendo flecha. Ela entrou na casa dos homens e matou

os dois. Depois que conseguiu matar todos os homens, juntou seus corpos no meio da casa, perguntando para as outras mulheres:

– E aí, mataram todos eles?– Sim, acabamos com eles.Elas juntaram no meio da casa dos homens todos os meninos que tinham matado e

foram de casa em casa procurar mais gente. As moças viram os rapazes que estavam presos e chamaram as mulheres mais velhas. A mãe dos rapazes disse a elas:

– Deixem meus filhos aí mesmo. Eles já são adultos, tomem cuidado. Mesmo assim as moças foram até eles. Quando elas subiram a escada, um dos rapazes

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que estava lá em cima pegou um pedaço de pau e bateu bem no nariz da moça, que morreu na hora. A mãe dele disse para elas:

– Viu só? Eu avisei para vocês tomarem cuidado.Quando todas foram embora, a mãe conversou com seus filhos que estavam presos:– Meus filhos, assim que o pai de vocês chegar, avisem a ele que eu fui embora com as

mulheres. Mas digam que ele pode pegar milho e socar no pilão. Depois ele deve levar osso de macaco ou dente de cobra até o rio, furar o pênis e jogar pó de milho em volta dele. Se um peixe se aproximar, diga a ele para não se mexer. Ele deve ficar quieto e esperar os peixes juntarem primeiro. Ele pode procurar o piau de rabo vermelho. Quando o piau chegar perto, ele pode pegá-lo com a mão e jogá-lo para trás, por cima da cabeça, sem olhar. Ele pode esperar o peixe se transformar em moça. É ela, a moça, que vai falar primeiro, só assim ele pode olhar. Ela vai cuidar de vocês no meu lugar.

As mulheres se foram, levando todas as meninas. A mãe se despediu dos filhos e foi também.

O pai demorou para chegar, todos chegaram da caçada chorando. Depois que o pai acabou de chorar, seu filho contou o que a mãe falou. O pai socou milho, pegou osso de macaco e foi para o rio. Chegando lá, furou o próprio pênis na água e jogou milho em volta. Muitos peixes se aproximaram, mas ele ficou quieto esperando. Até que o piau se aproximou bem devagar. Quando estava bem perto, ele enfiou as mãos por baixo do peixe e jogou-o por cima da cabeça. O piau ficou pulando, pulando, depois parou. O piau se transformou em mulher, levantou-se e colocou as mãos no ombro do homem. O homem olhou e viu que era gente. Ela pediu para o marido tomar banho logo para eles irem para casa.

Quando ele chegou do rio, todo mundo correu para perguntar como ele tinha conseguido

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As moças que foram com os homens lagartas

Arupajup Kaiabi

Um dia, há muito tempo atrás, as lagartas apareceram para duas moças como homens, trazendo enfeite de cocar na cabeça e falaram para a avó das moças:

– Nós vamos levar suas netas.A avó piscou o olho para as netas. Uma delas perguntou:– Porque você está piscando seu olho para nós?A outra moça falou:– Nós vamos junto com eles, porque os homens que vieram

nos pegar vieram todos pintados. Por isso as moças foram com eles, mas aqueles homens

não eram gente, eram lagartas. Quando chegaram no campo, as moças ouviram a festa que eles estavam fazendo. Os homens chegaram perto de uma árvore, voaram até ela e viraram lagartas. As moças ficaram no mato, perdidas. Uma delas falou para a outra:

– Nós viemos com lagartas! Eu achava que eles eram gente. Agora nós vamos para onde?

As moças andaram dentro do mato sem caminho, desorientadas, até que encontraram o homem mutuca que estava comendo mel junto com o homem cigarra. Elas chegaram perto deles, mas nem falaram nada. O mutuca estava em cima do pau furando o mel e a cigarra ficava em baixo. Ela mandava o mel para a cigarra, mas as moças é que estavam pegando o mel deles. O homem cigarra ficava procurando o mel. As moças riram dele. O homem cigarra falou para o

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mutuca:– As moças estão me enganando, vamos transar com elas.O homem cigarra pegou uma das moças e o homem mutuca pegou a outra. Quando o

homem cigarra transou com ela, a moça riu muito e disse:– Será que você está transando comigo ou você está transando com meu umbigo?O homem cigarra estava errando o lugar da vagina da moça.Elas continuaram a andar até chegarem na roça. Ali estava um velho arrancando

amendoim. As meninas perguntaram para ele:– O que você está fazendo?– Estou arrancando amendoim.O velho pediu para as moças acenderem o fogo e disse:– É para vocês assarem cará para comer.As moças acenderam o fogo e juntaram muita lenha na fogueira, dizendo para o velho:– Avô, avô, chegue mais perto, queremos ver seu piolho, nós queremos ver o seu piolho!O velho se aproximou e deixou as moças tirarem piolho de sua cabeça. Elas estavam

tirando piolho para comer até que o velho dormiu no colo delas. Uma delas falou para a outra:– Ele dormiu, vamos jogá-lo no fogo e queimá-lo.Elas jogaram o velho no fogo e ele se queimou todinho. Elas continuaram andando até

encontrar o caititu:– O que você está fazendo?– Estou ralando mandioca doce que sua mãe deu para mim.Na verdade, o caititu tinha roubado a mandioca da roça da mãe delas. O caititu falou:– Sua mãe está bem aí.As moças continuaram até chegarem na aldeia. Elas contaram para a avó o que tinha

acontecido com elas, abandonadas pelos homens que viraram lagartas. A avó falou:

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Kama

Aisanain Kamaiurá

Era uma vez uma menina que se chamava Kama. Ela morava com sua família, não tinha primo de longe para namorar com ela, só tinha primo próximo e ela não podia namorar essas pessoas.

O tempo foi passando e Kama cada vez mais foi sentindo vontade de namorar, até que ela ficou bem magra, amarela, começou a ficar doente. Um dia, quando os moradores saíram para suas roças, um rapaz foi visitá-la em sua casa. Esse rapaz estava na reclusão. Ele chegou na casa dela e chamou-a pelo nome:

– Kama, onde você está?– Hweraap – ela respondeu.– O que?– Hweraap.– O que você está falando, Kama?– Hweraap.Cada vez mais ela veio se aproximando.– Você está sozinha Kama?– Hweraap.Apontou para a coxa dele, o rapaz olhou para trás e perguntou:– O que foi, Kama?– Hweraap.Chegou mais perto dele, levantou o braço e pegou o pênis do rapaz. Então ele disse:– O que está fazendo comigo?– Hweraap, namora comigo.

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– Não, Kama, você está muito magra, você não vai aguentar.

– Eu vou ficar boa, salve-me!– Será, Kama? – É verdade.– Então vamos, você tem que aguentar.O rapaz carregou-a para um lugar um pouco longe

da casa, lá tiveram relação sexual. Kama falou:– Ai que bom, você salvou a minha vida, você vai

ser meu namorado agora. Não fique contando o que fizemos para seus amigos. Esse amor que fizemos é nosso segredo.

O rapaz partiu para a casa dele e Kama também foi para a casa dela. Quando foi por volta de meio-dia o pessoal que foi na roça voltou para casa com o cesto de mandioca na cabeça. Kama levantou-se da rede com o corpo pintado. Sua irmã mais velha disse:

– Nossa, Kama! Hoje você está tão alegre!– Hweraap, eu sarei.Kama pegou o ralador, a panela e ficou ralando mandioca até terminar. Os meses foram

passando, o rapaz começou a sair e, ao encontrar seus quatro amigos, contou a história de Kama, a moça que quase morreu de vontade de namorar. Ficaram rindo ao saber que depois a mulher se recuperou. De noite os rapazes gritaram juntos na aldeia:

– Hyyyy, ijomene uweja ji ajuka kãj! – Quase morreu de vontade de namorar!Kama ouviu e ficou muito brava.

