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Introdução - Importância Prática das Ciências Sociais § 1.° A luta de classe e as ciências sociais Quando os sábios burgueses se referem a uma ciência qualquer, assumem um ar misterioso como se se tratasse duma coisa do céu e não da terra. No entanto qualquer ciência tem a sua origem nas necessidades da sociedade ou das classes que a compõem. Ninguém se põe a contar as moscas que estão sobre uma janela ou os passarinhos na rua. No entanto contam-se, por exemplo, as cabeças de gado. Ninguém precisa dos primeiros enquanto é útil conhecer os segundos. Mas não é suficiente conhecer a natureza de onde tiramos tantas coisas úteis, as matérias primas etc.; é necessário também, do ponto de vista prático, ter noções claras do que seja a sociedade. A classe trabalhadora sente a cada momento, na sua luta, a necessidade desse conhecimento. Para levar avante convenientemente o combate contra as outras classes, ela deve prever a maneira pela qual essas classes vão agir. E, para estar em condições de prever, é preciso conhecer as razões que determinam a ação das diferentes classes, em diferentes situações. Enquanto a classe operaria não conquistar o poder, ela será oprimida pelo capital e obrigada a contar, na sua luta pela emancipação, com as maneiras de agir das outras classes. Esta é a razão porque precisa saber do que depende e como é determinada a conduta dessas classes. Somente as ciências sociais podem resolver este problema. Depois de tomado o poder a classe proletária é obrigada a lutar contra os estados capitalistas dos outros países e contra a contrarrevolução, no seu próprio país; e nessa ocasião ela é obrigada a resolver os problemas extremamente difíceis relativos à organização de produção e distribuição. Como estabelecer um plano econômico de trabalho? Como se servir dos intelectuais? Como converter ao comunismo, os camponeses e a pequena-burguesia? Como formar

Nikolai Bukharin-A Teoria do Materialismo Histórico

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Nesse livro, o teórico político russo Nikolai Bukharin expõe o Materialismo Histórico e as ciências sociais sub uma perspectiva materialista.

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Introdução - Importância Prática das Ciências Sociais

§ 1.° A luta de classe e as ciências sociais

Quando os sábios burgueses se referem a uma ciência qualquer, assumem um ar misterioso como se se tratasse duma coisa do céu e não da terra. No entanto qualquer ciência tem a sua origem nas necessidades da sociedade ou das classes que a compõem. Ninguém se põe a contar as moscas que estão sobre uma janela ou os passarinhos na rua. No entanto contam-se, por exemplo, as cabeças de gado. Ninguém precisa dos primeiros enquanto é útil conhecer os segundos. Mas não é suficiente conhecer a natureza de onde tiramos tantas coisas úteis, as matérias primas etc.; é necessário também, do ponto de vista prático, ter noções claras do que seja a sociedade. A classe trabalhadora sente a cada momento, na sua luta, a necessidade desse conhecimento. Para levar avante convenientemente o combate contra as outras classes, ela deve prever a maneira pela qual essas classes vão agir. E, para estar em condições de prever, é preciso conhecer as razões que determinam a ação das diferentes classes, em diferentes situações. Enquanto a classe operaria não conquistar o poder, ela será oprimida pelo capital e obrigada a contar, na sua luta pela emancipação, com as maneiras de agir das outras classes. Esta é a razão porque precisa saber do que depende e como é determinada a conduta dessas classes. Somente as ciências sociais podem resolver este problema. Depois de tomado o poder a classe proletária é obrigada a lutar contra os estados capitalistas dos outros países e contra a contrarrevolução, no seu próprio país; e nessa ocasião ela é obrigada a resolver os problemas extremamente difíceis relativos à organização de produção e distribuição. Como estabelecer um plano econômico de trabalho? Como se servir dos intelectuais? Como converter ao comunismo, os camponeses e a pequena-burguesia? Como formar administradores experimentados, saídos da classe proletária? Como se aproximar das grandes camadas que ainda não têm consciência da sua classe? Etc., etc... Questões cuja solução exige um conhecimento profundo da sociedade, das classes que a compõem, das particularidades delas e da sua conduta, em determinadas condições. A solução destes problemas exige igualmente o conhecimento da vida econômica e das concepções sociais dos diversos grupos da sociedade. Em resumo ela exige a utilização pratica da ciência social. A tarefa prática da reconstrução social só pode ser realizada com a aplicação de uma política cientifica da classe proletária, isto é, de uma política baseada sobre a teoria cientifica, posta á disposição dos proletários; a teoria fundada por Marx.

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§ 2.º A burguesia e as ciências sociais

A burguesia de seu lado criou a sua própria ciência social, partindo das suas próprias necessidades da vida prática.

Como classe dominante ela se vê obrigada a resolver um grande numero de problemas: Como conservar a ordem capitalista? Como assegurar o pretendido "desenvolvimento normal" da sociedade capitalista? Isto é, a usurpação regular do lucro? Como organizar para este fim as instituições econômicas? Qual a política a ser adotada com relação aos outros países? Como garantir a sua dominação sobre a classe proletária? Como resolver as divergências dentro do seu meio? Como preparar os quadros de seus funcionários, de seus policiais, de seus sábios, de seu clero? Como organizar a instrução de maneira a impedir que a classe proletária se torne uma classe de selvagens, que destruam as máquinas, ficando, entretanto submissa aos seus exploradores? Etc.

Eis a razão porque a burguesia precisa duma ciência social que a ajude a se guiar na complexidade da vida social e que lhe forneça meios para resolver os problemas práticos da existência.

É interessante verificar que os primeiros economistas burgueses ou sábios especializados na economia, foram práticos saídos do alto comercio ou homens ligados ao serviço do Estado. Ricardo, o maior teórico da burguesia, era um banqueiro muito hábil.

§ 3.° O caráter de classe das ciências sociais

Os sábios burgueses se intitulam os representantes da "ciência pura", dizem que as paixões terrestres, o conflito dos interesses, as dificuldades da existência, a procura do lucro, e outras coisas vulgares e inferiores, não têm relação com a sua ciência. Eles consideram as coisas como se o sábio fosse um deus, sentado no cume de uma alta montanha e observando sem paixão a vida social em toda a sua complexidade. Eles pensam (ou antes, eles dizem) que a imunda "prática" não exerce influencia alguma sobre a "teoria" pura.

Está claro, pelo já exposto, que tudo isto é fantasia. Pelo contrario, a ciência nasce da vida prática. Torna-se assim perfeitamente compreensível que as ciências sociais tenham caráter de classe. Cada classe tem uma existência prática que lhe é peculiar; os seus próprios problemas, seus interesses e suas concepções particulares. A burguesia se esforça antes de tudo em conservar, consolidar e tornar universal e eterna a dominação do capital. Quanto à classe proletária, ela se preocupa antes de tudo em destruir o regime capitalista e assegurar a dominação do proletariado, para reorganizar o mundo. Não é difícil compreender que a burguesia tenha uma concepção do mundo,

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completamente diferente da concepção proletária; que a ciência social da burguesia seja uma, e que a do proletariado seja completamente diversa.

§ 4.º Porque motivo a ciência proletária é superior a ciência burguesa?

Esta é a questão que agora se nos apresenta. Se as ciências sociais têm um caráter de classe, porque motivo é a ciência proletária superior a burguesa? A classe proletária, tanto quanto a burguesia, têm os seus interesses, suas aspirações, e sua própria vida prática. Elas são tão interesseiras uma quanto a outra. O fato de uma classe ser boa, generosa, preocupada com o bem da humanidade, e a outra cúpida, procurando somente o lucro, etc., mudará de alguma maneira a questão?

Uma usa óculos vermelhos, a outra óculos brancos; porque serão os óculos vermelhos superiores aos óculos brancos? Porque motivo será mais fácil observar a realidade através de óculos vermelhos? Por que se enxerga melhor com eles?

Antes de responder a estas questões é necessário refletir alguns instantes.

Vejamos qual é a situação da burguesia. Nós já observamos que antes de tudo ela se interessa em manter a ordem capitalista; no entanto sabemos que nada há de eterno debaixo do sol. Houve uma era de regime escravista e em seguida outra de regime feudal; houve também, e há ainda, um regime capitalista; conheceram-se ainda outras formas de sociedades humanas. Se assim é — e isso é incontestável — pode-se tirar a seguinte conclusão: quem quiser compreender corretamente a vida social, deve compreender antes de mais nada que tudo muda e que uma forma social sucede a outra. Vamos tomar, por exemplo, um senhor feudal, vivendo antes da libertação dos servos. Era-lhe absolutamente impossível imaginar um regime onde os servos não pudessem ser vendidos ou trocados por cães de caça.

Podia esse senhor feudal compreender as condições reais do desenvolvimento social? Certamente que não. Por que: Pela simples razão dele ter diante dos seus olhos, invés de óculos, espessa faixa. Ele era, portanto, incapaz de enxergar um palmo diante do seu nariz, e não podia, nestas condições, compreender o que se passava na sua frente.

O mesmo exatamente sucede com a burguesia. Sendo interessada em conservar o regime capitalista, ela crê em sua solidez e na sua eternidade. Este é o motivo pelo qual ela não pode observar certas particularidades e fenômenos do desenvolvimento da sociedade capitalista, que indicam sua fragilidade, sua decadência inevitável (ou mesmo sua decadência possível), sua transformação em outra ordem social. É no estudo do exemplo da guerra mundial e da Revolução que se pode observar claramente a falta de visão da

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burguesia. Qual foi entre os sábios burgueses aquele que previu as consequências da conflagração mundial? Ninguém. Quem dentre eles previu a vinda da Revolução? Eles não fizeram mais que sustentar os seus governos burgueses e prometer a vitória aos capitalistas dos seus países. No entanto são fenômenos tais como o empobrecimento resultante da guerra e as Revoluções proletárias, desconhecidos até então, que decidem do futuro da humanidade e modificam o aspecto do mundo. Foi aqui precisamente que a ciência burguesa nada previu.

Os comunistas, pelo contrario, representantes da ciência proletária, previram este fenômeno. Isto se explica pelo fato do proletariado, não sendo interessado na conservação da antiga ordem, poder ver mais longe do que a burguesia.

É fácil compreender agora porque motivo a ciência proletária é superior á ciência burguesa. Ela é superior porque estuda os fenômenos da vida social de uma maneira mais larga e profunda, porque ela tem uma maior visão e observa coisas que a ciência social burguesa é incapaz de enxergar. Compreende-se assim que nós outros, marxistas, temos o direito de considerar a ciência proletária como a verdadeira ciência e exigir que ela seja reconhecida como tal.

§ 5.° As diversas ciências sociais e a sociologia

A sociedade humana é extremamente complexa, e os fenômenos sociais são por sua vez, muito complexos e variados. Temos que tratar dos fenômenos econômicos, do regime econômico, da organização do Estado, da moral, da religião, da ciência, da filosofia, das condições da família etc.... Todos estes fenômenos se acham emaranhados e formam a torrente da vida social. Está claro que é preciso estudar esta vida social, tão complexa, de diferentes pontos de vista, e dividir a ciência em uma série de ciências particulares. Uma estuda a vida econômica da sociedade (a ciência econômica) ou mesmo, as leis gerais do regime capitalista, em particular (a economia política); outra estuda o direito e o Estado e se subdivide por sua vez em vários ramos: uma outra estuda por exemplo os costumes etc...

Em cada um desses domínios a ciência se divide por sua vez em duas classes: umas estudam o que existiu numa certa época e em determinado lugar; estas são as ciências históricas. Tomemos por exemplo as ciências do direito: pode-se estudar e descrever em detalhe as origens do direito e do Estado assim como as suas transformações: isto será a historia do direito. Pode-se também estudar e procurar resolver problemas de ordem geral: o que é o direito, quais são as condições do seu aparecimento e desaparecimento, de que dependem as suas formas, etc...; isto será a teoria do direito. Estas ciências são as ciências teóricas.

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Existem entre as ciências sociais dois ramos muito importantes que não estudam só um domínio da vida social, mas sim a vida social em toda a sua complexidade; em outros termos elas não se detêm em observar um só gênero de fenômenos (seja econômico, jurídico, religioso, etc.), mas eles estudam a vida social no seu conjunto, todas as manifestações dos fenômenos sociais. Estas ciências constituem de um lado a história e do outro a sociologia. Dito isto, é fácil ver o que as diferencia. A historia segue e descreve a corrente da vida social durante um intervalo de tempo e num determinado lugar (por exemplo, a maneira como se desenvolvem a economia, o direito, a moral, a ciência, etc.... na Rússia de 1700 a 1800, ou então na China do ano 2000 antes de Cristo até o ano 1000 depois de Cristo, ou ainda na Alemanha depois da guerra Franco-Alemã, de 1871, ou enfim, em uma outra época num país qualquer, ou numa série de países). Quanto à sociologia, procura resolver problemas de ordem geral: o que é sociedade? Quais são as razões do seu desenvolvimento e de sua decadência? Quais são as relações entre os diversos gêneros de fenômeno sociais (a economia, o direito, a ciência, etc...)? Como explicar o seu desenvolvimento? Quais são as formas históricas da sociedade? Como explicar suas variações? Etc., etc... A sociologia é a mais geral e a mais abstrata das ciências sociais.

Ela é apresentada muitas vezes sob outras denominações: "filosofia da história", "teoria do desenvolvimento histórico" etc... Vê-se pelo que precedem, quais são as relações entre a história e a sociologia. Explicando as leis gerais da evolução humana, a sociologia serve de método a historia. Se, por exemplo, a sociologia estabelece uma lei geral segundo a qual as formas do Estado dependem das formas da economia, um historiador, estudando uma dada época, deve-se esforçar em encontrar a relação e indicar a forma concreta (isto é, correspondente ao momento dado) em que ela se exprime. O historiador fornece os materiais para as conclusões e as generalizações sociológicas, porque essas conclusões não são tomadas arbitrariamente, e sim tiradas de fatores históricos reais.

A sociologia, por sua vez formula um ponto de vista definido, um processo de investigação, ou melhor, um método para a história.

§ 6.° A teoria do materialismo histórico considerada como sociologia marxista

A classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida pelo nome de materialismo histórico. Os princípios desta teoria foram estabelecidos por Marx e Engels. Ela é também chamada a concepção materialista da história, ou mais simplesmente o "materialismo econômico". Essa teoria genial constitui o mais preciso instrumento do pensamento e do conhecimento humano. É graças a ela que o proletariado consegue se guiar no meio dos mais complicados

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problemas da vida social e da luta de classe. É graças a ela que os comunistas previram a guerra e a Revolução, a ditadura do proletariado, e a linha de conduta dos partidos, dos grupos e das diferentes classes, no decorrer da formidável efervescência que a humanidade atravessa. A presente obra é consagrada á exposição e desenvolvimento desta teoria.

Certos camaradas pensam que a teoria do materialismo histórico não pode de maneira alguma ser considerada como uma sociologia marxista e que ela não pode ser exposta de uma maneira sistemática. Acham esses camaradas que ela não é senão um método vivo de conhecimento histórico, que suas verdades não podem ser provadas senão em se tratando de fenômenos concretos e históricos. Junta-se a este argumento que a própria noção de sociologia está muito mal definida: que entende-se por "sociologia", ora a ciência da cultura primitiva e da origem das formas essenciais da comunidade humana (por exemplo, a família), ora considerações extremamente vagas sobre diferentes fenômenos sociais "em geral", ora a comparação arbitraria da sociedade a um organismo (a escola orgânica ou biológica na sociologia). Estes argumentos são falsos. Em primeiro lugar, a confusão que reina no campo burguês não nos deve levar a criar outra entre nós. Que lugar deve portanto ocupar a teoria do materialismo histórico? Não será na economia política nem tão pouco na historia; seu lugar está na ciência geral da sociedade e das leis de sua evolução, isto é, na sociologia. Por outro lado, o fato do materialismo histórico constituir um método para a história, não diminui de maneira alguma a sua importância como teoria sociológica. Muitas vezes uma ciência mais abstrata fornece um ponto de vista (isto é um método) a uma ciência menos abstrata. Este é o nosso caso, como já vimos acima.

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Capítulo I - A Causa e o Fim das Ciências Sociais (Casualidade e Finalidade)

§ 7° A regularidade dos fenômenos em geral e dos fenômenos sociais, em particular.

Se observarmos os fenômenos naturais e sociais, verificamos que esses fenômenos não se acham reunidos desordenadamente e sem que os possamos compreender ou prever. Ao contrario basta estudar as coisas um pouco mais de perto, para verificarmos que há nelas certa regularidade nos fenômenos. O dia segue a noite e a noite o dia de uma maneira perfeitamente regular. As estações se alternam, e ao mesmo tempo toda a série de fenômenos que as acompanham se repetem todos os anos: as arvores verdejam e perdem suas folhas, as diferentes espécies de pássaros chegam e partem, os homens semeiam, colhem etc... Tomemos ainda outro exemplo interessante. Depois das chuvas tépidas, os cogumelos crescem abundantemente; existe mesmo um ditado: "crescer como os cogumelos depois da chuva". Todos nós sabemos que uma semente de cevada caindo na terra germina e em seguida, em certas condições, acaba por produzir uma espiga.

Pelo contrario, nunca se viu esta espiga sair de um ovo de rã ou de uma pedra de cal. Assim, tudo o que existe na natureza a começar pelo majestoso movimento dos planetas, para terminar pelas sementes e os cogumelos, está submetido a certa ordem, ou como se costuma dizer, a certas leis.

O mesmo acontece na vida social, isto é na vida da sociedade humana. Por mais complicada e variada que seja esta vida, descobrimos nela certas leis. Assim em todos os lugares onde o capitalismo se desenvolve (na América, no Japão, na África ou na Austrália), desenvolve-se também e aumenta a classe proletária; aparece o movimento socialista, a teoria marxista se espalha. Juntamente com a produção cresce também a "cultura espiritual"; o numero de intelectuais aumenta. Numa sociedade capitalista, em intervalos regulares, produzem-se crises que se alternam com a expansão da indústria, do mesmo modo que os dias se alternam com as noites. As grandes invenções transformam a técnica; ao mesmo tempo a vida social se modifica rapidamente. Vamos tomar ainda alguns exemplos. Se calcularmos o numero de nascimentos humanos durante um ano, veremos que no ano seguinte o acréscimo de população, expresso em porcentagem será aproximadamente o mesmo. Se calcularmos a quantidade de cerveja consumida na Baviera durante um ano, verificaremos que essa quantidade é mais ou menos constante e aumenta com o crescimento da população. Se não existisse

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nenhuma regularidade nem leis, é evidente que nada poderia ser previsto nem feito. Hoje o dia segue a noite„ mais tarde, quem sabe se durante todo um ano não será mais visto o dia. Neste inverno, tivemos neve no próximo veremos florescer as laranjeiras. Na Inglaterra, a classe proletária se desenvolveu juntamente com o capitalismo, mas no Japão, veremos quem sabe, aumentar as propriedades fundiárias. Hoje em dia, o pão é cozido num forno, mas amanhã, quem sabe, se o diabo intervier, os pinheiros passarão a produzi-lo.

Entretanto, na realidade ninguém pensa desta maneira. Todos sabem perfeitamente que as arvores nunca produzirão pães. Todos observam que existe certa regularidade, que há leis que regem os fenômenos, tanto na natureza como na sociedade. A primeira função da ciência é justamente descobrir esta regularidade.

Esta regularidade (lei) na natureza e na vida social não depende de maneira alguma do conhecimento humano. Em outras palavras, as leis são objetivas, independentes do conhecimento dos homens. A primeira função da ciência consiste em descobrir esta regularidade; em encontra-la no meio do caos dos fenômenos. Marx considerava o sinal característico do conhecimento cientifico o fato dele dar uma:

"totalização de um numero importante de determinações e de relações" em oposição a uma "representação caótica" ("Introdução á critica da economia política", Stuttgart 1920, pag. 35).

Este caráter da ciência que "sistematiza", "ordena", "organiza", cria um "sistema", etc. É reconhecido por todo o mundo. É assim que Mach (no "Conhecimento e Erro") define o processo do pensamento cientifico como uma adaptação dos pensamentos aos fatos e de pensamentos a pensamentos. O professor inglês P. Pearson escreve:

"não são os fatos que constituem por si mesmos uma ciência, e sim o método pelo qual eles são interpretados".

O método original da ciência consiste em "classificar" os fatos, o que não constituí uma simples reunião de fatos e sim uma "reunião sistemática": (citado pela edição russa da "Gramática e Ciência" de P. Pearson, pag. 26 e 100). No entanto, a grande maioria dos filósofos burgueses contemporâneos considera que o papel da ciência não consiste em descobrir esta regularidade (estas leis), que existem objetivamente, e sim inventar estas leis com o auxílio do raciocínio humano; é claro, porém, que a alternância dos dias e das noites, das estações, a transformação regular dos fenômenos naturais e sociais, existe

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independentemente do que deseja ou deixa de desejar o raciocínio de um sábio burguês. A regularidade destes fenômenos, isto é, as leis ás quais eles estão submetidos, são de ordem objetiva.

§ 8.° O caráter das leis na ciência. Formas pelas quais se nos apresenta a questão.

Se esta regularidade, à qual nos referimos acima, aparece nos fenômenos naturais e sociais, trata-se agora saber em que consiste. Quando estamos em presença de um mecanismo de relojoaria de movimento regular, quando observamos a excelente maneira pela qual se acham ajustadas as engrenagens, começamos a compreender as razões de seu movimento. O relógio está construído de acordo com um plano preestabelecido; esse instrumento é construído para um determinado fim, e cada parafuso está colocado visando certo fim. Mas passar-se-ão de forma análoga os fatos no universo? Os planetas evoluem segundo trajetórias determinadas; a natureza conserva sabiamente as formas mais desenvolvidas da vida. Basta estudar a construção do olho de um animal para se verificar imediatamente quão habilmente ele está construído para o fim que se destina. E tudo o que existe na natureza está, com efeito, de acordo com a sua finalidade: a toupeira que vive debaixo da terra é cega, mas por outro lado, tem um excelente ouvido; os peixes que vivem à grandes profundidades e submetidos a uma forte pressão, têm a necessária resistência (fora da agua eles estouram), etc... E na sociedade humana, de que maneira se passam as coisas? Não tem a humanidade o seu grande fim — o comunismo? Todo o desenvolvimento histórico não a conduz a este fim? E se assim é, si tanto na natureza como na sociedade, tudo tem seu fim, que nós nem sempre compreendemos, mas que consiste em um aperfeiçoamento indefinido, não poderão todos os fenômenos ser estudados do ponto de vista deste fim? Assim, as leis de que nos referimos se apresentarão como leis de finalidade (ou leis teleológicas: "télos" em grego — "fim"). Esta é uma das maneiras de se apresentar a questão do caráter das leis.

Outra maneira de apresentar a questão prove do fato de cada fenômeno ter a sua causa. A humanidade marcha para o comunismo, porque na sociedade capitalista aparece o proletariado, que não encontra espaço suficiente dentro, dela; a toupeira vê mal e ouve bem, porque, durante milhares de anos as condições naturais influíram nestes animais, porque as transformações provocadas por elas foram transmitidas por hereditariedade, e ao mesmo tempo, sobreviveram e se multiplicaram os seres que mais facilmente podiam sobreviver, isto é, os que melhor se achavam adaptados ao ambiente. O dia e a noite se alternam, porque a terra gira em torno do seu eixo e apresenta; ao sol alternadamente um e outro hemisfério, etc... Em todos

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estes casos não se apresenta a questão da finalidade (não se pergunta "por quê?"), pergunta-se qual é a causa do fenômeno (isto é "como?"). Esta é a maneira que se apresenta a questão, seguindo o principio da causalidade (da palavra "causa"). As leis que governam a marcha dos fenômenos são assim submetidas ao principio da causalidade.

Há, portanto, um conflito entre a causalidade e a finalidade. Precisamos antes de mais nada solucionar esse conflito.

§ 9.° Doutrina da finalidade (teleologia) em geral e critica da doutrina. Finalidade imanente.

Não será difícil compreender a inconsistência da teleologia se considerarmos a finalidade como principio universal, isto é se considerarmos a concepção segundo a qual tudo está submetido a fins determinados. Com efeito, o que é o fim? A concepção do "fim" pressupõe a existência de alguém que tenha em mira esse fim como tal, isto é, de uma maneira consciente. Um fim não pode existir separadamente daquele que o visa. Uma pedra não visa fim algum, nem tão pouco o sol, ou um planeta ou todo o sistema solar, ou mesmo a Via-Láctea. O fim é uma concepção que só pode ser aplicada a seres vivos e conscientes, tendo os seus desejos, fazendo desses desejos um fim e tendendo a satisfazê-los (isto é, aproximando-se desse fim). Somente um selvagem não poderia conceber que um marco divisório se proponha a uma finalidade. O selvagem anima a natureza e anima a pedra. É por este motivo que nele domina a "teleologia", e uma pedra age para ele como se fosse um homem consciente. Os partidários da doutrina da finalidade parecem-se com este selvagem como duas gotas de água, pois para eles, o mundo inteiro tem o seu "fim" proposto por um desconhecido. Vemos assim, claramente que as concepções do fim, e de finalidade são simplesmente inaplicáveis ao mundo em geral, e que as leis a que obedecem os fenômenos não se acham submetidas a nenhuma finalidade.

Não é difícil descobrir as fontes da discórdia entre os partidários da teleologia e da causalidade. Desde a época em que a sociedade humana se dividiu em diferentes grupos, dos quais uns (a minoria) governam, ordenam, dominam, e os outros executam, são governados e obedecem, os homens começaram a encarar o mundo de conformidade com esse estado de coisas. Da mesma maneira que há sobre a terra reis, assim também deve existir no mundo inteiro um rei celeste, um juiz celeste, com as suas tropas celestes e seus generais (os estrategistas supremos). Começou-se a considerar o universo como o produto de uma vontade criadora que se ocupa em criar fins e traçar o seu "plano divino". É por este motivo que a regularidade dos

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fenômenos foi considerada como a expressão dessa vontade divina. O filósofo grego Aristóteles disse: "A natureza, é o fim".

A palavra grega "nomos" (lei) significava ao mesmo tempo a "lei natural" e a lei moral (isto é, uma regra moral, um preceito), e também simplesmente a ordem, a medida, a harmonia.

"Ao mesmo tempo em que se alargava o poder imperial, a jurisprudência da antiga Roma se transformou em uma espécie de teologia laica, e seu desenvolvimento ulterior seguiu paralelamente à teologia dogmática. A lei começou a significar uma norma (regra de conduta, N. B.), tendo sua fonte num poder superior, — no de um imperador celeste em teologia, ou bem de um deus terrestre em jurisprudência, — e prescrevendo aos seres submetidos a uma determinada regra de conduta" (E. Spektorsky: "Estudos sobre a filosofia das ciências sociais". Varsóvia, 1907, pag. 158).

O sistema de leis da natureza foi considerado como um sistema de legislação divina. O celebre sábio Kepler dizia que o mundo físico tinha as suas "pandectas" (pandectas: coleção de leis do imperador Justiniano). Encontramos concepções semelhantes, ainda mais tarde. Assim os fisiocratas (economistas franceses do tempo da Revolução), que foram os primeiros a descrever a sociedade capitalista, misturaram as leis às quais estão submetidos os fenômenos naturais e sociais, com as do Estado e com os decretos das potências celestes. Assim, por exemplo, François Quesnay escreve:

“As leis que constituem as sociedades são leis de ordem natural e as mais vantajosas para o gênero humano.”

"Estas leis foram estabelecidas para a perpetuidade pelo autor da Natureza."

"A observância destas leis naturais e fundamentais do corpo político, deve ser mantida por intermédio de uma autoridade tutelar, estabelecida para a sociedade..." (François Quesnay: "O despotismo da China", Capitulo 8º, § 1 e 2).

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Não é difícil verificar como estas leis da "autoridade tutelar" (isto é dos agentes policiais da burguesia) se apoiam habilmente sobre o "Criador celeste", que elas devem por sua vez sustentar.

Poder-se-ia citar um grande numero de exemplos. Todos eles provam a mesma coisa, a saber, que a doutrina da finalidade se apoia na religião. De acordo com a sua origem, ela transporta as relações grosseiras e barbaras de submissão e escravidão, de um lado, e de dominação, do outro, para o mundo inteiro. Na sua própria base, ela é constrangida à explicação cientifica, e se apoia sobre a fé. É uma doutrina de "beatos", qualquer que seja o caldo em que venha disfarçada. Mas como podemos então explicar os fenômenos cuja "conformidade ao plano preestabelecido" salta aos olhos (a estrutura dos diferentes organismos, "de conformidade com um plano", o progresso social, o aperfeiçoamento das espécies animais e do homem, etc...)? Se nós nos colocarmos num ponto de vista grosseiramente finalista e se responsabilizarmos Deus e seu "plano", verificaremos imediatamente a insanidade de semelhante "explicação". É por esta razão que a doutrina da finalidade é concebida por alguns de uma maneira mais séria e toma então a forma da "doutrina da finalidade imanente" (isto é, da finalidade ligada interiormente aos fenômenos naturais e sociais).

Antes de passar ao estudo desta questão, talvez seja melhor dizer algumas palavras sobre as "explicações" religiosas. Um economista burguês muito inteligente, Boehm-Bawerk, citou o seguinte exemplo:

"Vamos supor que para explicar a estrutura do universo eu emita uma teoria segundo a qual todo o universo seria composto de uma quantidade incalculável de gnomos (diabinhos), cujo movimento incessante produziria todos os fenômenos. Ora, estes pequenos gnomos são invisíveis, não emitem ruído, não têm cheiro e é impossível agarra-los pela cauda. Tente-se desmentir tal "teoria"! É impossível provar diretamente que ela é falsa, pois ela se acha escondida atrás da invisibilidade dos fugitivos gnomos. Apesar disto, todo o mundo vê perfeitamente que isto não passa duma bobagem. Por quê? Pela simples razão de não existir nem um fato que venha confirmar tal concepção.”.

Tais são, mais ou menos, as pretendidas explicações de ordem religiosa. Elas são baseadas sobre um sistema de forças desconhecidas, ou então sobre a fragilidade da nossa razão. Foi assim que um Santo Padre da Igreja propôs como principia: "Eu creio porque é absurdo" (Credo quia absurdum). Segundo

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os princípios do Cristianismo, Deus é um, mas ao mesmo tempo, existe uma Trindade divina. Evidentemente isto é contrário à tabuada de multiplicação. Mas dizem-nos que "nossa fraca razão não pode compreender este mistério". Certamente, com um raciocínio desta espécie, é possível justificar qualquer extravagância.

Em que consiste a teoria da "finalidade imanente"? Rejeita-se nela a ideia duma força misteriosa no sentido grosseiro da palavra. Fala-se somente no fim que se revela pouco a pouco com a marcha dos acontecimentos, do fim, ligado interiormente ao próprio processo do desenvolvimento. Tomemos um exemplo. Vamos admitir que estamos em presença duma espécie de um animal. Com o tempo e como consequência de toda uma série de causas, ele se transforma adaptando-se cada vez mais às condições naturais. Os órgãos de um animal se aperfeiçoam gradativamente, isto quer dizer que eles progridem. Ou então, tomemos, se quiserdes a sociedade humana. Qualquer que seja a maneira pela qual encaremos o seu futuro (que o seu futuro seja socialista ou que adote outra forma), não se pode negar que o tipo humano se aperfeiçoa, que o homem se torna cada vez mais "civilizado", "mais aperfeiçoado", e que nós, chamados solenemente os reis da natureza, "seguimos o caminho da civilização e do progresso". Do mesmo modo que a estrutura dos animais vai-se adaptando a um fim determinado, a sociedade humana se aperfeiçoa cada vez mais, isto é, torna-se mais adaptada a um fim. Aqui, o fim (a perfeição) se descortina no processo da evolução. Ele não é predeterminado por uma divindade, mas surge qual a rosa que desabrocha do botão, à medida que o botão se desenvolve e se transforma, devido a causas determinadas, numa rosa.

Será concludente esta teoria? Não, não é, é uma insanidade teleológica sutil e mascarada. Devemos protestar antes de tudo contra a concepção de um fim que não é proposto por ninguém. É o mesmo que se falar em pensamentos sem pessoas que pensam, de vento sem espaço vazio ou de humidade sem água. Quando os homens falam do fim "ligado interiormente" ao fenômeno, eles pressupõem tacitamente a existência de uma "força interior" incorpórea, que se propõe a seus fins. Esta força misteriosa pouco se parece exteriormente ao deus que é pintado grosseiramente sob a forma de um velho de barbas brancas; mas, na realidade, trata-se ainda aqui de um deus presente e invisível, sutilmente imaginado pelo pensamento humano. Tornamos a encontrar aqui a mesma teoria da finalidade que já foi analisada acima. A teleologia "doutrina da finalidade" conduz assim diretamente à teologia (doutrina de deus).

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Volvemos agora a finalidade imanente na sua forma pura. Para isto, o melhor é analisar a ideia do progresso geral (do aperfeiçoamento geral), ideia que sobretudo serve de base aos partidários da teleologia imanente.

Como se vê, é mais difícil neste caso combater o ponto de vista teológico, "o elemento divino" não aparece de uma maneira clara nesta teoria. No entanto não é difícil compreender em que se baseia esta teoria, se estudarmos o processo de sua evolução em conjunto, isto é, se estudarmos não somente as formas e as espécies (dos animais, das plantas, dos homens, da natureza inorgânica), que sobreviveram, mas ainda aquelas que têm perecido ou estão perecendo. O famoso progresso aplicar-se-á forçosamente a todas estas formas? Certamente que não. Os "mamutes" que já existiram não existem mais; é dos nossos tempos o desaparecimento dos "uros", e em geral, pode-se dizer que uma infinita quantidade de formas vivas desapareceram. E os homens? Dá-se o mesmo com eles. Onde estão os Incas e os Aztecas, que viveram outrora na America? Já nem nos lembramos deles. Entretanto, dentre as inúmeras sociedades e de espécies, algumas sobrevivem e "se aperfeiçoam". Que significa por conseguinte "o progresso"? Significa simplesmente que entre, digamos, 10.000 combinações desfavoráveis à evolução (combinações diferentes de condições), há uma ou duas favoráveis.

Se não enxergamos senão as condições favoráveis e os resultados favoráveis é evidente que tudo parecerá no mais alto grau "em conformidade com o seu fim" e perfeitamente milagroso. Mas os partidários da finalidade imanente não olham absolutamente o reverso da medalha: os inúmeros casos de desaparecimento de sociedades e de espécies. Entretanto, se reconduzirmos a questão ao fato de existirem boas e más condições de desenvolvimento, que os bons resultados correspondem às condições favoráveis e os maus às desfavoráveis (o que é muito mais freqüente), todo o quadro muda e perde o seu caracter divino e teleologico.

Um teleólogo russo, outrora marxista, e que se transformou em seguida em padre ortodoxo e pregador "progromista" do general Wrangel (Sérgio Bulgakof) escreveu numa coleção intitulada "Os problemas do Idealismo" (edição russa, Moscou pag. 8-9.):

"Juntamente com a concepção da evolução, do desenvolvimento sem fim e sem razão, nasce igualmente a concepção do progresso e da concepção teleólogica, onde a causalidade e a revelação do fim ultimo, se identificam completamente como nos sistemas metafisicos".

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Vemos assim claramente qual é a base psicológica das concepções teleologicas. A alma de um burguês inquieto que sente a sua própria fragilidade é sedenta de consolação. A marcha da evolução, tal qual ela existe na realidade, não lhe aprás, não sendo dirigida por nenhuma razão ou finalidade salutar. É muito mais agradável adormecer, depois de um bom jantar, quando se sabe que existe alguém que toma conta de nós!

É necessário observar que se encontramos algumas vezes em Marx e Engels definições, que tem aparência exterior das condições teleologicas, isto não constitui senão uma metáfora e uma maneira de exprimir um pensamento por imagens; quando Marx diz que o valor é um agregado de músculos, nervos, etc...., somente os adversários mais encarniçados da classe proletária, tais como Pierre Strouvé, podem jogar com as palavras e procurar o valor nos próprios músculos.

§ 10. A finalidade nas ciências sociais

Se falarmos da concepção teleólogica quando aplicada à natureza morta ou aos animais, exceptuando o homem, a insanidade desta teoria aparece claramente. De que finalidade pode-se falar quando não existe fim algum? Quando porém nos referimos á sociedade e aos homens, o caso muda de figura. Uma pedra não se propõe a fins; no caso duma girafa podemos ter duvidas; o homem pelo contrario, difere das outras partes da natureza, pelo fato dele se propor fins. Marx se exprime a este respeito da maneira seguinte:

"A aranha executa trabalhos que nos recordam os de um tecelão, e a abelha pode causar inveja, com seus alvéolos de cera, à um arquitecto de origem humana. Mas o que distingu logo a principio o último dos arquitectos da melhor das abelhas? é que o arquitecto concebe a sua construção antes de começa a executala. No fim do processo de trabalho, chegamos a um resultado que já existia ideologicamente desde o inicio na concepção do operário. Este último, não somente provoca uma mudança de formas na natureza, mas realiza ao mesmo tempo, na natureza, seu fim, do qual ele tem conciencia, fim que determina o aspecto e os meios do seu trabalho prático como uma lei, fim ao qual deve submeter a sua vontade. Esta submissão não constitue uma ação em separado. Além da tensão dos orgãos que trabalham na própria corrente do trabalho, o homem necessita de uma vontade dirigida para um fim, de uma vontade que se manifeste

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como a atenção". (Marx: O Capital, vol. I, pag. 140, ed. alemã).

Marx traça aqui uma nitida linha de demarcação entre o homem e o resto do mundo. Tem ele razão? Certamente, pois ninguém pode contestar que o homem se propõe a fins determinados. Veremos agora quais as conclusões que disso tiram os partidários do "método de finalidade" nas ciências sociais.

Vamos estudar para este fim a opinião do nosso mais eminente adversário, o sábio alemão Rudolph Stammler, que escreveu outróra uma grande obra contra o marxismo, intitulada: "A economia e o direito do ponto de vista do materialismo histórico".

Qual é o objecto das ciências sociais? — pergunta Stammler. E responde: as ciências sociais estudam os fenômenos sociais. Estes têm particularidades que não existem em nenhum outro fenômeno. Eis porque há necessidade de ciências particulares (sociais). Em que consiste o caracter particular, o sinal particular dos fenômenos sociais? A esta questão, Stammler responde: a característica dos fenômenos sociais reside no fato deles serem regulados de uma maneira exterior pelas normas do direito (leis, decretos, ordens, etc...). Se estas regras não existissem não existiriam nem o direito nem a sociedade. Se a sociedade existe, isto significa que a sua vida está encerrada dentro de certas normas, às quais ela se adapta, como o ferro fundido se adapta a um molde.

Stammler formula o seu pensamento da seguinte maneira:

"Este fato (determinante N. B.) é determinado por sua vez por uma regra de conduta e de vida comum estabelecida pelos homens. Uma regulamentação exterior das relações entre os homens, torna possivel pela primeira vez a concepção da vida social considerada como objecto particular. Esta regulamentação aparece como o ultimo acontecimento ao qual se reduz aparentemente todas as considerações sobre a sociedade e suas particularidades". (Pag. 83 da 2.ª edição alemã.).

Mas se a regularidade constitue um dos traços essenciais dos fenômenos sociais é bem claro, diz Stammler, que esta regularidade é de ordem teleólogica. Com efeito, quem "regula" a vida social e o que significa "regular"? São os homens que o fazem estabelecendo certas normas (regras de conduta) para atingir certos fins, propostos concientemente por eles mesmos. Resulta daí, segundo Stammler, uma diferença enorme entre a natureza e a sociedade, entre a evolução social e natural (vida social, segundo Stammler, é uma coisa

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de alguma maneira oposta á natureza), e por conseguinte entre as ciências naturais e as ciências sociais. As ciências sociais são ciências submetida à finalidade; enquanto que as naturais estudam os fenômenos do ponto de vista das causas e conseqüências. Justifica-se este ponto de vista? Será justo admitir duas espécies de ciências, das quais umas estão afastadas das outras assim como a terra do céu. Certamente que não, e vejamos porque.

Admitamos por um instante que a característica fundamen tal da sociedade consiste no fato dos homens regularem conscientemente, por meio do direito, as suas relações mutuas, de que não possamos indagar porque motivo os homens regulam as suas relações em um dado momento e em determinado lugar, de uma certa maneira, e em outros lugares e tempos diferentes, de maneira diferente. Tomemos um exemplo: A República burguesa alemã de 1919-1920 "regula" as relações sociais fuzilando os operários; a Republica proletária dos Soviets pelo contrario as "regra" fuzilando os capitalistas contra-revolucionários. A legislação dos Estados burgueses tem por fim consolidar, alargar e reforçar a dominação do capital; os decretos de um Estado proletário, têm por seu lado o fim de destruir a dominação do capital e garantir a do trabalho. Se agora quisermos compreender cientificamente, isto é, explicar estes fenômenos, será suficiente dizer simplesmente que os fins são diferentes? Todo o mundo compreenderá que evidentemente isto não é suficinte, pois pode-se perguntar porque motivo os "homens" se propõem em uma ocasião, um certo fim e noutra, um fim diferente? Esta pergunta acarreta a resposta seguinte: porque, num caso é o proletariado que está no poder, e no outro é a burguesia; a burguesia deseja uma coisa porque as condições de sua vida provocam nela certos desejos, enquanto que as condições de vida dos operários provocam outros desejos, etc... Em resumo, logo que queremos compreender na sua realidade os fenômenos sociais, somos obrigados imediatamente a nos propor a pergunta "porque" isto é, de indagar quais são as causas destes fenômenos, ainda que estes sejam a prova da existência de um fim humano. Por conseguinte, mesmo que se os homens regulassem tudo de uma maneira conciente e se tudo se passasse na sociedade conforme aos seus desejos, não é a teleologia que pode explicar os fenômenos, mas o estudo da causa desses fenômenos, isto é, a pesquisa da causalidade. Vemos assim, que nessa questão, não existe nenhuma diferença entre as ciências sociais e as ciências naturais.

Refletindo bem, verifica-se imediatamente que não pode ser de outra maneira. Com efeito, não fazem o homem e a sociedade humana, qualquer que ela seja, parte da natureza? Não faz o gênero humano parte do mundo animal? Aquele que o nega ignora o A.B.C. da ciência contemporânea. E se o homem e a sociedade humana fazem parte da natureza, seria altamente

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extranho que esta parte se achasse em plena contradição com todo o resto da natureza. Não é difícil perceber que ainda aqui, os partidários da teleologia deixam transparecer a idéia da origem divina da natureza humana, isto é, a mesma idéia ingênua que já examinámos anteriormente.

Vemos assim até que ponto a doutrina da finalidade é inaplicável, mesmo admitindo-se que uma regulamentação exterior (o direito) constitua o traço essencial da sociedade. Mesmo neste caso, a teleologia "para nada serve". Entretanto, na realidade, a regulamentação "exterior" não constitui de nenhuma maneira o traço essencial da sociedade. Quase todas as sociedades que existiram até hoje (e a sociedade capitalista em particular) distinguiram-se pela ausência de regulamentação, pelo seu regime anárquico no conjunto dos fenômenos sociais, a regulamentação que institue a ordem, como foi o desejo dos legisladores, não desempenhou de maneira alguma um papel decisivo. E como se passarão as coisas na sociedade futura (comunista)? Não haverá então nenhuma regulamentação "exterior" (jurídica). Com efeito, os homens do novo regime, concientes, educados no espirito de solidariedade no trabalho, não necessitarão de nenhum constrangimento exterior (tornaremos a falar nisto de uma maneira detalhada no capitulo seguinte). Assim, a teoria de Stammler não tem nenhum valor, mesmo deste ponto de vista. E o único método certo para estudar cientificamente os fenômenos sociais é aquele que os examina do ponto de vista da causalidade.

Através da teoria de Stammler, percebe-se claramente a ideologia de um funcionário de Estado capitalista, ideologia que considera como eternas, coisas que são apenas temporárias. Com efeito, o Estado e o direito são os produtos de uma sociedade de classe, cujas diferentes partes estão em luta constante, e as vezes extremamente encarniçada. É evidente que os princípios jurídicos e a organização de Estado da classe governante são as condições de existência dessa sociedade. Mas, precisamente, o quadro deve mudar inteiramente em uma sociedade destituída de classes. Não é por conseguinte possível considerar as relações históricas que constantemente evoluem (o Estado, o direito) como características permanentes de toda sociedade, qualquer que ela seja.

Por outro lado, Stammler se esquece de tomar em consideração um outro fato. Acontece freqüentemente que as leis e normas do poder do Estado, com o auxilio das quais a classe dominante quer atingir um certo resultado conduzem, em conseqüência de uma evolução elementar e da anarquia social, a outros resultados diferentes daqueles que eram almejados. O melhor exemplo disso nos foi trazido pela guerra mundial. Com efeito, por meio de uma série de medidas governamentais (mobilização do exercito e da marinha,

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operações militares sob a direção do poder de Estado, etc.) a burguesia dos diferentes países queria atingir fins bem determinados.

E o que foi que aconteceu?

Qual foi o resultado? Uma Revolução do proletariado contra a burguesia. Como é possível explicar isto, colocando-se questão sob o ponto de vista piedoso e teleologico de Stammler? É evidentemente impossível fazelo. Qual e o motivo desse engano? É que Stammler superestima a "regulamentação" e menospreza a marcha elementar da evolução, de maneiras que, no fim de contas, toda a sua concepção é destituída de base.

§ 11.° — Causalidade e finalidade. Explicação das causas como método de explicação cientifica

Resulta do que precede que somos obrigados a nos propor a questão da causa cada vez que queremos explicar um certo fenômeno, e em particular, o da vida social. Todas as tentativas de uma pretendida explicação de ordem teleólogica não se inspiram na realidade se não na fé religiosa e por isso nada esclarecem. Assim, a resposta à questão essencial de saber quais são as leis que regem os fenômenos naturais e sociais, qual a sua regularidade, é a seguinte: existe na natureza e na sociedade, objetivamente (isto é, quer queiramos, quer não, quer seja do nosso conhecimento quer não), uma lei causal dos fenômenos.

O que é uma lei causal? É uma relação necessária, constante e bem patente entre os fenômenos; por exemplo, o volume dos corpos aumenta com a temperatura, um liquido suficientemente aquecido se transforma em vapor, a circulação fiduciaria quando excessiva provoca a desvalorização da moeda; enquanto existir o capitalismo, haverá forçosamente guerras; se a pequena produção existe ao mesmo tempo que a grande produção em um mesmo país, esta ultima no fim de contas acabará vencendo a primeira; se o proletariado ataca o capital, este ultimo se defende por todas as maneiras que se acham ao seu alcance; se a produtividade do trabalho cresce, os preços baixam; se uma certa quantidade de veneno fôr introduzida no organismo humano, o homem morre, etc. etc... Pode-se dizer, em resumo, que toda lei causai se exprime pela fórmula seguinte: se estamos em presença de um certo fenômeno, forçosamente outros a ele se seguirão. Explicar um fenômeno, encontrar a sua causa, significa descobrir um outro fenômeno do qual depende o primeiro, explicar assim a relação causal entre eles. Enquanto esta relação não fôr estabelecida o fenômeno permanece inexplicado. Uma vez descoberta esta relação, e depois de verificado que ela é com efeito constante, estamos na presença de uma explicação cientifica (causal). Essa explicação é a única

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cientifica, tanto em relação aos fenômenos naturais quanto aos da vida social. Ela regeita todo caracter divino, toda intervenção de forças sobrenaturais, todos os restos inúteis dos tempos passados e permite ao homem dominar tanto as forças da natureza quanto as forças sociais.

Alguns se opõem á concepção da causalidade e da lei causai pelo fato desta concepção, como vimos acima, ter sua origem na errônea representação dum legislador divino. Na verdade esta é sua origem, por assim passar-se freqüentemente na linguagem humana. Diz-se por exemplo, o sol sobe, o sol se deita, apesar de ninguém acreditar que o sol ande sobre duas ou quatro pernas. Entretanto, era assim que se pensava outróra. O mesmo acontece com a palavra "lei". Quando se diz a "lei domina" ou então "rege" não se deve de modo algum compreender que, no primeiro dos dois fenômenos (causa e efeito), se encontra um pequeno deus invisivel que o governa. A relação causal é apenas uma relação entre fenômenos, que é encontrada constantemente, e nada mais. Esta maneira de encarar a causalidade não prejudica de forma alguma a ciência.

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Capítulo II - Determinismo e Indeterminismo (Necessidade e Livre Arbítrio)

§ 12. O problema da liberdade e da não liberdade da vontade individual

Como já vimos, certas leis são observadas na vida social como também na vida da natureza. Entretanto, algumas duvidas sérias podem subsistir a este respeito. São, com efeito, os homens que determinam os fenômenos sociais. A sociedade é composta de homens que pensam, que refletem, que sentem, que se propõem fins, que agem. Um faz uma coisa, um outro ás vezes faz o mesmo, um terceiro age de maneira diferente, etc... O resultado destes atos constitui um fenômeno social. Sem homem, não haveria nem sociedade nem fenômenos sociais. Vejamos o resultado disto. Se os fenômenos sociais obedecem a certas leis, e são o resultado das ações humanas, é evidente que os atos de qualquer homem dependem também de alguma coisa. Assim, o homem e sua vontade não são livres, mas ligados e submetidos por sua vez a certas leis. Se assim não fosse, se cada homem e sua vontade de nada dependessem, qual seria então a origem da regularidade dos fenômenos sociais? Ela não poderia existir. Isto é evidente. Se todos os homens, mancassem a sociedade seria uma sociedade de mancos: não poderia existir sociedade diferente.

Mas por outro lado, como explicar a falta de liberdade da vontade humana? Não decide o homem por si mesmo o que ele quer fazer? Eu quero beber, eu bebo; eu quero ir a uma reunião, eu decido a minha ida. Uma noite os camaradas propõem uns de ir ao teatro, outros a outro lugar; eu resolvi ir ao teatro, eu mesmo faço a minha escolha. Não é o homem livre na escolha? Não é o homem senhor dos seus atos? Não é o homem senhor dos seus desejos e de suas aspirações? Será ele um boneco, um simples joguete de que forças desconhecidas manobram os cordéis? Não sabe cada homem, por sua própria experiência, que ele pode decidir, escolher, agir livremente?

Esta questão é conhecida, em filosofia, como o problema do livre arbítrio, da liberdade ou da falta de liberdade humana. A teoria que afirma que a vontade humana é livre (independente) se chama indeterminismo (teoria do livre arbítrio). A teoria que afirma que a vontade humana não é livre e que está submetida a certas condições, chama-se determinismo (teoria da falta de liberdade da vontade). É preciso, por conseguinte, que decidamos qual das duas é a verdadeira.

Vejamos primeiro aonde nos leva o indeterminismo, se o acompanharmos até as suas ultimas conseqüências. Se a vontade humana é livre e de nada depende, isto significa que ela não é produto de uma causa. Mas se assim for,

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a que ponto chegaremos? Chegaremos à velha teoria religiosa do Antigo Testamento. Com efeito, vejamos porque: tudo no mundo se passa segundo certas leis determinadas, tudo no mundo, a começar pela multiplicação das pulgas e acabando pelo movimento do sistema solar, tem suas causas; somente, a vontade do homem a elas não está submetida. Ela constitui uma exceção única e estranha. O homem não faz mais parte da natureza, mas é uma espécie de divindade acima do mundo. Por conseguinte, a teoria do livre arbítrio conduz diretamente à religião que nada explica, onde não há mais ciência, mas uma fé cega em feitiçarias, em mistérios, no sobrenatural, no absurdo.

Evidentemente, há aqui alguma coisa que choca. Para explicarmos este fato, consideremos o seguinte: muitas vezes, quase sempre, confunde-se a sensação da independência com a independência objetiva (real, independente da nossa consciência). Tomemos um exemplo. Vamos supor um orador numa reunião pública. Ele toma um copo d’água e bebe avidamente. O que é que ele sente quando segura o copo? Decide por si mesmo beber a água. Ninguém o obriga a isto. Ninguém o força. Ele tem a completa sensação da liberdade; ele resolveu por si mesmo que ele tem necessidade de beber água e não de dançar. Ele tem a sensação da sua liberdade. Mas quererá isto dizer que ele agiu sem causa e que sua vontade é realmente independente? De modo algum. E todo homem inteligente perceberá imediatamente do que se trata. Ele dirá: "O orador esta com a garganta seca". Isto significa que como consequencia do esforço feito pelo orador, certas modificações se produziram na sua garganta, modificações que provocaram o desejo de beber água. Esta é a causa; uma modificação produzida no organismo (causa fisiológica) provocou um certo desejo. Segue-se que é preciso não confundir a sensação do livre arbítrio, a sensação de independência com a ausência de causa, com a independência dos desejos e ações humanas. Essas duas coisas são completamente diferentes. E é sobre a sua confusão que estribam habitualmente todos os raciocínios dos deterministas, que querem a todo custo estabelecer a "origem divina", particular, do "espírito humano". B. Spinoza (morto em 1677), filósofo entre os mais eminentes, disse que a maioria desses filósofos consideram de uma maneira completamente falsa "o homem da natureza, como sendo um Estado dentro do Estado". Pois eles pensam que o homem invés de se submeter à ordem natural a contraria, que ele, o homem, possui um poder ilimitado e não depende senão de si mesmo. (Obras de Spinoza: "Ética", Paris, 1871, Charpentier & Cie. pag. 107). Mas na realidade esta falsa concepção é determinada pelo fato dos homens não conhecerem as causas exteriores de seus próprios atos. (pag. 113 da edição francesa). É assim que uma criança imagina que deseja livremente o leite de que se alimenta; se ela está zangada, pensa que é livremente que quer se

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vingar; se ela tem medo, que decide livremente a sua fuga (pag. 115 da edição francesa). Leibnitz (morto em 1717) dizia também que muitas vezes as causas dos atos são desconhecidas pelos homens, e que isso provocava a ilusão da liberdade absoluta. Leibnitz citava a esse respeito o exemplo de uma agulha magnética que, se ela pudesse pensar, regozijar-se-ia certamente de se virar constantemente em direção ao pólo norte (G. G. Leibnitz, "Opera Omnia", Tomus I, Genevra, Apud fratres de Tournes, 1768, pag. 155).

O mesmo pensamento foi expresso por D. Merejkofsky, antes dele se ter tornado um louco apocalíptico e antibolchevista:

Se a gota de chuvaPensasse como você,Ao cair na hora fatal Do alto dos céus, Ela diria: "Não é uma força inconsciente Que me dirige É pela minha própria vontade Que eu caio em orvalho Sobre um campo sedento."

Na realidade, os homens desmentem completamente na prática a doutrina do livre arbítrio. Com efeito, se a vontade humana não dependesse de nada, não seria possível agir, pois seria impossível contar com o que quer que seja, ou prever.

Imaginemos por exemplo, um especulador que vai ao mercado.

Ele sabe que lá fará o comercio e negociará, que cada comerciante pedirá os seus preços, que os compradores se esforçarão para comprar o mais barato possível, etc. Mas ele não espera encontrar no mercado homens que andem sobre quatro pés ou que uivem como lobos. Poderão objetar que este exemplo não tem significação. Absolutamente. Analise-mo-lo convenientemente. Porque não andam os homens de quatro pés?

Porque isto não está na sua natureza. E no entanto os palhaços andam sobre quatro pés. Isto é devido ao fato da sua vontade ser determinada por outras condições e quando o mesmo especulador vai ao circo, ele prevê que aí encontrará homens andando sobre quatro pés "contra a natureza". Por que motivo querem os compradores comprar o mais barato possível? Justamente por serem compradores. A sua situação como compradores os "obriga" a procurar as mercadorias a preços baixos e dirigem nesse sentido os seus

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desejos, a sua vontade, as suas ações. E se os homens fossem vendedores? Eles agiriam em sentido contrario. Procurariam vender o mais caro possível. Resulta portanto daí, que a vontade de nenhum modo é independente, mas é determinada por toda uma série de causas, e que os homens não poderiam agir se o contrario se desse.

Analisemos a questão sob um outro aspecto. Sabe-se geralmente que um homem embriagado tem desejos "absurdos" e que ele pratica atos também "absurdos". Sua vontade funciona muito diferentemente do que a de um homem no estado normal. Por que? A razão disto é o envenenamento pelo álcool. É suficiente introduzir uma certa quantidade dessa substancia no organismo humano, para que a "divina vontade" nos leve ao absurdo. A coisa é clara. Tomemos um outro exemplo: Dá-se de comer a qualquer pessoa alimentos salgados. Infalivelmente, esta quererá "em toda a liberdade" beber mais do que habitualmente. Aqui também, a razão é evidente. Mas se a mesma pessoa se alimenta "normalmente"? Esta beberá então uma quantidade "normal" de água; esta "quererá" beber tanto quanto as outras. Como vemos ainda neste caso, a vontade depende de certas causas, como nos casos extraordinários.

O homem começa a amar quando chega à idade da puberdade. O homem muito esgotado é tomado de um "desespero sombrio". Em resumo, os sentimentos e a vontade do homem dependem do estado do seu organismo e da situação em que ele se achar. Sua vontade, assim como tudo na natureza, é determinada por certas causas e o homem não constitui nenhuma exceção no mundo: o homem quer se cocar atrás da orelha (acha-se ali uma pequena espinha) ou então ele pratica uma ação heróica: pouco importa, tudo tem sua causa. Certamente, às vezes é difícil encontrar essas causas, mas já isto é uma outra questão. Descobriram-se porventura todas as causas no domínio da natureza viva? Absolutamente não. Entretanto, não é pelo fato de tudo não ter sido ainda explicado que se pode concluir que é impossível encontrar-se a explicação.

É preciso observar que não são somente os acontecimentos normais que estão submetidos à lei da causalidade, e sim os fenômenos é que dela dependem.

As doenças psíquicas dão-nos disso um exemplo patente. A que lei, a que "ordem" obedecem em aparência os desejos incoerentes, estranhos e monstruosos das doenças psíquicas e dos loucos? No entanto eles têm suas causas, que determinam tais atos de seus autores. Isto significa que a lei da causalidade mantém-se em vigor mesmo nos casos de loucura.

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É nesses fatos que se baseia a classificação das doenças psíquicas. Distinguem-se quatro espécies de causas: 1.º A hereditariedade (a sífilis, a tuberculose, etc...); 2.º as contusões (traumatismos); 3.º os envenenamentos'; 4.º o esgotamento e os choques morais (Serbsky: As doenças mentais). Veja-se, por exemplo, a descrição de um acesso de febre delirante:

"os doentes têm a impressão de que se está tramando alguma coisa contra eles, de que todas as pessoas que o cercam tomam parte na conspiração, à qual se juntam, não somente os visinhos, mas mesmo os animais domésticos e os objetos inanimados, etc.". (A. Bernstein: "A febre delirante").

Este tipo de febre provêm muitas vezes do alcoolismo. Veja-se ainda a descrição de uma crise de paralisia progressiva (conseqüência da sífilis):

primeiro a desordem psíquica, futilidade de espírito, cinismo, falta completa de desconfiança; em segundo lugar, o delírio (mania de grandeza, o doente se crê miliardario, rei); a terceira fase: abatimento geral (P. Rosenbach: "A paralisia progressiva").

Conforme as partes do cérebro que são atingidas, a direção da vontade se modifica. Toda a prática medica, alusiva às doenças nervosas, é baseada nas relações entre a vida psíquica e certas causas determinadas. Foi intencionalmente que tomamos os mais variados exemplos. O seu estudo nos mostra que a vontade, os sentimentos e os atos do homem são sempre determinados por uma certa causa, quaisquer que sejam as condições, ordinárias ou extraordinárias, normais ou anormais; as ações humanas são portanto sempre "determinadas, definidas". A doutrina do livre arbítrio (indeterminismo) é, na realidade, a forma requintada de uma concepção semi-religiosa, forma que nada explica, que é contraria a todos os fatos e que constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ciência. O determinismo é a única concepção justa.

§ 13. A resultante das vontades individuais numa sociedade não organizada

Sem duvida alguma a sociedade é formada de indivíduos e todo fenômeno social é composto de um grande numero de vontades, atos, sensações e sentimentos individuais.

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Em outros termos, o fenômeno social é o resultado (ou, como se diz às vezes, a "resultante") dos fenômenos individuais. A questão do preço pode-nos fornecer um exemplo claro. Vendedores e compradores encontram-se no mercado. Uns possuem mercadorias, outros dinheiro. Uns e outros têm seus fins definidos: cada um avalia de determinada maneira sua mercadoria e seu dinheiro, faz suas compras e negocia. Como conseqüência dessa confusão estabelece-se o preço no mercado. Não se trata mais dos desejos de um vendedor ou comprador particular; estamos em presença de um fenômeno social, que é o resultado de uma luta entre as "vontades" particulares. O mesmo acontece com os outros fenômenos sociais. Tomemos, por exemplo, a época das revoluções. Os homens agem de uma maneira mais ou menos enérgica e se entrechocam. É como conseqüência dessa luta entre os homens, que depois da "vitória da Revolução" nasce um novo regime.

"Determinadas relações sociais, — escreve Marx, — são produtos humanos, da mesma maneira que os são o pano, o linho, etc......." (Carl Marx. Miséria da filosofia.)

Mas aqui, podemos estar em presença de dois casos diferentes que têm as suas particularidades. Vejamos quais são: No primeiro, estamos em presença duma sociedade desorganizada, isto é, por exemplo, uma sociedade baseada sobre a troca de mercadorias ou capitalista; no outro, estamos em presença de uma sociedade organizada: Comunista. Vamos antes estudar o primeiro caso, vamos tomar para isto um exemplo típico que já foi citado: a fixação do preço. Qual é a relação entre o preço fixado no mercado e o desejo, avaliação e as intenções de cada um dos indivíduos que vai ao mercado? Está claro que este preço não corresponde exatamente aos seus desejos. Para uma grande parte das pessoas que vieram ao mercado ele é simplesmente desastroso: seja para aqueles que, "a esse preço", nada podem comprar, e se vão embora com os seus níqueis e com a barriga vazia, seja para aqueles que se arruínam, por ser o preço muito baixo para eles. Todo o mundo sabe que uma massa de artesãos, de pequenos comerciante e de pequenos proprietários arruinou-se porque os grandes fabricantes inundaram o mercado de mercadorias a preço vil; os pequenos comerciantes se arruinaram porque não podiam sustentar a concorrência com os preços estabelecidos sob a influencia da grande quantidade de mercadorias atiradas ao mercado pelos grandes capitalistas.

Já citamos acima um exemplo característico, o da guerra imperialista, durante a qual muitos capitalistas quiseram-se enriquecer; no entanto, seguiu-se uma ruína geral, e desta ruína, nasceu a Revolução dirigida contra os capitalistas, que, evidentemente, não a tinham desejado.

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O que significa tudo isto? que, numa sociedade desorganizada, onde a produção não é regulamentada, onde existem classes em luta, onde nada é feito segundo um plano, mas sob a pressão de forças cegas, o fenômeno social não concorda com o desejo da maioria. Ou então, como disseram muitas vezes Marx e Engels, os fenômenos sociais são independentes da consciência, do sentimento e da vontade dos homens. Esta "independência da vontade dos homens" não significa que os acontecimentos da vida social ocorrem sem a participação dos homens, mas que o produto social desta vontade (destas vontades) numa sociedade desorganizada, e em presença duma evolução inconsciente não concorda com os fins propostos por um grande numero de homens e seguem muitas vezes caminho oposto (o homem quis se enriquecer e, no fim de contas, arruinou-se.) Toda uma série de criticas dirigidas contra o marxismo é baseada sobre a incompreensão desta "independência" da vontade, da qual falam Marx e Engels. Vamos citar a propósito algumas linhas de Engels ("Ludwig Feuerbach"). Engels escreve:

Na historia "nada acontece sem que haja uma intenção consciente para um fim desejado". Entretanto, "muito raramente acontece aquilo que foi proposto; na maior parte dos casos numerosos desejos e fins se entrecruzam e se combatem mutuamente... É assim que os inumeráveis choques das vontades particulares e dos atos individuais criam sobre o cenário da historia uma situação análoga aos fenômenos que dominam na natureza, inconsciente. Os fins dos atos agiram como desejos, ou mesmo, se em aparência eles correspondem aos fins desejados, não deixam de ter no fim de contas, conseqüências muito diferentes das esperadas" (pag. 44 da edição alemã).

"Os homens fazem a sua história, qualquer que ela seja, cada um almeja o seu fim individual proposto conscientemente; é a resultante destas vontades, agindo em diferentes direções, e a sua ação diferente sobre o mundo exterior, que constitui a historia... Mas... as inúmeras vontades particulares que agem na historia provocam na maior parte dos casos resultados muito diferentes, e, ás vezes, completamente opostos aos que se almejam..." Pag. 44 e 45).

Resulta do que precede que, numa sociedade desorganizada, como aliás em toda a sociedade, os acontecimentos se realizam não "apesar", mas pela

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vontade dos homens. Mas aqui o homem é dominado por uma força inconsciente que é um produto das vontades particulares.

Examinemos o fato seguinte: Uma vez obtido uma certa resultante social das vontades particulares, esta resultante social determina a conduta do indivíduo. É necessário sublinhar esta proposição, pois ela é muito importante.

Comecemos ainda pelo mesmo exemplo de que nos servimos duas vezes, o da fixação dos preços. Vamos supor que uma libra de cenoura no mercado custa um tanto. É evidente que os novos compradores e vendedores encaram de antemão os preços e fazem deles aproximadamente a base dos seus cálculos. Em outros termos, o fenômeno social (preço) determina fenômenos particulares ou individuais (a avaliação). O mesmo acontece em outros casos. Um artista principiante se apóia para realizar sua obra, sobre toda a evolução da arte, assim como sobre os sentimentos e tendências do seu meio. Qual é a fonte de ação de um político? Ela é determinada pelo ambiente em que ele age; ele quer, ou fortificar um determinado regime, ou combatê-lo. Isto depende do lado em que ele se coloca, do meio no qual ele vive, da classe social ou então dos desejos sociais que o inspiram. Assim sua vontade é determinada pelas condições sociais.

Vimos mais acima que, uma sociedade desorganizada, os acontecimentos se passam as vezes de maneira completamente oposta aos desejos dos homens. Pode-se dizer a este respeito, que "o produto social" (o fenômeno social) domina os homens não somente definindo a sua conduta, mas ainda contrariando os seus desejos.

Assim, com respeito a uma sociedade desorganizada, podemos estabelecer as seguintes proposições:

1. — Os fenômenos sociais são o produto do entrelaçamento das vontades, dos sentimentos, dos atos individuais, etc...2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a vontade individual de cada um.3. — Os fenômenos sociais não exprimem a vontade dos indivíduos tomados em particular; habitualmente, eles são contrários a esta vontade, eles forçosamente a dominam, de modo que cada indivíduo sente muitas vezes a pressão do elemento social. (Exemplos: Um comerciante arruinado, um capitalista derrubado pela Revolução e que antes desejava a guerra etc.)

