Miolo Lukacs

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LUKÁCS E O SÉCULO XXI, livro de Giovanni Alves

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  • Lukcs e o Sculo XXITrabalho, Estranhamento e Capitalismo Manipulatrio

  • 1 Edio - 2010

    Editora Praxis

    Lukcs e o Sculo XXITrabalho, Estranhamento e Capitalismo Manipulatrio

    Apresentao de Ricardo Antunes

    Giovanni alves

  • Copyright do Autor, 2010

    ISBN 978-85-7917-156-3

    Produo Grfica:

    Canal6 Projetos Editoriais

    www.canal6.com.br

    A474l Alves, Giovanni.

    Lukcs e o Sculo XXI: Trabalho, Estranhamento e Capitalis-mo Manipulatrio / Giovanni Alves Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2010.120 p. : il.

    ISBN 978-85-7917-156-7

    1. Capitalismo. 2. Georg Lukcs. I. Giovanni Alves. II. Ttulo.

    CDD 330

    Projeto Editorial PraxisFree Press is Underground Press

    www.editorapraxis.com

    Impresso no Brasil/Printed in Brazil

    2010

  • Com justa razo se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem atravs do trabalho,

    como um ser que d respostas

    Georg Lukcs

  • Sumrio

    09 Apresentao

    13 ttulo de introduo

    19 Captulo 1 A Trajetria intelectual de Georg Lukcs Da Geistwissenchaften Ontologie des gessellschaftlichen Seins

    27 Captulo 2 O Mtodo de Lukcs Cotidianidade e mtodo histrico-gentico

    39 Captulo 3 Por uma Ontologia do Ser Social Elementos critico-categoriais bsicos

    57 Captulo 4 Lukcs e o Capitalismo Manipulatrio Desafios da atividade e do pensamento do homem no sculo XXI

    85 Referncias bibliografias

    89 Anexo

  • 9O Retorno de Lukcs

    Ricardo Antunes

    Filsofo maldito, Lukcs que em livro que co-organizamos em me-ados dos anos 1990 foi assemelhado a Um Galileu no Sculo XX (Boi-tempo, 1996) - tem inspirado muitos jovens estudiosos e pesquisadores.

    No Brasil, desde a primeva introduo do filsofo hngaro, pelas mos diversas de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e J. Chasin, sua influncia se vez e faz em vrias geraes. Talvez seja o pas onde a obra de maturidade de Lukcs encontre mais adeptos e seguidores.

    Na Itlia, a belssima edio da Ontologia (cujo volume I data de 1976, trazendo a cuidadosa traduo de Alberto Scarponi) expressava, por si s, a presena de Lukcs e sua obra.

    No Mxico de algumas dcadas atrs e tambm em outros pases da Amrica Latina, algo aproximado se passou, ainda que em menores propores. E na Argentina atual, para citar outro exemplo contempor-neo, pelo esforo principal de Herramienta, da importante revista e de seu editorial (com Miguel Vedda e o italiano Antonino Infranca frente), vrios textos de Lukcs da maturidade esto sendo redescobertos.

    Mas no Brasil que tal fenmeno se manteve e em certo sentido talvez tenha se ampliado. Se a influncia de Histria e Conscincia de

    Apresentao

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    Classe das mais frteis no interior do marxismo do sculo XX em v-rias partes do mundo ocidental - bastaria lembrar sua contribuio sobre o tema da totalidade e a riqueza da sua reflexo sobre o fenmeno social da reificao/alienao, antes mesmo da publicao dos Manuscritos de 1844 de Marx agora parece ser a vez da sua Ontologia, na contra-tendncia ao marxismo de vis epistemologizante e/ou permeado pela neopositivizao moda staliniana (e stalinista) que tantos malefcios trouxeram para tantos marxismos do sculo que se foi.

    A obra madura de Lukcs certamente tem continuidade com vrios elementos analticos presentes na sua juventude, de que so exemplos a reificao, a alienao, os estranhamentos, as conexes entre mundo da objetividade e da subjetividade, as questes metodolgicas, a remisso decisiva vida cotidiana, a busca incessante da autenticidade humana e de sua emancipao, etc, so temas que estiveram presentes na longa vida do mais importante filsofo marxista do sculo XX e que ganham mais fora atravs da recuperao e da nfase ontolgica do velho Lukcs.

    Este pequeno livro de Giovanni Alves um exemplo de como a obra lukacsiana vem influenciando, no Brasil, uma gama de novos estudiosos da teoria social que avanam nos estudos do mundo atual atravs das pistas seminais da Ontologia de Lukcs. Ele oferece ele-mentos para a compreenso da trajetria intelectual de Lukcs, seu mtodo, sua Ontologia do Ser Social, oferecendo, em particular, uma leitura sugestiva acerca da tese lukacsiana do capitalismo manipu-latrio, atualizando-a e tornando-a contempornea ao sculo XXI, que comeou estranho e ningum sabe como transcorrer.

    Nas palavras de Giovanni Alves: Segundo Lukcs, objetivamente o proletariado possui hoje condies materiais para uma vida plena de sentido que entretanto, no se realiza, por conta da manipulao social que impregna a vida burguesa. O capitalismo da grande inds-tria de produo em massa tende (...) a erguer no interior desses indivi-

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    duos, uma barreira entre a sua existncia e uma vida rica de sentido. A fruio da vida reduzida ao gozo do consumo alienado. A nsia fugaz pelo consumo de mercadoria incapaz de dar um sentido vida. Eis o sentido do estranhamento na tica lukacsiana: o descompasso entre a existncia dos indivduos e uma vida plena de sentido.

    E acrescenta: Um mundo pleno de mercadorias , segundo Lukcs, um mundo pleno de manipulao, que penetra no apenas os poros da produo, mas tambm do consumo e da reproduo social. Emerge, ento, o problema do estranhamento propriamente dito, que, para Lukcs, segundo o autor, o problema da vida plena de sentido (o psicanalista austriaco Viktor Frankl salienta que o problema crucial do nosso tempo o problema da busca de sentido da vida). O que, por si s, nos convida leitura deste livro de Giovanni Alves.

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    Este pequeno livro visa apresentar, de forma sinttica, algumas idias do pensamento do ltimo Lukcs que podem contribuir para uma tarefa candente do nosso tempo histrico: a crtica do capitalismo manipulatrio. O filsofo hngaro Georg Lukcs (1885-1971) foi um dos maiores filsofos marxistas do sculo XX. A obra tardia de Lukcs contm preciosas indicaes terico-categoriais que podem contribuir efetivamente para a critica do capital em sua etapa de crise estrutural1.

    1 Este pequeno livro rene as aulas revisadas e ampliadas do mini-curso virtu-al Lukcs e o sculo XXI oferecido por mim, no segundo semestre de 2009. O mini-curso surgiu como atividade complementar no-oficial do III Seminrio Internacional. Teoria Poltica do Socialismo: Gyrgy Lukcs e a emancipao humana, realizado na UNESPCampus de Marlia, de 17 a 21 de agosto de 2009. Considerei importante realizar uma atividade preparatria distncia, sobre o pensamento vivo de Georg Lukcs que conseguisse ir alem da mera exegese acad-mica e fosse capaz de resgatar o valor da reflexo lukcsiana para a pesquisa social comprometida com a critica do capitalismo do sculo XXI. Alm das aulas, o livro contm em Anexo, pequenos textos de Georg Lukcs que considerei importante resgatar. Primeiro, o texto-conferncia intitulado As bases ontolgicas do pensa-mento e da atividade do homem (de 1968); e depois, a segunda e terceira entrevis-ta concedida por Lukcs a Leo Kofler e Wolfgang Abendroth em 1965 e publicada no Brasil no livro Conversando com Lukcs (Ed. Paz e Terra, 1969, edio esgota-da). Alm do mini-curso Lukcs e o sculo XXI, participei, em agosto de 2009, a convite do Prof. Dr. Ricardo Antunes, de uma mesa de conferencia no II Seminrio Margem Esquerda. Istvn Mszros e os desafios do tempo histrico (realizado de 18 a 21 de agosto de 2009), na USP; e, a convite do Prof. Dr. Antonio Rago, como conferencista no Colquio Internacional Ontologia, filosofia e histria (Uma

    ttulo de introduo

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    A obra tardia de Lukcs, como O Capital de Karl Marx, uma obra incompleta. O velho Lukcs faleceu antes de concluir o projeto de sua tica marxista. Podemos considerar a ltima dcada de vida de Lukcs a dcada de 1960, dedicada aos trabalhos preparatrios da tica (o volumoso manuscrito, a Ontologia do Ser Social), como sendo a dcada de renascimento do pensamento lukcsiano a partir de uma nova perspectiva mais adequada para tratar dos problemas fundamen-tais do capitalismo tardio. Nesse momento, Lukcs resgata, de modo explcito, o carter ontolgico do pensamento de Marx.

    em maio de 1960, quando tem inicio a elaborao da sua tica marxista, que o velho marxista hngaro, aos 75 anos de idade, promove uma importante inflexo epistemolgica na histria do marxismo do sculo XX e na sua prpria trajetria intelectual. Na verdade, a partir do resgate explicito da ontologia na obra de Marx que tem inicio a fase de maturidade plena (e inconclusa) de Georg Lukcs. O contato com os escritos ontolgicos de Nicolai Hartmann, no decorrer da dcada de 1950, exerceu um papel crucial na trajetria do filsofo hngaro. Como observou Nicola Tertulian, os escritos ontolgicos de Nicolai Hart-mann jogaram o papel de catalizador na reflexo de Lukcs, provavel-mente inculcando-lhe a idia de buscar na ontologia e suas categorias as bases de seu pensamento. (Tertulian, 2007). A abordagem da Es-ttica de Lukcs, escrita na dcada de 1950, muda de configurao, ao elaborar um nexo entre a anlise da obra de arte e questes de ordem ontolgica, embora a palavra ontologia no tenha sido utilizada por Lukcs, o que s iria ocorrer no comeo da dcada de 1960 com uma mudana de postura do autor em relao palavra (Vaisman, 2007).

    homenagem a Jos Chasin), realizado na PUS/SP, nos dias 10,11 e 12 de agosto de 2009. Agradeo a Ricardo Antunes e Antonio Rago pelo incentivo e reconhecimen-to como interlocutor veraz da reflexo lukcsiana no Brasil. Agradeo tambm o apoio e colaborao inestimvel de Thayse Palmela e Paulo Mazzini.

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    Neste pequeno livro no temos a mnima pretenso de aprofun-dar temticas que tm sido, nas ltimas dcadas, objeto de debates en-tre os especialistas da obra lukcsiana. Nosso objetivo to-somente salientar a importncia do pensamento do ltimo Lukcs, em contraste com as outras etapas de sua trajetria intelectual, tendo em vista que, a partir da obra tardia de Lukcs que podemos efetivamente promover a atualidade radical do seu pensamento no contexto histrico da mun-dializao do capital. Apesar de incompleta, a obra tardia de Lukcs que o projeta como um autor do sculo XXI.

    Nas ltimas dcadas de desenvolvimento do capitalismo global, o sistema mundial do capital exacerbou como trao essencial de seu so-ciometabolismo, a manipulao. Por isso, mais do que qualquer outro adjetivo que possamos atribuir ao capitalismo do nosso tempo (glo-bal, financeiro, cognitivo ou flexvel) o atributo manipulatrio visa salientar um trao essencial e ineliminvel do novo capitalismo nas condies da crise estrutural do capital.

