Monografia - Rafael de Aguiar Arantes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

RAFAEL DE AGUIAR ARANTES

ENQUANTO ISSO, L NO MIOLO DA CIDADE... O PAPEL DAS DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS NA AMPLIAO DA VULNERABILIDADE SOCIAL

SALVADOR 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

RAFAEL DE AGUIAR ARANTES

ENQUANTO ISSO, L NO MIOLO DA CIDADE... O PAPEL DAS DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS NA AMPLIAO DA VULNERABILIDADE SOCIAL

Trabalho de concluso de curso apresentado ao Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obteno do grau de Bacharel em Cincias Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Inai Maria Moreira de Carvalho

SALVADOR 2007

APRESENTAO Essa a minha monografia de concluso do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal da Bahia. Ela traz os resultados do trabalho de dois anos como bolsista de iniciao cientfica (PIBIC-CNPq), na pesquisa Metrpoles, Desigualdades Scio-espaciais e Governana, sob a orientao da Prof. Dra. Inai Maria Moreira de Carvalho. Essa pesquisa constitui o ncleo Salvador do Observatrio das Metrpoles e conta com o apoio de um PRONEX CNPq/FAPESB. Eu no poderia deixar de citar a insero nessa pesquisa e deixar os agradecimentos profundos a minha orientadora Inai, pois devo a ela e pesquisa a minha trajetria no mundo acadmico e o meu crescimento profissional e pessoal decorrente desses dois ltimos anos. Agradeo imensamente a Inai e Pesquisa todo o apoio, em sentido amplo, que tive nesse perodo e, principalmente, o fato de ter sido tratado com todo o respeito, como ser humano e profissional, e no apenas como um mero bolsista coletor de dados. Agradeo, agora, a todos aqueles que contriburam para que este trabalho tenha se tornado realidade. minha me, em primeiro lugar, que, tendo me criado sozinha e distante da famlia, batalhou incessantemente para que nunca me faltasse nada, principalmente as oportunidades de que tanto falaremos nesse trabalho. minha namorada, que me suportou em momentos de estresse e me apoiou nos de desespero. todos os meus amigos, principalmente a Cia. Do Subterrneo, em especial a Antnio que leu cuidadosamente todas as pginas dessa monografia, e aos companheiros do Diretrio Acadmico, que nutriram comigo sonhos em comuns.

[...] os que no possuem capital so mantidos distncia, seja fsica, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou dos bens socialmente indesejveis e menos raros. A falta de capital intensifica a experincia da finitude: ela prende a um lugar. (Pierre Bourdieu, 1998, p. 164 In: A Misria do Mundo)

RESUMO Este trabalho pretende estudar as desigualdades sociais de uma perspectiva territorializada. Isso significa que a relao entre as dimenses do espao fsico espao social reificado (BOURDIEU, 1998) e espao social estaro no cerne das anlises atravs da dade analtica segregao socioespacial x vulnerabilidade social. A segregao social e espacial uma caracterstica importante das cidades (CALDEIRA, 2000) e no constitui apenas uma mera curiosidade sociolgica (MARQUES; TORRES, 2005). A apropriao desigual do espao urbano pelos diferentes grupos sociais se traduz tambm numa desigualdade de condies de vida uma vez que o espao de vivncia, de construo de redes sociais e de capital social, assim como o acesso diferenciado a equipamentos, servios, informaes e oportunidades pode trazer uma srie de dificuldades e/ou facilidades para a vida cotidiana dos seus moradores. o que autores como KAZTMAN (2001) e RIBEIRO (2005) chamam de efeito vizinhana ou, na acepo de BOURDIEU (1998), efeitos de lugar. Alguns trabalhos vm ressaltando o carter perverso deste fenmeno com a segregao dos setores mais baixos da estrutura social, destacando os efeitos do territrio sobre as desigualdades de insero no mercado de trabalho, o acesso a bens e servios urbanos, a constituio de redes e o acmulo de capital cultural e social, discutindo como esta segregao interfere negativamente sobre as condies de vida e sobre as oportunidades de integrao, aumentando a exposio a situaes de risco e de vulnerabilidade social (CARVALHO; CODES, 2006). A maioria dos estudos, contudo, discute essas questes apenas teoricamente, apontando tendncias e hipteses. O presente trabalho testou essas hipteses, buscando compreender os efeitos da dinmica socioespacial sobre as condies de vida de um bairro pobre e perifrico de Salvador, averiguando em que aspectos a vivncia neste territrio contribua para a ampliao da vulnerabilidade social dos seus moradores. A metodologia do trabalho se pautou na utilizao de dados do Censo Demogrfico 2000 do IBGE e de um trabalho de campo que consistiu de entrevistas estruturadas com 30 grupos domsticos, entrevistas com informantes chaves e observao direta. O tratamento dos dados das entrevistas consistiu de codificao e construo de um banco de dados. Nesse sentido, verificou-se que a vivncia neste bairro contribui para a ampliao das desigualdades sociais, notadamente pela dificuldade de integrao no mercado de trabalho, pois as oportunidades de emprego no bairro so mnimas e a possibilidade de se buscar essa insero em outras reas reduzida pelo alto custo e insuficincia do transporte pblico. Notou-se tambm uma desigualdade no acmulo de capital social, pois a rede de intercmbio recproco de bens e servios (GUTIRREZ, 2005) eminentemente centrada na vizinhana e na famlia que, por sua vez, so caracterizadas por um baixo ndice de capital econmico e cultural. Palavras-chave: segregao socioespacial, vulnerabilidade social, efeito vizinhana.

SUMRIO CAPTULO 1 INTRODUO........................................................................................................................1 CAPTULO 2 NOVOS E VELHOS CONTEXTOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL .....................8 2.1 Urbanizao e vulnerabilidade social...................................................................................8 2.2 Transformaes recentes e vulnerabilidade social..............................................................15 CAPTULO 3 SEGREGAO SOCIOESPACIAL: UMA CURIOSIDADE SOCIOLGICA?..........28 CAPTULO 4 SEGREGAO SOCIOESPACIAL E VULNERABILIDADE EM SALVADOR E NA SUA PERIFERIA ..................................................................................................................45 4.1 E l, no miolo da cidade... .................................................................................................50 4.1.1 A Cajazeiras produzida pelo Estado (1978-1986)...........................................................51 4.1.2 A Cajazeiras produzida pela dinmica social as invases e seus rebatimentos atuais (1984-2007)..............................................................................................................................52 4.1.3 Dinmica socioespacial em Cajazeiras XI e no Loteamento Santo Antnio..................59 CAPTULO 5 CONSIDERAES FINAIS................................................................................................76 REFERNCIAS......................................................................................................................79

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CAPTULO 1 INTRODUO

Este trabalho pretende estudar as desigualdades de uma perspectiva territorializada. Isso significa que a relao entre as dimenses do espao fsico espao social reificado e do espao social estaro no cerne das anlises atravs da dade analtica segregao socioespacial x vulnerabilidade social. O objetivo principal testar a hiptese de que a vivncia em reas de segregao da pobreza contribui para o aumento da vulnerabilidade social dos seus moradores. A possvel existncia dessa relao ser enfatizada de modo que seja possvel compreend-la na prtica da vida social, ou seja, no mbito da vida cotidiana dos atores em questo. A varivel localizao no espao, em articulao ao conceito de segregao socioespacial, entendida como varivel independente do trabalho e a vulnerabilidade social como varivel dependente, na medida em que se pretende observar se a localizao no espao tem alguma influncia sobre esta ltima. Poder-se-ia dizer que a cidade, o fenmeno urbano e a dinmica espacial (em relao dinmica social) que esto em foco neste trabalho. Considerando as novas desigualdades sociais decorrentes da nova fase de modernizao capitalista, bem como os elementos histricos estruturantes da vulnerabilidade social no Brasil e em Salvador, este trabalho focar a dinmica das desigualdades socioespaciais sobre as condies de vida, buscando compreender de que forma a vivncia em um bairro pobre e perifrico de Salvador contribui para a reproduo da pobreza e da vulnerabilidade social da populao residente. Para discutir essa relao, foi escolhido um loteamento popular, o Loteamento Santo Antnio, situado em um bairro perifrico de Salvador Cajazeiras XI. Embora se esteja estudando as influncias da dinmica socioespacial sobre as condies de vida deste bairro e do loteamento, isto feito conforme a acepo de GEERTZ (1989) no que concerne diferena entre o lcus e o objeto de estudo. Este trabalho no estudou, necessariamente, o bairro de Cajazeiras XI ou o Loteamento Santo Antnio, mas sim as conseqncias da segregao

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socioespacial sobre as condies de vidas de bairros perifricos em Cajazeiras XI e no Loteamento Santo Antnio. A escolha do lcus da pesquisa e do recorte emprico foi fundamentada em critrios tericometodolgicos. Inicialmente, o bairro de Cajazeiras como um todo est situado em um dos vetores de crescimento da cidade indicado por CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA (2004), especificamente o vetor denominado de miolo. Segundo estes autores, a partir de meados dos anos 70 e incio dos 80, mudanas intensas na produo do espao urbano de Salvador conformaram um novo padro de crescimento da cidade baseado em trs vetores socioespaciais, a saber, a) orla martima norte; b) o miolo; c) Subrbio Ferrovirio. Nesta diviso espacial, l-se claramente uma diviso social da cidade do Salvador. O vetor de crescimento denominado de miolo se situa no centro geogrfico da regio metropolitana de Salvador. Inicialmente, essa rea foi ocupada por incentivos do Estado com a construo de conjuntos habitacionais para a classe mdia baixa com financiamento do SFH Sistema Financeiro de Habitao. Posteriormente, sua ocupao se expandiu atravs de um grande contingente de populao pobre que se instalou em de loteamentos clandestinos e invases, conformando uma rea com uma disponibilidade restrita de infra-estrutura, equipamentos, servios, oportunidades e caracterizada por uma ampla quantidade de pessoas vivendo em condies de vulnerabilidade. O bairro de Cajazeiras , talvez, o maior representante da dinmica que constituiu o crescimento do miolo, sendo compreendido aqui como um tipo ideal ou uma metonmia desta rea da cidade. Aps mais de 20 anos do incio do Projeto Cajazeiras, esse bairro hoje marcado por altos ndices de desemprego, precariedade e vulnerabilidade, pois distante dos centros econmicos da cidade e com um acesso precrio servios pblicos transporte, educao, sade, etc. , privados, oportunidades e bens. Ainda hoje os conjuntos existem, porm em estado de precariedade e decadncia. Foi ao considerar as dimenses urbanas e sociais da cidade do Salvador, bem como alguns trabalhos (CARVALHO; CODES, 2006) que apontavam como o bairro de Cajazeiras mantm, atualmente, alguns dos piores indicadores sociais da cidade, que este bairro foi escolhido como o recorte emprico da presente pesquisa. Considerando, ainda, as visitas realizadas e as indicaes dos moradores do bairro (que informaram acerca das reas mais