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§ 14. A vontade organizada coletivamente (a resultante das vontades individuais numa sociedade organizada, comunista)

— Vejamos agora como se passam os acontecimentos numa sociedade comunista. Cessa de existir a anarquia na produção. Não há mais nem classes, nem luta de classes, nem oposição de interesses de classe, etc... Não há mais tampouco contradição entre os interesses pessoais e os interesses da sociedade. Achamo-nos em presença de uma associação fraternal de produtores que trabalham para si mesmos, segundo um plano preestabelecido.

O que acontece com a vontade individual? É evidente que esta sociedade é composta também de homens, e o fenômeno social é a resultante das vontades individuais. Mas o modo pelo qual se forma esta resultante, o meio pelo qual a ela se chega, é muito diferente daquele que vimos numa sociedade desorganizada. Para melhor compreender esta diferença, comecemos por dar ainda um pequeno exemplo: vamos imaginar que estamos em presença de uma sociedade ou de um grupo de pessoas que estão de acordo entre si. Todas elas têm o mesmo fim, é em comum que elas resolvem certas questões, encaram as dificuldades e enfim, tomam uma decisão comum, segundo a qual elas agem. A sua ação comum, assim como a sua decisão já são um "produto" coletivo. Mas este ultimo já não é uma força exterior, grosseira, elementar, que contradiz a vontade de cada um. Ao contrario, a possibilidade de satisfazer cada desejo particular é aqui muito maior. Cinco homens resolvem levantar juntamente uma pedra. Nenhum deles a pode levantar sozinho; os cinco a levantam sem dificuldade. A decisão comum não contradiz o desejo de cada um deles; ao contrario, ela ajuda a realizar este desejo.

É da mesma maneira, bem que numa escala imensamente maior, e de maneira mais complicada, que as coisas se passarão em uma sociedade comunista. (Por esta ultima, compreendemos, não mais a época de uma ditadura do proletariado, nem aquela dos primeiros passos do comunismo, mas uma sociedade desenvolvida, verdadeiramente comunista, onde não há mais classes, onde não há mais Estado nem normas legais exteriores). Em uma tal sociedade, todas as relações entre os homens serão claras para cada um e a vontade social será uma vontade organizada. Não teremos mais aqui uma resultante elementar, "independente" da vontade de cada um, mas uma decisão social tomada com todo conhecimento de causa. É por isto que nela não pode suceder o que sucede em uma sociedade capitalista. "O produto social" já não domina mais os homens, são os homens senhores de suas decisões, pois são eles que decidem e decidem conscientemente. Não se pode dar o fato de um fenômeno social ser prejudicial à maioria da sociedade.

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Entretanto não resulta do que precede que a vontade social, tanto quanto a individual, em uma sociedade comunista, de nada dependem, ou que, em um regime comunista, domine o livre arbítrio, e que o homem se torne subitamente um ser sobrenatural ao qual a lei de causalidade não mais se aplica.

Não. No regime comunista, o homem continua sendo uma parcela da natureza, parcela submetida à lei universal da causalidade. Com efeito, todo indivíduo não dependerá do ambiente? Certamente que sim. Ele não agirá como um selvagem da África central, ou então como um banqueiro da Casa Pierpont Morgan &Cia. ou ainda como um hussardo da guerra imperialista. Ele agirá como membro de uma sociedade comunista. Isto é evidente. Mas o que significa isto? Que o ambiente geral determinará a sua vontade. Assim todo o mundo compreenderá que uma sociedade comunista será obrigada também a lutar com a natureza, e, por conseguinte, as condições desta luta determinarão a conduta dos homens, etc... Em uma palavra, a teoria do determinismo guardará inteiramente a sua força, também na sociedade comunista.

Podemos assim estabelecer as seguintes proposições no que se refere à uma sociedade organizada:

1. — Os fenômenos sociais resultam do entrelaçamento das vontades, dos sentimentos, dos atos, etc..., individuais. Este processo não é o produto de uma força elementar cega, mas de uma força organizada nos domínios de maior importância.2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a vontade dos homens tomados em particular e não a contrariam.3. — Os fenômenos exprimem a vontade dos homens e em geral, não a contradizem, os homens são donos de suas decisões e não sentem nenhuma pressão do elemento social, este último sendo substituído por uma organização social racional.

Escreveu Engels que a humanidade, passando ao comunismo, fazia "um salto do reinado da necessidade para o da liberdade". Certos sábios burgueses concluíram daí que segundo Engels, o determinismo cessava de agir em um sociedade comunista. Um tal raciocínio é baseado sobre a incompreensão grosseira e sobre uma deformação do marxismo. Na realidade, Engels quis dizer com isto, muito justamente, que a evolução em uma sociedade comunista tomava um caráter consciente e organizado, não mais inconsciente e cego. Os homens sabem o que preciso fazer e como é preciso agir em determinadas circunstancias.

"A liberdade é uma necessidade da qual se tem consciência".

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§ 15. O pretendido acaso, em geral:

— Para compreende ainda melhor a que ponto os fenômenos são determinados, preciso analisar o que significa o pretendido acaso. Com efeito muitas vezes deparamos com o acaso, tanto na vida quotidiana como na vida social. Certos sábios interessaram-se particularmente pelo "papel do acaso" e pela sua significação na historia. Falamos muitas vezes no acaso: Um homem foi esmagado "por acaso" na rua; alguém foi morto "por acaso" por uma telha que caiu dum telhado; comprei "por acaso", um livro muito raro; ou então, encontrei "por acaso" numa cidade desconhecida, um homem que não via há vinte anos, etc... Outros exemplos: O jogo de cara e coroa, ou então os dados. É por acaso que saiu coroa e que eu ganhei; é por acaso que saiu cara e eu perdi. Como acontece isto, e qual é a relação entre o acaso e a lei, ou então, o que vem a dar na mesma, entre o acaso e a necessidade causal?

Examinemos esta questão de perto. Vamos tomar primeiramente o exemplo do jogo de cara e coroa. Por que motivo saiu por exemplo "cara"? Será verdade que isto não foi resultado de nenhuma causa? Isto, certamente não é exato. Saiu cara, porque é dado a uma certa forma da moeda, porque lhe dei um certo movimento, com certa força, dirigida de um certo lado, porque a moeda caiu sobre uma certa superfície, etc... Se todas estas condições se repetissem, sairia sem dúvida novamente cara. A mesma coisa poder-se-ia repetir uma terceira vez. Mas não é possível, quando se atira a moeda, calcular todas estas condições; todo o problema consiste nisto. A menor mudança de posição da mão, do movimento de um dedo, da força com que foi atirada a moeda, produz imediatamente o seu efeito. As causas que provocam aqui o efeito (cara ou coroa) não podem praticamente ser previstas. Elas existem mas não as podemos adivinhar, e por conseguinte, não as conhecemos. É à nossa ignorância que neste caso damos o nome de "acaso".

Vamos tomar outro exemplo: Encontrei na rua, por acaso, um amigo que não via há vinte anos. Haverá causas para este encontro? Certamente que sim: É sob a influencia de causas definidas que saí em um dado momento, que segui um certo caminho com uma determinada velocidade; sob a influencia de outras causas, meu amigo havia começado a sua caminhada seguindo um certo itinerário, com determinada velocidade. Está claro que a ação paralela destas duas causas diferentes deveria infalivelmente produzir o nosso encontro. Por que, chamo eu a este encontro de "acaso"? Por uma razão muito simples: Porque eu não conhecia as causas que haviam feito agir o meu amigo, porque eu não sabia que ele morava na mesma cidade e por conseguinte, eu não pude prever o nosso encontro.

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Se de duas ou mais correntes (séries) de causas que se entrecruzam, e nós só conhecemos uma delas, o fenômeno devido a este cruzamento nos parece "acaso", bem que na realidade ele esteja submetido à uma lei. Eu só conheço uma das correntes (uma só série) de causas, daquelas que agem sobre a minha caminhada; a outra série, que influi sobre a ação de meu amigo me é desconhecida. É por essa razão que eu não prevejo cruzamento das duas séries, é por essa razão que o cruzamento (o encontro) me parece devido ao "acaso". Assim, no sentido próprio da palavra, nenhum fenômeno é produto do acaso, isto é, sem causa. Pode-nos tão somente parecer, enquanto ignoramos a sua causa, que ele seja produto do acaso.

Spinoza já o havia visto, quando afirmava

"que um fenômeno é considerado como produto do acaso unicamente por falta de conhecimentos suficientes", "a ordem das causas estando escondida para nós".

Encontramos em Mill (o "Sistema da lógica"), depois de uma analise muito justa, o seguinte pensamento:

"É um erro dizer que um dado fenômeno é devido a um acaso. Temos apenas o direito de dizer: dois ou mais fenômenos se reúnem por acaso; eles existem ou se seguem: um depois do outro somente por acaso. Isto quer dizer que as relações mutuas são independentes de qualquer ligação causal; não existe entre eles nenhuma relação de causa e efeito; eles não são tão pouco as conseqüências de uma mesma causa, nem de causas ligadas entre elas por uma lei qualquer de coexistência, nem mesmo da disposição das causas primarias".

Estas ultimas palavras não são exatas. O fato é, (o exemplo do encontro) que eu não saí, de minha casa, porque meu amigo saiu da sua, nem vice-versa. Mas se nós tivemos uma "disposição de causas" dada, isto é, se nós sabemos que eu saí em um certo momento, por um dado caminho e a velocidade conhecida, e se nós conhecemos os mesmos dados com referencia ao meu amigo, ficaremos de posse das causas do nosso encontro. Tudo isto é tão pouco acidental e independente da "disposição das causas" quanto um eclipse do sol ou da lua, que é determinado pela posição particular dos planetas.

§ 16. O "acaso" histórico: — Visto o que precede, é fácil examinar o problema do pretendido "acaso histórico".

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Se tudo se passa essencialmente em conformidade com leis, e se em geral, nada existe de acidental, isto é, independente de qualquer causa, é claro que o acaso histórico não pode tão pouco existir. Todo acontecimento histórico, por mais acidental que nos pareça, é na realidade, perfeitamente submetido a certas condições: Entende-se geralmente por acaso histórico o fenômeno que tem lugar em virtude do entrecruzamento de varias series de causas, das quais somente conhecemos uma.

Entretanto, ás vezes entende-se por acaso histórico um fato diferente. Quando, por exemplo, se diz que a guerra imperialista teve necessariamente a sua origem no desenvolvimento do capitalismo mundial, mas que, ao contrario, o assassínio do arquiduque austríaco foi devido ao acaso; trata-se aqui de duas coisas diferentes. Com efeito, quando se fala da necessidade (necessidade causal, inevitável) da guerra imperialista, encara-se a imensa importância das causas que influíram sobre a evolução social, causas que provocam a guerra. A guerra por si mesma aparece como um fenômeno de uma importância capital, isto é, um fenômeno que influi de uma maneira decisiva sobre a seqüência posterior da historia da sociedade. Compreende-se assim por "acaso histórico", o fenômeno que não representa um papel importante no encadeamento dos acontecimentos sociais. Se este fenômeno não se tivesse dado, o aspeto geral da evolução ulterior teria mudado tão pouco, que ninguém disto se aperceberia. No exemplo que nos interessa, pode-se dizer que a guerra teria arrebentado mesmo sem o assassínio do arquiduque, pois este assassínio não foi o "fato essencial", porém o fato essencial consistiu na concorrência encarniçada das potências imperialistas, concorrência esta que, com a evolução da sociedade capitalista, se tornava cada vez mais aguda.

Pode-se dizer que um tal fenômeno "acidental" não representa nenhum papel na vida social, que não influi de nenhum modo sobre o destino da sociedade, que em outros termos, ele é equivalente a zero? Se quisermos ser precisos, é necessário responder negativamente. Pois qualquer fenômeno, por mais insignificante que seja, influi na realidade sobre toda a evolução ulterior. A questão é de saber qual a importância da modificação por ele provocada. Quando se trata de fenômenos acidentais, no sentido indicado acima, esta influencia, falando praticamente, é insignificante, infinitamente pequena. Mas por menor que seja, nunca será igual a zero. Isto se torna visível no momento em que encaramos a ação de tais "acasos" no seu conjunto. Consideremos o exemplo seguinte: Suponhamos que se trate de estabelecer um preço; o preço do mercado resulta do conflito de numerosas e variadas avaliações, da parte dos vendedores e compradores. Se encararmos um só caso, uma só avaliação, a oposição entre um só vendedor e um só comprador, um tal fenômeno, pode

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ser considerado como "acidental". O comerciante Fernandes enganou a senhora Junqueira. Do ponto de vista do preço do mercado, isto é do fenômeno social, devido a oposição de varias avaliações, trata-se de um acaso. O que aconteceu isoladamente a Fernandes terá alguma importância? A nós, só interessa o resultado final, o fenômeno social, o que tem um caráter "típico"; é o que se diz freqüentemente e com razão. Um caso isolado desempenha um papel insignificante. Ele não tem importância, mas se experimentarmos agrupar, em conjunto, um grande numero de "casos" semelhantes, veremos imediatamente que o "acaso" começa a desaparecer. O papel e a significação de muitos casos, a sua ação comum, influem imediatamente sobre a evolução posterior. Pois os casos particulares nunca têm um valor nulo.

Vemos assim, examinando as coisas de perto, que não existe nenhum fenômeno acidental na evolução histórica da sociedade: A insônia deKautsky, que sonhou sobre os horrores da Revolução bolchevique, o assassínio do arquiduque da Áustria, justamente antes da guerra, a política colonial da Inglaterra, a guerra mundial em uma palavra, todos os fenômenos a começar pelos mais insignificantes e terminando pelos mais trágicos da época presente, não têm como origem o acaso: eles são todos provocados por certas causas, isto é, eles são todos igualmente submetidos à necessidade causal.

§ 17. A necessidade histórica

— De acordo com o que precede, a noção do "acaso" deve ser excluída das ciências sociais. Como tudo no mundo, a sociedade se acha submetida na sua evolução, a uma lei.

É característico observar que a noção do acaso, conduz diretamente à crença no sobrenatural, à fé em Deus. É sobre ela que se baseia a pretendida "prova cosmológica" da existência de Deus. Ela diz. Se o mundo (cosmos) não está submetido a uma lei, é evidente que deve existir uma causa primaria de sua existência e de sua evolução. Esta pretendida prova é conhecida como "a da contingência do mundo" (de contingentia mundi). Ela é encontrada, em Aristóteles, Cícero, Leibnitz, Christian Wolff, e outros. A doutrina do acaso começou a se desenvolver com a decadência e a decomposição da burguesia (por exemplo, nos filósofos franceses Boutroux, Bergson, etc). A noção de necessidade (necessidade causal) é contraria à do acaso.

"O que decorre fatalmente de causas determinadas é necessária". Quando se diz que um certo fenômeno foi historicamente necessário isto quer dizer que ele devia suceder fatalmente, independentemente do fato de ser bom ou mau. Quando se fala de necessidade causal, não se trata da apreciação de um fenômeno, nem de saber se ele é desejável ou indesejável; diz-se;

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simplesmente que ele é inevitável. É preciso não confundir duas noções completamente diferentes: A necessidade, no sentido do preciso, e a necessidade causal. São duas coisas completamente diversas. Quando se fala da necessidade histórica, não se pensa no que é desejável no sentido, por exemplo, do progresso social, mas no que decorre inevitavelmente da marcha da evolução social. É nesse sentido que eram necessárias tanto o desenvolvimento das forças produtivas no século XIX, como a queda do império romano, ou o desaparecimento da cultura cretense. O que é devido a certas causas é necessário. Nem mais nem menos.

Vamos passar agora a outro problema bastante difícil, referente à mesma necessidade.

Vamos admitir que estamos diante de uma sociedade humana, que se duplicou em vinte anos. Poderemos concluir que a produção nesta sociedade aumentou. Se ela não tivesse aumentado, a sociedade não se teria podido duplicar. Se a sociedade cresceu, a produção deve também ter aumentado. Este exemplo não precisa de comentários. Mas o que significa isto? Nós vamos procurar aí a causa do desenvolvimento social de um modo particular, causa que constitui uma condição necessária de desenvolvimento. Se essa condição não for preenchida não temos desenvolvimento. Se estamos na presença de um desenvolvimento, é que esta causa existe.

Este exemplo nos conduz ás seguintes considerações: No principio deste trabalho, expulsamos sem piedade a teleologia. E agora parece que a estamos introduzindo nós mesmos. Com efeito, como se propõe a questão? Para que a sociedade se desenvolva, para que esta sociedade possa se duplicar, é preciso que a produção aumente. O desenvolvimento da sociedade é o fim, "télos". O desenvolvimento da produção é um meio para realizar este fim. A lei da evolução é uma lei teleológica. Parece portanto que pecamos contra a ciência e que caímos nos braços dos padres.

Mas aqui trata-se de coisa muito diferente, que nenhum relação tem com a teleologia. Com efeito, partimos aqui da proposição que a sociedade aumentou (no caso presente, partimos mesmo do fato da sociedade ter aumentado). Mas ela poderia também não ter aumentado. E se ela não se tivesse desenvolvido, se por exemplo, ela tivesse diminuído de metade, poderíamos tirar, seguindo o mesmo método, a seguinte conclusão: A sociedade tendo diminuído de metade, e isto, por efeito de uma sub-alimentação, é evidente que a produção diminuiu. No entanto ninguém se lembrará de ver um "fim" na destruição da sociedade. Ninguém poderá dizer neste caso: o fim é de diminuir a sociedade pela sub-alimentação; o meio que conduz a este fim é a redução da produção. Não temos portanto no caso presente, nada a ver com a finalidade

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(teleológica). Trata-se simplesmente de um método particular de investigação de condições (causas), de acordo com os resultados.

A condição necessária de evolução é conhecida pelo nome de necessidade histórica. É neste sentido que a Revolução francesa, sem a qual o capitalismo não se teria podido desenvolver, constituía uma necessidade histórica, ou então, da mesma forma a pretendida "libertação dos servos" de 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar a se desenvolver. É neste sentido que o socialismo é uma necessidade histórica, a evolução social posterior sendo impossível sem ele. Se a sociedade se desenvolve, teremos infalivelmente o socialismo. É neste sentido que Marxe Engels falam da "necessidade social".

O método que consiste em procurar as condições necessárias de conformidade com os fatos reais (ou supostos), foi muitas vezes empregado porMarx e Engels, bem que se tenha prestado pouca atenção a este fato. No entanto o Capital é inteiramente construído desta maneira. Tome-se uma sociedade onde circule a mercadoria, com todos os seus elementos. Ela existe. Como pode ela "existir? Resposta: Se ela existe, só pode ser com a condição de existir uma lei para o valor. Uma grande quantidade de mercadorias é trocada. Como é isto possível? Isto só é possível graças à condição de existir um sistema monetário ("a necessidade social do dinheiro"). O capital "se acumula" de acordo com leis que regulam a circulação das mercadorias. Como é isto possível? Isto só é possível, porque o valor da força de trabalho é menor, do que o do produto, etc. etc.

§ 18. O problema da possibilidade das ciências sociais e das previsões neste domínio

Resulta de tudo que precede que para as ciências sociais, tanto quanto para as ciências naturais, as previsões são possíveis, previsões não charlatanescas, mas cientificas. Sabemos, por exemplo, que os astrônomos podem, com a maior exatidão, predizer os eclipses do sol ou da lua, o aparecimento dos cometas e de um grande numero de estrelas cadentes. Os meteorologistas podem prever o tempo: o sol, o vento, a tempestade, a chuva. Nada há de misterioso nestas previsões. Assim, o astrônomo conhece as leis que determinam o movimento dos planetas. Ele conhece as órbitas do sol, da terra,da lua, etc. Ele sabe também com que velocidade eles se movem e onde se acham em um dado momento. O que há de admirável portanto que se possa, nestas condições calcular o momento em que a lua, colocando-se entre a terra e o sol, produza um eclipse? Será possível a mesma coisa nas ciências sociais? Certamente que sim. Com efeito, se conhecemos as leis de evolução social, isto é, as vias que seguem inevitavelmente as sociedades, a direção da

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evolução, não teremos dificuldade em definir o futuro social. Varias vezes tais previsões já foram feitas na ciência social, previsões estas que se realizaram inteiramente. Graças ao conhecimento das leis de evolução social, foram previstas as crises econômicas, a desvalorização da moeda, a guerra universal, a Revolução social como resultado da guerra; previmos a conduta de diversos grupos, classes e partidos durante a Revolução; previmos por exemplo, que os socialistas-revolucionários russos, depois da Revolução proletária, se transformariam num partido contra-revolucionário; muito tempo antes da Revolução, mais ou menos em 1890, os marxistas russos previram o desenvolvimento inevitável do capitalismo na Rússia, e, ao mesmo tempo, o aumento do movimento operário. Centenas de exemplos de previsões desta natureza poderiam ser citadas. Não há nada de extraordinário nisto se conhecemos as leis do processo histórico. Não podemos por enquanto prever a data em que um certo acontecimento se realizará. De fato, não conhecemos ainda as leis de evolução social a ponto de as podermos exprimir em algarismos exatos. Ignoramos a velocidade dos processos sociais, mas já podemos indicar a sua direção.

M. Bulgakof, escreve no seu livro intitulado "Capitalismo e Agricultura (1900-vol. 11.°):

"Marx achava possível medir e definir o futuro baseando-se no passado e no presente, e no entanto, cada época traz para a evolução histórica, fatos novos e forças novas; a potência criadora da historia não se esgota. Eis porque toda previsão do futuro baseada sobre dados do presente conduz fatalmente (!!!) a um erro... A cortina que encobre o futuro é impenetrável".

O mesmo autor escreve na "Filosofia da Economia" (1.ª parte: O mundo como economia, 1912-pag. 272):

"previsões muito mais modestas não podem ser feitas pela ciência social senão com grandes restrições; "As tendências da evolução", estabelecidas pela ciência e que favorecem o socialismo têm muito poucas relações com "as leis das ciências naturais", com as quais Marx as confunde. Não são senão "leis empíricas... A sua lógica é de natureza diferente daquela, por exemplo, das leis mecânicas..."

Tomamos estas citações nas obras do professor Bulgakof, como um espécime muito característico do método pelo qual se "refuta" o marxismo.

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Examinemos estas refutações mais de perto. M. Bulgakof considera que as leis da evolução capitalista, por exemplo, não são senão "leis empíricas". Como se sabe entende-se pelo nome de "leis empíricas" uma sucessão regular de fenômenos no decurso dos quais não se pode dizer que descobrimos as relações de causa e efeito. Assim, por exemplo, observou-se que as crianças do sexo feminino nascem em proporções um pouco maiores que as crianças masculinas. Mas não conhecemos as causas deste fenômeno. As "leis" como esta, têm com efeito, uma outra "natureza lógica", mas as da evolução capitalista não são absolutamente da mesma natureza. Elas exprimem relações de causa e efeito. Assim por exemplo, a lei da concentração dos capitais não é de nenhuma maneira uma "lei empírica", mas realmente cientifica, ao mesmo título que as estabelecidas pelas ciências naturais. Com efeito, quando estamos em presença de empreendimentos industriais, pequenos ou grandes, que rivalizam entre si, a vitória dos grandes é necessária. Aqui, conhecemos a relação de causa e efeito, e é a razão porque podemos prever a vitória infalível da grande produção, tanto no Japão quanto na África central.

A nossa primeira citação de Bulgakof não é senão literatura. A historia traz "fatos novos", a "potência criadora da historia é inesgotável", etc...! Mas a evolução da natureza traz igualmente com ela "fatos novos". Estes fatos novos aparecem nas ciências naturais ou matemáticas com a sua "natureza lógica". Uma só coisa é verdadeira no que diz Bulgakof: não conhecemos tudo. Mas não se pode concluir daí a negação da ciência.

É característico, entre outras coisas, que na sua filosofia da economia, M. Bulgakof fala muito e seriamente dos anjos, do pecado original, de Santa Sofia, etc... Tudo isto tem realmente uma "outra natureza lógica e se parece enormemente com a ciência dos charlatães, contra a qual protesta M. Bulgakof.

A doutrina do determinismo no domínio dos fenômenos sociais e a possibilidade de prever na ciência encontraram um grande numero de contraditores. Vamo-nos deter na critica feita por Stammler. Este pergunta aos marxistas, para os quais o socialismo é tão inevitável quanto um eclipse do sol, por que motivo procuram eles realizar o socialismo.

"De duas uma — diz Stammler — ou bem o socialismo virá como um eclipse de lua, e então é inútil se esforçar, lutar, organizar um partido da classe proletárias etc...; do mesmo modo que ninguém se lembrará de organizar um partido para ajudar a realização de um eclipse de lua; se organizais um partido, lutais etc., isto quer dizer que o socialismo pode não se realizar, mas vos quereis que ele

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venha, e é por este o motivo porque lutais, e assim sendo ele não pode ser considerado como inevitável".

Não é difícil ver, depois do que ficou dito, no que consiste o erro de Stammler. O eclipse de lua não depende nem direta nem diretamente da vontade humana, ele não depende de nenhum modo dos homens. Todos os homens, sem distinção de classe, de sexo, de idade, ou de nacionalidade, poderiam morrer que isto não impediria a realização de um eclipse de lua. O caso se passa diferentemente nos fenômenos sociais. Estes se realizam pela vontade dos homens. Um fenômeno social sem os homens, sem a sociedade, é a mesma coisa do que um quadrado redondo, ou gelo frito. O socialismo se realizará inevitavelmente, porque os homens, as diversas classes da sociedade humana agirão infalivelmente de maneira a realizá-lo, e em condições que determinarão sua vitória. O marxismo não nega a vontade; ele a explica. Quando os marxistas organizam e conduzem à batalha o partido comunista, isto não é mais do que uma expressão da necessidade histórica, que é determinada pela vontade e pelos atos dos homens.

O determinismo social, isto é, a doutrina pela qual todos os fenômenos sociais são determinados, têm as suas causas, das quais eles são o efeito necessário, que não deve ser confundido com o fatalismo. O fatalismo, é a crença num "destino" cego e inevitável, destino que pesa sobre tudo e ao qual tudo está submetido. A vontade humana nada é. O homem não representa uma grandeza dotada de um certo poder de ação; ele é simplesmente um instrumento passivo. Esta doutrina, ao contrario do determinismo, nega a vontade humana, como fator da evolução.

Acontece freqüentemente que este "destino" seja personificado por seres semelhantes aos deuses. Tais são a "Moira" dos antigos gregos, as "Parcas" dos romanos. Em alguns doutores da igreja (por exemplo, em Santo Agostinho), este papel é representado pela doutrina da predestinação, que é encontrado numa forma mais característica ainda em Calvino (R. Wipper: A Igreja e o Estado em Genebra no XVI. º século). A expressão mais patente do fatalismo é encontrada no Islã. Entretanto, não se pode negar que os social-democratas tenham certa inclinação para o fatalismo; é somente entre os social-democratas, aliados à burguesia, que o marxismo degenerou em uma teoria fatalista. O melhor exemplo desta degenerescência fatalista do marxismo é representado por G. Cunow, cuja "filosofia" toda pode ser expressa na seguinte proposição: "A historia sempre tem razão", e eis a razão porque não se pode lutar nem contra a guerra mundial nem contra o imperialismo. Toda insurreição comunista dos operários é considerada por ele, não como a

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manifestação de uma necessidade histórica, mas como uma tentativa exterior e incompreensível para violentar as leis da evolução histórica.

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Capítulo III - O Materialismo Dialético

§ 19. O materialismo e o idealismo na filosofia. O problema da objetividade

Examinando a questão da vontade humana, a questão de saber se ela era livre ou determinada por certas causas, como aliás tudo no mundo, concluímos que era necessário colocar-se no ponto de vista determinista. Vimos que a vontade humana nada tem de divino, que ela dependia de causa exteriores e do estado do organismo humano. Eis-nos chegados ao problema mais importante, que preocupou durante milhares de anos o pensamento humano, ao problema das relações entre a matéria e o espírito. Fala-se correntemente da "alma" e do "corpo". Distinguimos em geral dois gêneros de fenômenos. Alguns deles têm uma certa extensão, ocupam um certo lugar no espaço, são percebidos pelos nossos sentidos: podem ser vistos, ouvidos, tocados, etc. São chamados fenômenos materiais. Os outros não ocupam lugar no espaço, não podem ser tocados nem vistos; tal é por exemplo, o pensamento, a vontade ou uma sensação. Todos sabem que eles existem. Descartes considerava este fato como uma prova suficiente da existência do homem. Ele disse: "Eu penso logo existo". E no entanto não se pode tocar nem sentir o pensamento humano, ele não tem cor, e não pode ser medido diretamente com um metro. Tais fenômenos chamam-se psíquicos ou espirituais. Quais são as relações que existem entre estes dois gêneros de fenômenos? Será o espírito ou a matéria "'o começo de todas as coisas"? Qual é o fenômeno original? Qual é o fenômeno principal? Será a matéria que dá origem ao espírito, ou então o espírito à matéria? Tal é o problema fundamental da filosofia. Da resposta a esta pergunta, dependem outras questões que tocam o problema das ciências sociais.

Vamos tentar examinar esta questão, tanto quanto possível, sob todos os aspectos. Devemos antes de tudo ter em vista que o homem faz parte da natureza. Não sabemos com certeza se existem outros seres organizados de uma maneira superior, sobre outros planetas. Certamente que existem, pois que o numero de planetas é infinito. Mas vemos claramente que o ser pensante que se chama homem nada tem de divino, de exterior ao mundo, e que ele não caiu na terra vindo de um mundo desconhecido, misterioso. Ao contrario, sabemos pelas ciências naturais que o homem é um produto da natureza, uma parte desta natureza submetida às leis gerais. É pelo exemplo deste mundo que nós conhecemos, vemos que os fenômenos psíquicos, que o pretendido "espírito", constituem uma parcela ínfima de todos os fenômenos. De outro lado sabemos que o homem descende de outros animais e que no fim de contas "os seres viventes" não apareceram sobre a terra senão no fim de um certo tempo.

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Quando a terra não era ainda um planeta extinto, mas um globo incandescente, no gênero do nosso atual sol, não havia vida sobre ela, nem seres pensantes. Foi da natureza "morta" que se desenvolveu a natureza viva e foi da viva que saiu aquela que pensa. Existia a princípio uma matéria que não podia pensar, e dela se formou a natureza pensante: o homem. Se assim é — e as ciências naturais o provam, — está claro que foi a matéria que gerou o espírito e não o espírito a matéria. Pois não acontece nunca e em nenhum lugar, que os filhos sejam mais velhos que os pais. O "espírito" apareceu mais tarde. Foi ele, por conseguinte, que foi o filho e não o pai, ao contrario do que desejam dele fazer os admiradores demasiadamente fervorosos do "espiritual". Sabemos também que o espírito aparece ao mesmo tempo que a matéria quando organizada de certa maneira.

Não é um balão vazio nem um buraco, nem o "espírito" sem matéria que pensa, e sim o cérebro humano, uma parte do organismo humano. E o organismo humano é a matéria organizada de uma maneira extremamente complexa.

Em quarto lugar explica-se claramente pelo que precede, por que motivo a matéria pode existir sem o espírito, enquanto que o espírito não pode existir sem a matéria. A matéria existiu antes que o homem pensante tivesse aparecido; a terra existiu bem antes da aparição de qualquer "espírito" sobre esta terra.

Em outros termos, a matéria existe objetivamente, independentemente do "espírito". Ao contrario, os fenômenos psíquicos, o pretendido espírito, não existe nunca e em parte alguma sem a matéria, independentemente dela. Os pensamentos não existem sem cérebro, os desejos sem o organismo que deseja. O "espírito" é sempre fortemente ligado á "matéria" (foi somente na Bíblia que ele planava por cima dos abismos). Em outras palavras, os fenômenos psíquicos, os fenômenos da consciência não são outra coisa senão uma qualidade da matéria organizada de outra maneira, sua "função" (a função de uma grandeza qualquer é uma outra grandeza que depende da primeira). Tomemos, o homem, por exemplo. Ele é uma maquina delicadamente organizada. Destruí esta organização, desorganizai-a, decomponde-a, cortai-a em pedaços, e o "espírito" desaparecerá imediatamente. Se os homens dispusessem de meios para reconstituir todo este sistema, de tal maneira que o organismo humano começasse novamente a trabalhar, em outros termos, se os homens tivessem um meio de recompor, de reorganizar as parcelas materiais como elas eram antes, se eles pudessem em uma palavra, dar corda ao homem como se dá corda a um relógio, a consciência se restabeleceria imediatamente: Concerte o teu relógio e ele recomeçará a funcionar;

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reconstitua o organismo humano e ele recomeçará a pensar. Certamente os homens não chegaram até este ponto. Mas nós já vimos, ao examinar o problema do determinismo, que o estado de "espírito", o estado de consciência depende do estado do organismo. Envenenai o organismo com álcool, e a consciência se tornará obscura, o "espírito" titubeará. Tornai a pôr o organismo em seu estado normal (administrai-lhe um antídoto) e o "espírito" recomeçará a trabalhar como de costume. Isto prova claramente que a consciência depende da matéria ou, em outros termos, que o "pensamento" depende do organismo. Já dissemos e ficou visto que os fenômenos psíquicos constituem uma propriedade da matéria organizada de uma certa maneira. Pode haver nestes limites certas flutuações, diversas formas de organização da matéria, por isto mesmo, formas diferentes da vida psíquica. O homem, com o seu cérebro está organizado de uma maneira; ele tem a mais completa vida psíquica, ele tem uma verdadeira consciência. Um cão está organizado de outra maneira, e esta é a razão porque a vida psíquica de um cão difere da do homem; uma minhoca é constituída ainda de maneira diferente, e por esta razão o "espírito" de uma minhoca é muito pobre e não pode de maneira alguma ser comparado ao espírito humano. Uma pedra, por exemplo, pela sua organização constitui uma matéria inanimada, ela não tem nenhuma vida psíquica. Uma organização particular e complicada da matéria, é necessária para que a vida psíquica possa aparecer, e a que chamamos consciência. Sobre a terra, esta consciência aparece somente quando existe a matéria organizada, tal como o organismo humano, com o seu instrumento complexo: o cérebro.

Assim, o espírito, não pode existir sem a matéria, a matéria pode existir muito bem sem o espírito, pois que existiu antes dele, o (espírito) é uma qualidade particular da matéria, organizada de uma maneira particular.

É assim que se resolve o problema das relações entre o materialismo e o idealismo, na filosofia.

O matenallsmo considera a matéria como causa primaria e fundamental! O idealismo ao contrario, considera em primeiro lugar o espírito. Para os materialistas, o espírito é um produto da matéria; para os idealistas, ao contrario, é a matéria que é o produto do espírito.

Não é difícil ver que o idealismo, isto é, a doutrina que considera as idéias, "o espírito", como base de tudo que existe, não é outra coisa senão uma forma amenizada das concepções religiosas. O sentido destas concepções religiosas consiste precisamente no fato de uma força divina e misteriosa estar colocada, acima da natureza, de que a força humana é considerada como uma faísca dessa força divina, e de que o homem é um ser eleito por Deus. O ponto de vista idealista conduz no seu desenvolvimento a uma série de absurdos, que os

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filósofos das classes dominantes defendem muitas vezes com muita seriedade. Neste caso estão principalmente as concepções que negam o mundo exterior, isto é a existência objetiva das coisas e dos outros homens independentemente da consciência humana. A forma extrema deduzida do idealismo é o solipismo (da palavra latina "solus" — só). Os solipsistas raciocinam da seguinte maneira: O que me é dado diretamente? Minha consciência e nada mais, a casa que eu vejo é minha sensação, o mesmo acontece com o homem a quem eu falo. Em uma palavra, nada existe fora de mim mesmo; somente meu "eu" existe, minha consciência, minha essência espiritual; nenhum mundo exterior independente de mim existe: Tudo isto, é criação do meu espírito. Pois eu não conheço senão a minha vida interior, da qual eu não posso me desembaraçar.

Tudo o que eu vejo, ouço, provo, tudo que eu penso, tudo isto, são minhas sensações, minhas imagens, meus pensamentos. Esta filosofia absurda, da qual Schopenhauer disse que não poderia encontrar adeptos sinceros senão num hospício de alienados (o que não impediu ao mesmo Schopenhauer de considerar o mundo como vontade e representação, isto é, de ser um idealista da mais pura essência) é desmentido a todo momento pela prática humana. Os homens comem, empreendem uma luta de classes, calçam os sapatos, colhem flores, escrevem livros, casam-se; ninguém duvida um só instante que o mundo exterior exista, isto é, ninguém duvida da existência da comida que se come, dos sapatos que se calçam, das mulheres com que nos casamos, etc. Entretanto, todos estes absurdos decorrem das proposições essenciais do idealismo. Com efeito, se o "espírito" é a base de tudo, o que faremos do tempo em que o homem não existia ainda? De duas uma: Ou bem é preciso admitir que existiu um espírito não humano, divino, no gênero daquele ao qual se referem os antigos contos judaicos e a Bíblia, ou então é preciso dizer que a própria época antiga não é senão o fruto do trabalho de minha imaginação. A primeira hipótese conduz ao que chamamos de "idealismo objetivo". O idealismo objetivo admite a existência de um mundo exterior independente de "minha" consciência. Mas ele vê a essência deste mundo no princípio espiritual, em um Deus ou numa "razão superior" que substitui às vezes o Deus; numa "vontade universal" e em outras fantasias diabólicas deste gênero. A segunda hipótese conduz diretamente ao solipsismo através do idealismo subjetivo, que não admite senão a existência dos seres espirituais, dos seres pensantes individuais. Não é difícil ver que o solipsismo constitui a forma mais consequente do idealismo. Com efeito, qual é a fonte, qual é a base do idealismo? Porque crê ele que o princípio espiritual é o primeiro e o essencial? Por que ele considera, no fim de contas, que só existem as sensações, que me são fornecidas diretamente. Mas se assim é, a minha própria existência fica tão duvidosa como a de um objeto qualquer, como a de qualquer outro homem, e entre eles a de meus próprios pais. Aqui, o solipsismo se mata a si mesmo,

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mas ele mata ao mesmo tempo todo o idealismo na filosofia, pois desenvolvendo logicamente as concepções idealistas, ele conduz ao absurdo mais completo, que contradiz a cada passo a prática humana.

É preciso não confundir "o idealismo prático" e o "materialismo" com o materialismo e idealismo teóricos. São coisas que nada têm de comum com as doutrinas que acabamos de analisar. Dá-se o nome de idealista, no sentido prático da palavra, a um homem dedicado a uma idéia e pronto a fazer todos os sacrifícios por ela. Está claro que um tal idealista pode ser o adversário mais encarniçado do idealismo filosófico, do idealismo teórico. Um comunista que sacrifica a sua vida é um idealista prático, e ao mesmo tempo materialista até a medula dos ossos. Um burguês que suspira pelo bom Deus tem habitualmente concepções muito idealistas, o que não impede de ser bastante covarde, obtuso e egoísta.

Considera-se habitualmente o filósofo grego Platão como o pai do idealismo filosófico. Segundo ele, com efeito, não existem objetivamente senão" idéias" (conceitos), não homens, peras, carrinhos, mas idéia do homem, da pera, e do carrinho. Todas estas idéias modelo e preexistentes, planam "acima do céu", tal o espírito divino, "a idéia superior", a "idéia do bem'. Um certo desvio para o idealismo subjetivo foi feito a princípio pelos filósofos gregos conhecidos pelo nome de sofistas (Protágoras, Gorgeas, etc...) que emitiram a proposição segundo a qual "o homem é a medida de todas as coisas". Na idade média, as idéias de Platão eram consideradas como os modelos, de acordo com os quais Deus cria todas as coisas visíveis. Por exemplo, a pulga visível é criada por Deus, segundo uma "idéia" da pulga, que está colocada num "mundo para além da razão". Nos tempos modernos, foi o bispo Berkeley que desenvolveu da maneira mais consequente o ponto de vista do idealismo subjetivo na Inglaterra; segundo ele, somente o espírito existe, todo o resto não é senão a sua representação. Na Alemanha, Fichte pensava que o objeto (mundo exterior) não existe sem o sujeito (o espírito que conhece), e a matéria é a expressão da idéia. Segundo Schelling, as idéias são a essência das coisas, tendo por base a eternidade divina. Segundo Hegel, tudo o que existe não é senão a manifestação da "Razão objetiva", que se desenvolve por si mesma. Segundo Shopenhauer o mundo é vontade e representação. Segundo Kant, o mundo objetivo existe ("a coisa em si"), mas dele não se pode ter conhecimento, pois a sua natureza é imaterial. Na filosofia moderna, o idealismo, dividiu-se em diversas tonalidades, e reforçou-se consideravelmente com a tendência da burguesia para o misticismo e o mistério. É o sinal de uma profunda decadência da burguesia que, desesperada, procura uma consolação espiritual.

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A primeira corrente filosófica materialista é encontrada nos filósofos gregos da escola jônica, que consideravam a matéria como base de tudo o que existe, mas que pensaram ao mesmo tempo que toda a matéria tinha até certo ponto a propriedade da percepção. Por este motivo são estes filósofos chamados "hilozoistas" (isto é, em grego, os que animam a matéria).

Certamente, estes primeiros passos não deram grandes resultados. Assim Thales procurou a base de tudo que existe na água, Anaximenes no ar, Heráclito no fogo, Anaximandro numa substancia indefinida e que envolve tudo (ele a chamou "infinito" ou "ilimitado"); é preciso acrescentar aos hilozoístas os estóicos, segundo os quais tudo o que existe é material. O materialismo foi em seguida desenvolvido pelos gregos Demócrito e Épicuro e o latino Lucrecio. Demócrito assentou genialmente as bases da teoria dos átomos. Segundo ele, o mundo é composto de parcelas materiais ínfimas que se movem e cujas combinações criam o mundo visível. Na idade média, eram em gerai ruminadas as concepções idealistas. O filósofo B. Spinoza desenvolveu as idéias dos materialistas hilozoístas de uma maneira brilhante e profunda. Na Inglaterra, foi Hobbes (1578-1679) quem defendeu os princípios materialistas. É a época da preparação da grande Revolução francesa, que produziu toda uma série de filósofos materialistas de primeira ordem, tais como: Diderot, Helvetius, Holbach (cuja obra principal "Sistema da natureza" apareceu em 1770).

La Metrie ("O homem maquina", 1748). Este grupo de filósofos da burguesia, nessa época revolucionaria, formulou de uma maneira magnífica a teoria materialista (ver N. Beltov: "Contribuição ao desenvolvimento da concepção monista da historia" e V. Lenin: "Materialismo e Empiro Criticismo"). Diderot ridicularizou com fineza os idealistas do gênero de Berkeley.

"Houve, diz ele, um momento de loucura, quando um cravo consciente imaginou que ele era o único cravo existente no mundo e que toda a harmonia do universo pertencia a ele".

No século XIX, o materialismo foi desenvolvido na Alemanha por Ludwig Feuerbach que exerceu influencia sobre Marx e Engels; estes dois últimos formularam a mais perfeita teoria do materialismo. Eles ligaram o materialismo a um método dialético (do qual falaremos adiante) e aplicaram a doutrina materialista às ciências sociais, expulsando assim o idealismo do seu ultimo reduto. É natural que a burguesia no seu gatismo, babe sobre o materialismo, invocando o velho bom Deus. É lógico também que o materialismo se torne a teoria revolucionaria da jovem classe revolucionaria — o proletariado.

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§ 20. A concepção materialista nas ciências sociais

É evidente que o debate entre o materialismo e o idealismo não pode deixar de ter repercussão nas ciências sociais. Com efeito, examinemos a sociedade humana. Vemos nela fenômenos de gêneros diferentes. Há os de "ordem superior": A religião, a filosofia, a moral. Encontramos também a política do Estado com suas leis, novas idéias nos diferentes domínios, troca de mercadorias e a distribuição dos produtos, a luta das diferentes classes entre si; a produção dos diferentes objetos: da cevada, do feijão, dos calçados, das maquinas, segundo as condições de tempo e de espaço. Como fazer para estudar esta sociedade? Por que lado começar? O que deve ser considerado como essencial? Como primordial? O que é secundário, derivado? Evidentemente, aí estão, na sua essência, os mesmos problemas que a filosofia formula e que dividem filósofos em dois grandes campos: materialistas e idealistas. Pode-se, com efeito, imaginar, de um lado, que os homens aplicam ao estudo da sociedade o método seguinte: A sociedade é composta de homens, os homens pensam, agem, desejam, se inspiram de idéias, de pensamentos, de "opiniões", de onde se conclui: "As opiniões governam o mundo", as mudanças de opinião, as mudanças de ponto de vista dos homens, constituem a causa primaria de tudo o que se passa numa sociedade; por conseguinte, a ciência social deve estudar em primeiro lugar este lado do problema, a "consciência social". Isto seria o ponto de vista idealista nas ciências sociais. Mas vimos acima que o idealismo presume que se admite a independência das idéias relativamente aos fatos materiais, e que pelo contrario, estas idéias dependem de coisas divinas e misteriosas. Eis a razão pela qual a concepção materialista se liga diretamente à mística e às fantasias diabólicas nas ciências sociais, e por conseguinte, conduz à destruição da ciência social e à sua substituição pela fé, pela crença numa Providência ou outra coisa análoga. É assim que Bossuet, no seu "discurso sobre a historia universal" em 1682, declarou que se encontra na historia a direção divina do gênero humano". O filósofo idealista alemão Lessing afirmava que a historia é "a educação do gênero humano por Deus"; Fichte dizia que a razão é que agia na historia; Schelling, que a historia é uma "revelação constante do absoluto, revelação que se descobre pouco a pouco, isto é, em ultima analise, a revelação de Deus". Hegel, o maior filósofo do idealismo definia a historia universal como "um desenvolvimento inteligente e necessário do espírito universal". Podíamos citar ainda um grande numero de exemplos, mas os que acabamos de dar são suficientes para mostrar a que ponto as concepções filosóficas tem ligação estreita com as ciências sociais.

Assim, as ciências sociais e a sociologia idealista observam na sociedade, antes de tudo as "idéias" desta sociedade: Elas consideram a sociedade, ela

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mesma, como fenômeno psíquico e material; a sociedade, segundo eles, é uma mistura de desejos, de sentimentos, de pensamentos, de vontades humanas, que se entrecruzam, formando infinitas combinações; em outros termos, é a psicologia social e a consciência social, o "espírito" da sociedade. Pode-se entretanto examinar a sociedade de outra maneira. Vimos, ao estudar o problema do determinismo, que a vontade humana não era livre, que ela era determinada pelas condições exteriores da existência humana. A sociedade não estará submetida às mesmas leis? Onde encontrar a chave para explicar a consciência social? Do que depende ela?

Ao formularmos estas perguntas, estamos em presença da concepção materialista das ciências sociais. A sociedade humana é um produto da natureza, tanto quanto o gênero humano na sua totalidade. Ela depende desta natureza. Ela não pode existir sem tirar desta natureza tudo que lhe é útil. E ela extrai estas coisas úteis por meio da produção. Ela não age sempre de uma maneira consciente. Somente uma sociedade organizada trabalha segundo um plano preestabelecido. Pelo contrario, uma sociedade desorganizada tudo faz de uma maneira inconsciente: Assim por exemplo, em regime capitalista, um fabricante que quer obter maiores lucros aumenta com este fim a produção (e não para ajudar a sociedade humana); um camponês produz para se nutrir e para vender uma parte de seus produtos, afim de pagar os impostos; um artesão, para se manter tanto quanto possível e para tentar progredir; um operário, para não morrer de fome. E acontece, no fim de contas que a sociedade continua a viver mal e mal. A produção material e seus meios ("as forças materiais produtivas"), eis o que constitui a base da existência de uma sociedade humana. Sem esta produção, nenhuma "consciência social", nenhuma "cultura espiritual" é possível, do mesmo modo que um pensamento não pode existir sem o cérebro. Examinaremos detalhadamente este problema mais tarde. Contentemo-nos, no momento, de examinar o seguinte: Representemo-nos duas sociedades humanas, uma de selvagens, a outra capitalista em declínio. Na primeira, todo o tempo é gasto na procura da alimentação por meio da caça, da pesca, da colheita de raízes, da cultura de plantas, etc.; encontramos nela muito poucas "ideias", "cultura espiritual", etc. Estamos diante de animais, de semi-macacos. Na outra sociedade, vemos uma rica "cultura espiritual", toda uma torre de Babel, a moral, o direito, com suas leis interminável, as ciências, a filosofia, a religião, a arte, a começar pela arquitetura e acabando pelas gravuras de modas. Ao mesmo tempo, a burguesia dominante tem a sua própria torre de Babel, os proletários possuem outra, os camponeses uma terceira, etc.. Em uma palavra, como se diz habitualmente, "a rica cultura espiritual", o "espírito" social, as "idéias" cresceram aqui em proporções consideráveis. Como pôde este espírito se desenvolver? Quais foram as condições que determinaram o seu crescimento?

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O desenvolvimento da produção material, o poder crescente do homem sobre a natureza, o aumento da produtividade do trabalho-humano. É somente depois disto que o homem não é mais obrigado a sacrificar todo o seu tempo ao duro trabalho material: Os homens têm momentos de repouso que se lhes permitem pensar, refletir, fazer um trabalho intelectual, de criar uma "cultura" espiritual.

Assim, do mesmo modo que a natureza é no fundo a mãe do espírito, e não o espírito o pai da matéria, assim também, numa sociedade, não é a "cultura espiritual" social ("a consciência social") que cria a matéria social, isto é, a produção material, mas ao contrario, é o desenvolvimento desta matéria social, que forma a base da, por assim dizer, "cultura espiritual". Em outros termos, a vida espiritual da sociedade depende, e não pode deixar de depender, do estado da produção material, do grau de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. A vida espiritual da sociedade é, como dizem os sábios, função das forças produtivas. Qual é a essência desta função? De que maneira depende a vida espiritual da sociedade das forças produtivas? Veremos isto mais tarde. Indiquemos somente no momento que, segundo esta concepção, a sociedade se apresenta evidentemente não como um "organismo psíquico", não como um conjunto de opiniões diferentes, pertencendo ao domínio do "belo", do "puro", e do "sublime", mas antes de tudo como uma organização de trabalho (Marx dizia às vezes: "Organismo produtor"). Este é o ponto de vista materialista em sociologia. Como sabemos, a concepção materialista não nega a existência das "idéias". Marx, referindo-se ao grau de consciência mais elevado, da teoria cientifica, exprimiu-se da seguinte maneira:

"cada teoria se transforma em força material, quando as massas delas se apoderam".

Mas os materialistas não se podem contentar em dizer que "os homens pensaram assim". Eles perguntam entre si por que motivo os homens pensaram de uma certa maneira em certo momento e lugar, e diferentemente em outras condições. Porque, em uma sociedade civilizada, pensam os homens muito e produzem montanhas de livros, e porque não fazem o mesmo os selvagens? A explicação disto está nas condições materiais da vida social. É assim que o materialismo nos permite explicar os fenômenos da "vida espiritual" da sociedade. O idealismo, pelo contrario, é incapaz de o fazer. Para ele, as "idéias" se desenvolvem por si mesmas, independentemente desta "miserável terra". Esta é a razão pela qual os idealistas são obrigados a recorrer a Deus para poder dar um arremedo de explicação:

"Este Bem", escreveu Hegel na sua "Filosofia da Historia", esta razão, na sua forma mais completa, é Deus. Deus governa o mundo, e a historia universal constitui a

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substancia do seu reino, a realização de seu plano. (Philosophie der Geschichte, Reklams Verlag, pag. 74).

Recorrer a este velho infeliz que sendo, segundo seus adoradores, a própria perfeição, é obrigado a criar ao mesmo-tempo que Adão, as pulgas e as prostitutas, os assassinos e os pesteados, a fome e a miséria, a sífilis e a cachaça para punir os pecadores criados por ele, e pecando por sua vontade, e, para representar eternamente esta comédia diante do mundo-admirado, recorrer a Deus, tal é o destino inevitável da teoria idealista. Mas, do ponto de vista cientifico, esta "teoria" nos leva ao absurdo.

E é assim que, nas ciências sociais por sua vez, o único ponto de vista justo é o ponto de vista materialista.

A aplicação da concepção materialista às ciências sociais foi feita de maneira consequente por Marx e Engels. No mesmo ano (1859) em que apareceu o livro de Marx "Contribuição à Economia Política", no qual Marx esboçou sua doutrina sociológica (a teoria do materialismo histórico) apareceu também a obra principal do grande sábio inglês Charles Darwin (A origem das espécies) na qual Darwin mostrou e provou que as modificações na fauna e na flora se produzem sob a influencia das condições materiais da existência. Entretanto, não resulta daí que se possa aplicar diretamente à sociedade as leis de Darwin. O problema consiste em mostrar de que maneira as leis gerais das ciências naturais se manifestam na sociedade humana e, qual é a forma particular sob a qual elas podem ser aplicadas á sociedade humana. Marx criticou acerbamente aqueles que não o compreenderam. Ele escreveu a propósito de um sábio alemão F. A. Lange:

"Sr. Lange fez, bem o vedes, uma grande descoberta. Pode-se submeter a historia, parece, a uma só grande lei natural. Esta lei natural está encerrada em uma só frase: the struggle for life (a luta pela existência), (a expressão de Darwin, aplicada assim, torna-se uma frase sem sentido...). Por conseguinte, invés de analisar este "struggle for life" e ver como ele se manifestou historicamente nas diferentes formas sociais, resta somente fazer uma coisa: substituir toda luta concreta pela frase: "struggle for life". (Cartas a Kugelmann, carta de 27 de junho de 1870).

É claro que Marx teve antecessores, e particularmente na pessoa dos socialistas utópicos (Saint Simon). Mas a concepção materialista nunca foi

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estudada a fundo antes de Marx, pela única maneira susceptível de criar a verdadeira sociologia científica.

§ 21. O ponto de vista dinâmico e as relações dos fenômenos entre si

Tudo o que se passa na natureza e na sociedade pode ser examinado de duas maneiras diferentes. Uns crêem que nada muda: "Assim é e assim será sempre". Nada se produz de novo. Outros pensam, ao contrario, que nem na natureza nem na sociedade, nada há nem pode haver de imutável. "O que foi passou" e "isto não voltará jamais". Esta segunda concepção, esta segunda maneira de examinar tudo o que existe, se chama dinâmica ("dynames", em grego: força, movimento), a primeira se chama estática. Qual das duas é justa? O mundo será constante e imutável? Ou então ao contrario, mudará ele constantemente e, não será mais hoje o que ele foi ontem? Um só golpe de vista sobre a natureza é suficiente para nos mostrar que nada há de imutável. Outrora, os homens pensavam que a lua e as estrelas não se mexiam e que elas eram fincadas no céu como pregos de ouro; que a terra também era imóvel, etc... Agora, nós sabemos que as estrelas e a lua e a nossa terra giram com uma rapidez vertiginosa através de espaços imensos. Mais ainda, sabemos agora que as mais ínfimas partículas de matéria, os átomos, são compostos de partículas ainda menores, que são chamados electrons que giram no interior do átomo, como os corpos celestes do sistema solar em torno do sol. E são eles que compõem o mundo. O que pode haver de constante no mundo, si todas estas parcelas que o compõem se movem com maior velocidade que o vento? Outrora, os homens pensavam também que existiam tantas plantas e animais quantas Deus havia criado: o burro, a doninha, o percevejo e o bacilo da lepra, a filoxera e o elefante, a rosa e a urtiga — tudo isto existe tal qual Deus criou nos primeiros dias do mundo. Não há tantas espécies de animais e plantas quantas Deus quis criar. As plantas e os animais que existem hoje sobre a terra, parecem-se muito pouco com aqueles que existiram outrora. Não encontramos senão esqueletos, impressões na pedra, ou no gelo, de restos de animais enormes e de plantas que existiram há milhares de anos: lagartos voadores gigantescos (pterodactilos), fetos gigantescos, florestas inteiras petrificadas (o carvão não é senão a madeira das florestas primitivas), verdadeiros monstros, tais como os ictiosauros, os brontosauros, etc.... Eis o que já existia e não existe mais. Por outro lado, não existiam nem pinheiros, bétulas, nem vacas, nem carneiros, — em uma palavra, tudo se transformou sob o sol. E infelizmente! Os homens, descendentes dos macacos peludos, não existiam ainda: eles só apareceram na terra há relativamente pouco tempo. Não nos admiramos mais vendo as espécies animais e as plantas se transformarem. Admiramo-nos tanto menos que já chegamos às vezes a fazer melhor do que o próprio Deus: um bom

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criador de porcos, escolhendo bem a alimentação e cruzando as espécies criteriosamente pode criar pouco a pouco novas raças: os porcos de Yorkshire que não podem andar de tão gordos, são criação do homem, da mesma forma que as rosas pretas e as diferentes espécies de animais domésticos e de plantas. E o próprio homem não muda também quase a olhos vistos? O operário russo do tempo da Revolução parece-se no que quer que seja ao slavo selvagem caçador, dos tempos antigos?

A raça, o aspecto dos homens mudam como tudo no mundo. Que conclusões podemos tirar daí? Que evidentemente, nada existe de imutável, nada é fixo no mundo. Tudo muda, tudo se move. Ou, em outros termos, as coisas fixas, os objetos não existem na realidade, existem apenas processos. A mesa sobre a qual escrevo neste momento não é absolutamente uma coisa imóvel: ela muda a cada instante. É verdade que ela muda de uma maneira imperceptível para o olho e o ouvido humano. Mas no fim de longos, longos anos, ela apodrece e torna-se em pó. De um só golpe? Não certamente, mas como resultado do que anteriormente se passou. As partículas desta mesa serão perdidas? Não, elas terão tomado uma outra forma, elas serão levadas pelo vento, elas serão uma parte do solo, nutrirão as plantas e se transformarão em tecidos vegetais, etc.: mudança eterna, eterna viagem de formas sempre novas. O mundo não é mais do que matéria em movimento. Eis porque para se compreender um fenômeno, é preciso examiná-lo em sua origem (como, de onde e porque tem ele lugar), no seu desenvolvimento e no seu fim; em uma palavra, em movimento e não no decurso de um repouso imaginário. Esta concepção dinâmica se chama também dialética (a dialética tem ainda outros sinais característicos dos quais falaremos adiante).

Já, a antiga filosofia grega, distinguia os dois pontos de vista o dinâmico e o estático. A escola dos eleatas, com Parmenides à frente, ensinava que tudo o que existe é imóvel. O ser, segundo Parmenides é eterno, constante, imutável, uno, indivisível, imóvel, inteiro, uniforme, e se parece com uma esfera em repouso. Um dos eleatas, Zenon, tentou provar com raciocínios muito sutís que qualquer movimento é impossível. Heráclito, pelo contrario, ensinava que nada é imutável, ele afirmava que tudo muda, que tudo corre". Segundo Heráclito, é impossível entrar duas vezes num mesmo rio, pois ele muda todo momento. Um filósofo da mesma escola Cratiles, dizia que era impossível banhar-se mesmo uma só vez num mesmo rio, porque este muda constantemente. Demócrito considerava também o movimento como a base de tudo, especialmente o movimento retilíneo dos átomos. Entre os filósofos modernos, Hegel, do qual Marx foi discípulo, insistia particularmente sobre o movimento e o "tornar". Mas, para Hegel, é um movimento do espírito que serve de base ao mundo, enquanto que Marx, segundo suas próprias palavras,

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pôs de pé a dialética de Hegel, substituindo o movimento do espírito pelo da matéria. Nas ciência naturais desde o princípio do século XIX prevaleceu a opinião expressa pelo celebre naturalista Lineu. Há tantas espécies quantas Deus criou (teoria da constância das espécies). O representante mais em voga da opinião contrária foi Lamarck, e depois dele Charles Darwin, ao qual já nos referimos acima, e que definitivamente rejeitou as antigas concepções.

Do fato de estar o mundo constantemente em movimento resulta a necessidade de se examinarem os fenômenos nas suas relações mutuas e não como fenômenos absolutamente separados (isolados).

Todas as partes do mundo são, na realidade, ligadas entre si e influem umas sobre as outras. Basta uma modificação mínima num lugar para que tudo mude. Qual é a importância desta mudança? Isto é outra questão, mas mudança sempre há. Tomemos um exemplo. Os homens, admitamos, abaterem as florestas da margem do Volga. Devido a isto, a umidade se conserva menos, o clima varia dentro de certo limite, baixam as águas dos rios, a navegação se torna mais difícil, torna-se necessário pôr em movimento um maior numero de dragas, de fabricar um maior numero desses aparelhos, de empregar mais homens na sua fabricação, etc; por outro lado, os animais que habitavam estas florestas desaparecem, outras espécies animais aparecem, os antigos morrem ou partem para países onde haja florestas etc.. Mas podemos encarar outras questões: se o clima muda, é evidente que o estado de todo o planeta muda também, e desta maneira a mudança do clima do Volga exerce a sua influencia mais ou menos em toda parte. Mas, na realidade, se o aspecto da terra muda, por pouco que seja, é evidente que as relações entre a terra e a lua ou o sol mudam também. Escrevo neste momento sobre papel, movo a minha pena, minha ação produz uma ação sobre a mesa, a mesa exerce uma pressão sobre a terra, e assim se produz uma série de outras modificações. Movendo a pena, eu agito o ar, e as suas ondas perdem-se não sabemos onde. Pouco importa que todas estas modificações sejam ínfimas, elas não deixam por isso de existir. Tudo está ligado no mundo por liames inextricáveis, nada está isolado, nada independe do exterior. Em outros termos, nada há no mundo que seja absolutamente isolado. Certamente, não podemos sempre observar as relações gerais entre os fenômenos: referindo-nos por exemplo, à criação de galinhas não podemos, está visto, formular problemas astronômicos concernentes ao sol e à lua; isto seria perfeitamente ridículo, pois essas considerações sobre as relações gerais entre os fenômenos de nada nos serviriam na ocorrência. Mas, examinando problemas teóricos, somos muitas vezes obrigados a tomar em consideração estas relações. É preciso muitas vezes contar com elas na vida prática. Quando se diz que um fulano não enxerga um palmo adiante do nariz, o que entendemos por isto? Entendemos

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que ele estuda o seu pequeno canto como um fenômeno isolado, à margem de tudo o que envolve este seu campo. O camponês leva os seus produtos ao mercado e pensa fazer bons negócios. Ora, acontece que os preços estão tão baixos que ele não pode cobrir as suas despesas. Como acontece isto? A razão disto é que o camponês está ligado por meio do mercado a outros produtores. Ele percebe que foi produzido e trazido ao mercado uma tal quantidade de trigo que os preços caíram. Porque motivo enganou-se o nosso camponês? Porque ele não viu (e ele não pôde ver do seu pequeno recanto) os liames que o ligam ao mercado mundial. Invés de se enriquecer depois da guerra, a burguesia se encontrou em frente a uma Revolução operaria. Por que? Porque a guerra estava ligada a toda uma série de fenômenos que a burguesia não havia observado. Os mencheviques, os socialistas-revolucionários, os social-patriotas de todos os países afirmaram que o poder bolchevique não se manteria senão muito pouco tempo na Rússia. Por que cometeram eles este erro? Porque consideraram a Rússia como um caso isolado, sem relação com a Europa ocidental, separadamente da Revolução mundial em progresso, que ajuda os bolcheviques. Quando se diz correntemente e com muita razão que é preciso pesar todas as circunstancias com isto se diz que é preciso examinar um fenômeno ou certo problema nas suas relações com os outros fenômenos e com as outras circunstancias, em geral.

Assim, o método dialético de investigação de tudo que existe exige um estudo de todos os fenômenos, primeiro nas suas relações mutuas indissolúveis e segundo, no seu movimento.

§ 22. O ponto de vista histórico nas ciências sociais

Do fato de tudo se mover no mundo e de tudo estar ligado indissoluvelmente, decorrem certas consequências determinadas para as ciências sociais.

Estamos diante de uma determinada sociedade humana. Teria ela sempre sido organizada da mesma maneira? Absolutamente não. Conhecemos formas extremamente variadas de sociedades humanas. Assim, na Rússia, por exemplo, desde o mês de novembro de 1917, é a classe operaria que está no poder; ela é seguida pelos camponeses; a burguesia está segura; e uma parte (cerca de dois milhões) fugiu para o estrangeiro. As fábricas, as usinas, as vias férreas estão nas mãos do Estado operário. Outrora, antes de 1917 era a burguesia e a nobreza que estavam no poder e que possuíam tudo, enquanto os camponeses e os operários trabalhavam para eles. E tempos mais antigos ainda, antes da libertação dos servos, em 1861, a burguesa era principalmente comercial e existiam poucas usinas. Quanto aos nobres, estes possuíam os

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camponeses como se possui o gado; eles podiam maltratá-los, vendê-los, ou trocá-los. Se nos transportarmos a épocas muito afastadas, encontramos povos nômades e semi-selvagens. Todas estas coisas são tão pouco semelhantes entre si, que um nobre do tempo da servidão, amador do knout e de cães de caça, ressuscitado por milagre e trazido a uma reunião de comitê de usina ou de soviet, seria capaz de sucumbir de uma ruptura de aneurisma.

Conhecemos também outras formas de sociedades. Na Grécia antiga, por exemplo, no tempo em que filosofavam os Platões e os Heráclitos, tudo era baseado sobre o trabalho dos escravos, que constituíam a propriedade de grandes proprietários do solo. No antigo Estado americano dos Incas, a economia nacional era regulada e organizada, ela se achava nas mãos da classe dos nobres e dos sacerdotes, uma espécie de classe intelectual, que governava o país e dirigia a economia nacional, como classe dominante, colocada acima de todas as outras. Poderia-mos dar grande número de outros exemplos para mostrar que a estrutura social muda constantemente. Isto absolutamente não quer dizer que a evolução do gênero humano esteja continuamente progredindo, isto é, tendendo para um aperfeiçoamento constante. Nós já vimos que havia casos em que sociedades humanas muito desenvolvidas pereceram. Assim pereceu, entre outros, o país dos sábios gregos e dos proprietários de escravos. Mas a Grécia e Roma ao menos exerceram uma influencia enorme sobre a marcha posterior dos acontecimentos: Eles serviram de adubo para a história. Mas aconteceu também que civilizações inteiras desapareceram sem deixar traços de si. Eduardo Mayer escreve da seguinte maneira a respeito dos vestígios de uma das mais antigas "civilizações", vestígios descobertos na França por meio de escavações:

"...estamos diante da civilização do homem primitivo em pleno desenvolvimento... civilização que foi destruída em seguida por uma catástrofe grandiosa e que não exerceu influência alguma sobre as épocas posteriores. Não existe nenhuma ligação histórica entre esta civilização paleolítica e os princípios da época neolítica"... (Ed. Mayer: Geschichte des Altertuns, 1.º volume, 2.ª edição página 245).

Mas se não há sempre desenvolvimento, sempre há movimento e transformação, mesmo se o fim é a decomposição e a morte.