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Karakarajt, o espírito do peixe

Aisanain Paltu Kamaiurá

Era uma vez duas moças que inventaram de pegar os peixinhos do rio com as mãos. Elas sentaram de pernas abertas na beira da água cercando os peixinhos e o Tyrari, peixinho pequenininho, entrou na vagina de uma delas. Quando ele entrou debaixo da perna da menina, sua amiga disse:

– O peixinho está indo aí!– Onde?– Entrou debaixo da sua perna.Ela procurou, levantou-se, e nada, não achou o peixinho. Na verdade ele já tinha entrado

na vagina dela. Com o tempo a barriga da moça foi crescendo, devagarinho. Até que os irmãos dela perceberam que sua barriga crescia cada vez mais. O irmão mais velho perguntou para si

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mesmo:– Quem é o namorado de nossa irmã?Ele mandou perguntar ao irmão mais novo e ele respondeu:– Ah! Deixe a nossa irmã em paz! Vai nascer uma criança da barriga dela.O irmão mais novo percebeu que o mais velho não estava gostando da gravidez da irmã e

perguntou a ela:– Quem engravidou você, minha irmã?– Não sei, ninguém namorou comigo, minha barriga cresceu sozinha, irmão.– Ah, então está bem. Devagar vai nascer, não liga para o nosso irmão, deixe-o falar mal de

você. Até que um dia nasceu uma criança que se chamou Karakarajt. Nasceu feio, barrigudinho.

Os irmãos falaram:– Enterra essa criança que não tem pai!O rapaz, que gostava da irmã, respondeu:– Olhe meu irmão, deixe nossa irmã criar o filho dela, quando ele crescer vai pescar para a

mãe dele.Os tios ficavam sempre com nojo do menino e chamavam sua mãe de Karahi, que significa

mãe sem pai. Um dia os tios resolveram bater timbó. O Karakarajt já estava com cinco anos de idade e o tio que gostava dele fez flechinha e chiqui (armadilha para pegar peixe) para ele. Eles foram cercar o lago para os peixes não fugirem e colocaram armadilha para os peixes entrarem dentro. Karakarajt colocou sua armadilha bem no meio, onde era mais fundo. Um tio que veio atrás dele armar sua armadilha viu a do sobrinho e falou:

– Parece que esse menino é gente grande, colocou a armadilha dele aqui no meio. Ele tirou e a jogou na beira do rio. O tio que estava cuidando dele, falou para seu irmão:– Respeite nosso sobrinho, ele não é bicho, é gente.Pegou a armadilha, cavou um buraco na terra na ponta da cerca para a água passar, para

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colocar a armadilha do sobrinho dele. O menino ficou muito triste e falou para o tio:– Por quê os meus tios gostam de me maltratar? Não me respeitam... Eu vou olhar minha

armadilha.– Está bem, pode ir – respondeu o tio.Ele andou e viu as armadilhas dos tios e pensou:– Já que meus tios não gostam de mim, eu vou rezar o chiqui deles para os peixes não

entrarem mais. Os peixes vão entrar só na minha armadilha.Esse menino que nasceu da barriga da moça era muito inteligente, esperto, sabia tudo o

que tem na humanidade. Até hoje Karakarajt vive na terra. De vez em quando, ele aparece para as pessoas, avisa alguma coisa e depois some. Ele é um espírito do peixe.

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O rapaz que morreu de repente

Makaulaka Mehinaku

Era uma vez um rapaz solteiro que tinha uma namorada bonita.Era de tarde e os dois combinaram de se encontrar no mato, atrás da casa, para namorar.

Quando o rapaz lembrou que chegou a hora do encontro, foi esperar. Ao chegar no local combinado, lembrou da sua namorada, que logo iria chegar. Ao mesmo tempo viu um cupim na sua frente e pensou:

– Vou enfiar meu pênis nesse buraquinho de cupim, do jeitinho que vou fazer com minha namorada.

Ele enfiou seu pênis no buraquinho, a aranha mordeu e ele morreu.

Pouco tempo depois ela chegou no local combinado, viu o namorado e disse:

– Que foi, meu querido? Não fique assim, está bravo comigo?

Ela foi mexer com ele, mas já estava morto. Ela estava tão bonita, pintada de urucum, bem bonita mesmo. Ela voltou para casa bastante triste e avisou o pessoal sobre a morte do rapaz.

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O marido mentiroso

Kaman Nahukuá

Havia um rapaz casado que namorava outra mulher. Um dia a esposa queria ir junto com ele para a roça, mas ele não quis. Disse que estava doente, mas na verdade estava mentindo para a mulher. Ela foi sozinha até a roça, que era um pouco longe da aldeia, para colher mandioca.

Enquanto isso o marido foi para outra casa namorar outra mulher. Quando entrou na casa, viu que ela estava fazendo beiju para a família. Pediu para ela se deitar com ele. Ela não quis porque estava fazendo beiju para a família. Ele falou para ela:

– Vem deitar comigo, mulher!– Agora não! Estou trabalhando.O homem levantou-se querendo

agarrá-la, mas a mulher bateu nele com a pá de beiju, bem na testa. Ele foi correndo para casa se deitar. Quando a mulher dele chegou da roça chamou seu marido, mas ele não respondeu direito, fingiu que estava dormindo. A mulher chamou tanto que ele levantou batendo a cabeça no pau da casa. Quando a mulher viu sangue escorrendo pela testa do marido levou um susto e perguntou:

– O que aconteceu com você?– Eu bati no pau da casa, você que me

acordou mulher!– É mesmo, então tire lodo essa

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mandioca da minha cabeça para eu banhar rápido.Logo em seguida a esposa foi banhar e pegar água no rio. Quando ela saiu de casa, a

namorada do marido viu a mulher e foi atrás para contar porque seu marido estava machucado. A esposa ficou triste. E quando chegou em casa falou para o marido:

– Você mentiu para mim!– Não sei, eu acho que alguém mentiu para você.– Não adianta você falar comigo desse jeito.

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Kuima’e pajé

Tariajup Kaiabi

Antigamente tinha um pajé que transformava coisas e bichos para serem sua mulher. Ele transformava ariranha, cera e outras coisas.

Primeiro ele transformou uma ariranha em mulher. Ficou com ela algum tempo, até que um dia ele saiu para caçar e a mãe dele começou a fazer mingau. Ela estava socando pilão. Quando terminou de socar pediu para a nora ir ao rio pegar água. A ariranha pegou a cabaça e foi para a beira do rio. Quando ela chegou na beira os parentes dela chegaram e a carregaram com eles, ela nunca mais voltou para a casa do marido. A sogra ficou esperando, mas os parentes da ariranha já a tinham levado embora. Quando o pajé voltou da caçada ele perguntou para sua mãe:

– Mãe, onde está a minha esposa?Ela respondeu:– Eu a mandei para a beira do rio buscar água, mas até agora ela não voltou.Ele ficou muito bravo com a mãe.Então ele transformou a cera em mulher. Viveram juntos por algum tempo e ele saiu

novamente para caçar. Antes de sair, avisou sua mãe:– Mãe, não deixe a minha esposa sair no sol e nem a deixe ficar perto do fogo.– Tá bom, não vou deixar ela fazer nada.Quando ele saiu a mãe dele pediu para a nora ir pegar água no rio, porque o mingau

estava queimando. Ela pegou a cabaça e foi correndo. Quando ela saiu no sol foi derretendo pelo caminho, até derreter toda e nem conseguiu levar a água para a sogra.

O pajé chegou da caçada e perguntou para sua mãe sobre a esposa:– Mãe, onde está minha esposa?

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– Ela foi ao rio e não voltou para casa até agora.Ele ficou bravo de novo com a sua mãe. Falou para a mãe que ia sair de casa e deixá-la

sozinha. Assim ele pegou suas coisas e foi embora da casa da mãe.