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pobres da regio) que foram escolhidos o bairro de Cajazeiras XI e o Loteamento Santo Antnio. Definido o recorte emprico, a estratgia metodolgica da pesquisa foi dividida em duas etapas, articuladas nas anlises dos resultados. A primeira etapa se fundamentou em dados quantitativos do Censo Demogrfico 2000 do IBGE e teve por objetivo principal fazer uma caracterizao socioespacial do bairro de modo que fosse possvel um dilogo com o conceito de segregao socioespacial e com a noo de vulnerabilidade social. A segunda etapa se pautou em um trabalho de campo, com observao direta, realizao de entrevistas com 30 grupos domsticos residentes no Loteamento Santo Antnio e conversas informais com dois informantes-chaves, a saber, uma Me de Santo que mantm um programa de distribuio de cestas bsicas e est construindo uma cozinha comunitria no Loteamento Santo Antnio em associao com uma ONG (Acbantu Associao Cultural de Preservao do Patrimnio Bantu) e o chefe do conselho de moradores do bairro de Cajazeiras XI. Na primeira etapa da estratgia metodolgica, foram selecionados indicadores considerados essenciais para uma caracterizao socioespacial, i.e., para se traar um perfil scioocupacional dos moradores, assim como averiguar o acesso a servios e equipamentos urbanos formais. Para tanto, foram utilizados indicadores como: a) Origem e canalizao do abastecimento de gua; b) Forma do esgotamento sanitrio; c) Destino do lixo; d) Existncia de iluminao eltrica. Foram tambm utilizados indicadores sociais tais como: a) Distribuio scio-ocupacional1; b) Renda per capita nos domiclios em salrios mnimos; c) Nvel de instruo do responsvel pelo domiclio; c) Jovens que no trabalham e no estudam; e) Responsveis pelos domiclios que no realizam trabalho remunerado.

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Considerando a centralidade do trabalho na vida social, essa metodologia, desenvolvida por Edmond Preteicelle e Luiz Csar Q. Ribeiro, partiu da ocupao tal como definida pelo IBGE, como varivel bsica para construo de um sistema de categorias scio-ocupacionais hierarquizadas. O primeiro recorte para a construo dessas categorias foi a diviso clssica entre os detentores e os despossudos de capital. A partir da foram feitos sucessivos cortes entre o grande capital e o pequeno capital; entre o trabalho manual e no manual, formal e informal e entre setores econmicos (secundrio e tercirio, moderno e tradicional) (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004, p. 285) Esse indicador foi criado e , exclusivamente, utilizado pela equipe do Observatrio das Metrpoles, pesquisa da qual esse trabalho faz parte e do qual o autor participou como bolsista de iniciao cientfica sob a orientao da professora doutora Inai Maria Moreira de Carvalho, coordenadora do ncleo Salvador.

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No que concerne aos indicadores que se fundamentaram nos dados do Censo Demogrfico 2000 do IBGE, interessante notar algumas vicissitudes no trabalho com esses dados. O Censo Demogrfico o nico banco de dados que prov informaes sobre as reas internas de uma cidade. At o Censo de 1991, as informaes da amostra do Censo questionrio detalhado que aplicado em cerca de 10% dos domiclios em detrimento do questionrio base, aplicado em todos eles eram divulgados por setor censitrio. A partir do Censo Demogrfico 2000, o IBGE, objetivando preservar a privacidade da populao, uma vez que alguns setores censitrios possuam poucas casas, passou a divulgar os dados em uma dimenso espacial maior, a saber, as reas de ponderao ou AEDs (reas de expanso domiciliar). As AEDs foram estabelecidas respeitando limites administrativos e tendem, de uma maneira geral, a corresponder a rea dos bairros. Todavia, esse empreendimento , por vezes, dificultado por uma srie de questes. Em Salvador, onde no h bairros em termos administrativos, esses limites no se reduzem necessariamente aos limites do bairro. No que concerne ao lcus dessa pesquisa, a AED em questo de onde foram tirados os dados dos indicadores selecionados contm dados dos bairros de Cajazeiras X e Cajazeiras XI. Isso um problema na medida em que Cajazeiras X a mais estruturada e mais dinmica das Cajazeiras, em termos econmicos e sociais. Isso significa que os dados apresentados neste trabalho, pelo menos os provenientes do Censo, tm que ser analisados com cuidado, visto que a melhor condio social de Cajazeiras X pode estar puxando para cima os resultados do bairro de Cajazeiras XI. Como ser visto mais a frente, embora Cajazeiras X influa na mdia dos dados, essa influncia no suficiente para invalidar as anlises aqui pretendidas. De qualquer forma, sempre que necessrio, sero feitas ressalvas nas anlises dos dados, discutindo esse detalhamento. A segunda etapa da pesquisa esteve fundamentada em um trabalho de campo e traz resultados da observao direta, das conversas com os informantes chaves e das entrevistas estruturadas com os 30 grupos domsticos residentes no Loteamento Santo Antnio. A amostra das entrevistas no foi aleatria na medida em que elas dependeram das apresentaes que a insero no campo permitiu, de modo que a confiana do respondente fosse conquistada e as entrevistas pudessem ter um nvel relevante de detalhes e que no se restringisse a obviedades. No entanto, a amostra se conformou de modo bastante representativo no que concerne aos vrios grupos sociais que a constituram. Inicialmente focada na rede do candombl, por apresentaes da primeira informante, conseguiu-se entrevistar tambm evanglicos e catlicos. Foram entrevistados mulheres e homens de vrias idades e com

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diversos papis sociais e caractersticas: idosos, adultos e jovens, pais e mes de famlia, solteiros, desempregados, trabalhadores informais, pessoas que residiam na rua principal, que residiam nas travessas ngremes, grupos com grande ndice de pobreza, grupos que conseguiam fugir melhor das vicissitudes da precariedade econmica etc. As entrevistas foram escritas e continham perguntas abertas e fechadas. De uma maneira geral, as entrevistas foram divididas em trs grandes eixos temticos que dialogam com os conceitos de segregao socioespacial e vulnerabilidade social. Inicialmente, elas pretendiam fazer uma caracterizao social do grupo domstico, contendo questes como escolaridade, renda, situao ocupacional, ocupao e condio da ocupao. Posteriormente, tentou-se averiguar a relao dos entrevistados com o bairro e as condies que ele oferece para a vida cotidiana, principalmente em termos de acesso a educao, sade, segurana, transporte e empregos, alm da estrutura urbana e dos servios privados. A terceira parte pretendia caracterizar a rede social movimentada na reproduo da vida cotidiana do entrevistado e de seu grupo domstico, averiguando em que campo de insero relacional ela se pauta e se estabelecida dentro do bairro ou se consegue se expandir para alm dos seus limites. No se tinha por objetivo caracterizar toda a malha da sua rede social, mas apenas aquela que representa capital social quando necessrio. Aps o termino do trabalho de campo, as entrevistas passaram por um tratamento que consistiu de procedimentos de codificao e na construo de um banco de dados. Dessa forma, pde-se trabalhar quantitativamente com um banco de dados e todas as suas potencialidades, cruzamentos, freqncias, construo de novas categorias, mas tambm de forma qualitativa com o discurso dos respondentes e o que foi possvel depreender da sua fala. Alm das entrevistas, o trabalho se fundamentou nas experincias vivenciadas no contato com o campo, nas observaes, nas situaes de vida compartilhadas, mesmo que um breve perodo e restrito a alguns elementos (como o acesso ao transporte, por exemplo), e nas conversas fortuitas com os moradores. Todos esses elementos fizeram parte de um dirio de campo que acompanhou os meses de pesquisa.

Para melhor desenvolver as anlises pretendidas, este trabalho passar por uma srie de temas correlatos para que haja uma melhor compreenso da dade analtica fundamental, a saber, segregao socioespacial x vulnerabilidade social.

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No primeiro captulo, sero discutidos os velhos e novos contextos da vulnerabilidade social. Inicialmente, o argumento central analisa como a vulnerabilidade social uma marca histrica do processo de urbanizao e industrializao posto em prtica no Brasil e nos pases da Amrica Latina. Nesse sentido, a questo urbana esteve sempre associada vulnerabilidade, atravs da espoliao urbana. Posteriormente, realizada uma discusso sobre as transformaes recentes nas cidades, enfatizando como as desigualdades vm aumentando. Ser enfatizado como novos processos macroestruturais, reestruturao produtiva, mudanas no mundo do trabalho, neoliberalismo e globalizao, vm alterando a dinmica das cidades e metrpoles, porm mantendo e aprofundando a vulnerabilidade e a pobreza. Ainda nesse captulo, ser introduzido o conceito de vulnerabilidade social utilizado neste trabalho, demonstrando como a sua recomposio nos novos contextos se fundamenta na ampliao das suas duas dimenses conceituais. O segundo captulo visa descrever o fenmeno da segregao socioespacial e a sua relao com a vulnerabilidade social. Nesse sentido, diversas contribuies da literatura dos estudos urbanos so analisadas, de modo que a vizinhana colocada em discusso como lcus de produo de mecanismos que interferem sobre as trajetrias das famlias e indivduos. Introduzindo um arcabouo que utiliza as dimenses das relaes em rede e do capital social no estudo do fenmeno da pobreza, ele apresentar as diversas interpretaes acerca dos efeitos da segregao socioespacial e de que modo ela est relacionada com a vulnerabilidade social, desenhando a hiptese do presente trabalho a luz dos debates fomentados pela contribuio da literatura. No terceiro captulo, apresentada a dinmica socioespacial e a vulnerabilidade em Salvador e na sua periferia. Ser discutido o crescimento da cidade do Salvador, seus vetores de expanso e o mapa da segregao socioespacial da cidade, localizando o bairro de Cajazeiras XI. Posteriormente, sero discutidos os resultados obtidos pela pesquisa. Ser feita uma breve digresso sobre o processo histrico de surgimento de Cajazeiras no tecido urbano de Salvador e uma descrio do Loteamento Santo Antnio e de Cajazeiras XI, mostrando de que modo eles se relacionam entre si e com a cidade do Salvador. A seguir, os dados do Censo e da pesquisa sero utilizados de modo a discutir, inicialmente, quem so as pessoas que moram em Cajazeiras XI e no Loteamento, observando as suas caractersticas sociais e as possveis caractersticas de vulnerabilidade social. Posteriormente, as anlises se detero nos servios e

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oportunidades circunscritas ao bairro e, por fim, a anlise das redes sociais mobilizadas como capital social. Por fim, o trabalho se detm a analisar os achados da pesquisa, procurando averiguar a plausibilidade da hiptese de trabalho e procurando ver em que medida os dados contriburam para a discusso dos efeitos da segregao socioespacial sobre as condies de vida dos moradores de reas de segregao de setores de baixo capital cultural e econmico.