    A manipulao perpassa a produo e a reproduo social do ca-pital, constituindo obstculo decisivo ao desenvolvimento do ser hu-mano-genrico. A manipulao devassa a vida cotidiana. Da produo ao consumo, do trabalho ao lazer, da cultura poltica, a manipulao aparece como elemento essencial do modo de controle sociometabli-co do capital em sua etapa tardia. Ela inverte e perverte a prxis huma-na corroendo as tnues possibilidades da negao a negao no inte-rior de um sistema mundial produtor de mercadorias que exacerbou exausto suas contradies sistmicas.

    Em plena dcada de 1960, ao utilizar o conceito de capitalismo manipulatrio, Lukcs salientou uma caracterstica fundamental do novo capitalismo que iria emergir a partir da crise estrutural do capital na dcada seguinte. Ora, Lukcs no viveu para ver as transformaes candentes do capitalismo global. A mundializao do capital impulsio-

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    nada pela grande crise de meados da dcada de 1970 nos pases capita-listas centrais, exacerbaria as tendncias crticas do capitalismo tardio. A reestruturao capitalista assumiria uma dimenso totalizante e totalit-ria no plano mundial. Os trinta anos gloriosos de expanso capitalista do ps-guerra (1945-1975) seriam seguidos por trinta anos perversos (1975-2005) de reestruturao produtiva do capital, desemprego em massa, polticas neoliberais e intensificao da manipulao capitalista nas vrias instncias do ser social. A crise estrutural do Welfare State e a vigncia perversa do mercado com a ideologia neoliberal, que impreg-na no apenas a economia e a poltica, mas a cultura e a psicologia de massa, colocam obstculos candentes prxis humana emancipatria.

    Sob o capitalismo manipulatrio, mais do que nunca, a disputa pela subjetividade do homem que trabalha, tornou-se essencial para a reproduo social do sistema mundial do capital (Alves, 2007). No plano da produo, o toyotismo imps-se como ideologia orgnica da produ-o de mercadorias. A ideologia do consumismo e os valores-fetiches do mercado colocaram imensos desafios prxis coletiva num contexto de ofensiva do capital nas vrias instncias da vida social. Intensifica-se o fetichismo da mercadoria e suas derivaes sociometablicas.

    Na verdade, sob o capitalismo manipulatrio, o metabolismo social tencionado exausto pela nova dinmica capitalista. Coloca-se com vigor, o problema da prxis humana capaz de negao da negao. Para que possa renascer, a crtica marxista obrigada a enfrentar no plano do pensamento, a problemtica da reproduo social e da vida cotidiana (o que Antonio Gramsci constatou, de modo pioneiro, na virada para o capitalismo organizado da dcada de 1930, como sendo o problema da hegemonia). A ruptura copernicana ou virada ontolgica de Lukcs - da esttica para a tica - significa colocar na agenda da reflexo marxista, o desvelamento crtico (e histrico-ontolgico) da vida cotidiana.

    interessante que, sob a temporalidade histrica do capitalismo tar-dio, Henri Lefebvre, Karel Kosik, , Jean-Paul Sartre, Kostas Axelos, Andr

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    Gorz, Agnes Heller (inspirada no seu mestre, Georg Lukcs), entre outros, abriram, cada um a seu modo, um campo de discusso sobre a cotidiani-dade. Na verdade, o tema da vida cotidiana remete ao tema da alienao capitalista que se impe como problema fundamental do nosso tempo (o ltimo captulo da Ontologia do Ser Social, de Lukcs, que, segundo Wer-ner Jung poderia ser denominada Ontologia da Vida Cotidiana, dedicado discusso do estranhamento [Entfremdung]) (Jung, 2007).

    O marxismo dialtico do ps-guerra, crtico voraz da vulgata marxista-leninista, renasce elaborando a crtica da vida cotidiana. Sob o neocapitalismo tornam-se imprescindveis inovaes ontolgico-categoriais capazes de dar uma resposta necessidade histrica de re-nascimento do marxismo (como diria Lukcs). No a toa que um dos mais prolficos discpulos de Lukcs - Istvn Mszros, inaugurou a seminal critica do capital, dissecando a teoria da alienao em Marx no seu livro clssico A teoria da alienao em Marx, publicado origi-nalmente em 1972 (Mszros, 2006).

    O problema da alienao ou estranhamento o problema da vida cotidiana. Eis a verdadeira inflexo ontolgica lukcsiana que emerge no perodo histrico do capitalismo tardio. A critica da manipulao capitalista a crtica da vida cotidiana como critica do ser social bur-gus, no mais a partir de uma perspectiva da conscincia de classe atribuda, mas fizera Lukcs em Histria e Conscincia de Classe, mas a partir da conscincia de classe contingente e necessria, como exposto por Istvn Meszros (Meszros, 2008).

    Deste modo, o que buscamos salientar neste pequeno livro que a con-tribuio seminal de Georg Lukcs para o sculo XXI abrir uma agenda de investigao social numa perspectiva histrico-ontolgica capaz de dar conta dos problemas da reproduo social, isto , investigar na perspectiva histrico-gentica, a ontologia da vida cotidiana e o complexo de ideologias que constituem o novo metabolismo social do capitalismo manipulatrio.

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    A virada ontolgica de Lukcs repe a critica da economia po-ltica ou critica da viso de mundo burguesa, no apenas como critica da economia ou critica da poltica (como o marxismo do sculo XX cultivou em demasia), mas, sim, a critica da vida cotidiana, no sentido de decifrar de forma concreta, o sociometabolismo do capitalismo ma-nipulatrio. A nova crtica da economia poltica, que Lukcs apontava como necessria, a crtica do sociometabolismo do capital em sua fase de crise estrutural. No deixa de ser curioso que, nas ltimas d-cadas, a maior parte dos lukcsianos no Brasil, apesar de terem dado ateno a virada ontolgica do velho Lukcs, no conseguiram pr, como tema crucial de suas agendas investigativas, o problema da vida cotidiana e o problema da alienao no seu sentido radical. Na verdade, so pouqussimos os estudos inovadores que tratam hoje, do tema can-dente do estranhamento sob o capitalismo global. Em geral, o lukcsia-nismo brasileiro padece de reiteradas exegeses filosficas, necessrias, mas insuficientes, da obra do velho mestre hngaro.

    Ora, a virada ontolgica de Lukcs implicou ir alm da pauta epis-temolgica do marxismo ocidental. O ltimo Lukcs abriu uma agenda de investigao capaz de ir alm do universo marxista que predominou no sculo XX. Ela exige uma interveno sociolgica propriamente dita. Enfim, o que queremos salientar que o ltimo Lukcs , in potentia, um homem do sculo XXI, o sculo da capitalismo manipulatrio.

    O que Lukcs aponta a necessidade de pesquisas sociais concre-tas capazes de desvelar os meandros do novo metabolismo social do ca-pital nas condies de sua crise estrutural. O ltimo Lukcs acena no para uma filosofia da vida cotidiana, mas sim para uma sociologia da vida cotidiana (como pontuou Agnes Heller) capaz de discutir a prxis social no sentido da formao humano-genrica (Heller, 1987).

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    Na medida em que se aproximou do marxismo, Georg Lukcs teve uma trajetria de vida intelectual-pessoal peculiar aos desdo-bramentos do que Perry Anderson denominou marxismo ocidental no sculo XX. Alis, pode-se consider-lo como sendo o fundador do marxismo ocidental. Segundo Merleau-Ponty, o marxismo ociden-tal comea com a obra Histria e Conscincia de Classe (HCC), de Georg Lukcs, publicada em 1923 (Merleau-Ponty, 2006).

    A expresso marxismo ocidental busca caracterizar a constelao poltico-intelectual do marxismo do sculo XX que a partir do incio dos anos 1920, delimitou diferenas com o que julgavam ser uma interpreta-o mecanicista e positivista do legado de Marx; o que os diferencia tanto do marxismo da II Internacional, quanto do marxismo sovitico, o marxismo-leninismo da III Internacional. Este conjunto de pensadores marxistas, com notveis diferenas terico-criticas entre si, incluem, en-tre outros, alm de Georg Lukcs (a partir de HCC), Karl Korsh, Antonio Gramsci, Herbert Marcuse, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Ernst Bloch. Os autores do marxismo ocidental buscaram dar uma maior nfase nos estudos da subjetividade, da cultura, da arte e da filosofia (Anderson,1989; Merquior,1987; Loureiro e Musse, 1998).

    Pode-se dividir a trajetria intelectual de Lukcs em quatro etapas:Na primeira etapa (1907-1919), Georg Lukcs ainda no mar-

    xista, mais cultiva em seu esprito uma profunda insatisfao com o

    Captulo 1

    A Trajetria intelectual de Georg Lukcs

    Da Geistwissenchaften Ontologie des gessellschaftlichen Seins

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    Lukcs e o scuLo xxi

    prosasmo da vida burguesa que se explicitar numa reflexo trgica a partir das formas culturais, com destaque para o teatro e a poesia. Neste perodo, o jovem Lukcs viveu a ascenso e o dbacle da civiliza-o burguesa, isto , a belle poque do imprio austro-hungaro (1907-1914) e a barbrie social da I Primeira Guerra Mundial (1914-1917).

    Filho de um banqueiro hngaro, Lukcs teve um padro de vida bur-gus, mas, desde cedo, cultivou a crtica trgica, quase anmico niilista, do mundo burgus. Por isso, em 1910, aos 25 anos, publica A Alma e as For-mas, livro composto de ensaios de critica cultural, onde Lukcs defende a oposio radical entre a vida autntica, com aspirao ao absoluto, e o mundo ordinrio, reduzido impureza material da sociedade capitalista. Da impossibliddade de conciliao entre o absoluto e o relativo, emerge uma viso trgica da existncia e uma crena na salvao messinica.

    No ano seguinte, em 1911, ele publica em hngaro, A Histria da Evoluo do Drama Moderno, em que estabelece o conflito entre o desejo humano de realizao e a reificao capitalista como fundamento do dra-ma moderno. Novamente, eis a problemtica fundamental lukcsiana, apreendida numa tica trgico-niilista de cariz neokantista, que expressa o sofrimento entre a interioridade do homem e o mundo exterior.

    A Primeira Guerra Mundial e seus resultados histrico-politicos na Rssia e na Europa Central (Revoluo Alem e Revoluo Hungar) contribuiro para uma inflexo fundamental no pensamento lukacsia-no. De 1914 a 1918 Lukcs se aproxima de Hegel e assume a dialtica, rompendo com o neokantismo que influenciava a constelao inte-lectual das cincias do esprito (geistwissenchaften). a Revoluo Russa e seus desdobramentos politicos na Hungria, que impulsionar Georg Lukcs para a segunda etapa de sua vida intelectual, quando ele, aos 34 anos, se aproxima do marxismo sob a forma de historicismo abstrato, embasando um ativismo revolucionrio fortemente assimila-do de Rosa Luxemburgo (Netto, 1981)

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    A Trajetria intelectual de Georg Lukcs

    A critica radical da misria da vida burguesa, que caracterizou a primeira etapa do desenvolvimento intelectual de Georg Lukcs, e que era feita, naquela poca, na perspectiva das cincias do esprito (geistwissenchaften), ser um trao essencial do pensamento intelec-tual de Georg Lukcs. Alis, podemos consider-lo como o tema fun-damental e fundante do devir intelectual de Lukcs no mundo, tema que ele ir preservar, mutatis mutantis, por toda a vida intelectual at a morte (bem mais tarde, Lukcs encontrar sua formulao crtico-te-rica mais adequada, na categoria de estranhamento, cerne essencial da tragdia humano-genrica sob o mundo do capital).