Não nos apercebemos deste movimento apenas porque a ordem social muda. Não, a vida social se modifica incontestavelmente em todas as suas manifestações. A técnica da qual se serve a sociedade, evolui: é suficiente

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comparar os machados e as pontas de lanças em sílex com um martelo pilão, um dínamo, um telefone sem fio; a moral e os costumes mudam: Sabe-se, por exemplo, que certos povos comem com prazer os seus prisioneiros, coisa que mesmo um imperialista francês é incapaz de fazer diretamente; ele se contenta em cortar as orelhas dos cadáveres pelas mãos de suas tropas negras que salvam a civilização; em alguns povos existia o costume de matar os velhos e as crianças do sexo feminino e este costume era considerado como altamente moral e sagrado. O regime político muda: Vimos com nossos próprios olhos o absolutismo substituído por uma Republica democrática e em seguida pela dos Soviets; as concepções cientificas, a religião, as condições de existência, as relações entre os homens se transformam. O que nos parece habitual, não foi sempre assim: os jornais, o sabão, a roupa, não existiram sempre, nem tão pouco o Estado, a crença em Deus, o capital ou os fuzis. Mesmo nossas concepções do falso e do feio mudam igualmente. As formas da família não são tão pouco imutáveis: Sabemos muito bem que existe a poligamia, a poliandria, a monogamia e as "ligações irregulares". Em uma palavra, a vida social tanto quanto tudo na natureza está sujeita à continuas transformações.

Certamente, a sociedade humana passa por diversos graus, por diferentes formas de desenvolvimento ou de decadência.

Resulta daí, primeiramente, que é preciso compreender bem e examinar cada uma destas formas sociais em todas as suas particularidades. Isto quer dizer que não se pode aplicar a mesma medida em todas as épocas, em todos os tempos, em todas as formas sociais. Não se pode misturar sem distinção os servos, os escravos, os proletários. Não é possível deixar de ver a diferença entre um proprietário de escravos grego, um russo nobre que comanda servos e um industrial capitalista. O regime de escravidão, tem os seus traços próprios, seu desenvolvimento particular. A servidão representa uma outra espécie de regime, o capitalismo uma terceira, etc. E o comunismo é o regime do futuro; é um regime todo particular. O período de transição que conduz ao comunismo, a época da ditadura do proletariado, constitui um regime a parte. Cada um destes regimes tem seus traços particulares, que devem ser estudados. Somente então, compreenderemos o processo de transformação. Com efeito, se cada forma social tem os seus traços particulares, ela deve também estar submetida a leis de evolução particulares, a leis particulares de movimento. Tomemos, como exemplo, o regime capitalista. Marx escreveu no "Capital" que se propusera como problema "descobrir a lei do movimento da sociedade capitalista". Neste intuito, Marx teve de explicar todas as particularidades do capitalismo, todos os seus traços característicos. E foi somente desta maneira que Marx conseguiu descobrir "a lei do movimento" e predizer a desaparição inevitável da pequena produção em proveito da grande,

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o crescimento do proletariado, o conflito entre este e a burguesia, a Revolução da classe operaria e, ao mesmo tempo, a passagem ao regime da ditadura do proletariado. Não é desta maneira que procede a maioria dos historiadores burgueses. Eles assimilam, por exemplo, frequentemente, os comerciantes da antiguidade aos capitalistas contemporâneos, e a plebe parasita da Grécia e de Roma aos nossos proletários contemporâneos. A burguesia precisa destes processos para mostrar a vitalidade do capitalismo e para provar que a revolta dos proletários nada pode produzir, do mesmo modo que a insurreição dos escravos da antiga Roma nada produziu. E entretanto, os "proletários", romanos nada têm de comum com os operários modernos, do mesmo modo que os comerciantes de Roma têm muito pouca semelhança com os capitalistas de nossa época. O regime todo era outro; não é portanto de espantar que a marcha da evolução da sua existência fosse também outra. Segundo Marx, "cada período histórico tem suas leis... mas logo que a vida ultrapassa o período de uma dada evolução, que ela sai de um determinado estágio, e passa para um outro, ela começa a ser governada por outras leis". (K. Marx "O Capital", vol. l.°). Quanto á sociologia, esta ciência social mais geral, que estuda não as formas particulares da sociedade, mas a sociedade em geral, é importante estabelecer esta proposição como uma espécie de palavra de ordem para as ciências sociais particulares, em frente às quais a sociologia, como já sabemos, desempenha o papel de um método de pesquisa.

Em segundo lugar é preciso estudar cada forma particular no processo de sua transformação interna. É preciso não pensar que uma forma social imóvel substitui outra forma social também imóvel. Nunca acontece em uma sociedade que o capitalismo, por exemplo, exista durante um certo tempo em uma forma cristalizada, e que ele seja substituído em seguida por um regime socialista também imóvel. Na realidade, cada uma destas formas, evolui continuamente durante toda a sua existência. Examinemos um pouco a época capitalista. O capitalismo teria sido sempre o mesmo? Absolutamente que não. Sabemos que ele atravessou "estágios" diferente na sua evolução: O capitalismo comercial, industrial, financeiro com sua política imperialista, o capitalismo de Estado durante a guerra mundial. Mas, mesmo nos limites de cada um destes períodos, conservou-se o capitalismo imóvel? Não. Se ele estivesse imóvel, uma de suas formas não teria podido se transformar em outra. Na realidade cada estágio precedente preparava o seguinte. Assim, por exemplo, durante o período do capitalismo industrial, tivemos o processo da centralização do capital. É sobre esta base que se desenvolveu em seguida o capitalismo financeiro, com seus bancos e seus "trustes."

Em terceiro lugar, é preciso estudar cada forma social nas suas origens e na sua desaparição inevitável, isto é, relativamente a outras formas sociais.

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Nenhuma forma social cai do céu; ela constitui uma consequência necessária do estado precedente. É difícil às vezes determinar exatamente os limites onde uma acaba e a outra começa; um período superpõe-se ao outro. Em geral, as etapas históricas não têm tamanhos fixos e imóveis; são processos, formas de flutuação vital que mudam continuamente. Para compreender convenientemente uma destas formas, é preciso encontrar esta raiz no passado, examinar as causas de seu aparecimento, as condições de sua formação, as formas motrizes de seu desenvolvimento. É também necessário estudar as causas de seu fim inevitável, a direção do movimento ou, como se diz, as "tendências da evolução" que determinam a desaparição inevitável dessa forma e preparo á sua substituição por um regime social novo. Assim, cada etapa constitui um elo que se liga por suas duas extremidades a outros elos. Mas se os sábios burgueses o compreendem às vezes, quando se trata do passado, é-lhes completamente impossível admitir que no presente, o capitalismo, está destinado a morrer. Eles aceitam a pesquisa das raízes do capitalismo, mas têm medo de pensar que também é preciso procurar as condições que conduzirão o capitalismo à sua ruína.

"É no esquecimento deste fato que consiste, por exemplo, toda a essência dos economistas contemporâneos, que afirmam a perenidade e a harmonia das relações sociais existentes" (K. Marx: "Eínleitung zu einer Kritik der politischen Oekonomie", p. XVI).

O capitalismo saiu do regime feudal graças ao desenvolvimento da circulação das mercadorias. O capitalismo se dirige para o comunismo pela ditadura do proletariado. É somente depois de ter examinado a relação do capitalismo com o regime precedente, assim como sua transformação necessária em comunismo, que nós compreenderemos esta forma social. É da mesma maneira que devemos estudar qualquer outra forma social. Esta é outra condição do método dialético; este ultimo pode também ser chamado de concepção histórica, cada forma nele sendo examinada não como eterna, mas também como historicamente passageira, como aparecendo em um determinado momento histórico, para desaparecer em outro.

Esta concepção histórica de Marx nada tem de comum com a pretensa "escola histórica" do direito e da economia política. Esta escola reacionária considera seu dever principal provar a lentidão de todas as transformações e defender todas as puerilidades antigas, em virtude da sua idade histórica venerável. É a respeito desta escola que Hehri Heine escreve com razão:

Não vá à Fulda, não vá lá, meu amigo; Lá o ar é pesado e pernicioso;

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Tome cuidado com a polícia e os policiais:E com toda a escola histórica(Contos de inverno)

Manter as "santas tradições" — tal é a imperiosa necessidade que se impõe á burguesia. Resulta daí desde logo que os fenômenos, cujas origens se encontram em um determinado período histórico, são considerados como eternos, impostos por Deus, e, portanto, imutáveis. Vamos citar alguns exemplos:

1.º: O Estado. Sabemos muito bem hoje em dia que o Estado é uma organização de classe, que ele não pode existir sem classes; que o Estado acima de todas as classes, é uma fantasia como um quadrado redondo, e que o Estado nasceu em um certo período da evolução humana.

Mas, consultemos os sábios burgueses, e mesmo os melhores!

E. Mayer escreve:

"Observei muitas vezes, há uns trinta anos, entre os cães que enchem as ruas de Constantinopla, até onde pôde chegar a formação de agrupamentos orgânicos de animais; eles se organizam em grupos rigorosamente separados nos diferentes bairros, onde não é permitida a entrada de cães estranhos, e todas as noites os cães do quarteirão organizam reuniões em uma praça deserta, reuniões estas que duravam meia hora aproximadamente e eram acompanhadas de latidos fortes. Pode-se, por conseguinte, falar neste caso em Estados de cães limitados no espaço". (E. Mayer: "Geschichte des Altertums. Elemente der Anthropologie", pag. 7).

Nada admira, que depois disto Meyer considere o Estado como uma propriedade imutável da sociedade humana! Se até os cães têm os seus Estados (e, por conseguinte, leis, direitos, etc.) como poderiam os homens dispensá-los?

2.°: É de uma maneira análoga que os economistas burgueses consideram o capital. Sabemos perfeitamente que o capitalismo, como o próprio capital, não existiu sempre.

Os capitalistas e os operários são formações históricas que nada têm de eternas. Entretanto, os sábios burgueses sempre definiram o capital como se o

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capital e o regime capitalista sempre tivessem existido. Assim, Torrens escreve:

"Na primeira pedra que o selvagem atira contra a caça, na primeira vara que ele usa para colher frutos... vemos a apropriação de objetos com o fim de adquirir outros, e descobrimos assim a origem do capital". (K. Marx, "o Capital", t. 1, anotação).

"É assim que um macaco que derruba nozes é um capitalista" (é verdade que sem operário)!

Os economistas burgueses mais modernos não raciocinam melhor. Para provar a perenidade do poder, são os coitados forçados a equiparar cachorros a Lloyds Georges; macacos a Rothschilds.

3.º: Os burgueses que estudam a questão do imperialismo definem frequentemente este ultimo como uma tendência de qualquer forma vital para a sua expansão. Sabemos perfeitamente que o imperialismo, é a política do capital financeiro, que o próprio capital financeiro nasceu somente no fim do século XIX como forma econômica dominante. Mas os sábios burgueses disso não se preocupam. Para mostrar que "sempre foi assim e que sempre será assim", eles elevam a galinha que cisca ao nível dos imperialistas, porque ela "anexa" o grão! O cão estadista, o macaco capitalista e a galinha imperialista caracterizam suficientemente o nível da ciência burguesa moderna.

§ 23. As contradições na evolução histórica

Assim, é a lei da variação, a lei do movimento incessante que constitui a base de tudo. Dois filósofos, um antigo (Heráclito), outro mais moderno (Hegel), como vimos defenderam a concepção segundo a qual tudo o que existe muda e se move. Mas eles não se limitaram a isto. Formularam também a pergunta de como se processa este movimento. E foi assim que descobriram o fato das variações serem provocadas pelas contradições internas crescentes, por uma luta interior.

"A luta é a mãe de tudo o que se passa", dizia Heráclito.

"A contradição, é aquilo que impele para frente", escreveu Hegel.

Esta proposição é incontestavelmente exata. Com efeito, imaginemos um instante que não haja no mundo nenhum conflito de forças, nenhuma luta, que

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as forças diferentes não sejam dirigidas umas contra as outras. O que significaria isto? Significaria que o mundo inteiro se acha em estado de equilibro, isto é, em estado de estabilidade inteira e absoluta, em estado de completo repouso, excluindo qualquer movimento. Onde vemos nós o repouso? Ele existe nos lugares onde todas as parcelas, todas as forças se encontram de tal forma relacionadas que entre elas não haja lugar para conflito, noutras palavras, onde não existe nenhuma contradição, nenhuma oposição de forças em luta, onde o equilíbrio jamais se rompe, onde domina, pelo contrario, uma perfeita estabilidade. Mas nós já sabemos que de fato "tudo se move", "tudo corre". O repouso, a estabilidade absoluta não existem. Vamos explicar isto de uma forma mais precisa.

Como sabemos, a biologia (ciências dos organismos) fala em adaptação. Compreende-se pelo nome de adaptação um estado de coisas em que aquilo que se adapta à outra pode coexistir por muito tempo com ela. Se, por exemplo, se diz que uma espécie de animais "adaptou-se" à um certo meio, isto quer dizer que ela pode viver neste meio; ela se habituou a este ultimo, e suas qualidades são tais que lhe permitem viver nele. Uma toupeira está "adaptada" às condições que ela encontra debaixo da terra, um peixe está adaptado à água; mas jogai uma toupeira na água ou enterrai um peixe, ambos morrerão.

Observamos também um fenômeno análogo na, por assim dizer, natureza "morta"; assim, a terra não cai sobre o sol, e sim gira em torno dele, sem nele "esbarrar". O sistema solar por inteiro se encontra em relação com o resto do universo de tal maneira que ele pode existir de uma forma durável, etc. Aqui, fala-se habitualmente, não mais de adaptação, mas de equilíbrio entre os corpos, entre os sistemas de corpos, etc.

Enfim, observamos também um fenômeno análogo na sociedade. A sociedade vive bem ou mal no meio da natureza; a ela se "adaptou" mais ou menos bem, com ela se acha em equilíbrio mais ou menos instável. Enquanto vive, as suas diferentes partes estão adaptadas umas às outras de tal maneira que a sua coexistência é possível; com efeito, os capitalistas e os operários coexistem já há muito tempo!

Por estes exemplos, se vê que na realidade, trata-se em ambos os casos de uma mesma coisa: do equilíbrio. Se assim é, porque falar em contradições e em lutas? Ao contrario, a luta é uma ruptura de equilíbrio! Pois bem, o equilíbrio que observamos na natureza e na sociedade não é absoluto e nem imóvel: é um equilíbrio instável. Toda a questão repousa nisto; o que significa este termo? significa que o equilíbrio uma vez estabelecido logo se destrói, para se restabelecer em outra base, e ser novamente destruído. E assim por diante.

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A noção exata de equilíbrio é mais ou menos a seguinte:

"Diz-se que um determinado sistema está em equilíbrio quando não pode por si mesmo sair desse estado, isto é, sem o auxilio de uma energia exterior".

Se, por exemplo, forças que se equilibram mutuamente exercem uma pressão sobre um corpo qualquer, este ultimo se acha em estado de equilíbrio; é suficiente diminuir ou aumentar uma destas forças para que o equilíbrio seja destruído.

Se um corpo volta rapidamente ao seu equilíbrio momentaneamente rompido, diz-se que o equilíbrio é estável; no caso contrario, isto é, quando o corpo não volta ao estado de equilíbrio anterior diz-se que o equilíbrio é instável. Nas ciências naturais, distingue-se o equilíbrio mecânico, químico, biológico (Ver "Handworterbuch der Naturwissenschaften", tomo 2, pag. 470-518). Pode-se ainda exprimir isto de outra maneira. Existem no mundo forças diferentes dirigidas umas contra as outras. Elas não se equilibram mutuamente senão em casos excepcionais. É então que vemos aparecer um estado de "repouso", isto é, que a "luta" real entre estas forças não é aparente. Mas basta que uma destas forças mude para que as "contradições internas" apareçam, para que o equilíbrio se rompa, e um outro equilíbrio se estabelece então, cujo princípio será outro, com combinações de forças diferentes, etc. O que podemos concluir daí? Concluímos que a "luta", as "contradições", isto é, os antagonismos entre as forças dirigidas diferentemente determinam o movimento.

Por outro lado, vemos também aqui a forma destes processos: em primeiro lugar, o estado de equilíbrio, em segundo lugar a ruptura deste equilíbrio, em terceiro lugar o restabelecimento do equilíbrio em uma base nova. Em seguida, a história recomeça: o novo equilíbrio torna-se o ponto de partida de uma nova ruptura de equilíbrio, e assim por diante, até o infinito. Temos diante dos olhos, em conjunto, o processo dum acontecimento determinado pelo desenvolvimento das contradições internas.

Hegel, apercebeu-se deste caráter do movimento e exprimiu-o da seguinte maneira: ele denominou o equilíbrio primitivo "tese"; a ruptura de equilíbrio, "antítese", isto é, oposição; o restabelecimento de equilíbrio sobre uma nova base, "síntese" (estado de unificação na qual todas as contradições entram em acordo). É a este caráter do movimento de tudo o que existe, expresso em uma formula composta de três partes (a tríade), que Hegel deu o nome de dialética.

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O termo "dialética" significava para os antigos gregos a arte de falar, de discutir. Como é que se discute quando dois homens se contradizem? Um diz uma coisa, outro uma coisa contraria (esse "nega" aquilo que diz o primeiro); enfim, "a verdade nasce da discussão" e contém aquilo que era verdadeiro nas duas afirmações (a síntese). É também da mesma maneira, que se desenvolve o processo do pensamento. Hegel, sendo idealista, representava tudo como o desenvolvimento independente do espírito. Está claro que ele nunca pensou em rupturas de equilíbrio. As qualidades do pensamento, este sendo uma coisa espiritual e primaria, eram para ele, por esta razão, as qualidades da existência. A este propósito, Marx escreveu

"o método dialético não somente difere, quanto ao fundo, do método de Hegel, mas ainda ele lhe é completamente oposto. ParaHegel, o processo do pensamento, que ele transforma, sob o nome de idéia, em um sujeito independente, é a sua manifestação exterior. Para mim, ao contrario, a idéia não é mais do que o mundo material traduzido e transformado pelo cérebro humano." "A dialética de Hegel está colocada de pernas para cima. É preciso colocá-la de cabeça para cima, para descobrir o núcleo racional sob o seu envelope místico". (Marx: "O Capital", tomo 1, prefacio).

Para Marx, a dialética, isto é, o desenvolvimento pelas contradições, é, antes de tudo, a lei de "existência", a lei do movimento da matéria, a lei do movimento da natureza e da sociedade. O processo do pensamento não é senão a sua expressão. O método dialético, a maneira dialética de pensar é indispensável, porque ela permite apanhar a dialética da natureza.

Nós consideramos perfeitamente possível traduzir a linguagem "mística", como a chamou Marx, da dialética de Hegel, para a linguagem da mecânica moderna. Há relativamente pouco tempo quase todos os marxistas protestaram contra as definições de ordem mecânica. Eles agiram assim porque a antiga concepção dos átomos considerava estes últimos como parcelas isoladas, sem nenhuma ligação umas com as outras. Na hora atual, graças à teoria dos elétrons e dos átomos considerados como sistemas inteiros, análogos ao sistema solar, não há mais razão para temer as definições mecânicas. A corrente mais adiantada do pensamento cientifico formula em toda parte o problema exatamente desta maneira. Marx faz claramente alusão a uma maneira análoga de formular a pergunta (a teoria do equilíbrio entre os diversos ramos da produção, a teoria do valor do trabalho que se prende a ela, etc.). Podemos considerar qualquer objeto seja ele uma pedra, um ser vivo, a

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sociedade humana ou outro, como um composto de elementos ligados entre si. Em outros termos, podemos examinar este conjunto como um sistema. Cada objeto deste gênero (sistema) não existe no vazio; ele está envolto por outros elementos da natureza que constituem o seu ambiente (meio). Para uma arvore que cresce em uma floresta, seu meio é constituído por outras arvores, pelos riachos, pela terra, pela erva, os arbustos, etc., com todas as suas qualidades. Para um homem, o ambiente, é a sociedade humana, dentro da qual ele vive (daí vem o termo "meio"). Para a sociedade humana, o meio é constituído pela natureza exterior, etc. Existe uma relação constante entre o meio e o sistema. O "meio" exerce uma influencia sobre o "sistema"; este ultimo influi por sua vez sobre o "meio". Devemos em primeiro lugar responder a uma questão de princípio: Quais são as relações entre o meio e o sistema? Como podem ser determinadas? Quais são as suas formas? Que significação têm elas para o sistema?

Entre estas relações, distinguimos imediatamente três tipo principais:

1.° O equilíbrio estável. — O equilíbrio estável se produz quando as relações mutuas entre o meio e o sistema se exprimem por um estado de coisas constante, ou então por desordens passageiras, depois das quais o sistema volta ao estado primitivo. Suponhamos, por exemplo, uma espécie de animais vivendo na estepe. O meio em si não muda, a quantidade de alimentação necessária para essa espécie permanece constante. A quantidade de feras tão pouco muda: Todas as moléstias de origem microbiana (tudo isto compõe o "meio") reinam nas mesmas proporções. O que acontecerá então? Em geral, o numero dos animais, ficará invariável: uns morrerão ou perecerão por culpa das feras, outros nascerão, mas a espécie em questão, em tais condições do meio, será considerada tal qual ela sempre foi. Temos aqui um exemplo de estagnação. Por que? Porque a relação entre o sistema (a espécie de animais considerada) e o seu meio permanece invariável. Temos aqui um caso de equilíbrio estável. Este ultimo não está sempre em um estado de completa imobilidade. O movimento pode existir, mas cada ruptura de equilíbrio é seguida pelo seu restabelecimento sobre a base antiga. Neste caso, a oposição entre o meio e o sistema se repete constantemente na mesma relação quantitativa. O mesmo exemplo nos é oferecido por uma sociedade em estagnação (tornaremos a falar disto em detalhe mais adiante). Se a relação entre a sociedade e a natureza permanece a mesma, isto é, se esta sociedade, pela sua produção, tira da natureza tanta energia quanto ela mesma perde, a oposição entre a sociedade e a natureza se reproduzirá sempre na sua forma antiga. A sociedade não sai do lugar, e estamos em presença de um equilíbrio estável.

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2.° O equilíbrio instável com sinal positivo (o desenvolvimento do sistema). — De fato, o equilíbrio estável não existe. Não é senão uma ficção "ideal". Na realidade, a relação entre o meio e o sistema nunca se reproduz nas mesmas proporções. Em outros termos, a ruptura de equilíbrio não traz, na realidade, a reconstituição deste sobre a mesma base, mas, pelo contrario, um novo equilíbrio que se estabelece em uma nova base. Vamos supor por exemplo, voltando aos animais dos quais já tratamos acima, que a quantidade de feras diminuiu por uma razão qualquer e que, pelo contrario, a quantidade de alimentos aumentou. Não é duvidoso, que neste caso, o numero de animais aumentará. Nosso "sistema" se desenvolverá, um novo equilíbrio se estabelecerá sobre uma base mais elevada. Estamos aqui em presença de um desenvolvimento. Em outras palavras, a oposição entre o meio e o sistema mudou quantitativamente.

Se invés de animais, tomamos uma sociedade humana e supomos que a relação entre ela e a natureza muda de tal forma que a sociedade tira da natureza mais energia do que perde (o solo se tornou fértil ou então inventaram-se novos instrumentos, etc.), então essa sociedade crescerá, e não mais marcará passo. O novo equilíbrio será cada vez diferente. A oposição entre a sociedade e a natureza se reproduzirá cada vez sobre uma mesma base "mais elevada", graças a qual o sistema aumentará, e se desenvolverá. Estamos aqui em presença de um equilíbrio por assim dizer, de sentido positivo.

3.º Equilíbrio instável, com sinal negativo (a destruição do sistema). — Um caso absolutamente contrario pode-se apresentar, quando o equilíbrio se estabelece sobre uma base "inferior". Vamos supor por exemplo, que a quantidade de alimentos tenha diminuído para os nossos animais, ou então, que o numero de feras que deles se alimentavam tenha aumentado. Neste caso, nossa espécie tenderá a "desaparecer". O equilíbrio entre o meio e o sistema se restabelecerá cada vez à custa de uma parte deste sistema; as oposições se reproduzirão sobre uma outra base no sentido negativo. Examinemos o exemplo da sociedade. Vamos supor que a relação entre a natureza e a sociedade muda de tal forma que esta última seja obrigada a perder cada vez mais energia e receber cada vez menos (o solo se esgota, os meios técnicos pioram, etc.). Então, o novo equilíbrio se restabelecerá cada vez sobre uma base inferior, em detrimento da sociedade, e uma parte desta perecerá. Teremos aqui um movimento no sentido negativo, a sociedade caminhará para a decomposição e a morte.

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Pode-se reduzir todos os casos a um destes três. Na base do movimento, como já vimos, acha-se na realidade, a oposição entre o meio e o sistema, oposição que renasce continuamente.

Mas o problema apresenta ainda um outro aspecto. Não falamos até este momento senão nas contradições entre o meio e o sistema, nas contradições externas. Mas existem também contradições internas, no interior do próprio sistema. Cada sistema é composto de diferentes elementos ligados entre si; a sociedade humana é composta de homens; a floresta, de arvores e arbustos; um rebanho, de animais; um monte, de pedras, etc... É entre estes elementos componentes que se encontra um grande numero de oposições, de encontros, de conflitos. Um equilíbrio absoluto não prevalece. Se, estritamente falando o equilíbrio absoluto entre o meio e o sistema nunca se realiza, não existe tão pouco um tal equilíbrio entre os elementos do mesmo sistema.

É pelo exemplo do sistema mais complexo, o da sociedade humana, que melhor verificamos isto. Não encontramos nele um numero infinito de contradições? A luta das classes é a expressão mais clara destas "contradições sociais" e sabemos que "a luta de classes é a alavanca da historia". As oposições entre as classes, entre os agrupamentos, entre as idéias, as oposições entre os modos de produção e de repartição, a desordem na produção — a anarquia capitalista da produção — tudo isto forma uma corrente sem fim de contradições e constitui outras tantas contradições no interior do sistema, devidas à própria estrutura desta última (contradições da estrutura). Entretanto, estas contradições por si mesmas não destroem a sociedade. Elas podem destruí-la (quando por exemplo as duas classes em luta perecem em uma guerra civil), mas elas podem muitas vezes não destruí-la.

Neste ultimo caso, é preciso que exista um equilíbrio instável entre os elementos da sociedade. A analise deste equilíbrio será objeto de nosso estudo ulterior. No momento só uma coisa nos importa: não se pode considerar a sociedade, como o fazem frequentemente os sábios burgueses, como se não existissem no seu seio contradições. Ao contrario, o estudo cientifico da sociedade pressupõe o exame desta do ponto de vista das contradições que ela encerra. "A evolução" histórica é uma evolução contraditória.

É preciso que detenhamos nossa atenção também sobre um fato ao qual voltaremos muitas vezes nesta obra. Como já dissemos, há duas espécies de contradições: entre o meio e o sistema e entre os elementos do próprio sistema. Existirá uma ligação qualquer entre estes dois fenômenos?

Basta refletir um instante para responder afirmativamente.

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É evidente que a estrutura interior do sistema (o equilíbrio interno) deve mudar segundo as relações existentes entre o sistema e o meio. A relação entre o sistema e o meio é um fator que determina com efeito o estado do sistema; as formas essenciais de seu movimento (decadência, desenvolvimento, estagnação), são determinadas por esta relação.

Examinemos a questão da seguinte maneira: Vimos acima que o caráter do equilíbrio entre a sociedade e a natureza determina a linha essencial do movimento social. Nestas condições a estrutura interna poderá desenvolver-se por muito tempo em uma direção contraria? Certamente que não. Admitamos que estamos tratando de uma sociedade em desenvolvimento. Será possível que, nestas condições, a estrutura interna da sociedade piore continuamente? Certamente que não. Se entretanto, graças à sua estrutura, a situação interna se agrava, enquanto a sociedade em si se desenvolve, isto é, se a sua desordem interna aumenta, isto prova que estamos em presença de uma nova contradição entre o equilíbrio interno e externo. O que acontecerá então? Se a sociedade continua a se desenvolver ela será obrigada a se reconstruir; isto quer dizer que a sua estrutura interna deverá se adaptar ao caráter do equilíbrio externo. Por conseguinte: o equilíbrio interno (da estrutura) é um fator que depende do equilíbrio externo. Ele é "função" deste equilíbrio externo.

§ 24. A teoria das transformações por saltos e a teoria das transformações revolucionárias nas ciências sociais

Falta-nos agora examinar o ultimo lado do método dialético, a saber: a teoria das transformações por saltos. Como sabemos, existe uma opinião muito generalizada, segundo a qual a natureza não dá saltos (natura non facit saltus). Esta sábia locução é usada habitualmente para provar de uma maneira "sólida" a impossibilidade da Revolução, bem que as Revoluções continuem a existir, apesar de todos os sábios professores. Mas, na realidade, será a natureza tão moderada e ordenada quanto afirmam?

Hegel escreve a este respeito na sua "ciência da lógica" ("Wissenschaft der Logic", Hegels Werke, 2.ª edição, v. 3, pag. 434):

"Diz-se que a natureza ignora os saltos e isto é claro quando se trata de uma simples aparição ou desaparição no sentido de um desenvolvimento gradual; ora, a transformação não é somente quantitativa, mas também qualitativa, e consiste na aparição de uma coisa nova, diferente, na ruptura da forma do ser."

O que significa isto?

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Hegel fala da passagem da quantidade à qualidade. Vamos explicar isto com um exemplo muito simples. Vamos supor que aquecemos água. Enquanto a temperatura estiver abaixo de 100°, ela não entrará em ebulição e não se transforma em vapor. Suas parcelas se agitam cada vez mais rapidamente mas não surgem na superfície em estado de vapor. Não observamos senão uma transformação de quantidade, as partículas se agitam cada vez mais rapidamente, a temperatura sobe, mas a água continua água, com todas as suas qualidades. A quantidade muda continuamente, mas a qualidade permanece a mesma. Mas quando a água chegar à temperatura de 100°, isto é, no ponto de ebulição, ela começa a ferver bruscamente, como se as parcelas, que giravam com uma velocidade vertiginosa, tivessem perdido a cabeça e saltado à tona em forma de bolhas de vapor. A água deixa de ser água: ela torna-se vapor, gás. É uma nova matéria, tendo novas qualidades. Aqui notamos duas particularidades principais no processo de transformação.

Em primeiro lugar, num certo grau de movimento, as transformações quantitativas provocam modificações qualitativas (ou, como se diz mais brevemente: "a quantidade se transforma em qualidade"); em segundo lugar, esta passagem da quantidade à qualidade faz-se por um salto, a continuidade e a "gradação" sendo bruscamente transtornadas. A água não se transforma constantemente e em sábia progressão, primeiro em um "pequeno" vapor, que em seguida se torna um "grande vapor. Ela não ferveu até um certo momento, mas começou a fazê-lo no momento em que chegou a um certo "ponto". É a isto que se denomina um salto.

A transformação da quantidade em qualidade é uma das leis essenciais do movimento da matéria, que pode ser seguida na natureza e na sociedade, literalmente passo a passo. Suspendei um peso a um fio e juntai pouco a pouco pesos suplementares. Até um certo limite, o fio resiste, mas logo que ultrapassarmos um certo limite, ele se quebra instantaneamente (por salto). Condensai o vapor numa caldeira. Até um certo momento, tudo irá bem; somente o ponteiro do manômetro (instrumento que indica a pressão do vapor) marcará uma mudança quantitativa da pressão exercida pelo vapor sobre as paredes da caldeira. Mas logo que a agulha tiver passado de um certo limite, a caldeira arrebentará. A pressão do vapor foi um pouco maior do que a resistência das paredes. Até este momento, as transformações quantitativas não tiveram como consequência um "salto", uma transformação qualitativa, mas chegando a um certo ponto, a caldeira estourou. Muitos homens são incapazes de levantar uma pedra; um homem se junta a eles, e eles ainda não conseguem levantá-la; chega uma mulher fraca e todos era conjunto levantam a pedra. Foi necessário um muito pequeno suplemento de força, e com ele, foi possível levantar a pedra. Tomemos ainda um exemplo no domínio da

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sensação humana. Existe um conto de Léon Tolstoi intitulado "três pães e um bolinho", que trata do seguinte: um homem tinha fome e não conseguia matá-la; ele come um pão e a fome continua; ele come um outro e a fome persiste; o mesmo acontece depois do terceiro; mas depois de comer o bolinho, ele percebe repentinamente que não tem mais fome. Ele começa então a se injuriar por não ter comido em primeiro lugar o bolinho; não teria sido preciso, diz ele, comer os três pães. Entretanto, está claro que o homem se engana. Aqui também, a transformação qualitativa, a passagem da sensação de fome à sensação de saciedade, produz-se mais ou menos por "salto" (depois do bolinho). Mas esta transformação qualitativa foi preparada por uma transformação quantitativa: se ele não tivesse comido os pães, o bolinho não o teria saciado.

Vemos assim que é absurdo negar os "saltos" e de falar somente em progressão prudente. Na realidade, frequentemente encontramos saltos na natureza e o ditado segundo o qual "a natureza não dá saltos" não é senão a expressão de um medo dos "saltos" na sociedade, isto é, a expressão do medo das revoluções.

É característico verificar que as antigas teorias burguesas relativas ao problema da origem do mundo eram teorias catastróficas, certamente muito ingênuas e inexatas. Assim é, por exemplo, a teoria de Cuvier. Ela foi substituída em seguida pela teoria da evolução que trouxe muita coisa nova, mas que, por princípio, negava os saltos. Em geologia, por exemplo, assim são as teorias Lyell ("Principies of Geology); mas, desde o fim do século passado, viram-se aparecer novamente teorias que reconhecem o importante papel desempenhado pelos saltos. Assim a teoria do botânico De Vries ("La theorie des Mutations": "mutation" — mudança súbita", que afirma, que de tempos em tempos, como consequência de modificações anteriores, produzem-se transformações súbitas, que em seguida, se consolidam e tornam-se o ponto de partida de uma nova evolução. Não se vai longe hoje em dia com as antigas concepções que negavam os "saltos". Estas concepções (Leibnitz diz, por exemplo: "Tudo na natureza caminha gradativamente e nada por saltos") se originam evidentemente no conservadorismo social.

Se os sábios burgueses negam o caráter contraditório da evolução, eles o fazem de medo da luta de classe e com o fim de encobrir as contradições sociais. Da mesma maneira, o medo dos saltos se baseia no medo da revolução. Toda esta sabedoria se reduz ao seguinte raciocínio: a natureza ignora os saltos que não existem e não podem existir. Portanto, proletários, não pensai em fazer a Revolução!

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Mas nota-se aqui com clareza a que ponto a ciência burguesa contradiz os postulados científicos os mais essenciais. Com efeito, todos sabem que houve um grande numero de revoluções É impossível negar a Revolução inglesa ou a grande Revolução Francesa ou ainda a de 1848, ou enfim a Revolução Russa de 1917-1921. E, se estes saltos se produzem na vida social, não compete à ciência "negá-los", isto é, esconder-se diante da realidade como o avestruz, mas sim compreendê-los e explicá-los.

As revoluções na sociedade são o equivalente dos saltos na natureza. Elas não são devido a surpresas. Elas são preparadas pela evolução anterior, como a ebulição da água é preparada pelo aquecimento ou a explosão da caldeira pela crescente pressão do vapor sobre as suas paredes. A revolução na sociedade, é a sua reconstrução, "a modificação do sistema no ponto de vista de sua estrutura"; ela decorre infalivelmente como consequência de uma contradição entre a estrutura da sociedade e as necessidades de seu desenvolvimento.

Diremos adiante como isto se produz. No momento, é preciso saber uma coisa:

"tanto na sociedade quanto na natureza, certas coisas se fazem por saltos; na sociedade, tanto quanto na natureza, estes saltos são preparados pela marcha anterior dos acontecimentos ou em outros termos, na sociedade e na natureza a evolução (desenvolvimento gradual) conduz para a Revolução (salto): os saltos pressupõem uma modificação continua, e a modificação contínua conduz aos saltos. São dois momentos necessários do mesmo processo" (Plekhanov: "Criticas de nossas criticas", 1903.)

O problema das contradições na evolução e dos saltos constituem um dos pontos essenciais da teoria. Toda uma série de escolas e de tendências burguesas podem ser hostis à teleologia, favorável ao determinismo, etc. Mas elas tropeçam cada vez que tocam neste problema.

A teoria de Marx não é uma teoria evolucionista, mas revolucionaria. É por esta razão que ela é inaceitável para os teóricos da burguesia. E é por esta razão que eles estão prontos a "admitir" tudo nesta teoria, com exceção... da dialética revolucionaria. A sua critica do marxismo segue habitualmente a mesma linha. Assim, por exemplo, o professor alemão Werner Sombart se inclina respeitosamente diante de Marx enquanto se trata de evolução, mas ele começa imediatamente a atacá-lo quando verifica os elementos revolucionários do marxismo. Teorias completas são forjadas com este fim. Marx, dizem, é um

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sábio enquanto é evolucionista, mas, logo que ele se torna, mesmo em teoria, revolucionário, deixa de ser sábio, deixa-se levar por paixões revolucionárias e abandona a ciência. O Sr. Pierre Strouvé, ex-marxista, autor do primeiro manifesto da social-democracia russa, tornou-se, em seguida, líder monarquista e principal teórico da contra-revolução; também começou a sua critica de Marx pela teoria dos saltos. Plekhanov, que era então revolucionário, escreveu a este respeito:

"O sr. Strouvé encarregou-se de nos mostrar que a natureza não dá saltos, e que o intelecto (a razão) não os admite. Como se explica isto? Talvez não tenha ele em vista senão o seu próprio intelecto que, com efeito, não suporta saltos pela simples razão de que o Sr. Strouvé, como se diz, não pode suportar uma certa ditadura ("Critica de nossas criticas"). A pretensa "escola orgânica", os "positivistas", os partidários de Spencer, os evolucionistas, etc., são todos adversários dos saltos, pois eles não gostam de "uma certa ditadura".

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Capítulo IV - A Sociedade

§ 25. Concepções dos agregados. Agregados lógicos e reais

Não são somente os corpos simples que se apresentam a nós como entidades (por exemplo, uma folha de papel, uma vaca ou o sr. tal). Falamos frequentemente de unidades complexas, de grandezas complexas. Estudando o movimento de uma população, dizemos: o numero de nascimentos do sexo masculina aumentou de tanto, em um certo espaço de tempo. Este "numero de crianças do sexo masculino" se apresenta como uma quantidade completa, composta de unidades particulares e considerada como um todo (ou agregado estatístico). Falamos também em floresta, classe, sociedade humana, e sentimos imediatamente que temos diante de nós uma quantidade composta, considerada como um todo, mas sabemos ao mesmo tempo que este todo é composto de elementos independentes até um certo ponto: a floresta é composta de arvores, de arbustos, etc. uma classe — de homens particulares, pertencentes à esta classe. Estas quantidades complexas são denominadas agregados.

Já vimos, entretanto, pelos exemplos citados, que estes agregados podem ser diferentes: quando falamos das crianças do sexo masculino nascidas em 1921, ou da floresta de Fontainebleau, sente-se distintamente a diferença. Em que consiste essa diferença? Não é difícil notá-la. Com efeito, quando falamos das crianças, estas ultimas não estão ligadas, realmente, na vida, e por si mesmo; uma se encontra em determinado lugar, outra em outro lugar, uma não influi de maneira alguma sobre a outra, cada uma vive aparte. Somos nós que as unimos, somos nós que as recenseamos, somos nós que fazemos delas um agregado. Este é imaginado, feito sobre o papel, mas não é de maneira alguma vivo e nem real. Tais agregados artificiais são denominados fictícios ou lógicos. Isto se apresenta diferentemente quando falamos de sociedade, floresta ou de classe. Aqui, a união dos elementos que as compõem não é somente fictícia (lógica). Com efeito, temos diante de nós uma floresta com suas arvores, seus arbustos, suas ervas, etc. Não vemos aqui uma união na vida? Certamente que sim. A floresta não é uma simples reunião de elementos diversos, pois todas estas parcelas influem continuamente umas sobre as outras, ou como se diz, acham-se em relação de reciprocidade permanente. Abatei uma parte destas arvores e é possível que uma parte das que ficam morra, por falta de umidade; por outro lado, em outro lugar, outras arvores crescerão melhor, pois recebem mais sol. Assim, estamos em presença da "ação recíproca" das partes que compõem "a floresta", e esta ação é perfeitamente real e não imaginada por nós com um certo fim. Mas ainda: esta ação recíproca é durável e continua

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enquanto existe o agregado. Estes agregados são denominados agregados reais.

É preciso não esquecer entretanto que todas estas diferenças são muito relativas. Com efeito, estritamente falando, as unidades "simples" não existem. Um senhor fulano de tal, é realmente, uma colônia de células, isto é, um corpo extremamente complexo. Um átomo, como sabemos, também se decompõe. E nenhum limite de divisibilidade existindo em princípio, nenhuma "simplicidade" existe tão pouco, no fim de contas. As diferenças que nós verificamos não deixam de ter, apesar disso, um certo valor dentro de certo limite: um indivíduo é um corpo simples e não agregado, quando considerado em relação à sociedade; ele é um corpo composto, um agregado real, relativamente a uma célula, etc. Quando queremos falar destas coisas sem as comparar, servimo-nos do nome de sistema. De acordo com a sua essência, os termos "sistema" e "agregado real" significam para nós a mesma coisa. A relatividade deste "distinguo" aparece ainda de outro modo: estritamente falando, o mundo inteiro é um agregado real e infinito, cujas partículas agem continuamente umas sobre as outras. É assim que quaisquer objetos e elementos do mundo exercem uns sobre os outros uma ação contínua. Entretanto, esta ação recíproca pode ser mais ou menos direta ou indireta. Sobre isto é que se baseiam as diferenças a que nos referimos acima; elas têm, repitamo-lo, o seu valor, se as compreendermos dialeticamente, isto é, relativamente, dentro de certos limites e "segundo as circunstancias".

§ 26. A sociedade como agregado real ou como sistema

Examinemos agora a sociedade sob este ponto de vista. É evidente que a sociedade é um agregado real, no qual o processo de uma ação recíproca se produz incessantemente entre as partes que o compõem. O senhor X foi ao mercado, lá negociou, participou na formação de um preço de mercado, que teve a sua repercussão sobre o mercado mundial e que influiu, se bem que infinitamente pouco, sobre os preços mundiais; estes últimos influíram, por sua vez, sobre o mercado do país em que habita o senhor X e sobre o próprio mercado onde ele faz os seus negócios; de outro lado, ele comprou, admitamos, um arenque; esta compra influiu sobre o seu orçamento; ele precisa assim gastar o dinheiro que lhe resta de uma certa maneira, etc. etc. Pode se enumerar aqui ainda milhares de outras influencias.

O senhor X casou-se. Para isto, ele comprou primeiro presentes e influiu assim economicamente sobre outras pessoas; como cristão fiel, pois não é um bolchevique qualquer, ele recorreu a um padre, reforçando assim a organização da igreja, o que produziu uma certa influência sobre o papel social da igreja e sobre o estado de espírito de uma determinada sociedade; ele

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pagou o padre e aumentou assim a procura das mercadorias que os padres compram habitualmente, etc. A mulher do senhor X teve filhos, o que por sua vez, teve milhares e milhares de consequências. Imaginai somente o numero de homens sobre os quais influiu por pouco que seja o casamento do senhor X! O senhor X aderiu ao partido liberal para cumprir com o seu "dever de cidadão". Ele começou a frequentar as reuniões e a sentir juntamente com seus novos colegas, o mesmo ódio contra essa maldita populaça que se agita e sustenta estes filhos do inferno: os bolcheviques. E a influência que ele exerceu nestas reuniões tocou direta ou indiretamente um grande numero de homens. Certamente, é difícil determinar esta influência; ela é pequena, infinitamente pequena mas existe apesar disto. E qualquer que seja o raio de ação do senhor X, veremos sempre que ele influiu sobre outros e outros influíram sobre ele. Pois, em uma sociedade, tudo está ligado por milhões de fios.

Começamos de propósito por um indivíduo, para mostrar como ele influi sobre os outros. Vejamos agora que influência exerceram sobre ele os fenômenos sociais. Admitamos, por exemplo, que a industria seja próspera; a empresa da qual o senhor X é contador, tem lucros suplementares; o senhor X recebe um aumento de ordenado. Arrebenta a guerra; o senhor X é mobilizado, e defende a pátria dos seus patrões (crendo que defende a civilização) e é morto na guerra... Tal é a força das relações sociais.

Se examinarmos a imensa quantidade de fatos agindo uns sobre os outros na sociedade humana, apenas no nosso tempo, teremos diante dos olhos um quadro grandioso. Somente, as relações elementares entre os homens, relações que não são regulamentadas, por nada nem por ninguém, se apresentam sob aspectos inumeráveis. Mas o numero de formas organizadas, a começar pelo poder do Estado e acabando por um clube de jogadores de xadrez, ou um clube de calvos já é suficientemente grande. Se levarmos em conta o inumerável entrecruzar de todas estas formas, verificaremos que a vida social representa uma verdadeira torre de Babel de influencias e de reações recíprocas.

Sabemos que o fato de se produzirem num domínio qualquer relações de caráter durável, constitui um agregado real, um "sistema". Aqui, é preciso assinalar um ponto: para que exista um agregado real ou um sistema, não é necessário que haja um índice de organização consciente das partes deste sistema. Esta concepção de sistema se aplica tanto aos seres vivos, quanto aos seres mortos; tanto aos "mecanismos" quanto aos "organismos". Há entretanto velhacos que negam a própria sociedade, pela simples razão de haver nesta sociedade outros sistemas particulares, sistemas internos na

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sociedade (classes, grupos, partidos, clubes, sociedades e associações diversas). Estamos entretanto em presença do fato destes sistemas e agrupamentos interiores influírem reciprocamente uns sobre os outros (a luta de classes e de partidos, a sua colaboração, etc.); de outro lado, os homens que compõem estes agrupamentos diversos, podem em outros casos, reagir de outra maneira sobre os outros homens (um capitalista e um operário que comprarem para o seu uso próprio mercadoria de um mesmo capitalista); em seguida, os próprios grupos, nas suas relações mútuas, não são organizados. Obtemos assim um produto social inconsciente e "a resultante social" (ver mais acima: capitulo 2.° o determinismo) é obtida de maneira desorganizada e inconsciente (e assim será até a formação de uma sociedade comunista). E, entretanto, apesar disto, forma-se o "produto" social, a resultante. Ela constitui um fato, um fato real. Os preços mundiais são um fato, como também a literatura mundial ou as vias de comunicação ou a guerra mundial; estes fatos são suficientes para mostrar a existência, no momento atual, de uma sociedade humana que ultrapassa as fronteiras dos Estados particulares.

Em geral, enquanto temos um circulo de relações mutuas constantes, temos também um sistema particular, um agregado real particular.

"O mais vasto sistema de relações recíprocas que engloba todas as relações mutuas duráveis entre os homens, constitui a sociedade".

Definimos a sociedade como um agregado real ou como um sistema de relações recíprocas, repelindo categoricamente todas as tentativas da "escola orgânica" que tendem a assimilar a sociedade a um organismo.

O fim utilitário da teoria "orgânica" se revela na fábula da Menenios Agrippa, patrício romano, aconselhando os plebeus em revolta. Os seus argumentos eram de ordem puramente "orgânica": As mãos não devem agir contra a cabeça, pois todo o corpo pereceria. A significação social da teoria orgânica é justamente esta: a classe dominante, é a cabeça, os escravos e os operários são os braços e as pernas, e como ninguém viu jamais na natureza que as pernas e os braços tenham substituído a cabeça, conservai-vos tranquilos, oprimidos!

Graças a este caráter de humildade da teoria orgânica, ela sempre teve e tem ainda um grande sucesso no meio da burguesia. O "fundador" da sociologia. Augusto Comte, considerava a sociedade como "um organismo coletivo" o mais sério dos sociólogos burgueses, Herbert Spencer, acreditava que a sociedade era alguma coisa de super orgânica e si bem que não tenha consciência, tem contudo os seus órgãos, tecidos, etc... Segundo Worms, a

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sociedade tem até a consciência, tal como um indivíduo, e Lilienfeld afirma categoricamente que a sociedade é um organismo, tanto quanto um crocodilo ou o próprio autor dessa teoria. Certamente, a sociedade tem alguma coisa de comum com o organismo, mas ela tem também alguma coisa em comum com o mecanismo. Isto são caracteres de qualquer agregado, de qualquer sistema. Não estando dispostos a perder o nosso tempo com jogos infantis, nem a procurar aquilo que corresponde, numa sociedade, ao fígado, ao apêndice ou que fenômeno social corresponde a uma certa moléstia, somos obrigados a rejeitar, a priori, qualquer tentativa semelhante. Isto tanto mais que os partidários da teoria orgânica estão prestes a cair num verdadeiro misticismo e a representar a sociedade sob a forma de um imenso animal, de alguma coisa no gênero da famosa baleia(1), da fábula russa do "pequeno cavalo corcunda".

Assim, a sociedade existe como agregado real, como sistema de elementos agindo reciprocamente uns sobre os outros, como sistema de homens. Vimos acima a quantidade incalculável destas relações recíprocas que existe na realidade. Entretanto, resulta do fato da sociedade existir, que todas estas influências que se entrecruzam, todas estas forças e pequenas forças inumeráveis dirigidas sobre planos extremamente variados, não representam uma dança de loucos, mas seguem, por assim dizer, certos e determinados canais, estão submetidas a uma lei de desenvolvimento interno. Com efeito, se houvesse um caos completo, nenhum equilíbrio, mesmo instável, poderia subsistir no interior da sociedade, isto quer dizer que a própria sociedade deixaria de existir. Estudamos precedentemente a questão das leis que regem as ações humanas, do ponto de vista do indivíduo (ver o capitulo 3). Vamos examinar agora o mesmo problema, por assim dizer pelo outro lado, examinando do ponto de vista da sociedade e das suas condições de equilíbrio. Mas, aqui também, chegaremos ao mesmo resultado, isto é, a reconhecer que o processo social está submetido a leis. A maneira mais fácil de descobrir as leis do processo social, é examinar as condições de equilibro social. Mas, antes disto, para abordar este assunto, é preciso que examinemos mais detalhadamente o que é a sociedade. Pois não basta dizer que ela constitui um sistema de homens, agindo uns sobre os outros. Não é suficiente dizer que estas relações de reciprocidade entre os homens são duráveis. É preciso explicar o seu caráter, o que os distingue dos outros sistemas, o que constitui a sua base vital e a condição mais necessária de equilíbrio.

§ 27. — Caráter do laço social

As relações recíprocas entre os homens, relações que formam os fenômenos sociais, são, como vimos acima, extremamente variadas. Mas é preciso que formulemos agora a pergunta seguinte: Qual é a condição e a duração destas relações? Ou, em outros termos, entre todas estas relações de

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reciprocidade, qual é a condição essencial de equilíbrio de todo o sistema? Qual é o tipo principal da ligação social, tipo sem o qual todos os outros não poderiam existir?

Eis a nossa resposta: — Este laço essencial, é o do trabalho, que se exprime antes de tudo no trabalho social, isto é, no trabalho consciente ou inconsciente de um homem em proveito de um outro. Por que isto? Para explicá-lo, basta supor o contrário. Admitamos por um instante que o laço do trabalho entre os homens seja destruído, que os produtos (ou as mercadorias) não circulem mais de um local a outro, que os homens cessem de trabalhar uns para os outros, que o trabalho perca o seu caráter social. Qual seria o resultado disto? O resultado seria o desaparecimento da sociedade. Citemos ainda um exemplo: Um grupo de missionários vai para os países tropicais pregar Deus e o Diabo. Desta maneira eles estabelecem um laço, por assim dizer, superior e espiritual. Formulemos agora o seguinte problema: As ligações entre os países de onde vieram os missionários e os "selvagens" poderão ser sólidas se os navios não circularem frequentemente, se não houver trocas regulares (e não fortuitas) entre eles, isto é, se laços de trabalho duráveis não se estabelecerem entre o país "civilizado" e a pátria dos "selvagens"? Certamente que não. Assim, todos os laços em geral, e no seu conjunto, não podem ser sólidos senão quando existe um laço de trabalho. Este ultimo é a condição essencial do equilíbrio do interior do sistema denominado sociedade humana.

Pode-se ainda examinar este problema sob um outro aspecto. Sabemos já que qualquer sistema, inclusive a sociedade humana, não existe no vácuo, e não está tão pouco suspenso no ar: ele está envolvido de um certo "meio", e é da relação entre o sistema e este meio que depende todo o resto. Se a sociedade humana não estiver adaptada ao seu meio, ela não durará muito: a sua cultura perecerá infalivelmente e tudo irá por água abaixo. Ninguém pode negar este fato. Ele é irrefutável. Qualquer coisa que se diga, quaisquer que sejam os argumentos dos sábios idealistas, ninguém poderá apresentar sequer uma sombra de prova contra a nossa afirmativa: a vida inteira da sociedade, a questão de sua vida ou de sua morte, está determinada pela relação entre a sociedade e o meio, isto é, a natureza. Já a isso nos referimos mais acima e é inútil voltar atrás. Mas qual é o laço social entre os homens que melhor representa, e da maneira mais direta, estas relações com a natureza? Está claro que é o laço do trabalho. O trabalho constitui o meio de contato entre a sociedade e a natureza. É pelo trabalho que a sociedade tira da natureza a energia, graças à qual ela vive e se desenvolve (se se desenvolve). O trabalho representa a adaptação ativa dos homens à natureza. Em outros termos, o processo da produção é o processo essencial e vital da sociedade. E, por

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conseguinte, as relações do trabalho constituem o laço social fundamental. Ou, como dizia Marx:

"é preciso procurar a anatomia da sociedade na sua economia",

isto é, a estrutura da sociedade é a do seu trabalho (a sua "estrutura econômica"). Assim, nossa definição da sociedade será a seguinte: A sociedade é o mais vasto sistema de homens agindo uns sobre os outros, sistema que engloba todas as suas relações duráveis e que se baseia sobre as relações que derivam do trabalho.

Chegamos assim a uma concepção nitidamente materialista da sociedade. A base de sua estrutura é constituída pelo laço do trabalho, do mesmo modo que o processo material da produção constitui a base da vida.

Mas poderão apresentar, frequentemente, a seguinte objeção: "Muito bem, admitamos que assim seja; mas, como se estabelecem os laços do trabalho? Porventura os homens não conversam, não pensam enquanto estão trabalhando? E não será então o laço de trabalho de ordem psíquica, espiritual? Onde vemos aqui o materialismo? Não será tempo de desistir dessas baboseiras materialistas? O que significam o vosso trabalho e as vossas relações de trabalho, senão alguma coisa de psíquico?"

Estudemos este problema mais de perto. Ele o merece, porque doutra forma aparecerão inúmeros mal-entendidos. Para maior clareza, tomemos primeiro um exemplo muito simples. Imaginemos que temos diante de nós uma usina em funcionamento. Nesta usina há trabalhadores simples, em seguida diferentes operários qualificados; uns trabalham em uma maquina, outros em outra; eles são também de profissões diferentes; há também nessa usina contramestres, engenheiros, etc... Vejamos como Marx apresenta a questão ("O Capital" tomo 1):

"Observam-se diferenças essenciais entre os operários efetivamente ocupados com as maquinas em funcionamento (contam-se entre eles alguns ocupados em observar e outros em alimentar a maquina motriz) e os operários simples ou serventes dos primeiros (quase sempre crianças). Entre os operários simples, estão incluídos também os "feeders" (os que somente colocam na maquina a matéria prima que serve para a fabricação). Ao lado destas classes principais, encontramos ainda um pessoal pouco numeroso, que é encarregado de observar

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as maquinas, repará-las, como por exemplo os engenheiros, os mecânicos, os carpinteiros, etc.."

Tais são as relações de trabalho entre os homens em uma usina. Como se exprimem elas antes de tudo? Cada um está ocupado com o "seu trabalho", mas este trabalho não é senão uma parte da ação geral, isto quer dizer que cada operário se encontra em um lugar determinado, faz movimentos determinados, entra em contacto material com as coisas e com outros operários, despende uma certa quantidade de energia material.

Tudo isto são relações de ordem material, física. Certamente, todas estas relações materiais e físicas têm também o seu lado "espiritual": os homens pensam, trocam idéias, conversam, etc. Mas isto está determinado pela maneira com que estão dispostos nos edifícios da usina, pelas maquinas em que eles trabalham, etc.. Em outros termos, eles estão dispostos na usina como corpos físicos determinados, e acham-se assim em relações físicas e materiais definidas no espaço e no tempo. Isto é a organização material do trabalho dos operários da usina, organização a queMarx dá o nome de "operário coletivo"; temos diante de nós um sistema material de trabalho humano. Quando este sistema de trabalho está em movimento, temos um processo de trabalho material; os homens despendem a sua energia e fabricam um produto material. Trata-se de um processo material que tem o seu lado "espiritual".

O que acontece no nosso exemplo, isto é, na usina, tem lugar também em dimensões muito maiores, e de maneira muito mais complexa, na sociedade inteira. Pois a sociedade em seu conjunto representa um aparelho de trabalho humano particular, onde a imensa maioria dos homens ou um grupo de homens ocupa um lugar particular no processo do trabalho. Tomemos a sociedade atual que engloba a pretensa "humanidade civilizada inteira", ou ainda um circulo mais largo. Verificamos que o frumento é produzido principalmente por certos países, o cacau por outros, os artigos metalúrgicos ainda por outros, etc. E, mesmo nesses países, certas usinas fabricam uma coisa, e outras uma outra. Os operários, os camponeses, os colonos, tanto quanto os engenheiros, os contramestres, os organizadores de toda a espécie, etc., colocados em diferentes pontos do mundo, espalhados sobre toda a superfície da terra, trabalham todos na realidade, talvez sem o saberem, uns para os outros. E quando as mercadorias circulam de um país a outro, da usina ao mercado, do mercado, por intermédio do comerciante, ao consumidor, o que isso significa? Significa que tudo isto constitui um laço material entre todos os homens. Significa também que todos os trabalhadores formam um esqueleto material, um aparelho de trabalho, da vida social que é uma só. Quando se

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descreve, por exemplo, a vida das abelhas, ninguém estranha que se comece por dizer quais são as diferentes espécies de abelhas, que trabalhos elas executam, quais são as suas relações mútuas no tempo e no espaço, em uma palavra, que se descreva o aparelho material do trabalho do "reino das abelhas", e ninguém terá idéia de definir as abelhas nas suas colméias como um agregado psíquico, como uma "associação espiritual", ainda que se fale do instinto, da vida psíquica das abelhas, dos seus costumes, etc. Mas, por favor, não injurieis da mesma maneira ao homem divino!

É natural que as relações psíquicas recíprocas as mais variadas, na sociedade humana, são incomparavelmente mais ricas que as de um bando de macacos de espécie superior. O "espírito" da sociedade humana, isto é, o conjunto de todas as suas relações psíquicas, e superior ao "espírito" de um bando de macacos tanto quanto o "espírito" do homem é superior ao do macaco. Mas todos os ornamentos espirituais infinitamente variados, complicados, extremamente ricos, de cores brilhantes, destas relações psíquicas que compõem o "espírito" da sociedade contemporânea, têm também o seu "corpo", sem o qual elas não poderiam existir, do mesmo modo que o "espírito" de um homem sem corpo material não pode existir. E este "corpo" é constituído pelo vigamento de trabalho, pelo sistema das relações materiais entre os homens no processo do trabalho, ou, como dizMarx, o sistema das relações de produção.

As meninas burguesas e ingênuas gritarão certamente contra a blasfêmia, se explicarmos o perfume "divino" de um narciso pela excitação de uma coisa tão prosaica quanto a mucosa do nariz. E entretanto um grande numero de sábios burgueses não ultrapassa o nível dessas meninas. As vezes, ainda ousam escarnecer a teoria "orgânica". Assim, por exemplo, o professor italiano A. Loria, que pilhou e digeriu mal a Marx, escreveu na sua "sociologia":

"O sábio alemão Schaffle atinge o ridículo enumerando os órgãos, tecidos, os centros motores e os nervos sociais. Mas os outros sociólogos desta escola não são mais moderados. Eles descrevem a anca social, o nervo simpático e os pulmões sociais; o sistema dos vasos da sociedade é representado, segundo eles, pelas caixas econômicas; um professor da Sorbonne denominou o clero um tecido adiposo. Um outro professor comparou as fibras nervosas com os fios telegráficos... Um terceiro chegou mesmo a distinguir os Estados masculinos e os Estados femininos; os Estados masculinos são aqueles

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que submetem os outros pela conquista, enquanto que os Estados conquistados... são do sexo feminino".

Tudo isto está perfeito. Mas, vejamos um pouco em que ponto os sábios burgueses, mesmo os melhores, tornam-se tímidos, quando chegam a tocar no materialismo em sociologia! O professor E. Durkheim, por exemplo, no seu livro sobre a "Divisão do Trabalho", depois de ter introduzido a concepção de "densidade moral" (ele entende por este termo a frequência e a intensidade das relações psíquicas recíprocas entre os homens) escreve:

"A densidade moral não pode portanto aumentar sem que a densidade material aumente ao mesmo tempo..."

O que significa isto? Significa que a "troca espiritual" entre os homens baseia-se numa "troca material", isto é, que a densidade e a frequência das relações materiais e psíquicas condicionam a frequência e a densidade correspondentes de suas relações espirituais. Isto é perfeitamente exato. Mas o sr. Durkheim, depois de exprimir este pensamento materialista, amedronta-se imediatamente e acrescenta: aliás, diz ele, é inútil (!!!) procurar qual das duas (densidade moral ou densidade material) determinou a outra; basta saber que elas são inseparáveis. (E. Durkheim: "Da divisão do Trabalho social", Paris 1893, pag. 283). E por que motivo é "inútil"? Porque é "vergonhoso" ser materialista em uma sociedade burguesa!

A imensa maioria dos sociólogos burgueses contemporâneos estudam a sociedade como um sistema psíquico, "organismo psíquico", ou outra coisa parecida. Isto corresponde perfeitamente à concepção idealista. O defeito principal dessas teorias consiste no fato delas destacarem o "espírito" da "matéria", e tornarem assim este "espírito" inexplicável, isto é, divinizado. Com efeito, vamos supor que a relação psíquica seja de uma certa espécie em uma sociedade e diferente em outra. Assim, por exemplo, na Rússia, na época de Nicolau Iº, reinava o "espírito" policial, o espírito de submissão e, pelo contrario, na Rússia dos Soviets reina um "espírito" completamente diferente; isto significa que as relações psíquicas mudaram completamente. Por que? As teorias psicológicas da sociedade não poderão dar uma resposta clara a esta questão. Pode-se julgar a que ponto são estas teorias insuficientes, pelo fato de mesmo o conhecido filósofo idealista W. Wundt, reconhecê-lo:

"... o fato da evolução da vida psíquica depender do ambiente físico, torna fictícias e inaceitáveis as leis psicológicas que se diz preceder a todas as relações de ordem física e que transformam a organização

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unicamente em um meio para atingir os seus próprios fins." (Os problemas da psicologia das nações).

A única concepção cientifica será aqui também a concepção materialista (Marx falava em "organismo produtivo". Ver "O Capital", tomo 3º, 1ª parte).

§ 28. A sociedade e o indivíduo. Supremacia da sociedade sobre o indivíduo

Não há duvida que a sociedade é composta de indivíduos. Se não houvesse indivíduos, não haveria também sociedade; o fato é compreensível por si mesmo. Entretanto, é preciso lembrar-se que uma sociedade não é somente um simples ajuntamento de homens, ou a soma de indivíduos: Não é suficiente adicionar todos os Paulos e todas as Marias para se obter uma sociedade.

Já vimos que a sociedade é um agregado real (sistema); já vimos que havia toda uma rede de relações mutuas entre os indivíduos, relações as mais variadas e de valor desigual. O que isto significa? Que a sociedade, considerada no seu conjunto, é mais do que a soma das partes que a compõem. Ela não se reduz somente a esta soma. O mesmo se dá nos mais variados sistemas, quer se trate de um organismo vivo ou de um mecanismo inanimado. Tomemos, por exemplo, uma máquina qualquer, um simples relógio. Decomponhamos estes objetos e reunamos todas as partes em um só monte. Este monte representará a soma de suas partes. Mas não será a maquina, não será o relógio. Por que? Porque lhe falta o laço definido, a relação recíproca definida entre as diferente partes, relação que faz destas partes diversas um determinado mecanismo. Que é que faz com que uma peça qualquer seja uma parte do todo? A sua disposição particular. É exatamente da mesma maneira que as coisas se passam na sociedade. Mas se os homens não ocupassem no processo do trabalho e em dado momento um lugar definido, se eles não estivessem unidos antes de tudo por um laço de trabalho, nenhuma sociedade existiria.

É preciso levar em conta ainda um fenômeno que observamos na sociedade: a sociedade representa, não somente um conjunto de indivíduos particulares tendo relações comuns, e influindo diretamente uns sobre os outros, mas também de grupos de homens tendo relações recíprocas, de outros "agregados reais", intermediários, por assim dizer, entre a sociedade e o indivíduo. Tomemos como exemplo a sociedade atual. Ela é imensa. Ela abrange quase toda a humanidade, estando os homens dos diferentes países ligados cada vez mais pelos laços do trabalho; a economia mundial existe e se desenvolve. Mas esta sociedade, composta aproximadamente de um bilhão e

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meio de homens que mantêm relações recíprocas, unidos por um laço fundamental (o do trabalho) e por outros laços inumeráveis, contém em seu interior sistemas particulares de homens agrupados de diferentes maneiras; classes, Estados, organizações religiosas, partidos, etc.. Falaremos disso detalhadamente mais adiante. No momento, importa-nos verificar o que segue: Existe toda uma série de agrupamentos humanos no interior da sociedade; por sua vez, estes agrupamentos são compostos evidentemente de indivíduos; as relações recíprocas entre estes homens são habitualmente mais frequentes e mais rápidas num só meio social do que as relações entre os homens em geral (o filósofo e sociólogo alemão G. Simmel afirma, muito acertadamente, que em geral, quanto mais o círculo dos homens que mantêm relações recíprocas é restrito, tanto mais os laços que os unem são estreitos); mas estes agrupamentos estão também em contacto entre eles. Assim, na sociedade, os indivíduos influem frequentemente uns sobre os outros, não diretamente, mas por intermédio de agrupamentos, de sistemas particulares, no interior do sistema geral que é denominado sociedade humana. Com efeito, imaginemos um determinado operário em uma sociedade capitalista. Com quem se encontra ele mais amiúde? Com quem ele discute as diferentes questões, etc? É claro que mais frequentemente com outros operários e muito mais raramente com os artesãos, os camponeses ou com os burgueses. Vemos aqui um laço de classe. Quanto às outras classes, o operário está muitas vezes em contacto com elas, não como pessoa particular, como "indivíduo mas como membro de sua classe e às vezes como membro de uma organização criada conscientemente, de um partido, de um sindicato profissional, etc. O mesmo se passa também em outros agrupamentos fora dos agrupamentos de classe: os sábios frequentam sobretudo outros sábios, os jornalistas outros jornalistas, os padres outros padres, etc.