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CAPTULO 2 NOVOS E VELHOS CONTEXTOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL

2.1 Urbanizao e vulnerabilidade social

O processo de urbanizao dos pases da Amrica Latina, entre eles o Brasil, esteve, desde o seu incio, associado a altos ndices de vulnerabilidade social. O padro de desenvolvimento promovido pela poltica desenvolvimentista dos governos conduziu a uma urbanizao acelerada e sem planejamento. As cidades comearam a inchar e grandes centros urbanos se formaram, concentrando a maioria da populao e dos processos sociais, polticos e econmicos hegemnicos. Esses processos tiveram variadas facetas e conseqncias. Enquanto as grandes cidades tornavam-se os principais espaos de trabalho e consumo dos diversos setores e grupos sociais, promovendo possibilidades reais de mobilidade social, a pobreza e vulnerabilidade social tambm se faziam presente. Segundo DAZ (2005), ocorreu nos pases da Amrica Latina o fenmeno da urbanizao da pobreza. Na fase de substituio das importaes, conformou-se, nesses pases, um simulacro da sociedade salarial europia, modelo no qual o Estado de Bem-Estar Social negociava com os trabalhadores e empresrios atravs do corporativismo de modelo tripartite e passou a gerenciar o crescimento econmico e a prover uma srie de servios sociais de modo que esse crescimento aumentasse, concomitantemente, com a qualidade de vida da populao. A maior presena do Estado nas esferas econmicas, atravs do incentivo industrializao, contribuiu para o crescimento da importncia das grandes cidades nos pases da Amrica Latina. Nesse perodo, que durou cerca de 30 anos, as cidades se constituram enquanto centros geradores de oportunidades, onde a populao tinha possibilidade de trabalhar, de consumir e de almejar melhores condies de vida atravs da existncia de oportunidades reais de ascenso social. No Brasil, o processo de urbanizao teve como suas principais caractersticas a sua velocidade, extenso e profundidade. Este processo foi acompanhado e influenciado pelo processo de industrializao que se acelerava atravs da poltica do desenvolvimentismo

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simulacro da poltica de crescimento econmico das sociedades avanadas. A estratgia de substituio das importaes adotada pelo governo brasileiro favoreceu diversas transformaes na estrutura produtiva e demogrfica no campo e nas cidades. Durante muito tempo, a urbanizao foi alimentada em termos demogrficos por altas taxas de crescimento vegetativo e durante todo o processo por grandes fluxos de migrao rural-urbana. A populao urbana chegou a grandes nveis no Brasil e hoje a maior parte da sua populao vive nos centros urbanos. Entretanto, ao contrrio do que se imagina, essa populao vinda das zonas rurais no se destinou apenas aos grandes centros urbanos. Como enfatizou FARIA (1991, p. 103), o processo de urbanizao do Brasil contm uma dupla caracterstica. H a tendncia de concentrar um amplo contingente populacional em grandes centros urbanos e reas metropolitanas, mas, enquanto isso, acontece tambm o crescimento da populao urbana em cidades de diferentes tamanhos. O crescimento da indstria favoreceu a atrao de grandes levas de imigrantes para os grandes centros industriais. As transformaes ocorridas na zona rural, como a emergncia de crises em algumas reas e a modernizao da produo que liberou a mo-de-obra em outros, tambm estimularam a migrao rural-urbana. No perodo ureo, por assim dizer, da substituio de importaes, uma boa parte dos trabalhadores foi incorporada s relaes produtivas e ao padro de assalariamento. Foi nesse perodo tambm que se constituiu um mercado nacional unificado, porm segmentado pela diviso regional do trabalho. As transformaes da economia nacional produziram uma grande diferenciao da estrutura social urbana. Enquanto se produzia um padro de emprego assalariado e protegido, principalmente na indstria, se produzia tambm mltiplas formas de trabalhos instveis e precrios em que a remunerao era baixssima. A despeito da dinmica de integrao existente para alguns setores fundamentada na esperana e na crena no trabalho como forma de mobilidade social, o processo de desenvolvimento brasileiro gerou uma grande segmentao do mercado de trabalho, ocasionando uma ampla desigualdade de distribuio de renda. Associado a esses processos, tambm se forma um amplo mercado consumidor nas cidades brasileiras. A grande produo de bens de consumo fez necessria a criao de um grande mercado consumidor tambm. Toda a populao urbana, mesmo aquela que no tinha condies materiais, foi integrada simbolicamente numa sociedade consumista. Para a populao pobre, foi criada uma poltica de crdito direto ao consumidor, gerando um

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progressivo endividamento das famlias brasileiras. Contudo, o consumo representava a possibilidade dessa parcela da populao de participar dos novos circuitos e cdigos, se integrando modernidade. Apesar da estrutura social diversificada e complexa gerada pelos processos acima descritos, a estrutura de classes brasileira pode ser dividida, grosso modo, em trs instncias diferentes. Desenvolveu-se uma classe alta muito rica, associada aos capitais internacionais e poderosa econmica e politicamente. Produziu-se tambm uma classe mdia diversificada em inmeros setores que compartilhavam a luta incessante para manter seu padro de vida e no cair na hierarquia social. Por fim, a classe trabalhadora que, por sua vez, tambm pode ser dividida em duas categorias. Em um plo, estava uma boa parte dessa massa, incorporada s relaes produtivas e ao padro de assalariamento. No outro plo, se conformava uma extensa massa sobrante, ainda que no fosse maioria, geralmente caracterizada por trabalhadores precrios, informais, subempregados e pobres, moradores das periferias das grandes cidades e vivendo em situaes precrias e vulnerveis de vida. A urbanizao brasileira produziu, portanto, uma sociedade urbano-industrial complexa, de consumo, pobre, heterognea e desigual (FARIA, 1991). Ainda que tenha havido durante muitos anos um crescimento do assalariamento no Brasil, ele no impediu que uma srie de trabalhadores ficasse de fora das relaes assalariadas, conformando um amplo contingente de subempregados que, surpreendentemente, conseguiam participar do mercado de trabalho e de consumo brasileiro mesmo que [...] expostos s incertezas de um mercado de trabalho dinmico e instvel, cujo funcionamento alimentou e se alimentou da existncia desse exrcito ativo de reserva (FARIA, 1991, p. 105, grifos originais). A segmentao do mercado de trabalho um dos elementos importantes da vulnerabilidade social que marca histrica da sociedade brasileira e, principalmente, do seu padro de urbanizao. A concentrao macia e rpida da populao nos grandes centros urbanos fez aumentar tambm a presso sobre os bens e equipamentos pblicos de uso coletivo. Nessa fase, o Estado aumentou a oferta desses servios, ainda que, muitas vezes, sem garantir a sua qualidade, o seu funcionamento regular e fundamentado nos interesses do mercado urbanoconstrutor (KOWARICK, 1979). Contudo, a expanso desse tipo de servio se pautou em desigualdades regionais e locais. Dentro da mesma cidade, nem todos os espaos foram contemplados pela presena do Estado e das suas polticas pblicas. Em geral, os melhores

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servios tenderam a se concentrar nas reas centrais das grandes cidades brasileiras, geralmente habitadas pelas classes mdias e altas. Enquanto isso, os pobres que iam se acumulando nas periferias passavam por dificuldades, privaes e por um dficit de cidadania em termos de ausncia ou perdas de direitos civis, sociais e econmicos (KOWARICK, 2002). Alguns autores tendem a definir o crescimento das cidades brasileiras por um modelo denominado de padro perifrico (CALDEIRA, 2000) ou a caracterizar o processo brasileiro como urbanizao por expanso de periferias (TELLES; CABANES, 2006). Esse modelo terico caracteriza a diviso social do espao de uma cidade onde a populao de mais alta renda tende a se agregar no centro em um vetor especfico e valorizado da cidade, enquanto que a populao de mais baixa renda tende a se concentrar nas bordas da cidade construda, nas suas periferias. No incio do sculo XX, antes que o processo de urbanizao no Brasil comeasse a deslanchar devido ao incremento da sua industrializao, as suas cidades se caracterizavam por um grande adensamento em torno do centro histrico. A diviso entre ricos e pobres no seio dessa cidade era marcada pelo tipo de habitao e no necessariamente por uma grande separao espacial entre as classes. Com o incio da industrializao, da urbanizao e do crescimento das cidades, a populao de baixa renda tendeu a se concentrar ainda mais nos cortios e em habitaes coletivas alugadas localizadas, geralmente, nos centros antigos, enquanto que as classes altas comearam a expandir o crescimento da cidade se concentrando em novos bairros elitizados nas bordas do centro. Com a densificao da aglomerao de populao no centro, surgiram srios problemas sanitrios, de higiene e de circulao que, por sua vez, geraram as primeiras intervenes de cunho higienista. Inspiradas pelas primeiras medidas modernizadoras nas cidades promovidas por Haussmann, prefeito de Paris entre 1853 e 1859, as intervenes higienistas eliminaram a habitao precria das reas centrais, transferindo o problema para outras reas da cidade. Com o grande incremento da populao urbana ocorrido entre as dcadas de 1940 e 1970 e devido ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro que gerou uma sociedade urbana pobre e marcada por uma grande segmentao do mercado de trabalho, a questo da habitao se tornou um problema para o Estado brasileiro. Desprovido de um salrio que pudesse suprir as necessidades de reproduo da sua fora de trabalho, entre elas a questo da habitao, um

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grande contingente populacional passou a se deslocar cada vez mais para as longnquas periferias desprovidas de infra-estrutura e servios, onde eram obrigados a construir suas casas. Incapacitados de se constituir enquanto uma demanda solvvel (GORDILHOSOUZA, 2000) de imveis do mercado formal de habitao, sem condies de pagar aluguel, proibidos pelo Estado de autoconstruir suas moradias em reas valorizadas e sem perspectivas de ser atendida por ele em sua demanda de habitao, a populao de baixa renda foi obrigada a se deslocar para os espaos perifricos, seja atravs do fenmeno das invases coletivas ou atravs da compra de terrenos em loteamentos clandestinos ou informais. Toda a questo do problema habitacional e da vulnerabilidade presentes no Brasil urbano, segundo KOWARICK (1979), deve ser analisada a partir de dois processos. O primeiro se refere s relaes de trabalho. A superoferta de mo-de-obra e a possibilidade da sua rotatividade conformaram condies de trabalho que geraram uma pauperizao absoluta ou relativa (ibid. p. 59) dos trabalhadores brasileiros, pois os salrios pagos no eram suficientes para a reproduo global da sua fora de trabalho. O segundo processo se refere espoliao urbana:[...] somatrios de extorses que se opera atravs da inexistncia ou precariedade dos servios de consumo coletivo que se apresentam socialmente necessrios em relao aos nveis de subsistncia e que agudizam ainda mais a dilapidao que se realiza no mbito das relaes de trabalho. (ibid, p. 59)