    Nesta primeira etapa de seu desenvolvimento intelectual, a rebel-dia espiritual do jovem Lukcs diante do prosasmo da vida burguesa se desdobrar em sucessivos trnsitos ideolgico-toricos. Ele passa, por exemplo, da influncia neokantista aproximao hegeliana, que cons-tituiro sub-etapas intelectuais, nesta primeira grande etapa da vida intelectual do filsofo hngaro.

    A segunda etapa do itinerrio intelectual de Lukcs (1919-1930) uma fase de transio entre o criticismo burgus de vis esttico-kan-tiano e depois hegeliano, para o marxismo de novo tipo, um marxismo dialtico, que j nasce contraposto ao universo terico-filosfico da II Internacional. Portanto, esta segunda etapa um perodo de transio ao marxismo ontolgico.

    Em 1920, Lukcs publica o livro A Teoria do Romance, que apa-recera, em 1916, sob a forma de artigo, no peridico Zeitschrift fr Astkettk und Allgemeine Kunstwissenschaft. Nessa obra, Lukcs analisa o romance como expresso da sociedade capitalista moderna, caracterizada pela ciso entre o indivduo e o mundo, opondo-se for-ma grega da epopeia, caracterizada pela harmonia e totalidade tico-esttica. Novamente aparece a problemtica fundamental lukcsiana: o tema da ciso trgica entre individuo e mundo.

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    Lukcs e o scuLo xxi

    Entretanto, trs anos depois, em 1923, produto do seu amadure-cimento intelectual, sob as condies histricas da Revoluo Alem, o filsofo hngaro, j filiado ao Partido Comunista da Hungria desde 1918, publica, aos 38 anos, o livro Histria e Conscincia de Classe, uma das mais polmicas obras de sua trajetria, duramente criticada tanto pela direita como pela esquerda do movimento comunista internacional. O alvo principal da condenao do livro reside em seu idealis mo revolu-cionrio, transposto da filosofia hegeliana. Em HCC, Lukcs faz uma lei-tura original do marxismo, contrastando-se com o marxismo positivista da II Internacional e mais tarde, com o marxismo-leninismo.

    A terceira etapa do itinerrio intelectual de Lukcs (1930-1960) a mais longa das etapa de formao do marxismo lukcsiano. um percurso de re-elaborao critica do marxismo onde o projeto ontol-gico est apenas implcito. A apreenso ontolgica do marxismo est pressuposta em germe, na medida em que as linhas diretrizes da inves-tigao lukcsiana neste perodo, partem da teoria materialista da obje-tividade baseada na crtica de Marx filosofia especulativa de Hegel.

    Em 1930, Lukcs abandona a ustria e segue para Moscou, onde passa a trabalhar no Instituto Marx-Engels. L os Manuscritos Eco-nmicos e Filosficos de 1844. Lukcs diria mais tarde que a leitu-ra desses manuscritos mudou toda minha relao com o marxismo e transformou minha perspectiva filosfica.. nos Manuscritos de Paris que Marx fazia o reconhecimento da objetividade enquanto propriedade originria de todo ente. Lukcs se aproxima do que seria o projeto histrico-ontolgico de Marx. Entretanto, na poca, Lukcs tinha srias desconfianas e suspeitas em relao palavra ontologia, resistindo em utiliz-la. Por exemplo, a ontologia na conotao dada por Martin Heidegger era um valor negativo para ele (Vaisman, 2007).

    Em sua autobiografia intitulada Pensamento Vivido, Lukcs re-lembra a virada epistemolgica que ocorreu, naquela poca, em seu

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    A Trajetria intelectual de Georg Lukcs

    pensamento com o reconhecimento da objetividade enquanto proprie-dade originria de todo ente e o carter histrico de todo ser. Diz ele:

    Marx elaborou principalmente e esta eu considero a parte mais importante da teoria marxiana a tese segundo a qual a categoria fun-damental do ser social, e isto vale para todo ser, que ele histrico. Nos manuscritos parisienses diz que s h uma nica cincia, isto , a histria,e at acrescenta: Um ser no-objetivo no-ser. Ou seja, no pode existir uma coisa que no tenha qualidades categoriais. Existir, portanto, significa que algo existe numa objetividade de determinada forma, isto , a objetividade de forma determinada constitui aquela ca-tegoria qual o ser em questo pertence. (Lukcs, 1999)

    No decorrer dos anos de 1930, Lukcs dedica-se critica literria, uma elaborao marxista original que assumiria, na dcada de 1950, sua forma quase-acabada com a volumosa obra da Esttica. impor-tante que se diga que a critica literria de Lukcs no meramente for-malista, mas contm elementos de uma viso ontolgico-materialista do mundo, onde ele exerce, de certo modo, a critica da vida cotidiana atravs da totalidade concreta da arte realista.

    Esta terceira etapa do desenvolvimento intelectual de Lukcs um perodo preparatrio para a elaborao sistemtica do que viria a ser, a partir de 1960, o marxismo ontolgico. Nessa poca, Lukcs inicia a elaborao da sua tica, cujos trabalhos preparatrios se transforma-ram no volumoso manuscrito, a Ontologia do Ser Social, concebida como uma necessria introduo obra principal.

    Na quarta etapa da trajetria intelectual de Lukcs (1960-1971), o filosofo marxista hngaro desenvolve, de modo explicito, seu projeto ontolgico. Primeiro, Lukcs muda sua postura em relao palavra on-tologia. O contato com a volumosa Ontologia, de Nicolai Hartmann, desde comeos da dcada de 1950; e o livro de Ernst Bloch, Questes Fundamentais da Filosofia Pela ontologia do ainda-no-ser, publicada

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    Lukcs e o scuLo xxi

    em 1961, contriburam para que o velho Lukcs decidisse elaborar, no sentido de explicitar, a partir de Marx, a ontologia marxista concebida como introduo tica (Vaisman, 2007). Na sua Esttica, os proble-mas ontolgicos estavam presentes. Entretanto, ao decidir elaborar uma tica, Lukcs se depara com a necessidade de elaborar, como trabalho preparatrio, uma ontologia do ser social a partir de Marx.

    Nesta quarta etapa de sua trajetria intelectual, Lukcs pe efeti-vamente o projeto ontolgico de Marx na perspectiva da elaborao de uma tica, obra capaz de resgatar o compromisso candente com o mar-xismo radical, onde ser radical ir at a raiz das coisas, e a raiz das coisas o prprio homem. Portanto, o marxismo de Lukcs uma marxismo humanista que busca analisar, numa perspectiva histrico-ontolgica, as relaes sociais entre os homens a partir da (crtica) da vida cotidiana.

    Etapas da trajetria intelectual de Georg Lukcs

    Critica radical do mundo burgus(ciso entre individuo e gnero)

    1. etapa (1907-1919)2. etapa (1919-1930)3. etapa (1930-1960)

    4. etapa (1960-1971)

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    A Trajetria intelectual de Georg Lukcs

    Ao colocar como telos tardio de seu itinerrio intelectual, a elabo-rao de uma tica marxista, Lukcs explicitou, primeiro, a importncia de apreender a dialeticidade da prxis scio-humana sob as condies avanadas do processo civilizatrio e, depois, a necessidade da crtica do sistema estranhado do capital em sua fase manipulatria. Ele sabia que a prpria construo do socialismo do sculo XXI seria obra de homens e mulheres conscientes de sua radicalidade, e comprometido com valores tico-morais emancipatrios capazes de contribuir para o desenvolvimento humano autntico. Este seria o sentido radical do socialismo como produto da democratizao radical da sociedade.

    O que marca a ltima etapa da trajetria intelectual de Lukcs, a quarta (e inconclusa) etapa de seu desenvolvimento terico, a sistema-tizao explicita dos princpios ontolgicos do pensamento de Marx, no sentido de uma critica da vida cotidiana, isto , do prprio ser social. Em sua critica literria, como salientamos acima, Lukcs j ensaiava a criti-ca da vida cotidiana burguesa com seus traos de alienao e estranha-mento. Ora, a temtica do estranhamento, como salientamos acima, a temtica crucial do marxismo lukcsiano, constituindo-se objetivamente como problemtica fulcral de crtica do capital em sua etapa tardia.

    Dizer que o problema histrico fundamental o problema do es-tranhamento significa colocar, como problema crucial do nosso tempo histrico, o abismo entre as capacidades humano-genricas ampliadas pelo processo de desenvolvimento civilizatrio, com a reduo das bar-reiras naturais e o aprimoramento do trabalho humano, e os obstculos sociais postos pelo capital efetividade do ser genrico do homem.

    Deste modo, confirma-se a problemtica fundamental e fundan-te do pensamento critico de Georg Lukcs, que ele re-elabora desde a sua juventude, em direo a uma compreenso histrico-ontolgica: o conflito abismal entre possibilidades concretas de desenvolvimento humano-genrico e o mundo social do capital, cujas relaes sociais

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    Lukcs e o scuLo xxi

    fetichizadas e estranhadas desefetivam o ser genrico do homem. Por exemplo, no livro de 1910, A Alma e as Formas, a problemtica do estranhamento aparecia, ainda mistificada, pela oposio radical entre vida autntica, com aspirao ao absoluto, e mundo ordinrio, reduzi-do impureza material da sociedade capitalista.

    Em sua Ontologia do ser social, a discusso lukcsiana da cate-goria trabalho, categoria ontolgica fundante do ser social, e as dis-cusses da categoria ideologia e categoria reproduo social, onde Lukcs trata, por exemplo, da genericidade em si e para si, culmi-nam efetivamente na categoria estranhamento (Entfremdung). Es-tamos diante dos pressupostos tericos para a discusso de uma tica marxista, capaz de explicitar, numa perspectiva dialtico0-materialista, os termos ontolgicos da prxis emancipatria do homem (uma onto-logia do ainda-no-ser da negao da negao).

    O tema crucial da poca do capitalismo manipulatrio o tema do estranhamento, com todas as suas implicaes no plano das in-dividualidades humano-genricas e da prxis social emancipatria. O velho Lukcs percebeu que o almejado renascimento do marxismo implica a capacidade dos pesquisadores marxistas apreenderem no plano terico-categorial, a nova estrutura do metabolismo social do capital com suas mltiplas determinaes concretas. Diria Marx: Hic Rhodus, Hic Salta1.

    1 A expresso Hic Rhodus, hic saltus! aparece numa fbula de Esopo onde um atleta fanfarro que era muito criticado pelo seu desempenho fsico viaja para Rodes e, no retorno, diz que fez o maior salto j visto e que tinha testemunhas l para provar. Ento, um de seus interlocutores responde-lhe para ele imaginar que estava em Rodes e fazer o salto, dizendo para o atleta: Hic Rhodus, hic sal-tus! (Aqui est Rodes, agora salta!).

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    No livro Conversando com Lukcs, de 1967, o filosofo hngaro dis-corre, numa conversa com intelectuais alemes Leo Kofler, Wolfgang Aben-droth e Hans Heinz Holz, sobre o que seria seu mtodo de investigao crtica de cariz histrico-ontolgico. Iremos apresentar, neste captulo, algumas das caractersticas do mtodo de Lukcs a partir desta conversa memorvel1.