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Outras histórias

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Epawa, as abelhas xupé

Tahurimã Yudja

Antigamente os Yudja foram tirar a abelha xupé, que no meu idioma se chama epawa. Saíram quatro pessoas, o irmão mais velho com a esposa e uma criança pequena de colo e o irmão mais novo. Chegaram no local onde estava a abelha xupé. Era noite e logo os dois começaram a fazer escada para subir na árvore. Quando terminaram de fazer a escada o irmão mais velho subiu e pediu para o irmão mais novo dar a palha seca para ele queimar a colméia de xupé. O irmão deu a palha e ele começou a acender o fogo. Mas o xupé se transformou numa onça e pegou o homem Yudja. O rapaz, que estava embaixo da escada, ouviu o sangue do irmão derramando lá de cima. O rapaz pensou que era o mel que estava derramando porque ele não percebeu o que tinha acontecido com o irmão. O fogo já tinha apagado e ele ficou na escuridão, por isso não viu que a onça pegou o seu irmão. A onça o chamou, imitando igualzinha a voz do irmão:

– Venha logo, o xupé deu muito mel. O rapaz subiu, quando ele chegou perto,

a onça pegou também esse rapaz. Então a onça chamou a mulher:

– Ei, mulher, você está aí?A mulher respondeu:– Sim, estou aqui.A mulher pensou que era o marido dela, mas

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era a onça que conversava com ela. A onça pediu para a mulher não acender o fogo logo. Depois que a onça macho jogou um pedaço do corpo do marido dela no chão, falou para a mulher:

– Mulher, aí vai um pedaço de xupé que eu tirei, pode acender o fogo. A mulher acendeu o fogo e viu um pedaço do corpo do marido. Ela apagou o fogo, pegou a

filha e colocou no colo com a tipóia e correu. Lá no meio do caminho ela ouviu o canto do sapo. Ela chamou o sapo pedindo socorro:

– Sapo, se você fosse gente poderia matar o bicho que está me atacando!O sapo respondeu:– Eu sou gente, você pode subir até aqui onde eu estou. O sapo colocou uma escada para a mulher subir. Depois que ela subiu o homem onça

chegou. A mulher viu o onça e ficou com medo. Ela falou para o sapo:– O homem onça vai nos matar!O sapo falou:– Não fique com medo, eu vou matá-lo.O homem onça foi subindo, quando chegou perto do sapo ele

jogou veneno no olho da onça macho. O homem onça caiu no chão e morreu.

A mulher desceu, mas estava amedrontada, pensando que havia outras onças. Nesse momento o sapo resolveu ir com a mulher, pediu para ela colocá-lo dentro do coco de castanha e levá-lo. Falou para a mulher avisá-lo se acontecesse alguma coisa no caminho, mas não aconteceu mais nada até eles chegarem na aldeia.

A mulher estava chorando e os parentes dela vieram perguntar o

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que tinha acontecido. Ela contou e eles entenderam que a onça tinha comido os dois rapazes. A mulher ficou de luto e o sapo ficou escondido dentro do coco de castanha, bem guardado.

Depois que passou o tempo de tristeza, a mulher começou a andar. Quando a filha dela ficava com fome ela pegava o sapo e levava até a lagoa. Lá ela quebrava um pauzinho e batia no sapo, aí o veneno saía. Ela soltava o sapo na água e ele mergulhava até o outro lado da lagoa, depois ele voltava novamente. De novo ela batia no sapo e ele mergulhava, chegando ao outro lado da lagoa e retornando. Assim o sapo esparramava o seu veneno na água e os peixes começavam a morrer. A mulher pegava os peixes, e antes de ir embora para casa guardava o sapo no coco da castanha. Ela distribuía os peixes para os parentes e deixava o sapo bem escondido.

Era o sapo que pedia para a mulher bater nele com um pauzinho antes de soltá-lo na lagoa, para ele soltar o veneno dele na água e os peixes morrerem.

A mulher ficou com o sapo até a filhinha dela crescer. Quando a menina ficou um pouco grande, ela matou o sapo, enquanto a mãe estava na roça arrancando mandioca.

No outro dia a mãe da menina sentiu um cheiro muito ruim na casa. Ela perguntou para filha:

– O que está fedendo aqui, filha? Será que você deixou alguma coisa podre aqui?A filha não quis contar nada para a mãe:– Não sei, mãe, eu não vi nada.A mãe foi procurando de onde vinha o mau cheiro, até que viu uma gosma saindo do coco

da castanha. Ela pegou o coco, tirou o sapo de dentro e viu que ele estava morto. Ela ficou muito

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História do povo Jagamü

Aigi Nahukuá

Antigamente meu povo morava num local chamado Timpa. Lá não tinha mais peixe e nem caça. Nessa aldeia viviam muitas pessoas, por isso a caça e os peixes tinham acabado.

Um homem chamado Koesa, do povo Bakairi, foi fazer um passeio. Ele foi tocando fogo, queimando o campo, até que chegou no córrego chamado Mirassol. No outro lado do córrego, um pouco longe da aldeia, ele começou a gritar pedindo para as pessoas da aldeia irem buscá-lo. Nesse momento o pessoal da aldeia ouviu o grito de Koesa. Uma dessas pessoas foi avisar o cacique Ahiguata:

– Cacique, tem alguém que está gritando do outro lado do rio.Ele respondeu:– Está bom.O cacique chamou uma pessoa que entendia várias línguas. As pessoas da aldeia

começaram a se movimentar e se reuniram no porto onde o homem iria chegar. O cacique da aldeia chamou um substituto para também esperar pelo visitante. Uma das pessoas da aldeia pegou uma canoa e foi se aproximando do homem para transportá-lo, perguntando para ele:

– Quem é você?– Sou eu! Eu vim avisar vocês.– Ah! Está bom.Koesa entrou na canoa e eles foram na direção da aldeia. Quando estavam chegando perto

do porto Koesa ouviu o som da fala de muitas pessoas. Ele sentiu medo e falou para o canoeiro:– Será que eles vão me matar?O canoeiro o acalmou. Assim que eles chegaram ao porto o cacique o levou até o centro da

aldeia, onde já tinha um banco para ele sentar. Então o cacique perguntou para ele:

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– O que você quer conversar conosco?– Eu vim avisar vocês que tem um lugar bom para vocês viverem porque estou vendo que

aqui não tem mais peixe. Por isso eu vim buscá-los, porque nesse lugar que eu quero mostrar tem muito peixe.

– Então eu vou conversar com o meu povo.O cacique fez uma reunião no centro da aldeia, lá eles conversaram e resolveram mudar.

Metade da população da aldeia foi com eles para conhecer o local indicado por Koesa, a outra metade ficou na aldeia. Eles foram caminhando até chegar ao local onde seria construída uma nova aldeia. Ficaram lá, fizeram roça e em seguida voltaram para a aldeia. Levaram bastante peixe assado e caça. Quando chegaram na aldeia o cacique levou os peixes e a caça para o centro da aldeia, para o pessoal comer. Contou a história de como era o local e falou da fartura de peixe e caça que existia lá. Então as pessoas de duas aldeias resolveram mudar para esse lugar que foi chamado de Ahuahütü. Nesse local, na região do rio Kurizevo eles fizeram duas aldeias.

Foi nessas aldeias que eles tiveram os primeiros contatos com os brancos e também com o povo Bakairi. Nessa mesma época o povo Jagamü começou a sair fora de sua aldeia, indo atrás dos não-índios para obter objetos como facas e enxadas.

Nessa época Orlando Villas Boas chegou ao Xingu, tinham poucas pessoas do meu povo. Orlando foi reunindo os povos do Alto Xingu perto do Posto Leonardo. Cada etnia foi fazendo as aldeias próximas ao posto. Orlando criou o nome de cada etnia, nos chamando de Nafukuá. O povo Jagamü foi morar junto com o povo Matipu. Depois tiveram algumas discussões políticas, por este motivo separaram suas aldeias. O povo Matipu ficou no local denominado Ngahünga e o povo Jagamü no logal chamado Magijape, atualmente chamado de aldeia Nafukuá.

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História da Kunhãmaru, a mulher enterrada

História narrada por Koka Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Eu vou contar a história da Kunhãmaru, a moça que foi enterrada.No começo dessa história o povo fez a festa Jokoko. Os homens estavam cantando

primeiro a noite toda. No outro dia os homens cantaram de novo. No último dia eles cantaram à noite e à meia-noite pararam.