Nesse sentido, a inexistncia de uma srie de servios de consumo coletivo e de elementos fundamentais da reproduo da fora de trabalho, como a questo da moradia, fez com a maior parte da classe trabalhadora brasileira tivesse que suprir ela mesma a suas necessidades. A autoconstruo da moradia um desses exemplos paradigmticos. O suprimento dessa necessidade bsica ficou a cargo dos trabalhadores, contribuindo, assim, para a diminuio ainda maior dos salrios, visto que essa necessidade j estava satisfeita e o salrio s precisava agora, na tica das relaes capitalistas, suprir as necessidades de alimentao e transporte. A construo da casa prpria demorava anos e a maior parte das famlias que enveredou por essa soluo tinha seus oramentos comprimidos para que uma sobra pudesse ser direcionada ao empreendimento. Dessa forma, muitos trabalhadores tiveram que aumentar a sua jornada de trabalho ou a incorporar outros membros da famlias nas relaes de trabalho. Nesse sentido, a espoliao urbana est estreitamente relacionada explorao do trabalho, s dimenses do Estado que incorpora infra-estrutura urbana para os interesses do

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mercado e da minoria da populao, reproduzindo ainda mais espoliao e do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. As atividades regulatrias e aes diretas do Estado, a segmentao do mercado de trabalho e a dinmica do mercado de terras, portanto, foram os principais fatores que geraram a diviso socioespacial e o modelo centro-periferia nas cidades brasileiras. A questo da segmentao do mercado de trabalho e da renda constri relaes bvias com a segregao socioespacial, notadamente a necessidade de um amplo contingente populacional se dirigir para as periferias urbanas. No apenas aquela parte da populao com um vnculo instvel com o mundo do trabalho, mas tambm aqueles que tinham trabalho assalariado e carteira assinada foram os atores que construram as periferias das cidades brasileiras. Mesmo para os assalariados, os rendimentos obtidos no eram suficientes para a reproduo completa da sua fora de trabalho e da sua famlia devido a sua brutal explorao tpica do capitalismo brasileiro na poca do milagre econmico (KOWARICK, 1979). O trabalho de TELLES; CABANES (2006) deixa bastante claro o que se chamou de urbanizao por expanso de periferias atravs das histrias de vida dos atores que construram as periferias das cidades brasileiras. O Estado, por sua vez, tanto na sua atividade regulatria, como nas aes diretas, produziu e ainda produz segregao, executando a funo de atribuio espacial. Historicamente, o Estado tem proibido as construes de imveis sem padro urbanstico aceitvel nas reas centrais e valorizadas das cidades. Atividades como zoneamento por funes, por exemplo, tambm monopolizam os benefcios da urbanizao para algumas reas. Para alm dessas atividades indiretas, o Estado brasileiro continuou a exercer a funo de atribuio espacial atravs do remanejamento de populaes de baixa renda de reas valorizadas do tecido da cidade, bem como atravs da incorporao de conjuntos habitacionais para a classe mdia baixa e os poucos para a populao de mais baixa renda em reas perifricas e distantes. Por fim, o mercado de terras, da incorporao imobiliria e da indstria da construo talvez seja o maior produtor da segregao socioespacial. a dinmica deste mercado que realiza, por excelncia, a funo de atribuio espacial. no jogo dessas relaes, que envolvem diversos atores, por vezes com interesses divergentes, e uma relao complexa com o Estado, que se constroem os espaos valorizados e desvalorizados da cidade. este mercado que especula e se revaloriza atravs do espao urbano e que define em que espaos as residncias destinadas aos ricos sero incorporadas e que espaos sero relegados aos pobres. Claro est,

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entretanto, que esse mercado no absoluto e que o jogo das relaes sociais, que perpassam o Estado, os movimentos sociais, entre outras, uma varivel interveniente na sua ao. A anlise do fenmeno da urbanizao no Brasil e das conseqncias para as suas cidades foi realizada pela sociologia urbana das dcadas de 1970-1980. A sua perspectiva buscava enquadrar analiticamente as metrpoles brasileiras em um certo tipo de capitalismo perifrico e dependente, associado a um regime autoritrio. Nesse sentido, as periferias brasileiras eram consideradas por um lcus de acmulo de desigualdades e vulnerabilidade social, reduto de classes baixas, com acesso instvel ao mercado de trabalho e s polticas pblicas e caracterizadas por um modo de vida bastante precrio e vulnervel. Como a evoluo e avano das discusses, novos trabalhos sobre essas mesmas periferias, notadamente aqueles condensados no livro organizado por MARQUES; TORRES (2005), tm trazido novidades para o seu estudo. Esses autores tendem a questionar em certos aspectos a descrio do modelo centro-periferia, argumentando que modelo geogrfico no tem maiores poderes explicativos, visto que as cidades tendem a fundamentar seu padro de crescimento em uma srie de variveis, desde aquelas propriamente fsicas, quelas que envolvem os atores e a histria social de cada uma. Segundo eles, o crescimento perifrico aconteceu, porm no de forma inexorvel. reas tipicamente populares tambm se encontram situadas em reas valorizadas e em reas de classe mdia, por exemplo. Para o presente trabalho, entretanto, claro est que o modelo centro-periferia, para alm de um modelo meramente geogrfico que j no to absoluto, serve bem para explicar as caractersticas das metrpoles brasileiras, em suas dimenses de desigualdade e vulnerabilidade, pois coloca em cheque relaes que conformaram no apenas o seu espao fsico, mas o seu espao social. Esse modelo, tipificado pela noo de espoliao urbana, coloca em questo o Estado, o mercado do solo urbano e da construo civil, o mercado de trabalho e as caractersticas do desenvolvimento brasileiro, demonstrando como esses elementos se associaram para produzir o espao fsico e social das cidades brasileiras marcado por segregao e desigualdades. Contudo, as periferias urbanas mudaram bastante com a evoluo dos fenmenos colocados em relao pelo modelo do crescimento perifrico. Principalmente a partir da dcada de 80, com a abertura lenta e gradual da ditadura militar seguida da redemocratizao e com a ebulio de movimentos sociais urbanos, as periferias tenderam a se consolidar e a agregar um nvel melhor de infra-estrutura e servios. O contedo das periferias hoje muito mais heterogneo e elas j no podem mais ser caracterizadas por um acmulo absoluto de

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carncias, conforme demonstra os trabalhos contidos no livro de MARQUES; TORRES (op. cit.) sobre So Paulo. Nessa metrpole, mesmo em reas perifricas, possvel encontrar espaos com relativa infra-estrutura e boas caractersticas sociais. Por outro lado, outros espaos continuam acumulando uma superposio de carncias e apresentando indicadores sociais mais precrios que os da mdia da metrpole. Essa maior heterogeneidade tem vrias causas. Entre elas, como ressalta GORDILHO-SOUZA (2000), a mudana da relao do Estado com os espaos populares. Hoje, ele vem trabalhando no que se tem chamado de urbanizao das favelas, quando passou a intervir nos espaos ocupados para oferecer infraestrutura e alguns servios, em detrimento de desocupar e transferir as populaes de lugar. Alm disso, ONGs para o bem e para o mal e novos movimentos sociais continuam realizando trabalhos sociais em localidades de baixa renda. Nesse sentido, possvel perceber como a urbanizao no Brasil produziu uma sociedade complexa, imersa em mltiplas divises e caracterizada por variados processos. Contudo, a desigualdade e a vulnerabilidade social, no mercado de trabalho, na estrutura de classes, nas oportunidades de consumo, no acesso a equipamentos e servios de uso coletivo e no acesso ao solo urbano, foram marcadores constantes nesse processo. O viver em risco, ttulo do artigo de KOWARICK (2002) escrito 23 anos depois do seu clebre livro KOWARICK (1979), no uma marca nova (e mantm-se insistentemente) no Brasil urbano. Ele tem contornos histricos e uma das caractersticas mais enraizadas dessa sociedade. Uma sociedade onde grupos inteiros e um amplo contingente populacional podem ser caracterizados pela [...] vasta e complexa questo da cidadania privada, inexistente, confinada, de terceira classe, excludente ou hierarquizada, concedida, em suma, da subcidadania ou da cidadania lmpen. (Ibid, p. 23, grifos originais).

2.2 Transformaes recentes e vulnerabilidade social

As cidades encontram-se, hoje, no centro de um grande debate nas cincias sociais. Esse debate teve sua origem nas grandes modificaes ocorridas na economia mundial, a partir de meados da dcada de 1970, e que tiveram grande repercusso no funcionamento das grandes cidades, em sua estrutura econmica, urbana e, principalmente, na sua estrutura social.

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A reestruturao produtiva, novo modelo de produo incorporado a partir da dcada de 1970 nos pases avanados, pode ser compreendida como uma modernizao produtiva ou uma racionalizao econmica (DEDECCA, 1996). O objetivo central dessa racionalizao a diminuio dos custos e o aumento das receitas das empresas de modo que a competitividade e o crescimento econmico sejam alcanados. Para que isso fosse possvel, as empresas, de um lado, realizaram uma srie de medidas, a saber, a) Crescente investimento em inovaes tecnolgicas e mtodos organizacionais; b) Tentativas de revalorizao de seus capitais atravs de investimentos financeiros em diversas atividades e em diversas partes do mundo; c) Terceirizao de partes de sua produo; d) Mudanas profundas nas relaes de trabalho. O Estado, do outro lado, tambm trabalhou para que as medidas realizadas pelas empresas entrassem em vigor e dessem o resultado esperado. Dessa forma, atravs dos exemplos dos Estados Unidos e da Gr-Bretanha, respectivamente com Reagan e Thatcher, posteriormente seguidos por outros pases sob recomendaes de organizaes multilaterais como Banco Mundial e FMI, se implantou nos governos o que ficou conhecido como modelo neoliberal (MATTOS, 2004). O modelo neoliberal tem como objetivo principal uma liberalizao econmica radical baseada no no intervencionismo do Estado. A despeito de o grau de convico e intensidade da adeso a essa poltica ter sido diferenciada nos diversos pases, em geral, as principais medidas tomadas foram: a) Abertura comercial e financeira aos produtos e capitais estrangeiros; b) Desregulamentao de diversas reas antes regulamentadas e controladas pelo Estado; c) Privatizao de empresas estatais; d) Flexibilizao salarial e das leis trabalhistas. Toda essa nova fase de modernizao capitalista (ibid.), baseada tanto nas transformaes das empresas como nas do Estado, s foi possvel graas s novas tecnologias da informao e da comunicao que permitem a compresso do espao-tempo. Esse padro tecnolgico avanado foi o que permitiu a ascenso do processo que se convencionou chamar de globalizao. Essa nova fase de desenvolvimento capitalista trouxe inmeras conseqncias para as cidades, principalmente para as grandes metrpoles que eram bases do modelo de desenvolvimento econmico hegemnico at a dcada de 1970. Sobre as grandes metrpoles mundiais, surgiram reflexes acerca do seu papel na economia mundial. Surge a influente perspectiva das cidades globais, proposta por SASSEN (1998) e