No domínio material, sabemos que a sociedade não é um ajuntamento de homens, que ela é mais do que uma simples soma, que a união entre os homens e a sua determinada "posição" (Marx dizia "distribuição") no processo do trabalho produzem alguma coisa mais diferente do que a "soma" e o "monte". Mas a mesma coisa se produz igualmente no domínio da vida psíquica ("espiritual"), que desempenha um papel muito importante. Já citamos muitas vezes o exemplo do preço como resultado das avaliações de uma série de pessoas particulares. O preço é um fenômeno social, uma "resultante" social, um produto das relações recíprocas entre os homens; será o preço igual à avaliação média? Não. o preço parecer-se-á com uma avaliação particular? Também não. Pois uma avaliação particular é um negocio pessoal, concernente a um só homem, ela "vive na sua alma" e unicamente na sua alma, enquanto que o preço é uma coisa que oprime a cada um; é alguma coisa de independente, com a qual é preciso contar, uma coisa objetiva, apesar

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de não ser material (ver capitulo 2.°); o preço, em outros termos, é uma coisa nova, e que tem a sua própria vida social, uma coisa independente dos homens particulares, se bem que ele seja "feito" pelos homens. O mesmo acontece com todos os outros fenômenos da vida psíquica ("espiritual"). A língua, o regime político, a ciência, a arte, a religião, a filosofia, e toda uma série de fenômenos de menor importância, tais como a moda, os costumes, as "regras de civilidade", etc. etc, tudo isto são produtos da vida social, resultado das relações recíprocas entre os homens, de suas relações constantes.

Do mesmo modo que a sociedade não é uma simples soma de homens, assim também a vida espiritual da sociedade não é uma simples soma de idéias e de sentimentos de homens particulares, mas ela é o produto de suas relações recíprocas, ela é, até um certo ponto, uma coisa particular, nova, que não pode ser reduzida a uma simples soma aritmética; uma coisa nova, que resulta precisamente das relações recíprocas entre os homens.

São precisamente estes fatos que demonstram a necessidade das ciências sociais. Wundt observa muito acertadamente que a

"vida comum de numerosos indivíduos tendo uma organização idêntica, como também as relações mutuas decorrentes desta vida sendo uma condição nova, devem originar também fenômenos novos, com leis particulares". (Os problemas da psicologia das nações.)

Um indivíduo não pode existir fora da sociedade, sem a sociedade, mau grado a sociedade. Não é possível representar-se a sociedade como se existissem homens isolados, existindo por assim dizer, em "estado natural", e reunindo-se em seguida para formar a sociedade. Esta concepção era outrora muito espalhada, mas ela é completamente falsa. Se nós examinamos passo a passo a evolução da sociedade humana, vemos que ela se formou a partir da tribo e não a partir de seres de aparência humana vivendo em lugares diferentes, e que compreenderam subitamente um belo dia que era muito mais cômodo (como eram inteligentes, estes selvagens!) viver juntos e começaram a se reunir em sociedade, depois de se terem convencido uns aos outros em reuniões publicas.

"O ponto de partida" (da ciência, N. B.), escreveu Marx, se acha nos "indivíduos produzindo em sociedade", e por conseguinte, na "produção social dos indivíduos". Um caçador e um pescador isolados... pertencem ao domínio da fantasia do século XVIII... A produção de indivíduos isolados fora da sociedade... é tão absurda quanto o

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desenvolvimento da linguagem sem homens que vivam juntos e falem entre si". (K. Marx: Introdução a uma critica da economia política).

A teoria do homem isolado que se une aos outros foi expressa de um modo preciso por J. J. Rousseau, na obra "O Contrato Social" , aparecida em 1762: o homem nasce livre em estado natural. Para proteger a sua liberdade, ele entra em relações com outros homens, e é baseado num "contrato social" se cria uma sociedade, um Estado (Rousseau não distingue o Estado da sociedade). "O tratado social tem por fim a conservação dos contratantes" (livro 2.°, cap. 5). Com efeito, Rousseau estuda, não a origem real da sociedade ou do Estado, mas o ponto de vista da "razão", isto é, como deve ser concebida e construída uma sociedade organizada. Aquele que infringe o "contrato" é passível de punição. Se os reis abusam de sua força, é preciso expulsá-los, — esta é a conclusão. Eis por que, apesar da inexatidão absoluta das concepções de Rousseau, a sua doutrina desempenhou no mais alto grau um papel revolucionário durante a grande Revolução francesa.

As qualidades sociais do homem não puderam se desenvolver senão no seio da sociedade. É ridículo supor que o homem (e ainda mais um homem selvagem) tenha compreendido a utilidade da sociedade sem tê-la jamais visto. Seria com efeito o mesmo que o desenvolvimento da linguagem entre homens que não falam e que se encontram espalhados por toda parte. O homem sempre foi, segundo a expressão de Aristóteles,"um animal social", isto é, um animal que sempre viveu em sociedade e nunca fora dela. Não é possível imaginar-se que a sociedade humana se tenha "formado pouco a pouco" (somente um comerciante, que organiza uma sociedade por ações, pode pensar que a sociedade humana se criou mais ou menos pela mesma maneira, e imaginar que as coisas se passaram por esta forma). Na realidade, a sociedade sempre existiu, assim como o próprio homem, e nunca houve homens fora da sociedade. O homem é um animal sociável "pela sua natureza"; a sua "natureza" é social e muda com a sociedade; é por sua "natureza", e não devido a um contrato ou a um tratado, que os homens vivem em sociedade.

Se o homem sempre viveu em sociedade, isto é, se ele sempre foi homem social, isto significa que o indivíduo sempre teve como meio a sociedade. E se a sociedade sempre foi o meio em que viveu o indivíduo, não é difícil compreender que este meio determinava o indivíduo; o indivíduo se desenvolve segundo a natureza do meio, da sociedade: "Dize-me com quem andas e eu te direi quem és!"

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Aqui, aparece uma questão que sempre deu e dá ainda lugar a discussões, a saber: — qual o papel dos indivíduos na história?

Entretanto, este,problema está longe de ser tão difícil quanto parece. O indivíduo desempenhará ou não um papel qualquer na marcha dos acontecimentos? Será ele igual a zero? Ou então, terá ele poder para qualquer coisa? É evidente que a sociedade, sendo composta de indivíduos, os atos de uma pessoa qualquer influem sobre o acontecimento social. Assim, o indivíduo desempenha "um papel", assim os atos, os sentimentos, os desejos de qualquer homem fazem parte integrante do fenômeno social. "Os homens fazem a historia"; e desde que "os homens" são compostos de indivíduos, está claro que o homem isolado não é igual a zero, mas representa uma certa força. É o entrecruzamento, ou antes, são as relações mutuas entre estas forças que determinam, como sabemos, o fenômeno social.

Por outro lado, se um homem isolado influi sobre a sociedade, não se poderá saber que é que determina ação deste homem isolado? Sim, pode-se saber. Sabemos perfeitamente que a vontade do homem não é livre, que ela é determinada por condições exteriores. E estas condições exteriores sendo para um homem isolado as condições sociais (condições da vida de família, de grupo, de profissão, de classe, de toda sociedade em determinado momento), a sua vontade, por conseguinte, é determinada por condições exteriores; é nestas condições que ela encontra os motivos de sua atividade.; Assim, por exemplo, um soldado russo do tempo de Kerensky via que o seu mister caminhava para a ruína, que a vida se tornava cada vez mais difícil, que não se enxergava o fim da guerra, que os capitalistas se enriqueciam, que a terra não era dada aos camponeses. Todos estes fatos dão motivo para a sua ação, como seja: acabar a guerra, apoderar-se da terra e, para isto, derrubar o governo. Por conseguinte, o ambiente social determinou os motivos da ação.

O próprio ambiente limita a realização de um fim qualquer almejado pelo indivíduo. Em 1917, Milioukov quis reforçar a influência da burguesia e apoiar-se sobre os Aliados; mas nada conseguiu: o ambiente era tal que Milioukov nada fez, nada pôde fazer.

Se examinarmos em seguida o indivíduo na sua evolução, apercebemo-nos que realmente ele está recheado de influencias do seu meio. O homem é "educado" na família, na rua, na escola. Ele fala a linguagem que e o produto da evolução social, ele pensa por meio de concepções elaboradas por toda uma série de gerações anteriores, ele vê em torno de si outros homens e o seu modo de ser; ele vê diante de si uma certa ordem que influi sobre ele a todo momento. Como uma esponja ele se embebe sempre de impressões novas. Tudo isto contribui para "amoldá-lo" como indivíduo. Assim, na realidade, há

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em cada indivíduo um conteúdo social. O próprio indivíduo isolado é o resultado de uma condensação de influencias sociais muito concentradas.

Enfim, é preciso acentuar ainda um fato. Acontece frequentemente que o papel desempenhado pelo indivíduo é bastante grande, devido ao lugar particular e ao trabalho particular que ele fornece. Tomemos por exemplo um exército e seu estado-maior. O estado-maior é composto apenas de alguns indivíduos, enquanto um exército se compõe de centenas de milhares e às vezes de milhões de homens. E, entretanto, todo o mundo sabe que a importância de alguns indivíduos do estado-maior é muito maior do que a do mesmo numero de pessoas no exército (de soldados ou oficiais). Se o inimigo consegue aprisionar o estado-maior, isto pode significar às vezes a derrota de todo o exército. Portanto, a importância destes indivíduos é bastante grande. Examinemos isto mais de perto. O que valeria um estado-maior sem linhas telefônicas, sem relações, sem informações, sem cartas, sem possibilidade de dar ordens, sem disciplina, etc? Nada absolutamente. Os homens que pertencem ao estado-maior seriam mais ou menos iguais aos outros membros do exército. No que consiste a sua força e a sua importância? Elas são criadas pelo laço social particular, pela organização, na qual estes homens trabalham. Certamente, eles devem possuir uma certa capacidade para desempenhar as suas funções (ter uma instrução suficiente ou então capacidades inatas, desenvolvidas pela experiência, como se dava no caso de um grande numero de generais de Napoleão ou de comandantes do Exercito Vermelho dos Soviets). Mas, fora deste laço particular, eles perdem a sua força. Isto significa que a possibilidade que tem o estado-maior de exercer uma influência sobre o exército é dada pelo próprio exército, pela sua estrutura, pela sua organização, pelo conjunto de relações existentes.

As coisas passam-se de maneira análoga na sociedade. Tomemos, por exemplo, os chefes políticos., O seu papel, certamente, é incomparavelmente maior do que o de um homem médio de uma classe ou de um partido qualquer. Certamente, é preciso ter qualidades especiais, como inteligência, experiência, etc., para ser chefe político; mas, está claro que, sem as organizações apropriadas (partidos, associações, a sua tática particular para se aproximar das massas, etc.) "os chefes" não poderiam desempenhar um tal "papel". A força dos laços sociais dá, por sua vez, uma força a certos indivíduos eminentes. Não é diferente o que acontece quando se trata dos inventores, sábios, etc... Eles não podem se "desenvolver" senão em certas condições. Suponhamos que o inventor, bem dotado por sua natureza, não tenha podido elevar-se; ele nada aprendeu, nada leu, e foi obrigado a fazer um trabalho completamente diferente, como o comercio de fazendas. O seu "talento" foi afogado: ninguém se aperceberá de sua existência. Como não é possível

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imaginar-se um chefe fora de um exército, também é impossível imaginar um inventor sem maquinas, sem aparelhos, sem certos homens. Ao contrario, se o nosso comerciante de fazendas tivesse conseguido elevar-se, ele poderia talvez tornar-se um novo Edison. Poderíamos citar um grande numero de exemplos análogos. É natural que, em todos estes casos, a influência da sociedade se exerce de modo a só permitir que alguém se "eleve" em coisas de que a sociedade (uma classe, um grupo, ou a sociedade em geral) necessita.

Assim, são os laços sociais que dão a força aos indivíduos — esta é a conclusão dos exemplos precedentes.

Esta concepção desenvolveu-se com muita dificuldade. As suas causas foram explicadas de maneira clara pelo camarada M. N. Pokrovsky(História da civilização russa, 1.ª parte).

"Um historiador, pela sua própria posição pessoal, é um trabalhador intelectual, em primeiro lugar, e em segundo, si nós considerarmos os traços mais particulares, ele é ao mesmo tempo um homem que escreve, um homem de letras. Não é de admirar que ele considere o trabalho intelectual como a coisa principal da história, e as obras literárias desde os poemas e os romances até os Tratados de filosofia e ciências, como os fatos essenciais da cultura. Mas isto ainda não basta; os trabalhadores intelectuais, e isto é bastante natural, deixaram-se levar pelo mesmo orgulho que ditou aos faraós as inscrições elogiosas. Começaram por crer que eram eles que faziam a historia".

É preciso acrescentar ainda que este ponto de vista profissional coincidia com o das classes, dos agrupamentos dominantes, da minoria que comandava a imensa maioria. Não é difícil verificar que o fato de pôr em relevo os chefes, e antes de tudo os reis, os príncipes, etc, e em seguida os gênios, é da mesma ordem de idéias que a concepção religiosa; pois a força social que a sociedade dá ao indivíduo é ocultada, e, ao invés dela, vê-se o próprio indivíduo, força inexplicável, isto é, "divina" por sua essência. O filósofo russo W. F. Soloviev assim o exprimiu de maneira admirável (A justificação do bem, capitulo IV, citado por Khvostiv: A teoria do processo histórico):

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"Os homens providenciais, que nos revelaram uma religião superior e que esclareceram a humanidade, não eram a princípio os criadores destes bens. Tudo o que eles deram, foi herdado por eles mesmos dos gênios históricos universais, dos heróis aos quais devemos também o nosso reconhecimento. Devemos reconstituir, o mais completamente possível, toda a linhagem dos nossos antepassados espirituais, dos homens pelos quais a providência dirigia a humanidade no caminho da perfeição... É nesses "vasos eleitos" que reside aquilo que Ele (o pai celestial) neles colocou, é nestas imagens visíveis da Divindade invisível que A reconhecemos e A glorificamos."

Não é necessário responder detalhadamente a esta mixórdia, ela por si diz tudo.

Resulta do que foi dito anteriormente que um indivíduo age sempre como indivíduo social, como membro, parte de um agrupamento de uma classe da sociedade. O "indivíduo" tem sempre um conteúdo social; assim, para compreender a evolução da sociedade é preciso partir do estudo das condições sociais e passar em seguida, si for necessário, ao indivíduo, e não proceder de maneira inversa. É pelo estudo das relações sociais, pelo exame das condições de qualquer vida social, da vida de uma classe, de um agrupamento profissional, da família, da escola, etc., que nós podemos explicar mais ou menos bem a evolução do indivíduo; mas não poderíamos explicar a evolução da sociedade pelo estudo do desenvolvimento do indivíduo, porque cada indivíduo agindo de uma maneira qualquer deve levar em conta, antes de tudo, aquilo que já foi feito na sociedade. Assim, por exemplo, um comprador que vai ao mercado para procurar calçados ou pão. Como os avalia ele? É evidente que ele adapta de ante-mão a sua avaliação pessoal ao preço que já existe ou que já foi estabelecido no mercado. Um inventor constrói uma nova maquina; ele parte daquilo que já existe, da técnica e da ciência dadas, das exigências que apresenta o seu trabalho prático, etc. Em uma palavra, se nós esforçarmos, como o fazem certos sábios burgueses, em explicar os fenômenos sociais segundo os fenômenos pessoais (psicológicos ou individuais) nós chegaremos, não a uma explicação, mas a um círculo vicioso: Um fenômeno social (o preço, por exemplo), será explicado por um fato pessoal (por exemplo, pela avaliação da mercadoria por um fulano qualquer), e esta avaliação deverá ser explicada pelo preço com que o mesmo fulano teve que contar. Qual seria o resultado de uma explicação destas? "A terra repousa sobre uma baleia, a baleia está sobre a água e água sobre a terra" — como diz

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uma fábula russa. Chegaremos forçosamente ao mesmo resultado, cada vez que quisermos estabelecer o caráter da sociedade pelo estudo dos indivíduos e pela sua conduta. Por consequência, é necessário partir da sociedade, pois, como já vimos, é no meio social que o indivíduo encontra os móveis para a sua ação; é no meio social e nas condições de seu desenvolvimento que ele encontra os limites da sua atividade: são as condições sociais que determinam o seu papel, etc. A sociedade domina o indivíduo, ou, como dizem os sábios, existe uma supremacia da sociedade sobre o indivíduo.

§ 29. As sociedades em formação

Do fato do homem, enquanto homem, sempre ter vivido em sociedade, não resulta absolutamente que novas sociedades não possam formar-se ou as antigas desenvolver-se.

Suponhamos que em determinada época existem, em diversos pontos do globo, aglomerados humanos. Suponhamos em seguida que estes aglomerados não tenham entre si nenhuma relação: eles são separados por montanhas, por rios, por mares, e não atingiram ainda um grau de civilização suficiente para permitir que eles transponham estes obstáculos. Se acontecer que eles entrem em contacto uns com os outros, isto não se produz senão raramente e de uma maneira irregular: Não pode haver relações estáveis entre eles.

Estamos nós, neste caso, em presença de uma só sociedade considerável que abrange estes aglomerados humanos particulares? Absolutamente não. Estamos em presença não de uma só sociedade, mas de tantas sociedades quantas são as aglomerações. Por que? Porque é o laço do trabalho, "a relação de produção", que forma a ossatura ou esqueleto do corpo social, que constitui a base, o traço característico principal da sociedade. No exemplo citado mais acima, este laço entre as aglomerações não existe; por conseguinte, estamos em presença não de uma só sociedade, mas de sociedades diferentes, tendo cada uma a sua própria história.

Quando nos referimos a "homens", podemos reuni-los, não em uma só sociedade, mas reuni-los como homens, para distingui-los dos outros animais, ou em outros termos, pode-se considerá-los como uma coisa particular (homens) do ponto de vista biológico, isto é, da mesma espécie biológica (não pulgas, girafas ou elefantes, mas de uma só espécie: homens). Mas, do ponto de vista da ciência social, da sociologia, não existe aqui nenhuma unidade, nenhuma sociedade; não tratamos aqui de uma espécie, mas de varias sociedades. Para que haja unidade biológica, é preciso que os animais em questão tenham a mesma estrutura, os mesmos órgãos, etc; a unidade

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sociológica exige que os animais-homens trabalhem em conjunto, e não uns paralelamente aos outros, nem tão pouco ao mesmo tempo, mas em comum.

Certamente, numerosos são aqueles que contestam que as sociedades sejam agregados fechados. Assim, o professor Wipper escreve (Os Novos Horizontes da Ciência Histórica. O Mundo Contemporâneo):

"É possível que, desde o princípio da civilização, as sociedades completamente fechadas, a economia natural pura, nunca tenham existido. As relações comerciais, a colonização, as migrações, e a propaganda, existiram desde tempos imemoriais. Sem duvida, um trabalho independente era executado também localmente: muitas coisas foram realizadas simultaneamente, nos limites geográficos e em condições diferentes por esforços independentes. Mas é possível também que, mais frequentemente ainda, o estágio seguinte da evolução tenha sido atingido de um só salto, graças a uma lição prematura, insuficientemente compreendida, mas devido sobretudo a uma fonte estranha e em seguida esquecida".

Entretanto, se uma sociedade absolutamente fechada nunca existiu, não deixa de ser verdade que as trocas entre as diferentes sociedades humanas eram extremamente reduzidas. Assim, por exemplo, que relações duráveis poderiam ter existido entre os povos europeus e a America antes da viagem de Cristóvão Colombo? Mas, entre os próprios povos europeus, a ligação era muito fraca na idade média, por exemplo. Por conseguinte, não se pode falar destes casos, de uma sociedade humana: A humanidade era nessa época, apenas, uma unidade biológica.

Suponhamos agora que entre nossas sociedades apareçam em primeiro lugar relações de ordem militar e em seguida de ordem comercial. Estas relações comerciais tornam-se cada vez mais duráveis, e há um momento em que uma sociedade não pode mais viver sem a outra; umas produzem principalmente uma coisa, as outras uma outra; estes produtos são trocados e assim uma trabalha para a outra, deixando este trabalho de ter um caráter fortuito para se tornar regular, indispensável à existência das duas "sociedades". Que acontece então? Teremos uma só sociedade de dimensões maiores. Ela foi formada pela reunião das duas sociedades distintas.

Mas um processo contrario também é possível. Em certas condições, uma sociedade pode dividir-se em varias outras; isto acontece nos períodos de decadência.

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O que podemos concluir destes fatos? Que a sociedade não é uma entidade fixa. Podemos observar o processo de formação de uma sociedade. Nós o vimos, por exemplo, na segunda metade do século XIX e no princípio do século XX. Relações cada vez mais estreitas se estabelecem entre os diferentes países por vias diversas (graças às guerras coloniais, ao aumento das trocas, às importações e exportações de capitais, graças às ligações de população de um país ao outro, etc.). Relações econômicas duráveis (e não fortuitas) se estabelecem entre os países e, em ultima analise, laços de trabalho. A economia mundial nascia, o capitalismo mundial se desenvolvia, e as suas diferentes partes influíam umas sobre as outras. Ao mesmo tempo que se deslocavam sobre um plano internacional os homens e as coisas, as mercadorias, os capitais, os operários, os comerciantes, os engenheiros, etc., uma poderosa torrente de idéias cientificas, artísticas, filosóficas, políticas, religiosas e outras transitava de um país para outro. As trocas mundiais materiais arrastavam atrás de si as trocas espirituais. Foi assim que começou a se formar uma só sociedade humana, tendo urna só história.

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Capítulo V - O Equilíbrio Entre a Sociedade e a Natureza

§ 30. A natureza como meio para a sociedade

Se estudarmos a sociedade como sistema, o meio no qual ela evolui será representado pela "natureza exterior", isto é, primeiramente pelo nosso planeta com todos os seus caracteres naturais. Não é possível imaginar uma sociedade humana fora desse meio que lhe fornece a alimentação. Esta é a sua significação vital. Entretanto, seria ingenuidade considerar a natureza do ponto de vista da finalidade; seria ingenuidade dizer que o homem é o rei da natureza e que tudo na natureza é feito para satisfazer as necessidades humanas. Realmente, a Natureza combate às vezes o homem de maneira tão violenta que pouca coisa resta para o "rei da natureza".

É somente depois de uma luta longa e obstinada contra a natureza que o homem começa a domá-la.

Entretanto, o homem, como espécie animal, e a sociedade humana, são produtos da natureza, uma parte deste todo infinito. O homem jamais poderá sair da natureza, e mesmo quando ele a submete, ele não faz mais do que explorar as leis da natureza para os seus próprios fins. É portanto compreensível que a natureza deva exercer uma grande influência sobre o desenvolvimento da sociedade humana. Antes de começar a estudar as relações que se estabelecem entre o homem e a natureza, assim como as formas nas quais se exprime a influência da natureza sobre a sociedade humana, é preciso primeiro que examinemos os lados pelos quais a natureza toca o homem mais de perto. É bastante olhar em torno de nós para verificar a dependência da sociedade relativamente à natureza:

"A terra (é preciso incluir neste termo também a água do ponto de vista econômico) que fornece ao homem a sua alimentação, os seus meios brutos de subsistência, existe sem nenhum concurso de sua parte, como objeto universal do trabalho humano. Todos os objetos que por meio do trabalho o homem tira de suas relações diretas com a terra, são objetos de trabalho dados pela natureza: Assim, por exemplo, o peixe que é pescado, a arvore que é abatida na mata virgem, o mineral que é extraído da terra. Guarda-comida primitivo do homem, a terra é também o primeiro arsenal de seus meios de trabalho. Ela lhe fornece, por exemplo, a pedra que ele emprega na sua

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funda, ou para desgastar, cortar, etc..." (Karl Marx, Capital, tomo I).

A natureza aparece diretamente como um objeto de trabalho em certos ramos da indústria (industria mineira, caça, agricultura em parte, etc...). Em outros termos, é ela que fornece a matéria prima necessária para a fabricação e para uma série de meios de existência. Além disto, como já dissemos, o homem se serve das leis da natureza para lutar contra ela.

"Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas dos corpos para obrigá-los a agir segundo os seus fins como forças que devem influir sobre outros corpos".

O homem explora a força do vapor, da eletricidade, etc... a gravidade etc... etc... Se assim é, é compreensível que o estado da natureza em determinado lugar e em dado momento não pode deixar de influir sobre a sociedade humana. O clima (grau de umidade, regime dos ventos, temperatura, etc...), o relevo do solo (as montanhas e os vales, a distribuição das águas, a natureza dos rios, a existência dos metais, dos minerais, etc..), o litoral (se o país é marítimo), o regime das águas, a existência de certas espécies de animais e de plantas, etc..., eis os principais fatores que influem sobre a sociedade humana. É impossível pescar baleias sobre a terra; é difícil desenvolver convenientemente a agricultura nas montanhas; não se pode explorar as florestas em um deserto; não é possível nos países frios viver durante o inverno debaixo de uma tenda; é inútil aquecer as casas nos países quentes; nos lugares onde o solo não fornece metais, não haverá ferraduras nas patas dos cavalos.

Examinando mais detalhadamente a influência da natureza, chegamos às seguintes observações:

Repartição das terras firmes e dos mares: — O homem, em geral, é um animal terrestre. O mar age de duas maneiras: Em primeiro lugar ele divide. Esta é a razão por que o mar muitas vezes serviu de fronteira natural; por outro lado, em certo grau de evolução, o mar torna-se, ao contrário, a melhor via de comunicação. O litoral influi principalmente pela sua maior ou menor adaptabilidade à formação de portos. A maioria dos portos modernos foram mesmo criados em conformidade com as comodidades naturais do litoral, com poucas exceções (por exemplo, Cherburgo). A superfície da terra, agindo pela sua fauna e pela sua flora, exerce igualmente uma influência direta, se bem que diferente, segundo o grau de desenvolvimento da civilização, principalmente sobre as vias de comunicação (atalhos, caminhos, vias férreas, túneis, etc.).

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As pedras e os minerais: — As construções são elevadas de acordo com a natureza das pedras de que se dispõe: nas montanhas, encontra-se sobretudo a pedra dura (granito, porfiro, basalto, xisto, etc...); nos vales encontra-se sobretudo uma pedra mole. Quanto aos minerais e aos metais, a sua importância aumentou sobretudo nestes últimos tempos (o ferro, o carvão). Certos minerais foram a causa principal das migrações e da colonização (o chumbo atraiu os fenícios para o Norte, o ouro para a África do sul e a Índia oriental; o ouro e a prata atraíram os espanhóis para a America, etc...). É segundo a localização das minas de carvão e de ferro que se repartem os diferentes centros de industria pesada. O caráter do solo determina, antes de tudo, a flora e o clima.

As águas continentais: — Em primeiro lugar a água tem importância como água potável (ver o seu "preço" no deserto); em seguida, ela desempenha um grande papel na agricultura (conforme a sua quantidade, é preciso drenar ou irrigar o solo); sabe-se a grande importância que tem para a agricultura as inundações provocadas pelos grandes rios (Nilo, Ganges etc), e a influência que este fato exerceu sobre a civilização egípcia e hindu. Por outro lado, a água tem uma grande importância como força motriz (os moinhos de água são uma das mais antigas invenções; foi em torno deles que se desenvolveram as cidades; nos tempos modernos a água é usada para a eletrificação como "hulha branca", sobretudo na América, Alemanha, Suíça, Noruega, Suécia e Itália Enfim, é preciso ainda sublinhar o grande papel que representa o sistema de águas como sistema de comunicação (certos sábios dão a isto importância particular).

O clima age sobre os homens principalmente pela influência que exerce, sobre a produção. No domínio da agricultura, é do clima que depende a escolha das culturas; o clima determina também a duração da estação agrícola (assim, por exemplo, na Rússia, a estação de trabalhos agrícolas é muito curta, enquanto que em certos países, mais próximos dos trópicos, ela dura quase o ano inteiro); por isto mesmo, o clima influi também sobre a indústria, liberando a mão de obra, etc. Ele desempenha igualmente um papel muito importante nos transportes (caminhos para os trenós, no inverno, portos fechados ou não para o gelo, rios, etc.).

O clima frio exigem trabalho mais intenso para a alimentação, o vestuário, as habitações, o aquecimento artificial, etc. Passa-se mais tempo dentro de casa no Norte e ao ar livre nos trópicos.

A flora age de diversas maneiras: nos estágios inferiores da civilização, é do caráter das florestas que dependem os caminhos (matas impenetráveis); é a madeira que determina caráter das construções, do aquecimento, etc; a caça

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depende da qualidade das plantas da mata ou da estepe; dela dependem também a agricultura e a criação.

A fauna representava para os povos primitivos uma força inimiga poderosa; em geral, ela constituía para eles uma fonte alimentação e, portanto, um objeto de caça e de pesca; mais tarde, ela determinou a domesticação de animais e exerceu assim uma certa influência sobre a produção e os transportes (animais de tiro).

O mar, como meio de transporte, desempenhou e desempenha ainda um papel importante. O transporte dos viajantes e das mercadorias é mais barato através do mar; além disto, apresenta um largo campo de exploração para um grande número de indústrias (a pesca, a caça às focas, às baleias, etc.) (Ver A. Hettener: Die geographischen Bedingungen der menschlicken Wirtschaft, (As condições geográficas da economia humana), emGrundriss der Socialokonomik, Esquema da economia social, de Gottel-Herkner. Tubingen, 1914).

A influência das condições climatéricas é caracterizada pelo fato seguinte: baseando-nos sobre o estudo da carta das temperaturas anuais, médias (das linhas isotérmicas)(1) "Pode-se observar que as aglomerações humanas mais importantes estão agrupadas entre duas isotérmicas extremas a de + 16.° e a de + 4.°. A isotérmica de + 10° define com exatidão suficiente o eixo central desta zona climatérica e da civilização; é ali que se acham agrupadas as cidades mais ricas e mais povoadas do mundo: Chicago, New York, Filadélfia, Londres, Viena, Odessa, Pequim. Sobre a isotérmica + 16.° se encontram São Luiz, (dos Estados Unidos), Lisboa, Roma, Constantinopla, Osaka, Kyoto, Tókio). Sobre a isotérmica + 4.°; (Quebec, Cristiania, Stokolmo, Leningrad, Moscou). Ao sul da isotérmica + 16.°, a titulo de exceção, acham-se disseminadas algumas cidades cuja população passa de 100.000 homens (México, Nova Orleans, Cairo, Alexandria, Teerã, Calcutá, Bombaim, Madras, Cantão). O limite setentrional ou a isotérmica + 4.°, tem um caráter mais absoluto: Ao norte desta linha não há mais cidades importantes, excetuando Winnipeg (Canadá) e alguns centros administrativos da Sibéria (L. I. Metchnikov: A civilização e os grandes rios históricos, teoria geográfica do desenvolvimento das sociedades modernas).(2)

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§ 31. Relações entre a sociedade e a natureza. Processos de produção e de reprodução

Sabemos já que as causas de mudança de um determinado sistema devem ser procuradas nas relações entre este sistema e o seu meio. Sabemos também que mesmo os traços principais da evolução (o progresso, a estagnação ou a destruição dum sistema) dependem particularmente das relações entre um dado sistema e o seu meio. É portanto nas variações destas relações que se deve procurar a causa que provoca a variação do próprio sistema Mas onde devemos procurar as relações entre a sociedade e a natureza, se estas variam continuamente?

Já vimos que estas relações variáveis provêm do domínio do trabalho social. Com efeito, de que modo se exprime o processo de adaptação da sociedade humana à natureza? Ou em outros termos, em que consiste o estado do equilíbrio instável entre a sociedade e a natureza?

A sociedade humana, enquanto vive, é obrigada a procurar sua energia material no mundo exterior; ela não pode existir de outra maneira. Ela se adapta tanto melhor à natureza quanto mais energia dela retira: é somente quando a quantidade desta energia aumenta que estamos em presença do desenvolvimento de uma sociedade. Admitamos, por exemplo, que num belo dia todas as empresas deixem de funcionar, as fabricas, usinas, minas, vias férreas, o trabalho dos campos e nas florestas, sobre a terra e sobre os mares. A sociedade não poderia durar nem oito dias, porque, mesmo para viver das reservas, é necessário transportar, descarregar, distribuir.

"Toda criança sabe que qualquer nação pereceria de fome, se ela parasse o seu trabalho, já não digo por um ano, mas por algumas semanas apenas. (K. Marx: Carta a Kugelmann).

Os homens trabalham a terra, recolhem o milho, a cevada, o trigo, criam os animais, cultivam o algodão, linho, cânhamo, cortam o mato, tiram a pedra das pedreiras e satisfazem assim as suas necessidades de alimentação, vestuário e habitação. Eles extraem o carvão e o minério de ferro das profundezas da terra, constroem máquinas de aço, com auxilio das quais penetram na natureza em diferentes direções, transformando a terra inteira numa oficina gigantesca, onde os homens malham com martelos, inclinam-se sobre as bancas, cavam a terra, seguem a marcha regular de máquinas monstruosas, cavam túneis nas montanhas, cortam os oceanos com seus navios, transportam a correspondência através dos ares, envolvem a terra com uma rede de trilhos, colocam cabos no fundo dos oceanos, e em toda parte, a

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começar pelas cidades tentaculares, tumultuosas, para acabar nos cantos perdidos de nossa terra, correm atarefados como formigas, trabalhando para o seu "pão quotidiano", adaptam-se à natureza, e adaptam esta ultima a si mesmos. Uma parte da natureza — o meio, — o que aqui chamamos a natureza exterior, — opõe-se a uma outra parte, a sociedade humana. A forma de contacto entre estas duas partes de um mesmo todo é constituída pelo processo do trabalho humano. O trabalho é antes de tudo um processo que tem lugar entre o homem e a natureza, processo no qual o homem determina por sua própria atividade, regra e controle, a troca das matérias entre se mesmo e a natureza. Ele se opõe como força natural à essência da natureza. (O Capital tomo I). O contacto direto entre a sociedade e a natureza, isto é, a transferência de energia da natureza à sociedade, é um processo material.

"Para assimilar nova substancia em forma adaptada à sua própria vida, o homem põe em movimento as forças naturais que pertencem ao seu corpo: as mãos e os pés, a cabeça e os dedos." (ibid.).

Este processo material de "troca das matérias" entre a sociedade e a natureza constitui precisamente a relação essencial entre o meio e o sistema, entre as "condições exteriores" e a sociedade humana.

Para que a sociedade possa continuar a existir, é necessário que o processo da produção se renove constantemente. Suponhamos que, em certo momento, tenha sido produzida uma determinada quantidade de trigo, calçados, caminhos, etc., e que durante o mesmo período tudo isto foi consumido. Está claro que a produção teve que recomeçar um novo ciclo de movimentos. Ela deve renovar-se constantemente, um elo deve seguir-se a outro. O processo da produção, considerado no ponto de vista da repetição destes elos (ou como se diz, dos ciclos de produção), chama-se processo de reprodução. Para que este tenha lugar, é necessário que todas essas condições materiais se realizem. Por exemplo, para produzir tecidos, é preciso ter teares; para fazer os teares, é preciso aço, para o aço é preciso carvão e minério; para transportar estes últimos, são necessárias as vias férreas e, por conseguinte, trilhos, locomotivas, etc., assim como estradas, navios, etc.; são necessárias também as usinas, entrepostos, etc.. Em uma palavra, é necessário toda uma série de produtos materiais de naturezas diferentes. Não é difícil verificar que estes produtos materiais desaparecem no processo da produção, uns mais rapidamente, outros menos: a alimentação dos tecelões é consumida, os teares gastam-se, os edifícios envelhecem e exigem reparações, as locomotivas se estragam, os dormentes e trilhos se deterioram.

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Assim, a substituição contínua, graças à produção dos mais variados objetos, deteriorados ou desaparecidos, é a condição necessária para a reprodução. A cada momento, a sociedade humana, para continuar o processo da reprodução, necessita de uma certa quantidade de alimentos, de edifícios, de produtos da industria, de transportes, etc... Todos estes objetos precisam ser produzidos para que a sociedade mantenha o seu nível de vida, a começar pelo trigo e pela cevada, o carvão e o aço, para acabar pelos microscópios ou o giz empregado nas escolas, pelas encadernações de livros ou pelo papel de jornal, pois todas estas coisas fazem parte da vida material da sociedade, são partes materiais integrantes do processo geral de reprodução.

Assim, "a troca de materiais" entre a sociedade e a natureza deve ser considerada como um processo material. É com efeito um processo material, porque diz respeito a objetos materiais (objetos de trabalho, meios de trabalho e produtos que deles resultam — tudo isto são objetos materiais); por outro lado, o próprio processo de trabalho constitui uma perda de energia fisiológica (dos nervos, músculos, etc...) que aparece materialmente na ação física dos homens que trabalham.

"Se estudarmos todo este processo do ponto de vista de seu resultado, isto é, do produto, então os meios e objetos do trabalho constituirão os meios de produção e o próprio trabalho será um trabalho produtivo" (Capital — tomo 1).

O caráter material do trabalho produtivo é também reconhecido, pudicamente pelos sábios burgueses, quando se dedicam "a uma especialidade". Assim, o professor Herkner (H. Herkner: Arbeit und Arbeitsteilung — Trabalho e Divisão do Trabalho) escreve:

"Se quisermos explicar a essência do trabalho, é preciso tomar em consideração duas espécies de fenômenos: Em primeiro lugar, o trabalho físico se manifesta por determinados movimentos exteriores. Assim, a mão esquerda de um ferreiro segura com tenazes um pedaço de ferro aquecido ao rubro e o coloca sobre a bigorna, enquanto que a mão direita dá uma forma ao objeto do seu trabalho, a golpes de martelo. Pode-se determinar neste caso o número, o aspecto e a grandeza dos resultados do trabalho... Pode-se descrever todo o processo do trabalho", etc...

Herkner chama a isto trabalho "no sentido objetivo". Por outro lado, pode-se estudar o mesmo processo do ponto de vista dos pensamentos e dos

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sentimentos que animam o trabalhador. Isto será o estudo "do trabalho no sentido subjetivo". Como procuramos as relações entre a sociedade e a natureza, e como estas relações se exprimem justamente pelo trabalho objetivo (material), podemos por enquanto deixar de lado a parte "subjetiva" do processo. Assim, precisamos estudar a produção material de todos os elementos materiais (componentes, objetos) necessários para o processo da reprodução.

Entretanto, o fato dos instrumentos de medida, por exemplo, serem objetos materiais e a sua fabricação ser do domínio da produção material, necessária para o processo da reprodução, não resulta daí absolutamente, como o afirma Kautsky (Neue Zeit — 15.° ano, volume 1.°, pag. 233) eCunow (Produktions-weise und Produktionsverhaltnisse nach Marxscher Auffassung O modo de produção e as relações de produção segundo Marx,Neue Zeit, 39.° ano, vol. pag. 408), que as matemáticas e os estudos matemáticos dependem também da produção, porque são necessárias para a produção. E entretanto, se todos os homens emudecessem subitamente, e se não houvesse outras maneiras de comunicar a palavra desaparecida, a produção cessaria também. Assim, a linguagem é tão necessária para a reprodução como muitas outras coisas em qualquer sociedade humana. Mas seria ridículo considerar a linguagem como um elemento de produção. Não temos que nos preocupar aqui tão pouco de uma outra questão, que parece "árdua", saber o que é que apareceu em primeiro lugar: a galinha ou o ovo (a sociedade ou a produção)? Esta pergunta não tem cabimento. É impossível imaginar a sociedade sem produção, como também não se pode falar em produção quando não existe a sociedade. O que importa é isto: será verdade, sim ou não, que a transformação de sistemas seja determinada pela transformação das relações entre elas e o seu meio? Se assim é a questão será a seguinte: onde devemos procurar esta transformação quando se trata da sociedade? Resposta: no trabalho material. Formulada assim a questão, a maior parte das refutações "profundas" ao materialismo histórico perde a sua significação, e torna-se claro que é aqui que é preciso procurar "a causa das causas" da evolução social. Voltaremos a este ponto mais adiante.

"As trocas materiais" entre o homem e a natureza consistem, como já vimos, em tirar energia material da natureza exterior, e infundi-la na sociedade; a perda de energia humana (a produção) provém do fato de retirar-se energia da natureza, energia que deve ser fornecida à sociedade (distribuição dos produtos entre os membros da sociedade) e assimilada por ela (consumo); esta assimilação é a base de uma perda ulterior; é desta maneira que gira a roda da reprodução. O processo da reprodução, tomado no seu conjunto, contêm

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igualmente diversos elementos que constituem um todo, uma unidade, cuja base continua a ser entretanto o processo da produção. Com efeito, é fácil de compreender que a sociedade humana toca de mais perto e de maneira mais direta à natureza exterior, no processo da produção: há um atrito com a natureza justamente por este lado: esta é a razão porque, no processo da reprodução, o lado produtivo determina tanto a distribuição quanto o consumo.

O processo da produção social é a adaptação da sociedade humana à natureza exterior. Mas trata-se de um processo ativo. Quando uma espécie animal qualquer se adapta a natureza, ela se submete, na realidade, à influência do meio. Quando se trata da sociedade humana, ela se adapta ao meio, adaptando-o a si mesma. Ela está submetida à ação da natureza enquanto objeto, mas, ao mesmo tempo, ela própria transforma a natureza em objetos para o seu uso. Assim, por exemplo, quando a coloração de certas espécies de insetos ou pássaros começa a se assemelhar à cor do ambiente no qual vivem estas espécies, isto não é resultado de esforços feitos por estes organismos, nem da ação destas espécies sobre a natureza exterior. Este resultado foi obtido aqui ao preço da perda de uma quantidade imensa de indivíduos durante milênios e graças à sobrevivência de certos indivíduos mais aptos e que se cruzaram constantemente. Os fatos se passam diferentemente na sociedade humana. Ela luta contra a natureza, ela abre sulcos na terra, abre caminhos através das matas impenetráveis, ela domina as forças da natureza, fazendo-as servir para seus próprios fins; ela muda o próprio aspecto da terra. Não é uma adaptação passiva, mas ativa. É nisto sobretudo que a sociedade humana se distingue das outras sociedades animais.

Os fisiocratas (economistas franceses do século XVIII) já o compreenderam perfeitamente. Assim, Nicolas Baudeau (Primeira Introdução à Filosofia Econômica ou Analise dos Estados Policiados, 1767. Coleção dos economistas e dos reformadores sociais da França, publicada por Dubois, Paris, p. 2) diz:

"Todos os animais trabalham diariamente na procura do gozo dos produtos espontâneos da natureza, isto é, dos alimentos que a terra por si mesma lhes fornece. Certas espécies mais industriosas juntam e conservam estes esmos produtos para deles gozarem no futuro... Somente o homem, destinado a estudar os segredos da natureza e de sua fecundidade... se propôs suprir a isto procurando, pelo seu trabalho, produtos mais úteis, em número maior do que aquele que a superfície da terra inculta e selvagem lhe poderia fornecer. Esta arte, mãe de tantas outras

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artes, pela qual nos dispomos, solicitamos, e por assim dizer, forçamos a terra a produzir o que nos convém, isto é, o que é útil ou agradável, é talvez um dos caracteres mais nobres e mais distintos do homem sobre a terra".

"...O homem, escreve o geógrafo L. Metchnikov (o.c), tem em comum com todos os organismos a qualidade preciosa graças à qual ele se adapta ao meio, mas domina todos os outros pela sua aptidão particular e ainda mais preciosa de adaptar o meio às suas necessidades".

Estritamente falando, os germens de uma adaptação ativa (pelo trabalho) existem em certas espécies de animais, por assim dizer, sociáveis (nos castores, que constroem diques, nas formigas que fazem formigueiros gigantescos, utilizam os pulgões e certas plantas, nas abelhas, etc...). Por outro lado, as formas primitivas do trabalho humano eram também semelhantes às do trabalho instintivo dos animais.

§ 32. Forças produtivas. As forças produtivas como índice da relação entre a natureza e a sociedade

Assim, o processo de troca de matérias entre a sociedade e a natureza, é um processo de reprodução social. A sociedade perde neste processo a sua energia humana de trabalho e recebe em troca uma quantidade determinada de energia natural que ela assimila (os "objetos naturais"), como se exprimia Marx. É evidente que o balanço desta operação tem uma importância decisiva para a evolução da sociedade. O que ela recebe é mais do que ela perde? E se é assim, de quanto é maior. Está claro que a grandeza do excesso que ela recebe tem consequências muito importantes.

Vamos supor que uma sociedade qualquer seja obrigada a gastar todo o seu tempo de trabalho para satisfazer as suas necessidades essenciais. Isto significa que à medida que os produtos obtidos são consumidos, uma quantidade igual é fabricada novamente, mas não em número maior. Neste caso, a sociedade não tem o tempo necessário para criar uma quantidade suplementar de produtos, para aumentar as suas necessidades, para criar alguns produtos novos: ela consegue apenas manter o equilíbrio: ela vive para o seu pão de cada dia; ela come aquilo que produz; come-se justamente o necessário para poder trabalhar; todo o tempo é empregado na fabricação de uma quantidade de produtos sempre constante. A sociedade marca passo num nível miserável de vida. Não é possível aumentar as necessidades, vive-se segundo os seus meios, e estes são muito restritos.

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Admitamos agora que, devido a certas causas, a mesma quantidade de produtos necessários seja obtida sem que o tempo de trabalho seja empregado inteiramente; que seja suficiente a metade deste tempo (assim, por exemplo, a tribo primitiva se transportou para um lugar onde a caça é duas vezes mais abundante, e a terra duas vezes mais fértil; ou que o método de trabalhar a terra se modificou, ou que foram inventados novos instrumentos de trabalho, etc. etc.).

Desta maneira, a sociedade tem livre a metade do seu antigo tempo de trabalho. Ela pode empregar este tempo ganho em novos ramos de produção: na fabricação de novos instrumentos, na procura de novas matérias primas, etc. e em seguida, em certos gêneros de trabalhos intelectuais. Assim, novas necessidades podem nascer e desenvolver-se e, pela primeira vez, o aparecimento e desenvolvimento da "cultura" torna-se possível. Se este tempo ganho for empregado para aperfeiçoar, ao menos em parte, as antigas formas de trabalho, empregar-se-á no futuro, para satisfazer as antigas necessidades, não mais a metade do tempo de trabalho, mas um pouco menos (novos aperfeiçoamentos aparecem no processo de trabalho); no ciclo seguinte da reprodução, o tempo de trabalho diminuirá ainda mais, etc.; e o tempo livre assim adquirido será empregado cada vez mais de um lado para a fabricação de instrumentos, utensílios, de máquinas sempre novas, e de outro lado, para a criação de novos ramos de produção, destinados a satisfazer a novas necessidades, e enfim, para o desenvolvimento da cultura a começar pelas categorias desta cultura que são mais ou menos ligadas ao processo da produção.

Vamos supor agora que as necessidades que ocupavam anteriormente a totalidade do tempo de trabalho exigem agora não mais a metade, mas o dobro do tempo de antes (quando, por exemplo, a terra está cansada); é evidente que neste caso, se não for possível modificar os métodos de trabalho, ou emigrar, a sociedade sofrerá forçosamente um recuo; uma parte da sociedade perecerá infalivelmente. Admitamos ainda que uma sociedade muito desenvolvida, tendo uma "cultura" avançada, necessidades muito variadas, um grande número de indústrias "artes e ciências" florescentes encontre obstáculos para satisfazer as suas necessidades; que, por exemplo, como consequência de certas causas, ela não seja mais capaz de dirigir o seu aparelho técnico (ele é, por exemplo, o teatro de uma luta de classe incessante, luta na qual nenhuma classe consegue vencer a outra, e o processo de produção, com toda a sua técnica superior, cessa de funcionar); volta-se então aos velhos métodos de trabalho; seria preciso, para satisfazer as antigas necessidades, perder uma quantidade enorme de tempo, o que é impossível. A produção diminui, volta às suas formas antigas; as necessidades se restringem, o nível de vida baixa; a flor

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"das ciências e das artes" fenece; a vida espiritual se empobrece e a sociedade, se o recuo em questão não é provocado por causas passageiras, caminha para traz, volta "á barbárie".

O que há de notável em todos os casos citados acima? É que o desenvolvimento da sociedade é determinado pelo rendimento ou produtividade do trabalho social. Entende-se por produtividade do trabalho, a relação entre a quantidade de produtos obtidos e a quantidade de trabalho empregada; ou em outros termos, a produtividade do trabalho é a quantidade de produtos obtidos em uma unidade de tempo de trabalho; por exemplo, a quantidade de produtos obtida em um dia ou em uma hora, ou em um ano. Se a quantidade de produtos obtidos em um dia de trabalho aumenta do dobro, diz-se que a produtividade do trabalho dobrou; se ela diminui de metade, diz-se que a produtividade de trabalho diminuiu de 50%.

É fácil de compreender que a produtividade de trabalho social exprime muito exatamente todo o "balanço" das relações entre a sociedade e a natureza. A produtividade do trabalho social constitui precisamente o índice desta relação entre o meio e o sistema, relação que determina a situação do sistema dentro do meio, e cujas transformações indicam as transformações inevitáveis de toda a vida interna da sociedade.

Examinando o problema da produtividade social, é preciso contar também como perda a parte do trabalho humano que foi empregada na confecção de instrumentos de trabalho necessários. Se, por exemplo, um certo produto era feito a mão quase sem auxilio de instrumentos, e se em seguida começou-se a fabricá-lo com a ajuda de máquinas muito complicadas, e se, graças à aplicação destas máquinas, a quantidade de produtos obtida aumentou do dobro, isto não quer dizer que a produtividade do trabalho tenha dobrado para toda a sociedade: não foi contada aqui a despesa de trabalho humano empregado na fabricação das máquinas (ou antes, a parte deste trabalho que se aplica ao produto devido ao gasto destas máquinas.). Assim, o aumento da produção do trabalho será inferior ao dobro.

Detendo-se em detalhes, pode-se refutar a própria concepção da produtividade do trabalho social na sua aplicação a toda sociedade, como o faz, por exemplo, P. P. Maslov no seu "Capitalismo". Pode-se dizer que a concepção da produtividade do trabalho não pode ser aplicada senão a ramos particulares da produção: foi produzida este ano em um certo número de horas de trabalho uma certa quantidade de calçados; no ano seguinte, durante o mesmo tempo, fabricou-se duas vezes mais. Mas, como comparar e adicionar a produtividade do trabalho no domínio da criação de porcos e no da cultura de laranjas? Isto não é o mesmo que comparar a musica, a taxa de desconto e a

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beterraba açucareira, coisa que Marx ridicularizava tão acerbamente? Pode-se entretanto responder com dois argumentos: Em primeiro lugar, todos os produtos úteis e socialmente assimiláveis são comensuráveis enquanto energias úteis; não exprimimos a cevada, o frumento, a beterraba e a batata em calorias? Se não conseguimos ainda exprimir assim praticamente outros objetos, isto nada prova; basta saber que é possível. Por outro lado, podemos comparar os diversos objetos complexos, por meios indiretos e complicados. Não é possível explicá-lo aqui em detalhe. Citemos somente alguns casos mais simples. Se, por exemplo, fabricou-se em certo número de horas de trabalho, no decurso de um ano, mil pares de calçados, dois mil maços de cigarros e vinte máquinas, e em outro ano, durante o mesmo tempo de trabalho, mil pares de meias, mil novecentos e noventa e nove maços de cigarros, vinte e uma máquinas e cem castiçais, podemos dizer, sem errar, que a produtividade do trabalho aumentou, em geral. Pode-se opor ainda um outro argumento, que consiste em dizer que não se produzem somente objetos de uso corrente, mas também instrumentos de produção. Com efeito, do ponto de vista prático, isto constitui uma grande dificuldade: entretanto, por métodos bastantes complicados, podemos igualmente levar em conta este fato.

Assim, as relações entre a natureza e a sociedade se exprimem pela relação entre a quantidade de energia útil criada de um lado, e a despesa de trabalho social de outro, isto é, pela produtividade do trabalho social. Mas, a despesa de trabalho social é, como já vimos, composta de duas partes: o trabalho incluído nos meios de produção e o trabalho "viva", isto é, a despesa de uma força viva de trabalho. Se nós examinarmos o grau de produtividade do trabalho do ponto de vista das partes materiais que o compõem, encontraremos três grandezas: 1ª a massa dos produtos fabricados; 2ª a massa dos meios de produção; 3ª a massa das forças de trabalho, isto é, dos operários vivos. Todas estas grandezas dependem umas das outras. Com efeito, é evidente que se nós conhecemos a qualidade dos meios de trabalho e dos operários, sabemos também quanto eles poderão produzir em determinado tempo; duas grandezas determinam a terceira: o produto. Estas duas grandezas tomadas em conjunto formam o que nós chamamos as forças produtivas materiais da sociedade. Se soubermos quais os meios de produção de que a sociedade dispõe, qual é a sua quantidade, quantos operários tem essa sociedade, saberemos desde logo qual é a produtividade do trabalho social, qual é o grau de dominação desta sociedade sobre a natureza, em que medida esta sociedade domina a natureza, etc... Em outros termos, temos nos meios de produção e nas forças de trabalho um índice preciso do grau de desenvolvimento social.

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Mas podemos estudar a questão de uma maneira um pouco mais profunda. Podemos dizer que os meios de produção determinam por si mesmos as forças de trabalho. Se, por exemplo, uma maquina de composição entrou no sistema de trabalho social, operários especialistas aparecem também. Os elementos que agem no processo do trabalho não constituem, tão pouco, um aglomerado desordenado, mas um sistema onde cada objeto e cada indivíduo se acham, por assim dizer, em seu lugar: uma coisa está adaptada a outra. Por conseguinte, se temos os meios de produção, deduz-se daí que temos também operários apropriados. Em seguida, entre os próprios meios de produção, podem-se distinguir dois grupos importantes: as matérias primas e os instrumentos de trabalho. É fácil observar que são justamente os instrumentos de trabalho que constituem a parte ativa; é com eles que o homem trabalha a matéria prima. Mas, se nos disserem que em determinada sociedade existe um certo instrumento, pode-se daí concluir que existe também a matéria prima correspondente (examinamos um caso de uma marcha normal da reprodução). Deste modo, podemos dizer com absoluta certeza: o índice material preciso das relações entre a sociedade e a natureza é dado pelo sistema dos meios sociais de trabalho, isto é, pela técnica de uma determinada sociedade. Nesta técnica exprimem-se as forças produtivas materiais da sociedade e a produtividade do trabalho social. Assim como a estrutura dos fragmentos de ossos tem grande importância para o estudo da organização das espécies animais desaparecidas, também os fragmentos dos meios de trabalho têm uma grande importância para o estudo das formações sociais e econômicas desaparecidas (isto é, das sociedades de tipos diferentes. N. B.).

"As épocas econômicas não se distinguem pelo que é produzido, mas pelo modo de produção e pelos meios de trabalho empregado". (K. Marx: Capital, tomo I).

Pode-se ainda procurar resolver estes problemas de outra maneira. Sabemos que os animais "se adaptam" à natureza. Em que consiste, antes de tudo, esta adaptação? Na modificação dos diferentes órgãos destes animais: as pernas, os maxilares, as barbatanas, etc..

É uma adaptação passiva, biológica, enquanto que a sociedade humana se adapta ativamente, não biologicamente, mas tecnicamente.

"Os instrumentos de trabalho constituem o objeto ou o conjunto de objetos que um operário coloca entre se e o objeto de seu trabalho e que lhe servem para exercer a sua ação sobre este objeto... Assim, o objeto dado pela própria natureza torna-se um órgão de sua ação, órgão que ajunta aos membros do seu corpo, aumentando

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assim, mau grado a Bíblia, as dimensões naturais deste ultimo". (Capital, t. 1).

É assim que a sociedade humana cria pela sua técnica um sistema artificial de órgãos que exprimem a adaptação direta e ativa da sociedade, à natureza. (Notemos, entre parênteses, que a adaptação física direta do homem à natureza torna-se assim supérflua: comparado a um gorila, o homem é um ser fraco; na sua luta contra a natureza, ele coloca diante de si não os maxilares, mas um sistema de máquinas). Examinando o problema deste ponto de vista, chegamos à mesma conclusão: o sistema técnico da sociedade é o índice material preciso da relação entrega sociedade e a natureza.

Em outro ponto do Capital, diz Marx:

"Darwin despertou o interesse pela história da tecnologia natural, isto é, pela história do desenvolvimento dos órgãos, das plantas e dos animais, órgãos que desempenham o papel de meios de produção para manter a sua existência. A história do desenvolvimento dos órgãos de produção do homem social, destas bases materiais de toda organização social, não merecerá também atenção A tecnologia revela a relação ativa entre o homem e a natureza este processo direto de produção pelo qual ele mantém a sua existência; ao mesmo tempo, ela revela também o modo pelo qual se formam as relações sociais e as concepções intelectual que daí resultam...

"O emprego e a criação de meios de trabalho, se bem que eles sejam comuns em sua forma embrionária a certas espécies animais, constituem especificamente os traços característico do processo do trabalho humano, e esta é a razão por que Franklin definiu o homem como "a toolmaking animal", isto é, como "um animal que fabrica instrumentos". (Capital t. I).

É curioso verificar que os instrumentos primitivos foram, com efeito, criados "à imagem" dos membros do corpo humano.

"Utilizando os objetos que se acham diretamente debaixo da mão, dá-se aos instrumentos primitivos a forma de membros humanos alongados, reforçados e mais precisos." (Ernst Kapp: Grundlinieneiner Philosophie der

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Technik — Esboço de uma Filosofia da Técnica — Braunschweig 1877, p. 42). "Assim como o instrumento contundente tem o seu, modelo no punho, também os instrumentos cortantes derivam das unhas e dos dentes. O martelo, com o seu lado cortante se transforma em machado; o indicador levantado tendo uma unha aguda se transforma na sua imagem técnica em verruma; uma fileira de dentes em lima e serra, enquanto que a mão que aperta e os dois maxilares se transformam em pinças e tenazes. O martelo, o machado, a faca, a tesoura, o virabrequim, a serra, a pinça, são instrumentos primitivos". (Ibid. p. 43-44). Um dedo recurvado torna-se um gancho, a concha da mão um recipiente; encontramos certos traços da mão, do punho, dos dedos, etc, na espada, na lança, no leme, na pá, no ancinho, etc..." (Ibid pag. 45).

É fácil ver como se processa a passagem dos instrumentos simples aos mais complexos na vida primitiva:

"Um pau evolui de varias maneira: para cair pesadamente sobre a cabeça do inimigo ele se transforma em tacape; para cavar a terra e trabalhá-la, em pá; para atravessar a caça, em dardo, etc..." (G. Lilienfeld: Wirtschaft und Technik — A Economia e a Técnica em Grundriss der Socialoekônomik — Esboço de Economia Social, 2ª parte, pag. 228).

As relações existentes entre a técnica e a pretensa "riqueza da cultura" saltam aos olhos. Basta comparar, por exemplo, a China moderna e o Japão. Na China, como consequência de toda uma série de condições particulares, a produtividade trabalho e da técnica social evolui muito lentamente, e a China apresenta no momento o tipo de uma cultura relativamente estacionaria. São os impulsos de uma nova técnica capitalista que exercem aqui uma influência revolucionaria. Pelo contrario, o Japão deu nestas ultimas dezenas de anos um passo gigantesco para a frente no domínio do desenvolvimento técnico; é assim, que a cultura japonesa fez também progressos extremamente rápidos: basta lembrar a ciência japonesa.

Na primeira metade da idade média que, do ponto de vista da cultura geral, era muito inferior à sociedade antiga, a técnica deu um grande passo para traz relativamente à antiguidade e muitos processos e invenções mecânicas da antiguidade foram completamente esquecidos...

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"á exceção da (técnica da guerra e da metalurgia do ferro ligada a esta ultima". (V. K. Agafonov: A Técnica moderna. O balanço da Ciência, tomo 3.°, pag. 16).

Está claro que não se pôde criar uma "riqueza intelectual" sobre uma tal base técnica: a sociedade dispunha de muita pouca seiva para viver "uma vida intensa". O progresso feito pela Europa corresponde ao desenvolvimento da técnica capitalista (entre 1750 e 1850 a técnica sofreu uma verdadeira revolução; inventou-se a maquina a vapor, os transportes a vapor, utilizou-se o carvão, trabalhou-se o ferro por meio de processos mecânicos, etc...). Em seguida aplicou-se a eletricidade, a técnica das turbinas, os motores Diesel, os automóveis, a navegação aérea. Os meios técnicos da sociedade e as suas forças produtivas atingem um nível sem precedentes. Não é de admirar que a sociedade humana tenha podido nestas condições desenvolver "uma vida espiritual" muito complexa e muito variada. Com efeito, se considerarmos o florescimento das antigas culturas com a sua vida espiritual relativamente complexa, veremos imediatamente como era atrasada a sua técnica em comparação com a técnica capitalista da Europa moderna e da America. A principal aplicação dos instrumentos mais ou menos complicados se limitava aos trabalhos de construção, às aduções de água e às minas. A própria obtenção da produção máxima era baseada, não sobre a perfeição dos instrumentos, mas pela aplicação de uma massa colossal de forças vivas de trabalho.

"Herodoto conta como 100.000 homens arrastaram pedras durante três meses para a construção pirâmide de Keops (2.800 A. C.) e como foram necessários 10 anos de trabalhos de aterramento preparatórios para construir uma estrada desde as pedreiras até ao Nilo". Agafonov, o. c. pag. 5).

Vê-se pela definição de maquina que dá Vitruvio, o engenheiro de Roma antiga, a que ponto a técnica era então relativamente pobre:

"a maquina, diz ele, é uma construção em madeira que presta grande serviço para levantar as cargas". (Id. pag. 3). Estas "máquinas em madeira serviam sobretudo para levantar cargas, exigindo aliás o emprego de uma quantidade considerável de forças humanas ou animais".

§ 33. O equilíbrio entre a natureza e a sociedade, suas rupturas e seus restabelecimentos

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Se nós examinarmos agora todo o processo em seu conjunto, veremos que o processo de reprodução é um processo de ruptura e de restabelecimento constante entre a sociedade e a natureza.

Marx distingue a reprodução simples e a reprodução crescente.

Em que consiste a reprodução simples? Como sabemos, no processo de produção, os meios de produção são consumidos (trabalha-se a matéria prima, empregam-se diferentes materiais, tais como óleos lubrificantes, trapos, etc...; as próprias máquinas, as edificações onde se trabalha, os instrumentos de trabalho e as suas peças se desgastam); por outro lado despende-se também a força de trabalho (quando os homens trabalham, eles se desgastam também, a sua força de trabalho é consumida e certas despesas são necessárias para reconstituir esta força). Para que o processo da produção possa continuar, é preciso que no decurso desse processo, e por si mesmo, seja reproduzido aquilo que foi gasto por ele. Assim, por exemplo, emprega-se na indústria têxtil, como matéria prima, o algodão; os teares se gastam. Para que a produção possa continuar, é preciso que, ao mesmo tempo, se colha algodão e se construam teares. — De um lado, o algodão desaparece para se transformar em tecido; de outro lado o tecido desaparece (ele é utilizado pelos operários, etc.) o algodão reaparece. De um lado, os teares desaparecem e reaparecem de outro. Em outros termos, os elementos necessários para a produção, uma vez gastos, devem ser reconstituídos. É preciso que constantemente se possa substituir tudo aquilo que é necessário para produção. Se esta substituição é realizada na mesma proporção em que foi gasta, temos uma reprodução simples. Isto corresponde a uma situação em que a produtividade do trabalho social é invariável; as forças produtivas não mudam, a sociedade não caminha nem para adiante, nem para trás. Não é difícil verificar que estamos aqui em presença de um equilíbrio estável entre a sociedade e a natureza. Aqui, a ruptura de equilíbrio (os produtos desaparecem), e o seu restabelecimento (os produtos reaparecem) se renova constantemente, mas este restabelecimento é sempre feito na mesma base: produz-se justamente tanto quanto foi gasto; gasta-se novamente outro tanto e torna-se a produzir a mesma quantidade, etc... A reprodução se faz sempre com o mesmo ritmo.

As coisas se passam diferentemente quando as forças produtivas aumentam. Então, como vimos acima uma parte do trabalho social se libera e é empregada em alargar a produção social (criam-se novos ramos desenvolvem-se os antigos). Isto significa que não somente os elementos de produção que existiam anteriormente são substituídos, mas que outros elementos novos são introduzidos no ciclo da produção. A produção não segue aqui o mesmo caminho, o mesmo ciclo, mas ela se alarga. Neste caso temos a reprodução

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crescente. É fácil verificar que o equilíbrio aqui se restabelece de maneira diferente: gasta-se uma certa quantidade, mas produz-se mais; o gasto aumenta, a produção aumenta mais ainda. O equilíbrio se restabelece cada vez sobre uma nova base, mais larga. Trata-se de um equilíbrio movei com um resultado positivo.

Enfim, apresenta-se um terceiro caso; o da diminuição das forças produtivas. Aqui, o processo de reprodução caminha para traz: a reprodução torna-se cada vez menor. Consumiu-se uma certa quantidade, produziu-se menos; consome-se menos, produz-se ainda menos.

Aqui, a reprodução não segue o mesmo movimento circular. Ela não se alarga, mas ao contrario, o circulo se torna cada vez mais estreito; a base vital da sociedade se retrai cada vez mais; o equilíbrio entre a sociedade e a natureza se restabelece sobre uma nova base, mas esta diminui constantemente.

Ao mesmo tempo, a própria sociedade não se adapta a esta nova base restringida, senão ao preço de uma destruição parcial de si mesma. Temos aqui um equilíbrio móvel negativo. A reprodução neste caso pode ser denominada reprodução negativa crescente, ou então, sub-produção crescente.

Examinamos esta questão por todas as suas faces, e em toda parte verificamos o mesmo fato. Tudo se reduz, por conseguinte, ao caráter do equilíbrio entre a sociedade e a natureza. As forças produtivas servindo de índice preciso do equilíbrio, podemos julgar, segundo elas, do caráter do equilíbrio. É evidente que o mesmo pode ser dito sobre a técnica da sociedade.

§ 34. As forças produtivas como ponto de partida para a analise sociológica

De tudo o que precede resulta necessariamente a seguinte regra cientifica:

"Para estudar a sociedade, as condições de seu desenvolvimento, suas formas, seu conteúdo, etc, é preciso começar por uma analise das forças produtivas, isto é, da base técnica da sociedade".

Examinemos com efeito alguns argumentos que foram apresentados ou que podem ser apresentados contra este ponto de vista.

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Vamos tomar em primeiro lugar as refutações dos sábios que admitem de uma maneira geral a concepção materialista. Assim, G. Cunow diz(Neue Zeit, 39° ano, vol. 2.°, pag. 350) que a técnica

"está ligada muito intimamente às condições naturais. A presença de certas matérias primas, por exemplo, decide se em princípio certas fôrmas da técnica podem ser criadas e em que condições elas se desenvolverão. Nos lugares, por exemplo, onde certas espécies de arvores, de minérios, de fibras ou de conchas não existem, os indígenas não podem aprender por se mesmos a trabalhar estes materiais e fazer com eles instrumentos e armas".