Kunhãmaru falou para sua irmã:– Vamos lá cantar no lugar deles! Vamos substituir os homens que estão cantando lá!As duas mulheres foram cantar no centro da aldeia na casa dos homens. Pegaram os

enfeites do irmão, o cinto, o enfeite do joelho e a braçadeira, e começaram a se pintar de carvão igual os homens. Era meia noite, elas foram para o centro e começaram a cantar. Elas estavam cantando Jokoko. Às duas horas da manhã o dono da festa trouxe mingau e pimenta para elas, mas elas não comeram. Elas amarraram o cabelo e o dono da festa disse:

– Tomem mingau, rapazes!Elas se afastaram do homem que estava perto delas. O dono da

festa voltou para casa. Elas recomeçaram a cantar e não tomaram o mingau. Elas já estavam quase parando e chamaram o nome delas, cantando:

– Kunhamãru, Kunhamãru!Por isso que tem essa música Jokoko.– Kunhamãru, Kunhamãru, iahahe, iahahe ... – que significa: nós

somos Kunhamaru, essa era a música delas.

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Assim que elas terminaram de cantar, elas entraram em casa e dormiram.Quando o dia amanheceu o dono da casa saiu para ver o mingau e a pimenta que havia

levado na casa dos homens. O dono da festa disse:– Por que os rapazes não tomaram o mingau que eu trouxe para eles? – e o dono da festa

levou de volta para sua casa.O sol começou a descer e os homens se juntaram no centro da aldeia. Eles se perguntaram

entre eles:– Quem é que estava cantando hoje de madrugada? Que voz bonita! – Não sei, eu estava deitado.– Eu também.– Eu também.O irmão mais novo de Kunhamãru, que mentia muito, estava tomando banho. Enquanto

eles estavam falando, chegou o irmão mais novo:– O que vocês estão falando aí?– Nada. Nós estamos perguntando quem é que estava cantando hoje à noite.O irmão mais novo começou a falar:– Foram elas, as minhas irmãs, que estavam cantando.–Trutrutrutrutru.

Os homens falaram que queriam enterrar as duas moças. Começaram a cavar um buraco para enterrar. Elas estavam sentadas na porta. A mãe já tinha dado a concha itã para a outra irmã, para que elas pudessem cavar o buraco e sair. Os homens foram buscá-las, entraram na casa e elas estavam fazendo cintos, eles as pegaram pelos pulsos. A mãe chorava.

Levaram as duas e jogaram no buraco. Jogaram uma cesta por cima delas e começaram a tampar. Elas não pararam de respirar dentro do buraco. Elas ficaram até tarde no buraco, à noite

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a mãe foi levar água no lugar onde as filhas foram enterradas. A irmã mais nova, o sapo comeu no buraco. A mais velha conseguiu sair. Ela foi cavando o buraco até sair. Pronto. Meia noite a mãe saiu para encontrá-la no túmulo e disse:

– Filha!– Oi mãe!– Você está bem?– Estou bem, mãe.A quentura da terra deixou todo o cabelo cair. A mãe dela perguntou:– Cadê a sua irmã?– Cururu, o sapo, comeu a minha irmã.A mãe começou a tampar o buraco da filha. Tampou bem e entrou na casa para tirar a

rede da filha para levar a filha para uma outra aldeia. Ela viveu um ano sossegada na outra aldeia.

Até que um dia, aquele que enterrou as moças foi lá nessa aldeia onde ela morava. Kunhamãru estava trabalhando espremendo mandioca. Quando o sol estava descendo ela foi tomar banho. O rapaz que a enterrou falou:

– Quem é aquela mulher igual Kunhamãru que a gente enterrou? Será que é ela?Ela voltou do banho e entrou na casa. No outro dia o rapaz foi embora para a aldeia dele e

foi no centro da aldeia contar para aquele que era namorado dela:– Amigo!– Oi.– Eu vi lá na outra aldeia uma moça parecida com Kunhamãru. Igualzinha, amigo!– Verdade?– Verdade, eu acho que é ela.– Vamos lá ver.

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– Amanhã a gente vai.– É ela mesmo, amigo, você vai ver.– Bom, amigo, amanhã a gente vai.No outro dia eles foram para lá. Quando chegaram, os dois amigos viram quando

Kunhamãru foi tomar banho a tarde. Os dois amigos olharam para ela:– Olha lá, amigo!– É ela mesma!– Vamos lá ver de perto.Eles foram e esperaram por ela bem no canto do caminho. Ela estava tomando banho

ainda. Quando ela voltou do rio o homem disse:– Olha aqui, moça.Ela virou e disse:– Como é que você veio? – perguntou para o homem – Você não podia deixar me

enterrarem.O homem disse:– Não falei, meu amigo?Kunhamãru ficou lá até que se casou. Os dois amigos retornaram para aldeia. Foram contar

para todos lá no centro:– Como é que Kunhamãru saiu do buraco, gente?– Que nada, como é que ela ia sair?– Mas ela está lá, é ela mesma!– Nós não temos nada para fazer com ela.Eles fizeram esses comentários no centro da aldeia. Kunhamãru casou e permaneceu com

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História do sapo Arutsam

História narrada por Takumã Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

É assim a história do sapo Arutsam. O sapo foi até a aldeia da onça para pedir o arco dela, que era um arco especial. As onças são muito perigosas. Todas as pessoas que tinham ido até lá para pedir o arco para o homem onça, eram sempre devoradas por ele. Atrás da casa do homem onça tinha muitos ossos de cabeças das pessoas mortas. O sapo Arutsam disse para seu filho:

– Amanhã eu vou pedir o arco especial para o meu cunhado onça. O filho falou para ele:– Não pai!Você não vai, eles são perigosos!No outro dia ele foi para a aldeia do onça pedir o arco. Chegou à tarde na aldeia do onça,

quando eles estavam jogando bola. Foi rezando, para que eles ficassem bonzinhos com ele. Quando ele chegou na aldeia as onças gritaram:

– Ôôôô....o sapo está chegando na nossa aldeia!O sapo disse:– Cadê o meu cunhado, o chefe de vocês?O chefe o chamou, chegou na casa e o cumprimentou. O onça ofereceu mingau e rede

para ele deitar. O sapo Arutsam continuou rezando. O onça falou para ele:– Deite aqui, cunhado, na minha rede. O onça deitou bem pertinho dele. No fim da tarde o homem onça disse:– Cunhado, vamos tomar banho!O sapo foi com ele tomar banho, ele foi atrás rezando para o onça. O pessoal dele falou:– Ê, vai morrer sapo!– Coitadinho do sapo!

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Foram indo e o onça disse:– Eu vou fazer xixi cunhado.– Eu também vou fazer xixi.Até que chegaram na beira do rio. O onça esperou ele tomar banho. O sapo começou a

lavar a mão. O onça correu para tomar banho. O sapo correu e mergulhou rápido. O onça virou e viu o sapo molhado:

– Puxa, ele já banhou!– Banhou cunhado?– Banhei.– Então vamos embora.Andaram e a onça falou:– Eu vou fazer xixi!– Eu também.Eles chegaram na aldeia. O sapo olhou para o cunhado, pensando:– Puxa, ele já não é de nada, não é de nada!O cunhado onça não matou o sapo, por isso ele continuava rezando, para o onça não

comê-lo. Quando o onça chegou na casa, ele sentou e falou:– Puxa! Eu nem comi o sapo, ele é muito desconfiado! Assim o dia foi escurecendo. Eles deitaram para dormir e o onça começou

a perguntar:– Dormiu cunhado?– Ainda não!Perguntou de novo:– Dormiu cunhado?– Ainda não!O onça estava querendo comê-lo, enquanto ele dormia. O sapo pulou para fora, pegou dois

165desenho de Wary Kamaiurá

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vaga-lumes e colocou em cima do olho. Depois deitou e dormiu. O onça levantou para observar o cunhado e viu que o olho do sapo estava brilhando. Parecia que ele estava acordado. Mais tarde ele levantou para ver novamente o cunhado:

– Puxa, ele não vai dormir não?Até que o dia amanheceu e o onça levantou para acordar o sapo:– Cunhado, cunhado!O sapo estava dormindo e acordou assustado.O onça falou consigo mesmo:– Puxa, ele estava dormindo, eu podia ter aproveitado para matá-lo.Então os dois foram tomar banho novamente.O pessoal do onça olhou para eles:– Ah! Você não é de nada agora, chefe, nem comeu o sapo!O velhinho sapo foi rezando atrás. Quando o onça estava banhando, o sapo mergulhou

depressa. O onça olhou para ele e disse:– Puxa, ele já banhou!O pessoal dele olhou para ele:– Ah! Você não comeu o seu cunhado!Entraram na casa. Quando o sol estava nascendo, o sapo falou:– Eu vou-me embora cunhado.– Está bem, o que você quer? – perguntou o homem onça.– Estou precisando de seu arco e de sua flecha.– Estão aqui pendurados.Tirou e entregou para ele. Ele deu o arco e a flecha, que eram especiais, esta flecha

era assobiadora. Ele deu jumi atotõ, uma flautinha, para ele também. O sapo tirou a rede, saiu e foi embora. O pessoal o viu saindo

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e falou:– Ê, ele levou o arco do chefe!– O nosso chefe se entregou!O onça entregou os objetos para ele,

pensando que ele ia atacar o sapo e ele ia devolver o arco e a flecha. O homem onça saiu atrás. Para se defender, o sapo colocou formiguinhas pelo chão, para que elas atacassem o homem onça. Enquanto ele esperava o sapo no caminho, as formiguinhas ficaram comendo as patas do onça. Ele ficava batendo as patas na terra: Tuk, tuk, tuk, tuk. Arutsam chegou perto do onça e perguntou:

– O que foi cunhado?– Não foi nada, eu estou apenas vigiando você para o meu pessoal não te comer!O sapo andou um pouco e derramou as formigas de novo. O onça foi novamente esperá-lo.

O sapo foi chegando e escutou o onça fazendo barulho com as patas para se livrar das formigas. O velhinho sapo encontrou de novo com o onça. O onça foi de novo tentar atacá-lo, escondido atrás de uma árvore. O sapo escutou o onça batendo as patas e falou:

– É ele de novo!Ele foi indo e viu o onça mostrando a cara atrás da árvore. O sapo falou:– Puxa, você não para de vir me esperar. Eu vou matar você agora!Pegou a flecha e flechou onde o onça estava. A flecha raspou na árvore e o onça foi

embora. Ele errou, senão teria matado o cunhado onça. O sapo Arutsam falou:– Bem feito! Você não parava de me esperar para me matar!O sapo foi embora para a aldeia das cobras que se chama Tawá. Foi indo rezando as

cobras. As cobras eram todas valentes. Quando chegou, passou no centro da aldeia, as cobras olharam e falaram:

– Olhem, o sapo está chegando aí!167

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Pegaram o sapo e tomaram dele todos os instrumentos que a onça havia dado para ele: o arco e a flecha especiais. Carregaram Arutsam no ombro e ele viu uma cobra levando a flecha para a casa do chefe. Sentaram-no no centro da aldeia. Arutsam falou:

– Não, não me matem aqui não! Levem-me para a beira do rio, lá vocês podem me matar. Se vocês me matarem aqui, meu sangue vai inundar tudo e vocês vão afundar.

As cobras acreditaram nele e o levaram para a beira da pequena lagoa. As cobras falaram:

– Aqui, sapo?– Não, mais um pouquinho, bem na beira do rio – o velhinho sapo falou – vocês têm que vir

de lá correndo para me matar.As cobras começaram a afastar e Arutsam pulou na água. Caiu todo o tipo de cobra na

água para procurá-lo e nada. De repente ele mostrou a mão.– Ôô, aqui que eu coloquei a minha mão na vagina das suas mulheres!Queriam acertá-lo com a flecha, mas só conseguiram acertar entre os dedos. Uma cobra

conseguiu flechar bem nas costas e ele ficou mexendo: Pôo, pôo, pôo. A ponta da flecha quebrou e o sapo foi embora. Rasgaram só a mão dele e acertaram as costas, por isso o sapo tem a ponta da flecha, que era da cobra, nas costas.

As cobras continuaram a procurar o sapo, que saiu da água escondido e foi para a casa das cobras. Entrou na casa e só encontrou a mãe do bebezinho. O sapo estava dançando, pulou da beira do rio com olho fundo. Foi andando e quebrando as panelas das cobras. Foi em outra casa e quebrou de novo as panelas de barro. A mãe do bebê saiu gritando:

– Ah! O sapo está aqui, quebrando todas as nossas panelas!

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As outras mulheres cobras responderam para ela:– Entre, mulher, o sapo Arutsam já foi embora!Arutsam continuou quebrando as panelas. A mulher continuou gritando para os homens:– O sapo está aqui, dançando, quebrando as panelas!Uma cobra escutou:– Ela falou que Arutsam está lá, dançando na nossa casa!Os homens cobras foram correndo ligeiros para cercar o sapo. Ele estava dançando

no centro da casa, já tinha pegado o arco e a flecha de volta. Na hora que as cobras foram chegando, o sapo entrou na casa do centro. Ele subiu e ficou bem na ponta da casa central. As cobras procuraram por dentro da casa, rodearam novamente. Todos os tipos de cobras subiram para procurar e nada, não encontraram o sapo. Então o sapo pulou na cara da lua. Dizem que foi, mas na verdade ele continua na terra. O sapo tocou a flauta Jumi ãtotõ na lua, o onça e as cobras escutaram a música do sapo e ficaram com muita raiva dele:

– Puxa a gente deixou ele escapar! Ele levou tudo, o arco, as flechas, e Jumi ãtotô que a onça deu.

O sapo Arutsam conseguiu enfrentar as onças e as cobras somente porque ele tinha uma reza muito forte. Assim termina a história do sapo Arutsam.

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História do pequi

História narrada por Takumã Kamaiurá, escrita e ilustrada por Matariwa Kamaiurá

Era uma vez um homem apaixonado por uma mulher. Ele foi pegar pequi e viu um caroço bonito de pequi:

– Que bonito, esse pequi podia ser minha esposa!Ficou passando a mão no caroço do pequi. Ele foi embora para a casa dele. À noite uma

mulher chegou em sua casa:– Ei, ei,ei...A irmã do rapaz escutou e falou:– Tem gente te chamando, vai lá ver quem é.– Quem é você?– Eu sou aquela que você falou que podia ser a sua mulher. Eu sou pequi.– Vamos entrar, disse o rapaz.– Que bonita a mulher pequi – a irmã do rapaz a cumprimentou.A mãe do rapaz veio:– Você está aí, menina, que bom que você veio ficar com o seu primo.Veio o marido:– Você está aí, sobrinha? Cumprimentaram a moça e ela acabou ficando com o rapaz. No outro dia as cunhadas dela

foram pegar pequi. Ela falou:– Depois a gente vai, mais tarde um pouco, para que ter pressa?O sol estava um pouco alto, elas foram atrás. Ela pediu para levar o cesto:

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– Será que nós vamos encher?– Claro que vamos encher!Elas foram e olharam o toco do pequizeiro:– Coloque o cesto aqui – disse a mulher pequi.Ela colocou o cesto encostado no pé do pequi, quebrou o toco e os caroços de pequi

caíram no cesto. Até que encheu o cesto e colocaram outro, que encheu de novo. Pediu outro cesto, que encheu também A mulher tampou o toco. Vieram com os cestos cheios de pequi. Chegaram em casa e as cunhadas ficaram contentes quando viram os caroços de pequi. Ela falou para o marido:

– Vá lá pegar lenha!O marido trouxe a lenha. Ela começou a cozinhar o pequi e a mãe do rapaz levantou:– Puxa como vocês conseguiram tantos caroços de pequi? O rapaz falou para a mãe:– Você precisa ver mãe, é muito! Nós chegamos lá, ela

tirou um toco do pequizeiro e os pequis derramaram muito.Tiraram os pequis da panela e começaram a raspar. O

sogro da moça chegou:– Vocês não fazem caldo doce, não?A mulher falou para o marido:– Vamos pegar doce lá.Eles foram e chegaram no pé do pequi. Quebrou

o toco em baixo, tirou o doce pronto, tirou muito. Quando chegaram em casa ela deu para o marido provar:

– Prove aí!– Que bom!O marido ficou contente. Depois deram para o pai e para a mãe. Começaram a comer, a