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discutida por outros como MATTOS (2004). Segundo essa linha de argumentao, a globalizao favoreceu a formao de grandes blocos de empresas que se constituram como verdadeiras redes transfronteirias financeiras, produtivas e comerciais, que passaram a atuar em diversos mercados simultaneamente. Essas empresas passaram a incorporar e a articular diversos lugares e cidades economia globalizada. Para Sassen, as grandes metrpoles mundiais se converteram em um lugar privilegiado nesse novo espao mundial de acumulao, pois enquanto a produo mundial ia se espalhando em inmeros lugares, as atividades de coordenao e controle se concentraram ainda mais nelas. Segundo VELTZ (1999), as cidades mundiais concentram cada vez mais uma parte considervel da riqueza e do poder, visto que os grandes fluxos econmicos continuam se concentrando em uma rede-arquiplago de grandes plos, com as possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informao e da comunicao e a eliminao de barreiras nacionais. Isso significa que uma polarizao econmica est se efetivando em favor de grandes ns da rede produtiva globalizada representados pelas grandes metrpoles mundiais, ou, para Sassen, cidades globais, conformando o que Veltz chamou de economia de arquiplago. a concentrao das atividades dinmicas que explica a metropolizao [...] a polarizao no resulta de uma migrao massiva e homognea das atividades e pessoas at as grandes cidades, seno de processos muito seletivos (Ibid, p. 38). Notadamente, so as atividades de planejamento, organizao e coordenao que tendem a se polarizar nestes grandes ns devido a trs aspectos fundamentais, ainda segundo este autor: a) um aspecto secundrio, um mercado de produtos diferenciados; b) um aspecto mdio, o mercado de trabalho; c) um aspecto primrio, a organizao da produo. Por um mercado de produtos diferenciados, subentende-se algumas caractersticas de estrutura, como melhores e mais complexos sistemas de comunicao, aeroporto internacional de primeiro nvel, oferta diversificada e eficiente de servios especializados de ponta, entre outras. Em termos do mercado de trabalho, importante tambm no apenas a oferta de mo-de-obra barata e qualificada, como tambm a existncia de grandes centros de formao que possam suprir as necessidades de alta qualificao requerida e a existncia de um tecido produtivo amplo e diversificado que torne possvel a materializao das subcontrataes de servios e trabalho. Entre as vantagens em termos de organizao da produo, encontram-se a proximidade de atores do mesmo porte visto que, para as cpulas das grandes empresas, uma grande desvantagem ter uma localizao distante dos seus concorrentes do mesmo nvel, mas tambm

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as possibilidades de comunicao direta e cotidiana, pelo menos entre aqueles que desenvolvem as tarefas mais modernas e inovadores, notadamente as de criao. Para Veltz, a polarizao explicada principalmente pelos novos modos de organizao das empresas. Nesse sentido, a cooperao intra-empresa se tornou elemento fundamental para a realizao das principais caractersticas dos novos modelos de produo inovao e diferenciao. Os sistemas urbanos nacionais e internacionais tenderam a se tornar mais complexos nessa nova fase de acumulao transformando o padro econmico internacional centro-periferia em outro que se assemelha mais a uma economia de arquiplago, no qual j no mais existe uma dualidade, pelo menos no como antes, e a economia passa a se fundamentar em uma rede global. Vrias cidades tm o seu espao na produo (subordinado ou no), mas os grandes plos ou as cidades globais tendem a se tornar os grandes ns dessa rede, polarizando as atividades de coordenao, organizao e criao. No apenas os sistemas urbanos internacional e nacional tendem a se tornar mais complexos, como a estrutura interna das grandes cidades tambm, notadamente das cidades-globais latino-americanas, compreendendo que, mutatis mutandis, todo pas tem a sua metrpole global, ou seja, aquela que concentra as atividades mais especializadas do pas e o articula os grandes ns da economia mundial. A globalizao, atravs das novas formas de comunicao e informao, mas tambm do crescimento da mobilidade automotriz com a abertura econmica, teve como efeito imediato nas cidades latino-americanas o que MATTOS (2004, p. 170) chamou de metropolizao expandida ou dilatada. O crescimento das metrpoles passou a se fundamentar em fenmenos tais como: a) uma acentuada tendncia suburbanizao com a formao de um periurbano difuso e de baixa densidade que se caracteriza, primordialmente, pela moradia dos setores mais altos da estrutura social em condomnios fechados, alm de novos centros de negcios de atividades modernasmodernssimas (TELLES; CABANES, 2006) que influenciam o crescimento da metrpole para todos os lados possveis, conformando uma cidade-regio policntrica; b) a proliferao de novos artefatos urbanos que provocam grande impacto no espao metropolitano como grandes hotis de luxo e alto luxo, edifcios corporativos e conjuntos empresariais inteligentes, centros de conferncias internacionais, novos equipamentos de lazer e espaos comerciais especializados, como os shopping centers.

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A globalizao e a liberalizao da economia tornaram o territrio das cidades mais passveis de modificaes pela lgica econmica. Com a sada ou diminuio do Estado na esfera da regulao, a produo e reproduo metropolitana passaram a se dar estritamente por uma lgica capitalista. Na verdade, a metropolizao expandida no se trata de um fenmeno novo, contudo ele se refora e se aprofunda nesta nova fase. Em verdade, o que existia, segue existindo (MATTOS, 1999), porm de maneira mais rpida e profunda. Como foi visto, a modernizao capitalista trouxe mudanas radicais para as cidades do ponto de vista econmico e espacial. Entretanto, o debate mais importante se refere a essas conseqncias sobre a sua estrutura social. O paradigma citado das cidades globais j trata da interferncia dos novos fatores econmicos sobre a estrutura social das metrpoles. De acordo com SASSEN (1998), as cidades globais tendem a se transformar tambm em cidades duais. Associado ao crescimento do setor de servios altamente especializado, emergeria um setor de servio no qualificado, ou seja, para cada funo de comando e articulao seriam necessrios servios no-qualificados que permitissem o desenvolvimento dessas primeiras acarretando uma diminuio acentuada das classes mdias. Segundo esse paradigma, o mercado de trabalho das cidades globais se fundamentaria cada vez mais na segmentao entre essas duas categorias o que, por sua vez, teria um claro recorte urbano, conformando duas metrpoles tambm segmentadas ou segregadas em reas residenciais dos setores qualificados e dos setores no qualificados. Esse o paradigma da cidade dual ou da dualizao social das cidades globais. importante salientar que, para a autora, essa tendncia tpica apenas das grandes metrpoles mundiais, como Nova York, Tquio, Londres e no se encaixa na realidade de outras metrpoles nacionais. Contudo, a fora da sua reflexo e o impacto do seu prognstico fez com que a literatura dos estudos metropolitanos discutisse essas tendncias para inmeras cidades, mesmo para aquelas que no se enquadram nem na categoria de metrpoles nacionais. Pesquisas realizadas em diferentes metrpoles e cidades, desde Paris (PRTECEILLE, 2003), cidades chilenas (SABATINI; CRCERES; CERDA, 2004), Santiago do Chile (MATTOS, 1999), cidade do Mxico (DUHAU, 2005), Buenos Aires (JANOSCKA, 2000), Montevidu (VEIGA, 2005) e cidades brasileiras, entre elas So Paulo (BGUS; TASCHNER, 1999) e Salvador (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004) no vm comprovando a hiptese da dualizao social. Ainda que todos concordem com a consolidao e at com o

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aumento da segregao socioespacial nestas cidades, no houve uma dualizao social e o crescimento da pobreza projeta uma cidade onde cada vez mais os ricos se auto-segregam enquanto os outros setores (inclusive as classes mdias que continuam importantes na estrutura social dessas metrpoles) se espalham pelo tecido da cidade. No se pode esquecer tambm que, se a globalizao e os novos processos macroestruturais tendem a ter uma influncia sobre a maioria das cidades, essas no deixam de ser resultado da sua histria particular, com sua dinmica, seus atores, conflitos e solidariedades que construram e conformaram o seu espao. Todavia, inmeros estudos tm constatado o aumento das desigualdades sociais. As mudanas ocorridas no mundo do trabalho referentes desestruturao deste mercado, em decorrncia da reestruturao produtiva e das reformas neoliberais, tm sido bastante utilizadas para caracterizar esse novo fenmeno de crescente vulnerabilidade de diferentes grupos sociais. Variados autores tm tratado dessa questo se utilizando de diferentes arcabouos conceituais e formulando conceitos diferenciados, mas tendo concluses semelhantes ou convergentes. CASTEL (2005) analisa essas questes a partir do que chama de crise da sociedade salarial. A sociedade salarial foi um tipo de relao que se desenvolveu nas sociedades europias desde o fim da segunda guerra mundial at meados da dcada de 1970. Na Frana, esse perodo ficou conhecido como os trinta anos gloriosos. Gloriosos no sentido de que esse perodo representou para as sociedades europias um momento de crescimento econmico, reduo das desigualdades sociais e afastamento da vulnerabilidade social de massa, presente desde o incio da industrializao. Essa relao estabelecida se fundamentou em algumas premissas bsicas: a) Produo de massa, baseada na organizao cientfica do trabalho (taylorismo) e no consumo de massa dos trabalhadores (fordismo); b) Reconhecimento dos direitos do trabalho e de uma srie de protees e propriedades sociais vinculadas ao trabalho, conjuntamente ao Estado de Bem-Estar Social que negociou junto aos trabalhadores e s empresas; c) O crescimento econmico visto nesses trinta anos que, mesmo que no estivesse na base em si do processo, contribuiu decisivamente para ele. Todavia, desde meados da dcada de 1970, essa relao comea a demonstrar sinais de esgotamento e, a partir de ento, se d o enfraquecimento da condio salarial nos pases desenvolvidos. A racionalizao promovida pelas empresas (reestruturao produtiva) e governos (reformas fiscais neoliberais) tem por objetivo reduzir custos e aumentar receitas.