    Num primeiro momento, o velho Lukcs coloca a centralidade da vida cotidiana para a investigao histrico-ontolgica. Na perspectiva da construo do marxismo ontolgico, o conceito de cotidianidade ad-quire, para o ltimo Lukcs, importncia fundamental. Ao invs da vida cotidiana ser a obscuridade do instante vivido que deve ser superado, como ele a tratava em seus escritos da dcada de 1930; ou o obstculo conscincia de classe do proletariado que preciso eliminar, como ele a caracterizava em HCC, a vida cotidiana aparece, para o ltimo Lukcs, como sendo uma esfera que representa o ponto inicial e o final de toda atividade humana, na medida em que dela derivam as capacidades e exi-gncias com relao s objetivaes, que encontram sua aplicao lti-ma na vida cotidiana. Portanto, no ltimo Lukcs, e isto est perceptvel principalmente a partir de sua grande Esttica, o conceito de vida coti-diana ou cotidianidade aparece com um sentido de positividade.

    1 Todas as citaes de Lukcs so de extratos de sua conversa extrados do livro Conversando com Lukcs (Holz, H., Kofler, L. e Abendroth, W. (1969)).

    Captulo 2

    O Mtodo de Lukcs

    Cotidianidade e mtodo histrico-gentico

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    Lukcs e o scuLo xxi

    A cotidianidade ou vida cotidiana pode ser interpretada como sinnimo do conceito de vida social. A cotidianidade ou, em termos ontolgicos, o respectivo ser social, deve ser considerado, segundo Lukcs, como um inequvoco factum brutum de uma realidade so-cial dada, o imediatamente dado, o ser-assim [Sosein], ou o ser-precisamente-assim [Geradesosein] como base para a reflexo. Para ele, a especificidade da vida cotidiana consiste em que, aqui, sempre se encontra implicado o homem inteiro. O homem da vida cotidiana sempre o homem inteiro que pensa, sente e atua.

    Na Esttica, Lukcs apresenta a cotidianidade como continuidade, carente de mtodos, de tendncia heterognea. a intercesso dos mo-mentos mais diversos e contraditrios: tradio e inovao, rotina e varie-dade. Segundo Werner Jung, a vida cotidiana para Lukcs uma constante oscilao entre decises fundadas em motivos de natureza instantnea e fugaz e decises baseadas em fundamentos rgidos, embora poucas vezes fixados intelectualmente (tradio, costumes). Entretanto, salienta Lukcs, o ser humano reage na cotidianidade diante dos objetos que o cerca, de um modo espontaneamente materialista, independentemente de como o sujei-to da prtica possa interpretar sua reao) (Jung, 2007).

    Na verdade, o centro da reflexo da obra inconclusa de Lukcs, a tica, a vida cotidiana, tendo em vista que ela o fundamento, a ime-diaticidade mediada, a partir do qual se realiza a tica e seu postulado normativo: a individualidade do ser humano ou o humano. Entretanto, na medida em que introduzida na reflexo ontolgica, a cotidianidade ou a vida cotidiana em Lukcs, como observa Jung, toma conscincia de sua prpria imediaticidade e ingressa na evoluo histrica. Diz ele:

    Tendo em vista que Lukcs parte de uma processualidade univer-sal, sua Ontologia no deve circunscrever-se numa mera fenomenologia da vida cotidiana (como fizeram Henri Lefebvre e Karel Kosik eu suas ex-posies acerca da cotidianidade). Tanto em seu carter de ponto de parti-

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    O Mtodo de Lukcs

    da sistemtico enquanto imediaticidade, como em sua condio de ponto final da Ontologia enquanto imediaticidade mediada, a cotidianidade incorporada reconstruo do processo histrico, e os elementos pertur-badores sua suposta e ftica ahistoricidade, a obscuridade do momento vivido- so desvelados em suas mediaes dialticas. (Jung, 2007).

    Vida cotidiana como ponto de partida

    Na tica metodolgica do ltimo Lukcs, sempre preciso come-ar por questes da vida cotidiana. Diz ele: Na vida cotidiana os pro-blemas ontolgicos se colocam num sentido muito grosseiro. Lukcs utilizou a palavra grosseiro no sentido de problemas em estado bruto que exigem um tratamento critico-analitico. A vida cotidiana ou a co-tidianidade, , deste modo, um inequvoco factum brutum de uma realidade social dada, o imediatamente dado, o ser-assim [Sosein], ou o ser-precisamente-assim [Geradesosein]. Em seu estado bruto, os problemas ontolgicos da vida cotidiana so, para ele, o ponto de partida de toda reflexo critica do ser social.

    Na investigao sobre a vida cotidiana, as diversas formas de ser (ser inorgnico, ser orgnico e ser social), esto sempre unidas entre elas e o seu interrelacionamento constitui o dado primrio. com questes da vida cotidiana que devemos apreender o devir humano dos homens que constitui o ser social. Diz Lukcs sobre a vida cotidiana: daqui que se deve comear do homem e suas aes e reaes ao mundo externo; e de um ser social cujo desenvolvimento histrico ocorre sob a base ineli-minvel do ser inorgnico e ser orgnico. Eis o que existe de fundamen-tal como princpio de investigao ontolgica do ser social.

    Por exemplo: Lukcs estuda a especificidade do fato esttico. Mas ele no reduz o fato esttico a uma entidade da alma humana, como imagina a

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    Lukcs e o scuLo xxi

    filosofia acadmica. Na verdade, ele observa que os homens dependem sem-pre, de algum modo, para a defesa e construo de sua existncia, das formas diversas sobre a base das quais eles organizam cada uma de suas aes e rea-es ao mundo externo. Por isso, os desenhos da idade da pedra encontrados em cavernas pr-histricas, no eram meros fatos estticos propriamente di-tos, mas eram na realidade, preparativos mgicos para a caa. Diz o filsofo hngaro: Aqueles animais no eram pintados com finalidades estticas, mas sim porque os homens daqueles tempos acreditavam que uma boa represen-tao de um animal equivalente a uma melhor possibilidade de caa. Esta pintura , ento, uma reao utilitarista, ainda primitiva, vida.

    Cotidianidade como momento de uma conexo geral

    Lukcs salienta que as conexes da vida cotidiana so sempre muito variadas e complexas. Ele nos d outro exemplo: Vai-se a uma loja e compra-se uma gravata e seis lenos. Se tentar a representao do processo neces-srio para que o senhor e os lenos se encontrem no mercado, ento ver que se podem constituir um quadro muito variado e complexo. Deste modo, a investigao ontolgica sobre o real busca sempre apreender as mltiplas conexes que permeiam a totalidade concreta do ser social, sempre a partir dos quadros complexos e variados da vida cotidiana, totalidade concreta his-toricamente mutvel, sendo ela a prpria base do ser e suas transformaes. Num certo momento, Lukcs observa: O fato de que novos fenmenos se deixem deduzir geneticamente sobre o fundamento de sua existncia coti-diana apenas o momento de uma conexo geral, isto , significa que o ser um processo de tipo histrico. (o grifo nosso)

    Lukcs esclarece que um ser, no sentido estrito, no existe, e, por isso mesmo, um ser que estamos acostumados a chamar de cotidianidade uma determinada fixao bastante relativa de determinados complexos

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    O Mtodo de Lukcs

    no mbito de um processo histrico. Ou seja, ao dizer que devemos ter como ponto de partida a vida cotidiana, Lukcs no fetichiza a cotidiani-dade, mas busca apreende-la como o momento de uma conexo geral de determinados complexos no mbito de um processo histrico.

    Cincia ontolgica como pesquisa gentica: gnese e de-senvolvimento

    Lukcs critica a cincia social que acredita que o melhor tipo de an-lise aquela em que se compreende cada aspecto e cada maneira de ma-nifestar-se da vida, nas mais altas formas de sua objetivao. Ele observa que no se pode descer de uma forma mais alta a uma forma mais baixa. Para Lukcs o caminho ou metodologia que se deve adotar o da pesquisa gentica. Diz ele: Devemos tentar pesquisar as relaes nas suas formas fenomnicas iniciais e ver em que condies estas formas fenomnicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas. Deste modo, para o filsofo hngaro, o melhor tipo de anlise o da pesquisa genti-ca que apreende, no plano do pensamento, o movimento das formas mais baixas do ser como complexo originrio (no sentido de questes colocadas no mbito da vida cotidiana), para as mais altas formas de objetivaes. Pesquisa gentica implica em apreender a gnese, as relaes nas suas for-mas fenomnicas iniciais, e o desenvolvimento do ser, o tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas destas formas fenomnicas iniciais.

    Vejamos, por exemplo, a origem da cincia. Para Lukcs, ela origina-se no momento em que, o homem que trabalha, em cada posi-o teleolgica, mesmo que se trate de um homem da idade da pedra, pergunta-se se o instrumento com que lida, apropriado ou no ao fim a que se prope (eis uma questo sempre colocada em nossa vida cotidiana). Mesmo se nos reportarmos a uma poca anterior, na qual o

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    Lukcs e o scuLo xxi

    homem primitivo, para satisfazer a certas funes, limitava-se a reco-lher as pedras mais adequadas, por exemplo, para arrancar um ramo, ele precisava escolher, entre duas pedras, qual era a mais adequada. Diz Lukcs: Com esta escolha da pedra inicial, comea a cincia..

    Entretanto, Lukcs observa que a cincia moderna desenvolveu-se, pouco a pouco, em um aparato autnomo de mediaes, na qual os caminhos que conduzem s ltimas decises prticas, so extraordina-riamente longos, como podemos observar hoje, em todas as fbricas. Diz ele: Creio que muito mais seguro reconstituir o caminho da g-nese da cincia, comeando pela escolha da primeira pedra utilizada para funes de trabalho, e terminando com a cincia, ao invs de co-mear pela matemtica superior e retornar depois escolha da pedra.

    Lukcs observa de modo categrico: ...se quisermos compre-ender os fenmenos em sentido gentico, o caminho da ontologia inevitvel, e que se deve chegar a extrair, das vrias circunstncias que acompanham a gnese de um fato qualquer, os momentos tpicos ne-cessrios para o prprio processo.

    por isso que Lukcs considera, como essencial para a investigao crtica, a questo ontolgica. S na perspectiva ontolgica podemos apre-ender os fenmenos no sentido gentico, isto , no sentido da apreenso da gnese e do desenvolvimento dos fenmenos, sendo o desenvolvimen-to no sentido dos momentos tpicos necessrios para o prprio processo. Temos nesse caso, o significado da categoria dialtica de mediao, que exige para sua apreenso, os momentos tpicos do prprio processo.

    A cincia da histria como nica cincia

    Para Lukcs, do ponto de vista ontolgico, as fronteiras entre as cincias tm um significado secundrio. Diz ele: Marx e Engels ob-

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    O Mtodo de Lukcs

    servaram que a nica cincia a cincia da histria, cincia unitria que vai da astronomia sociologia. por isso que o filsofo hngaro salienta o primado do objeto sobre quaisquer fragmentaes gnoseol-gica que impedem a apreenso, em si e para si, da totalidade concreta do ser em movimento. Para Lukcs, o fundamental so as conexes do ser: A conexo vem tratada como conexo existente, enquanto con-siderado secundrio perguntar-se qual a cincia que dela se ocupa. a partir do primado ontolgico do objeto frente compartimentalizao disciplinar do ser social promovida pelo sujeito do conhecimento, que Lukcs coloca, depois de Marx e Engels, que a nica cincia, no sentido de cincia ontolgica do ser social, a cincia da histria.