Nós mesmos citamos, no princípio deste capitulo, alguns fatos que mostram a influência das condições atuais. Por que não começar por eles? Por que motivo o ponto de partida metodológico não será precisamente a natureza. Ela influi incontestavelmente sobre a técnica mais o menos do modo a que se refere Cunow. Por outro lado. todo mundo compreende que a natureza existiu antes da sociedade. Não estaremos nós pecando contra "verdadeiro" materialismo, quando tomamos como base para a analise o aparelho técnico e material da sociedade humana?

Basta, porém, examinar este problema mais de perto para ver a que ponto são pouco convincentes as provas apresentadas por Cunow. Sem minas de carvão, evidentemente, não será possível extrair a hulha do solo. Mas, infelizmente não se extrairá muito mais, se utilizarmos o dedo para cavar a terra. E sobretudo será difícil procurar, pois os homens desconhecem até a sua utilidade. As matérias primas não se encontram, como o pretende Cunow, na natureza. As matérias primas, segundo Marx, são um produto do trabalho e não se encontram no seio da natureza, como também não se encontra um quadro de Rafael ou o colete do sr. Cunow. Cunow confunde as matérias primas com o objeto de trabalho "possível"(3).Cunow esquece completamente que uma técnica apropriada é necessária para que as arvores, o minério, as fibras, etc, possam desempenhar o papel de matérias primas. O carvão não se torna matéria prima senão quando a técnica se desenvolve ao ponto de penetrar nas profundezas do subsolo e o extrair do reino das trevas para o trazer à luz do dia.

A influência da natureza no próprio fornecimento de materiais, etc., é o produto do desenvolvimento da técnica. Com efeito, enquanto a técnica não aproximou s seus tentáculos do minério de ferro, este ultimo podia dormir o seu sono de morte que sua influência sobre o homem era igual a zero.

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A sociedade humana trabalha na natureza e sobre a natureza considerada como seu objeto. Sobre isto não há duvida alguma. Mas os elementos que existem na natureza são nela encontrados de maneira mais ou menos constante; por este motivo eles não podem explicar as transformações. O que varia é a técnica social que, certamente, se adapta a aquilo que existe na natureza (ao nada não podemos adaptar nada, e não basta dispor de um buraco para poder fundir um canhão). Se a técnica constitui a quantidade variável e se é a transformação da técnica que provoca as variações de relações entre a sociedade e a natureza, está claro que é nela que se deve encontrar o ponto de partida da analise das transformações sociais(4).

L. Metchnikov exprime-se desta maneira absurda:

"Estou longe de me associar à teoria do fatalismo geográfico, à qual se reprocha frequentemente o fato de ela pregar o princípio da influência do meio (isto é, da natureza, N. B.) que determina tudo na natureza. Na minha opinião, devem-se procurar as transformações não no próprio meio, mas nas relações que se estabelecem entre o meio e as aptidões naturais dos seus habitantes para a cooperação e para o trabalho social solidário. Assim, o valor histórico de um determinado meio geográfico, admitindo mesmo que do ponto a vista físico, permanece imutável em qualquer circunstancia, pode e deve variar segundo o grau de aptidão de seus habitantes para o trabalho solidário voluntário". (p. 27-28).

Isto não impede, aliás, o mesmo Metchnikov de cair em outro excesso e de superestimar "o fator geográfico". (Ver o relatório de Plekanov em "Critica de nossas criticas"). O caráter passivo da influência da natureza é reconhecido atualmente por quase todos os geógrafos, bem que a multidão dos sábios burgueses não entenda absolutamente nada do que seja materialismo histórico. Assim, Mac Farlane (John Mac Farlane; "Economic Geography" — Geografia Econômica —, Londres, Isaac Pittman & Son), escreve a propósito das "condições naturais da atividade econômica" (cap. 1.°):

"Estas condições físicas... não determinam em um sentido absoluto o caráter da vida econômica, mas exercem sobre ela uma influência que, sem duvida, é mais notável nos períodos primitivos da história humana, mas que não é menos real nas civilizações adiantadas, quando o homem já aprendeu a se adaptar ao seu meio (ambiente) e a receber dele uma quantidade crescente de bens".

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Sabe-se o papel que desempenha o carvão e a que ponto a industria dele depende. Entretanto, com as transformações introduzidas na técnica da extração e da transformação da turfa, a importância da hulha pode diminuir consideravelmente, e este fato acarreta um reagrupamento completo dos centros industriais. Com a eletrificação, é o alumínio, que anteriormente desempenhava um papel insignificante, que adquire uma importância particular. A água, como fonte de força motriz, teve outrora uma importância muito grande (roda d’água), em seguida ela a perdeu, e atualmente volta a recuperá-la (as turbinas, a "hulha branca"). As relações de espaço na natureza permanecem as mesmas, mas as vias de comunicação as encurtam para o homem; com o desenvolvimento da navegação aérea, o quadro mudará ainda mais.

Esta influência dos meios de transporte (grandezas muito variáveis em função da técnica) tem uma importância decisiva, mesmo para a repartição geográfica da industria. Encontram-se considerações muito interessantes, a este respeito, na teoria de A. Werber sobre "a repartição dos centros industriais". (Ver A. Weber: Industrielle Standortslehre e também Ueber die Standorte der Industrien, 1ª parte: Reine Theorie desStandortes, 1909).

Encontramos a expressão poética da dominação crescente do homem sobre a natureza, de sua força ativa, no Prometeu de Goethe:

Zeus, cobre o teu céu Com as nuvens E, semelhante a uma criança Que corta as cabeças

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dos cardos, Diverte-te com os carvalhos e os cumes das montanhas; E, entretanto, tu és obrigado A me deixar a minha terra E a minha choupana, que não construíste, E a minha lareira, Da qual tu invejas 

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O calor.

Assim, está claro que as diferenças nas condições naturais podem explicar as diferenças que existem na evolução dos diferentes povos, mas elas não podem explicar a evolução da mesma sociedade. As diferenças naturais tornam-se em seguida, depois da união destes povos em uma só sociedade, a base da divisão social do trabalho.

"Não é a fecundidade absoluta do solo, mas a sua diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais, que formam a base da divisão social do trabalho e que obrigam o homem, como consequência da variedade das condições naturais que o envolvem, a variar também as suas próprias necessidades, suas aptidões e os meios de produção. (Marx: Capital, tomo 1).

Um outro grupo de argumentos invocados contra a concepção da evolução social exposta acima, é constituído pelos argumentos que indicam a importância essencial e decisiva do acréscimo da população. A tendência à multiplicação é infalivelmente inerente à natureza humana. Ela existiu em nós antes da historia humana. É o único processo natural, animal, biológico que tem existido antes da formação da economia social. Não estará este processo na base de toda evolução? A densidade crescente da população não determinará a marcha da evolução social?

Mas não é difícil verificar que a lei funciona aqui em sentido contrario: é do grau de desenvolvimento das forças produtivas, ou o que vem a dar ao mesmo, é do grau do desenvolvimento da técnica que depende a própria possibilidade do acréscimo da população. O aumento do número de homens (aumento mais ou menos estável) não é outra coisa senão um alargamento, um acréscimo do sistema social. E este acréscimo não é possível senão quando as relações entre a sociedade e a natureza variam de maneira favorável. Um maior número de homens não pode existir sem que a base vital da sociedade se alargue. Ao contrario, o retraimento desta base vital deve trazer fatalmente como consequência uma diminuição do número de homens. Como se produzirá este fato, isso é uma outra questão: será pela baixa da natalidade, ou pela regulamentação da mesma, pela morte, pelo aumento da mortalidade como consequência de moléstias, pelo desgaste prematuro dos organismos e uma diminuição da longevidade? Pouco importa: esta relação essencial entre a base vital da sociedade e a sua grandeza encontrará a sua expressão de uma ou de outra maneira.

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Além disto, é um erro representar o aumento da população como um processo de multiplicação biológica e "natural". Este processo depende das condições sociais as mais variadas: da divisão em classes, da separação destas classes e, por conseguinte, da forma da economia social.

A forma da sociedade, a sua estrutura, dependem por sua vez, como o provaremos adiante, do nível de desenvolvimento da técnica e o movimento da população, isto é, a variação de sua densidade, não é tão simples. Somente os ingênuos podem pensar que o problema da multiplicação é tão simples e primitivo para os homens como para os animais. Assim, por exemplo, para que a população possa aumentar, é preciso sempre, na sociedade humana, que as forças produtivas tenham aumentado. Sem isto, como já vimos, o excedente da população nada teria para comer. Mas, por outro lado, não é sempre para todas as classes que o aumento dos bens materiais provoca uma multiplicação reforçada: enquanto uma família proletária pode diminuir artificialmente o número de seus filhos, por causa das dificuldades da vida, a mulher chique foge da maternidade para não perder a sua elegância e um camponês francês não quer ter mais de dois filhos para não dividir muito a herança. E é assim que o movimento das populações dependem de toda uma série de condições especiais, da forma da sociedade e da situação que as classes e grupos particulares nela ocupam.

Por conseguinte, no que se refere à população, podemos dizer: é indiscutível que o aumento da população pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade; em segundo lugar, cada época, cada forma de sociedade, a situação diferente das classes, determinam leis particulares para os movimentos da população.

"A lei abstrata (universal, independente de um determinada forma, N. B.) que rege a população, não existe senão para as plantas e os animais, senão enquanto o homem não se intromete historicamente neste domínio..." "cada meio de produção histórica e particular tem suas leis que determinam o movimento de população particular e tendo uma significação histórica". (Karl Marx:Capital t. 1).

Os meios históricos de produção, isto é, as formas da sociedade, são determinados pelo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, pelo desenvolvimento da técnica. Assim, não são as leis do movimento da população que constituem o fator decisivo, mas é o desenvolvimento das forças produtivas e as leis que regem este desenvolvimento (ou diminuição), que determinam o movimento da população.

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A burguesia tentou, mais de uma vez, colocar no lugar das leis sociais outras "leis" provando que a miséria das massas, estabelecida por Deus, é inevitável e que esta situação é independente do regime social. É sobre isto que se baseia a superestimação da "geografia" na doutrina do meio, quando se forçam os fenômenos da natureza para explicar os acontecimentos históricos (assim Ernst Miller "provava" que a marcha da história dependia do magnetismo terrestre; Jevons explicava as crises industriais pelas manchas do sol, etc). Entre estas tentativas podemos colocar também a do pastor e economista inglês Robert Malthus, que via a fonte da miséria da classe operária na tendência pecaminosa dos homens em se multiplicarem. A sua "lei abstrata da população" consiste no seguinte: a população aumenta mais depressa do que os meios de subsistência (os meios de subsistência em progressão aritmética, isto é, como 1, 2, 3, 4, 5, etc.; a população em progressão geométrica, isto é, como 2, 4, 8, 16, etc.). As concepções dos sábios burgueses modernos começam a modificar-se radicalmente e a doutrina de Malthus torna-se obsoleta: a causa disto é que em certos países (na França e em outros) a natalidade diminui a tal ponto que começa a faltar soldados para a burguesia, a carne para o canhão, e a burguesia faz todos os esforços para incitar a classe operária e camponesa a procriar o mais possível.

Já os fisiocratas percebiam que o acréscimo da população dependia do desenvolvimento das forças produtivas. Assim, Le Mercier de la Riviére, em "l'Ordre naturele et essenciel des societés politiques", diz em substancia:

"Se os homens se alimentassem somente dos produtos que a terra lhes fornece sem nenhum trabalho preparatório, seria preciso dispor de uma enorme quantidade de terra para aprovisionar um pequeno número de homens; entretanto, sabemos por nossa própria experiência que, graças à ordem física de nossa constituição, temos tendência a nos multiplicar consideravelmente. Esta qualidade natural seria contraditória e marcaria uma desordem na natureza, se a ordem natural da reprodução dos meios de existência não lhe tivesse permitido a multiplicação na mesma escala e nós mesmos nos multiplicássemos".

E diz ainda:

"não temo que venham com argumentos, citando certas populações da América, para me provar que a ordem natural dos nascimentos não torna necessária a cultura. Eu sei que existem povos que não cultivam ou quase não

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cultivam a terra, e apesar do solo e do clima lhes serem igualmente favoráveis eles matam as crianças, estrangulam os velhos, empregam certos medicamentos para impedir o processo natural de nascimentos." (E. Grosse: "Formen der Familie und Formen der menschlichen Wirtschaft". — As formas da família e da economia humana —, 1896).

E diz ainda, entre outras coisas:

"Os Boschimanos e os Australianos têm o habito de usarem a "cinta da fome" por razões muito reais. Os habitantes da Terra do Fogo sofrem constantemente a fome. Nas histórias contadas pelos Esquimós, a fome desempenha também um papel muito importante. É evidente que uma população limitada por uma cultura tão insuficiente, não chegará nunca a formar uma população numerosa... É por esta razão que os caçadores primitivos desvelam-se afim de que o seu número seja proporcional aos seus meios de subsistência. Assim, na Austrália, o infanticídio é muito comum. A grande mortalidade infantil faz o resto".

Sabemos que existem, em algumas populações da Polinésia, leis segundo as quais cada família só tem licença para ter um número restrito de filhos e onde se paga uma multa se este número ultrapassar (P. Mombert: "Wirtschaft und Bevoelkerung" — A economia e a População, — em "Grundriss der Socialoekonomie" — Esquema de economia social, — 2.ª parte). Mombert cita os fatos seguintes: depois de ter descrito o desenvolvimento econômico na época carlovingiana (passagem ao sistema rotativo trienal), diz:

"como consequência do grande desenvolvimento da produção de produtos alimentares, verificamos nessa época um aumento extraordinário na população da Alemanha".

No século XIX, a Europa fez um progresso imenso no domínio da produção agrícola.

"E ao mesmo tempo a população na Europa começou a crescer em tais proporções, que nunca no passado se observou tamanho aumento". (Ib.).

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Em seguida, começa um período em que a produção dos meios de existência diminui. Que resulta daí? A emigração para a America. Na Rússia, observam-se as mesmas leis. (Ver a este respeito os trabalhos do camarada M. N. Pokrovsky).

Enfim, é preciso indicar ainda uma série de argumentos dirigidos contra a teoria do materialismo histórico e especialmente as teorias conhecidas sob o nome "teoria das raças". Vejamos em que consistem: A sociedade é composta de homens, mas os homens entraram na história, nem todos iguais, mas diferentes, tendo crânios, cérebros, pele, cabelos, estrutura física diferentes e por conseguinte tendo aptidões diferentes. É compreensível, portanto, que sejam muitos os que entram na arena da história e poucos os eleitos. Certos povos se revelam "históricos", porque eles assim o são.

Seu nome aparece na boca de todo o mundo; todos os professores das faculdades deles se ocupam; outros, "raças inferiores" por sua própria natureza, são incapazes e nunca puderam fazer nada de extraordinário; os representam como que um zero histórico. Estes povos não merecem o nome de "povos históricos"; eles são quando muito o adubo da história, como, por exemplo os povos coloniais de certos países "selvagens" que preparam o solo para a civilização burguesa européia. É nesta diferença de raças que jaz a causa do desenvolvimento diferente da sociedade. A raça é ponto de partida para o estudo da história. Tal é, em seus traços gerais, a teoria das raças.

A respeito desta teoria, G. Plekanov escreveu com razão o seguinte:

"Quando se propõe a questão de saber qual é a causa de um acontecimento histórico dado, acontece frequentemente que homens sérios, que não são absolutamente tolos, se contentam com resposta que nada resolvem e que não apresentam senão um repetição da pergunta em outros termos. Admitam que se interrogue um "sábio" sobre uma das perguntas acima. Perguntai por que motivo certos povos se desenvolvem com tão espantosa lentidão, enquanto que outros seguem rapidamente o caminho da civilização O "sábio" responde, sem hesitar, que isto se explicar pelas qualidades da raça. É compreensível a significação de uma tal resposta? Certos povos se desenvolvem lentamente, porque a qualidade de sua raça é tal que eles não podem se desenvolver senão lentamente outros, pelo contrario, tornam-se rapidamente civilizados, porque a qualidade de

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sua raça consiste no fato deles se poderem desenvolver rapidamente. (Critica nossas criticas).

A teoria das raças é em primeiro lugar contrária aos fatos. Considera-se a raça negra como uma raça "inferior", incapaz de se desenvolver por sua própria natureza. Entretanto, está provado que os antigos representantes desta raça negra, os Kuchitas, haviam criado uma civilização muito elevada nas Índias (antes hindus) e no Egito. A raça amarela, que não goza tão pouco de grande favor, criou entre os chineses uma cultura que era infinitamente mais elevada que a dos seus contemporâneos brancos; os brancos não eram então senão meninos em relação a eles. Hoje em dia sabemos perfeitamente que a base dos conhecimentos dos antigos gregos lhes foi transmitida pelos Assirios-Babilonicos e Egípcios. Bastam estes fatos para mostrar que as explicações tiradas dos argumentos das raças de nada servem. Entretanto, podem dizer-nos: quem sabe se tendes razão, mas pode-se afirmar que um negro médio é igual, por suas qualidades, a um europeu médio? Não se pode responder a esta pergunta por uma saída virtuosa como o fazem certos professores liberais: todos.os homens são iguais; segundo Kant, a personalidade humana constitui um fim por si mesma; Jesus Cristo ensinava que não havia nem helênicos, nem judeus, etc. (ver por exemplo, em Khvostov: "É provável que a verdade esteja do lado dos defensores da igualdade dos homens... "A teoria do processo histórico"). Pois, tender para a igualdade entre os homens, não significa reconhecer a igualdade de suas qualidades, e aliás, tendemos sempre para aquilo que ainda não existe, pois, e outro modo, arrombaríamos portas abertas. Não procuramos no momento saber para o que devemos tender. O que nos interessa é saber se existe uma diferença entre o nível de cultura dos brancos e dos negros em geral. Certamente, esta diferença existe. Atualmente os "brancos" são superiores aos outros. Mas isto o que prova? Prova que, atualmente, as raças mudaram de posição. E esta conclusão contradiz a teoria das raças. Com efeito, ela reduz tudo às qualidades de raças, à sua "natureza eterna". Se assim fosse, esta "natureza" se teria feito sentir em todos os períodos da história. O que podemos concluir daí? Que a própria "natureza" muda constantemente com relação às condições de existência de uma determinada "raça". Estas condições são determinadas pelas relações entre a sociedade e a natureza, isto é, pelo estado das forças produtivas. Assim, a teoria das raças não explica de nenhum modo as condições de evolução social. Aparece também claramente aqui que é preciso começar a sua analise pelo estudo do movimento das forças produtivas.

A respeito da concepção de raça e da distinção entre as, raças, uma grande variedade de opiniões divide os sábios Topinard (citado por Metchnikov, pag. 40) observa com razão que o termo "raça" é utilizado para fins muito

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secundários: assim, por exemplo, as raças indo-germânica, alemã, eslava, latina e inglesa, bem que estes termos não sirvam senão para definir aglomerações de elementos antropológicos os mais variados. Na Ásia os povos foram misturados tantas vezes e de maneira tão radical, que a raça mais característica para este continente se encontra talvez em algum lugar do outro lado do Pacifico ou perto do circulo Polar. Na África, o mesmo processo se repetiu varias vezes. Na America, onde se passou um fato semelhante já no período histórico, não se encontra mais raças primitivas; mas somente o resultado de cruzamentos e misturas infinitas (Ed. Meyer). Meyer observa muito judiciosamente:

"No que concerne a raça, é certamente possível que o gênero humano tenha aparecido desde o princípio em diferentes variedades ou então se tenha dividido desde o princípio em espécies diferentes; parece-me que sob este aspecto seja difícil exprimir uma opinião fundamentada. Por outro lado, é absolutamente certo que todas as raças humanas se misturaram continuamente... que nunca se pôde, e que é em geral absolutamente impossível, delimitá-las estritamente — o exemplo das populações do vale do Nilo é típico neste ponto — e que o pretendido tipo de raça pura não existe senão nos lugares onde os povos foram isolados artificialmente uns dos outros, graças às condições exteriores, como se verifica, por exemplo, na Nova-Guiné e na Austrália. Entretanto, nada justifica a suposição de que nos achamos aqui em presença de um estado natural e primitivo do gênero humano; é muito mais provável que esta homogeneidade seja, pelo contrario, o resultado de um isolamento" (Ib.).

O professor R. Michels ("Wirtschaft und Rasse", — A economia e a raça — em "Grundriss der Socialoekonomie", cita toda uma série de exemplos muito interessantes que mostram a variabilidade das pretendidas qualidades de raça no domínio do trabalho. Por exemplo

"a resistência dos trabalhadores chineses é extraordinária e os torna aptos a carregar pesadas cargas. É por isto que utilizam tanto os "coolies chineses". Entretanto, está claro que as "cargas" que são colocadas nas costas dos coolies são determinadas ainda pelo seu estado de escravidão semi-colonial. Consideram-se os negros como maus trabalhadores, e entretanto existe um ditado francês: "trabalhei como um negro". Os negros tornavam-se raramente patrões, mas eles foram boicotados pelos brancos, etc... Ainda há

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alguns exemplos interessantes tirados do domínio das "diferenças nacionais": "Quando se começou a construir na Alemanha as primeiras vias férreas, um autor alemão advertia que de direito os caminhos de ferro não apresentavam nenhum interesse para o caráter nacional alemão, porquanto este ultimo baseava-se, felizmente, sobre o princípio do "festina lente" (apressa-te devagar). Para se servir das estradas de ferro, é preciso um outro povo, uma outra vida, um outro gênero de pensamento.Kant reprochava aos italianos as suas tendências estreitamente praticas e o estado florescente de seus bancos. Agora é preciso procurar alhures a fonte deste fenômeno, etc... Michels chega a esta conclusão perfeitamente justa:

"O grau de capacidade econômica de um povo corresponde ao grau de civilização técnica, intelectual e moral que ele atingiu no momento em que o julgamos".

O maior número de absurdos foi dito pelos partidários da teoria das raças durante a guerra, que eles quiseram também explicar pela luta das raças, bem que a inépcia destas explicações fosse evidente para qualquer homem de espírito são. (Os sérvios aliados aos japoneses guerreavam contra os búlgaros: os ingleses com os russos contra os alemães, etc...). O representante mais autorizado da teoria das raças, na sociologia, é Gumplowicz.

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Capítulo VI - O Equilíbrio Entre os Elementos da Sociedade

§ 35. Laços que unem os diversos fenômenos sociais. Como deve ser colocada a questão

Estudamos acima o problema do equilíbrio entre a sociedade e a natureza. Vimos que esse equilíbrio é rompido e restabelecido constantemente, que havia uma contradição constantemente sobrepujada e que aparecia novamente para ser combatida e que nisto reside a causa essencial do desenvolvimento ou da decadência social. É necessário agora olhar de perto, por assim dizer, "a vida interior" da sociedade.

Quando formulamos perguntas sobre o grau de desenvolvimento social, recebemos muitas vezes respostas como estas: "O grau de desenvolvimento cultural é determinado pela quantidade de sabão que a sociedade emprega"; outros medem a sua altura pelo desenvolvimento da instrução, outros ainda pela quantidade de jornais publicados, alguns pelo desenvolvimento da técnica ou então da ciência, etc. Um professor alemão, Schulze-Gavernitz, no seu livro "A grande indústria têxtil na Rússia", estabeleceu como princípio que o grau de cultura é caracterizado pelo estado das latrinas. Assim, desde estas até às obras mais sublimes do espírito humano, tudo é tomado como padrão para medir o grau de desenvolvimento social.

Quem está com a razão? Qual das medidas é a verdadeira? E por que são dadas tantas respostas disparatadas â mesma questão?

Se examinarmos um pouco mais de perto as respostas acima, verificaremos com facilidade que cada uma delas é mais ou menos justa. O uso do sabão não aumenta com efeito com o desenvolvimento da "cultura e da civilização"? O número de jornais não cresce? A técnica ou a ciência não fazem progressos? Certamente que sim. Que conclusão podemos tirar daí? A de que os fenômenos sociais, em cada momento dado, estão ligados uns aos outros. De que maneira, isto é outra questão, e nós vamos estudá-la. Mas os laços que existem entre eles são indubitáveis, Eis a razão pela qual cada uma das respostas que mencionamos era justa.

Do mesmo modo que a idade do homem pode ser definida aproximadamente, seja segundo a composição ou a resistência de seus ossos, seja segundo a sua fisionomia (matiz, rugas, sistema nervoso, etc.), seja segundo o caráter de seus pensamentos, seja conforme a sua linguagem, assim também podemos julgar o grau de desenvolvimento social segundo diferentes sinais, uns estando ligados aos outros. Se nos mostrassem belas

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obras de arte, se nos explicassem sistemas científicos complicados, poderíamos dizer que uns e outros não podem aparecer senão numa sociedade desenvolvida. O mesmo diríamos, si tivéssemos descoberto uma técnica rica e complexa. Nos dois casos, teríamos razão.

Este laço, esta interdependência dos fenômenos sociais os mais diversos, salta aos olhos. Basta formular uma série de perguntas para disto nos convencermos. Seria possível, por exemplo, que aparecesse, há 100 anos, uma poesia futurista? Certamente que não. Ou que os esquimós perdidos nas geleiras inventem o telégrafo sem fios? Ou ainda, que a ciência contemporânea preveja o futuro pelas estrelas? Ou, enfim, que o marxismo tenha aparecido na idade média? Evidentemente, tudo isto é impossível. O futurismo não pôde existir há 100 anos, porque a vida nessa época era mais calma, mais igual; e o futurismo nasceu sobre o calçamento das grandes cidades com o barulho e o movimento» no momento das paradas militares e da decadência da cultura burguesa. É a poesia do "jazz-band" universal, poesia que não teria podido aparecer há 100 anos, como um cardo não poderia crescer sobre um teto recentemente pintado. Os esquimós, no meio do gelo, não poderiam inventar o telégrafo sem fio, pois não são capazes de manejar nem o telégrafo comum. A ciência contemporânea não perderá o seu tempo com infantilidades tais como as profecias feitas pela consulta das estrelas, pois que a ciência atingiu o nível bastante elevado para afastar estas bobagens. O marxismo não poderia ter aparecido na idade média, porque o proletariado não existia ainda e porque a teoria marxista não dispunha assim de uma base natural. Por outro lado, por exemplo, a alta técnica, o proletariado, a enorme quantidade de jornais, o reclame colossal dos "trustes", o futurismo, os aeroplanos, a teoria dos elétrons, os dividendos de Rockfeller, as greves de mineiros, os partidos comunistas, a Sociedade das Nações, a Terceira Internacional, a eletrificação, os exércitos compostos de milhões de homens, Lloyd George, Lenine, etc.... tudo isto são fenômenos do mesmo tempo, da mesma época, como o poder do papa, uma técnica relativamente pobre, a servidão, a ciência dos padres (escolástica), a procura da pedra filosofal (graças à qual pode-se transformar qualquer matéria em ouro), a Inquisição, as más estradas, os reis iletrados, a comuna de vila, as feiticeiras e as corporações de ofícios, uma má língua latina (falada e escrita pelos sábios), os cavaleiros andantes, etc., representam os fenômenos de uma mesma época (a idade média). Não se pode transplantar Lenine, Lloyd George e Krupp para a idade-média. Também não se pode ver hoje em dia, na praça Vermelha, em Moscou, um torneio de cavaleiros, em luta de morte, pelo sorriso de uma dama. "Outros tempos, outras canções", "outros tempos, outros costumes".

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Assim, não se pode duvidar que existem laços entre os fenômenos sociais, uns estando "adaptados" aos outros. Em outros termos, existe um certo equilíbrio no interior da sociedade entre os seus elementos, entre as partes que a compõem, entre as diferentes espécies de fenômenos sociais.

Augusto Comte já havia observado que os diferentes aspectos da vida social concordam uns com os outros em cada momento dado (é o que denominamos "concensus"). O mesmo fato é acentuado com maior vigor por Muller-Lyer (Die Phasen der Kultur, p. 334 — As fases da cultura):

"Na realidade não importa que função sociológica, não importa que fenômeno cultural pode ser tomado como escala para medir a altura atingida pela cultura, por exemplo: a arte, a ciência, a moral, a economia, a organização do Estado, a liberdade individual, a filosofia, a situação social da mulher, etc.. incluindo o uso do sabão. Seria perfeitamente diferente saber qual a escala escolhida, se todos os fenômenos da civilização se desenvolvessem com um paralelismo rigoroso e perfeitamente proporcionados uns com os outros."

Um dos escritores mais modernos da burguesia alemã, acachapada pelos acontecimentos, O. Spengler (Der Untergang des Abendlandes — O declínio do ocidente — tomo 1. p. 8) escreve:

"Quem não ignora que existe um liame estreito entre a forma antiquada de "polis" (polis: estado, cidade da antiga Grécia, N. B.) e a geometria euclidiana, entre a perspectiva na pintura a óleo da Europa ocidental e a conquista do espaço pelas vias férreas, entre os telefones e os canhões de longo alcance, entre os contrapontos da musica instrumental e o sistema econômico de credito?"

Os exemplos de Spengler podem ser discutidos, mas não é possível negar a idéia segundo a qual os mais variados fenômenos sociais estão ligados entre si.

§ 36. Coisas, pessoas, idéias

Definimos mais acima a sociedade como um agregado humano. Entretanto, num sentido mais largo, as coisas também fazem parte da sociedade. Tomemos, por exemplo, a sociedade atual. Todas essas massas de pedra das cidades, as construções gigantescas, as estradas de ferro, os

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portos, as máquinas, as casas, etc., tudo isto constitui os "órgãos" materiais e técnicos da sociedade.

Uma maquina fora da sociedade humana perde toda a sua significação como maquina: ela se torna simplesmente um objeto exterior, uma combinação de partes de aço, de madeira, etc., e nada mais. Admitamos que um transatlântico gigantesco tenha ido a pique; quando esse monstro, com os seus poderosos motores que fazem vibrar o seu corpo de aço, com seus milhares de instrumentos, de utensílios, a começar pelos panos de cozinha e a terminar pela estação radiotelegráfica, jaz como um peso morto no fundo dos mares, toda a sua construção complicada perde sua importância social. As conchas incrustam-se nos seus flancos, as algas marinhas cobrirão as partes de madeira, os caranguejos habitarão as cabinas, etc.; o vapor deixa de ser um vapor, pois ele perdeu a sua existência social, ele saiu da sociedade, ele deixou de ser uma de suas partes integrantes, ele interrompeu o seu serviço social e de um objeto social se tornou simplesmente uma coisa, como qualquer objeto da natureza exterior que não importa diretamente à sociedade humana. A técnica não se compõe somente de partes da natureza exterior, é o prolongamento dos órgãos da sociedade, é a técnica social. Assim, podemos falar de sociedade em um sentido mais largo que o emprestado até agora a esta palavra. E então os objetos nela entrarão na sua "existência social", isto é, antes de tudo no sistema técnico da sociedade. É isto que constitui a parte material da sociedade, seu aparelho material de trabalho. Estritamente falando, as coisas não se limitam somente aos meios de produção; elas podem não ter senão uma relação muito afastada com a produção (se não tomarmos em consideração que elas próprias são às vezes o resultado da produção material); tais são, por exemplo, os livros, as cartas, os gráficos, os museus, as galerias de quadros, as bibliotecas, os observatórios astronômicos e meteorológicos, (trata-se sempre da sua parte material), os laboratórios, os instrumentos de medida, os telescópios e microscópios, as retortas, etc., etc. Todos estes objetos não tocam diretamente o processo da produção material e, por conseguinte, não fazem parte da técnica especial, do conjunto das forças produtivas materiais. Apesar disso, é fácil compreender o seu papel; eles não são tão pouco simples pedaços da natureza exterior, eles têm também a sua "existência social", eles entram também, por conseguinte, na concepção de sociedade, compreendida no seu sentido mais lato, ao qual nos referimos acima.

Vimos, no capítulo IV, que a sociedade representa um sistema de homens reunidos. Vemos agora que as coisas também fazem parte desse sistema. Entretanto, no sentido mais estreito da palavra, compreende-se, sob o nome de sociedade, os homens e não uma simples reunião de homens, mas um sistema

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unido. Estudamos estes homens a princípio como corpos materiais que trabalham. Explicamos assim que a sociedade é antes de tudo uma organização de trabalho, um sistema de trabalho, um aparelho de trabalho humano. Mas sabemos muito bem que os homens não são simplesmente corpos físicos; eles pensam, sentem, desejam, propõem-se fins, e trocam continuamente suas idéias e seus desejos. Às relações entre os homens não são somente relações materiais de trabalho; são também relações psíquicas, "espirituais"; e a sociedade não produz somente objetos materiais; ela produz também "valores espirituais": a ciência, a arte, etc., em outros termos, ela não produz somente coisas, mas também idéias. E estas ultimas, uma vez produzidas, compõem em conjunto sistemas inteiros de idéias. Temos assim na sociedade elementos de três ordens diferentes: coisas, homens e idéias. Certamente, seria absurdo pensar que estes elementos são completamente independentes; todo mundo compreende que sem homens não haveria idéias, que as idéias vivem somente nos homens e não nadam no espaço como o óleo sobre a água. Mas não se segue daí que não possamos distingui-las. É também evidente que deve existir, entre todos estes elementos, um certo equilíbrio. Pode-se dizer mais ou menos que a sociedade não poderia existir se a ordem das coisas, a ordem dos homens e a ordem das idéias não correspondessem umas às outras. Mas é preciso, certamente, prová-lo de maneira muito mais detalhada. Compreenderemos também, então, o laço que existe entre os fenômenos, laço que salta aos olhos e ao qual nos referimos no parágrafo precedente.

§ 37. A técnica social e a estrutura econômica da sociedade

Já provamos anteriormente que para estudar os fenômenos sociais é preciso partir do exame das forças produtivas materiais e sociais, da técnica social, do sistema dos instrumentos de trabalho. E preciso agora que acrescentemos algumas explicações ao que já foi dito acima. Quando falamos de técnica social, é preciso compreender com isto não um instrumento qualquer, nem um amontoado de diversos instrumentos, mas um sistema destes instrumentos, o seu conjunto, no seio da sociedade. É preciso que nos representemos que, em uma dada sociedade, se acham dispersos em lugares diferentes, mas numa certa ordem, ofícios e motores, instrumentos e aparelhos, utensílios simples e complicados. Em alguns lugares, estão concentrados em grandes massas (por exemplo nos centros de grande indústria), em outros lugares, outros instrumentos estão dispersos. Mas, a cada momento dado, os homens estando unidos pelo laço de trabalho, tendo formado uma sociedade, todos os instrumentos de trabalho, grandes e pequenos, simples e complicados, manuais e mecânicos, em uma palavra, todos os que existem em uma sociedade dada e em dado momento, são na

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realidade ligados entre si. (há certamente sempre um tipo de instrumento que domina, máquinas e aparelhos complicados, na hora atual; anteriormente eram utensílios movidos à mão; com o tempo a importância dos aparelhos e das máquinas que funcionam automaticamente aumenta ainda mais). Em outras palavras, podemos considerar a técnica social como um todo, sendo que cada parte, em determinado momento, é socialmente necessária. No que consiste esse fato? Por que podemos nós considerar a técnica social como um todo? Como se exprime esta unidade de todas as partes do sistema técnico da sociedade?

Afim de compreendermos este fato o mais claramente possível, vamos supor que um belo dia, na Alemanha contemporânea, por exemplo, tivessem milagrosamente desaparecido todas as máquinas que servem para a extração do carvão. O que aconteceria? Todo mundo o compreenderá: quase toda indústria cessaria de funcionar de um dia para outro. Não haveria combustível para as fabricas e as usinas; todas as máquinas e todos os instrumentos nestas usinas parariam, isto é, seriam eliminados do processo da produção. A técnica de uma indústria teria influído assim sobre a técnica de quase todas as outras indústrias. E isto significa que todas as "técnicas" dos ramos de produção particulares formam objetivamente, na realidade, não somente no nosso pensamento, mas um todo, uma técnica social única. A técnica social, como já dissemos, não apresenta um amontoado de instrumentos de trabalhos particulares, mas o seu sistema unido. Isto significa que todas as partes desse sistema dependem de cada uma delas. Isso significa também que, em cada momento dado, as diferentes partes dessa técnica são unidas em uma certa proporção, em uma relação definida. Se em uma fabrica é preciso haver um certo número de fusos para um certo número de teares, um certo número de operários, etc., em toda sociedade, quando a reprodução social caminha normalmente, a uma certa quantidade de fôrmas corresponde um número determinado de máquinas e de utensílios mecânicos, uma quantidade definida de meios de produção, tanto na indústria metalúrgica como na indústria têxtil, química ou qualquer outra. Certamente, as relações não são aqui tão preciosas como em uma fabrica tomada separadamente; entretanto, entre o "sistema técnico" dos diferentes ramos de produção existe uma certa relação necessária que se estabelece em uma sociedade desorganizada de maneira elementar e conscientemente na sociedade organizada, mas que existe sempre. Não é possível, por exemplo, que existam em uma fabrica dez vezes mais fusos do que os necessários. Mas é também impossível que a produção de carvão seja dez vezes maior do que é preciso, e que haja dez vezes mais máquinas e instalações servindo para extrair o carvão do que o necessário para alimentar os outros ramos de indústria. Do mesmo modo que existe um laço determinado, uma relação definida entre os diferentes ramos de produção,

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também há um laço determinado e uma relação definida entre as diferentes partes da técnica social. É este fato que transforma a simples soma de máquinas, de utensílios e de instrumentos em um sistema de técnica social.

Uma vez compreendido isto, compreender-se-á igualmente que cada sistema dado de técnica social determina também o sistema de relação de trabalho entre os homens.

Com efeito, será possível que o sistema técnico da sociedade, a estrutura do seu aparelhamento, sejam de uma espécie e as relações entre os homens de outra? Será possível, por exemplo, que o sistema técnico social seja a técnica mecânica e que as relações de trabalho de produção sejam as dos artesãos que trabalham a mão? É evidente que isto é impossível. Se a sociedade existe, é preciso que haja um equilíbrio definido entre a sua técnica e a sua economia, isto é, entre o conjunto de seus instrumentos de trabalho e a sua organização de trabalho, entre o seu aparelho material de produção e o seu aparelho produtivo humano.

Tomemos um exemplo. Comparemos a "sociedade antiga" com a sociedade capitalista moderna. Comecemos pela técnica. A. Neuburger ("Die Technik des Altertums". — A técnica da antiguidade — Voiglanders Verlag. Leipzig, 1919), que é antes inclinado a exagerar do que a diminuir a importância da técnica antiga, escreve:

"Aristóteles, nos seus "Problemas da Mecânica", nos dá toda uma lista de instrumentos auxiliares (técnicos) empregados pelos antigos. Entre estes instrumentos, ele cita a alavanca com contrapeso, as balanças de braços iguais, o balouço, as tenazes, a cunha, o machado, o cabrestante, a roda, a polia, a funda, o leme, assim como as rodas de cobre e de ferro com diferentes planos de rotação e que não eram provavelmente senão rodas dentadas" (p. 206).

São os meios técnicos mais elementares que são denominados "máquinas simples" (alavanca, plano inclinado, cunha, etc...). Está claro que esses instrumentos não nos levarão longe. O mesmo acontece com a trabalho dos metais. Está claro que é somente a ossatura metálica das forças produtivas que cria a princípio uma base solida para o seu desenvolvimento; entretanto, é o ouro que é trabalhado em primeiro lugar; a maior parte do metal é utilizado em geral para fabricar objetos que não servem para a produção. Somente a arte do ferreiro apresenta uma exceção, produzindo instrumentos bastante primitivos, graças ao emprego do martelo, da bigorna, das pinças, das tenazes,

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da lima e de outros instrumentos simples (fabricavam-se sobretudo machados, martelos, picaretas, ferraduras, pregos, correntes, forquilhas, pás, colheres, etc.). A fundição servia sobretudo para fazer estatuas e outros objetos improdutivos. Não é sem razão que Vitruvio definia, como vimos, a maquina: "Um aparelho de madeira".

"Durante séculos inteiros, a técnica permaneceu cristalizada no mesmo nível", diz Salvioli (Der Kapitalismus im Altertum — O capitalismo na antiguidade), entendendo-se naturalmente por estas palavras, não uma estagnação absoluta, mas um desenvolvimento relativamente lento da técnica antiga.

A técnica deste gênero determinava por si mesma o tipo do operário, as suas qualidades de trabalho, assim como as relações de trabalho e as relações de produção.

O tipo do operário, em presença de uma nova técnica, não podia ser senão o do artesão. Os ferreiros, carpinteiros, canteiros, tecelões, joalheiros, mineiros, albardeiros, torneiros, seleiros, oleiros, tintureiros, vidreiros, curtidores, serralheiros, etc., constituíam o tipo de operário produtor (Gustave Glotz: "Le travail dans la Gréce ancienne", Felix Alcan, 1920, p. 265-276; Paul Louis: "Le travail dans le monde romain" 912, p. 234-244). Assim a técnica social determinava a qualidade da maquina viva de trabalho, isto é, o tipo de operário e suas "qualidades" de trabalho. Mas a mesma técnica determinava também as relações entre os trabalhadores. Com efeito, pelo fato mesmo de vermos aqui espécies determinadas de trabalhadores, aparece claramente que estamos em presença de uma divisão da produção em uma série de ramos e em cada um deles executa-se somente uma espécie de trabalho. É a divisão do trabalho.

Que é que determinava esta divisão de trabalho? Evidentemente, os instrumentos apropriados de trabalho que existiam. Mas a forma desta divisão de trabalho era igualmente determinada.

"A divisão do trabalho, diz em resumo Glotz, não permitia que se chegasse aos mesmos resultados que nas sociedades modernas, pois não era uma função do maquinismo. Ela não indicava o regime das grandes usinas, mas uma indústria pequena e média...". "A grande produção era desconhecida no mundo antigo; ele nunca saiu dos limites do oficio" (Salvioli).

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Vejamos ainda uma forma de relações de trabalho e de produção, que se apóia também sobre a técnica. Mesmo quando se trata de um trabalho gigantesco, ele é muitas vezes executado pela organização de oficio. Também, por ocasião da construção de um aqueduto em Roma, o Governo fez um contrato com 3.000 (!) mestres pedreiros; eles mesmos trabalharam com os seus escravos (ib., p. 139). Por outro lado, quando a produção era relativamente grande, ela não pôde existir em presença de semelhante técnica senão graças ao emprego de uma força extra econômica: era o caso do trabalho dos escravos, dos quais exércitos inteiros eram trazidos depois de cada guerra vitoriosa, vendidos no mercado, e enchiam os domínios e as oficinas "ergastula". Com outra técnica, o trabalho dos escravos seria impossível; os escravos estragam as máquinas complicadas e o seu trabalho não apresenta nenhuma vantagem. Assim, mesmo um fenômeno tal como o do trabalho dos escravos importados se explica, em condições históricas dadas, pela presença de certos instrumentos de trabalho social. Examinemos ainda um outro problema. Como se sabe, apesar do desenvolvimento bastante considerável das relações comerciais capitalistas, a economia do mundo antigo era em geral uma economia natural. Os homens não se achavam em relações econômicas estreitas: as trocas eram muito menos desenvolvidas do que hoje em dia; um grande número de produtos era fabricado nos grandes domínios (latifundia), nas suas oficinas publicas e para o seu próprio uso. Tudo isto representa igualmente um regime de trabalho determinado, um gênero particular de relações de produção. E isto ainda se explica pelo fraco desenvolvimento das forças produtivas, pela fraqueza da técnica. A produção, com uma técnica semelhante, não podia atirar sobre o mercado um grande excesso de produtos. Em uma palavra, vemos que as relações entre os homens, no processo do trabalho, são determinadas pelo nível do desenvolvimento técnico: a economia antiga está por assim dizer adaptada à técnica antiga.

Comparemos agora com ela a sociedade capitalista, e em primeiro lugar a sua técnica. Para dela termos um apanhado geral, basta lançar um golpe de vista sobre a lista de certos ramos de produção. Não encaramos senão dois grupos: a construção de máquinas, de instrumentos e de aparelhos de um lado, e a indústria eletrotécnica de outro. Vejamos o quadro que obtemos:

I. Construção de máquinas, de instrumentos e de aparelhos.

a) máquinas geradoras de força.1. Locomotivas.2. Locomoveis.3. Outras máquinas geradoras.

b) máquinas de emprego geral.

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1. Máquinas-utensílios para o trabalho dos metais, da madeira, da pedra e de outros materiais. 2- Bombas. 3- Aparelhos de elevação e de transporte4.Outras máquinas.

c) máquinas especializadas.1. Teares.2. máquinas agrícolas.3. máquinas especiais para a extração de matérias primas.4. máquinas especiais para a fabricação de armas e munições.5. máquinas especiais para as indústrias de arte e de luxo.6. Construções de máquinas variadas.

d) Oficinas para reparações de máquinas.e) Caldeiras e aparelhos diversos.

1. Caldeiras a vapor.2. Caldeiras, aparelhos e material para certos ramos especiais de indústria (excluindo as máquinas simples).

f) Utensílios para máquinas, peças sobressalentes.

1. Utensílios para máquinas.2. Peças sobressalentes.

g) Construção de moinhos. h) Construção de navios e máquinas para navios. i) Construção de aeronaves e aeroplanos.j) Aparelhos de proteção contra gazes,k) Fabricação de meios de transporte.

1. Bicicletas e suas peças sobressalentes.2. Motores.3. Construção de vagões de estrada de ferro.4. Construção de carros.5. Fabricação de outros meios de transporte, exceto os transportes aéreos e marítimos.

l) Fabricação de relógios e peças sobres alentes.m) Fabricação de instrumentos de musica.n) Instrumentos de ótica e aparelhos de precisão, assim como as preparações microscópicas e zoológicas.

1. Construção de instrumentos de ótica, aparelhos de precisão e aparelhos fotográficos.

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2. Construção de instrumentos e aparelhos de cirurgia.3. Fabricação de aparelhos zoológicos e microscópicos.

o) Fabricação de lâmpadas e quebra-luzes (excetuando as lâmpadas elétricas).

II. indústria eletrotécnica. Fabricação de:a) Dínamos e motores elétricos.b) Acumuladores e elementos.c) Cabos e fios isolados.d) Aparelhos de medidas elétricas.e) Aparelhos elétricos e de material acessório.f) Lâmpadas elétricas e projetores.g) Aparelhos médicos.h) Aparelhos de corrente fraca. i) Isoladores elétricos. j) Aparelhos elétricos para grandes estabelecimentos. k) Oficina de reparação de instrumentos elétricos diversos.

(Rudolph Meerwarth "Einleitung in die Wir-tschaftstatistik". — Introdução à estatística econômica. — Jena, Gustav Fischer, 1920. p. 43-44).

Basta comparar esta lista com as "máquinas" às quais se refere Aristóteles e Vitruvio, para compreender a diferença enorme que existe entre a técnica da sociedade antiga e da sociedade capitalista. Do mesmo modo que a técnica antiga determinava a economia do mundo antigo, assim também a técnica capitalista determina a economia moderna, a economia do regime capitalista. Se fosse possível fazer o recenseamento da população da Roma antiga, e a de Berlim ou de Londres hoje em dia, e dividir esta população de acordo com as profissões e ofícios, veríamos nitidamente o abismo profundo que nos separa da "antiguidade". Temos hoje em dia operários que dependem da técnica mecânica e que não existiam então. Invés de artesãos (de "fabri ferrarii" quaisquer), encontramos entre nós eletrotécnicos, montadores, mecânicos, caldeireiros, torneiros, óticos, tipógrafos, litógrafos "chaufeurs", ferroviários, condutores de martelos-pilões, de ceifadeiras e combinados agrícolas, de tratores a vapor, engenheiros eletrotécnicos, químicos, linotipistas, etc., etc. Tais operários não existiam nem mesmo de nome, pois não existiam nem os ramos de indústria nem os instrumentos de trabalho correspondentes. Mas, mesmo se passarmos aos operários que têm o mesmo nome e trabalham em uma especialidade já existente anteriormente, não se tratará mais dos mesmos operários. Com efeito, o que há de comum entre um tecelão moderno que trabalha em uma grande usina têxtil e um artesão ou escravo da Grécia ou da antiga Roma? Tratava-se de um homem

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completamente diferente, que se sentiria em uma usina têxtil moderna como Júlio César se sentiria em um vagão da estrada de ferro subterrânea de Nova-York. Dispomos de outras forças operárias para um outro gênero de trabalho. Nossas forças de trabalho constituem produtos de outra técnica, à qual elas estão adaptadas.

Observamos mais acima que existe atualmente uma quantidade considerável de ramos de indústria que outrora eram desconhecidos. Isto significa antes de tudo que existe na sociedade capitalista uma divisão diferente do trabalho social. Ora, a divisão de trabalho social representa uma das condições essenciais da produção. Qual é a base da divisão de trabalho moderno? Vê-se imediatamente que ela se baseia nos instrumentos modernos de trabalho, no caráter, aspecto, e reunião das máquinas e dos instrumentos, isto é, sobre a técnica da sociedade capitalista. Vejamos um pouco qual é o aspecto que toma uma empresa moderna. Não é uma pequena unidade de produção, não é um oficio de artesão, nem tampouco uma oficina domestica de um grande proprietário de terras. Trata-se de uma organização pujante, na qual entram milhares de homens colocados numa certa ordem, em pontos determinados e executando um trabalho estritamente determinado. Tomemos por exemplo uma empresa capitalista modelo como a fabrica de automóveis Ford em Detroit (Estados Unidos); o seu aspecto especifico nos saltará imediatamente aos olhos: uma exata divisão de trabalho, seu caráter mecânico, o automatismo das máquinas, e o controle exercido pelos operários, uma série lógica de operações, etc. Sobre plataformas em movimento são colocadas peças do produto. Os operários de diferentes gêneros e diferentemente qualificados, de pé perto de suas máquinas e de suas ferramentas, "operam" sobre os produtos semi-trabalhados que se encontram sobre a plataforma. Toda a marcha do trabalho é calculada com a aproximação de um segundo. Cada movimento do operário é previsto, assim como o movimento de seu pé ou de sua mão, ou cada inclinação de seu corpo. O "pessoal" segue a marcha geral do trabalho, tudo se baseia no relógio, no cronometro. Esta divisão de trabalho e sua "organização cientifica" são feitas segundo o sistema Taylor e uma usina destas, se examinarmos a sua estrutura humana, isto é, as relações entre os homens, constitui também ela própria uma relação de produção. O que determina a colocação dos homens? O que determina as suas relações mutuas? A técnica, o sistema de máquinas e suas combinações, a organização do aparelhamento material da usina.

"Deve-se considerar o desenvolvimento da técnica moderna como o fator mais decisivo da organização do trabalho... Não há somente uma maquina na usina. As máquinas são divididas em grupos. Elas se ligam umas às

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outras, seja pelo seu tipo, seja pelas operações a executar. A passagem do trabalho de um estágio para outro, os transportes no interior da usina... se apresentam aos olhos dos diretores técnicos como uma grandeza que é preciso calcular e delimitar. O plano de trabalho, a distribuição dos lugares ocupados pelos operários, o transporte, são assim regulamentados, automatizados, normalizados... transformando-se pouco a pouco em uma maquina de precisão que garante o controle do trabalho da empresa... No sistema geral desse movimento de coisas, o movimento dos homens e a ação que exercem sobre outros homens aparecem frequentemente como fatores determinantes... O sistema de organização cientifica nasceu" (A. Gastef: Nos taches. Organisation de travail. Revue de Tlnstitute de Travail", n.° 1, 1921 — Nossas tarefas. Organização do trabalho. Revista do Instituto do Trabalho. —).

Para tomarmos conhecimento dos diferentes gêneros de usinas metalúrgicas, vamos enumerar algumas indústrias russas, indústrias mecânicas e elétricas, forjas, fundições, fabricas de caldeiras, laminadores, fornos Martin, fornos Seemens, usinas de produtos químicos, usinas de construção, fabricas de cadinhos, fabricas de carretas, etc. Nas usinas Putilof, em 1914-1916, eram encontradas as seguintes categorias de operários: serralheiros, ajustadores, torneiros de madeira, torneiros de metais, fundidores, furadores, forjadores, chaufeurs, laminadores, mecânicos, marceneiros, carpinteiros, tapeceiros, pintores, homens, mulheres, etc. ("La Revue Métallurgiste" 1917). Vários nomes mostram que certas especialidades estão ligadas a determinados instrumentos, máquinas, ferramentas. As combinações determinadas destes instrumentos de trabalho, à sua repartição na empresa, corresponde também a colocação dos homens. Esta ultima é determinada pela primeira.

Assim, na grande indústria, as relações de produção são determinadas pela técnica. E do mesmo modo que a técnica da Grécia e de Roma antigas decorria das relações de produção correspondentes à pequena e média produção, assim também as relações da grande produção decorrem da técnica moderna. Entre a técnica social e a economia social, existe também um equilíbrio relativo.

Enfim, vimos que o atraso da técnica da sociedade antiga trazia consigo a fraca intensidade das trocas: ela dava à economia um caráter natural: os laços

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entre as diferentes economias eram muito frouxos. Isto determina também relações de produção bem determinadas. Pelo contrario, a técnica capitalista moderna permite atirar sobre o mercado enormes massas de produtos. Por outro lado, a divisão do trabalho tem como consequência o fato de toda a produção se fazer para o mercado: o fabricante não usa ele próprio os milhões de suspensórios que a sua usina fabrica! Assim, as relações de produção, no que diz respeito à circulação de mercadorias, são também uma consequência da técnica correspondente.

Examinamos a questão sob vários pontos de vista: 1.°) do ponto de vista das forças de trabalho; 2.° do ponto de vista da produção, isto é, vimos em que medida e em que proporção os homens estão organizados nas diferentes empresas; 3.°) procuramos as relações existentes entre essas empresas. E em toda parte, baseando-nos no exemplo de duas economias diferentes (antiga e moderna), chegamos à conclusão de que sempre as combinações de instrumentos de trabalho e a técnica social determinam as combinações e as relações dos homens, isto é, a economia social. Entretanto, isto não representa ainda senão um aspecto, uma parte das reações existentes na produção. É preciso agora que estudemos um outro problema muito vasto e absolutamente essencial: o das classes sociais. Falaremos disto adiante em detalhe, mas examiná-la-emos aqui do ponto de vista das condições da produção.

Quando examinamos as relações entre os homens no processo da produção, encontramos quase sempre (com exceção do por assim dizer comunismo primitivo) que os homens se agrupam de maneira a que um agrupamento não esteja ao lado, mas sim acima de outro. Vejamos as relações que existem no regime da "servidão": no alto estão os proprietários, abaixo os intendentes, gerentes, os empregados, mais baixo ainda os camponeses. Tomemos as relações que existem na produção capitalista. Aqui também, vemos que no processo do trabalho os homens não se dividem somente em fundidores, montadores, ferroviários, etc., que, apesar da variedade de suas ocupações, trabalham entretanto da mesma maneira e estão colocados no mesmo nível da produção, mas que, aqui também, um grupo de homens se acha no processo do trabalho acima de outro: os empregados acima dos operários (o pessoal técnico médio: contra-mestres, engenheiros, agrônomos, técnicos); acima dos empregados médios,estão os empregados superiores (administradores, diretores); mais acima ainda os pretendidos proprietários das empresas, os capitalistas, os grandes chefes e os grandes mestres do processo da produção. Tomemos enfim um grande domínio de um rico proprietário romano: existe aqui toda uma hierarquia; bem em baixo os escravos, os "instrumentos falantes", "instrumenta vocalia", como os denominam os romanos, para distingui-los dos "instrumentos semi-falantes",

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isto é, do gado e dos instrumentos mudos" isto é, das coisas; depois dos escravos vêem os fiscais, etc., em seguida os intendentes, por fim o proprietário do domínio e sua honrada família (a mulher habitualmente à frente de certos trabalhos domésticos). É preciso ser cego para não ver que estamos aqui em presença de tipos diferentes de relações entre os homens que trabalham. Todas as pessoas indicadas acima participam de uma ou de outra maneira no processo do trabalho e se encontram assim em determinadas relações umas com as outras. É preciso dividi-las em diferentes grupos: seja de acordo com a sua especialidade e profissão, seja conforme a sua classe. Quando nós dividimos segundo a profissão ou especialidade, temos os forjadores, serralheiros, torneiros, etc., em seguida, engenheiros químicos, engenheiros mecânicos, engenheiros especialistas em caldeiras, na tecelagem ou nos locomóveis, etc. Entretanto, está claro que um serralheiro, um torneiro, um mecânico constituem uma certa categoria, enquanto que um engenheiro, um agrônomo, etc., constituem outra, e o capitalista que dispõe de tudo é coisa muito diferente. Não se pode pôr todos esses homens no mesmo nível. É fácil verificar que, apesar das diferenças que separam o trabalho de um serralheiro, de um torneiro ou de um tipografo, as relações entre eles no processo geral do trabalho são do mesmo gênero e que as existentes entre um serralheiro e um capitalista são de um gênero absolutamente diferente. há uma coisa ainda mais evidente: um serralheiro, um torneiro, um tipografo, todos em conjunto e cada um separadamente, têm as mesmas relações com todos os engenheiros e as mesmas, bem que ainda mais afastadas, com os gerentes superiores, mestres da produção, "capitães de indústria" capitalistas.

É aqui que vemos as maiores diferenças entre os papéis, a importância, os tipos, o caráter das relações entre os homens: o capitalista coloca os operários na usina da mesma forma pela qual ele coloca as ferramentas; os operários de modo algum "colocam" o capitalista (enquanto se trata do regime capitalista, bem entendido): são eles que são "colocados" pelos capitalistas. Vemos aqui as relações de dominação à submissão "Herrschafts und Knechtsehaftsverhalfhiss", como diz Marx, "o comandante do capital", (Kommando des Kapitals). É este papel completamente diferente que os homens desempenham no processo da produção que constitui a base da divisão dos homens em diversas classes sociais. Convém chamar a atenção sobre um fato muito importante. Sabemos já por tudo o que precede que o processo de repartição faz também parte do processo de reprodução social. O processo de repartição constitui, por assim dizer, o reverso do processo de reprodução social. O que é o processo de repartição, considerado mais de perto? E de que modo está ele ligado ao processo de produção?

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Marx escreve a este respeito ("Introduction à une critique de l'economie politique" — Introdução a uma critica da economia política):

"A repartição, no sentido vulgar, apresenta-se como repartição dos produtos; mais ainda, como alguma coisa afastada da produção e independente em relação a ela. Mas antes de se tornar a repartição dos produtos, ela é antes de tudo uma repartição de instrumentos de produção e é em segundo lugar, — o que constitui a definição seguinte da mesma relação, a repartição dos membros da sociedade entre os diferentes ramos da produção (submissão coletiva dos indivíduos às relações que existem na produção). A repartição dos produtos é evidentemente o resultado da repartição que faz ela própria parte do processo de produção e que determina a composição da produção. Estudar a produção sem tomar em consideração a repartição que dela faz parte, não é senão um trabalho abstrato; pelo contrario, ao mesmo tempo em que se dá esta repartição, que constitui um elemento da produção, dá-se também a repartição dos produtos".

É preciso analisar esta proposição de Marx.

Vemos antes de tudo que o processo de produção determina por si mesmo o processo de repartição dos produtos. Se, por exemplo, a produção se faz em explorações particulares e independentes (por empresas capitalistas particulares ou por artesãos isolados), então, em cada exploração, não se produz mais tudo de que necessita esta, mas um artigo especial (em uma relógios, em outras pão, etc.); está claro que a repartição dos produtos se fará por meio da troca. Os homens que fabricam fechaduras não podem com elas vestir-se ou come-las. Os homens que fazem o pão, não podem com ele fechar os armazéns de farinha; eles necessitam de fechaduras e de chaves. Forçosamente, eles trocarão os seus produtos, farão comércio. Assim, a distribuição dos produtos fabricados pelos homens que vivem em sociedade se dará por via da troca. Da maneira por que se produz, decorre o modo pelo qual se repartem os produtos. A repartição dos produtos não é uma coisa independente do próprio produto, ao contrario, ela é determinada por ele e constitui com ele uma parte da reprodução material da sociedade.

Entretanto, a própria produção implica duas outras espécies de repartição: em 1.° lugar, a repartição dos homens, o lugar que ocupam no processo da produção, conforme os papéis variados que desempenham no processo da

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produção (é disto sobretudo que falamos no parágrafo precedente); em segundo lugar, a repartição de instrumentos de produção entre esses homens. Essas duas espécies de divisões fazem parte da produção. Com efeito, tomemos os nossos exemplos que precedem, os exemplos referentes à sociedade capitalista. Ali vemos uma "repartição dos homens". Esses homens "repartidos", isto é, colocados na produção de maneira determinada, dividem-se, como já vimos, em classes, e a base desta divisão é determinada pelo papel que eles desempenham no processo da produção. Vejamos isto mais de perto. A esta "repartição dos homens", aos diferentes papéis que esses homens desempenham na produção, está ligada igualmente a repartição dos meios de trabalho. O capitalista, o grande proprietário de terras, tem à sua disposição os meios de trabalho (a fabrica e as máquinas, o domínio e as oficinas de trabalho, a terra, as edificações), enquanto que um operário não possui nenhum meio de produção, exceto a sua força de trabalho; o escravo, não pode nem sequer dispor de seu próprio corpo, e o servo não se distingue muito do escravo. Vemos assim que os diferentes papéis das classes na produção se baseiam na repartição entre eles dos meios de produção. No jornal londrino'"Le Peuple" (ns. 6|20, 20 de Agosto de 1859), referindo-se ao livro de Marx: "Contribution a la critique de l'economie politique", Engels escrevia:

"A economia política não fala das coisas, mas de relações entre os homens, e em ultima analise, de relações entre as classes e essas relações são sempre ligadas às coisas e se apresentam como coisas".

O que isto significa? Vamos explicá-lo com alguns exemplos: tomemos as relações habituais entre as classes duma sociedade capitalista, relações entre os capitalistas e os operários. A que "coisa" estão elas ligadas? Aquela que se encontra entre as mãos dos capitalistas, aos meios de produção dos quais dispõem os capitalistas e que os operários não possuem. Estes meios de produção servem aos capitalistas de instrumento para tirar lucro, instrumento de exploração da classe operaria. Não são simplesmente coisas, mas coisas tomadas na sua significação social particular. Em que sentido? No sentido de que eles são não somente um meio de produção, mas também um meio de exploração dos operários assalariados. Em outros termos essa "coisa" exprime as relações entre as classes ou, como diz Engels, as relações entre as classes estão ligadas às coisas. No nosso exemplo, essa "coisa" é o capital.

Assim, a forma particular das relações de produção, forma que consiste em relações entre as classes, é determinada pelos diferentes papéis que esses grupos de homens desempenham no processo de produção e pela repartição

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entre eles dos produtos. A repartição dos produtos está ali inteiramente contida.

Por que motivo percebe o capitalista lucro? Porque ele possui os meios de produção, porque ele é capitalista.

As relações de produção entre as classes, isto é, as relações ligadas aos diferentes modos de repartição dos meios de produção, têm uma importância capital para a sociedade. São elas que determinam antes de tudo o aspecto dessa sociedade, sua estrutura ou, como dizia Marx, sua estrutura econômica.

As relações de produção, como se vê agora, são extremamente variadas e complexas. Se nos lembrarmos ainda que consideramos a repartição dos produtos como uma parte da reprodução, compreenderemos facilmente que as relações entre os homens no processo da repartição fazem parte das relações de produção. As relações entre os homens na nossa sociedade complexa são numerosas. As relações entre os comerciantes, banqueiros, empregados, corretores, varejistas, operários, consumidores, vendedores, caixeiros-viajantes, vendedores ambulantes, fabricantes, armadores, marítimos, engenheiros, contra-mestres, etc., são todas elas relações de produção. Na vida real, elas se emaranham nas combinações mais variadas e estranhas; elas formam desenhos complicados. Entre esses desenhos há um essencial e de particular importância, a saber, a relação existente entre os grandes agrupamentos de homens, agrupamentos estes que são denominados classes sociais. Dos gêneros das classes existentes, das relações entre essas classes, do papel que elas desempenham na produção, da maneira por que são distribuídos os instrumentos de trabalho, — de tudo isso depende também o caráter da sociedade que temos diante de nós: os capitalistas no alto, o operário assalariado em baixo, — eis aí a sociedade capitalista; o grande proprietário de terras no alto, dispondo de todas as coisas e de todos os homens integralmente, — eis o regime das escravidão; no alto os operários dirigindo tudo, é o regime da ditadura do proletariado, etc. Quando as classes não existem, isto não significa que a sociedade desapareceu. Isto significa simplesmente que a sociedade de classe não existe mais. Tal é, por exemplo, a sociedade comunista primitiva; tal será também a sociedade comunista do futuro.

Temos agora um outro problema a resolver. Vimos anteriormente que as relações de produção variam com a técnica social. Esta proposição será aplicável às relações de produção que são ao mesmo tempo as relações entre as classes? Basta lançar um golpe de vista sobre a marcha efetiva da evolução de não importa que sociedade, para que nos convençamos imediatamente de que essa proposição é justa. Assim, as enormes mudanças entre as classes se

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produziram sob as vistas da geração atual. Apenas há algumas dezenas de anos a classe dos artesãos independentes era ainda muito numerosa. Ela principiou a fundir-se muito rapidamente. Por que? A técnica mecânica desenvolveu-se e, com ela, a grande indústria, o sistema das fabricas. E, ao mesmo tempo, o proletariado por sua vez aumentou; é assim que a grande burguesia industrial se desenvolveu e os ofícios desapareceram pouco a pouco. O agrupamento das classes tornou-se outro. E não pode ser de outro modo. Com efeito, quando a técnica varia, a repartição do trabalho na sociedade varia por sua vez, certas funções na produção desaparecem ou se tornam menos importantes, outras aparecem e assim por diante. Ao mesmo tempo, o agrupamento das classes também muda. Quando forças produtivas da sociedade estão pouco desenvolvidas, a indústria é muito fraca, e a economia social tem um caráter agrário, rural.

Nada de admirar que, em semelhante sociedade, sejam os campos que dominem, e que à frente da sociedade se encontre a classe dos grandes proprietários de terras. Ao contrario, quando as forças de produção constituem na sociedade uma grandeza já bastante desenvolvida, vemos então uma indústria pujante, cidades, vilas industriais, etc.. Mas por isto mesmo são as classes urbanas que adquirem uma influência preponderante. Os nobres passam ao segundo plano, cedendo o lugar à burguesia industrial ou a outras frações da burguesia. O proletariado torna-se uma potência. É natural que o reagrupamento continuo das classes pode mudar completamente a forma da sociedade. Isto acontece quando a classe que estava em baixo sobe para o poder. De que maneira isto se produz? Falaremos a este respeito no capítulo seguinte. No momento basta dizer que as relações entre as classes que constituem a parte mais importante das relações de produção, variam também elas relativamente à variação das forças produtivas.