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Dessa forma, o trabalho tambm entra no jogo da diminuio de custos. O acesso s novas tecnologias elimina as necessidades de alguns trabalhos, enquanto outros se tornam desnecessrios sob a forma que adotaram nos anos anteriores de crescimento econmico pautado na industrializao, se convertendo em espcies de trabalhos subutilizados, precrios, flexveis e instveis. A partir do enfraquecimento ou crise da sociedade salarial, a nova questo social refere-se problemtica do emprego, do desemprego, da precarizao e da flexibilizao das novas relaes de trabalho. Essa problemtica traz novamente a questo da vulnerabilidade de massa que se acreditava extinta nos pases avanados. A nova vulnerabilidade social de massa se expressa, para Castel, sob a forma da desfiliao e do aparecimento do fenmeno dos supranumerrios.[...] tudo se passa como se nosso tipo de sociedade redescobrisse, com surpresa, a presena em seu seio de um perfil de populaes que se acreditava desaparecido, inteis para o mundo, que nele esto sem verdadeiramente lhe pertencer. Ocupam uma posio de supranumerrios, flutuando numa espcie de no mans land social, no integrados e sem dvida no integrveis, pelo menos no sentido que Durkheim fala da integrao com o pertencimento a uma sociedade que forma um todo de elementos interdependentes. (CASTEL, 2005, p. 530, grifo original)

Nesse sentido, WACQUANT (2001a) trabalha com o conceito de marginalidade avanada, ainda no mbito das sociedades avanadas estudadas pelo autor EUA, Inglaterra e Frana. o que ele chama de retorno do recalcado (WACQUANT, 2001a, p. 21), a vulnerabilidade de massa que retorna para a surpresa daqueles que acreditavam que ela se tratava de uma caracterstica pr-moderna ou dos pases perifricos do sistema mundial. O recalcado retorna e caracterizado como marginalidade avanada, ou seja, novos processos de descenso social experimentados principalmente pelos setores mais baixos da estrutura social. A periferia ressurge nos pases centrais e avanados. A marginalidade avanada associa a segregao espacial baseada em classes, mas tambm em raa (os negros nos EUA e os imigrantes na Frana e na Inglaterra), j histrica, com as novas situaes de desestabilizao proveniente das transformaes do mundo do trabalho. Trs dimenses de vulnerabilidade, portanto, se estruturam sobre essa populao: a) desemprego em massa; b) exlio em bairros decadentes; c) crescente estigmatizao da vida. interessante notar como esse autor, ao apontar os desafios das sociedades avanadas no que concerne cidadania, indica a possibilidade de que a o aumento das desigualdades e da insegurana gerem uma fisso social caracterizada por ele como uma brasilinizao da metrpole europia e norte-americana.

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No Brasil, a crise da sociedade salarial no pode ser evocada como causa da vulnerabilidade social na medida em que aqui nunca houve esse modelo de relao societria e que a vulnerabilidade, conforme discutido, uma marca distintiva do modelo de crescimento econmico e urbano ocorrido. A vulnerabilidade social no Brasil urbano no algo novo, contudo ela se aprofundou com a insero subordinada do Brasil nos paradigmas do novo modelo de acumulao capitalista (KOWARICK, 2002). A radicalizao desse fenmeno atingiu nveis to srios que alguns autores tendem a caracterizar as metrpoles brasileiras como o epicentro da crise social brasileira (CARVALHO, 2005). Nas palavras de RIBEIRO (2005, p.152, traduo nossa), a vulnerabilidade urbana assume contornos hoje que permitem denominar esse processo de metropolizao da questo social brasileira. Nesse sentido, a vulnerabilidade histrica da sociedade brasileira tem associado seus efeitos aos seus novos componentes e KAZTMAN (2001) chega a afirmar que tem havido nos pases da Amrica Latina um isolamento social dos pobres urbanos. Segundo este autor, corroborando a interpretao de WACQUANT (2001) e DAZ (2005), esse isolamento se expressa em trs dimenses, a saber, a) aumento da populao com um vnculo precrio e instvel com o mundo do trabalho; b) reduo dos espaos pblicos de contato e interao entre as classes em condio de igualdade; c) concentrao de pobres urbanos em espaos segregados. A desestruturao do mercado de trabalho causou a queda da oferta de empregos na indstria que, historicamente, foi a grande empregadora de mo-de-obra. O nmero de empregos formais, com carteira assinada, estabilidade e proteo social diminui sensivelmente causando uma crescente tendncia informalizao das atividades, o que significa maior instabilidade e precarizao. O mercado de trabalho hoje bastante marcado por uma segmentao principalmente entre os setores mais qualificados e de ponta e os setores menos qualificados, ainda que isso no tenha significado uma polarizao em termos de dualizao. Para RIBEIRO (op. cit.), isso significa que uma grande parte da populao das cidades, notadamente sua parte mais pobre, excluda das correntes dinmicas e principais da economia (mainstream). O mundo do trabalho perde a sua fora como detentor das expectativas de mobilidade social ascendente e tem deixado de ser considerado um caminho natural de integrao na sociedade. O isolamento social dos pobres se refere tambm aos servios e equipamentos urbanos em geral. As classes com um maior poder aquisitivo esto tendendo a deixar de utilizar o espao pblico. Em relao aos servios, notrio que os privados sejam consumidos por essas

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classes, enquanto os servios pblicos, muitas vezes de baixa qualidade, sejam utilizados pelos pobres. cada vez mais comum a fuga das classes altas para o que CALDEIRA (2000) chamou de enclaves fortificados, ou seja, condomnios fechados, dotados de infra-estrutura de moradia, lazer e trabalho e protegidos por seguranas, muros e altas tecnologias. Essa tendncia de auto-segregao das elites tem implicaes principalmente do ponto de vista da sociabilidade entre as classes, aumentando ainda mais o isolamento social dos pobres. Ainda segundo KAZTMAN (2001), a globalizao trouxe conseqncias perversas para os pobres urbanos do ponto de vista material, mas principalmente do ponto de vista simblico. O eixo da construo de identidades passa do mundo do trabalho ao mundo do consumo. Enquanto essa populao, principalmente os jovens, dominada por essa construo de identidade baseada no consumo, sua capacidade material de aquisio diminuta. Surge, ento, uma dade contraditria entre participao simblica e capacidade material, conformando processos que explicam o ttulo do artigo deste autor, seduzidos e abandonados. As perspectivas de estudo das desigualdades decorrentes desta nova fase de acumulao capitalista tm enfatizado bastante o aumento da pobreza e do isolamento dos setores mais baixos da estrutura social. Para alm do paradigma de se trabalhar apenas com a noo de pobreza, este trabalho pretende pautar suas anlises na dimenso da vulnerabilidade social. Compreendendo que a vulnerabilidade social um fenmeno complexo e multi-causal que no se esgota na dimenso da renda, ainda que este seja um elemento central, este conceito parece mais adequado para o estudo das novas conformaes das trajetrias de descenso social e da marginalizao. A heterogeneidade das situaes de marginalizao leva a compreender que se trata de um processo e, como tal, um continuum de inseres diferenciais a partir do qual as dimenses de vulnerabilidade podem se associar de diversas maneiras possveis conformando situaes em que, a princpio, poderiam ser semelhantes, mas que, em uma anlise mais acurada, se mostram bastante diferentes devido a essas inseres heterogneas. Nesse sentido, sero utilizadas as formulaes de CASTEL (1997) acerca dos processos de marginalizao.As situaes marginais aparecem ao fim de um duplo processo de desligamento: em relao ao trabalho e em relao insero relacional. Todo indivduo pode ser situado com a ajuda deste duplo eixo, de uma integrao pelo trabalho e de uma insero relacional. Esquematizando bastante, distinguimos trs gradaes em cada um desses eixos: trabalho estvel, trabalho precrio, no-trabalho; insero

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relacional forte, fragilidade relacional, isolamento social. Acoplando essas gradaes duas a duas, obtemos trs zonas, ou seja, a zona da integrao (trabalho estvel e forte insero relacional, que sempre esto juntos), a zona da vulnerabilidade (trabalho precrio e fragilidade dos apoios relacionais) e a zona de marginalidade que prefiro chamar de zona de desfiliao para marcar nitidamente a amplitude do duplo processo de desligamento: ausncia de trabalho e isolamento relacional. (CASTEL, 1997, p. 23, grifos originais)

Essa perspectiva parece bastante interessante pois considera no apenas os aspectos estruturais que conformam as relaes de trabalho e todas as suas variveis, como qualificao profissional, por exemplo, mas tambm as dinmicas relacionais que se referem s esferas da famlia ou da comunidade, colocando em foco como a insero relacional tm papel fundamental como elemento de proteo social. Nesse sentido, alguns autores vm afirmando que o novo contexto de vulnerabilidade social se caracteriza no apenas pela fragilizao dos vnculos com o mercado de trabalho, mas tambm pela fragilizao dos apoios relacionais que asseguravam uma proteo aproximada (ibid.). A proteo aproximada , historicamente, exercida por duas importantes instituies sociais, a saber, a famlia e a comunidade. Segundo KAZTMAN; FILGUEIRAS (1997), essas instituies primordiais esto perdendo o seu papel na conformao de estruturas de oportunidades, ou seja, as interaes geradas nesse mbito de sociabilidade j no conseguem abrir oportunidades como antes. Historicamente, a famlia e a comunidade tm constitudo um dos elementos principais de proteo e segurana social. Notadamente, a proteo dessas duas instituies se mostra mais importante para as classes mais baixas e em pases como o Brasil, onde o desenvolvimento e as relaes estveis com o mercado de trabalho no se difundiram para a maioria da populao. O desenvolvimento urbano brasileiro dependeu muito dessas duas instituies bsicas e do capital social gerado no ncleo dessas redes sociais. Em So Paulo, por exemplo, conforme demonstram (TELLES; CABANES, 2006), a famlia foi um dos elementos mais importantes para a conformao daquela metrpole, pois a grande leva de imigrantes do campo que chegou cidade contava primordialmente com a famlia para lhe acomodar, indicar emprego e lhe introduzir nos cdigos dominantes da sociabilidade urbana. Posteriormente, com a conformao de grandes periferias operrias, com a redemocratizao e com a emergncia dos grandes movimentos sociais dos anos 80, a comunidade tambm se mostrou fundamental para a atenuao da vulnerabilidade atravs da proteo frente aos riscos e contingncias.