    Lukcs observa que, o objeto da cincia ontolgica do ser social, o que existe realmente; ou como ele diz: ...investigar o ente com a preocupa-o de compreender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexes no seu interior. Nesta longa citao da entrevista, Lukcs nos es-clarece, a partir de um exemplo tpico da vida cotidiana, o significado da cincia ontolgica do ser social baseada, primeiro, no primado do objeto, a prioridade da realidade do real e, segundo, na importncia do mtodo histrico-gentico, isto , a partir da vida cotidiana, compreender os fen-menos complexos partindo dos fenmenos originrios. Diz ele:

    Quando um automvel vem ao meu encontro na encruzilhada posso v-lo como um fenmeno tecnolgico, como um fenmeno socio-lgico, como um fenmeno relativo filosofia da cultura, etc; no entanto, o automvel real uma realidade, que poder me atropelar ou no. O ob-jeto sociolgico ou cultural automvel produzido, antes de mais nada, em um ngulo visual que depende dos movimentos reais do automvel e a sua reproduo no pensamento. Mas o automvel existente , por assim dizer, sempre primrio em relao ao ponto de vista sociolgico a seu respeito, j que o automvel andaria mesmo que eu no fizesse so-ciologia alguma sobre ele, ao passo que nenhum automvel ser posto

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    Lukcs e o scuLo xxi

    em movimento a partir de uma sociologia do automvel. H, pois, uma prioridade da realidade do real, se assim se pode dizer; e segundo penso, devemos tentar voltar a estes fatos primitivos da vida e compreender os fenmenos complexos partindo dos fenmenos originrios.

    Ontologia do ser social primado do objetoA prioridade da realidade do real

    Mtodo histrico-gentico A partir da vida cotidiana, compreender os fenmenos

    complexos partindo dos fenmenos originrios.

    O primado do complexo do ser

    A vida cotidiana ou cotidianidade , para Lukcs, o ponto de partida a partir do qual ele constri geneticamente a ontologia. Foi Nicolai Hart-man quem pela primeira vez, ao tratar da natureza inorgnica, observou que os fenmenos complexos tm uma existncia primria. Entretanto, Lukcs salienta que o complexo deve ser estudado como complexo, para depois chegarmos aos seus elementos e aos processos elementares. O que significa que no devemos primeiro, encontrar determinados elementos, para depois construir certos complexos a partir de sua ao recproca, o que uma critica ao individualismo metodolgico de Max Weber que re-duz a sociedade ao social, isto , a ao recproca entre os indivduos.

    Lukcs utiliza um exemplo da biologia. Diz ele que a vida um complexo primrio: A vida do organismo interior representa a fora que, em ltima instncia, determina os processos singulares. A sntese dos movimentos de cada msculo, dos nervos, e de todo o resto, mesmo que os conhecssemos um a um com preciso cientfica, a soma destas partes, diz, nunca poderia fazer surgir um organismo. Ao contrrio, os processos parciais s so compreensveis como partes do organismo completo.

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    O Mtodo de Lukcs

    Portanto, o homem , em si, um complexo, no sentido biolgico; e, como complexo humano, no pode ser, do mesmo modo, decomposto; por isso, se quero compreender os fenmenos sociais, devo considerar a sociedade, desde o princpio, como um complexo composto de com-plexos. Para Lukcs, o problema decisivo est em como so constitudos estes complexos e como podemos chegar essncia real da sua natureza e da sua funo, ou seja, da compreenso gentica da origem e da forma-o destes complexos. Eis o significado do mtodo histrico-gentico.

    Deste modo, na perspectiva ontolgica, o desenvolvimento do ser social no ocorre do simples para o complexo, como supe a sociolo-gia evolucionista de vis organicista; mas sim, do complexo para outro complexo. Mesmo o ser social menos desenvolvido, no deixa de ser constitudo por um complexo composto de complexos.

    Ao contrrio da viso funcionalista de mile Durkheim, que faz constantes analogias entre o ser social e o ser orgnico, a perspectiva de Lukcs busca salientar a especificidade do ser social em contraste com o ser orgnico e ser inorgnico. O fenmeno absolutamente destitudo de analogia com o ser orgnico o trabalho, que, segundo ele, uma espcie de tomo da sociedade e um complexo extraordinariamente complicado. Para Lukcs, o trabalho , ao mesmo tempo, uma posio teleolgica do homem que trabalha; e a colocao em movimento de uma ordem causal real na direo requerida pela posio teleolgica.

    Trabalho e o campo do desconhecido

    Na posio teleolgica, o homem empenhado no trabalho no est nunca em situao de abarcar todas as condies da ordem causal posta em movimento por ele mesmo. Por isso, como observa Lukcs, se deduz que, com o trabalho, de modo geral, se d origem tambm a algo

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    Lukcs e o scuLo xxi

    diverso da inteno originria do homem que trabalha. No sendo co-nhecido os condicionantes do trabalho, os resultados so sempre algo diverso. E observa: Mais precisamente, aparece tambm algo diferente daquilo que se originariamente se pretendia fazer.

    O que Lukcs conclui que, com a ampliao das experincias com as suas conexes, se amplia tambm o terreno do desconhecido; ao contrrio do que supe, por exemplo, o cientificismo. Diz ele: Quanto mais conhecemos a natureza, com a qual a cincia e o trabalho esto em relao de troca, tanto mais evidente resulta este medium desconheci-do, pleno das conseqncias mais importantes para o desenvolvimento posterior da humanidade. E prossegue: Este mbito desconhecido e no matrizado da reproduo social, no est circunscrito aos estados primitivos, mas existe tambm nos estados mais evoludos.

    O velho Lukcs observa que o capitalista industrial, mesmo encara-do isoladamente, domina melhor sua produo particular que o arteso da antiguidade ou da poca medieval. Entretanto, do complexo capitalista da produo e do consumo, desenvolveram-se foras desconhecidas, que explodiram posteriormente nas crises. No caso do capitalismo moderno, diz Lukcs, v iluso acreditar que se possa ter o domnio duradouro do andamento econmico (como pensam Keynes e outros).

    Um detalhe: dez anos aps esta afirmao de Lukcs, ocorreu, em 1975, a primeira recesso generalizada da economia capitalista mun-dial no ps-guerra, demonstrando que o receiturio keynesiano de combate a crise capitalista falhara flagrantemente, contribuindo, deste modo, para a derrocada eleitoral do governo trabalhista no Reino Uni-do e do governo democrata nos EUA, propiciando assim, a ascenso poltica do receiturio neoliberal da conservadora Margaret Thatcher (Reino Unido) e o republicano Ronald Reagan (EUA). Foi v iluso dos economistas keynesianos, acreditarem que tinham dominado o desen-volvimento da economia de mercado do ps-guerra, evitando, com

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    O Mtodo de Lukcs

    seus aparatos macroeconmicos, as crises contundentes da economia capitalista. No bojo do complexo capitalista de produo e consumo da era de ouro do capitalismo mundial, os ditos trinta anos gloriosos do ps-guerra (1945-1975), surgiram candentes contradies sistmi-cas que impulsionaram foras desconhecidas, que levaram gran-de crise capitalista de meados da dcada de 1970. Diante das novas foras desconhecidas do capitalismo mundial, como por exemplo, o poder global das corporaes capitalistas, o aparato de gesto keynesia-na das crises, baseado em polticas macroeconmicas conduzidas pelo Estado-nao, mostrou-se deveras ineficaz.

    Em sntese: de acordo com a perspectiva ontolgica, a vida cotidiana ou cotidianidade ponto originrio, com a categoria trabalho sendo seu modelo ontolgico. No trabalho como complexo originrio fundante do ser social, est contido algo para alm de si, isto , algo para alm da posio originria do homem que trabalha, uma esfera do desconhecido que se explica pelo fato do homem que trabalha, no dominar todos os condicio-nantes de sua atividade. Portanto, a partir da, Lukcs salienta um proble-ma ontolgico da maior relevncia: Quanto mais uma coisa complexa, tanto mais ilimitado, seja extensivamente, seja intensivamente, o objeto diante da qual se encontra a conscincia do homem, de modo que mesmo o melhor saber s pode ser um conhecimento relativo e aproximativo. (o grifo nosso) Deste modo, a pesquisa gentica trata de complexos de complexos, cujo conhecimento sempre relativo e aproximativo.

    Categorias como formas do ser (gnese e desenvolvimento)

    Para Marx, as categorias so formas e determinaes da exis-tncia. Este um dos princpios do mtodo gentico que Lukcs nos apresenta. Por isso, ele toma o livro O Capital Crtica da Economia

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    Lukcs e o scuLo xxi

    Poltica, de Karl Marx, como exemplo. Em sua obra magna, Marx co-mea pela troca mais elementar de mercadorias. E a partir da, nos fornece a determinao ontolgica da gnese do dinheiro. Diz Lukcs: Da ontologia da troca de mercadorias decorre, finalmente, a determi-nao gentica do dinheiro como mercadoria geral. Marx demonstra, depois, como o fato de que o ouro e a prata se tornem formas per-manentes de dinheiro est em conexo ontolgica comas qualidades fsicas do ouro e da prata. Estes metais prestavam-se s condies de uma troca generalizada, de modo que foi principalmente com base nes-ta propriedade que surgiu a preponderncia do ouro e da prata como meios gerais de troca, isto , como dinheiro. (os grifos so nossos) E observa: O dinheiro nasceu ontologicamente, de maneira simples, a partir dos atos de troca. Mas os antigos no tinham chegado ao ponto de poder formular esta explicao ontolgica.

    Portanto, a concepo de mtodo em Lukcs rompe com o vis gnosiolgico implcito na prpria idia de mtodo, como concebe o positivismo. Mtodo em Lukcs (e Marx) no significa arcabouo de procedimentos a serem aplicados no processo de pesquisa social. Ora, como a perspectiva ontolgica significa o primado do objeto, o verda-deiro mtodo significa apreender o movimento do objeto em sua lega-lidade especfica, evitando aplicar categorias formalmente construdas pela mente do pesquisador (procedimento gnoseolgico).

    Enfim, a dialtica no est na cabea do pesquisador, mas sim no prprio movimento do real. Por isso, o mtodo dialtico no apenas um mtodo capaz de orientar a mente do pesquisador a construir tipos ideais, mas sim, um modo de ser do real, onde a funo do pesquisador exercer o controle ontolgico, apreendendo as formas de ser catego-rial do real e as condies de sua existncia. A dialtica no constri tipos ideais, mas visa apreender tipos categoriais.

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    Utilizaremos como texto-base de reflexo neste captulo, a con-ferencia escrita por Georg Lukcs em 1968 e que deveria ser apresen-tada no Congresso Filosfico Mundial, realizado em Viena neste ano. Entretanto, Lukcs no pode comparecer a este Congresso. O texto da conferncia intitulou-se As Ba ses Ontolgicas do Pensamento e da Ati-vidade do Homem, tendo um carter sumrio e esquemtico da filoso-fia do ltimo Lukcs. Ele foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1978, na Revista Temas de Cincias Humanas, com traduo de Carlos Nlson Coutinho. Muitas questes fundamentais que constam neste texto s seriam desenvolvidas posteriormente na obra monumental inacabada de Lukcs: a Ontologia do Ser Social.1

    A ontologia do ser social, do qual o texto As Bases Ontolgicas do Pensamento e da Atividade do Homem, uma pequena e densa sntese, abriria o caminho para a ambio terica de Lukcs de redigir uma tica marxista. Como explicamos no captulo 1, lo go ao concluir a Esttica, Lukcs se prope reda o de uma tica. Entretanto, ele considera que uma tica marxista s poderia ser construda a partir de uma ontologia histrico-materialista do ser social.