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irmã, todos que estavam na casa comeram. As irmãs do rapaz falaram:– Vocês pegaram onde?– No pé de pequi.Durante à tarde chamou as cunhadas:– Vamos pegar pequi?– Vamos!Elas ficaram contentes, não ficaram com preguiça. Todas levaram cestos e chamaram a

mãe:– Vamos, mãe, para você ver o que acontece lá.Elas foram embora. O marido falou para a mulher:– Eu não vou não, eu vou pegar lenha.Foram conversando com a mãe:– Você vai ver mãe, os caroços do pequi.Chegaram lá no pé do pequi e ela tirou o toco do pequizeiro. Pediu primeiro a cesta da

sogra e encheu. Em seguida a cesta da cunhada e depois a outra cesta. Encheram todas as cestas e ela tapou o buraco do pequi. As outras mulheres da aldeia ficaram olhando:

– Puxa, como é que elas estão conseguindo pegar tanto pequi?Com tantas cestas, elas tiraram muita polpa de pequi. O sogro ficou muito contente com a

polpa do pequi. Levaram tudo para a água. As cunhadas ficaram todas contentes. A mulher pequi veio falando para seu marido:

– Se seu pai quiser alguma coisa é só falar, tem como fazer caldo de pequi.Sempre ela ficava assim, ficou um tempão com o marido. Na época do pequi ela foi com o

marido para verem se estava dando flor:– Agora que está começando a florescer, ela falou para o marido.Ela sabia qual árvore ia dar muito:– Essa árvore aqui não vai dar muito... Agora essa aqui vai dar muito pequi.

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Ela sabia porque era mulher do pequi. Ela ficou muito tempo vivendo com eles. Quando começou a dar pequi, o marido foi tomar banho. As cunhadas, as famílias, estavam todas contentes com a esposa do irmão. A mulher continuou trabalhando e fazendo receitas de pequi para a sogra. O rapaz foi tomar banho e encontrou uma namorada. Ela falou:

– Agora que você veio tomar banho, comedor de pequi falso, você só pega pequi de dentro do tronco. Sua esposa só faz pequi que não foi pego de verdade.

Ele foi passando, só escutou e não respondeu. No outro dia encontrou de novo com a namorada e a mulher falou a mesma coisa. No outro dia, a namorada dele falou de novo:

– Você veio, tomador de mingau falso. Não sei por quê você casou com a sua mulher. A namorada do rapaz ficou falando assim para ele. Enquanto isso, a mulher dele continuava

pegando pequi. Todas as mulheres reclamavam muito para o marido dela. Toda a mulher que o encontrava falava:

– Comedor de pequi de tronco!No outro dia, a mulher do rapaz falou:– Eu vou embora.– Por que você vai embora?– Não gosto que os outros fiquem falando essas coisas de mim.Tirou a rede, começou a preparar as coisas e foi embora. As cunhadas, a sogra e o sogro

falaram para ela:– Não vá embora, não!Não adiantou nada, ela foi embora.O pai e as irmãs brigaram com o rapaz:– Você gosta de ouvir os outros falando!O marido foi atrás, mas ele não conseguiu encontrá-la. Ela sumiu e não voltou mais para o

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História de Kanasü

Ibene Kuikuro

Kanasü fez uma canoa de barro bem bonita, bem colorida. Quando ficou pronta, ele colocou-a na água e foi pescar. Kanasü encontrou o pato com seus filhotes e disse:

– Pato, aonde você está indo?– Eu e meus filhos estamos passeando por aqui!– Está bem.Kanasü ficou pensando e falou:– Pato, você tem canoa muito pequena. Como você está junto com seus filhos essa canoa

está muito perigosa, ela pode virar com seus filhos. Você não quer trocar pela minha canoa?O pato pensou e aceitou a proposta de Kanasü:– Bom, Kanasü, vamos trocar nossas canoas. Sua canoa é grande e cabem meus filhos

nela.Eles trocaram as canoas. Quando ele foi um pouco longe a canoa do pato começou a

derreter. A canoa do pato derreteu porque era de barro. Kanasü remou rápido. O pato falou para Kanasü:

– Kanasü, traga a minha canoa de volta! A canoa que você me deu já derreteu. Kanasü, traga a minha canoa!

Kanasü foi embora. Os filhos do pato choraram, mas tiveram que nadar. Por isso os patos sabem nadar, porque Kanasü trocou a canoa de barro com

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Amigo com amigo

Jeika Kalapalo

Antigamente duas pessoas eram amigas e sempre quando estavam andando juntas, um amigo falava para o outro:

– Se eu morrer primeiro eu virei buscá-lo e levá-lo lá para o céu, para matar as aves do céu.

Eles sempre andavam juntos para pescar, caçar e banhar. Um dia o amigo dele foi buscar jenipapo no mata e encontrou uma ave corajosa e ela o avisou:

– Você vai morrer.O rapaz ficou triste porque sentiu que ia morrer. Voltou triste para casa e contou para seu

amigo.– Amigo, eu encontrei uma ave lá no mato e ela me avisou que eu vou morrer, mas não sei

o dia. Passaram-se uns dez dias e ele morreu de repente. Os parentes ficaram chorando e o

amigo dele também. A alma dele foi para o céu. O amigo ficou triste. Ficava andando, lembrando do companheiro.

Uma noite teve eclipse da lua. Ele ficou satisfeito, esperando no caminho porque a alma do amigo vinha buscá-lo para ir até o céu. A alma do amigo o levou para o céu. Ele levou muitas esteiras para guardar as penas dos rabos das aves do céu. Eles chegaram na primeira ponte da alma e atravessaram bem devagar para não cair.

Lá no céu havia muitas pessoas que eram almas. A primeira vez que esse homem foi para o céu ainda não tinha morrido. Por isso as almas falaram que sentiam cheiro de homem vivo e que

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não gostavam deste cheiro. Ao amanhecer eles saíram para fazer uma festa, mas não era festa, era uma guerra das almas com as aves do céu. As almas cortaram as árvores em pedaços para matar as aves. O homem vivo fez o mesmo.

Eles começaram a guerra com as aves e mataram muitas delas. O homem vivo matou todas as aves. Ele tirou as penas dos rabos e das asas, guardando-as nas esteiras. Depois desceu para a terra, a alma de seu amigo o trouxe de volta. Ele distribuiu todas as penas para as pessoas da aldeia e contou sua viagem. Ele ficou vivo por uns vinte dias e morreu. Assim sua

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Os sapos e os caçadores

Yabaiwa Yudja

Era uma vez alguns caçadores Yudja que foram caçar no mato, muito longe da aldeia. Quando voltaram da caçada o dia estava escurecendo. Eles pararam de andar e acamparam. Acenderam o fogo e dormiram.

Quando deu meia-noite o fogo foi apagando. Então chegou Kapae, que é um sapo magrinho e tem braço comprido. Ele viu os caçadores dormindo e esperou o fogo apagar. O sapo aproximou-se deles e começou a enfiar o dedo no ânus do homem, para tirar o cocô dele. Chegaram mais três Kapae e começaram a tirar cocô de todo mundo.

Um caçador acordou e viu que o sapo estava mexendo na bunda dele. Ele acendeu o fogo e os sapos correram para o mato. Ele acordou o pessoal. Todos estavam magros, porque o sapo tinha tirado cocô deles. Todo mundo acordou com a bunda cheia de bosta.

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O homem que teve medo do bicho

Yaconhongráti Suiá

Há muito tempo atrás um homem abriu roça bem distante da aldeia. Ele fez a roça e a casa na beira do córrego. Esse homem, regularmente, ficava sozinho nessa casa durante três dias e depois voltava para a aldeia. Um dia ele disse para sua mulher:

– Eu vou para nossa pequena aldeia ver a casa e a plantação lá na roça.Ele seguiu para sua aldeia e logo que chegou começou a anoitecer. Ele deitou e dormiu.

Durante a noite um bicho estranho, chamado Kátpy, entrou na casa e passou um remédio em todo o corpo deste homem. Esse bicho estranho era parecido com gente, mas era cabeludo, tinha bigode comprido e usava borduna para matar gente. Quando o bicho saiu da casa, o homem ficou com medo e foi embora na mesma noite.

Ele foi andando pelo caminho durante a noite e chegou às 7h00 da manhã na aldeia. Ele foi até a casa dos homens para contar o que tinha acontecido com ele.