"Segundo o caráter dos meios de produção, variam igualmente as relações sociais entre os produtores, as condições de sua colaboração, assim como a sua participação na marcha da produção. A invenção de um instrumento de guerra novo, a arma de fogo, por exemplo, muda forçosamente toda a organização interna do exército, assim como as relações mutuas que ligam as pessoas que fazem parte do exército e graça às quais ele representa um conjunto organizado; enfim as relações mutuas entre os exércitos por sua vez também variaram. As relações sociais entre os produtores as relações sociais da produção variam por conseguinte com a transformação e desenvolvimento dos meios materiais de

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produção, isto é, com o desenvolvimento das forças produtivas" (K. Marx, "Capital et Salariat").

Em outros termos:

"A organização de cada sociedade é determinada pelo estado de suas forças produtivas. Com a variação desse estado se transforma forçosamente também, cedo ou tarde, a organização social. Por conseguinte, ela se acha em estado de equilíbrio instável sempre que sobem (ou baixam, N. B.) as forças produtivas sociais". (G. Plekanov: "La conception materialiste de l'histoire. Critique de nos critiques").

O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou por outra, os seus meios de produção. Este é o aparelho do trabalho humano da sociedade, a sua "base real".

Se examinarmos as relações de produção, nós as levaremos para o terreno da repartição dos homens no espaço. Como se exprime essa relação? Pelo fato de cada homem, como já vimos, ter o seu lugar determinado como um parafuso num mecanismo de relojoaria. É precisamente esta situação determinada no espaço, "sobre o campo de trabalho", que faz dessa "repartição", dessa "colocação", uma relação de trabalho social. Cada coisa, evidentemente, se encontra no espaço e se move. Mas os homens estão ligados aqui precisamente, por assim dizer, pelas posições determinadas de trabalho que eles ocupam. É uma relação de ordem material, semelhante ô das parcelas de um mecanismo de relojoaria. É preciso não esquecer que as criticas ao materialismo histórico confundem constantemente essas noções, aproveitando-se do fato da palavra "material" ter varias significações. Assim, por exemplo, eles "levam" o processo histórico às "necessidades" ou aos "interesses" materiais e triunfam facilmente do materialismo histórico, provando com justeza que o "interesse" não é de modo algum uma coisa material, no sentido filosófico da palavra, mas aparentemente qualquer coisa de psíquico. E, com efeito, o interesse não é de modo algum a matéria. Mas o que é uma desgraça, é que certos "partidários" do materialismo histórico (que consideram Marx como um filósofo burguês qualquer e que não estão de acordo com o materialismo filosófico) confundem também facilmente as coisas. Assim, por exemplo, Max Adler, que concilia Marx com Kant, vê na sociedade um conjunto de ações mutuas psíquicas: tudo para ele é psíquico (nota-se a mesma coisa em A. A. Bogdanov: "Contribuition à la psychologie de la societé" — Contribuição à psicologia da sociedade). Vejamos um espécime de raciocínio deste gênero;

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"Mas a relação não é de modo algum uma coisa material no sentido filosófico do materialismo que coloca na mesma categoria a matéria e a substancia animada. Em geral é difícil colocar "a estrutura econômica", "base material" do materialismo histórico, numa relação qualquer com a "matéria" do materialismo filosófico, qualquer que seja o sentido que lhe dermos... E isto concerne não somente ao que exerce a ação, mas também ao que é criado por esta ação. Os meios de produção... são antes produtos do espírito humano..." (Max Zetterbaum: "Contribuição à concepção materialista da história", na coleção intitulada: "O Materialismo Histórico". Edição do Soviet de Moscou, 1919.)

M. Zetterbaum desnorteia-se pelo fato das máquinas não serem feitas por homens desprovidos de alma. Mas como os próprios homens não são tampouco feitos por mortos, segue-se que tudo na sociedade é o produto do espírito desprovido de corpo, de um espírito benfazejo. Por conseguinte, a maquina é alguma coisa de psíquica; por conseguinte a sociedade não dispõe de nenhuma "matéria". E entretanto percebe-se que a coisa não é exatamente assim. Com efeito, mesmo o espírito mais puro não poderia ter criado nem os homens, nem as máquinas sem a carne pecadora. E mais ainda, sem essa carne pecadora, ele não teria ardido de desejo de fazer coisas semelhantes. Mas o que fazer da "relação"? Explicá-lo-emos ainda uma vez ao Sr. Zetterbaum. Esperamos que o Sr. Zetterbaum não protestará se falarmos do sistema solar como sendo um sistema material. Mas o que é esse sistema e porque é ele um sistema? Por uma razão muito simples, a saber que suas partes integrantes (o sol, a terra e todos os outros planetas) se acham em relações definidas uns com os outros, pois ocupam a cada momento dado um lugar determinado no espaço. E do mesmo modo pelo qual o conjunto dos planetas que estão em relações definidas entre si forma o sistema solar, assim também o conjunto dos homens ligados pelas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, sua base material, seu aparelho humano. Encontramos também emKautsky, que confunde sem razão a técnica e a economia, passagens muito duvidosas (por exemplo na pagina 104 da obra mencionada acima). A estas afirmações podemos opor a seguinte passagem do escritor arquiburguês W. Sombart. Vejamos o que diz este sábio muito pouco materialista:

"se nos servirmos de imagem, podemos falar da vida econômica como de um organismo e emitir uma proposição segundo a qual este ultimo é composto de um

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corpo e de uma alma. O corpo determina a forma exterior, na qual se desenvolve a vida econômica: as formas econômicas e produtivas, as organizações múltiplas, no meio das quais e por causa delas se dirigem a "vida econômica", etc... Está claro que é preciso em primeiro lugar colocar na rubrica da forma e da organização econômica toda a estrutura econômica da sociedade. É ela que constitui, se nos exprimirmos por imagens, o corpo dessa sociedade. (Werner Sombart: "Der Bourgeois". Edição Duncker und Humblot, Munich e Leipzig, 1913, p. 2).

§ 38. A superestrutura e suas formas

É necessário que procedamos agora ao exame das outras faces da vida social. Temos diante de nós as seguintes séries de fenômenos sociais: a estrutura política e econômica da sociedade (organização de seu poder político, de suas classes, dos partidos, etc.), os costumes, leis e a moral (as normas sociais, isto é, a regra de conduta dos homens); a ciência e a filosofia; a religião, a arte, e enfim a linguagem — meio de comunicação entre os homens. Denominam-se em geral todos esses fenômenos, com exceção da estrutura política e social da sociedade, "cultura espiritual".

A palavra "cultura", de origem latina, supõe a ação de "cultivar". A cultura indica por conseguinte tudo o que é "obra da atividade humana", no sentido lato da palavra, isto é, tudo o que é produzido de uma maneira ou de outra pelo homem social. "A cultura espiritual" é também um produto da vida social: ela é feita pelo processo vital geral da sociedade. Assim, para compreende-la, é preciso apresentá-la justamente como uma parte integrante desse processo vital geral. E entretanto, certos sábios burgueses desejam, custe o que custar, destacar essa "cultura espiritual" do processo vital da sociedade, isto é, divinizá-la na realidade, fazer dela uma entidade particular, independente do corpo e do espírito sem pecado. Assim, por exemplo, Alfred Weber ("La notion sociologique de la culture. Discussion au II éme. Congrés Sociologique Allemand". Tubingem. Edição Mohr, 1913), que denomina o crescimento da vida social, sua complexidade e suas riquezas, processo da civilização exterior, escreve:

"Mas nós sentimos (!) agora que a cultura está acima de tudo isto, que nós compreendemos sob o nome de evolução da cultura alguma coisa muito diferente... Não é senão quando... a vida se torna alguma coisa que se

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coloca acima das necessidades e da utilidade, que nós estamos em presença de uma cultura" (XXX p. 10-11).

Em outros termos, a cultura é uma parte da vida, mas ela não é determinada pelas "necessidades e utilidades da vida", isto é, ela provém da sociedade sem ser determinada por ela. É evidente que uma tal concepção conduz ao divorcio com a ciência e à sua substituição pela fé. Isto explica porque Weber emprega o termo "nós sentimos".

Para passar a essa cultura "espiritual", é mais cômodo examinar em primeiro lugar os traços mais gerais da estrutura político-social da sociedade, esta ultima sendo determinada diretamente, como veremos adiante, pela sua estrutura econômica.

A expressão mais patente da estrutura político-social da sociedade é o poder de Estado. O que é o poder de Estado? Para responder a esta pergunta, é preciso primeiro perguntar: como é possível a existência de uma sociedade de classes? Pois se a sociedade é composta de classes diferentes, essas classes têm também interesses diferentes. Uns possuem tudo, os outros quase nada. Uns ordenam, comandam, apropriam-se dos frutos do trabalho alheio; outros obedecem, executam ordens, entregam os frutos de seu próprio trabalho. A posição das classes na produção e na repartição, isto é, as suas condições de existência, o seu papel na sociedade, a sua "existência social", determinam também uma certa consciência. Sabemos que tudo no mundo é determinado por alguma coisa, que nada existe sem causa. Não é de admirar que as dificuldades da situação das classes determinam também uma diferença nos seus interesses, nos seus desejos, assim como também a luta entre elas, luta às vezes de morte. Nestas condições, como pode ser atingido o equilíbrio na estrutura de uma sociedade de classes? Como acontece que não haja uma ruptura a cada instante? Como é possível a existência de uma sociedade na qual, como dizia um homem publico inglês, existem, no meio de uma nação, na realidade duas nações (isto é, duas classes).

Sabemos, entretanto, que a sociedade de classes existe e por conseguinte deve haver uma condição de equilíbrio suplementar. É preciso que exista alguma coisa desempenhando o papel de um laço que mantém as classes, não deixando a sociedade quebrar-se, cair aos pedaços. Este laço, é o Estado. É uma organização que entrava com seus inúmeros fios toda a sociedade e a mantém na sua rede. Mas qual é essa organização? Donde provém? Pois certamente ela não caiu do céu. Ela não pode ser uma organização sem classe, os homens não pertencendo a uma classe para construir uma organização fora das classes ou bem "acima das classes" apesar do que dizem

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os sábios burgueses, A organização do Estado é "essencialmente a organização de uma classe dominante".

Formulemos agora a seguinte pergunta: qual é a classe que "domina"? De que classe é o poder do Estado o instrumento, este poder que obriga as outras classes à obediência pelo constrangimento, pelas cadeias ideológicas e espirituais seu aparelho imenso dividido em múltiplos ramos? Não será difícil responder a essa pergunta, se nos lembrarmos de tudo o que foi dito anteriormente. Representemo-nos, com efeito, a sociedade capitalista. É a classe dos capitalistas que domina aqui a produção. Será possível que o proletariado, por exemplo, domine no Estado de uma maneira durável? Não, certamente. Pois então uma das condições essenciais de equilíbrio viria a faltar e se produziria uma ou outra das seguintes alternativas: ou bem o proletariado tomaria igualmente em mãos o poder sobre a produção, ou bem a burguesia retomaria o poder de Estado. Assim, enquanto uma sociedade tendo uma determinada estrutura econômica existe, sua organização de Estado deve ser adaptada à sua organização econômica, em outros termos a estrutura econômica de uma sociedade determina também a estrutura estatal e política.

Examinemos ainda uma questão. O Estado é uma organização imensa que abrange todo o país e que domina vários milhões de homens. Essa organização necessita de todo um exército de empregados, funcionários, soldados, oficiais, legisladores, homens de leis, ministros, generais, etc. etc., Ela contém ainda camadas inteiras de homens dispostos uns acima de outros. Na sua estrutura se refletem como em um espelho todas as relações de produção. Numa sociedade capitalista, por exemplo, é a burguesia que chefia a produção; o mesmo acontece com o Estado. Um proprietário de usina é seguido imediatamente de um diretor de fabrica que ele próprio é às vezes capitalista; as coisas se passam do mesmo modo, no Estado capitalista, com os ministros, com os grandes chefes burgueses. É nesses meios que se recrutam os generais do exército. A colocação média na produção é ocupada pelo técnico e pelo engenheiro, pelo intelectual; os mesmos intelectuais exercem as funções de empregados médios no aparelho de Estado e é entre eles que são geralmente recrutados os oficiais. A classe operaria correspondem os pequenos funcionários, soldados, etc. Certamente, existem aqui algumas diferenças, mas em geral a estrutura do poder político corresponde à estrutura da sociedade. Com efeito, imaginemos por um instante que os pequenos funcionários, por um milagre qualquer, se tornem superiores aos superiores. Isto equivaleria a dizer que a antiga classe dominante tivesse deixado escapar de suas mãos o poder político. E isto não é possível senão quando a sociedade por inteiro perde o seu equilíbrio, isto é, quando nos achamos em presença de uma revolução. Mas essa revolução, por sua vez,

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não pode deflagrar sem que modificações correspondentes se tenham efetuado na produção; assim, como vemos, a estrutura do próprio poder político reflete a estrutura econômica da sociedade, isto é, que as mesmas classes ocupam os mesmos lugares.

Citemos alguns exemplos tirados de domínios e de épocas diferentes. No antigo Egito, por exemplo, a direção da produção se confundia quase com a administração do Estado. Os grandes proprietários fundiários se achavam tanto à frente da produção como do Estado. A maior parte da produção era a do Estado, baseada sobre a grande propriedade agrária. O papel dos agrupamentos sociais da produção se confundia com a sua situação como funcionários superiores, médios e inferiores desse Estado e como escravos (O. Neurath: "Antike Wirtschaffosgeschichte", edição Teubner, 1909, p. 8).

"As famílias notáveis são certamente famílias rurais, mas ao mesmo tempo elas representam a aristocracia dos funcionários" (Max Weber: "Agrargeschichte" — História Agrária — no Handworterbuch der Staatwissenschaften — Dicionário das ciências sociais).

As vezes a ligação entre o poder de Estado e o comando da produção era patente. No XV.° século, na Republica capitalista comercial de Florença, dominava o banco dos Medicis:

"O banco dos Medicis e o tesouro florentino confundiram-se completamente, e a falência da casa comercial dos Medicis confundiu-se com a queda da Republica de Florença". (M. Pokrovsky: "Le materiel economique, Moscou, 1906).

Na segunda metade do século XVIII, os grandes proprietários fundiários que exploravam os seus servos dominavam a produção russa, e também detinham o poder de Estado, organizado em classe "nobre" privilegiada. E quando os "Mojiks" levantaram o estandarte da revolta, conhecida na história pelo nome de "revolta de Pougatchef", a "nobre" imperatriz Catarina IIª exprimiu o verdadeiro sentido do poder político, participando como "proprietária fundiária de Kazan" à formação de um regimento de cavalaria destinado a restabelecer a ordem no meio da "populaça", o que provocou no meio dos nobres de Kazan uma explosão de sentimentos de fidelidade. As relações que Catarina entretinha com os filósofos franceses, amantes da liberdade, não a impediram de introduzir, por exemplo, o direito de servidão na Ukrania. A. Tolstoi exprimiu muito bem a ligação destes fatos:

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Ao grande povo Do qual sois a mãe, Deveis dar a liberdade, É a liberdade que lhe deveis dar. Ela lhes respondeu: "Senhores, vós me confundis". E ela se apressou A reatar os ucranianos à gleba.

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Na America contemporânea (Estados Unidos), é o capital financeiro, um grupo de banqueiros e de organizadores de "trustes", que dirige tudo. O poder político lhes pertence a tal ponto que as decisões do Parlamento são tomadas em primeiro lugar nos bastidores do capital unificado.

Entretanto, a estrutura política e social da sociedade não se exprime inteiramente pelo poder político. Tanto a classe dominante como as classes oprimidas dispõem de numerosas organizações e de uniões as mais variadas. Cada classe tem habitualmente a sua guarda avançada, os seus membros mais "conscientes" que formam partidos políticos, lutando pelo poder. A classe dominante tem geralmente o seu próprio partido; as classes oprimidas têm os seus; as classes "médias" também. Existindo ainda outras subdivisões no interior de cada classe, não é de admirar que uma classe possua às vezes vários partidos, se bem que seus interesses mais constantes, mais sólidos, mais essenciais sejam expressos por um só dentre eles. Além dos partidos organizados, há ainda outras organizações: assim, por exemplo, os capitalistas americanos têm hoje em dia as suas associações de luta contra os operários, organizações especiais para as fraudes eleitorais (o que se denomina Tammany-Hall), organizações de recrutamento, furadores de greve, organizações de provocadores (agencia de policia e detetives particulares de Pinkerton) e grupos escondidos aos olhos do mundo, graças a uma solida conspiração das firmas capitalistas as mais influentes, assim como dos políticos mais em voga, grupos cujas decisões são em seguida confirmadas pelos órgãos oficiais do Estado. Na antiga Rússia, o papel de organização auxiliar do Estado dos nobres era assumido pelos "Cem-negros", que tinham mesmo ligações com a casa reinante dos Romanoff; em 1921, o mesmo papel era desempenhado na Itália pelos fascistas, na Alemanha pelo Orguesch. As classes oprimidas têm também, fora de seus partidos, uniões "econômicas" diversas (os sindicatos profissionais, por exemplo), organizações de combate, clubes; nessas organizações poderemos classificar os "bandos" de Stenka Razin ou de Pugatchef. Numa palavra, todas as organizações que empreendem uma luta de classe, a começar pela "juventude dourada", as "corporações" alemãs de estudantes e acabando pelo Estado de um lado; a começar pelos partidos e acabando pelos clubes do outro, todas fazem parte da estrutura política e social da sociedade. Não é necessário fazer um grande esforço intelectual para compreender o que determina a sua existência. É o reflexo e a expresso das classes. Por conseguinte, aqui também a "economia" determina a "política".

Mas, examinando essa "superestrutura política" da sociedade, podemos e devemos tomar em consideração o seguinte fato: resulta, com efeito, dos exemplos já citados que a superestrutura política não se limita a um só

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aparelho humano. Do mesmo modo que toda a sociedade, ela é composta, por sua vez, de combinações de coisas, homens e idéias. Tomemos o aparelho de Estado, por exemplo. Nele encontramos a sua parte material, sua hierarquia, suas idéias sistematizadas (normas, leis, decisões, etc.). Tomemos o exército; é também uma parte do Estado, mas ele tem também, por sua vez, a sua "técnica" (canhões, fuzis, metralhadoras, intendência), sua organização dos homens "repartidos" segundo um certo modelo, e suas "idéias" que são inculcadas a todos os membros do exército (idéia de obediência, disciplina, etc.) por uma instrução militar complicada e por uma educação especial dos homens. Se examinarmos o exército deste ponto de vista, chegamos sem dificuldade aos seguintes resultados: a técnica do exército é determinada pela técnica geral do trabalho produtivo em uma sociedade dada; não é possível fazer um canhão se não se sabe fundir o aço, isto é, sem dispor dos instrumentos correspondentes à produção. A repartição dos homens, a ordem do exército, dependem da técnica militar e ao mesmo tempo da divisão da sociedade em classes; do gênero dos armamentos depende a divisão do exército em artilharia, infantaria, cavalaria, engenharia, etc.; daí os diferentes gêneros de soldados, chefes, homens tendo funções particulares (os telefonistas, por exemplo). De outro lado, a divisão da sociedade em classes determina as camadas sociais que fornecem, por exemplo, os corpos de oficiais, de chefes que dirigem a ação do exército, etc. Enfim, as idéias especiais que animam o exército são determinadas, de um lado pelo regime do exército (os regulamentos, o sentimento de disciplina, etc.) e de outro, pela estrutura das classes da sociedade (no exército tzarista dizia-se: obedece ao tzar, defende "a fé, o tzar e a pátria" e, no exército vermelho se diz: "seja disciplinado para defender os trabalhadores contra os imperialistas"). Bastam estes exemplos para se poder dizer: a superestrutura política e social é uma coisa complexa, composta de elementos diversos ligados entre si. Em geral, ela é determinada pela estrutura de classe da sociedade, estrutura que por sua vez depende das forças produtivas, isto é, da técnica social. Certos elementos dependem diretamente da técnica, "técnica militar"; outros tantos do caráter de classe da sociedade (de sua economia), como também da "técnica" da própria superestrutura ("a estrutura do exército"). Assim, todos esses elementos dependem direta ou indiretamente do desenvolvimento das forças produtivas sociais.

Um lugar particular é ocupado, entre as organizações humanas, pela organização familiar, isto é, pelo conjunto dos maridos mulheres e filhos. Essa organização dos sexos, que variava constantemente, tinha como base relações econômicas definidas:

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"a família é igualmente uma formação, não somente social, mas ainda (e antes de tudo) econômica baseada sobre a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, sobre a diferenciação sexual..." o casamento primitivo não é outra coisa senão a expressão dessa união econômica (Muller-Lyer, ob. cit. p. 110). (Marx: Capital, 1. "No interior de uma família... efetua-se uma divisão natural de trabalho, baseada na diferença dos sexos e da idade...").

A família não aparece como uma coisa solida... senão como consequência de modificações do regime da tribo, que oferecia o caráter do comunismo primitivo. (As formas primitivas das relações sexuais eram as de "relações sexuais desordenadas", isto é, de ajuntamento livre e instável do homem e da mulher). Vejamos como o Sr. N. Pokrovsky caracteriza a família primitiva dos eslavos ("a grande família", a "zadruga" servia, "vélika kutsia", "a grande casa" em sérvio); os membros de uma família destas, — operários da mesma exploração, soldados dos mesmos destacamentos, enfim adoradores dos mesmos deuses, participantes do mesmo culto ("Historia da Rússia", tomo 1, 1920). As bases econômicas de uma tal família são ainda melhor caracterizadas pelo fato seguinte:

"Nós cometeríamos um grande erro, diz o Sr. N. Pokrovsky, se atribuíssemos à esses laços do sangue uma importância preponderante: eles existem geralmente, mas não são absolutamente necessários. Uma semelhante economia coletiva estava organizada frequentemente no Norte por homens completamente estranhos uns aos outros: unidos por um acordo particular, eles fundavam um "lar" não para sempre, mas por um certo período de tempo, por 10 anos, por exemplo... Assim o laço econômico antecede aqui o laço de sangue, de "parentesco", no sentido que damos a essa palavra (ib.)".

As modificações de formas das relações familiares relativamente às condições econômicas podem ser observadas também nos tempos modernos; basta comparar uma família camponesa com uma família operaria ou com a de um burguês contemporâneo.

A família camponesa é uma união sólida, tendo uma base de produção direta.

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"Como posso eu me arranjar sem mulher? A mulher é indispensável, diz o camponês. É preciso mugir as vacas, tratar dos porcos, preparar as refeições, lavar, tratar das crianças, etc..".

A importância econômica da família é tão grande que o casamento é o resultado de um cálculo econômico: "Precisa-se de uma dona de casa". Os membros da mesma família são considerados do ponto de vista econômico, como "trabalhadores" e como "consumidores". Tendo uma tal base, a família relativamente estável, a família camponesa se distingue por uma solidez patriarcal, enquanto ela não foi tocada pela influência "desmoralizadora" da cidade. As coisas se passam de outro modo com o operário. De fato ele não dispõe de casa própria. Sua "economia domestica" é toda ela de consumo; ele não faz nada mais senão gastar o seu salário. De outro lado, a cidade com seus restaurantes, suas lavanderias, etc., torna em geral a economia domestica menos necessária. Enfim, a grande indústria contribui para a "decomposição da família", obrigando a mulher-proletária a trabalhar na usina. Todas estas circunstancias formam outras relações familiares, mais nobres, menos estáveis. Na grande burguesia, a propriedade privada conserva a família, mas o parasitismo crescente da burguesia, a formação no seu seio de camadas inteiras de percebedores de rendas, transforma a mulher em objeto, numa bonita boneca, mas sem cérebro, instrumento de prazer, "bibelot" de toucador. As diversas formas de casamento (monogamia, poligamia, poliandra, etc.) correspondem também a condições de evolução econômica. É preciso não esquecer que as relações sexuais, tomadas em geral, não se limitavam quase nunca às relações dentro dos quadros da família. Fenômenos tais como a prostituição já aparecem na mais remota antiguidade. As formas e as dimensões da prostituição são ligadas, por sua vez, com a estrutura econômica da sociedade; basta lembrar o papel desempenhado pela prostituição no regime capitalista. Há lugar para crer que, na sociedade comunista, a prostituição e a família desaparecerão, ao mesmo tempo em que desaparecerá definitivamente a propriedade privada e a opressão da mulher.

Passemos agora ao exame de outras "superestruturas". Os homens estando tanto na sociedade, tomada no seu conjunto, quanto em certas frações dessa sociedade, em luta direta uns contra os outros, resulta daí a necessidade social das normas sociais (regras de conduta). Entre estas contam-se os costumes, a moralidade, o direito e toda uma série de outras regras: "regras de polidez", "etiquetas*, "cerimônias", etc...; de outro lado, os estatutos das diferentes sociedades, organizações, corporações, etc...). Qual é a causa de seu desenvolvimento? Ele é determinado simplesmente pelo desenvolvimento dos antagonismos numa sociedade que cresce e se complica ao extremo... O

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antagonismo mais profundo como nós já vimos, é o antagonismo entre as classes. Também ele "exige" um regulador poderoso, susceptível de o dominar. Como regulador aparece, como sabemos, o poder de Estado com seus anexos, decretos denominados normas legais. Mas existe ainda um grande número de antagonismos entre as classes e no interior das classes, profissões, grupos, associações e as diferentes categorias de homens em geral. Todo homem, fora da situação de classe, entra em contacto com todos os homens imagináveis, é submetido a um grande número de influencias, que se entrecruzam mutuamente; eles se encontram em diferentes situações que mudam rapidamente, que se seguem, desaparecem e tornam a aparecer. Estamos aqui em presença de continuas contradições. E, entretanto, a sociedade continua a existir e existem sempre no seu seio grupos diversos que têm, apesar de tudo, um caráter relativamente estável. Os capitalistas, proprietários de empresas, comerciantes, aparecem no mercado como concorrentes e entretanto, no interior do próprio Estado, eles se combatem a golpes de faca e a sua classe não se desloca, porque seus membros rivalizam entre si. Os compradores e vendedores têm interesses completamente opostos. E entretanto, não chegam sempre a vias de fato. Entre os operários, há desempregados que os capitalistas compram de bom grado, durante as greves. Mas eles não conseguem comprar todo mundo e a união de classe dos operários vence. Como isto é possível? Essa circunstancia é facilitada pela existência de normas suplementares variadas além da lei. Essas normas suplementares (regras de conduta) implantam-se no cérebro humano, agem, por assim dizer, de dentro, parecem sagradas aos homens por sua própria natureza e são seguidas mais devido ao impulso da consciência do que por medo. Tais são, por exemplo, as regras da moral que, numa sociedade onde circulam mercadorias, aparecem como eternas, inflexíveis e sagradas, refulgindo de um fogo interior e obrigatórias para qualquer homem honesto. Tais são os costumes "preceitos dos antepassados". Tais são "as regras de polidez", "de bom viver", etc.

Entretanto, qualquer que seja a aparente "origem supra terrestre dessas regras sagradas, não é difícil descobrir as suas raízes na terra, apesar do medo que elas inspiram aos seus adoradores. Estudando-as, encontramos, antes de tudo, dois fatos essenciais: em primeiro lugar, o caráter variável destas regras, e em segundo lugar, o laço que as une com uma classe, um grupo, uma profissão determinada, etc. Depois de descobrir estes fatos e aprofundando-nos um pouco mais, veremos "que no fim de contas" eles dependem da evolução das forças produtivas. Em geral, pode-se dizer que essas regras traçam a linha de conduta pela qual se conserva uma dada sociedade, ou uma classe ou um agrupamento ou um grupo no qual os

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interesses provisórios de um homem isolado são subordinados aos interesses do grupo.

Assim, essas normas são as condições de equilíbrio, emoções que neutralizam até um certo ponto as contradições internas dos sistemas humanos. É portanto fácil de compreender a razão por que elas devem necessariamente concordar mais ou menos com o regime econômico da sociedade. Formulemos somente a seguinte pergunta: quando a sociedade existe, será possível que o sistema dos costumes e da moral que nela dominam possa ser contrario durante muito tempo à sua estrutura essencial, isto é, econômica? A resposta é clara. Uma tal situação não se pode prolongar por muito tempo. Se os costumes e a moral que dominam em uma dada sociedade fossem fortemente contrários ao seu regime econômico, uma das condições essenciais de equilíbrio social viria a faltar. Na realidade, o direito, os costumes e a moral que dominam numa dada sociedade concordam sempre com as relações econômicas, têm as mesmas bases, modificam-se e desaparecem com elas. Imaginemos o seguinte exemplo: sabemos que numa sociedade capitalista são os capitalistas que dominam as coisas (os meios de produção). Nas leis de um Estado capitalista isto se exprime pela lei da propriedade privada, que é defendida por todo o aparelho do poder de Estado. As relações de produção de uma sociedade capitalista são denominadas em linguagem vulgar de relações de propriedade, e são estas que são protegidas pelas leis. Seria possível, numa sociedade capitalista, que as normas jurídicas (as leis) não defendessem as relações de propriedade, mas ao contrario as destruíssem? Uma tal hipótese é evidentemente absurda, e o mesmo pode ser dito da moral. "A consciência moral" da sociedade capitalista reflete e exprime seu estado material. Tomemos ainda o mesmo exemplo da propriedade privada. A moral diz que não é correto roubar, que é preciso ser honesto e não tocar, sob nenhum pretexto, nos bens de outrem, isto é compreensível. Se, por exemplo, este preceito não estivesse gravado no cérebro dos homens, a sociedade capitalista se teria decomposto muito rapidamente.

Poderiam opor-nos o seguinte argumento: dizeis que tudo isto é muito simples, e entretanto, os comunistas, por exemplo, não admitem que a propriedade privada seja sagrada, mas não ousam dizer que o roubo é moral. Assim, há coisas que são sagradas para todos e que não podem ser explicadas por causas terrestres. Mas este argumento não está certo, apesar de sua força aparente. Vejamos porque: em primeiro lugar, os comunistas não defendem de modo algum a intangibilidade absoluta da propriedade privada. A nacionalização das empresas constitui a expropriação da burguesia; ela é despojada sem indenização. A classe operaria apodera-se "daquilo que não lhe pertence", atenta portanto contra o direito da propriedade privada, "invade

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despoticamente o domínio das relações de propriedade" (Marx). Em segundo lugar, os comunistas são contra o roubo, por que? Porque se o operário isolado se apoderasse das coisas pertencentes aos capitalistas, no seu interesse pessoal, ele não poderia tomar parte numa luta geral e se transformaria, ele próprio, num burguês. Ladrões de cavalos e arrombadores não serão nunca elementos ativos da luta de classe, mesmo se eles forem da mais pura origem proletária. Se um grande número de proletários se tornassem ladrões, a própria classe se desagregaria e enfraqueceria. Eis a razão por que os comunistas adotaram esta regra: não roube, para não decair. Isto não constitui uma norma de defesa da propriedade privada, mas um meio de conservar a integridade da classe operaria, de protegê-la contra a "desmoralização", contra a decomposição, o meio de preveni-la contra os meios irregulares de dirigir os proletários no seu próprio caminho. Isto é a regra de conduta da classe do proletariado. Depois de tudo que foi dito, é inútil explicar mais amplamente que as regras de conduta examinadas acima são determinadas pelas condições econômicas da sociedade.

Certamente, as normas proletárias são contrarias às condizes econômicas da sociedade capitalista. Mas nós falamos das normas dominantes. Quando as normas de conduta proletárias se tornam por sua vez dominantes, é o fim do capitalismo. Falaremos disto no capítulo seguinte).

Para explicar o que foi dito acima, citemos alguns exemplos. No domínio sexual, em um certo estágio de desenvolvimento, quando o clã se apoiava também sobre o lado do sangue e que os homens de um outro clã (isto é, na realidade de outra sociedade) eram inimigos, não se considerava mal o casamento entre parentes próximos e era considerado particularmente sagrada a união com a própria mãe ou a filha (como, por exemplo, na antiga família iraniana).

Quando as forças produtivas estavam ainda fracamente desenvolvidas e que a economia social era insuficiente para entreter bocas inúteis, os costumes e a moral julgavam necessário matar os velhos (segundo Heródoto, Estrabão e outros historiadores antigos). É por causas análogas que se explica o costume ao qual se refere Estrabão, segundo o qual os Velhos se envenenavam voluntariamente. Pelo contrario, quando esses velhos desempenhavam um certo papel na produção, ou na direção desta, o costume prescrevia o respeito à velhice (ver E. Meyer: "Elemente der Aníropologie" — Elementos de Antropologia, p. 31-32 e seguintes). A solidez do clã, a sua solidariedade na luta com inimigos cruéis, exprimiam-se na vingança na qual participavam também as mulheres. Basta lembrar as figuras de Brunhilda ou de Gudrun do

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"Canto das Niebelungen"; vejamos como é caracterizada Gudrun, menos cruel do que Brunhilda:

Ela vingou seus irmãos, Ela soltou os cães, Ela derramou o sangue Com a ponta de seu sabre. 

(O canto de Sigurd)

E. Meyer escreve com razão:

"O próprio conteúdo da moral, dos usos e do direito, dependem do regime social que existe num momento dado e das concepções da sociedade... Também podem eles ter, em sociedades diferentes, e em épocas diferentes, um caráter diametralmente oposto".

Na China antiga, o poder de Estado feudal dispunha de um grande número de funcionários de diversas categorias, tinha uma importância enorme. A dominação dessa camada burocrática e fundiária baseava-se ideologicamente sobre a doutrina de Confúcio, composta de todo um sistema de regras de

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conduta. Um dos artigos mais importantes dessa ciência moral era a doutrina do respeito para com os superiores (Hiao):

"É preciso suportar a calunia, e até sofrer a morte, se isto for útil para a honra do soberano; pode-se (e é preciso) em geral corrigir por seu serviço fiel os erros do soberano e é nisto que consiste o respeito (Hiao). (Max Weber: "Gesammelte Aufsatze zur Religionssoziologie, — Estudos sobre a religião e a sociologia, Tubingen, edição Mohr, 1920, 1.° vol., pag. 419).

O atentado contra o "Hiao" constitui o único pecado. É bárbaro aquele que não o compreender, aquele que não compreende o "decoro" (concepção essencial da doutrina de Confúcio).

"A piedade (Hiao) para com o senhor feudal é posta no mesmo pé que o respeito (Hiao) para com os pais, mestres, chefes da hierarquia burocrática e seus dignitários" (Ib. 446.).

A disciplina, tanto quanto o respeito, é uma das maiores virtudes.

"A desobediência é pior do que um pensamento covarde" (Ib. 447).

A idéia que domina tudo é a de ordem.

"É melhor viver como um cão, mas em paz, do que ser um homem em estado de anarquia, diz Tchen-Ki-Tong" (Ib. 457).

Como toda moral burocrática, a moral de Confúcio proibia evidentemente a participação dos funcionários no trabalho destinado a adquirir as riquezas... como a uma obra duvidosa do ponto de vista moral e indigna dessa "casta" (Ib. 447). Pode-se escolher seus amigos somente entre iguais, do ponto de vista social; os ricos são melhores do que os pobres, porque eles podem cumprir todas as cerimônias; o povo, o "estúpido povo" (Youn Min) é oposto ao "gentleman" (literalmente: Ao homem-príncipe). É característico que todo esse enorme sistema de regras de conduta que sustinha o regime feudal nobre, denominava-se "Hung-Fan", isto é, o "grande plano" (ib. 457). O laço que une essa doutrina à ordem social é evidente. E todas as numerosas "cerimônias chinesas" se uniam na realidade à corrente ideológica dominante e serviu de

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rede com malhas de seda destinada a embaraçar toda a sociedade e a sustentar o regime correspondente.

Examinemos ainda os costumes dos cavaleiros franceses do Norte no XII e XIII século. Os cavaleiros celebravam "as belas damas" e lutavam "por elas" nos torneios. Mas a sua "concepção ideal do amor e da felicidade" tinha a forma de "honra de casta" (Ver: Weltgeschichte — História do mundo, de H. Helmold, volume 5, pag. 496, Leipzig und Wien, 1919). O papel principal da cavalaria na sociedade era a guerra e as ações militares. Não é de admirar então que "as normas" contribuíssem para criar um tipo militar de homens formando uma classe particular:

"O cavaleiro que se revelava covarde era expulso, em publico desonrado pelo arauto, maldito pela igreja; o carrasco quebrava seus brasões e suas armas, seu escudo era amarrado à cauda de um cavalo... etc.". "Os torneios serviam de exercício na arte militar..." (Ib.).

Ao mesmo tempo que aparece a ordem capitalista, os costumes, a moral, etc., mudam. A prodigalidade cede o lugar à paixão da economia e às virtudes correspondentes.

"Não é a conduta de um senhor feudal que honra um homem honesto, mas sim o de ter os negócios em ordem". (W. Sombart: Oburguês).

É preciso viver de uma maneira "correta"... é preciso abster-se de qualquer excesso, não se mostrar senão em boa sociedade Não se deve ser bêbado, jogador, mulherengo, é preciso ir à missa e ao sermão do domingo, em uma palavra, é preciso ser um bom... cidadão" com relação ao mundo exterior, e no interesse de seus negócios; pois essa vida moral aumenta o credito" (Ib.). Certamente, essa moral de tartufo protestante cedeu o lugar a uma outra, quando a situação da burguesia mudou e quando os negócios da firma cessaram de depender da conduta de seu proprietário.

Mostrar a variação do direito, relativamente ao regime econômico, é coisa ainda mais fácil, o caráter de classe das leis sendo visível sempre e em toda parte. Mas mesmo normas fortuitas como as da moda dependem, como se pode provar, das condições sociais. Um burguês considera "inconveniente" não estar corretamente vestido: é por ai que se afirma a marca de classe, é pelo habito que se reconhecem "as pessoas corretas". Mesmo nos meios revolucionários, encontra-se alguma coisa de semelhante. Assim, por exemplo, durante a Revolução de 1905, havia uma moda de partido: os social-

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democratas vestiam camisas pretas (sinal do proletariado), os socialistas-revolucionários preferiam camisas vermelhas (camponeses revolucionários); encontrar-se-ia dificilmente, numa grande cidade, uma dúzia de intelectuais, tendo participado na Revolução, sem ter vestido um ou outro uniforme de partido, tacitamente adotado.

Fora da moral de classe existem ainda outras formas de moral, como por exemplo a moral profissional dos médicos, advogados, etc... Do mesmo modo existe igualmente a moral dos ladrões, que é rigorosamente observada por eles, de não se denunciar os seus. Assim, todas as normas que examinamos acima constituem os laços que mantêm a unidade da sociedade, de uma classe, de um grupo profissional determinado.

§ 39. A psicologia e ideologia sociais

Quando examinamos a origem da ciência e da arte, do direito e da moral, etc., já encontramos diante de nós um certo número de sistemas bem concatenados de imagens, pensamentos, regras de conduta, etc.. A ciência consiste em pensamentos concatenados entre si, ajustados uns aos outros, sistematizados, que envolvem com sua textura um objeto qualquer. A arte é um sistema de sensações, sentimentos, imagens. A moral é um conjunto de regras de conduta, tendo uma força persuasiva e penetrante, que são mais ou menos rigorosamente ajuizadas umas às outras. O mesmo pode ser dito de muitas outras ideologias. Mas, na vida social, descobrimos um imenso domínio de valores não refletidos, não sistematizados, onde não encontramos uma ligação obrigatória entre os valores. Tomai aquilo que denominamos «as idéias correntes» sobre um objeto qualquer, em confronto com o pensamento «cientifico» sobre o mesmo tema. O que verificamos em primeiro lugar, são noções fragmentarias, idéias sem ordem e dispersas; teremos aí uma multidão de contradições, de idéias insuficientemente meditadas, de bizarrias. Tudo isto precisa ser trabalhado, examinado com a lente, criticado, verificado, desembaraçado das contradições; mas então, já intervém a ciência. Ora, é habitualmente sobre «as idéias correntes» que se vive. Entre a imensidade das reações recíprocas que se produzem entre os homens e que constituem a vida social, existe, no domínio das relações psíquicas, uma multidão desses elementos não sistematizados: idéias fragmentárias, nas quais, entretanto, já se exprime um certo conhecimento dos sentimentos e dos desejos, nas relações dos homens entre si; gostos, modos pensar, representações não refletidas, «semi-conscientes» confusas sobre «o bem» e o «mal», sobre «o justo» e «o injusto», sobre «o belo» e o «feio»; hábitos e opiniões correntes, quotidianas; tendências e idéias referentes à marcha da vida social; sentimentos de alegria ou de tristeza, de aborrecimento e de cólera, sede de luta ou desespero sem remissão, julgamentos variados, esperanças confusas,

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ideais; pensamentos críticos e mordazes sobre a ordem estabelecida ou disposição constante e muito agradável para achar que «tudo vai da melhor maneira no melhor dos mundos»; sentimentos de insucesso e de desilusão, inquietude dos maus dias, desejos de levar uma existência louca, ilusões infinitas sobre o futuro ou temor do futuro, etc.. Todos esses fenômenos, considerados na medida da vida social, constituem o que se denomina a psicologia social. O que distingue a psicologia dita social ou coletiva da ideologia é portanto, como vemos, o grau de sistematização.

A psicologia social apareceu mais de uma vez na ciência burguesa sob o véu extremamente misterioso daquilo que se denomina «espírito nacional» ou «espírito do nosso tempo»; e com efeito, entendia-se por isso uma espécie de alma social única e universal no sentido mais literal. Entretanto, não existe neste sentido um «espírito nacional», como também não existe uma sociedade constituída como um organismo único tendo um só centro de consciência. Já dissemos que seria ridículo representar-se a sociedade à moda da Baleia da qual se fala na nossa lenda do Pequeno cavalo corcunda; seria absurdo esperar ver no meio do mundo exterior

... pavonear-seCom a boca aberta, monstruosa BaleiaCujos flancos gretados,De paliçadas eriçadas,Abrem-se

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como uma planícieCoberta de barbas,Onde as meninas e os rapazesVão colher cogumelos...

Mas este monstro não existe, e não existe tampouco um «espírito nacional» ou «alma nacional» no sentido mistérioso e místico que se dá a estas palavras. E entretanto, falamos numa psicologia social que distinguimos da psicologia individual. Como entender isto? Como resolver essa contradição? Mas é muito simples! As realizações recíprocas que se produzem entre os homens determinam uma psicologia especial em cadaindivíduo. O elemento «social» existe não entre os homens, mas nas cabeças desses homens. Ora, o que existe nessas cabeças, nesses cérebros, nesses espíritos é o produto das influências mutuas das relações recíprocas que se entrecruzam, por conseguinte não há outro elemento psíquico a não ser aquele que existe nos indivíduos, constantemente mergulhados numa atmosfera de reação mutua, nos indivíduos «socializados»: a sociedade é portanto um conjunto de homens socializados e não um fabuloso Leviatã cujos órgãos seriam os indivíduos.

G. Simmel assim escreve, admiravelmente:

"Quando uma multidão, nos diz ele, demole um edifício, ou pronuncia um julgamento, ou clama violentamente, os atos dos indivíduos formam uma soma, e esta soma é um acontecimento que designamos como um fato único, como a realização de um sóconceito. E é então que se

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produz uma importante substituição: o resultado exterior de um conjunto de processos psicológicos individuais é interpretado como resultado de um único processo de conjunto, de um processo da alma coletiva" (G. Simmel: Soziologie. Untersuchungen uber die Formen Vergesellschaftung — "Investigações sobre as formas da socialização" — Leipzig, 1908. Verlag Duncker und Humbolt. Pag. 559-60).

Outro exemplo: Acontece às vezes que as relações recíprocas dos indivíduos produzem qualquer coisa de novo e de mais considerável do que a simples soma das tendências ou dos atos individuais.

''Se examinarmos as coisas bem de perto, neste caso, trata-se do modo de agir dos indivíduos que se encontram sob a influênciado ambiente; como resultado desse ambiente, produzem-se transposições de tom (Umstimmungen), transposições nervosas intelectuais, hipnóticas (de sugestão), morais, por comparação com os estados espirituais que existiriam fora desse ambiente e de suas influencias. Mas se estas últimas, reagindo ainda umas sobre as outras, modificam igualmente o estado interior de todos os membros do grupo, está claro que a sua ação comum (Totalaktion) seria diferente da ação de cada uma das influencias quando ela se manifesta isoladamente" (Ibidem, pag. 560).

Entretanto, nas expressões «alma racional», «espírito de nosso tempo» há um certo sentido: estes termos indicam exatamente dois fatos que podem ser observados em toda parte e sempre: em primeiro lugar o seguinte: que em cada época, há uma tendência dominante nos pensamentos, sentimentos, estados de alma, uma psicologia dominante que colora toda a vida social; em segundo lugar: que essa psicologia dominante modifica se em função do «caráter da época». isto é, em nossa linguagem, em função das condições da evolução social.

A psicologia dominante numa sociedade reduz-se aos dois principais elementos seguintes: em primeiro lugar: a caracteres psicológicos geraisque podem ser encontrados em todas as classes da sociedade porque, apesar de toda a diversidade das situações ocupadas por estas classes, pode haver analogias entre estas situações; em segundo lugar a uma psicologia da classe dominante que se impõe tão fortemente na sociedade a ponto de dirigir toda a vida social, submetendo mesmo as outras classes à sua influência. Como

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exemplo do primeiro destes elementos pode-se relembrar o que era visto nas épocas do feudalismo: tanto no senhor como no camponês, havia traços psicológicos comuns: apego às velhas coisas, rotina, tradições, submissão à autoridade, «temor de Deus», estagnação do pensamento, aversão por todas as novidades, etc.. Por que era assim? Em primeiro lugar, porque as duas classes viviam numa sociedade estacionaria: o movimento psicológico vem mais tarde das cidades. Em segundo lugar, porque o senhor feudal sendo «soberano e pai» no seu domínio, o camponês, por seu lado, é também «soberano e pai» na sua família». A família, nós o sabemos, é uma das organizações de trabalho dessa época. Os laços do trabalho familiar na economia camponesa desempenham ainda nos nossos dias um papel importante. Compreende-se, portanto, que o regime patriarcal, a constituição do trabalho de família, a autoridade indiscutida e o poder do pater familiae tenham determinado uma psicologia correspondente: «Os mais idosos sabem melhor o que se deve fazer». O espírito conservador da nobreza feudal e dos camponeses em servidão, era «o espírito do tempo» numa fase determinada da evolução social. Bem entendido, ao lado disto, na psicologia social dominante, manifestavam-se outros elementos que caracterizavam unicamente os senhores feudais e não se difundiam senão em função da situação dominante da nobreza.

Por outro lado, vemos muito mais frequentemente a psicologia social — entendamos: a psicologia social dominante — determinada pela psicologia da classe dominante. Marx nos diz no Manifesto Comunista, capítulo 2.º:

«As idéias dominantes de uma época qualquer não foram sempre senão as idéias de uma classe dominante».

O mesmo pode-se dizer da psicologia social que domina numa época determinada. Já demos, no exame das ideologias, diversos exemplos de sentimentos, pensamentos e estados de alma que dominavam nas sociedades. Indaguemos agora, por exemplo, o que representava a psicologia do Renascimento que se distinguia pelo seu amor pelas volúpias terrestres as mais refinadas, que falava latim ou grego, que refinava na ciência, que tinha a paixão de valorizar a personalidade para distingui-la do «vulgar», que considerava com elegante desdém as superstições da Idade Média, etc.. Está claro que esta psicologia nada tinha de comum, por exemplo, com a da classe camponesa italiana de então. Esta psicologia era o produto da vida das cidades comerciais e nas cidades ela era o resultado da existência, de uma aristocracia de financeiros e de comerciantes. As cidades começavam então a ganhar terreno sobre os campos, e eram banqueiros, aparentados com a sociedade principesca, que nelas dirigiam os negócios. É a psicologia desta

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camada social que se reconhece como sendo dominante para a época: os monumentos do tempo são uma expressão viva disto. É preciso ainda notar que à medida que se desenvolvem as forças produtivas, a classe dominante apodera-se de poderosos meios; que lhes servem para formar, determinar a psicologia das outras classes.

«Realmente... três ou quatro jornais de importância mundial chegarão, no futuro, a determinar a opinião dos jornais de provinda e, por conseguinte, a determinar «a vontade do povo», como nos diz, sem constrangimento, o filósofo da burguesia alemã contemporânea, Spengler.

Não deixa porém de ser evidente que, numa sociedade constituída em classes, não existe uma «psicologia social» maciça, comum, uniforme. Não existem, no melhor dos casos, senão certos traços comuns dos quais não devemos exagerar a importância.

O mesmo pode-se dizer daquilo que se denomina "caráter de um povo", "psicologia dos povos", etc..... Bem entendido, não é da conta dos marxistas contestar "em princípio" certos traços comuns que podem existir entre as diversas classes de um só e mesmo povo. Marx, numa certa passagem, toma mesmo em consideração a influência da raça; ele escreve com efeito:

"... A mesma base econômica — a mesma nas suas condições essenciais — pode mostrar, devido a circunstancias empíricas inúmeras e diversas, devido a condições climatéricas, devido a relações de raça, de influência histórica agindo exteriormente, etc., infinitas variações na sua manifestação, o que não pode ser compreendido senão pela análise dessas circunstancias empíricas" (Karl Marx: Capital, III).

Em outros termos: se duas sociedades quaisquer passam pelo mesmo grau de evolução (digamos: pelo feudalismo), elas apresentarão cada uma certas particularidades (bem que secundárias, não modificando os "traços essenciais"). Estas particularidades explicam-se por diversos desvios no processo da evolução, como consequência de condições particulares da evolução no passado. Seria absurdo negar estas particularidades, como também não se podem contestar certos aspectos singulares do "caráter nacional", do "temperamento", etc.. Bem entendido, uma psicologia declasse não é ainda a prova da existência de certos caracteres "nacionais" particulares; (Marx, por exemplo, dizia do filósofo Bentham que este era um

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fenômeno "especificamente inglês"; Engels denominava o socialismo do economista Rodbertus "um socialismo de junker prussiano", etc.). Eis porque o Dr. E. Hunvicz. atualmente companheiro de Cunow na sua luta para a exterminação dos bolchevistas, tem razão quando escreve que

"a psicologia profissional não exclui a psicologia popular" e "o que se dá com a psicologia de casta dá-se com a psicologia local: a psicologia de casta não impede a existência da psicologia nacional" (E. Hurwicz: Die Seelen der Volker. Verlage Fr. Perthes. Gotha, 1920. Pag. 14 e 15).

Mas é preciso observar que os marxistas explicam estas particularidades nacionais pela marcha efetiva da evolução social e não se contentam em apontá-las com o dedo; em segundo lugar, eles não exageram a importância dessas particularidades e sabem "ver as arvores atrás da floresta", enquanto que os simples partidários da "psicologia nacional", etc., são incapazes de reconhecer a floresta; em terceiro lugar, os marxistas não escrevem bobagens como o fazem constantemente os sábios e os semi-sábios da pequena-burguesia, os fanfarrões que floreiam sobre o tema da "alma popular". Todos sabem por exemplo que o pequeno-burguês russo sempre considerou como característica de todo alemão o ser pequeno-burguês. Ora, os operários alemães nos provam hoje em dia que isto não é verdade. Todos sabem quantas tolices foram escritas e publicadas sobre "a alma eslava". Quando, por exemplo, o mesmo Hurwicz descobre num arroubo de imaginação que o bolchevismo não é senão o czarismo às avessas, quando ele pretende reconhecer no bolchevismo os métodos de governo da autocracia, o que ele mostra com isto não são as características da "alma russa", que segundo ele explicariam esta identidade de métodos; mas ele manifesta a sua qualidade de alma de pequeno-burguês internacional, apavorado pela Revolução e que sustenta atualmente os partidos da social-democracia.

A psicologia de classe apóia-se sobre o conjunto das condições de vida das classes respectivas e estas condições de vida são determinadas pela situação das classes e pelas conjunturas econômicas, políticas e sociais.

É preciso considerar, além disto, a complexidade de toda psicologia social. Acontece por exemplo que psicologias de classe, absolutamente opostas no fundo, apresentem analogias flagrantes na forma. Quando se produz por exemplo uma luta de classes encarniçada, uma luta de morte, está claro que, no fundo, os sentimentos, tendências, esperanças, desejos, aspirações, ilusões, etc.. serão diferentes nas classes opostas; mas aforma, de seus

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estados psíquicos, ardor extraordinário, violência apaixonada, fanatismo da luta e mesmo um certo heroísmo particular, poderá apresentar certas analogias nas duas classes.

Dissemos que a psicologia das classes é determinada pelo conjunto das condições de vida de cada classe, condições que têm a sua base na situação econômica de cada classe. Esta é a razão por que é absolutamente impossível reduzir toda psicologia da classe ao interesse desta, como se faz às vezes. É indiscutível que o interesse de classe determina essencialmente a luta de classe. Mas a psicologia de classe a isto não se limita. Já vimos mais acima que, na época da decadência do império romano, filósofos da classe dirigente pregavam o suicídio e que esta propaganda obtinha sucesso porque concordava com a psicologia desta classe dirigente, que era uma psicologia de homens saciados e por conseguinte fartos de viver. Podemos perfeitamente explicar a formação de semelhante psicologia; vemos que ela tem sua raiz no parasitismo de uma classe dominante que nada fazia, e cuja existência inteira se limitava a consumir sem cessar, a experimentar de tudo até se enfastiar. Isto se explicava pela situação econômica dessa classe, pelo papel que ela desempenhava (ou antes que ela não desempenhava) no trabalho do país. A psicologia da saciedade e da morte era uma psicologia de classe. Entretanto, é impossível dizer-se que, pregando o suicídio, Sêneca exprimia um interesse de classe, mas, de outro lado, não se poderia concluir que um suicídio ou um ato desse gênero nunca tenha relação com o interesse de classe. As greves de fome nas prisões russas eram por exemplo atos de luta de classe, modos de protestar e dar maior ímpeto à luta, atos simbólicos que indicavam a solidariedade dos militantes e que os uniam no combate. Ora, a luta se fazia em nome dos interesses de classe. Acontece às vezes que o desespero se apodera das massas ou dos grupos, depois de uma grande derrota na luta de classe. Isto tem uma certa relação com o interesse de classe, mas uma relação de caráter muito particular: os homens eram levados para a luta por razões secretas de interesse; mas eis o exército dos militantes vencido, derrotado; produz-se então uma decomposição, há desespero na derrota; e começa-se a esperar um milagre, foge-se da sociedade humana, elevam-se os olhares para o céu. Depois da derrota dos grandes movimentos populares que se produziram na Rússia no século XVII e que se colocavam frequentemente sob o estandarte religioso, apareceram formas de protesto

«extremamente diversas, inspiradas pela desilusão e pelo desespero»; «Pregava-se a fuga para o deserto ou o suicídio pelo fogo». «Centenas e milhares de homens sobem por espontânea vontade para a fogueira... Exaltados, envolvendo-se numa mortalha branca, deitam-

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se nos túmulos e esperam a hora comparecer diante de Deus» (S. Melgunov: Os movimentos sociais.religiosos do povo russo no século XVII, tomo 1, pag. 019).

Este estado de espírito é muito bem expresso em do poemas dessa época citados por Melgunov:

Bela solidão, ó Mãe, Longe dos rumores da terra, Seja meu asilo e reconforto...

Ou:

Num ataúde feito de pinho, 

Quero esperar a jazer A trombeta do Julgamento...

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Vemos assim que, examinando de perto a psicologia classe, encontramo-nos em presença de um fenômeno mui complexo que não pode ser reduzido somente ao interesse, mas que, entretanto, explica-se sempre pelas circunstancias concretas nas quais a classe encontrou seu destino.

Na estrutura psicológica da sociedade, isto é, entre diferentes aspectos da psicologia social, encontramos igualmente a psicologia do grupo, da profissão, etc.

No interior de uma classe, podem existir diversos grupos: por exemplo, na burguesia, encontramos o elemento financeiro e capitalista, o elemento comercial, o elemento industrial, etc..; na classe operária, encontramos uma aristocracia de operários qualificados ao lado de operários instruídos de modo simples ou desprovidos completamente instrução profissional. Cada um desses grupos tem interesses um pouco diferentes dos do grupo vizinho e assinala-se por certos traços de caráter particular: por exemplo, o operário qualificado gosta de seu oficio, ele se orgulha de ter passado a mestre e de se distinguir dos outros; ele tem tendência a se aproximar da classe superior e gosta de pôr um colarinho branco para se dar ares de burguês. A profissão imprime também sua marca sobre a psicologia: quando, por exemplo, se reprocha os burocratas, o que neles encontramos de ruim são certos traços de caráter devidos à psicologia da profissão: espírito rotineiro, amor da papelada, preferência dada à forma sobre o fundo (formalismo), etc.

Formam-se tipos profissionais cujas particularidades mentais decorrem diretamente do gênero de ocupação e cuja psicologia dá origem a uma ideologia especial.

«Os políticos profissionais, escreve Engels, os teóricos do direito positivo, os especialistas do direito civil... perdem todo contato com os fatos econômicos. Como, em cada caso, os fatos econômicos devem revestir a forma jurídica para serem sancionados sob a forma de leis, e como é preciso, além disso, levar em conta o sistema de direito existente, a forma jurídica é tudo e o conteúdo econômico nada» (Ludwig Feuerbach).

A psicologia profissional revela o homem: alguns minutos de conversação são suficientes para ver se temos diante de nós um caixeiro, um açougueiro ou um jornalista. Estes tragos característicos da profissão são internacionais: podem ser observados nos mais diferentes países.

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Assim, paralelamente à psicologia de classe, que é a forma mais acentuada e mais importante da psicologia social, existe uma psicologia de grupo, uma psicologia profissional, etc.. E pode-se dizer que todo grupo de homens (mesmo se for um clube de jogadores de xadrez ou de coristas) imprime um certo traço no caráter da sociedade. Mas como a existência de um grupo humano qualquer está ligada ao regime econômico da sociedade, é deste regime que ela depende em última análise e todas as formas da psicologia social formam uma grandeza que depende do modo de produção social, da estrutura econômica da sociedade.

É bastante fácil agora determinar a relação da psicologia social e da ideologia social. A psicologia social é de certa maneira um reservatório para a ideologia. Pode-se compará-la a uma solução de cloreto de sódio em que se depositam pouco a pouco os cristais da ideologia. Vimos, no princípio deste parágrafo, que a ideologia se distingue por uma maior sistematização de seus elementos, isto é, dos pensamentos, sentimentos, sensações, imagens, etc.. Que é que a ideologia sistematiza? Ela sistematiza aquilo que está pouco sistematizado ou que não está absolutamente sistematizado, isto é, a psicologia social. As ideologias são as cristalizações da psicologia social. Vamos dar alguns exemplos. Já na aurora do movimento operário, a classe operária tinha um sentimento de descontentamento, ela tinha idéia da injustiça do regime capitalista, o desejo vago de substituí-lo por alguma coisa diferente. Mas tudo isso era confuso, sem nexo. Não se tratava de uma ideologia. Mas eis que aparecem fórmulas nítidas, coerentes, um sistema de reivindicações (programa), um «ideal», etc.. É a isto que se dá o nome de ideologia. Ou suponhamos ainda que a sensação do sofrimento e do desejo de sair da sua situação se traduzem numa obra de arte qualquer: isto será também uma ideologia. Evidentemente, não se pode sempre demarcar uma linha de separação rigorosa. A ideologia não está separada da psicologia por uma parede estanque. Na realidade, existe um processo contínuo de concretização, de solidificação da psicologia social numa ideologia social. Por isso, toda variação da psicologia social é acompanhada de uma variação da ideologia social, o que observamos várias vezes no parágrafo precedente. Quanto à psicologia social, ela varia em função das relações econômicas que estão em via de constante transformarão, pois ao mesmo tempo se produz um reagrupamento das forças sociais e as variações do nível das forças de produção determinam a aparição de novas recepções sociais.

Agora que demos uma série do exemplos na análise das ideologias, é inútil demorarmo-nos sobre a modificação da psicologia social e sobre a sua ligação com as modificações da ideologia. Vamo-nos limitar a indicar que a literatura atual estuda atentamente a questão do "espírito do capitalismo", isto

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é. da psicologia dos empreendedores. Tais são os trabalhos de W. Sombart (O burguês), de Max Weber e, nestes últimos tempos, de Hermann Levy: (Estudos sociológicos sobre o povo inglês, Iena, 1920). Já no tomo 1.º do Capital, Marx escrevia:

"O protestantismo desempenha um papel considerável na gênese do capitalismo, mesmo que seja somente pela transformação dos feriados tradicionais em dias úteis".

Em várias ocasiões, ele indicou que a mentalidade puritana, econômica e ao mesmo tempo trabalhadora, obstinada, prosaica do protestantismo, estranha à pompa e ao brilho do catolicismo, era a mentalidade da burguesia no seu período de crescimento. Esta teoria valeu-lhe numerosos debiques. Ora, agora, os sábios burgueses mais eminentes a retomam, mas evidentemente sem atribuí-la a Marx. Sombart mostra que a acumulação dos traços mais diferentes (sede de ouro, amor ao risco, espírito inventivo, aliados à arte de saber contar, a razão fria e a moderação judiciosa) deu como resultado «quilo que se denomina "mentalidade capitalista". Esta mentalidade, naturalmente, não se formou por si mesma; ela se constituiu paralelamente à modificação das relações sociais: ao mesmo tempo que o corpo do capitalismo se fortificava seu espírito se desenvolvia; todos os traços fundamentais da psicologia econômica se modificavam: na época pré-capitalista, a idéia econômica fundamental do nobre era a da "conveniência", daquilo que "fica bem para sua posição" (o dinheiro é feito para ser gasto, escrevia Tomaz de Aquino); a economia era gerida de maneira irracional, sem contabilidade exata, a tradição e a rotina dominavam; a vida desenrolava-se num ritmo lento (os dias feriados formavam quase a metade do ano); a iniciativa e a energia faltavam; a mentalidade capitalista, que sucedeu à mentalidade senhorial feudal, está ao contrário fundada sobre a iniciativa, a energia, a rapidez, a renuncia à rotina, a contabilidade racional e a reflexão, a sede de acumulação, etc.. A transformação completa das relações de produção foi acompanhada de uma transformação completa da mentalidade.

40. Os processos ideológicos como trabalho diferenciado

É possível e mesmo necessário abordar por outro lado a questão das ideologias e das superestruturas em geral, afim de compreender estes fenômenos extremamente importantes da vida social. Sabemos já que, pela sua composição, as superestruturas representam uma grandeza complexa, em que entram homens e coisas; quanto às ideologias, são por assim dizer um produto espiritual. Se assim é — e isto é incontestável — precisamos considerar a superestrutura no seu movimento (e por conseguinte, seus processos ideológicos) como uma forma especial do trabalho social (mas não

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da produção natural). No começo da «história humana», isto é, na época em que o super-trabalho não existe, não há quase ideologia. Não é senão depois da aparição do super-trabalho que, «ao lado da imensa maioria, exclusivamente ocupada no labor físico, forma-se uma classe libertada do trabalho direto de produção e ocupada da gerência das questões sociais: direção do trabalho, administração do Estado, exercício da justiça, estudo das ciências, produção das obras de arte, etc.. É assim que a lei da divisão do trabalho forma a base da divisão em classes». (Engels: O desenvolvimento do socialismo, da utopia à ciência). Numa passagem Marx declara que os padres, juristas, homens de Estado, etc., são «castas ideológicas» (ideologische Stande). Em outros termos, podemos considerar os processos ideológicos como uma forma determinada de trabalho. Este trabalho não é a produção material. Não é nem mesmo uma parte dela. Mas como nós já sabemos pela análise das ideologias, elesurge da produção material e dela se destaca para formar ramos especiais da atividade social. O crescimento da divisão do trabalho exprime o crescimento das forças de produção da sociedade; é por isso que o desenvolvimento das forças de produção é acompanhado de um lado pela divisão do trabalho no domínio da produção material, e doutro pela aparição do trabalho puramente ideológico que, ele também, se divide.

«A divisão do trabalho não é especifica do mundo econômico; pode-se observar a sua influência crescente nas regiões as mais diferentes da sociedade. As funções políticas, administrativas, jurídicas se especializam cada vez mais. O mesmo se dá com as funções artísticas e cientificas. (E. Durkeim: Da divisão do trabalho social, Paris, 1893, pag. 2).

Desse ponto de vista, toda a sociedade é como uma imensa, máquina de trabalho com partes especiais para cada trabalho. O trabalho social comporta duas divisões fundamentais: primeiro, o trabalho material, isto é, a produção; segundo, todas as formas de trabalho que dizem respeito às superestruturas: administração, política, etc., e também ao trabalho ideológico. Esse trabalho, em conjunto, está organizado de acordo com o mesmo modelo que o trabalho material. Ele comporta uma hierarquia de classe: no cume, os detentores dos meios de produção; em baixo, os «não possuidores». Quase em todos os domínios do trabalho «superestrutural» a situação é a mesma que no processo de produção material, onde os que estão no cume representam um papel especial pelo fato de que são eles os detentores dos meios de produção e, portanto, acham-se igualmente no cume do processo de repartição. É assim no exército, como vimos; é assim igualmente na ciência e na arte. Na sociedade capitalista, por exemplo, um grande laboratório técnico está interiormente

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organizado como uma empresa industrial. A organização dum teatro, com o proprietário, o diretor, os artistas, os figurantes, os técnicos, os empregados, os operários, lembra igualmente a de uma fábrica.

Por conseguinte (na medida em que se trata de uma sociedade de classes) achamo-nos aqui em presença de diversas categorias de pessoas, com funções diferentes, que estão socialmente ligadas a essas pessoas, e a posição a mais elevada implica a posse do que se poderia chamar «meios espirituais de produção», que constituem uma propriedade monopolizada de classe; segue-se que na repartição dos produtos materiais (e é antes de tudo do gozo de bens materiais que vivem os homens), os detentores destes «meios espirituais de produção» recebem da produção geral uma parte relativamente maior do que aqueles que estão debaixo deles.

Sabemos como as classes dirigentes são agarradas ao seu monopólio do saber. Na antiguidade, os sacerdotes, únicos detentores do saber, fechavam a entrada dos "templos da ciência" e não deixavam penetrar senão um número reduzido de eleitos; além disso, o próprio saber se achava envolvido por um véu de mistério divino e terrível, accessível unicamente a pequeno número de "sábios" e de "justos". Para se ver a que ponto as classes reinantes apreciavam esse monopólio, baeta ver-se a seguinte opinião do filósofo idealista alemão Fr. Paulsen:

"Para aquele que, em virtude das relações sociais, está ligado à profissão, cuja situação material seria a do operário manual, não haveria nenhuma vantagem em receber a instrução de um sábio; não somente por essa instrução não melhorar a sua sorte, mas ao contrário, lhe tornar a vida mais difícil." (Frederic Paulsen: Das modern Bildungwesen in Kultur der Gegenwart, t. 1, p. 75. Note-se de passagem que esta enorme edição da Cultura Contemporânea, na qual tomou parte a elite dos professores alemães, era dedicada a Guilherme II!).