    1 Todas as citaes de Lukcs neste captulo so do texto As bases ontolgicas do pensamento e da atividade do homem publicado no livro O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Editora UFRJ, 2007.

    Captulo 3

    Por uma Ontologia do Ser Social

    Elementos critico-categoriais bsicos

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    Lukcs e o scuLo xxi

    Organizaremos nossa exposio neste captulo, a partir de trs eixos questionadores2:

    a) Categorias bsicas, isto , a matriz con ceitual bsica, os con-ceitos essenciais do corpo cientfico da ontologia histrico-materialista de G. Lukcs, em torno da qual gira a sua aborda-gem terica.

    b) Autodefinio, ou seja, a imagem terica prpria da aborda-gem lukacsiana a partir da sua au todefinio e pretenso ex-plicativa, isto , o que distingue a verso lukacsiana de outras abor dagens marxistas.

    c) Fenmenos sociais privilegiados, isto , os aspectos da reali-dade social, que sempre muito mais rica que a sua constru-o cientifica, privilegiados pela abordagem lukacsiana neste esboo da sua ontologia histrico-materialista.

    O resgate da perspectiva ontolgica

    A preocupao de Lukcs com a Ontologia, numa perspectiva histrico-materialista, est intimamente ligada necessidade de ins-taurar as bases epistemo lgicas para o conhecimento do ser social naquilo que ele tem de fundante e estruturante, isto , instituir as bases ontolgicas do Pensamento e da Ativi dade humana a partir da categoria trabalho, formada por posi es teleolgicas que pem em funcionamento s ries causais; e a considerao do Todo, na sua forma de ser, como processo histrico que se transforma.

    2 O texto deste captulo uma verso revista e ampliada do pequeno artigo O pensamento de Lukcs, publicado por mim em 1986 no Suplemento Cultural do jornal O Povo, um dos principais jornais dirios de Fortaleza (CE).

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    O Mtodo de Lukcs

    A perspectiva ontolgica de Lukcs o oposto da ontologia clssica, metafsica, especula tiva, no ancorada no real, no histrico, no material. Considerar o marxismo como uma ontologia significa reafirmar a ra-dicalidade do mtodo de Marx, onde ser radical ir at a raiz, isto , ir at o homem, ou seja, o ser social naquilo que ele tem de fundante e estruturante: a prxis humana material e histrica. O que aqui nos propomos - diz-nos Lukcs no seu Esboo - mostrar como o elemento flosoficamente resolutivo na ao de Marx consistiu em ter esboado os lineamentos de uma ontologia histrico-materialista, superando terica e praticamente o idealismo lgico-ontolgico de Hegel.

    O ato materialista de repor sobre os pr prios ps a ontologia de Hegel significa:

    No 1. plano epistemolgico , a ontologia marxia na afasta todo elemento lgico-dedutivo. Se os ve lhos materialistas tinham como ponto de partida o tomo; e se Hegel tinha como ponto de partida o ser abstrato (o Esprito), em Marx no existe nada an logo. o que diz Lukcs: Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movido) de um complexo concreto.

    Assim, para Lukcs no existe algo do qual se deduza logicamen-te a Realida de, algo como, por exemplo, o Esprito em Hegel do qual se deduzia as objetivaes mais complexas da cultura humana. O ser em seu conjunto, na onto logia marxiana, visto como um processo histrico e as categorias so formas moventes e movidas d prpria matria (formas do existir, determinaes da existncia- Marx).

    Aqui entra a relao entre a conscincia e matria. Na ontologia de Marx, no po demos subestimar a importncia da conscincia com relao ao ser material. Marx entendia a conscincia como um produto tardio do desenvolvimento do ser material. Entretanto, o produto tar-

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    Lukcs e o scuLo xxi

    dio no jamais necessariamente um produto de menor valor ontol-gico, como afirma, por exemplo, a Ontologia de He gel, numa inverso idealista, ao considerar as obras da cultura humana, produto tardio da evoluo do Esprito, como um produto de menor valor ontol gico. A conscincia, como parte movente e movida do complexo concreto material, tem um real poder no plano do ser e no carente de fora, como su pe certos modos vulgares de interpretar Marx,

    2) No plano histrico, a ontologia de Marx afasta todo elemento teleolgico. As filosofias anteriores concebiam a posio tele-olgica como particularida de de um sujeito transcendente Natureza e So ciedade (as Ontologias religiosas); ou conce-biam a posio teleolgica como particularidade de uma na-tureza especial onde as correlaes atuavam de mo do teleo-lgico, com a finalidade de atribuir nature za e sociedade tendncias de desenvolvimento de tipo teleolgico (as Ontolo-gias imanentistas especula tivas Hegel).

    Na Ontologia de Marx, a posio te leolgica uma particularida-de do ser social. Entre tanto isso no significa que no plano da evoluo his trica haja uma teleolgia. o que ressalta Lukcs: Numa socieda-de tomada realmente social, a maior parte das atividades cujo conjunto pe a totalidade em movimento certamente de origem teleolgica, mas a sua existncia real feita de conexes causais que jamais e em nenhum sentido podem ser de car ter teleolgico.

    Iremos ver a seguir, ao tratarmos do item categorias bsicas, o porqu dessa duplicidade na considerao da teleologia e causali dade no mbito do ser social.

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    O Mtodo de Lukcs

    Categorias bsicas

    A geratriz bsica do corpo de conceitos da abor dagem lukacsiana do marxismo, a sua Ontologia do Ser Social, a categoria de trabalho. Esta categoria fundamenta a Ontologia de Lukcs como eminentemen-te histrico-materialista, pois a partir do trabalho que iremos com-preender toda a especificidade do ser social face aos outros modos de ser (o ser orgnico e o ser inorgnico).

    Entretanto, o traba lho produto da evoluo do ser orgnico, de uma forma mais simples de ser para uma forma mais complexa (a passa-gem de um tipo de ser a outro, onde ocorreu um salto). Essa forma mais complexa algo qualitativamente novo, cuja gnese no pode jamais ser simplesmente deduzida da forma mais simples (esse salto o que ocorreu na passagem do ser inorgnico para o ser orgnico, ou seja, a reprodu o da vida em contraposio ao simples tornar-se outra coisa; e ocorreu na passagem do ser orgnico para o ser social, isto , a adapta-o ativa com a modifi cao consciente do ambiente, em contraposio adaptao meramente passiva etc.) Diz Lukcs: Para que possa nascer o trabalho, enquanto base dinmico estruturante de um novo tipo de ser, indispensvel um determinado grau de desenvolvimento do pro cesso de reproduo orgnica. Mas, continua adiante o nosso autor, a essncia do trabalho consiste praticamente em ir alm dessa fixao dos seres vivos na competio biolgica com. seu mundo ambiente (o grifo nosso).

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    Lukcs e o scuLo xxi

    Trabalho (produto da evoluo orgnica)

    Posies teleolgicas que movimenta sries causaisDar respostas aos carecimentos que o meio natu ral provoca

    no animal tornado homem.Abre a possibilidade do desenvolvimento superior

    dos homens que traba lham

    Ser social(adaptao ativa com a modificao consciente do ambiente)

    Ser orgnico(Reproduo da vida

    (adaptao meramente passiva)Ser inorgnico

    Tornar-se meramente outra coisa

    Existem cer tos tipos de trabalhos em algumas espcies de ani mais, inclusive com um certo desenvolvimento da di viso do trabalho (abe-lhas, etc.). Entretanto, a o tra balho no conseguiu se tornar princpio de desenvolvimento posterior no sentido de um novo tipo de ser, no caso, o ser social, mantendo-se, ao contrrio, como estgio estabilizado (fixao dos seres vivos na competio biolgica com seu mundo ambiente), ou seja, como um beco sem sada no desen volvimento biolgico.

    A essncia do trabalho que instaurou esse salto em direo constituio do ser social (o trabalho humano), efetivamente ca-racterizada por esse ir alm da adaptao meramente passiva ao am-biente natural. Ir alm dessa adaptao meramente passiva signifi ca

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    O Mtodo de Lukcs

    dar respostas aos carecimentos que o meio natu ral provoca no ani-mal tornado homem.

    O trabalho, a atividade laborativa que fabrica produtos, surge co-mo soluo de respostas aos carecimentos que a Na tureza provoca. o que Lukcs nos diz: O homem que trabalha um ser que d respostas. Todavia, para o filosofo hngaro, o homem torna-se um ser que d respostas, isto , um ser que fabrica produtos, na medida em que, paralelamente ao desenvolvimento social e em proporo crescente, ele generaliza, transformando em per guntas seus prprios careci-mentos materiais e suas possibilidades de satisfaz-los por meio dos produtos sociais fabricados por ele.

    Ora, o que Lukcs quer ressal tar que no apenas a resposta, mas tambm a per gunta um produto imediato da conscincia que guia a atividade laborativa. Todavia, isso no anula o fato de que o ato de responder o elemento ontologi camente primrio neste complexo dinmico. Ele destaca: O momento essencialmente separatrio (entre o ser da natureza orgnica e o ser social - G.A,) constitudo no pela fabricao de produtos, mas pelo papel da conscincia (...) o produto, diz Marx, um resultado que no incio do processo exis tia j na repre-sentao do trabalhador, isto , de modo ideal.

    Estaria Lukcs defendendo princpios idealistas? claro que no. O que ele quer enfatizar aqui - e is so muito importante - o perigo de desprezarmos esse campo de mediaes que articulam a atividade laborativa, vendo apenas como relao imediata trabalho = fabricao de produtos e atribuindo conscincia um papel de mero epifenme-no da re produo biolgica.

    Para Lukcs, o trabalho, que no mera mente a fabricao de pro-dutos, abre a possibilidade do desenvolvimento superior dos homens que traba lham, com a conscincia tendo, no incio e dentro do processo de trabalho, um papel ativo e decisivo. no trabalho, no complexo laborati-

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    Lukcs e o scuLo xxi

    vo, que resi de intimamente o complexo problemtico mais alto: a relao dialtica teleologia (conscincia) e causali dade (natureza).

    Outra coisa: alm do trabalho expressar a nova peculiaridade do ser social, converte-se no modelo da nova forma do ser em seu conjun-to. Assim, o trabalho o modelo objetivamente ontolgico de toda prxis so cial e toda prxis social contm em si esse carter contraditrio.

    Diz-nos Lukcs: O trabalho formado por posi es teleolgicas que, em cada oportunidade, pem em funcionamento sries causais. Temos presente aqui o complexo problemtico mais alto que emerge da categoria trabalho: o da liberdade e o da necessidade; o da teleologia e o da causalidade.

    De um lado, ns temos a liberdade: toda prxis uma deciso entre alternativas, j que todo indivduo singular, sempre que fez algo, de ve decidir se o faz ou no. Assim, todo ato social, por tanto, surge de uma deciso entre alternativas acer ca de posies teleolgicas futuras.

    Mas, por outro lado, existe a necessidade social, que exerce pres-so sobre os indivduos, freqentemente de maneira annima, a fim de que as decises deles tenham uma determinada orientao.