Depois de três dias o seu amigo foi sozinho ao mesmo local onde apareceu o bicho Kátpy. Ele chegou ao entardecer e foi dormir na casa do homem onde o Kátpy tinha entrado. Durante a noite o Kátpy entrou na casa, o homem ficou apavorado, assim que Kátpy entrou, o homem saiu, roubou a borduna do bicho e saiu correndo para a aldeia. Kátpy estava correndo e gritando, chamando o nome do homem que roubou sua

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borduna. O homem chegou na aldeia e mostrou a borduna do Kátpy para o pessoal, todo mundo se

juntou no centro da aldeia para olhar a borduna.Assim que começou a anoitecer o Kátpy chegou na aldeia dos K†sêdjê, começou a andar

em volta da aldeia chamando o nome do homem que roubou sua borduna. A borduna estava guardada na casa do homem. O povo da aldeia ficou com medo, todos pediram para o homem largar a borduna do Kátpy no caminho da roça. O homem decidiu e levou a borduna até o caminho, Kátpy foi lá e recuperou sua borduna, voltando ao local onde ele morava regularmente.

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História do bacurau

Yunak Yawalapiti

O Bacurau sempre vinha de noite em cima da casa de um homem chamado Kalamiri. Ele gostava de comer aranha, barata e outros insetos. Naquele tempo ele era gente, não era passarinho. Kalamiri enjoou de ouvir o Bacurau cantando em cima de sua casa e disse:

– Você não está comendo matrinchã, você está comendo barata fedida. Não é comida de verdade o que você está comendo.

O Bacurau ficou ouvindo Kalamiri falar sobre ele, mas toda noite continuava subindo em cima de sua casa. Um dia Bacurau foi visitar aquelas pessoas da casa. Foi bem cedo visitá-los. Só tinha uma mulher com bebê na casa, as outras pessoas tinham saído para a roça. Quando Bacurau entrou a mulher perguntou:

– O que foi?– Nada, eu só vim visitar

vocês.O Bacurau foi perguntando o

nome dos donos das redes. A mulher foi falando, até chegar na rede de Kalamiri. A mulher disse:

– O dono dessa rede é quem fala mal do Bacurau – sem saber que era o próprio Bacurau que estava ali.

– Você sabe o nome dele?– Eu sei.– Como é?– Kalamiri.

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O Bacurau guardou o nome do homem na memória. À meia-noite ele veio roubar esse homem para levá-lo bem no meio de sua lagoa. Quando amanheceu, o Bacurau jogou alguns pingos d’água em Kalamiri e ele acordou bem assustado. Então ele se viu sozinho numa lagoa bem grande e chorou. Mas a lagoa era rasinha...

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A onça e o sapo

Awae Trumai

Certo dia a onça e o sapo se encontraram no mato. O sapo falou para a onça:– Primo, o que você está fazendo?– Estou passeando.– Primo, vamos fazer uma aposta, quem de nós dois tem mais parentes? Você pode

começar primeiro a chamar os seus parentes.A onça começou a esturrar, mas nenhuma

outra onça esturrou junto ou apareceu.O sapo então falou:– Agora é a minha vez.O sapo começou a cantar e os seus

parentes sapos responderam, começaram a cantar no mundo inteiro.

A onça levou o maior susto, saiu correndo desesperada e acabou desmaiando.

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Kãikuãrim – uma história antiga

Roptxi Kaiabi

Antigamente havia uma senhora de muita sabedoria. Ela foi para a roça colher os seus produtos. Quando ela voltou da roça estava com muita sede e perguntou primeiro para as filhas em sua casa:

– Tem água aqui na casa?Elas responderam para a mãe:– Não, ninguém foi buscar água.Aí ela foi entrando em cada casa e perguntando:– Por acaso vocês têm água aqui na casa para eu beber? Estou com muita sede!Todos responderam para ela que não tinham água nas casas. Ela voltou para a casa dela

muito desesperada, falando mal e xingando todo mundo:– Agora eu vou secar o rio para todos sofrerem com sede!Passou o tempo e o rio foi secando... Até que secou todo o rio e todo mundo da aldeia

sofreu de sede e calor, sem água para beber e tomar banho. Então o povo da aldeia se reuniu, perguntando porque o rio havia secado. Todos estavam sofrendo e ninguém sabia porquê. Até que um idoso no meio da reunião falou:

– Vocês sabem por que estamos sofrendo sem água? Porque passou uma senhora entrando em cada casa perguntando se havia água para beber, por isso que talvez ela tenha feito alguma coisa para secar o rio.

O pessoal da aldeia mandou chamar a senhora, quando ela chegou na reunião o pessoal fez a pergunta:

– Por acaso quando a senhora foi entrando nas casas e procurando água para beber, será que a senhora não fez alguma coisa para secar o rio?

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Aí ela esclareceu:– Fui eu.O pessoal obrigou-a a tirar alguma coisa do rio que prejudicou a comunidade. O pessoal

queria matá-la, então ela falou:– Não, não me matem. Se vocês me matarem vocês não vão sobreviver.A velha levantou e foi ao pátio da aldeia. Ela começou a apontar o dedo e onde ela

apontava o pessoal cavava um buraco tentando descobrir se estava enterrada alguma coisa ruim, até que ela apontou o dedo no local certo, tirando de lá o segredo. Depois que foi tirado o segredo da velha no período da tarde começou a chover e o rio se formou novamente.

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A coruja e a onça

Jurupiat Kaiabi

Antigamente a onça queria comer a coruja. A onça falou para a coruja:– Ô, coruja, quero comer você.A coruja respondeu para a onça:– Então tira todas minhas penas, deixa só o meu rabo e minhas asas para eu voar lá em

cima do pau para você. A onça começou a tirar as penas da coruja. A coruja falou para a onça esperá-la no chão:– Onça, eu vou voar em cima do pau para você me comer, quero que você abra bem a sua

boca para eu cair dentro.A coruja subiu na árvore e falou mais uma vez para a onça abrir a boca:– Onça, agora eu quero que você abra bem a boca porque agora vou cair dentro da sua

boca.A coruja voou e fez cocô dentro da boca da onça. A coruja foi embora e a onça começou a

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História do homem que escapou do KupÞkasák

Hw†ntxi Suiá

Antigamente um homem foi caçar macaco no mato. Quando ele encontrou com um grupo de macacos começou a matar. Foi matando, matando e parou de matar. Ele foi pegar os macacos que matou e foi juntando.

Quando terminou de juntar os macacos viu que ficaram dois macacos mortos lá em cima. Ele ia deixar os macacos lá, mas pensou:

– Será que eu vou subir para pegar?Ele resolveu subir, pegou os dois macacos, jogou no chão e começou a descer. Quando

ele olhou para baixo, viu que Kátpytxi estava lá e se assustou. Começou a chorar e falou para Kátpytxi:

– Como você me encontrou, Kátpytxi, com tanto mato para se caçar?Ele respondeu repetindo a frase do homem, porque ele não sabia falar.O homem falou novamente:– KupÞkasák, vá embora para eu descer.O KupÞkasák não queria ir embora. Ele foi descendo assim mesmo, quando chegou perto

do chão KupÞkasák bateu com a borduna bem nas costas do homem. O homem caiu no chão.O KupÞkasák começou a fazer um cesto para carregar o homem dentro. Ele foi abrindo

caminho e começou a levar o homem até a aldeia onde KupÞkasák morava.Enquanto ele estava carregando o homem nas costas um marimbondo mordeu o homem

por causa do sangue do macaco, o homem acordou e se mexeu. Quando o homem foi acordando e se mexendo o KupÞkasák bateu nele com a mão:

– Fique quieto, fique quieto!

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O KupÞkasák pôs o cesto no chão e continuou a abrir caminho no mato. O homem ficou contando o tempo que KupÞkasák ia demorar para voltar. Ele calculou que dava tempo para sair do cesto antes dele voltar. Mas o KupÞkasák voltou logo e continuou carregando o homem. Quando ele colocou novamente o cesto no chão para continuar abrindo caminho, o homem levantou do cesto e começou a esticar seu corpo para ver se estava machucado, mas ele não sentia nada. O homem colocou pedras grandes no cesto e por cima colocou o macaco morto, para o KupÞkasák não perceber.