Assim o honrado filósofo idealista considera o homem como preso, desde o seio mesmo de sua mãe, aos grilhões do capital e lhe tira direito à instrução, mesmo antes de sua vinda ao mundo.

Esse caráter de monopólio da instrução foi a principal causa da resistência tenaz dos intelectuais russos por ocasião da Revolução proletária. Pelo contrário, uma das principais conquistas da Revolução proletária foi a abolição deste monopólio.

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Se considerarmos a produção material, veremos que ela se subdivide numa série de ramos diversos; primeiramente, indústria e a agricultura, em seguida uma quantidade enorme (numa sociedade capitalista desenvolvida) de subdivisões secundárias, desde a indústria mineradora e a produção dos cercais até à fabricação das agulhas e a cultura da alface. Dá-se exatamente o mesmo no domínio das «superestruturas»: encontram-se nelas as grandes subdivisões (ponhamos, por exemplo, as admitidas no passado, isto é, a gestão de negócios, a elaboração de leis, as ciências, as artes, a filosofia e a religião, etc..); do outro lado, cada uma dessas subdivisões compreende, por seu turno, uma série de ramificações: a ciência, por exemplo, agora se ramifica numa grande quantidade de especialidades diferentes, e da mesma forma a arte. Prossigamos. Na produção material, como vimos, deve haver, se existe uma organização social, uma certa proporção, por grosseira que seja, entre os diferentes ramos da produção, sem o que não pode existir organização social. Tomemos mesmo uma sociedade capitalista que ande a esmo, onde não existe um plano geral de produção, onde reina, pelo contrário, o que se chama «anarquia da produção», isto é, a falta de proporção entre os diferentes ramos da produção; constatamos, apesar de tudo, por momentos, que essa «anarquia» se organiza progressivamente; que essa grosseira ruptura de proporções se corrige através de duras convulsões, é verdade, e não por muito tempo, mas em todo caso se corrige por um certo tempo; se não fosse assim, a primeira crise industrial seria o fim do capitalismo. Indaguemos agora se pode existir numa sociedade um estado de coisas tal, que entre a produção material e os outros aspectos não materiais de trabalho, não haja em absoluto nenhuma proporção. A esta questão pode-se responder da seguinte forma: um tal estado de coisas pode existir, mas então a sociedade não se pode desenvolver, e tem de entrar em decadência. Se, por exemplo, mais trabalho é despendido para sustentar os teatros, ou o aparelho do Estado, ou a Igreja, ou mesmo a arte, então inevitavelmente as forças produtivas declinarão. Por que? Pela mesma razão que faria cair a produção numa empresa em que um só trabalhasse onde este se ocupasse em contar o que ele faz, onde dois cantassem para o animar e onde um outro os controlasse a todos. Como ao mesmo tempo todos comem, e não um só, está claro que uma tal empresa não se manteria muito tempo com vida. Do outro lado, não é menos claro que se não existisse nenhuma pessoa para fazer o cálculo dos produtos, ninguém para unificar o trabalho dessa empresa, ninguém (nem todos juntos, nenhum deles) para coordenar de uma forma qualquer a atividade de cada um dos membros, ninguém para entrar em relações com o mundo exterior, então os negócios não marchariam tampouco, por mais esforços que fizessem e por mais trabalho que pudessem fornecer os operários os mais corajosos. Dá-se o mesmo, guardadas as devidas proporções, na sociedade tomada em conjunto. Por conseguinte, se uma ordem social existe de uma forma durável, é que existe nela um certo

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equilíbrio, por menos estável que seja, entre o conjunto do trabalho material e o conjunto do trabalho de caráter «superestrutural». Suponhamos um instante que nos Estados Unidos da América desaparecessem numa noite todos os sábios: matemáticos, mecânicos, químicos, físicos, etc. Uma produção do tipo atual se tornaria impossível, pois ela está toda fundada no cálculo cientifico. A produção entraria em regresso, suponhamos doutra parte que 90% dos operários atuais se transformassem por um milagre qualquer em sábios matemáticos que não participassemda produção. Resultaria na ruína igualmente completa: a sociedade cairia de um só golpe, como uma chave na água. Mas se em toda sociedade deve existir uma certa proporção (se bem que, repitamo-lo os seus limites sejam extremamente grandes) entre o conjunto do trabalho material e o conjunto do trabalho compreendido nas «superestruturas», é preciso acrescentar dum outro lado que a repartição do trabalho dentro das superestruturas não é em nada coisa indiferente. Da mesma forma que entre os diferentes aspectos do trabalho material existe um certo equilíbrio (os diferentes ramos do trabalho «tendem ao equilíbrio», como disse Marx, no tomo 3, do Capital), da mesma forma entre os diferentes ramos do trabalho intelectual deve haver um mínimo de equilíbrio. A repartição destes «ramos de produção» intelectual é determinada naturalmente pelaestrutura econômica da sociedade. Com efeito, por que, por exemplo, uma enorme quantidade de trabalho popular no antigo Egito se encaminhava para a construção de monumentos gigantescos de arte feudal: pirâmides, estatuas colossais de Faraós, etc.. Porque a sociedade então, com sua estrutura econômica, não podia se manter sem inculcar a todo momento aos escravos e aos camponeses a idéia de grandeza e do poder divino daqueles que reinavam. Não existiam então nem jornais nem agencias telegráficas. A arte servia de comunicação intelectual. Era pois uma necessidade vital para esta sociedade, e nada de extraordinário, portanto, que o orçamento do trabalho do país lhe reservasse uma parte tão grande. Por que na Grécia, em fins do século V.º, era «ética», a elaboração de regras morais, que tinha a proeminência na esfera do trabalho intelectual? Porque, em presença da enorme quantidade de contradições vitais entre as diferentes classes, dos diferentes grupos e sub-grupos no momento em que o equilíbrio social se tinha rompido em que estalavam os antigos «fundamentos» da sociedade era natural que o que dizia respeito às relações entre homens, as relações de homem para homem, que os problemas de organização destas relações se apresentassem uma forma particularmente aguda, mesmo para as classes dirigentes, para as quais era indispensável concertar por todos os meios possíveis os laços sociais rompidos. Por que na América atual (nos Estados Unidos) a arte está tão pouco desenvolvida, enquanto que a América é o primeiro país que criou em toda sua amplidão a ciência da organização da produção (o Taylorismo, psicotécnica, psicofisilogia do trabalho e outros ramos da ciência)? Porque arte

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não é necessária para o mecanismo capitalista americano: os cérebros são amoldados pela imprensa capitalista americana, que atingiu nesse domínio à virtuosidade; pelo contrário, a questão da racionalização da produção de inevitavelmente representar um papel no país dos «trustes» a «gestão científica» (scientific management) é uma das grandes questões vitais de um tal sistema econômico.

É assim que se estabelece também inevitavelmente, domínio do trabalho de «superestrutura» (e por conseguinte, de todo trabalho ideológico) uma certa proporção das partes que o compõem na medida em que a sociedade se acha em estado de equilíbrio; além disso, esta proporção que fixa a repartição dos diferentes ramos do trabalho intelectual, é determinada pela estrutura econômica da sociedade e pelas exigências de sua técnica.

Essas considerações são confirmadas, entre outros, por um dos ramos do trabalho intelectual: a escola. Com efeito, o que é a escola em geral, tanto a superior como a secundaria e a inferior ou primaria? É, no conjunto do trabalho social, uma ramificação onde se «ensina», isto é, onde se dá à força operária uma competência determinada, um «ensino» especial, onde se faz de uma simples força operária uma força operária particular. A língua popular diz: estudar «para ser médico», «para ser advogado», «para ser oficial», «para ser engenheiro», «para ser técnico», etc.. Mas dá-se o mesmo em todos os domínios do ensino, isto é, deste processo especial no curso do qual os homens adquirem qualidades particulares, que os tornam aptos ao cumprimento de funções particulares mais ou menos especiais; sob este aspecto, não existe diferença entre a escola profissional que forma os serralheiros e o seminário donde saem sábios padres, ou os corpos de cadetes do tempo dos czares que preparavam oficiais. Segue-se que a instituição de escolas, uma divisão em diversas categorias (escolas comerciais, profissionais, militares, estabelecimentos técnicos superiores, universidades, etc..) correspondem à necessidade que sente uma dada sociedade de diferentes modalidades de trabalho material ou espiritual que nela se ensina.

Aqui estão alguns exemplos que esclarecem esta idéia:

Na idade média, por exemplo, a escola estava toda ela nas mãos dos padres. A sociedade feudal não podia viver sem um formidável desenvolvimento da religião. Aí está porque "as escolas dos mosteiros", das catedrais, cujo número ultrapassava o das universidades, a vida em colégios, o ensino na faculdade de artes, tudo trazia um cunho monástico, claustral, tudo era concebido e estabelecido de acordo com um espírito eclesiástico e

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teológico". (Prof. Ziegler: Introdução à História da Pedagogia).

"À parte um pequeno número de escolas especiais de medicina e de jurisprudência, a generalidade das universidades, bem como as escolas primarias, serviam principalmente para preparar cléricos". Ao lado existia uma escola para a preparação de soldados-cavaleiros para estes, ''o ensino" consistia em formar uma “força de trabalho" não eclesiástica, mas militar. Ensinavam-se principalmente às crianças as sete "honorabilidades" do cavaleiro; "além das seis artes físicas (equitare, natare, sagittare, cestibus certare, aucupare, scassis ludere, isto é, equitação, natação, tiro de arco, esgrima, caça, jogo de damas), contava-se também a arte de versificare, a versificação e a música singen und sagen". É claro que se tratava aqui de formar um tipo de homens particular, necessário para a sociedade feudal.

Mas eis que a cidade se desenvolve, a burguesia comercial também, etc.. E o que acontece? A resposta (e uma excelente resposta) nos é dada pelo mesmo professor Ziegler:

"Porém, diz ele, novas necessidades aparecem em matéria de ensino, noutro domínio. Os negociantes e artesãos vivendo nas vilas florescentes tinham necessidade duma instrução mais prática que a recebida pelos sábios e cavaleiros. As comunas urbanas se puseram a construir elas mesmo suas escolas, onde os habitantes da cidade recebiam a instrução indispensável que convinha ao seu estado." (Ziegler, loc. cit.).

Com o desenvolvimento do capitalismo industrial e o aumento da necessidade de operários qualificados, mesmo no domínio do trabalho manual, aparece o que se chama a escola profissional.

"Para manter a indústria nacional, os governos e artesãos tiveram por fim que dar aos alunos a instrução profissional que eles outrora recebiam na oficina do patrão que os empregava." (N. Krupskaia: A instrução popular e a democracia — 1921).

Depois, esta escola se transforma novamente por efeito do crescimento da grande indústria e da nova procura de "contra-mestres, fiscais, auxiliares, engenheiros, etc.." (ibidem). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento colossal dos estabelecimentos secundários e superiores de ensino especial, onde

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as ciências naturais e as matemáticas representam um grande papel: institutos superiores de comércio, academias agronômicas, etc.

É com muita franqueza na sua impudência que o filósofo idealista alemão F. Paulsen, já citado, nos revela o sentido do ensino capitalista. Estas passagens de sua obra são tão instrutivas, dão um quadro tão cru, que nós a citamos integralmente (o que explica a franqueza de Paulsen, é que tudo que ele escreve está num volume de tal espessura que não há perigo de o ver cair nas mãos de um operário; ele escreve, portanto, unicamente para os tubarões capitalistas e é por isso que ele se permite misturar algumas verdades à sua tagarelice):

"O estado efetivo da instrução é sempre e por toda parte essencialmente determinado pela forma da sociedade e pela sua divisão... Na situação da instrução social se reflete a da sociedade que a provocou. A sociedade tem sempre uma dupla divisão: divisão segundo as formas do trabalho social, e divisão segundo as relações de posse (mais exatamente: da propriedade, N. B.). A primeira divisão é uma divisão em profissões; das diferenças de posse nasce a divisão em classes sociais. As duas divisões têm uma influência sobre as condições de ensino... as formas do trabalho social e a situação profissional determinam em geral oobjeto do ensino; a situação de classe, ou o estado de prosperidade das famílias determina numa considerável medida o grau de acesso da juventude aos diversos cursos escolares. A sociedade quer e possui três espécies de funções, três espécies de órgãos: motores, reguladores e espiritualmente criadores e diretores. O primeiro grupo é constituído por todos aqueles cujo trabalho exige antes de tudo força e habilidade física; é aqui que se devem classificar os operários da indústria e os artesãos, os operários agrícolas e os pequenos camponeses, enfim aqueles que, no comércio e no transporte, são empregados na qualidade de órgãos executivos de última categoria. O segundo grupo compreende aqueles cujo trabalho profissional consiste em dirigir o processo do trabalho social e garantir a instrução dos operários no trabalho físico; é aqui que se alinham os fabricantes e técnicos, os diretores de grandes empresas agrícolas, os negociantes e os banqueiros, os funcionários superiores

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do comércio e dos transportes, bem como os funcionários inferiores do Estado e das municipalidades, finalmente, o terceiro grupo é o das profissões que se denominam ordinariamente "intelectuais" e cujo funcionamento exige estudos independentes e o desenvolvimento dos conhecimentos científicos; ligam-se a este último grupo os pesquisadores e inventores, em seguida as pessoas que ocupam os postos mais elevados da administração civil e militar, na Igreja e na escola, enfim os médicos, os técnicos colocados nas posições de direção, etc. " (Paulsen- Kultur der Gegenwart, pag. 64, 65).

É a essa divisão em três grupos que corresponde a divisão das escolas em três graus. Esta pequena história que nos narra Paulsen mostra-nos perfeitamente bem o mecanismo da escola de uma parte, nela se forma a quantidade desejada, o número almejado de operários para toda a espécie de trabalho material e intelectual; do outro lado, as funções intelectuais superiores estão indissoluvelmente ligadas a classes determinadas, graças ao que se mantém o monopólio da instrução e com ele o regime capitalista. O único erro de Paulsen é de se colocar, ele e seus colegas) muito acima dos fabricantes e dos banqueiros, cujas botas os intelectuais lambem, por necessidade ou sem ela.

Assim a escola nos revela, primeiro, o sentido prático, a raiz real de todas as ideologias. Suponhamos que um matemático se insurja contra a nossa opinião de que a sua ciência pura «tem um sentido absolutamente terrestre», nós lhe perguntaremos: por que então se ensinam estas matemáticas aos filhos de comerciantes nas escolas comerciais, aos futuros geômetras nos estabelecimentos de ensino agronômico, aos futuros técnicos nas escolas técnicas, etc.? E se pretende que isto não são senão as migalhas da ciência, perguntemos: por que os «matemáticos puros», que efetivamente não representam nenhum papel na vida prática, não compreendem dela coisa alguma e atrapalham todas as coisas? Por que fazem preleções a pessoas que estudam «para serem engenheiros» ou «para serem geômetras»? E se, cedendo ainda um passo, nosso contraditor nos opõe que existem sábios que não ensinam a ninguém e não fazem conferencias, nós retrucaremos ainda: sim, mas estes sábios não escreverão livros? Nesses livros, quem os lê, senão os professores que ensinam os futuros engenheiros, os quais, com a sua ciência, farão cálculos e planos para construção de pontes, de caldeiras a vapor ou de estações elétricas? Em segundo lugar, a escola nos revela as necessidades relativas que sente uma sociedade dada para as diferentes formas do trabalho qualificado, inclusive as mais elevadas.

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Portanto, de fato, o mesmo laço econômico que liga tojos os ramos do trabalho material liga também todas as ciências entre si. E o mesmo se dá em todos os ramos do trabalho intelectual. O trabalho material constitui sua base constante e geral.

§ 41. O alcance das superestruturas

Somos levados agora a um exame mais detalhado do sentido das superestruturas em geral e entre elas, das diferentes ideologias. Este sentido, parece que melhor se pode esclarecer procedendo à critica das objeções que ordinariamente são feitas pelos adversários da teoria do materialismo histórico.

Chocamo-nos aqui, antes de tudo, nas objeções contra as raízes práticas das ideologias, contra a afirmação de que as «superestruturas» e as ideologias tenham alcance auxiliar. Contra isto. argumenta-se com o fato de que muitas vezes os saldos e os artistas não imaginam um só momento que suas idéias ou suas obras de imaginação possam representar um papel prático qualquer. Ao contrário, o sábio procura a «verdade pura», ele a procura por ela mesma; é um apaixonado desta bela dama a Verdade e as idéias práticas nada têm a fazer aqui: trata-se de um casamento de amor e não de um interesseiro. O verdadeiro artista crer como o pássaro canta; ele ama a arte pela arte; é para ele o alvo supremo, e nela e só nela vê o sentido da vida. Da mesma forma que os juristas proclamaram: «Pereça o mundo, mas salve-se a «justiça» (vivat justitia pereat mundus), da mesma forma o verdadeiro músico daria o mundo inteiro por uma bela sinfonia. O verdadeiro artista vive para a arte, o verdadeiro sábio para a ciência, o verdadeiro jurista para o Estado (em Hegel, por exemplo, o Estado capitalista e junker prussiano é a manifestação suprema do espírito do mundo na história da humanidade; como então não dar por ele a própria pele?)

Em primeiro lugar, será bem verdade que seja este o pensamento e o sentimento dos sábios e dos artistas? Talvez, como se diz, «encham a cabeça» do respeitável publico, e o enganem na realidade sem escrúpulo algum? Certamente, isto acontece também. Mas não se pode reduzir a questão, mesmo parcialmente, ao desenvolvimento dessa consideração. É um fato que o verdadeiro sábio, o verdadeiro artista, o jurista-teórico erudito ama sua ciência como a si próprio, e não cogita absolutamente de nenhum lado prático do seu trabalho. Isto está fora de duvida e poderia ser confirmado por milhares de exemplos de toda espécie. Mas não é disso que principalmente se trata. Pois a psicologia subjetiva da ideologia é uma coisa, e o papel objetivo da ideologia outra. É uma coisa saber o que o homem pensa do seu trabalho; é uma outra saber qual o alcance desse trabalho para a sociedade. São essas questões, como qualquer um pode se certificar, muito diferentes uma da outra.

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Representemo-nos como as coisas se passam de fato. Já o vimos, a ideologia, (as matemáticas, por exemplo) sai sem duvida alguma de necessidades práticas. Mas ela se especializou e fragmentou-se numa série de domínios diferentes; o especialista que trabalha num desses domínios não vê que a ciência satisfaz a uma necessidade prática. Ele se ocupa unicamente do «seu negócio», e mais esse negócio lhe agrada, mais o seu trabalho é produtivo, mais progride. Quanto a passar da aplicação de sua teoria à prática, é negócio de outras pessoas que trabalham em outros domínios. Antigamente, quando esta especialização não existia, o alcance prático da ciência era claro para todos; agora está velado. Antigamente o desenvolvimento do saber servia, mesmo no cérebro dos homens, para fins práticos. Agora, ele serve ainda para fins práticos, mas no cérebro de especialistas isolados da vida prática ele aparece como qualquer coisa de completamente independente desta prática. A razão é fácil de se apanhar. Neste terreno também, o estado de espírito dos homens é condicionado pelo seu gênero de vida. Com efeito, ao homem que trabalha unicamente num domínio biológico, é inevitável que este domínio se apresente como o umbigo da terra, ao redor do qual tudo gravita. Ele vive eternamente no circulo das noções que se ligam a este ramo de atividade, pois, como bem o indicou Engels (Ludwig Feuerbach, p. 52), toda a ideologia não aparece ao seu autor

«senão uma operação, um trabalho sobre idéias, consideradas como independentes, desenvolvendo-se por se próprias, como entidades submetidas unicamente a suas próprias leis».

Antigamente, antes da especialização, o homem raciocinava assim: É preciso que eu reflita um pouco sobre esta «geometria» para que no próximo ano a medida das terras aráveis se faça mais facilmente. Hoje, o especialista matemático dirá: É preciso resolver esta questão a todo custo, é este o fim da minha vida. E. Mach exprime esta idéia sob uma forma um pouco diferente, mas o fundo é o mesmo. Ele escreve:

«Para o artesão, e ainda mais para o pesquisador, o conhecimento o mai3 sumario, o mais simples, dum processo natural determinado, que corresponde a um esforço mínimo de gasto intelectual, transforma-se ele próprio num fim econômico; e ao lado desse fim — se bem que este conhecimento não tenha sido originariamente, senão um meio de atingir um fim — se desenvolvem tendências intelectuais correspondentes que exigem satisfação, e que não cogitam mais,

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absolutamente, de necessidades materiais». (E. Mach.: Geschichte der Mechanik, 4.a edição, pag. 7). (As passagens grifadas o foram por nós, N. B.).

Assim o sistema de superestruturas, desde a superestrutura político-social, até a superestrutura filosófica inclusive, está ligado à base econômica e ao sistema técnico duma sociedade dada, como um elo indispensável dos fenômenos sociais.

Engels escrevia a este respeito, numa carta a Franz Mehring em data de 14 de julho de 1893:

"O trabalho ideológico é um processo que, sem duvida, é conduzido por aquele que se chama pensador, de uma forma consciente (mit Bewusstsein), mas falsamente consciente (aber mit einem falschen Bewusstsein). As verdadeiras forças motrizes, que o põem em movimento, são por ele ignoradas: senão não seria um processo ideológico. Assim ele se forja falsas ou aparentes forças motrizes. Como se trata de um processo especulativo, ele deduz o conteúdo e a forma da pura especulação, seja da sua própria, seja de seus predecessores. Ele trabalha exclusivamente com um material especulativo que recebe sem a menor critica, como produto da especulação, e não vai além até o processo mais afastado, independente, da especulação; tudo isso lhe parece ir por si só, pois para ele toda a atividade, porque tem por intermediário a especulação, aparece-lhe em última análise como tendo por base esta mesma especulação..." Daí "esta miragem da história independente das instituições políticas, dos sistemas jurídicos, de concepções ideológicas em todos os domínios particulares da ciência, miragem que mais que tudo cega muita gente". (F. Mehring: Qeschicfate der Deutschen Sozialdemocratie, 5.ª edição, Stuttgart, 1913, 1.º volume, pag. 386).

Outra objeção comumente apresentada contra a nossa teoria apóia-se na seguinte interpretação: de fato, dizem, não existe senão a economia, e tudo o mais não são senão futilidades, qualquer coisa de uma ilusão, um nevoeiro, uma miragem, que abusa dos olhos e não representa na realidade coisa alguma; representa-se igualmente o materialismo histórico como segue: existem diferentes «fatores» (forças que agem) na história: a economia, a política, a arte, etc.; entre estes «fatores, alguns são muito importantes, os

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outros sem importância alguma; o «fator» econômico é o único importante, os outros são como a quinta roda da carroça, depois de se ter assim exposto o ponto de vista marxista, começa-se a refuta-lo com veemência, provando em nome do bom senso que existem, mesmo fora da economia, coisas que, elas também, têm alguma importância. Um tal ponto de vista sobre a importância da ideologia é totalmente incorreto, radicalmente falso. As superestruturas não são em absoluto uma futilidade insignificante. Já demos exemplos em apoio disto: suprimam o Estado capitalista — a produção capitalista se tornará impossível; suprimam a ciência contemporânea. — suprimii-se-à ao mesmo tempo a grande produção com a sua técnica; suprimam os meios de Comunicação espiritual, a língua e a literatura, e a sociedade não poderá mais existir e cairá em decomposição. É portanto uma afirmação sem fundamento dizer que a teoria do materialismo histórico nega toda a importância às superestruturas em geral e às ideologias em particular. A questão para os partidários da nossa teoria (do materialismo histórico) não está absolutamente em negar a ideologia e as superestruturas em geral, de considerá-las como um elemento inexistente ou sem importância; a questão está em explicá-las. Isto é uma coisa muito diferente, como nós já o sabemos pelo capítulo sobre odeterminismo e o indeterminismo.

É da mesma forma errado raciocinar do ponto de vista da importância dos «fatores» e dizer que a economia é um fator importante e, por exemplo, a política ou a ciência um fator «não importante». Uma tal posição da questão pode criar uma quantidade de mal entendidos. Como se pode, com efeito, falar da importância dos «fatores» quando, sem a política capitalista, a economia capitalista não pode existir? Propor a questão da importância relativa dos «fatores», equivale a propor, por exemplo, questões como estas: O que é mais importante, o cão da espingarda ou o cano? O braço esquerdo ou a perna direita? A mola do relógio ou a engrenagem? E assim por diante. Pode-se, em certos casos, dizer que uma coisa é mais importante do que outra (está fora de duvida, por exemplo, que a economia é mais importante do que a coreografia), mas em outros casos isto não é possível. Isto porque em todo sistema pode haver partes igualmente indispensáveis para a existência do todo. O cão da espingarda é tão importante quanto o cano (numa espingarda com cão, bem entendido); algumas vezes um parafuso ínfimo do mecanismo é tão importante como qualquer outra parte essencial, pois sem este parafuso nosso mecanismo não é um mecanismo. Chegamos ao mesmo resultado se examinamos, como fizemos mais acima, o trabalho «superestrutural» como parte do conjunto do trabalho social. Que é mais importante para a indústria contemporânea, a metalurgia ou a indústria mineradora? A pergunta é absurda: «Ambas são indispensáveis». O que é mais importante, o trabalho propriamente material ou a gestão de uma empresa? Um é inconcebível sem o outro para estados de

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evolução determinados. É portanto uma coisa absurda expor as coisas como se agissem de «fatores» simplesmente de importância maior ou menor. É uma posição incorreta, confusa e sem valor da questão. «Na história do desenvolvimento da ciência social, essa teoria (isto é, a teoria dos fatores), representou o mesmo papel que a teoria das diferentes forças físicas na história natural. Os progressos da história natural conduziram à doutrina da unidade dessas forças, à doutrina moderna da energia. Da mesma forma que os progressos da ciência social deveriam conduzir à substituição da teoria dos fatores, este fruto da análise social, por um ponto de vista sintético sobre a vida social», (N. Beltov-Plekanov: A concepção materialista da história, p. 313). Convém assim rejeitar a teoria dos fatores. Mas então, no que fica o sentido da separação entre a produção material e as superestruturas? E como se deverá então compreender suas relações recíprocas?

Trata-se de se estabelecer a diferença de caráter entre as diversas funções. A administração da produção não tem o mesmo papel que a própria, produção. Qual é o seu papel? Ela evita atritos, atenua contradições, sistematiza e coordena os diversos elementos de trabalho ou, para empregar uma expressão corrente, faz sobressair uma regra determinada de trabalho, uma «ordem» determinada. Da mesma forma nos outros domínios. Já vimos, por exemplo, que a moral, os costumes e as leis coordenam a atividade dos homens, mantem-nas em certos quadros, de forma a impedir a desagregação da sociedade. Da mesma maneira para a ciência; esse ramo do trabalho não faz em última análise (trata-se das ciências naturais) senão abrir o caminho ao processo da produção, regulando-o, e regulando a sua marcha. E a filosofia? Dela também, já vimos a verdadeira significação. A repartição do trabalho entre as ciências engendra entre elas diversas contradições. É a filosofia que as coordena, que lhes traz ordem e coesão, ou pelo menos se esforça por trazer esta ordem.

Ela nasce das ciências da mesma forma que a administração da produção nasce na produção tomada em si (e nesse sentido, ela é um fenômeno não mais «primário», mas «secundário», não «fundamental», mas «derivado»); mas doutro lado, ela administra até a um certo ponto as ciências, pois lhes traz o que se chama «um ponto de vista geral», ou um «método», etc.

Tomemos um exemplo: a linguagem. A linguagem, Como vimos, nasce da produção, evolui sob a influência da evolução social, isto é, ela se determina, na sua evolução pelas leis da evolução social. Mas em que consiste o seu papel? Ele coordena a atividade dos homens: pois a compreensão recíproca é bem o aspecto mais simples do acordo e da coordenação das relações, dos atos, parcialmente dos sentimentos, etc..

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Estes exemplos são suficientes para fazer sobressair o sentido profundo da separação estabelecida entre o domínio da produção material e o domínio do trabalho ideológico ou de qualquer outro ligado às «superestruturas»; suas relações consistem nisto, em que o trabalho ideológico, ao mesmo tempo que é um elemento derivado, é ao mesmo tempo um princípio regulador. Em relação ao conjunto da vida social, o essencial dessa diferença é a diferença de funções.

Isto esclarece perfeitamente a questão da «influência de retorno» das superestruturas sobre a base econômica e sobre as forças produtivas da sociedade. Elas mesmas (as superestruturas) são engendradas pelas relações econômicas e pelas forças produtivas que determinam estas relações. Mas têm elas do seu lado uma influência sobre estas últimas? Depois do que ficou dito mais acima, está claro que elas não podem deixar de o ter. Elas podem ser uma força de evolução, podem também, em condições determinadas, ser um obstáculo à evolução. Mas de uma forma ou de outra, elas têm sempre uma influência sobre a base econômica e sobre o estado das forças produtivas. Noutras palavras, entre as diversas séries defenômenos sociais existe um processo incessante de ação recíproca. A causa e o efeito se substituem um ao outro.

Mas se reconhecemos esta ação recíproca, em que ficam os fundamentos da teoria marxista? Da mesma forma é este ponto de vista da ação recíproca o da maioria dos sábios burguêses. Portanto, onde está a nossa tese, segundo a qual base da análise deve ser dada pelas forças produtivas e as relações de produção? Não demolimos nós com as nossas próprias mãos o que edificamos nas páginas precedentes?

Estas duvidas podem, é certo, impressionar por um momento o leitor. Mas elas não têm fundamento. Porque, dentre todas as ações recíprocas, as influencias entrelaçadas, etc., uma coisa se conserva invariável: em todo momento dado, a estrutura interna da sociedade é determinada pelas relações desta sociedade com o meio exterior, isto é, pelo estado das forças produtivas materiais sociais; e estas transformações formais são determinadas pelos movimentos das forças produtivas. A «teoria das ações recíprocas» limita-se a reconhecer estas ações recíprocas. Ela não vai mais longe. Vemos bem que todas estas inumeráveis séries de fatos que se produzem no interior da sociedade, as influencias se entrecruzando ao infinito, os choques, as interferências de forças e de elementos da sociedade, que tudo isto, se produz dentro de quadros gerais, dados pelas relações entre a sociedade e a natureza. Estão livres os nossos adversários de tentar destruir este estado de

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fato, que Goethe já conhecia, em linhas gerais, quando escrevia nas Metamorfoses dos animais:

(Alie Glieder bilden sich aus nach ew'gen Gesetzen, Und die seltenste Forni bewarhrt im Geheimem das Urbild. Also bestimiTit die Gestalt die Lebensweise des Tieres, Und die Weise, zu leben; sie wirkt auf alie Gestalien Machtig zuruck. So zeigt sich fest die geordgnete Bildung, Wefche zum Wechsel sich neigt durch aussenrlich wirkende Wesen).

Todos os membros se desenvolvem segundo leis naturais, — e a forma mais estranha guarda no fundo a imagem original. — Assim a sua feição determina o gênero de vida do animal, — e esse gênero de vida, por seu turno, age consideravelmente — sobre toda feição. Assim aparece fixa ordem da criação, — que se inclina à metamorfose sob ação do ser exterior.

Este estado de coisas é incontestável. E nessas condições, está claro que a análise deve expressamente partir das forças produtivas; que a interdependência ao infinito entre as várias partes da sociedade não suprimem em absoluto a dependência fundamental, ativa «no fim de contas», a mais profunda de todas, aquela que estabelece um laço de efeito para causa entre todos os fenômenos sociais e a evolução das forças produtivas; que a multiplicidade das causas que fazem sentir a sua ação na sociedade não contradiz em nada a existência de uma lei única de evolução social.

Não podemos citar aqui todas as objeções dos diferentes sábios burgueses; o seu número é legião. De fato eles repetem sempre a mesma coisa de uma forma mortalmente aborrecida. Daremos por exemplo uma das últimas tentativas "criticas". Eis como o professor V. M. Khvostov expõe a doutrina de Marx:

"Ela consiste em linhas gerais (!) nisto, que entre todos os fatores (!) históricos, o que aparece no primeiro plano é o fator econômico (!)... todos os outros fenômenos se encadeiam sob a influência unilateral (!) das relações econômicas". (Teoria do processo histórico pag. 315).

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Depois do que dissemos, é inútil insistir sobre a fidelidade com que M. Khvostov expõe a teoria de Marx. A verdade nos obriga a dizer que ele não constitui uma exceção. Pelo contrário, quanto mais gasta erudição em "refutar" Marx, mais se revela a sua ignorância em expor as suas doutrinas.

Eis aqui, para dar uma idéia da "refutação" (do mesmo professor):

"Creio (!) que é próprio do homem uma grande variedade de aspirações. Em primeiro lugar, ele pensa na conservação do seu ser físico, e por isso, possui certa atividade. Em segundo lugar, ele pensa no conhecimento do mundo que o cerca e de si próprio, e esta tendência é inata, independente de qualquer cálculo material. Em terceiro lugar, o homem tem ainda necessidades tais como, por exemplo, a aspiração do poder, da liberdade. Existem no homem necessidades religiosas, estéticas, necessidades de simpatia para com outrem e de outrem, etc..".

Depois dessa salada de necessidades, o sr. Khvostov conclui "que uma explicação monista (isto é, de conjunto, partindo de uma unidade qualquer, N. B.)... é impossível", por enquanto, este só exemplo permite mostrar todo o absurdo da oposição "kvostoviana" da questão (posição extraordinariamente espalhada entre os "sábios" do mundo inteiro), e a necessidade, precisamente de uma explicação monista. O que é com efeito senão uma irrisão ao pensamento cientifico, atribuir à religião, ao poder, etc. a qualidade de categorias eternas? Nem mesmo ao espírito do autor vem a idéia de propor o problema da sua explicação. A religião existe no mundo. Como a explica? Por uma necessidade religiosa. O poder existe no mundo. Por que? Aí está, porque existe a necessidade do poder. Não é isto outra coisa senão a explicação do sono pela "virtude dormitiva". Será que isto explica seja o que for? Por esta forma pode-se sem esforço e sem pensar um só instante "explicar" tudo o que se quer: o Estado se explica pela necessidade do Estado, a arte pela necessidade da arte, o circo pela necessidade do circo, as explicações à moda de Khvostov pela necessidade de explicações à Khvostov, e assim por diante, até o infinito. Mas uma tal "teoria do processo histórico" não nos serve de nada. "O próprio do homem é a aspiração à liberdade": mas isto não é verdade! Tome-se Nicolau II durante o seu reinado. Será que a sua natureza e a da sua classe o faziam "aspirar" à liberdade em geral? Evidentemente que não. Assim, esta nobre aspiração não é, mau grado Khvostov, propria de todos os homens. E desde que se constatou isto, o problema se propõe imediatamente por si só: por que se encontra esta aspiração em alguns homens e não em outros? É

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então que se é obrigado a indagar — que horror! — as condições da existência destes homens, etc.. Dá-se o mesmo com as outras "várias necessidades" de Khvostov. Protestando contra uma explicação monista ou de conjunto, os sábios burgueses protestam de fato contra toda explicação em geral.

§ 42. Os princípios constitutivos da vida social

Chegamos agora a um problema geral que se apresenta depois dos raciocínios desenvolvidos mais acima. Eis aqui em que consiste este problema. Vimos que a psicologia, a ideologia, a economia social se distinguem por um certo número de traços típicos. Não será possível apanhar esses traços? Não se poderá neste caos, neste verdadeiro oceano de fenômenos econômicos, políticos, sócio-psicológicos, ideológicos, extrair um núcleo do que é fundamental, decisivo, achar o que constitui o traço característico dum «momento dado», duma «época» dada? Não nos parecerá aqui que o laço que liga entre si todos os fenômenos sociais se manifestará nisto, que os diferentes fenômenos sociais terão entre si qualquer coisa de comum? Vimos que todos são «em última análise determinados pelas forças produtivas e pelas relações produção? Então, como exprimir esse laço em algumas palavras? E como proceder à solução desta questão?

Tomemos um dos fenômenos mais «subtis» e mais complexos da vida espiritual, a arte. Vimos que em cada época ela tem o seu «estilo» especial, isto é, um caráter particular que se exprime por formas particulares. Estas formas particulares (lembremo-nos, por exemplo, da arte egípcia) correspondem a um conteúdo particular, este conteúdo a uma ideologia determinada, esta ideologia a uma psicologia determinada, esta psicologia a uma economia determinada, esta economia, finalmente, a um grau definido da evolução das forças produtivas.

Mas se em todos os domínios da vida social constatamos um conjunto de formas determinadas não podemos nós falar do «estilo» de todos os domínios da vida? Certamente que sim. Pode-se falar do «estilo» da ciência com tanta razão como do da arte. Pode-se falar de um estilo da vida, isto é, de formas particularmente típicas desta vida (vide, por exemplo, sobre o «estilo» da vida, Simmel: Filosofia do Dinheiro, p. 480), pode-se falar num certo sentido do estilo da economia social, e então, sob o nome de estilo desta economia, compreender-se-á simplesmente o que Marxchama «relações de produção», os modos de produção, ou a «estrutura econômica da sociedade». Da mesma forma que o estilo de uma construção qualquer se define pela reunião dos elementos que o compõem, da mesma forma o «estilo» da economia social se exprime nas particularidades das relações de produção, no «aspecto e no modo particular» de unificação dos elementos do todo social.

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(«O aspecto e o modo particular desta unificação diferenciam as épocas econômicas particulares da estrutura social», Marx,Capital, t. 2, p. 12).

Mas ao lado do «modo de produção», existe também nm «modo de representação». É o «estilo» da ideologia geral de uma época dada, isto é, este modo particular de reunião das idéias, dos pensamentos, dos sentimentos, das imagens, que é característico de uma época determinada, esta «unidade de formas do pensamento cientifico da concepção do mundo e da concepção da vida», como se exprime o professor Marbe (Karl Marbe: A unidade de formas do mundo. Pesquisas de filosofia e de ciência positiva).

Assim, somos levados a confrontar o «modo de produção» de um lado, e o «modo de representação» do outro. Em outras palavras: somos levados a confrontar o «estilo» econômico de uma sociedade dada e seu «estilo» ideológico. Um tal confronto é admissível? De tudo quanto vimos no nosso exame das superestruturas em geral e das ideologias em particular, decorre de uma forma absolutamente indiscutível que temos plenamente o direito de proceder a esta confrontação.

Esclareçamos com um exemplo. Tomemos a sociedade feudal. Seu estilo econômico pode ser expresso pelo princípio de uma solida hierarquia,ou, o que vem a dar no mesmo, pela idéia da ordem (classificação). Eis como Marx caracteriza o feudalismo:

«Em lugar do homem independente, encontramos aqui cada indivíduo em estado de dependência, tanto os servos como os proprietários territoriais, tanto os vassalos como os senhores, tanto os leigos como os clérigos. A dependência pessoal caracteriza de uma forma tão decisiva as relações sociais da produção material quanto às (outras) esferas da vida estabelecidas sobre esta produção». (Capital, t. 1, pag. 43).

Esses caracteres da economia e das outras «esferas da vida» constituem precisamente o «estilo» de uma época. Dependência hierárquica na economia; dependência hierárquica nas outras «esferas da vida»; «estilo» hierárquico de toda atividade intelectual. Não vimos nós com efeito que todo estado de espírito do homens estava nesta época impregnado de religião? E a religião é bem um sistema de idéias onde tudo se explica pelomodo da hierarquia, pela ordem (classificação). A ciência está penetrada da idéia de ordem, a arte também, e esta ordem encontra sua expressão até no estilo da arte. A ordem, eis o «estilo» de toda a vida dessa época. Até na unidade deste estilo vê-se a

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dependência do «modo de representação» com relação ao «modo de produção», do «sistema de idéia», do «sistema das coisas», isto é, pelas forças produtivas materiais da sociedade. Pois bem, isto que constitui o eixo dum «estilo», como num momento dado a hierarquia ou a ordem (classificação), é a isto que se pode chamar um princípio constitutivo da vida social. Vemos que ele tem por base as relações de produção.

Esta unidade do estilo da vida salta de tal forma aos olhos, que uma série de sábios mesmo burgueses subscrevem integralmente esta idéia. É assim, por exemplo, que Carl Lamprecht edifica uma doutrina "dominante", isto é, do tipo dominante de psicologia, o qual muda com as condições de cada época; a antiga dominante desaparece e uma nova aparece, um novo "estilo de vida" se constitui (A ciência moderna e a história).

Se ligarmos o problema proposto por Hammacher à questão dos princípios constitutivos, torna-se bastante fácil resolve-lo. Este sábio levanta contra a teoria do materialismo histórico a objeção que se segue:

"Fica sempre o problema de saber por que só as relações econômicas encontram acesso na alma da história" (O sistema filosófico econômico do marxismo).

Esse enigma é de fácil solução. O que tem uma influência sobre as pessoas, não são só os acontecimentos econômicos, mas tudo o que se encontra na esfera da sua experiência. Ora, os princípios constitutivos gerais são determinados pelas relações de produção, que por conseguinte se "refletem" nos domínios ideológicos. É na religião que podemos melhor constatá-lo. Evidentemente, a luz do sol, o trovão, a morte, o sono e todos os outros fenômenos, tudo isto "tinha acesso à alma da história". Mas a idéia de divindade, de "forças superiores", da "classificação" não aparece na representação do mundo senão com o advento da classificação na vida social. É neste quadro que se encerram todos os fenômenos "correspondentes", entre os quais o sono e a morte. Por que, nos despotismos sangrentos, o deus principal era geralmente o deus da guerra? Porque, sendo o deus da guerra, ele se tornava por isto mesmo o deus do trovão e do raio, como forças as mais temíveis, as mais "guerreiras" da natureza; a tempestade e os fenômenos semelhantes produziam uma impressão sobre a "alma da história", mas a forma era dada pelo quadro das relações sociais. Pode-se perguntar por que as relações sociais condicionam uma forma determinada? Donde provém esta conexão interna? É muito simples. Isto provém de que o meio social tem nas relações de produção o seu fundamento vital. "... A unidade de forma dos fenômenos psíquicos pode ser relacionada com a unidade de forma das condições destes fenômenos". Uma série de fatos deste domínio "aparecem

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como produtos da civilização. Huber mostrou que, nas experiências feitas a respeito de Associações de idéias, a qualidade das palavras-reações depende da profissão e dos hábitos de vida das pessoas submetidas à experiência" (K. Marbe, op. cit., p. 52), isto é, que as respostas dadas a perguntas idênticas (por exemplo, dizer uma palavra, não importa qual) dependiam do gênero de vida das pessoas interrogadas. Será de espantar depois disto que a psicologia e a ideologia social dependam do modo de produção da vida material, e com ele, das forças produtivas?

§ 43. Tipos de estruturas econômicas e tipos diversos de sociedades

Examinando a questão da sociedade, encontramos tipos históricos definidos de sociedades. E isto que significa? Que não existe uma sociedade «em geral»-que na realidade uma sociedade existe sempre sob um invólucro histórico determinado qualquer; que ela traz o uniforme do seu tempo. É perfeitamente compreensível. Sabemos que uma sociedade (não importa qual) é um conjunto de pessoas que exercem umas sobre as outras uma ação recíproca constante; estas inúmeras influencias recíprocas têm por base as relações que o trabalho cria entre essas pessoas, o sistema de relações de produção, se se tomam essas relações e estas influencias mutuas num instante dado. Mas esse sistema de relações de produção é constituído por um conjunto de pessoas dispostas de uma maneira definida, de pessoas que se unem não simplesmente pelo laço do trabalho, mas por um tipo determinado de laço de trabalho. Está claro, pois, que a sociedade não existe senão sobre uma base de trabalho definida; e como a esta base definida, a este «modo de produção» definido corresponde também um «modo de representação» definido, é igualmente compreensível que é aquilo mesmo que dá também o tipo de toda sociedade, duma sociedade no seu conjunto, e não só na sua parte de produção material e econômica. A técnica duma sociedade está ligada ao seu modo de produção, o modo de produção como modo de representação, e esta união do sistema material, do sistema humano e do sistema espiritual faz duma sociedade um tipo social bem determinado. Da mesma forma que no reino animal distinguimos várias espécies animais, vários gêneros, várias famílias, etc., da mesma forma, na sociologia, distinguimos diversos gêneros de sociedades. Disto já falamos várias vezes. Mas é preciso aqui frisar a idéia fundamental deste parágrafo, a saber que esta diferença entre «gêneros» sociais, os tipos de sociedade, pode ser apanhada sem esforço não somente na esfera econômica, como também, em qualquer série de fenômenos sociais. Um tipo de sociedade pode caracterizar-se pela sua ideologia ou pela sua economia. Da arte feudal se pode chegar às relações de produção feudais ou à religião feudal ou ao caráter da psicologia feudal em geral, etc., e assim em todos os casos. É por isso, por exemplo, que pela decifração de qualquer

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monumento literário descoberto pelos arqueólogos, podemos representar os diferentes aspectos das relações dos povos desaparecidos e imaginar o seu gênero de vida. Lendo o código de Hamurabi, ressuscitamos a vida econômica da Babilônia; pela Ilíada e pelaOdisséia podemos julgar da história da Grécia homérica, e assim por diante.

Assim, as formas históricas da sociedade, o caráter de determinação destas formas, dizem respeito não somente à base econômica, mas também a todo conjunto dos fenômenos sociais, pois a estrutura econômica determina a estrutura política e a estrutura ideológica. Dado um termo, o outro também o será. Não se segue evidentemente que um tipo de sociedade seja separado do outro, por fronteiras tão marcadas que não deixem lugar a nenhum elemento comum a estas sociedades diferentes.

«As estreitas linhas divisórias da abstração separam tão pouco as épocas da história da sociedade humana, quanto as épocas da história da terra.» (Capital, t. 1).

Pelo contrário, a vida real nos mostra em cada tipo social, em cada nova estrutura social, os restos de antigas formações econômicas às vezes muito consideráveis e que representam um grande papel. Se tomarmos, por exemplo, a sociedade capitalista contemporânea, encontraremos uma grande quantidade de vestígios de antigas instituições econômicas. Toda a importante camada camponesa com sua economia particular é essencialmente o resto da época feudal, da mesma forma o artesanato, etc.. O capitalismo «puro» supõe uma burguesia e um proletariado, e não supõe nem camponeses nem artesãos, nem nada de parecido. Portanto, se na estrutura econômica uma tal «pureza» não pode existir, está claro que no domínio ideológico também haverá inevitavelmente uma certa «mistura de idéias». Noutras palavras, podem-se encontrar na sociedade capitalista tantos traços de ideologia feudal quantos se quiser; na aristocracia fundiária, no campesinato, nas «classes rurais» que se apóiam sobreantigas relações agrárias, onde se conservou um certo número de traços antigos.

«... Supõe-se em teoria (trata-se aqui da teoria da economia capitalista, N. B.) que as leis do modo de produção capitalista se desenvolvem na sua pureza. Mas, na realidade, nunca se tem mais que uma aproximação, e essa aproximação é tanto maior quanto o modo capitalista de produção está mais desenvolvido e que o emaranhado com os vestígios de estados econômicos anteriores desaparecem em parte». (Capital, t. 3, p. 154).

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Ao mesmo tempo que se produz o entrelaçamento de formas econômicas, haverá também, fatalmente, o entrelaçamento de formas ideológicas. Eis por que não existe nunca nem um «modo de produção» absolutamente único, nem, com mais razão, um «modo de representação» absolutamente único (dissemos «com muito mais razão», porque o «modo de representação» é diferente nas diversas classes, mesmo quando elas pertençam a uma só e mesma cultura econômica tomada na sua pureza virginal). Todavia, não se segue absolutamente que não possamos ou devamos distinguir diversos tipos de relações de produção e de formas ideológicas. Pois em qualquer sociedade existente há sempre um tipo dominante determinado de relações de produção, e por conseguinte, um «modo de representação» também determinado e dominante. É com razão que W. Sombart diz:

«Eu distingo uma época na vida econômica pelo espírito da vida econômica, com a condição que um espírito determinado seja realmente dominante num momento dado». (O burguês, p- 6).

Exatamente da mesma forma falava Marx, a respeito do capitalismo, duma «forma social na qual domina o modo capitalista de produção» (Teoria sobre a mais valia, t. 1, p. 424). Da mesma forma em zoologia distinguimos o macaco do homem, apesar dos seus traços de semelhança; distinguimos pelo exame das formas sociais uma forma da outra, apesar dos seus traços comuns, embora nas formas «superiores» encontremos comumente restos perfeitamente inúteis, incompreensíveis à primeira vista, de aspectos antigos.

No terceiro capítulo deste livro já indicamos que, no exame da sociedade, é indispensável discernir a forma social que tem a sua raiz nasparticularidades da estrutura econômica. Este ponto de vista já provocou mais de uma vez os protestos da ciência burguesa oficial, a quem desagrada toda a idéia de reedificação radical das relações sociais. Os próprios sábios burgueses reconhecem agora que é bem aqui que está o nó da questão. Assim o dr. Bernard Odenbreit escreve:

"Marx, como é natural para um "revolucionário", considerava de um modo particularmente agudo o caráter histórico transitório das constituições sociais. A esta idéia geral no domínio das ciências sociais junta-se um conhecimento conscientemente critico do domínio mais estreito da economia política..." (Pleige, Contribuição à ciência política, 1.o caderno; D. Odenbreit: A teoria comparativa da indústria em Karl Marx).

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Aí estamos! Considerar "de uma forma aguda o que se transforma, isto não se pode encontrar senão em revolucionários". Está aqui, como já sabemos, uma das principais causas da proeminência das ciências sociais do proletariado revolucionário sobre as ciências sociais da burguesia contra-revolucionária.

Se tomarmos a mais antiga das formas de sociedade conhecidas, que se chama o Comunismo primitivo, veremos que a seu tipo de relações de produção, onde a «individualidade» trabalhadora não se separou ainda da «horda», correspondem também suas formas particulares de consciência: nada de religião, nenhuma idéia de classificação social, nem mesmo a idéia de personalidade, de separação, de particular, de individual. Mas consideremos a sociedade feudal, «cujos traços essenciais são de um lado a fragmentação do país numa quantidade de feudos independentes, de principados, e de senhorios privilegiados, e de outro lado, a união desses feudos por laços contratuais de vassalagem». (N. P. Silvanski: Ofeudalismo na antiga Rússia, p. 45). Aqui, o estilo da economia tem um caráter hierárquico, o estilo da «política» tem o mesmo caráter e assim também o «estilo» da ideologia. Como já vimos, em tudo domina a idéia de ordem (classificação). Na base se encontra a grande propriedade fundiária («nenhuma terra sem senhor», tal é o adágio que caracteriza esse edifício econômico), imóvel e fixa. Os laços econômicos são os laços entre proprietários e servos; eles são fixos, imóveis, imutáveis do ponto de vista dos membros da sociedade feudal; tudo está «amarrado», «preso» ao seu lugar no sistema hierárquico. E da mesma forma na superestrutura política, que refletia essas relações de produção.

«A tendência hierarquizante da vida feudal foi erigida em teoria e em sistema pelos juristas do XIII.º século (trata-se aqui do feudalismo europeu, N. B.)... Os pregadores viam facilmente uma divisão horizontal da sociedade considerada como um todo, mesmo se ela se divide em senhores e servos. Eles lembravam aos servos as palavras do apostolo, que ordenava aos escravos obedecerem ao senhor. «Deus pôs sobre a terra os reis, os duques e outras pessoas, a quem ordenou que mandassem nos outros. Foram colocados por Deus para que os pequenos dependessem dos fortes». (L. N. Karsavine: A cultura na idade média).

Toda concepção do mundo é religiosa, isto é, penetrada do princípio de ordem (classificação), e como se diz ainda, «autoritário»; daí sua imobilidade, seu tradicionalismo; a ciência é, antes de tudo, uma interpretação da tradição e

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das Sagradas Escritores; a arte é «divina» e exalta na sua forma e no seu conteúdo as forças «superiores», celestes e terrestres; a moral dominante é uma moral de fidelidade, de orgulho nobiliário, de culto da gloriosa recordação dos antepassados, de respeito ao «bom sangue» e à «nobre extração»; aquod liced Jove, non liced bovi», o que é permitido a Júpiter não o é a um boi. Numa palavra, temos sob as vistas um «modo» social particular, uma forma particular de sociedade, de suas bases econômicas até às formas mais «elevadas» da consciência social.

Consideremos agora a sociedade capitalista. Sua base econômica é constituída por um gênero de relações completamente diferentes.

«A oposição entre o poder da propriedade fundiária que se apóia sobre relações pessoais entre servos e senhores, e o poder impessoal do dinheiro está claramente expressa em dois ditados franceses: «Nenhuma terra sem senhor». «O dinheiro não tem senhor». (Marx, Capital, I).

Esta tese de Marx nos revela uma das dependências econômicas fundamentais da sociedade capitalista, a saber, o laço que une as empresas por meio do mercado, e que faz surgir o poder impessoal deste mercado, e o poder impessoal, «abstrato» do dinheiro. A coisa tem ainda, contudo, outro aspecto. O poder social impessoal do dinheiro transformado em capital encontra, apesar de tudo, um senhor, na medida em que a simples produção de mercadorias se transforma em produção capitalista.

«Da mesma forma que no ouro são apagadas todas as diferenças qualitativas das mercadorias, o ouro por sua vez tal como umleveller(1) radical, apaga todas as diferenças. Mas o dinheiro é ele mesmo uma mercadoria, uma coisa palpável que se pode tornar a propriedade de cada um. Esta força social se torna desta forma uma força particular dum homem tomado em particular». (Capital, t. I).

Daí decorre o segundo traço da economia da sociedade capitalista, seu caráter de hierarquia. Este traço também é brilhantemente evidenciado por Marx. Ele escreve no capítulo sobre o trabalho coletivo (Capital, t. I):

«A direção capitalista é quanto à forma, despótica. À medida que o trabalho coletivo se desenvolve sobre uma grande escala, este despotismo toma formas particulares

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e adequadas... O capitalismo se libera de todo trabalho manual, desde que seu capital atinge uma certa grandeza mínima, a partir da qual se torna possível a produção capitalista no sentido próprio da palavra; da mesma forma, a fiscalização direta e constante de operários isolados, ou de grupos de operários, passa desde então a uma categoria particular de operários assalariados. Tanto quanto um exército precisa de uma hierarquia de superiores militares, uma massa de operários reunidos num trabalho comum, sob o comando de um só e mesmo capital, precisa de oficiais superiores, industriais (administradores, gerentes), e de sub-oficias (inspetores, contra-mestres, etc.), que, durante o processo do trabalho, dirigem em nome do capital. O trabalho de fiscalização se fixa neles como sua função exclusiva».

Assim, o modo de produção capitalista tem um duplo caráter: de um lado, é o conjunto de «empresas» separadas, particulares, ligadas entre se pelo laço anárquico do mercado e da troca, e onde o poder elementar do mercado domina toda empresa particular; doutro lado, é um sistema hierárquico de «comando do capital». Nada de extraordinário que sobre a base de um tal modo de produção se eleve um modo de representaçãocorrespondente. Seu «estilo» deve refletir este duplo caráter. Com efeito, o «modo de representação» do mundo capitalista se caracteriza, de um lado por aquilo que Marx chamou o fetichismo da mercadoria, doutro por este mesmo princípio de «ordem» (classificação) que observamos também na sociedade feudal. A reunião destes dois «princípios constitutivos» nos dá o estilo fundamental do «modo de representação» que rege o mundo capitalista.

Que é o fetichismo da mercadoria?

Na sociedade capitalista mercantil, a empresa trabalha «independentemente» para o mercado desconhecido. No fundo, cada trabalho é aqui uma parcela do trabalho social e todas as partículas dependem umas das outras. Mas isto se passa de tal maneira, que o laço social entre os homens,que trabalham de fato uns para os outros escape aos olhos humanos. Se tivéssemos diante de nós uma sociedade socialista, onde tudo caminha de acordo com um plano, seria claro para todos que os homens trabalham uns para os outros, que cada aspecto separado do trabalho não é senão uma partícula do conjunto do trabalho social. As relações entre os homens seriam claras, nada os mascararia; mas não é assim no mundo capitalista. Aqui, este laço de trabalho entre os homens é invisível, esconde-se aos homens. Por que

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se esconde? Pelo mercado. No mercado, as mercadorias passam, compram-se e se vendem. Mas não são os homens que racionalmente dominam o mercado, é o mercado que com seu preço domina os homens. Os homens vêem o movimento das coisas, e no entanto não compreendem que trabalham uns para os outros, que estão todos ligados pelo laço geral do trabalho. Este laço de trabalho que os une lhes aparece sob o aspecto particular do extraordinário poder das coisas, das mercadorias, sob o aspecto do «valor» dessas mercadorias. As relações entre os homens parecem-lhes relações entre as coisas. Eis aí o fetichismo da mercadoria, esta atribuição às coisas de propriedades extraordinárias, enquanto o seu movimento dissimula na realidade o trabalho mutuo dos homens. É este fetichismo, pelo qual «as relações sociais definidas entre os homens... tomam aos seus olhos a forma fantástica de relações entre as coisas (Marx), que constitue a particularidade distintiva do «modo de representação» capitalista. Já vimos como os sábios, artistas, filósofos, etc., da classe burguesa se revoltam quando ouvem falar nas raízes sociais da ciência, da arte e da filosofia. Eles são fetichistas até à medula dos ossos; pois não vêem o laço social, não podem compreender que seu trabalho divino e inspirado é, ele também, uma parte do conjunto do trabalho social.

O fetichismo do mundo capitalista aparece com relevo singular no domínio do que se chama as normas morais ou a "ética", de que os sábios professores tanto gostam de falar. Já explicamos que as normas éticas são regras de conduta indispensáveis à vida da sociedade, da classe ou do grupo profissional etc.. Elas têm a significação de regras auxiliares sociais indispensáveis. Contudo, na sociedade fetichista, esta significação humana e social que elas possuem não é consciente. Pelo contrário estas normas, isto é, estas regras técnicas de conduta, aparecem como um "dever" suspenso sobre os homens, como uma força exterior, quase divina, de coação: este inevitável fetichismo ético foi muito bem expresso pelo genial filósofo burguês Emanuel Kant, na sua teoria do "imperativo categórico".

É de uma forma completamente diferente que o proletariado deve encarar este assunto. Ele não se pode fazer arauto do fetichismo capitalista. Para ele, as normas da sua conduta são regras dum mesmo valor técnico do que aquelas a que obedece o carpinteiro para fazer uma cadeira. Quando o carpinteiro quer fazer uma cadeira, ele serra, prega, cola, etc.. Isto decorre do processo mesmo do seu trabalho. Ele não irá se ocupar das regras de preparação da madeira ou do quer que seja estranho, que pertença a um outro domínio que não o seu. Da mesma forma o proletariado na sua luta social. Se ele quer conquistar o comunismo, deverá fazer isto e aquilo, exatamente como o carpinteiro que quer fazer uma cadeira. E tudo que se conforma com este fim

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deve ser feito. A "ética" se transforma pouco a pouco para o proletariado em simples regras técnicas de conduta, facilmente compreensíveis e necessárias para chegar ao comunismo e que, assim, deixam de ser uma ética. Na verdade é da essência mesmo da ética ser um conjunto de regras dissimuladas sob um invólucro fetichista. O fetichismo é a essência da ética. Lá onde desaparece este fetichismo, também desaparece a ética. Não virá ao espírito de pessoa alguma chamar os estatutos de uma cooperativa ou de um partido de "ética" ou de "moral". Isto porque nesses casos cada um conhece o sentido humano deste estatuto. A ética supõe um nevoeiro fetichista onde mais de um perde o seu caminho. Assim o proletariado precisa de normas de conduta, e normas muito precisas, mas não de uma ética, molho fetichista para uma iguaria util. Está claro que o proletariado não se libertará por si, de um só golpe, do fetichismo da sociedade mercantil em que vive. Mas isto já é questão diferente.

O fetichismo da ideologia capitalista mercantil se combina com o princípio da «ordem» (classificação), e esses dois princípios fundamentais constituem o eixo do modo de representação capitalista, o quadro em que se insere o seu cometido ideológico. Assim, a sociedade capitalista é, ela também, uma espécie de sociedade, com traços particulares, característicos, em todos os «andares» da vida social, até as mais altas construções ideológicas compreendidas. Assim, um tipo de cultura econômica supõe tombem um tipo de estrutura social e política e um tipo de estrutura ideológica. A sociedade tem um «estilo» fundamental em todas as manifestações dominantes da sua vida.

44§. Caráter contraditório da evolução: Equilíbrio "exterior" e equilíbrio "interno" da sociedade

Examinamos nos parágrafos precedentes o fenômeno do equilíbrio social. Mas não devemos perder de vista um só instante a circunstancia de que se trata de um equilíbrio instável, isto é, de um estado de coisas tal que o equilíbrio se rompe constantemente para se restabelecer noutra base, rompe-se novamente e assim por diante. Noutros termos, temos diante de nós um processo contraditório; temos não um estado de repouso nem de adaptação absoluta, mas uma luta de contradições, um processo dialético de movimento. Por conseguinte, quando examinamos a estrutura da sociedade, isto é, as relações entre as suas partes, não devemos absolutamente nos representar qualquer harmonia perfeita entre essas partes. Pois toda estrutura tem as suas contradições; em toda forma social, fundada sobre classes, essas contradições são singularmente acentuadas. Contudo, mesmo aqueles sociólogos burgueses que vêem o laço que une os diversos fenômenos sociais, não compreendem absolutamente o caráter de contradição interna das formas sociais.

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Toda a escola do «fundador» da sociologia burguesa, Augusto Comte, é particularmente curiosa sob este ponto de vista. Na sua doutrina existe um laço entre todos os fenômenos sociais (é o que ele chama o consenso), e é este laço que constitui a «ordem». Mas as contradições desta «ordem», e em particular aquelas que conduzem esta ordem à destruição inevitável, não são analisadas por ele. Pelo contrário, para os partidários do materialismo dialético, este lado da questão é um dos mais, senão o mais importante de fato, como já vimos, as contradições dum sistema dado são precisamente aquilo que o põe em movimento, o que conduz a uma transformação de formas no processo do desenvolvimento ou da decadência social.

Examinando a estrutura social, vimos que essas transformações são ligadas às mudanças das relações entre a sociedade e a natureza. Chamávamos este último equilíbrio de exterior, enquanto dávamos ao equilíbrio entre as diversas ordens de fenômenos sociais o nome de equilíbrio interno da sociedade. Se agora considerarmos toda sociedade do ponto de vista do caráter de contradição da evolução, uma série de problemas surgirá diante de nós: antes de tudo veremos que cada ordem de fenômenos sociais traz em se as suas contradições (por exemplo, na economia, as contradições entre as diversas funções do trabalho; na estrutura social e política, contradições entre as classes; na ideologia, contradições entre os sistemas ideológicos das classes, etc., sem falar numa série de outras contradições); distinguiremos depois sem esforço as contradições entre a economia e a política (quando por exemplo, as normas jurídicas «atrasam» sobre a evolução econômica, e que, por exemplo, uma «reforma» qualquer se torna urgente; entre a «economia» e a «ideologia», entre a «psicologia» e a «ideologia» (quando por exemplo se faz sentir a necessidade de qualquer coisa de novo, e que esta coisa ainda não se constituiu, ainda não se fundiu numa forma ideológica); entre a ciência e a filosofia, etc.. Estas são contradições entre as diferentes ordens de fenômenos sociais. Tanto as segundas como as primeiras dizem respeito ao equilíbrio interno. Mas existe também contradição entre a sociedade e a natureza, ruptura de equilíbrio entre a sociedade e o meio ambiente, que encontra sua expressão no movimento das forças produtivas. É este o domínio do equilíbrio exterior. Sabemos já que existe ainda um caso extremamente importante de contradição. É a contradição entre o movimento das forças produtivas e da estrutura social e econômica (e toda outra espécie de estrutura) da sociedade. Entram aqui em conflito as relações que existem entre a sociedade e a natureza, e as relações que se constituíram no interior da sociedade. Não é difícil ver que esse conflito, esta contradição, deve inelutavelmente representar um papel de grande importância na vida da sociedade, pois ele abala os «fundamentos do edifício existente» e os «alicerces» sobre que repousa uma ordem dada de coisas.

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Não fizemos aqui mais do que indicar as principais questões que as contradições sociais apresentam. O estudo destas questões será o objeto do capítulo seguinte, em que examinaremos a sociedade em movimento; até agora estudamos principalmente a estrutura da sociedade, a estrutura de uma fórmula social dada. Falta-nos agora falar das passagens duma estrutura a outra. E é importante notar aqui mais uma vez, que a lei do equilíbrio social é a lei de um equilíbrio instável que não somente não exclui, mas pelo contrário supõe os antagonismos, as contradições, os defeitos de adaptação, os conflitos, a luta, e — o que é particularmente importante — a inclutabilidade, em condições determinadas, de catástrofes e de revoluções. Nossa teoria marxista é uma teoria revolucionária.

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Capítulo VII - Ruptura e Restabelecimento do Equilíbrio Social

§ 45 — O processo das transformações sociais e as forças produtivas

O processo das transformações sociais está, como sabemos, em ligação com a transformação do estado das forças produtivas. Este movimento das forças produtivas, assim como o movimento e reagrupamento de todos os elementos da sociedade que estão ligados a ele, não é outra coisa que o processo de perpetua ruptura do equilíbrio social e do seu contínuo restabelecimento. Com efeito, suponhamos um movimento progressivo das forças produtivas. E disso, que resulta? Primeiro e antes de tudo, que entre a técnica social e a economia social nasce uma contradição: o sistema sai do seu equilíbrio. As forças produtivas ganham um certo avanço. Donde: deve dar-se um certo reagrupamento dos homens. Por que? Porque não havendo equilíbrio, o sistema não pode subsistir por muito tempo. Esta contradição se resolve. Como? Precisamente por este reagrupamento dos homens; a economia se «adapta» ao estado das forças produtivas, à técnica social. Mas o reagrupamento dos homens no processo econômico supõe necessariamente o seu reagrupamento na estrutura social e política da sociedade (uma outra combinação de partidos, do seu poder, etc..); depois a mesma circunstância provoca necessariamente a transformação das leis (jurídicas, morais e outras). Isto porque não é senão por esta forma que se resolve a contradição, ou, o que vem a dar no mesmo, que se restabelece o equilíbrio entre os sistemas dos homens e o das normas. Ora, dá-se o mesmo com toda a psicologia da sociedade e toda sua ideologia. É o que muito bem expôs Plekanov:

«É pelo aparecimento, pela transformação e destruição das associações de idéias sob a influência do aparecimento, transformação e destruição de certas combinações de forças sociais que se explica numa medida considerável a história das ideologias» (N. Beltov, Da compreensão materialista da história, «Crítica de nossos críticos», p. 333).