    Marx delineia correta mente essa condio, dizendo que os ho-mens so impelidos pelas circunstncias a agir de determinado modo sob pena de se arruinarem. Eles devem, em ltima instncia, rea-lizar por si as prprias aes, ainda que freqentemente atuem contra sua prpria convico.

    Lukcs expressa brilhantemente essa contraditoriedade do ser social - cuja condio o complexo do trabalho - com as seguintes palavras:

    Os homens fazem sua histria - diz Marx - mas no em circuns-tncias por eles escolhidas. Isso quer dizer o mesmo que antes formula-mos do se guinte modo: o homem um ser que d respostas. Expressa-se aqui a unidade, contida de modo contraditoriamente indissolvel no ser social, entre li berdade e necessidade; ela j opera no trabalho co mo

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    O Mtodo de Lukcs

    unidade indissoluvelmente contraditria das de cises teleolgicas entre alternativas com as premis sas e conseqncias ineliminavelmente vin-culadas por uma relao casual necessria. Uma unidade que se repro-duz continuamente sob formas sempre novas, cada vez mais complexas e mediatizadas, em todos os nveis scio-pessoais da atividade humana.

    No processo global do trabalho, o sujeito individual realiza, certa-mente, a posio teleolgica de modo consciente, isto , ele sabe o que est fazendo, mas sem jamais estar em condies de ver todos os con-dicionamentos da prpria atividade, para no falar mos de todas as suas conseqncias, isto , ele no sabe o que vai provocar (tratamos disso no captulo 1 quando discutimos o trabalho e o campo do desconhecido).

    Muitas vezes o homem tem clara conscincia de no poder co-nhecer seno uma pequena parte das circunstncias em que vai atuar. Entretanto, sob pena de se arruinar, absolutamente necessrio que o homem aja. Esta situao inelimi nvel criada pela dialtica do trabalho com posies teleolgicas que pem em movimento sries causais des-conhecidas pelo homem, possui duas importantes conseqncias:

    O 1. aperfeioamento cons tante do trabalho com o recuo das barreiras naturais ( Marx), isto , o trabalho se diversifi-ca nos mais diver sos campos da atividade humana, subindo de nvel tanto em extenso quanto em intensidade, fazendo com que cresa a faixa de determinaes da realida de que se tornam cognoscveis ao homem.Esse processo de aperfeioamento do trabalho hu mano no 2. pode eliminar a incognoscibilidade do con junto das cir-cunstncias em que age o sujeito indivi dual. Esse modo de ser do trabalho, a presena sempre de uma faixa do desco-nhecido, desperta tambm a sensao intima de uma reali-dade transcendente. Segundo Lukcs, essa uma das fontes das formas ideolgicas da magia e da religio, inclusive com

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    Lukcs e o scuLo xxi

    o modelo dire to do trabalho sendo utilizado, como exem-plo, para os mitos religiosos de criao divina da realidade, onde todas as coisas aparecem como produzidas teleologi-camente por um criador consciente. Assim, o aperfeioa-mento do trabalho, uma das suas caractersticas ontolgicas, chama vida produtos sociais de or dem mais elevada.

    A diferenciao interna do aper feioamento do trabalho provoca a crescente auto nomizao das atividades preparatrias da praxis humana: surgem a matemtica, a geometria, a fsica, a qumica etc. que eram originariamente momentos orgnicos do processo prepara-trio do trabalho3.

    3 A perspectiva ontolgica da dialtica do trabalho exposta pelo ltimo Lukcs a resposta materialista problemtica autonomizao dos contedo tratada por Georg Simmel (1858-1918) de acordo com a perspectiva idealista da filosofia da vida. Diz Simmel: Com base nas condies e necessidades prticas, nossa inteligncia, vontade, criatividade e os movimentos afetivos, elaboramos o ma-terial que tomamos do mundo. De acordo com nossos propsitos, damos a esses materiais determinadas formas, e apenas com tais formas esse material usado como elemento de nossas vidas. Mas essas foras e esses interesses se libertam, de um modo peculiar, do servio vida que os havia gerado e aos quais estavam originalmente presos. Tornam-se autnomos, no sentido de que no se podem mais separar do objeto que formaram exclusivamente para seu prprio funcio-namento e realizao. Por exemplo, todo conhecimento parece ter um sentido na luta pela existncia, Saber o verdadeiro comportamento das coisas tem uma utilidade inestimvel para a preservao e o aprimoramento da vida. Mas o co-nhecimento no mais usado a servio dos propsitos prticos: a cincia tornou-se um valor em si mesma. Ela escolhe seus objetos por si mesma, modela-os com base em suas necessidades internas, e nada questiona para alm de sua prpria realizao. (Simmel, 2006) Essa dialtica entre formas e contedo ou a guinada da determinao das formas pelas matrias da vida para a determinao de suas matrias pelas formas que se tornaram valores definitivos, o modo de Simmel conceber a alienao. Entretanto, como falta-lhe uma ontologia histrico-mate-rialista do ser social, a idia de que os meios tornam-se fins em si mesmos, ou ainda, as formas criadas pelas finalidades e pelas matrias da vida se despren-

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    O Mtodo de Lukcs

    Dialtica do TrabalhoAperfeioamento cons tante do trabalho (o recuo das barreiras naturais Marx),

    A crescente incognoscibilidade do con junto das circunstn-cias em que age o sujeito indivi dual.

    (ampliao da faixa do desconhecido)

    a diviso do trabalho como conseqncia do desen volvimento do prprio trabalho que cria tipos de posi es teleolgicas novas que, com o nascimento das classes sociais com interesses antagnicos, se tor nam a base espiritual-estruturante do complexo laborativo (aquilo que o marxismo chamaria de ideolo gia).

    Lukcs desenvolvendo a sua Ontologia do Ser Social a partir do trabalho com posies teleolgicas que movimenta sries causais, re-ala uma das ca ractersticas da Ontologia de Marx: a negao de uma teleologia na Histria. Diz ele: O processo global da sociedade um processo causal, que possui suas pr prias normatividades, mas no jamais objetivamente dirigido para a realizao de finalidades. Mes mo

    dem dela e se tornam finalidade e matria de sua prpria existncia aparece para ele meramente como o destino irremedivel da dialtica da vida, ao invs de ser percebida como produto da dialtica histrico-materialista do trabalho. O socilogo Georg Simmel, foi o mais importante e mais influente filosofo do cir-culo de Max Weber, freqentado por Lukcs em sua juventude. Segundo Lukcs (em 1953), o pensamento de Simmel deve ser compreendido como expresso do descontentamento anticapitalista dos intelectuais alemes, e situado no quadro global da tendncia de crtica anticapitalista da cultura.

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    Lukcs e o scuLo xxi

    quando alguns homens ou grupos homens conseguem realizar suas fi-nalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que inteiramen-te di verso daquilo que se havia pretendido.

    Portanto, o processo do trabalho, que contm, no seu intimo, a dia-ltica entre liberdade e necessidade, teleolo gia e causalidade, possui tam-bm como uma de suas caractersticas ontolgicas, (1) o aperfeioamento do prprio trabalho que expe aos homens a realida de de uma dialtica cumulativa entre o conhecido e o desconhecido; onde, no nvel da hist-ria, (2) o ho mem est cada vez mais merc do desconhecido casual.

    Por exemplo, certos eventos econmicos podem surgir mente, com a aparncia de irresistveis catstrofes naturais, como foi a crise de 1929; e isto apesar dos homens terem conscincia de que so capazes de assumirem posies teleolgicas no processo do tra balho cotidiano. Entretanto, Lukcs ressalta que o fator subjetivo conserva-se sempre, em muitos cam pos, como um fator por vezes modificador e, por ve zes, at mesmo decisivo.

    Esta a contraditoriedade concreta que uma ontologia materia-lista tornada his trica afirma ao descobrir a gnese, o crescimento, as contradies no interior do desenvolvimento uni trio do ser social ins-titudo pelo complexo do traba lho.

    Autodefno

    A abordagem lukacsiana do marxismo se autodefi ne, primeira-mente, como uma reao terica ao neopositivismo que recusa, em princpio, toda e qualquer colocao ontolgica.

    O domnio neopositi vista no ocorre apenas na vida filosfica propria mente dita, mas permeia tambm o mundo da prxis mani-pulatria. Os mtodos de pensamento neoposi tivista determinam as

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    O Mtodo de Lukcs

    constantes tericas dos grupos dirigentes polticos, militares e econ-micos de nosso tempo.

    A necessidade de uma nova ontologia, o que Lukcs denominou de renascimento do marxismo, ontologia histrico-materialista capaz de superar efetivamente as concepes decadentes da ontologia re ligiosa e as concepes estreis da ontologia imanentista-especulativa, a neces-sidade de dar conta dos novos processos sociais e fenmenos ideo lgicos para os quais no se encontra soluo nos clssicos (em nossa poca, Marx, Engels e Lnin seriam necessrios, mas insuficientes).

    Essa abordagem de Lukcs se autodefine, portanto, como um comba te contra os dois pilares ideolgicos do capitalismo manipula-trio, o irracionalismo e o neopositivismo; e a ne cessidade de uma Ontologia histrico-materialista, que renasceria livre das suas defor-maes positivis tas que a herana ideolgica stalinista promoveu. Diz-nos Lukcs: Reveladora , nesse caso, a relao com o marxismo. Na histria da filosofia, como se sa be, raramente o marxismo foi entendi-do como uma ontologia.

    Alis, a preocupao ontolgica de Lu kcs estranha moderni-dade filosfica. A natureza ontolgica da obra de Marx foi obscureci-da no mar xismo e tambm a filosofia burguesa desprezou a on tologia, quer nas vertentes positivistas e neopositivistas (o racionalismo for-mal da filosofia analtica, de Wittgenstein, do Crculo de Viena e do estruturalis mo). Em poucas palavras: a nfase ontolgica de Lu kcs contraria frontalmente as tendncias filosficas contemporneas.

    A abordagem lukcsiana do marxismo se auto define tambm como uma nova maneira de enten der, no seio da histria do marxismo, o problema da relao entre conscincia e matria. Em Lukcs, a cons-cincia no subestimada com relao ao ser material; no um mero epifenmeno da reprodu o biolgica, como pregam as vertentes vulga-res do marxismo; para ele, a conscincia, apesar de ser um pro duto tardio

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    Lukcs e o scuLo xxi

    do desenvolvimento do ser material, tem um papel decisivo e ativo no processo global do tra balho que forma o ser social. o que Lukcs diz: Quando se diz que a conscincia reflete a realidade e, sobre essa base, torna possvel intervir nessa realidade para modific-la, quer dizer que a conscincia tem um real poder no plano do ser e no - como se supe a partir das supracitadas vises irrealistas - ela carente de fora.

    Inclusive, ao atribuir conscincia o papel decisivo e ativo de delimitar, atravs do processo de trabalho material, o ser da natureza orgnica e o ser social, Lukcs d um verdadeiro sentido ao complexo problemtico da liberdade e da necessidade: Nos casos em que a cons-cincia no se tornou um poder ontolgico efetivo - diz-nos Lukcs - essa oposio (entre necessidade e liberdade - G.A) jamais pode ter lugar. Em troca, quando a conscincia possui objetivamente esse papel, ela no pode deixar de ter um peso na soluo de tais oposies.