Quando KupÞkasák voltou e levantou o cesto falou sozinho:– Por que será que está tão pesado? Não estava pesado assim!Até que ele conseguiu levantar o cesto e foi embora, dizendo:– Que pesado! Que pesado!Quando o KupÞkasák estava chegando na aldeia, seus filhos falaram para a mãe:– O pai está chegando com um bicho, mamãe!A mãe falou:– Vão lá ver o que o pai está trazendo.O KupÞkasák falou para a esposa tratar o “bicho” para os filhos comerem, porque eles não

tinham comido nada desde o dia anterior. Os filhos olharam e viram que só tinham pedras dentro do cesto. O pai falou:

– Vocês parecem cegos, o “bicho” está aí dentro.Os filhos responderam:– Pai, não tem nada aqui, só este macaco e as pedras.Então o KupÞkasák ficou surpreso, voltou novamente ao lugar onde havia capturado o

homem e não encontrou ninguém, retornando novamente para sua casa.Assim foi a história do homem caçador, que quase foi devorado pela família do KupÞkasák.

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desenho de Tempty Suiá

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O livro

O livro “Memórias de tempos antigos - livro de mitos de povos indígenas do Xingu” foi redi-gido por professores das 14 etnias do Parque Indígena do Xingu (PIX) e dos Panará. As histó-rias mais longas são trabalhos de pesquisa feitos pelos professores indígenas para a conclusão do curso de Magistério, muitas delas foram escritas também nas línguas indígenas e deverão compor livros específicos na língua de cada povo. Outras foram escritas durante as aulas de antropologia, ministradas por Carmen Junqueira, na ocasião em que se tratou da importância dos mitos para as sociedades. Estão incluídos alguns textos de membros da Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), redigidos durante um curso de língua por-tuguesa dirigido à equipe dessa associação.

Este livro representa o esforço de escrito-res de diferentes povos do Parque em redigir textos numa língua que lhes é estrangeira, uma segunda língua, trazendo a continuidade de um processo de aperfeiçoamento literário destes escritores bilíngües e multilíngues. O registro escrito dessas histórias, apesar de não ter toda a riqueza da oralidade, é importante no processo de revitalização cultural, num momento em que o interesse dos jovens indígenas está começando a se voltar mais intensamente para a sociedade

envolvente.É um livro importante, porque incentiva que

os alunos das escolas e a comunidade letrada, através da leitura, possam relembar as histórias e ainda solicitar que os narradores mais velhos as contem novamente e conheçam as histórias de outros povos com quem convivem no Parque Indígena do Xingu, além de possibilitar o interes-se e o prazer da leitura.

O Projeto

O Projeto “Formação de Professores Indí-genas do Parque Indígena do Xingu”, promovido pelo Instituto Socioambiental, foi iniciado em 1994, tendo formado, em Magistério, até 2004, 42 professores dos povos Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá, Aweti, Kamaiurá, Trumai, Suiá, Kaiabi, Ikpeng, Yudjá, Yawalapiti e Panará, que lecionam para cerca de 1.500 alunos, entre crianças e adolescentes, em 40 escolas. O trabalho se desenvolveu por meio de dois cursos anuais ministrados por es-pecialistas e do acompanhamento pedagógico às escolas indígenas nos períodos intermediários entre os cursos, estimulou a criação de ortogra-fias para as línguas indígenas e a elaboração de 32 livros didáticos.

O processo de formação foi reconhecido

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em 1998 pelo Conselho Estadual de Educação do Mato Grosso e em 2004 para uma segunda turma de professores. Os professores indígenas são preparados para atuar como educadores e pesquisadores de suas culturas, de forma a se tornarem os agentes do processo de ensino e aprendizado de suas escolas. Em 2002 foi apro-vado pelo CEE-MT o Projeto Político Pedagógico das Escolas do PIX, elaborado pelos professores indígenas com assessoria da equipe do ISA.

A partir de 2004 o projeto passou a atuar com os professores dos povos do Médio e Bai-xo Xingu, que representam seis etnias (Ikpeng, Kaiabi, Yudja, Suiá, Trumai, Kamaiurá e Waurá) e com os Panara, da Terra Indígena Panara. Em 2005, além de cursos e acompanhamento pedagógico às escolas, foram iniciadas oficinas temáticas, que envolvem além dos professores, outros agentes indígenas das áreas de saúde, manejo, fiscalização, gestores de associações, os jovens e as comunidades. Outra atividade são as oficinas pedagógicas com os professores da mesma etnia.

O público alvo

O Parque Indígena do Xingu abriga 14 povos que se diferenciam lingüística e culturalmente e é constituído por rica biodiversidade, cuja sobre-vivência vem sendo ameaçada pelas pressões

externas ocorridas no entorno do PIX: crescente desmatamento e queimadas para atividades agropecuárias que provocam assoreamento nos rios e a preocupação com a contaminação por agrotóxicos usados nas plantações. Apesar dis-so, ainda há peixes, embora inúmeras pousadas pesqueiras se multipliquem nos rios formadores do rio Xingu, sem controle e fiscalização por parte dos órgãos governamentais. A subsistência dos povos se dá, além da caça e da pesca, através de roças familiares. O PIX tem uma extensão de 2.642.003 hectares onde se distribuem cerca de 45 aldeias, três postos indígenas e 11 postos de fiscalização. A população está estimada em 4.500 pessoas.

As fronteiras do PIX, em suas sucessivas redefinições, jamais incluíram a totalidade dos territórios tradicionais dos povos que passaram a ser conhecidos como “índios do Parque”. A história do contato, os trabalhos de aproximação dos índios por parte das frentes de expansão da sociedade nacional e, mais tarde, a própria cria-ção do Parque em 1961, estabeleceram novos limites – agora entre índios e não-índios – impos-tos por forças externas às sociedades indígenas. Os territórios tradicionais se estendiam ao leste, a oeste e ao sul, para além das fronteiras.

Na região de confluência dos formadores

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do rio Xingu, ao sul do Parque, localizam-se os povos de língua Karib: Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukuá; os povos de língua Aruak: Mehinaku, Waurá e os Yawalapiti; e povos de língua Tupi, Aweti e Kamaiurá. Estes povos, apesar de sua pluralidade étnica, estabeleceram historicamen-te uma rede de relações, compartilhando uma série de características culturais conhecidas na literatura antropológica por “complexo cultural Alto-Xinguano”. No entanto, ainda permanecem entre eles elementos distintivos de ordem terri-torial, cultural e linguística.

Na região central do Parque estão os Tru-

Nota das organizadoras – Optamos em manter nas histórias os termos “o raposo” e “o onça”, pois reforçam a masculinidade destes personagens: o homem raposa e o homem onça. Consideramos que a substituição destes termos por onça macho e raposa macho tornaria o texto cansativo. Também o personagem Lua, irmão do Sol, é referido em muitas histórias como “o Lua”, pois se trata de um rapaz.

mai, de língua isolada; os Ikpeng (Txikão), de língua Karib; os Suiá , de língua Gê e os povos de língua Tupi, Kaiabi e Yudjá (Juruna). Os Suiá, Yudjá e Trumai são originários da região, e tiveram seus territórios reduzidos pelas frentes de expansão econômica a partir da década de 50. Os Ikpeng, Panará e Kaiabi, em razão das violentas pressões da sociedade nacional em suas terras tradicionais, foram submetidos a sucessivas mudanças ou transferência de seus territórios tradicionais para o Parque Indígena do Xingu. Atualmente os Panará reconquistaram parte de seu território tradicional, denominado

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desenho de Karin Juruna

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Os mitos são guardados na memória das pessoas, passados de pais para filhos e

hoje em dia são também escritos. O mito também é ciência, através dele conhecemos a vida dos antepassados, a geografia, palavras antigas, músicas,

o modo de viver de cada cultura. Os mitos são importantes para organizar

as relações sociais, a ética e a conduta dos seres humanos em suas comunidades.

Se não existissem os velhos para nos contar os mitos,

as histórias de nossos povos se perderiam no tempo. Apoio

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

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desenho Karin Juruna