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No novo contexto, essas duas instituies no parecem mais ter condies de promover uma proteo social ampliada. A desestruturao do mercado de trabalho, a diminuio dos rendimentos, o aumento da pobreza e a conformao do fenmeno dos supranumerrios desempregados para alm da necessidade do sistema, ou seja, que no constituem exrcitos industriais de reserva tendeu a fragilizar tambm as famlias e as comunidades. Vulnerveis em termos de renda, o individualismo tendeu se ampliar como cdigo dominante em contextos de sociabilidade onde antes a solidariedade era cdigo comum. Em um momento em que as dificuldades atingem a todos, associado ao ritmo frentico do sistema-mundo contemporneo, a solidariedade vem dando espao cada vez mais ao individualismo, estando na gnese de comportamentos em que cada um cuida de si, principalmente para o mbito das comunidades que, por sua vez, tm perdido a sua capacidade de integrao social. No que concerne s famlias, CARVALHO; ALMEIDA (2003) demonstram como o novo contexto tem transformado a sua proteo e diminudo o seu papel de amortecedor social, ainda que no elas no tenham perdido a sua funo de principal elemento relacional. Katzman & Filgueiras afirmam que as mudanas contemporneas na estrutura da famlia, como a instabilidade, o aumento dos divrcios, a emergncia de famlias incompletas, entre outras, tm conduzido a uma diminuio das suas funes tradicionais de socializao e integrao social. Carvalho & Almeida relativizam a importncia real dessas mudanas afirmando que a diversidade de tipos de estruturas familiares no absolutamente algo novo e que talvez o mito da famlia nuclear seja uma construo ideolgica moderna. Alm disso, a aparente viso de uma desestruturao das famlias pode ser algo perigoso, pois uma leitura mais acurada pode provar que as famlias tm um grande poder de plasticidade, sendo capazes de se adaptar s transformaes econmicas, sociais e culturais mais amplas. Contudo, a desestruturao do mercado de trabalho impactou sobre a estrutura e o papel da famlia. O aumento da pobreza e da insuficincia de renda afetou negativamente as condies das famlias brasileiras de atender s necessidades bsicas de seus membros. A reestruturao produtiva ampliou o desemprego e a vulnerabilidade ocupacional dos chefes de famlia e diminuiu a probabilidade de que outros membros venham a contribuir ou substitu-lo na manuteno do grupo domstico. Uma das grandes questes das famlias brasileiras hoje tambm a precariedade ocupacional e o desemprego dos jovens.

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Considerando que nas classes populares o homem ainda visto como o provedor natural da famlia e que as mulheres entendem o casamento como apoio moral e econmico e, no raro, deixam de trabalhar para realizar afazeres domsticos, o desemprego e a baixa remunerao funcionam, muitas vezes, como um instrumento de vergonha para o homem da casa, chefe da famlia, e uma frustrao para o projeto feminino de melhoria de vida. Este processo culmina pela impossibilidade do homem cumprir o seu papel socialmente reconhecido, enveredando pelo alcoolismo e abandono da famlia, contribuindo para a conformao de muitas famlias monoparentais de chefia feminina. As dificuldades estruturais de insero acabam impactando no apenas materialmente no mbito das famlias, mas tambm na sua convivncia e organizao, com o aumento dos conflitos, da violncia domstica, da fuga de crianas e adolescentes para as ruas e do envolvimento desses ltimos em atos infracionais (CARVALHO; ALMEIDA, 2003, p. 117). Se alguns autores consideram as mudanas na estrutura das famlias como condio da ampliao da vulnerabilidade, o aumento do nmero de famlias monoparentais de chefia feminina pode ser considerado uma das que mais contribuem (ibid.). De uma maneira geral, as mulheres ainda enfrentam discriminaes no mercado de trabalho que, por sua vez, se materializam em remuneraes mais baixas que a dos homens e trabalho em ocupaes precrias, instveis, mal remuneradas e com baixa proteo. Ademais, as mulheres ainda cumprem uma dupla jornada, no trabalho e em casa, o que faz com que muitas delas trabalhem menos tempo que os homens. Nesse sentido, a ampliao do nmero de famlias chefiadas por mulheres solteiras tende a elevar a condio de vulnerabilidade dessas famlias. V-se como as inseres estruturais e algumas modificaes nos contextos de interaes que propiciavam os apoios relacionais mais tradicionais tendem a diminuir o papel e a capacidade das famlias e das comunidades de funcionar como elementos de proteo social e de enfrentamento da crise, da precariedade de condies de vida, enfim, da vulnerabilidade social. Se, conforme GOLDANI (2002 apud ibid. p. 115), anteriormente as estratgias de reproduo social colocavam em pauta os recursos da pobreza, hoje elas se deparam com a perversa pobreza de recursos. Contudo, as famlias e comunidades ainda mantm o seu papel de principais ncleos de insero relacional e de amortecedor social, funcionando com um instrumento fundamental de integrao. Ainda que estejam passando pelas dificuldades acima mencionadas, a famlias

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ainda detm a funo de socializao primria, de solidariedade, de lcus de transmisso de pautas e prticas culturais e de distribuio de recursos. Famlia e comunidade coesas ainda so importantes contextos de sociabilidade, de proteo e atenuao da vulnerabilidade, principalmente em contextos de pobreza urbana, conforme demonstra HITA; DULCCINI (2006). Considerando que a vulnerabilidade se caracteriza pela fragilizao dos dois principais vnculos, possvel notar como a vulnerabilidade social do atual contexto se fundamenta exatamente nesses dois eixos: fragilizao dos vnculos com as estruturas no mercado de trabalho; e fragilizao dos recursos provenientes da insero relacional. Alguns dos autores trabalhados anteriormente vm discutindo como a separao social e espacial entre as classes no tecido urbano um dos elementos importantes da ampliao da vulnerabilidade das classes e baixa renda, notadamente por atuar nas duas dimenses a que esse contexto se refere, tanto nas oportunidades de integrao via mercado de trabalho, como na insero relacional, atravs da fragilizao da produtividade dos seus vnculos, ou seja, da diminuio do capital social. Este assunto ser tratado no prximo captulo atravs da conceituao do fenmeno da segregao socioespacial e da discusso dos mecanismos pelos quais ele contribui para a ampliao da vulnerabilidade social.

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CAPTULO 3 SEGREGAO SOCIOESPACIAL: UMA CURIOSIDADE SOCIOLGICA?

O termo segregao socioespacial se refere a um fenmeno que envolve a relao entre dimenses de desigualdades sociais e espaciais. O espao fsico compreendido na sua utilizao como espao social reificado (BOURDIEU, 1998). Segundo esse autor, essa dimenso uma caracterstica fundamental do espao fsico, pois este se configura enquanto uma materializao das relaes sociais, replicando as suas caractersticas. Em uma sociedade onde o espao social hierarquizado, caracterizado por desigualdades e relaes de poder, o espao, inevitavelmente, tambm assim o ser, exprimindo as distncias, hierarquias, desigualdades e as correlaes de fora existentes. O conceito de segregao socioespacial pe em questo, portanto, esferas de desigualdades de modo que procura estud-las em uma perspectiva territorializada, compreendendo o espao enquanto uma dimenso do poder constitudo. A segregao socioespacial tem sido tratada principalmente como um fenmeno urbano, pois a segregao social e espacial uma caracterstica importante das cidades (CALDEIRA, 2000). Segundo CARVALHO; PEREIRA (2006), por espelhar as diferenas econmicas, tnicas, sociais e culturais no territrio, e sendo uma das principais caractersticas das cidades contemporneas, a segregao objeto de preocupao de cientistas sociais e urbanistas desde a primeira metade do sculo XX. A problemtica da desigualdade que circunscreve a noo de segregao socioespacial e a sua relevncia parecem ponto pacfico para a maioria dos autores. Contudo, devido complexidade que a abordagem desse fenmeno impe, a sua compreenso e conceituao no encontram consenso dentro do campo dos estudos urbanos. Em uma resenha sobre os trabalhos que tm por objeto a segregao espacial urbana, LAGO (s/d) verifica a ausncia de uma discusso conceitual sobre essa noo em muitos deles, gerando imprecises e lacunas na compreenso do fenmeno. As diversas denominaes para, a princpio, o mesmo fenmeno tambm conduzem a uma complexidade e dificuldade de conceituao. Sem contrapor contribuies e compreenses de diferentes autores atravs de discusses mais longas, este

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captulo apresentar os conceitos do modo em que eles sero abordados no escopo deste trabalho. Como reflexo inicial, parece interessante acompanhar o raciocnio de KAZTMAN (2001, p. 5, traduo nossa) sobre o significado que ele atribui, respectivamente, s noes de diferenciao, segmentao e segregao:O primeiro termo simplesmente designa diferenas nos atributos de duas ou mais categorias sociais. O segundo agrega uma referncia existncia de barreiras para a passagem de uma categoria outra. O terceiro agrega aos dois anteriores uma referncia vontade dos membros de uma ou de outra categoria de manter ou elevar as barreiras que as separam entre si.

Segregao , em seu sentido mais genrico, uma diferena de atributos entre dois ou mais grupos sociais que impe barreiras passagem de hierarquia. Ela tende a se manter devido vontade dos membros de um ou dos vrios grupos envolvidos atravs de aes diretas ou via esferas de influncia. Segregao espacial , ento, uma desigualdade de apropriao do solo que gera a separao entre os diversos grupos da estrutura social no espao urbano. Associando atributos geogrficos, como a distncia estritamente espacial, com atributos sociais, a noo de segregao socioespacial agrega os elementos de desigualdades espaciais, notadamente a separao dos grupos no espao fsico, com os elementos de desigualdades sociais que, por sua vez, geram e reproduzem a desigualdade de apropriao do solo urbano. As desigualdades socioespaciais podem ser estudadas a partir de diferentes clivagens e de diversos atributos especficos, entre eles, renda, raa, escolaridade, categorias scioocupacionais, entre outros, a depender de quais tipos de fenmenos e causas de segregao pretende-se trabalhar. Os primeiros trabalhos que tratavam desse fenmeno foram produzidos pela Escola de Chicago e focavam sua abordagem na segregao tnica/racial dos negros e minorias. Na Frana, os estudos privilegiaram as desigualdades entre categorias scioocupacionais, compreendendo o fenmeno como uma conseqncia da dinmica do mercado de trabalho e dando uma maior nfase questo de classe social. Nos pases da Amrica Latina, entre eles o Brasil, os estudos tambm se fundamentam numa perspectiva de classe social, abordada atravs da dimenso da renda e das categorias scio-ocupacionais, compreendendo que a segmentao do mercado de trabalho, a dinmica do mercado de terras, e a agncia do Estado so os fatores mais intervenientes na conformao do referido fenmeno.

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Segundo MARQUES (2005), a segregao em termos socioespaciais envolve pelo menos trs processos a partir dos quais pode ser abordada. Em um processo radicalizado e extremo, a segregao pode significar total apartao e isolamento que, por sua vez, se traduz na formao dos guetos e das cidadelas, ou, nas palavras de MARCUSE (2004), enclaves excludentes. Segundo este autor (p. 24-25):[...] Um gueto (guetto) uma rea de concentrao espacial adotada pelas foras dominantes na sociedade para separar e limitar um determinado grupo populacional, externamente definido como racial, tnico ou estrangeiro, tido e tratado como inferior pela sociedade dominante. [...] o processo de formao de um enclave excludente [...] a reunio voluntria de um grupo populacional para fins de autoproteo e desenvolvimento de seus prprios interesses atravs de mecanismos de excluso de outros.