    Essa perspectiva ontolgica de Lukcs ir abrir caminhos para a re-soluo criativa de muitas questes modernas colocadas pela manipulao social peculiar ao capitalismo tardio e pelas novas formas de alienao que surgem nos pases capitalistas e nos pases de transio socialistas.

    Fenmenos sociais privilegiados

    Esta abordagem ontolgica de Georg Lukcs, como no poderia deixar de ser, feita num nvel de abstrao muito elevado (o nvel filosfico propriamente dito). De certo modo, a ontologia do ser social, pode ser considerada como as bases filosficas para uma pesquisa so-ciolgica que venha a abordar, com toda a sua concretude, qualquer aspecto da realidade social e humana.

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    O Mtodo de Lukcs

    Por ser uma abordagem histrico-materialista, a Ontologia do ser social de Lukcs privilegia o trabalho, entendido como soluo de respostas ao carecimento material dos homens. Um trabalho que no se identifica meramente com a fabricao de produtos, mas envol-ve inicialmente posies teleolgicas (a conscincia, a liberdade) que movimentam sries causais (a fabricao de produtos, a causalidade). Portanto, a abordagem de Lukcs privilegia as cadeias de mediao e o elemento subjetivo que compem o processo global do trabalho, pelo papel ativo e decisivo que eles possam ter nas tendncias do mo-vimento do ser material.

    Essa orientao da abordagem lukcsiana pode faz-la privilegiar, nos estudos concretos dos fenmenos sociais, os problemas ideolgi-cos (por exemplo: a ao social de grupos e classes sociais no proces-so de transformao do capitalismo). A ideologia, nessa abordagem lukcsiana do marxismo, um tipo de posio teleolgica secundria que surge numa situao histrica de nascimento das classes sociais com interesses antagnicos. O nascimento das classes sociais j um produto histrico do desenvolvimento do trabalho que se aperfeioa e diferencia-se cada vez mais com a diviso hierrquica do trabalho.

    A ideologia uma nova forma de posio teleolgica (a denomi-nada posio teleolgica secundria), que, ao invs de busca elaborar um fragmento da natureza de acordo com finalidades humanas, como o faz a posio teleolgica primria (posio originria do trabalho), ela busca sim, induzir um homem (ou vrios homens) a realizar algumas posies teleolgicas segundo um modo predeterminado (a gnese da diviso entre trabalho manual e trabalho intelectual).

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    Lukcs e o scuLo xxi

    Ideologia

    O meio que garante/induz a unitariedade finalstica na preparao e execuo do trabalho estranhado

    Nova forma de posio teleolgica que induz um homem (ou vrios homens) a realizar algumas posies teleolgicas segundo

    um modo predeterminado (a diviso hierrquica do trabalho).

    Para Lukcs, a ideologia propriamente dita, surge no momento da di-viso hierrquica do trabalho entre trabalho manual e trabalho intelectu-al, justamente para, no meio dessa diferenciao promovida pela diviso do trabalho, ser o meio que garanta e que induza, essa unitariedade finalstica na preparao e execuo do trabalho. Ela se transforma na base espiritual estruturante do ser social que est dividido em conflitos antagnicos das clas-ses sociais e penetrante pela diviso do trabalho. o que Lukcs nos diz: Nos conflitos suscitados pelas contradies das modalidades de produo mais desenvolvidas, a ideologia produz as formas atravs das quais os homens tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta.

    Os conflitos sob o modo de produo capitalista, o modo de pro-duo mais desenvolvida da histria humana, envolvem, num sentido cada vez mais profundo, a totalidade da vida social. Portanto, Lukcs no deixa de privilegiar tambm as contradies sociais que perpassam a sociedade burguesa, desde a vida cotidiana dos sujeitos individuais at os complexos problemticos que a humanidade vem se esforando at hoje a resolver, por meio da luta, em suas grandes reviravoltas sociais.

    Finalmente, a abordagem de Lukcs privilegia, como salientamos no captulo 1, o estudo da cotidianidade, lugar onde ocorrem as po-

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    O Mtodo de Lukcs

    sies teleolgicas individuais. O mtodo histrico-gentico de Lukcs parte da vida cotidiana, compreendendo os fenmenos complexos a partir dos fenmenos originrios. Todo evento social - diz-nos Lukcs - decorre de posies teleolgicas individuais; mas, em si, de carter puramente causal. A gnese teleolgica, todavia, tem naturalmente im-portantes conseqncias para todos os processos sociais.

    O corpo conceitual da ontologia do ser social, por estar num nvel elevado de abstrao, na medida em que orienta, no sentido ca-tegorial, investigaes concretas do ser social nas condies histricas do capitalismo manipulatrio, consegue ser um instrumental riqussi-mo do marxismo para efetuar anlises criticas criativas sobre os pro-blemas urgentes e emergente da modernidade tardia.

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    A reflexo do ltimo Lukcs estava incisivamente voltada para a crtica da manipulao nos vrios mbitos do pensamento e da atividade do homem. Na entrevista de 1965, concedida para os intelectuais alemes Leo Kofler e Wolfgang Abendroth, publicada no livro Conversando com Lukcs (Ed. Paz e Terra, 1965) e reproduzida nos Anexos 2 e 3 deste livro, Georg Lukcs denominou o capitalismo do ps-II guerra mundial de ca-pitalismo manipulatrio. Na verdade, sob o capitalismo tardio, a manipu-lao torna-se nexo essencial do metabolismo social, penetrando os vrios poros da vida cotidiana. A manipulao torna-se a matriz estruturante e estruturadora da alienao em sua forma intensa e ampliada, contribuin-do, deste modo, para a desefetivao do ser genrico do homem.

    Lukcs coloca que, com a nova realidade scio-histrica do ca-pitalismo manipulatrio, tornam-se necessrias investigaes ontol-gicas sobre a natureza da alienao/estranhamento que no se reduz quela constatada por Karl Marx e Friedrich Engels na segunda metade do sculo XIX. Naquela poca, o capitalismo industrial no tinha ex-posto ainda a manipulao como trao da conformao sociometabli-ca do capital, o que s ocorreria no decorrer do sculo XX, o sculo da modernizao capitalista em escala planetria.

    Em sua entrevista de 1965, Georg Lukcs observou que o capitalismo manipulatrio uma forma especfica de capitalismo industrial. O que sig-nifica que, a partir de crise de 1929, o capitalismo mundial sofreu significa-

    Captulo 4

    Lukcs e o Capitalismo Manipulatrio

    Desafios da atividade e do pensamento do homem no sculo XXI

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    Lukcs e o scuLo xxi

    tivas transformaes estruturais que alteraram o metabolismo social do ca-pital. Por exemplo, o comunista Antonio Gramsci, no texto Americanismo e Fordismo, de 1934, conseguiu apreender os traos do novo capitalismo por meio dos conceitos de americanismo e fordismo, que expressam a nova realidade cultural hegemnica do capitalismo da produo em massa, caracterizada no apenas pelo novo modelo de produo de mercadorias, mas pela nova organizao da cultura e dos intelectuais.

    Para Georg Lukcs, o que se coloca como elemento crucial no pla-no da prxis humana o problema da manipulao que ele vincula ampliao do mundo das mercadorias, e por conseguinte, da presena da industrializao capitalista em nossas vidas. Ele observa:

    Se recuarmos 80 ou 100 anos, ao tempo em que Marx trabalhava, vemos que a indstria dos meios de produo estava, em sua essncia, largamente organizada em uma escala capitalista; podemos observ-lo na indstria txtil, na indstria de moagem, na indstria do acar, que formavam quase todos os setores econmicos da grande inds-tria capitalista. Ora, nos oitenta anos seguintes, o consumo inteiro foi absorvido pelo processo capitalista. No falo somente da indstria de sapatos, confec es, etc; muito interessante o fato de que com todas essas geladeiras, mquinas de lavar, etc, at mesmo o mbito domstico comea a ser dominado pela indstia. Mesmo o setor dos assim chama-dos servios torna-se parte da grande in dstria capitalista. A figura se-mifeudal do empregado doms tico dos tempos de Marx torna-se cada vez mais anacrnica e surge um sistema de servios capitalistas.

    Produo em massa de mercadoria, consumo e manipulao

    O capitalismo da produo em massa, denominado capitalismo fordista-keynesiano, o capitalismo da grande indstria, cujos pro-

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    Lukcs e o Capitalismo Manipulatrio

    dutos-mercadorias devassam os mais diversos aspectos da vida social. O processo capitalista ocupa e preenche os mais diversos espaos do consumo humano. O mundo social tornou-se uma imensa coleo de mercadorias. Alis, salientando este trao do mundo burgus que Karl Marx abre o captulo 1 do Livro I de O Capital. Diz ele: A ri-queza das sociedades em que domina o modo de produo capitalista aparece como uma imensa coleo de mercadorias [...] (Marx, 1986). Talvez, naquela singela constatao marxiana, que o sculo XX iria de-monstrar exausto, estivesse contida o problema da manipulao ir-remediavelmente vinculada expansividade da forma-mercadoria que impregnaria os produtos do trabalho humano.

    Na medida em que a mercadoria , no apenas valor de uso, mas tambm valor de troca, a relao de compra-e-venda tende a implicar homens e mulheres com as imposies naturalizadas e, portanto, feti-chizadas, do mercado e da lei do valor. Foi a seo 4 do captulo 1 do livro I de O Capital, intitulada O fetiche da mercadoria e seu segredo que inspirou Lukcs a tratar da reificao capitalista no seu livro cls-sico Histria e Conscincia de Classe (de 1923). Naquela poca, pela primeira vez, um autor marxista tratou das implicaes do fetichismo da mercadoria no pensamento e na atividade do homem.

    A produo em massa de mercadorias coloca a necessidade de grandes aparatos de distribuio e circulao de mercadorias que abarcam a totalidade da vida social. Sob o capitalismo mono-polista torna-se uma verdadeira obsesso vender produtos-mer-cadorias que so produzidos em larga escala. A grande indstria passa a abranger e transformar em produto-mercadoria, os mais diversos aspectos da vida social, como, por exemplo, a poltica e o lazer, que so impregnados pela forma-mercadoria. Diz Lukcs:

    Tomemos um grande fabricante de mquinas ou qualquer outro industrial da poca de Marx. claro que sua clientela era

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    Lukcs e o scuLo xxi

    extremamente limitada, de modo que podia distribuir seus produ-tos sem pr em funcionamento um aparato de maior en vergadura. Mas, com os meios da grande indstria, surge um produto desti-nado ao consumo de massa (basta pensar em produtos tais como lminas de barbear) que torna necessrio um aparato especial para levar milhes de lminas de barba aos consumidores particulares. Estou convencido de que todo o sistema de manipulao, do qual estamos falando, surgiu desta necessidade e depois estendeu-se tam-bm sociedade e politica. Agora este mecanismo domina todas as expresses da vida social, desde as eleies do presidente at o consumo de gravatas e cigarros (o grifo nosso)

    Deste modo, Lukcs vincula o surgimento da manipulao com a emergncia da sociedade do consumo de massa de mercadorias. O capital obrigado a manipular para poder vender os produtos-merca-dorias e realizar a mais-valia contida neles. Eis o trao candente desta nova sociabilidade fetichizada do capital.

    A perspectiva lukcsiana uma perspectiva histrico-materialista que leva em considerao a totalidade concreta da produo do capital (produo, distribuio, circulao e consumo). A manipulao origina-se do movimento ampliado e