No gueto, atua uma fora externa que impede que os indivduos saiam, enquanto que no enclave excludente, uma fora interna que impede a entrada de grupos indesejveis. Na conformao das metrpoles contemporneas, entre elas as brasileiras, cada vez mais comum, ainda que no seja um processo novo, a emergncia de cidadelas que CALDEIRA (2000) chamou de enclaves fortificados, reas de lazer, consumo, trabalho e residncia, protegidas e monitoradas por tecnologias avanadas de segurana, restritas e privativas s classes mais altas da estrutura social. A auto-segregao das elites tem ampliado a apartao social entre os diversos grupos. No que concerne aos guetos, a sua formao se refere a um processo muito radicalizado e aberto, pois se refere no apenas a uma fora externa (que poderia ser conseqncia das contingncias do campo econmico), mas a dispositivos jurdicos e estatais institucionalizados de manuteno, como os zoneamentos. Essa especificidade da definio faz com que esse conceito seja descartado para a caracterizao da segregao socioespacial da pobreza no Brasil. Compreendendo a complexidade da metodologia e da operacionalizao necessria para a compreenso deste fenmeno no Brasil, MARQUES (2005) afirma que a segregao socioespacial pode ser abordada indiretamente utilizando seus dois outros sentidos relativos a desigualdade e a separao. Dessa forma, o segundo processo pelo qual a segregao pode ser abordada e compreendida a perspectiva a partir da qual os diferentes espaos da cidade so caracterizados pelos seus diferenciais de acesso, i.e, ela passa a ser abordada em uma perspectiva que caracteriza os diferentes espaos da cidade a partir do seu grau de acesso a infra-estrutura, equipamentos, bens, oportunidades de trabalho, de lazer, informaes, etc. Os

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grupos de maior poder aquisitivo tendem a ocupar os melhores e mais valorizados espaos da cidade, dotados de infra-estrutura e equipamentos, oportunidades de trabalho, lazer, informaes, acesso aos centros dinmicos da economia e aos centros de servios, enquanto que a populao mais destituda de capital econmico se v s voltas com a necessidade de se dirigir aos espaos de menor custo, muitas vezes, de propriedade duvidosa, menos valorizados, geralmente, mais distantes e com um acesso precrio a polticas pblicas e a boas condies de vida. No que concerne segregao dos mais pobres, GORDILHOSOUZA (2000, p. 237-238) chama a ateno ainda para a conformao do que chamou de excluso urbanstica, associada desigualdade de acesso. As reas informais crescem e se densificam a margem de critrios de conforto, sem infra-estrutura e sem condies mnimas de qualidade habitacional. Esse processo delineia uma cidade dividida, segregada entre ricos e pobres e entre cidados e no-cidados, ou seja, cidades distintas para cidados diferenciados (ibid, p. 420). No que concerne separao, a segregao socioespacial caracterizada como um fenmeno que separa os grupos sociais no espao da cidade, conformando subreas de relativa homogeneidade social onde as pessoas se vem rodeadas de iguais, do mesmo grupo ou classe social, i.e., a tendncia de indivduos e famlias do mesmo grupo social se concentrar em espaos especficos da cidade. Em relao ao conjunto da cidade, a sua organizao se constitui numa heterogeneidade da distribuio dos grupos no espao fundamentada na concentrao homognea de certos grupos em determinadas reas. interessante notar que essas duas dimenses analticas co-existem na realidade das cidades brasileiras, onde as reas de homogeneidade social da pobreza se caracterizam tambm pela maior precariedade no acesso a polticas pblicas, oportunidades e aos diversos tipos de capitais. Ainda que as reas caracterizadas como de relativa homogeneidade social possam ter uma heterogeneidade interna, contenham espaos mais valorizados que outros e famlias em melhores condies e menos expostas a situaes de riscos e de vulnerabilidade que outras, pertinente considerar que os moradores dessas subreas mantenham caractersticas comuns, especificamente no que concerne ao seu capital econmico e cultural. Claro est que esta homogeneidade sempre relativa, pois a realidade social e seus atores no se portam a nenhum ou quase nenhum processo de homogeneizao. nesse sentido que a noo de homogeneidade social compreendida sociologicamente em relao ao conceito de segregao socioespacial.

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A segregao socioespacial gera diversas conseqncias para as cidades e para as condies de vida da sua populao, notadamente para os mais pobres. A segregao da pobreza um dos elementos fundamentais do isolamento social dos pobres urbanos na medida em que as desigualdades espaciais tendem a ser naturalizadas e poucos percebem que, como deixaram claro MARQUES; TORRES (2005), a segregao socioespacial no uma mera curiosidade sociolgica. A apropriao desigual do espao urbano pelos diferentes grupos sociais se traduz numa desigualdade de condies de vida uma vez que o espao de vivncia, de construo de redes sociais e de capital social, assim como o acesso diferenciado a equipamentos, servios, informaes e oportunidades pode trazer uma srie de dificuldades e/ou facilidades para a vida cotidiana dos seus moradores. o que autores como KAZTMAN (2001) e RIBEIRO (2005) chamam de efeito vizinhana ou, na acepo de BOURDIEU (1998), so os efeitos de lugar. A partir da uma extensa reviso da literatura norte-americana sobre o tema, o trabalho de ELLEN; TURNER (1997) adverte para a importncia do tema e para a complexidade do seu tratamento terico-metodolgico. Para essas autoras, no h consenso sobre qual mecanismo da vizinhana influencia cada comportamento, qual deles influencia mais e que famlias so mais afetadas pelas suas condies. De uma maneira geral, todas as pesquisas empricas consultadas por elas confirmam que a vizinhana tem uma influncia sobre variados aspectos das trajetrias das crianas e dos adultos. Contudo, sua influncia parece ser menor que a das caractersticas das famlias (capital econmico, cultural, social, etc.). Boa parte da literatura foca seus trabalhos nas conseqncias da vizinhana sobre a construo do comportamento e da viso de mundo das crianas e adolescentes, ou seja, sobre os aspectos da socializao. No que concerne aos adultos, as suas influncias afetam principalmente o acesso aos servios, informaes e oportunidades de emprego. Nessa reviso, as autoras identificaram que as condies da vizinhana podem afetar as trajetrias individuais e das famlias atravs de seis mecanismos: a) qualidade dos servios locais; b) socializao atravs de adultos; c) influncia dos pares; d) redes sociais; e) exposio ao crime e violncia; f) distncia fsica e isolamento. A qualidade e disponibilidade dos servios locais podem afetar significativamente as condies e qualidade de vida individual e familiar. Uma srie de equipamentos mantm fundamental importncia para o bem-estar e a sua falta pode significar uma dinmica de retroalimentao de situaes de precariedade. Dois exemplos bvios so a qualidade da

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escola pblica e dos servios de sade. A reproduo de um baixo nvel de capital cultural entre os mais pobres tem como uma de suas causas a falta de qualidade e de capacidade de atrao das escolas pblicas. Trabalhos como os de RIBEIRO (2006) focalizam a escola, em associao com a segregao socioespacial, como elementos reprodutores das desigualdades visto que mesmo as escolas pblicas so diferentes dependendo de onde se localizem. Escolas situadas em bairros pobres tendem a ter professores menos qualificados e mais desestimulados, contribuindo para a construo de propostas pedaggicas de pior qualidade. Isso significa que algumas escolas conseguem agregar mais valor aos alunos do que outras. Os servios de sade tambm so fundamentais, principalmente para a populao que precisa regularmente devido a doenas crnicas. Crianas e adultos que ficam doentes constantemente podem perder aula ou ficar afastados do trabalho por um longo tempo. A existncia de creches tambm um exemplo interessante, principalmente no momento em que as famlias chefiadas por mulheres solteiras comeam se tornar mais comum. De uma maneira geral, a existncia e qualidade da assistncia estatal um dos elementos mais importantes dos diferenciais de acesso que caracterizam a segregao socioespacial. Para RIBEIRO (2005) e KAZTMAN (2001), um das grandes causas da menor qualidade dos servios de bairros pobres a separao socioespacial entre as diferentes classes sociais. A segregao socioespacial faz com que as diversas classes deixem de compartilhar os mesmos servios, os equipamentos urbanos e os espaos pblicos de emprego. Os problemas deixam de ser comuns, resultando na perda de qualidade dos servios pblicos utilizados pela populao pobre, pois as classes mdias deixam de ter interesses em tais servios e esse estrato , para esses autores, aquele que tem voz e capital social suficiente para reivindicaes. No caso brasileiro, essa causa deve ser, pelo menos, relativizada, pois os servios e equipamentos no Brasil sempre se segmentaram entre as classes, os pblicos para os pobres e os privados, de maior qualidade, para os que podem pagar. Essa hiptese pode ter maior operacionalizao em bairros onde havia uma classe mdia baixa morando em contato com uma populao mais pobre de modo que os servios do bairro fossem compartilhados pelos dois estratos. Contudo, de uma maneira geral, essa hiptese tende a ser bem distante da realidade brasileira. O mecanismo de socializao por adultos se refere questo da socializao de crianas e jovens. So os adultos que ensinam o que normal e aceitvel na sociedade e seus comportamentos servem como padres no qual as crianas tendem a se espelhar. Os adultos

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tambm comunicam s crianas a importncia do trabalho, da educao, etc. Segundo as pesquisas consultadas por aquelas autoras, comunidades onde poucos adultos trabalham, as crianas aprendem menos sobre gesto e planejamento do tempo. Ademais, onde poucos adultos trabalham ou no tm sucesso no emprego, os jovens esto mais propensos a internalizar que o caminho do trabalho no seguro para a melhoria da sua qualidade de vida e que no d futuro. Jovens vivendo em comunidades pobres e isoladas, onde os adultos no tiverem xito na sua insero profissional e educacional, tambm tm probabilidade maior de menosprezar os retornos da educao. A influncia dos pares tambm se centra na importncia da socializao. Enquanto que as crianas tendem a se pautar mais nas influncias da famlia, ou seja, na socializao primria, os adolescentes tendem a comear a transpor essas barreiras e fundamentar seu comportamento no de seus pares. a passagem da socializao primria para a secundria. Os pares no so apenas determinados pela vizinhana. Mas se o jovem estuda no mesmo bairro onde mora e no trabalha, seu circulo de amizade tende a se fechar na sociabilidade do bairro. Nesse sentido, se muitos jovens da comunidade so desestimulados na escola, engajados em crimes e outros comportamentos inaceitveis, segundo as pesquisas consultadas pelas autoras, seus pares esto mais aptos a congregar desses comportamentos. A questo das redes sociais , talvez, um dos elementos mais importantes pelo qual a vizinhana pode influenciar, para melhor ou para pior, as trajetrias dos indivduos e das famlias, pois muitas dessas redes tendem a ser geograficamente fundadas. Notadamente entre as famlias de baixo capital cultural e econmico, com relaes instveis com o Estado e com o Mercado, principalmente o mercado de trabalho, as redes sociais desempenham um papel fundamental nas suas condies de vida ao construir seu capital social. Essa rede pode ser formada por amigos, colegas, vizinhos, parentes, etc. Vizinhanas com redes sociais densas so benficas para seus residentes, pois permite uma maior coes