A nova «combinação» dos homens entra em conflito com a velha combinação das idéias (com as velhas associações de idéias). Aqui rompeu-se o equilíbrio interior. Ele se restabelece numa nova base, quando aparece uma nova combinação de idéias, isto é, a psicologia social e a ideologia social se põem de acordo para que o equilíbrio seja novamente rompido, e assim por diante.

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Apresenta-se aqui uma questão muito importante, tanto do ponto de vista teórico como do prático.

Podemos, com efeito, imaginar-nos o restabelecimento do equilíbrio social sob duas formas: sob a forma de uma adaptação lenta (evolutiva) dos elementos do conjunto social, ou sob a de bruscas transformações. A história nos ensina que tem havido e ainda há revoluções. São fatos históricos. Quando é que eles se produzem? Quando é que se já uma curta adaptação recíproca dos vários elementos da sociedade, e quando uma explosão? Onde está o fundo deste conflito, desta colisão que se exprime pela revolução?

Em ligação com este problema surge toda uma série de problemas de dinâmica social. Com efeito, sabemos que toda sociedade, qualquer que ela seja, está continuamente num processo incessante de transformações, de reagrupamentos interiores, de remodelações de forma e conteúdo. Sabemos que este processo está ligado à evolução das forças produtivas. Contudo, constatamos de um lado transformações nos limites duma só e mesma estrutura social, e do outro, a passagem duma «espécie» de sociedade a outra, substituição dum «modo de produção» por outro. Quando é que se dá um ou outro destes fenômenos? É preciso também responder a esta pergunta.

Encontra-se em Marx, na Crítica da Economia   Política , uma descrição geral do processo do movimento social. Eis como ele descreve tal processo:

«Em certo estágio de sua evolução, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção em vigor, ou, o que é a expressão jurídica do mesmo fato, com as relações de propriedade no interior das quais elas até então se tinham movido. De formas de evolução das forças produtivas, estas relações se transformam em obstáculos a esta evolução. Abre-se então uma época de revolução social. Com a derrubada dos fundamentos econômicos, produz-se, de uma maneira mais ou menos lenta ou rápida, uma transformação de toda a monstruosa superestrutura. No exame de tais transformações é preciso distinguir constantemente entre a transformação material nas condições econômicas da produção, o que se pode constatar com a exatidão duma análise de história natural, e entre as formas jurídicas, políticas, religiosas ou filosóficas, numa palavra, ideologias em geral, sob as quais os homens tomam consciência deste conflito e o utilizam na luta. É tão difícil julgar o indivíduo pelo que ele pensa de se próprio, como

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julgar tais momentos de transformação pela sua consciência; é indispensável, pelo contrário, explicar esta consciência à luz do conflito que se observa entre as forças produtivas sociais e as relações de produção».

Assim, segundo Marx, a transformação, a revolução se produz quando o equilíbrio entre as forças produtivas da sociedade e os traços fundamentais da sua estrutura econômica se rompe. Aí está o fundo do conflito que a revolução deve resolver. Trata-se aqui, por conseguinte, da passagem de uma forma a outra. Mas enquanto a estrutura econômica torna possível o desenvolvimento das forças produtivas, as transformações sociais não assumem o caráter de desordem: elas se produzem na «ordem da evolução».

Examinaremos em seguida esta questão com maiores detalhes. Queremos, contudo, desde já, chamar a atenção para um ponto: segundo Marx, a causa duma revolução não reside de forma alguma no conflito da economia com o direito, como afirma uma quantidade de críticos do Marxismo, mas no conflito entre as forças produtivas e a economia. E isto não é em absoluto a mesma coisa. Veremos em «seguida por que as cousas assim se passam.

§ 46. As forças produtivas, a estrutura social e econômica

Dissemos que a causa de uma revolução, duma passagem violenta dum tipo de sociedade a outro, deve ser procurada no conflito que estala entre as forças produtivas, seu crescimento, de um lado, e a estrutura econômica da sociedade, isto é, as relações de produção, do outro. Pode se objetar a isto, por exemplo, o seguinte: Será que a evolução das relações de produção não é condicionada pelo movimento das forças produtivas? Não será a transformação a mais progressiva das relações de produção resultado dum conflito entre as forças produtivas e as velhas relações «caducas» de produção? Representemo-nos o crescimento das forças produtivas na sociedade capitalista. Sabemos que com este crescimento produziram-se também importantes reagrupamentos dos homens no processo econômico. Assim o desaparecimento da antiga «classe média», o aniquilamento do artesanato, o crescimento do proletariado, o aparecimento de formidáveis empresas. A textura humana da produção se transforma perpetuamente. Melhor, não haverá uma passagem duma forma de capitalismo a outra, por exemplo, do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, sem a menor revolução? E no entanto, todas estas transformações eram a expressão de uma constante ruptura de equilíbrio, de um incessante conflito entre as forças produtivas e as relações de produção. No seu crescimento, as forças produtivas se chocavam com as relações do artesanato, rompeu-se o equilíbrio: a economia do

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artesanato já não correspondia aos progressos da técnica. O equilíbrio rompido se restabelecia constantemente sob uma nova base: pois paralelamente crescia também uma nova economia que «correspondia» à técnica, etc.. Segue-se, portanto, evidentemente, que todo conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não provoca necessariamente uma revolução, e que o problema é, por conseguinte, muito mais complexo. Para se analisar o problema do gênero de conflito que provoca uma crise revolucionária, convém dirigir-se à análise, ao exame das diferentes espécies de relações de produção.

Por relações de produção entendemos, como já se sabe toda espécie de relações possíveis entre as pessoas que aparecem no processo da vida social e econômica, isto é, no processo da produção, que em se também inclui a repartição dos meios de produção, e no processo da distribuição dos produtos. Está claro que estas relações de produção são extremamente variadas: o especulador que compra em Paris ações de um «trust» americano de botões, entra por isso mesmo em relação de produção com os operários e proprietários, contra-mestres e engenheiros das fábricas compreendidas neste «trust». O banqueiro que emprega contadores está em relação determinada de produção para com eles. Da mesma forma, o carpinteiro está em relações determinadas de produção com o torneiro que trabalha na mesma oficina, ou com a quitandeira que lhe vende um arenque no mercado, ou com o contra-mestre e o vigia. Mas o mesmo carpinteiro está também em relações determinadas de produção com o pescador que apanhou o arenque e o tecelão que produziu, entre outros, o tecido da sua calça, etc., etc.. Numa palavra, temos realmente, diante de nós, uma quantidade enorme de relações de produção variadas, heterogêneas, que diferem entre elas em gênero e em espécie.

O problema consiste em introduzir uma classificação qualquer entre estas diferentes espécies de relações, e esforçar-se em apanhar em que gênero de relações de produção é preciso que haja conflito, para que se desencadeie uma revolução.

Para procurar a solução deste problema de outra forma que pelo simples chuchar de dedos, e resolve-lo de acordo com a realidade, convém considerar como, de fato, se realizaram as revoluções, isto é, como se resolveu a contradição entre a evolução das forças produtivas e a base econômica da sociedade. É inútil lembrar que este conflito sempre se resolveu pelos homens, e isto por uma cruel luta de classes. Que resultado se obtinha depois da vitória da revolução? Em primeiro lugar, um deslocamento do poder político. Em segundo lugar, um deslocamento das classes no processo da produção, uma transformação na repartição dos meios de produção que, como

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sabemos, está na mais estreita ligação com a situação das classes. Noutras palavras: a luta no tempo da revolução tem por objetivo a apropriação dos meios de produção mais importantes que, numa sociedade fundada sobre classes, estão nas mãos de uma classe, a qual consolida ainda esta dominação sobre as coisas, e por conseguinte sobre as pessoas, pelo poder da sua organização política.

Chegamos aqui ao ponto decisivo da nossa pesquisa, que diz respeito a estas relações de produção que a revolução deve fazer saltar, se a sociedade é capaz de prosseguir na evolução de suas forças produtivas. Marx, no tomo III do Capital (2.a parte), propõe a questão com toda a sua acuidade, destacando de todo o conjunto das relações de produção a sua parte fundamental, especifica.

«Uma forma econômica especifica, na qual um trabalho suplementar não retribuído é por assim dizer roubado dos produtores diretos, determina uma relação de senhores a sujeitados, tal como nasce imediatamente da produção mesma e por seu turno tem sobre ela uma influência determinante. É sobre isto que se funda toda a conformação do corpo social econômico que decorre das próprias relações de produção e ao mesmo tempo sua forma, especifica política. Encontramos cada vez o mistério o mais secreto, o fundamento escondido de toda construção social e, por conseguinte, também da forma política, que representa relações de soberania e dependência, numa palavra, de toda forma especifica de Estado... nas relações imediatas dos detentores dos meios de produção com os produtores imediatos.»

Como, em consequência, se passam as coisas? Duma forma muito simples. Entre toda variedade de relações de produção, um gênero se destaca pela sua importância: aquele que exprime as relações entre as classes que têm os principais meios de produção e as outras classes que não possuem senão os meios secundários, ou que não possuem nenhum. A classe dominante na economia domina também na política, e reforçapolíticamente um tipo dado de relações de produção, garantindo um processo de produção que a favorece... «A política é uma expressão concentrada da economia», como diz uma das resoluções do IX Congresso do P. C. Russo.

Pode-se ainda exprimi-lo em termos um pouco diferentes. Trata-se, nós o vemos, não de todas as relações de produção, de qualquer espécie, mas das relações de domínio econômico — apoiado nas relações determinadas com o

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mundo material — e dos meios de produção. Para falar a linguagem dos legisladores e juristas, trata-se das relações de propriedade fundamentais, das relações de propriedade de classe dos meios de produção. Estas «relações de propriedade» não são qualquer coisa de diferente das relações de produção fundamentais. São exatamente a mesma coisa, mas expressa noutros termos, em linguagem jurídica e não econômica. São precisamente estas relações, ligadas à dominação econômica duma classe, que esta classe procura conservar, fortalecer e alargar a todo preço.

Nestes quadros, todas as mutações possíveis «de ordem evolutiva» podem-se produzir; mas sair destes quadros não é possível, senão pela transformação revolucionária. Por exemplo: nos limites das relações de propriedade capitalista, pudemos assistir ao desaparecimento do artesanato, ao aparecimento de novas formas de empresas capitalistas, à vinda ao mundo de uniões capitalistas antes desconhecidas, à ruína de membros particulares da classe burguesa (falências); alguns membros isolados da classe operária podem chegar à situação de pequenos proprietários e em seguida empresários; novas camadas sociais podem crescer (por exemplo, o que se chama a «nova classe média», isto é, os técnicos intelectuais) e assim por diante. Mas a classe operária não se pode tornar detentora dos meios de produção; não pode alcançar o poder, ter direitos na produção, dispor dos meios fundamentais de produção. Noutras palavras, qualquer que seja a transformação que se possa efetuar sob a influência das forças produtivas nas relações de produção, seu eixo fundamental permanece. E se entra em conflito com as forças de produção, ele se rompe. E é isto a revolução que assegura a passagem a uma outra forma social.

«Na medida em que o processo do trabalho é um simples processo entre o homem e a natureza, seus elementos simples conservam-se idênticos em todas as formas sociais de sua evolução. Mas toda forma histórica determinada deste processo faz avançar a evolução de seus fundamentos materiais e das suas formas sociais. Chegada a um certo grau de maturidade, uma forma.histórica dada é afastada e cede seu lugar a uma forma superior. A hora desta crise aparece quando a contradição e oposição entre as relações de repartição de um lado, e por consequência os aspectos históricos determinados das relações de produção correspondentes, e doutro lado as forças produtivas, atingem uma certa amplitude e uma certa profundidade. Produz-se então o

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choque entre a evolução material da produção e sua forma social» (Capital tomo III, parte 2).

Assim a revolução se produz quando se apresenta um conflito agudo entre as forças produtivas que se desenvolvem, que não cabem mais no quadro das relações de produção, e as ditas relações, isto é, as «relações de propriedade», e os meios de produção. Então este quadro «estala».

Não é difícil compreender por que as coisas se passam assim e não de outra forma. Não é difícil porque são estas relações de produção que apresentam o aspecto mais fixo, mais conservador: é que exprimem o domínio econômico exclusivo de uma classe, firmado e refletido por seu domínio político. É natural que um tal invólucro, que materializa os interesses fundamentais de uma classe, seja mantido por esta classe até o último limite possível, enquanto as mutações que se operam no interior deste invólucro, isto é, as mutações parciais, que deixam na sua integridade os princípios fundamentais duma sociedade, podem-se produzir, e se produzem, relativamente sem dor. Segue-se entre outras coisas que não existe revolução «puramente política»; toda revolução é uma revolução social, isto é, que desloca classes; e toda revolução social é uma revolução política. Isto porque não é possível derrubar as relações de produção sem derrubar a força política destas relações; inversamente, derrubar o poder político significa derrubar o poder de uma classe também no domínio econômico, pois «a política é a expressão concentrada da economia». Responder-se-á a isto: comparai a revolução francesa com a revolução bolchevique russa; no primeiro caso, houve revolução política; no segundo, social; na revoluçãobolchevique triunfante, a política e as transformações políticas não representaram maior papel que na revolução francesa, mas as transformações no domínio das relações de produção não são nem mesmo comparáveis.

Esta «objeção» não faz senão confirmar o que acima já dissemos. Consideremos com efeito as coisas sob o seu aspecto político. É perfeitamente claro que na época da revolução francesa o poder passou das mãos de um grupo de proprietários às mãos de outro grupo também de proprietários. A burguesia derrubou o Estado dos proprietários territoriais e organizou o Estado da burguesia industrial, enquanto na Rússia a organização dos proprietários de qualquer categoria foi completamente varrida. A transformação política foi muito mais profunda. Tanto mais que o deslocamento das relações de produção (nacionalização da indústria, supressão do domínio dos proprietários territoriais, germens de sociedade socialista, etc..) foi mais profundo.

Em resumo, a causa de uma revolução é um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, baseadas, estas na

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organizaçãopolítica da classe dominante. Estas relações de produção dificultam a tal ponto a evolução das forças produtivas, que elas devem necessariamente ser abolidas para que a sociedade possa seguir na sua evolução. E se não podem ser abolidas, elas esmagam e sufocam o desenvolvimento das forças produtivas, e toda a sociedade estagna ou retrocede, isto é, passa por um período de decadência.

A transformação revolucionária que acompanha a passagem de uma forma de sociedade de classe a outra aparece como uma colisão entre forças produtivas e as relações de produção. Mas pergunta-se, quando se produz tal transformação? Sim, porque a contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade duma sociedade dada não aparece bruscamente, não cai inopinadamente do céu como um aguaceiro. Ela se revela e se manifesta muito antes da revolução, desenvolve-se por muito tempo, e não é senão como resultado desta revolução que ela se resolve pela ruptura destas relações de produção que punham obstáculo ao evolver posterior das forças produtivas. Chega-se a este «ponto de ebulição» no momento em que no próprio seio das antigas relações de produção as novas já chegaram de forma latente à maturidade.

«Uma formação social não perece nunca antes de se terem completamente desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode conter; e novas relações de produção, superiores, não entram jamais em cena antes que suas condições materiais de existência não tenham sido primeiramente chocadas sob a asa da mesma antiga sociedade». (Marx, Crítica da Economia   Política , prefacio).

Que significa isto? Tomemos um exemplo na época contemporânea.

A estrutura capitalista é o conjunto das relações de produção da sociedade capitalista, cujo eixo é o conjunto das relações entre operários e capitalistas, relações que, como já sabemos, se exprimem pelos objetos (Capital). Por conseguinte, a estrutura capitalista da sociedade se define, em primeiro lugar, pela combinação das relações que existem entre os capitalistas tomados à parte, e as relações entre os operários também tomados à parte. A estrutura capitalista não se reduz de forma alguma só às relações internas da classe dos capitalistas; do mesmo modo, sua «essência» não consiste nas relações entre os operários. Esta «essência» se encontra na reunião destes dois grupos de relações de produção. É mesmo esta a relação de produção fundamental do capitalismo, este laço que reúne e liga as duas classes fundamentais, que cada qual por sua vez traz em si um conjunto de relações de produção (relações entre os capitalistas de um lado, entre os operários do outro). Se perguntarmos

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agora de que maneira «amadurece», no interior do antigo modo de produção determinado, um novo «modo de produção», descobriremos, tomando para exemplo ainda o capitalismo, o seguinte:

No interior das relações de produção do capitalismo, isto é, no interior da combinação das classes, uma parte destas relações de produção é ao mesmo tempo o fundamento duma nova ordem, socialista. Com efeito, já vimos o que Marx considera como base da ordem socialista. É de um lado a centralização dos meios de produção (isto é, das forças produtivas) e é em seguida (e é isto que se relaciona com as relações de produção), o trabalho socializado, isto é, antes de tudo as relações no interior da classe operária, todo o conjunto das relações de produção no proletariado, o laço de produção entre todos os operários. São precisamente estas relações de produção, que consistem na colaboração, que, amadurecendo no seio das relações de produção capitalistas em geral, são a pedra sobre a qual se erguerá o templo do futuro.

Eis aqui mais alguma coisa que nos deve esclarecer. Vimos mais acima que a camada de uma revolução reside no conflito entre as forças produtivas e as relações fundamentais de produção ou relações de propriedade.

Vimos agora que esta contradição de base encontra sua expressão numa contradição de produção, a saber, na contradição entre uma parte das relações de produção do capitalismo e uma outra parte destas relações. Com efeito. Está claro que o trabalho social e centralizado, encarnado pelo proletariado, torna-se cada vez menos compatível com a dominação econômica (e por conseguinte política) dos capitalistas. Este «trabalho socializado» exige uma economia metódica e não suporta a anarquia das classes. Ele exprime a tendência da sociedade moderna para a organização; ora, esta organização não pode ser obtida da sociedade capitalista. Isto porque a sociedade fundada sobre classes é uma sociedade contraditória, portanto inorganizada. Ora, está claro que os capitalistas não podem, não querem aniquilar seu domínio de classe. Por conseguinte, para que surjam possibilidades de organização «em toda linha», é preciso acabar com a dominação dos capitalistas. Temos assim sob nossas vistas um conflito entre estas relações de produção que são encarnadas no proletariado, e as que se encarnam na burguesia.

Isto nos permite compreender a sequência. É certo que são os homens que fazem a história. Por conseguinte, é inútil acrescentar que um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não se manifesta pelo fato dos meios de produção, máquinas inertes, numa palavra,objetos, se «levantarem» contra os homens. Uma tal suposição seria monstruosa e irrisória. Que se passa então? Passa-se evidentemente que a evolução das

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forças produtivas coloca os homens em relações de contradição marcada e que o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção encontra sua expressão num conflito entre os homens, num conflito entre classes. Acabamos justamente de ver como isto se dá. As relações de colaboração entre os operários se exprimem nos homens vivos, no proletariado, com seus interesses, suas aspirações, sua força e seu poder social. E vice-versa, a base das relações de produção do capitalismo, que domina e oprime, também se exprimem em homens vivos, na classedos capitalistas. Todo conflito encontra sua expressão na luta violenta de classes, na luta revolucionária do proletariado contra a classe capitalista.

Os trovadores oportunistas da social-democracia, no gênero de H. Cunow, gostam de se alongar sobre o tema da "maturidade imperfeita" das relações atuais; e para se justificarem apelam para... Marx, que ensinava que nenhuma forma de produção é substituída por outra enquanto deixa ainda lugar à evolução das forças produtivas. E estes "homens de espírito" começam a galopar pelo mundo todo para mostrar que existem ainda aldeias na África Central, onde ainda não há Bancos, e onde vivem ainda selvagens nus.

Podemos opor esta afirmação:

"a guerra mundial, o inicio de uma era revolucionária, etc., são precisamente a expressão desta maturidade objetiva de que é questão. Pois este conflito da mais alta intensidade foi a consequência dum antagonismo chegado ao apogeu e que se produzia continuamente e se desenvolvia no seio do sistema capitalista. Sua capacidade de abalo é o índice bastante exato da grande evolução capitalista e a expressão trágica da absoluta incompatibilidade do desenvolvimento posterior das forças produtivas com o invólucro das relações capitalistas de produção que as encerra. É bem isto este zusammenbruch, este krack tantas vezes previsto pelos criadores do comunismo cientifico." (N. Bukharin, A Economia do Período de Transição).

§ 47. A revolução e suas fases

O ponto de partida da revolução é, como dissemos, um conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, conflito que coloca numa situação particular a classe portadora do novo modo de produção, e «determina» de uma forma precisa sua consciência e sua vontade. As premissas da revolução

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são portanto a modificação profunda da consciência duma nova classe, a revolução ideológica na classe que será o coveiro da antiga sociedade.

É indispensável pararmos neste ponto. Antes de tudo, é preciso lembrar que esta revolução tem uma base material. Depois é preciso compreender nitidamente porque se trata assim de uma transformarão violenta na consciência de uma nova classe, dum processo revolucionário.Examinemos esta questão com atenção. Toda ordem social, como se aprendeu nos capítulos anteriores, não repousa unicamente sobre os fundamentos econômicos: pois qualquer que seja a ideologia reinante numa ordem de coisas dada, ela não é senão o laço que sustem esta ordem.

As ideologias não são simplesmente acidentes, mas círculos de gêneros diversos que encerram como um tonel o corpo social, e o mantém em equilíbrio. Perguntemos agora o que aconteceria se a psicologia e a ideologia das classes oprimidas estivessem numa posição de hostilidade declarada contra a ordem de coisas reinante. Está claro que, nestas condições, esta ordem não poderia mais se manter. Consideremos com efeito uma forma qualquer de sociedade, e nos convenceremos imediatamente que enquanto subsistir esta sociedade reina, em geral e em conjunto, uma mentalidade e uma ideologia de paz civil. Isto se torna particularmente claro se tomamos por exemplo o capitalismo no inicio da guerra de 1914-1918. Certamente, a classe operária tinha desenvolvido uma ideologia independente da da burguesia. E que vemos nós? Mesmo no seio da classe operária existia uma crença extraordinariamente forte na estabilidade da ordem capitalista, um certo apego ao Estado capitalista, uma psicologia de paz civil. Era preciso toda uma revolução psicológica e ideológica para que uma classe se levantasse efetivamente contra outra. E quando se efetua esta revolução ideológica e psicológica? Quando a evolução objetiva coloca a classe oprimida numa «situação insuportável», quando esta classe vê e adquire uma consciência nítida de que «na ordem de coisas atual não há possibilidades de melhoria possível», «que não existe saída», «que isto não pode durar». Isto se produz quando o conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção provocou o rompimento do equilíbrio social, e a impossibilidade de restabelecê-lo em suas antigas bases. Prossigamos tomando por exemplo a revolução proletária. A classe operária, como já vimos, desenvolveu no curso da evolução capitalista da humanidade uma psicologia e uma ideologia mais ou menos hostil à ordem existente. É no Marxismo que esta ideologia recebeu a sua expressão a mais marcada, a mais nítida, a mais significativa e a mais profunda. No entanto, na consciência das massas, e por este fato de que o capitalismo ainda podia se desenvolver, que ele se desenvolvia e podia mesmo melhorar os salários graças ao saque e à exploração sem piedade das

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colônias, por este fato o capitalismo não era em absoluto «insuportável» à consciência das massas operárias. Melhor ainda. Na classe operária européia e norte-americana se estabeleceu mesmo uma «comunidade de interesses» particulares com o «Estado nacional capitalista». Ao mesmo tempo, o Marxismo de Marx, nascido no solo da revolução de 1848, se transformava nos partidos operários num «Marxismo II.ª Internacional» todo especial, que traía, e desnaturava a doutrina de Marx, mesmo sobre a revolução social, o empobrecimento do proletariado, a queda inevitável do capitalismo, a ditadura do proletariado, etc.. Tudo isto encontrou sua expressão na traição dos partidos sociais-democratas e no estado de espírito patriótico da classe operária em 1914. Foi preciso que a guerra e suas consequências aparecessem como expressão das contradições do regime capitalista, para mostrar, ou melhor, começar a mostrar, que «isto não podia mais durar». À psicologia, e à ideologia de paz civil, substituíram-se uma psicologia e uma ideologia de guerra civil, e no domínio puramente ideológico, o «Marxismo» da II.ª Internacional cedeu seu lugar ao verdadeiro Marxismo, isto é, ao comunismo cientifico.

Assim, esta revolução nas idéias é constituída, pelo krack da antiga psicologia e da antiga ideologia, rompidas pela irrupção de fatos próprios da vida social, e pela instauração duma ideologia e duma psicologia novas e verdadeiramente revolucionárias.

A canalha social democrata não o compreenderá jamais. Pelo contrário, ela quer apresentar a coisa da seguinte forma: no terreno da miséria e da fome, não pode haver revolução proletária, por conseguinte toda revolução que se produza nesse terreno não é uma "verdadeira" revolução. É interessante opor a isto a forma pela qual Marx encara as coisas; num artigo por ele assinado no "New York Tribune" de 2 de fevereiro de 1854, lemos:

"não podemos esquecer que existe na Europa uma sexta potencia que, a um momento dado, afirmará seu poder sobre as outras cinco chamadas "grandes potencias" todas juntas, fazendo-as tremer diante de si. Esta potencia, é a revolução. Depois de longo silêncio e retiro, ela é novamente chamada para a frente de batalha pela crise e pela fome... Não é preciso senão um sinal para que a sexta mais poderosa das potencias entre em cena com todo o esplendor da sua armadura, a espada na mão... Este sinal será dado pela guerra européia ameaçadora".

Assim, Marx não adiantava este raciocínios imbecis sobre a impossibilidade duma revolução proletária, depois de uma guerra, sobre a

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impossibilidade de edificar a revolução sobre a fome, etc.. Marx se enganava sobre o ritmo da evolução, mas ele geralmente apanhou o esquema essencial dos acontecimentos: crise, fome, guerra.

A segunda fase da revolução é a revolução política isto é, a tomada do poder por uma nova classe. Aqui a psicologia revolucionária da nova classe entra em ação. A classe oprimida se choca diretamente com a força concentrada da classe reinante, o seu aparelho de Estado. Para quebrar essa oposição, a classe nova, no processo da luta, desorganiza, destrói numa medida maior ou menor a organização do Estado adversário, e em parte com antigos elementos, em parte com novos, instaura sua organização de Estado. É aqui indispensável notar e frisar que a «tomada do poder» por uma nova classe não pode consistir numa simples passagem da mesma organização de Estado de uns para outros. Uma idéia assim ingênua das coisas foi extremamente difundida até em meios socialistas. Portanto, em Marx e Engels, consta expressamente a destruição do poder antigo e a organização de um novo. É muito compreensível. Com efeito, a organização de Estado é a expressão suprema do poder da classe reinante, é a sua fortaleza, sua força concentrada, seu principal aparelho de luta, sua principal arma defensiva contra a classe oprimida. Como então poderá a classe oprimida quebrar a oposição da classe opressora, deixando intacto seu principal instrumento de opressão? Como vencer um inimigo sem desorganizar as forças deste inimigo? Evidentemente, de duas uma: ou as forças da classe reinante conservam-se tais quais, e então a revolução está por definição vencida; ou então a revolução é vencedora e isto subentende a desorganização, a destruição das forças (isto é, em primeiro lugar, a organização do Estado) da classe dirigente. E como a força material do poder do Estado encontra sua principal expressão na força armada, está claro que este trabalho preliminar de destruição deve-se dirigir principalmente contra o antigo exército. Mostrou-nos isto, entre outros exemplos, a revolução inglesa do século XVII, que destruiu o aparelho de Estado do poder dos reis e proprietários fundiários, seu exército, etc.. e instituiu o exército revolucionário dos puritanos e a ditadura de Cromwell. Isto nos é ainda demonstrado pela revolução francesa, que desfocou o exército real e instituiu o exército revolucionário, edificado sobre novos princípios. Isto é finalmente demonstrado e provado pela revolução russa de 1917 e dos anos seguintes, que destruiu o aparelho de Estado dos proprietários fundiários e da burguesia, que dissolveu o exército imperialista e edificou um novo Estado, dum tipo absolutamente sem precedentes, e um exército revolucionário novo. Assim, a fase política da revolução não consiste em tomar a nova classe a antiga máquina deixada intacta, mas demoli-la, mais ou menos (conforme a classe que procede à transformação social), eedificar uma organização nova,

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isto é, combinar de uma nova forma homens e coisas, e sistematizar duma nova forma as idéias correspondentes.

A terceira fase da revolução é a revolução econômica. Consiste em utilizar-se a classe vencedora do poder que adquiriu como de uma alavanca para a transformação econômica, acabando de destruir as relações de produção do antigo tipo e ajudando a se desenvolver e consolidar as novas relações que já amadureciam na antiga ordem, mas em contradição com ela. Eis como Marx definiu este período da revolução, examinando a revolução do proletariado:

«O proletariado aproveitará da sua dominação política para arrancar inteiramente à burguesia todo o capital, para centralizar nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, todos os meios de produção, e para aumentar, na medida do possível, a massa das forças produtivas (este último ponto, como vemos, não vem senão mais tarde, e se relaciona propriamente com o período seguinte, N. B.). Isto não pode evidentemente se dar sem irrupções despóticas no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, e por conseguinte, por meio de medidas que aparecem economicamente insuficientes e insustentáveis mas que, na marcha da evolução, saem do seu próprio quadro e são inevitáveis como meios de transformação radical de todo modo de produção» (Manifesto Comunista).

Noutra passagem do Manifesto, Marx fala do proletariado que,

«como classe no poder, transformará pela violência as antigas relações de produção».

Aqui se apresenta uma nova questão muito importante e fundamental: como, num caso típico, se produz, e deve inelutavelmente se produzir, esta reorganização das relações de produção?

A maneira pela qual, antigamente, a social-democracia representava as coisas era a mais simples: uma nova classe, no caso o proletariado, «afasta» os que estão à frente do processo econômico, dizendo «Vão-se embora, imbecis!»; os «imbecis» retiram-se, mais ou menos empurrados pelo proletariado, que recebe completo e intacto o aparelho social de produção, todo pronto, amadurecido no seio de Abraão capitalista. O proletariado se instala à

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frente do processo econômico, e está tudo acabado: a produção segue sem embaraços, a continuidade do processo de produção não se rompe e a sociedade toda escorrega, sem choques, pelo caminho da ordem, socialista desabrochada. Examinemos contudo com maior atenção a revolução nas suas relações com a produção. O que indicam antes de tudo estas relações de produção do ponto de vista do processo do trabalho? Não são outra coisa senão um aparelho humano complexo de trabalho, um sistema de pessoas mutuamente ligadas umas às outras, já o sabemos, segundo um tipo determinado. Mas além disto — e isto é especialmente importante — as funções de trabalho dos diversos grupos de pessoas numa sociedade de classes são ligadas ao seu papel de classe, por assim dizer, germinadas com ele. Por conseguinte, a transposição das classes é, numa certa medida, a destruição do antigo aparelho de trabalho, e a construção de um novo, exatamente como na fase política da revolução. É lógico que resultará, inevitavelmente, por um certo período, um declínio das forças produtivas: toda reconstrução exige despesas. Da mesma forma, compreende-se que o grau de destruição do antigo aparelho, a importância das demolições depende em primeiro lugar da importância do deslocamento que se observa nas classes. Nas revoluções burguesas, por exemplo, o poder de comando na produção passa de um grupo de proprietários a outro; mas o princípio da propriedade fica em vigor, o proletariado conserva-se no lugar onde estava. Por conseguinte, a demolição, a destruição da antiga ordem é aqui muito menos importante que no caso em que a camada inferior da pirâmide, o proletariado, procura chegar ao cume. Neste caso, é necessário um abalo profundo. A antiga cadeia: burguesia, alta classe intelectual, média classe intelectual, proletariado, estala. O proletariado conserva-se mais ou menos só. Contra ele estão todos os outros. Dai uma inevitável desorganização temporária da produção, desorganização que se prolonga enquanto o proletariado não dispôs os homens segundo uma outra ordem, e não os uniu por um laçodoutro tipo, isto é, enquanto não estabeleceu um novo equilíbrio de estrutura da sociedade.

Estas idéias foram expostas pelo autor da presente obra no seu livro A Economia do período de transição (veja-se especialmente o capítulo III), ao qual remetemos os camaradas que queiram conhecer mais em detalhe as considerações desenvolvidas a este respeito. Não faremos aqui senão uma série de reparos complementares. Antes do mais, até que ponto pode esta opinião ser considerada como ortodoxa? Pensamos que é precisamente este o ponto de vista de Marx sobre a questão. Um fato característico: Marx empregava aqui exatamente a mesma expressão que a propósito da destruição do Estado. Escrevia que o invólucro das relações de produção capitalista "saltava" (Capital, tomo I); em outras passagens fala da

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"decomposição" e da "refundição". Compreende-se bem que quando as relações de produção "saltam", isto não pode deixar de agitar a "continuidade do processo de produção", o que seria, é natural, muito mais agradável. É provavelmente também esta idéia que transparece em Marxquando diz que "a irrupção despótica" do proletariado é economicamente "insustentável", mas em seguida ela se justifica e, por assim dizer, encontra sua compensação.

Outra observação: Fazem-nos uma porção de objeções a propósito da Nova Economia Política (N.E.P.) na Rússia. Indica-se que na nossa "Economia do período de transição" ocupamo-nos em fazer com parcialidade a defesa do partido comunista russo, que agira como macaco em loja de louça. E agora, dizem, a vida provou que não era preciso destruir o antigo aparelho e que estamos tão calmos como o bando de Scheidman. Noutros termos: a destruição do aparelho capitalista de produção foi um fato da realidade russa e absolutamente não uma lei geral da passagem de uma forma de sociedade (capitalista) para uma outra (socialista). Esta "objeção" se apóia visivelmente numa "serena" incompreensão das coisas. Os operários russos não podiam "soltar" os capitalistas, etc.., senão depois de abalar suas bases e se terem consolidado no poder, isto é, depois de terem estabelecido nas suas linhas gerais o novo equilíbrio social. Mas nossos críticos querem começar pelo fim. Com efeito, até no aparelho de Estado (por exemplo, o exército) deixamos entrar numerosos quadros de oficiais do antigo regime e os colocamos em funções de comando. Poderíamos fazer a mesma coisa no começo da revolução? Poderíamos então ter deixado de destruir o antigo exército czarista? Não seriam então os operários que lhes imporiam sua própria direção, mas eles quem imporiam a deles aos operários. É isto coisa suficientemente provada pela política dos ministros Scheidman—Noske na Alemanha, Otto Bauer. Renner na Áustria, Vandervelde na Bélgica, etc..

Terceiro reparo: a nova política econômica na Rússia decorre, numa proporção de 9 para 10, do caráter camponês do país, isto é, de condições especificamente russas.

Quarto reparo: É evidente que o que temos em vista é um tipo de marcha dos acontecimentos. Mas em condições particulares, pode-se dar um estado de coisas tal que não haja destruição: por exemplo, se o proletariado vencer nos países de primeira importância, então é possível que a burguesia com todo o seu aparelho capitule de uma só vez.

O ponto de vista que acabamos de expor não afirma em absoluto que se trata unicamente de homens isolados. Ele afirma que as diversas camadas hierárquicas dos homens se separam umas das outras; o proletário rompe com as demais camadas (técnicos, burguesia, etc.), mes ele mesmo, como conjunto

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de homens, mais se agrega em um conjunto homogêneo, pelo menos numa parte considerável. Está mesmo aí a base dasnovas relações de produção (já vimos mais acima que "o trabalho socializado", representado principalmente pelo proletariado, é justamente o que amadureceu nos quadros do antigo regime econômico).

Enfim, a quarta e última fase da revolução é a revolução técnica. Depois que se atingiu um novo equilíbrio social, isto é, depois da constituição de um novo invólucro estável para as relações de produção, que possa servir de forma à evolução das forças produtivas, a partir de um ponto determinado começa a sua evolução acelerada: desaparecidos os obstáculos, a sociedade começa uma ascensão até então desconhecida. Introduzem-se novos instrumentos, forma-se uma nova base técnica, produz-se a revolução técnica. E desde então começa o período «normal», «orgânico» de desenvolvimento da nova forma social, que se constitui uma psicologia e uma ideologia correspondentes.

Recapitulemos. O ponto de partida do desenvolvimento da revolução foi, como vimos, a ruptura do equilíbrio entre as forças produtivas e as relações de produção. Isto se dá na ruptura do equilíbrio entre as diversas categorias das relações de produção. Por seu turno, esta última ruptura de equilíbrio conduz à ruptura de equilíbrio entre as classes, que se manifesta antes de tudo na destruição da ideologia de paz social. Produz-se em seguida uma brusca ruptura de equilíbrio político e sua restauração numa base nova, em seguida uma brusca ruptura do equilíbrio da estrutura econômica e sua restauração também numa nova base, enfim o aparecimento dum novo fundamento técnico. Assim a sociedade começa a se desenvolver sobre uma nova base de vida, e todas as funções vitais fundamentais tomam outro aspecto histórico.

§ 48. As leis do período de transição e da decadência

Estudando o processo da revolução, que não é outra coisa que o processo da passagem duma sociedade duma forma a outra, chegamos à conclusão de que, iniciando-se pelo choque das forças produtivas e das relações de produção, este processo percorre diversas fases da ideologia à técnica, isto é, parece, segundo uma ordem invertida.

Para ver como se passam as coisas, tomemos um exemplo concreto, digamos, a revolução proletária.

H. Cunow, novo crítico de Marx, opôs as seguintes passagens extraídas, uma da Miséria da Filosofia e outra do Manifesto Comunista. A primeira diz:

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«A classe operária no curso da evolução transforma a sociedade burguesa em uma associação tal que excluirá as classes e as contradições entre elas, por uma associação onde não haverá propriamente poder político, pois que o poder político é justamente a expressão oficial das contradições no interior da sociedade civil».

Na outra passagem, Marx assim define o curso dos acontecimentos:

«Se o proletariado se une como classe na sua luta contra a burguesia, ele se torna pela revolução a classe dominante, e como classe dominante abolirá pela violência as suas antigas relações de produção; ora, ao mesmo tempo que estas relações, ele destrói as condições de existência das contradições de classes em geral, e entre outras, a sua própria dominação de classe».

A este propósito, Cunow observa o seguinte (ob. cit, vol. I, pag. 321):

«Isto (trata-se da passagem do Manifesto, N. B.) é sob o ponto de vista sociológico quase a inversão completa da frase mais acima citada da Miséria da Filosofia. Assiste-se lá (na Miséria, N. B.) no curso da evolução social. primeiro à supressão da divisão em classes, e é somente em seguida que por efeito deste mesmo fato a base do antigo poder político é derrubada, e produz-se uma nova conquista «política» (!). No Manifesto Comunista, pelo contrário, a conquista do poder do Estado dá-se antes de tudo e somente em seguida, por meio da transformação deste poder, é que se produz o deslocamento das relações de produção capitalista; em seguida, por sua queda progressiva, o desaparecimento da oposição de classe, e ao mesmo tempo, finalmente, a supressão das classes em geral».

Assim Cunow afirma que na Miséria Marx é um sábio evolucionista e no  Manifesto  um revolucionário insensato. O sr. Cunow mente cinicamente, pois sabe perfeitamente que a Miséria da Filosofia apela para a «luta sangrenta» («Luta Sangrenta ou Morte. É só assim que a história apresenta a questão»). Mas examinemos a coisa em si. Na primeira passagem citada de Marx, trata-se do período que se segue à conquista do poder e ao desaparecimento progressivo do poder do proletariado. Não se fala na «conquista política». O poder do proletariado é desde o inicio compreendido

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como um elemento condenado a desaparecer. Da mesma forma na passagem do Manifesto. Assim, está fora de dúvida que Marx considerava a conquista do poder político, (isto é, a destruição da antiga máquina de Estado e a organização duma nova, original) como uma condição para a destruição das relações de produção por meio da expropriação violenta dos expropriadores. Por conseguinte, aqui também, está-se diante de uma «ordem invertida». A análise vai, não da economia à política, mas desta àquela. De fato, se as relações de produção são transformadas com auxilio da alavanca do poder político, segue-se que a economia é aqui determinada pela política. E Cunow não terá agora razão de dizer que nós temos aqui uma sociologia em contradição com a verdadeira sociologia de Marx?

Não, certamente, não tem razão. Ele não faz mais que falsificar Marx, e age como um vulgar falsário.

Com efeito. Não se deve perder de vista o ponto de partida de todo o processo. Onde está tal ponto? No conflito entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção. É esta a base do processo, o ponto inicial de toda reorganização social. Quando interrompe o processo a sua marcha louca? Quando se constitui um novo equilíbrio na estrutura da sociedade. Noutras palavras, a revolução começa porque as relações de propriedade se tornaram um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas; a revolução, para falar por metáforas, «desempenha o seu papel» quando se edificam novas relações de produção, podendo servir de forma à evolução das forças produtivas. E que há entre estes dois pontos da revolução? A influência em torno das superestruturas.

Vimos nos capítulos precedentes que as superestruturas não são elementos «passivos» do processo social: são também forças determinadas. Seria ridículo contestá-lo, e o sr. Cunow, ele mesmo, não tem a audácia de levantar alguma objeção. O que se produz aqui é precisamente um processo, muito ampliado no tempo, de influência ambiente; esta extensão no tempo decorre do caráter catastrófico de todo o processo, da supressão de todas as funções comuns. Num período normal, toda contradição entre as forças produtivas e a economia, ou outra qualquer, se resolve rapidamente, exerce rapidamente sua influência sobre a superestrutura, em seguida a superestrutura sobre a economia e as forçar produtivas, e o circulo recomeça sem cessar. Mas aqui, esta acomodação mutua das diferentes partes do mecanismo social se opera de uma forma áspera, cruel, como preço de sacrifícios prodigiosos; as próprias contradições tomam uma amplitude formidável. Nada de extraordinário, portanto, que o processo de influência em torno das superestruturas (ideologia política — conquista do poder,

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transformação deste poder para o refazimento das relações de produção) seja longo, enchendo todo um período histórico. É aí que reside a originalidade do período de transição, coisa perfeitamente incompreensível para o sr. Cunow.

É indispensável não perder de vista o que aqui se segue. Toda força que se prende às superestruturas, e entre outras, o poder concentrado de uma classe, um poder de Estado, é uma força. Mas esta força não é ilimitada. Nenhuma força pode fazer o que está acima dela. Por que então, se acha limitada a força política da nova classe que vem tomar o poder? Pelo estado das forças econômicas dadas e, por conseguinte, das forças produtivas. Noutras palavras: esta transformação das relações econômicas, que pode ser realizada com o auxilio da alavanca política, depende ela mesma do estado anterior das relações econômicas. Não se poderia melhor explicá-lo que com o exemplo da revolução proletária russa. A classe operária tomou em 1917 o poder nas suas mãos. Ela, porém, não poderia nem pensar em centralizar e socializar a economia pequeno-burguesa, particularmente a economia camponesa. Tornou-se claro em 1921 que a economia russa resistira ainda mais do que se esperava, e que as forças do Estado proletário bastavam apenas para conservar socializada a grande indústria, e assim mesmo nem toda ela.

Atendamos agora ao seguinte: Vimos mais atrás que o processo revolucionário interrompe o desenvolvimento das forças produtivas, melhor, que ele rebaixa o nível destas forças. É indispensável esclarecer esta idéia e o sentido deste fenômeno.

Uma sociedade inorganizada, cujo exemplo concreto mais típico é a sociedade capitalista mercantil, se desenvolve sempre por saltos. Todos sabem agora que, por exemplo, o capitalismo traz em si guerras e crises industriais. Ninguém ignora que estas guerras e estas crises são o «atributo inevitável» da ordem capitalista. Que indica esta lei se a considerarmos do ponto de vista das forças produtivas da sociedade? Tomemos antes as crises. O que se dá em tempos de crise? A parada das empresas, o aumento da falta de trabalho, a diminuição da produção, a ruína e a perda duma quantidade de empresas, sobretudo as pequenas, numa palavra, a ruína parcial das forças produtivas. Ao mesmo tempo, ao lado disto, a ascensão das formas de organização do capitalismo: a consolidação das maiores empresas, o desenvolvimento dos «trusts» e outras fortes uniões monopolizadoras. E depois da crise? Um novo ciclo de evolução, uma nova ascensão sobre uma nova base, com formas superiores de organização, que dão um novo impulso à evolução das forças produtivas. Assim, é pelo preço de uma crise, e

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de uma perda considerável de forças produtivas, que a crise adquire a possibilidade de uma evolução posterior.

Dá-se a mesma coisa, até um limite determinado, nas guerras capitalistas. Elas são a expressão da concorrência capitalista. São acompanhadas duma queda temporária das forças produtivas. Mas depois os Estados da burguesia são aumentados, os fortes tornam-se ainda mais fortes, os pequenos foram absorvidos; o capital se centralizou numa escala mundial, adquiriu um campo de exploração mais vasto, os quadros da evolução das forças produtivas se alargaram, e depois de um declínio temporário, o processo de acumulação tomou novo impulso.

A mesma lei se aplica na evolução geral da sociedade capitalista. Sabemos já que a significação da revolução é aniquilar os obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas. Mas, porquanto pareça estranho, aniquilando estes obstáculos, ela aniquila também temporariamente uma parte das próprias forças produtivas. E isto é tão inevitável quanto às crises no regime capitalista.

Assim, a passagem da sociedade de uma forma a outra se acompanha de um rebaixamento temporário das forças produtivas, rebaixamento sem o qual toda evolução posterior é impossível.

A lei do período de transição se distingue da lei da decadência em que, neste último caso, não há passagem a uma forma superior de economia; a queda das forças produtivas se manifesta até que a sociedade receba um abalo, um choque exterior qualquer, ou até que encontre seu equilíbrio numa base inferior, depois do que começa uma «repetição do passado» ou um estado prolongado de estagnação, mas, em nenhum caso, uma forma superior de relações econômicas.

Se analisamos as camadas da decadência constatamos que em geral elas se reduzem ao seguinte: as relações de propriedade dadas não se podem romper; por conseguinte, elas se tornam obstáculos à evolução, pesando em torno sobre as forças produtivas, que «cedem», por assim dizer, constantemente. Isto se pode produzir, por exemplo, quando na revolução as forças, das classes em presença são aproximadamente iguais, de tal forma que nem uma nem outra pode vencer, e que a sociedade toda deperece. Aqui, o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção determinou duma maneira definida a vontade das classes, mas a revolução não ultrapassou sua primeira fase. As classes se entre devoram, nenhuma consegue obter a vitória, a produção se extingue, a sociedade agoniza. Ou então pode acontecer que a classe vitoriosa não está em condições de desempenhar as funções que

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assumiu. Ou ainda, podemos nos imaginar que as coisas não foram até a revolução, mas que a evolução das forças produtivas chegou a um ponto onde determinou um agrupamento todo particular das classes; de um lado uma classe reinante parasita e de outro lado uma classe oprimida completamente sem força. Então, também, não haverá revolução; haverá simplesmente, mais cedo ou mais tarde, uma decomposição e uma decadência, por assim dizer «exangue». Pode enfim haver um tipo misto de revolução. Neste caso, vemos que o desenvolvimento das forças produtivas conduz a uma economia tal e a tais «superestruturas», que sua influência ambiente paralisa a evolução das forças produtivas e as impele para baixo. E cedendo as forças produtivas, não é preciso acrescentar que também baixará o nível de todo o conjunto da vida social.

§ 49. A evolução das forças produtivas e a materialização dos fenômenos sociais [acumulação da cultura)

Quando examinamos o processo da produção e reprodução num período de crescimento das forças produtivas, notamos esta lei geral: nos períodos de crescimento sempre a maior parte do trabalho é despendido na produção de instrumentos de produção. Com auxilio destes meios de produção sempre em aumento e que entram para a técnica social, uma parte cada vez menor de trabalho vai dando quantidades cada vez maiores de produtos úteis de toda espécie. O trabalho manual de preparação de instrumentos de produção absorvia antes relativamente pouco tempo; com instrumentos miseráveis, sem valor, feitos à mão, os homens, com esforço considerável, tinham uma produtividade reduzidíssima. Pelo contrário, nas sociedades evoluídas, uma parte enorme do trabalho social é gasto na produção de poderosos instrumentos de trabalho, máquinas e aparelhos destinados a produzirem em massa outros instrumentos de produção, tais como usinas consideráveis, entrepostos, geradores de energia elétrica, etc.. Um grande gasto de forças humanas é feito neste sentido. Mas em compensação, com estes poderosos meios de produção, o trabalho vivo se torna de uma produtividade inaudita: as «despesas adiantadas» são reembolsadas com usura.

Na sociedade capitalista, esta lei encontra sua expressão no crescimento relativo do capital constante em comparação com o variável. A parte do trabalho dedicada à construção de usinas, máquinas, etc., cresce mais depressa que a dedicada ao salário dos operários. Ou, noutras palavras, na evolução das forças produtivas da sociedade capitalista, o capita constante cresce mais depressa que o variável. Isto pode ainda ser expresso de outra forma: no desenvolvimento das forças produtivas, estas se repartem constantemente de forma diferente, de tal sorte que uma parte cada vez maior só é colocada nos ramos que produzem meios de produção.

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Assim, o crescimento das forças produtivas, a acumulação do poder do homem sobre a natureza, se exprimem no fato de que o «peso especifico» dos objetos, do trabalho morto, da técnica social, vai sempre em aumento.

Perguntamos agora se não se produzem fenômenos análogos nos outros domínios da vida social. Eis o que nos confere o direito de propor esta questão. Vimos mais acima que o trabalho relativo às superestruturas é também um trabalho diferenciado, cindido, separado do trabalho material. Vimos também que a superestrutura, por sua estrutura interna, contém simultaneamente elementos materiais, humanos e ideológicos no sentido próprio dessa palavra. Como se produz, portanto, aqui a acumulação desta cultura intelectual? Não haverá aqui alguma analogia com o processo material da produção, e no caso afirmativo, como ela se manifesta?

Digamo-lo já: existe uma analogia, e ela se manifesta nisto, que a ideologia social se materializa, se fixa nas coisas, se acumula ela também sob a forma de objetos perfeitamente materiais. Com efeito, lembremo-nos das fontes de que nos servimos para ressuscitar as antigas «culturas intelectuais», o que chamamos os «monumentos» das épocas passadas, os restos de bibliotecas antigas, os livros, as inscrições, as estatuas, os quadros, os templos, os instrumentos de música encontrados, os milhares de outras coisas. Estes objetos são para nós como que a forma fixada, materializada, da ideologia de épocas afastadas, e por eles podemos com aproximação julgar da psicologia dos contemporâneos, da sua ideologia, exatamente da mesma forma que, pelos instrumentos de trabalho, fazemos um juízo sobre o grande desenvolvimento das forças produtivas e em parte também da economia destas épocas. Notemos ainda o seguinte: No trabalho de superestrutura, no ideológico, os meios de prazer representam ao mesmo tempo meios de produção ulterior. Examinemos, por exemplo, uma galeria de quadros. Estes quadros são para o publico que os contempla um motivo de prazer. Mas são ao mesmo tempo meios de produção, não certamente comparáveis aos pincéis ou à tela, mas em todo o caso meios de produção dum caráter particular. Isto por que, por eles, as gerações seguintes aprendem. Quando surge uma nova escola artística, uma nova corrente de pintura ela não cai do céu: nasce das que a precederam, mesmo quando as ataca violentamente, quando «nega» e destrói o antigo sistema ideológico. Nada nasce do nada. Do mesmo modo que em política, em tempos de revolução, o antigo Estado é destruído, mas que o novo é até certo ponto constituído de elementos antigos, ligados entre si de uma outra forma, assim também no domínio ideológico, mesmo nas rupturas mais bruscas, há transmissão e ligação com o passado: o novo não se constrói sobre uma «tabula rasa» absoluta. Os quadros são para os artistas um meio de produção,

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experiências artísticas acumuladas, ideologia condensada, a partir da qual começa neste domínio todo o movimento ulterior.

A isto pode-se objetar mais ou menos o seguinte: que contradição grosseira é esta! Que existe de comum entre a alta doutrina cristã e os sinais materiais traçados em caracteres negros sobre um pergaminho ou um papel? Que existe de comum entre aquilo e o couro de porco com que se encaderna o Evangelho? Que existe de comum entre a sabia ideologia e a massa de velharias acumuladas nas bibliotecas? Todos os argumentos deste gênero repousam num mal entendido. Certamente nem o papel tomado em si, nem os materiais ornamentais, nem o couro de porco teriam significado algum para nós se não os considerássemos na sua, existência social. Vimos no § 30 deste livro que mesmo a máquina tomada fora do seu laço social é simplesmente um pedaço de metal, madeira, etc.. Porém ela possui ao mesmo tempo uma existência social como objeto utilizado pelo homem, no processo de trabalho. Da mesma forma: fora da sua existência física como um pedaço de papel, ele tem também sua vida social; ele é compreendido como livro no processo da leitura. E é aqui que precisamente ele se manifesta como ideologia concentrada, como meio de produção ideológica.

Se abordamos por esse lado a questão da acumulação de cultura intelectual, veremos sem esforço que esta acumulação tem precisamente lugar sob formas concretas, e de certa forma se precipita em deposito palpável, material. Tanto mais o domínio da cultura intelectual é «rico», mais grandioso, mais amplo é o domínio desses «fenômenos sociais materializados». Para falar por metáforas (e sem esquecer que se trata apenas de uma analogia), a carcaça material da cultura intelectual constitui «o capital de base» desta cultura; é tanto mais rica quanto ele é mais considerável, o que novamente, «em última análise», depende do nível de evolução das forças produtivas materiais. Inscrições ingênuas, mascaras, ídolos grosseiros, desenhos sobre pedra, monumentos artísticos, manuscritos de papiros, «livros» de pergaminho, etc. — e mais tarde galerias, museus, jardins botânicos, laboratórios, jornais, etc. — tudo isto é a experiência acumulada, materializada da humanidade. As novas prateleiras de livros, com os livros novos que constantemente se ajuntam aos que já lá estão, mostram-nos, de uma forma concreta, a colaboração de uma quantidade de gerações que se sucedem umas às outras numa sequencia ininterrupta.

§ 50. O processo de reprodução da vida social no seu conjunto

Podemos agora recapitular brevemente.

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Entre a sociedade e a natureza produz-se constantemente uma «troca de substancias», um processo de reprodução social, de trabalho que se repete por ciclos e que constantemente substitui o que está errado, alarga sua base, paralelamente à revolução das forças produtivas, o que dá à sociedade a possibilidade de alargar constantemente as fronteiras da sua vida.

Mas o processo da produção de produtos materiais é ao mesmo tempo um processo de relações econômicas dadas.

«O processo capitalista de produção, diz Marx, considerado como qualquer coisa de contínuo, isto é, como processo de reprodução, não produz unicamente mercadorias, mas também produz e reproduz esta relação mesma que se chama capital, isto é, de um lado o capitalista, e doutro, o operário assalariado». (Capital, tomo I).

Esta fórmula de Marx não é somente verdadeira para o modo capitalista de produção; é verdadeira em geral. Se, por exemplo, tomarmos a economia escravagista da antiguidade, cada ciclo de produção será acompanhado por este fato de que o senhor de escravos receberá a sua parte, os escravos a sua, que também no ciclo seguinte o dono de escravos desempenhará um papel, o escravo outro; que em caso de ampliação da reprodução a mudança consistirá apenas no aumento da parte do senhor, do seu poder, do número de seus escravos, da massa de trabalho suplementar por ele fornecida. Assim o processo de reprodução material é ao mesmo tempo um processo de reprodução das relações de produção, o envoltório histórico dentro do qual ele se coloca. Doutra parte, o processo de reprodução material é um processo de constante reprodução das forças operárias correspondentes.

«O homem ele próprio, diz Marx, considerado simplesmente como força trabalhadora em si, é um objeto da natureza, uma coisa, viva sem dúvida e consciente de ser uma coisa; e mesmo seu trabalho aparece com uma exteriorização concreta da sua força»(Capital, tomo I).

Mas nos diversos períodos históricos, em correlação com a técnica da sociedade, o modo de produção, etc., tem-se forças operárias definidas, a saber, forças operárias de qualificação adequada. O processo de reprodução reproduz constantemente esta qualificação. Noutras palavras: o processo de reprodução social reproduz não somente as coisas, mas também «as coisas vivas», isto é, operários qualificados de forma determinada; ele reproduz também as relações entre eles; ele traz, no caso de alargamento, as correções

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correspondentes ao novo nível das forças produtivas, dispondo nesse caso de outros homens, de outra forma qualificados, doutras «máquinas vivas», de outros postos do campo de trabalho. Mas deixa imutáveis (se não se trata de um período revolucionário de transição) o plano fundamental das relações de produção, reproduzindo-o constantemente numa escala cada vez maior.

Se se quer dar ao conjunto das diferentes forças de qualificação das forças de trabalho o nome de fisiologia social, pode-se dizer que o processo de reprodução reproduz constantemente a economia da sociedade, e, por consequência, sua fisiologia.

Mas ao mesmo tempo que o processo de reprodução material, gira toda a gigantesca máquina da vida social; há a reprodução das relações entre classes, reprodução das relações de organização do Estado, reprodução das relações que dizem respeito aos diferentes ramos do trabalho ideológico. Paralelamente a essa reprodução de conjunto da vida social, reproduzem-se também constantemente as contradições sociais. As contradições parciais que aparecem como ruptura do equilíbrio consecutiva a um choque vindo da evolução das forças produtivas, se resolvem constantemente pela reconstrução parcial da sociedade nos quadros do modo de produção que é o seu. Mas as contradições fundamentais, que decorrem da essência mesma da estrutura econômica dada, estas se reproduzem sobre uma base que constantemente se alarga, até que seu crescimento alcance tais dimensões, que elas conduzem à catástrofe. Desaba então toda a antiga formação das relações de produção, e para que a sociedade possa se desenvolver, é preciso que se estabeleça uma nova forma de relações de produção.

«A evolução das contradições duma forma histórica dada de produção é o único meio histórico da sua deslocação e reforma».(Capital, t. 1).

Este momento se acompanha de uma interrupção temporária do processo de reprodução, da sua ruptura, que encontra sua expressão na ruína duma parte das forças produtivas. A refundição geral de todo aparelho de trabalho humano, a reorganização de todos os laços humanos conduz a um novo equilíbrio, e a sociedade começa um novo ciclo histórico de sua evolução, alargando sua base técnica e acumulando sua experiência social, que cada vez serve de ponto de partida a todo movimento para frente, qualquer que ele seja.

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Capítulo VIII - As Classes e a Luta de Classes

§ 51. Classe, condição, profissão

É-nos agora indispensável entrar mais a fundo na questão das classes e da luta de classes. Sabemos já pelo que precede o papel relevante que desempenham as classes na evolução da sociedade humana. A própria estrutura social, em uma sociedade fundada sobre as classes, é determinada pela sua divisão em classes, as relações mutuas dessas classes, etc.; toda mudança importante na vida social, é de uma maneira ou de outra ligada à luta de classes; toda passagem da sociedade de uma forma a outra se realiza por uma luta sem tréguas entre as classes. É precisamente por isso que Marx e Engels começaram o Manifesto Comunista por estas palavras:

«Até os nossos dias, a história de toda a sociedade não tem sido senão a história das lutas de classes».

Que é, pois, uma classe?

Pelo que foi exposto mais acima, já demos, em tragos largos, a resposta a esta pergunta. Precisamos agora examinar o assunto mais de perto. Já vimos que por classe social se entende um conjunto de pessoas desempenhando um papel análogo na produção, tendo no processo da produção, relações idênticas com outras pessoas, sendo essas relações expressas também nas coisas (meios de trabalho). Daí decorre que, no processo de repartição dos produtos, cada classe é unida pela identidade de sua fonte de rendimentos, pois as relações de repartição dos produtos são determinadas pela relação de sua produção. Os trabalhadores têxteis e metalúrgicos não constituem duas classes diferentes, porém uma únicaclasse, pois diante de outros homens (engenheiros, capitalistas) eles se encontram em relações idênticas. Do mesmo modo os possuidores de uma mina de carvão, duma usina de ladrilhos e duma fabrica de espartilhos formam uma única categoria de classe: pois, mau grado as diferenças físicas entre as coisas com as quais se ocupam, eles estão perante os homens, no processo da produção, em relações idênticas (de «domínio»), as quais se exprimem também nas coisas (O Capital).

Assim, na base da divisão da sociedade em classes se encontram as relações de produção. Um dos modos de ver mais comuns, é a divisão em classes segundo o índice «ricos» e «pobres». Se um homem tem no bolso dinheiro e um outro tem duas vezes mais, segue-se que eles pertencem a duas classes diferentes. Considera-se aí ou a dimensão das posses, ou o nível de vida. Um sociólogo inglês (D'Ett) elaborou um quadro completo de divisão em

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classes: a primeira classe, a mais baixa (os pés rapados) tem um orçamento de despesas de 18 «shillings» por semana; a segunda classe, de 25 «shillings»; a terceira, de 45, etc.. (Cf. o trabalho muito minucioso, e além disso marxista, do professor S. I. Solntsev: As classes sociais. Os momentos mais importantes na evolução do problema das classes, e as doutrinas fundamentais (em russo). Tomsk, 1919. p. 268-399). Por simples que seja semelhante maneira de ver, ela é perfeitamente ingênua e absolutamente falsa. Segundo esse ponto de vista, por exemplo, seriamos levados, na sociedade capitalista, a excluir do proletariado um operário metalúrgico ou um linotipista, e em troca, inscrever um camponês pobre ou um artista na classe operária. A «classe» mais revolucionária seria então o «lumpen-proletariat» (o proletariado andrajoso), e seria nele que se deveria fundar as esperanças como força que deveria realizar a passagem a uma forma superior de sociedade. De outro lado, dois banqueiros, dos quais um é três vezes mais rico que o outro, deveriam ser agrupados em classes diferentes. Ora, a experiência quotidiana nos mostra que categorias diferentes de operários se reúnem muito mais rapidamente na ação, o que não acontece com operários e artistas, e operários e camponeses, etc.. O camponês não se sente membro da mesma classe que o operário. Ao contrário, dois banqueiros, quando mesmo um deles seja dez vezes mais rico do que o outro, se sentem membros de uma única família bem amada.

«O conteúdo da bolsa — escrevia Marx na Miséria da Filosofia — é uma diferença puramente quantitativa, com o auxilio da qual dois indivíduos de uma única e mesma classe podem excelentemente ser lançados um contra o outro».

Em outros termos, a diferença de «riqueza» não pode servir de critério suficiente para definir a classe, ainda que tendo uma ação determinada mesmo nos quadros de uma única e mesma classe.

Outra teoria bastante espalhada é a que toma por fundamento da divisão da sociedade em classes o processo da repartição, isto é, a partilha da renda social. Falando-se, por exemplo, da sociedade capitalista, a partilha da renda em três partes principais: lucro, renda e salário, serve de base à delimitação de três classes: capitalistas, proprietários territoriais, proletários (assalariados); a parte de cada um deles, sendo dada uma grandeza determinada da renda social, não pode ser aumentada senão à custa da parte de uma das outras classes. Eis porque os membros de uma classe são ligados entre si pela comunidade e homogeneidade de seus interesses de um lado, e são por outro lado opostos às outras classes pela contradição de seus interesses com os dessas outras classes.

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Se esta teoria não nos leva a procurar quem recebe mais ou quem recebe menos, e a raciocinar como acima, então se apresenta inevitavelmente uma questão: por que as pessoas ligadas entre si como classe, se reproduzem como classe? Porque, na sociedade capitalista, existem diferentes espécies de rendimentos? Onde está a causa da estabilidade dessas diferentes espécies de rendimento? É bastante apresentar esta questão para que se veja de um só golpe a realidade. Esta estabilidade repousa sobre as relações entre os homens e os meios de produção, os quais por sua vez exprimem as relações entre os homens no processo da produção. O papel dos homens na produção e a posse dos meios de produção, isto é, a «repartição dos homens» e a «repartição dos meios de produção», são elementos estáveis nos limites de um modo de produção dada. Desde o instante que dizeis capitalismo, tereis de um lado uma categoria de pessoas dirigindo o processo da produção e, ao mesmo tempo, dispondo de todos os meios de produção, e de outro lado uma categoria de pessoas trabalhando sob o comando das primeiras, submetendo-lhes sua força de trabalho e produzindo para elas valores mercantis. É precisamente por esta razão que, no domínio da repartição dos produtos do trabalho (isto é, na partilha da renda) se encontram igualmente leis determinadas. Em outros termos, chegamos à constatação de que os aspectos mais importantes da produção — «repartição dos homens», «repartição das coisas» — constituem igualmente as bases das relações de classes.

Com efeito, nós não poderíamos chegar a outra conclusão. Abordemos, pois, a questão por outro lado; vamos formulá-la de um modo mais geral. É claro que cada classe é um certo «complexo real», isto é, um conjunto de pessoas submetidas sem cessar a ações recíprocas, de «homens viventes» que mergulham por suas raízes na vida da produção e, por seus pensamentos, elevam-se até às nuvens. É um sistema humano, parcial e particular no interior do grande sistema que nós chamamos sociedade humana. Segue-se evidentemente que nós devemos abordar a classe pelomesmo lado que nós abordamos a sociedade. Em outros termos: a análise das classes deve partir da produção. Naturalmente as classes se diferenciam uma da outra por diferentes aspectos: Sobre o plano da produção, sobre o plano da repartição, sobre o plano político, sobre o plano ideológico, sobre o plano psicológico. Um plano depende do outro, todos esses fenômenos são ligados reciprocamente um ao outro: não se podem ligar rebentos burgueses a raízes econômicas do proletariado, o que seria pôr uma sela em uma vaca. Mas, precisamente este laço está condicionado, no fim de contas, pela situação da classe no processo da produção. Eis porque se deve definir uma classe segundo o seu índice deprodução.

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Em que se distingue a classe social da condição social? (as «ordens» do antigo regime). Por classe, já o sabemos, entende-se uma categoria de pessoas reunidas por um papel comum no processo da produção, um conjunto de pessoas das quais cada uma se encontra em relações semelhantes em face de outros participantes do processo da produção. Ao passo que por condição entende-se grupos de pessoas unidas por sua situação comum na ordem jurídica da sociedade. Os grandes proprietários territoriais são de uma classe. Os nobres (em russo: «dvorianié») são uma condição. Por que? Porque os grandes proprietários territoriais são assinalados por um índice determinado na economia e produção, ao passo que não é esse o caso dos nobres. O nobre tem direitos jurídicos determinados, fixados pela lei do Estado em que ele vive, e privilégios ligados à sua «nobre condição». Mas, economicamente, este nobre pode estar de tal modo empobrecido que pode acontecer justamente que ele reúna os dois extremos; ele, pode ser mesmo um proletário «pé-rapado», mas como condição ele não cessa de ser nobre (tal o «barão dos Bas-Fonds», de Máximo Gorki). Tomemos outro exemplo. Sob o governo do czar, lia-se sobre o passaporte de muitos operários: «Fulano, camponês de tal governo, tal distrito, tal cantão». Este camponês nunca trabalhou como camponês; ele nasceu na cidade e tinha desde a sua infância trabalhado como operário assalariado. Vê-se aqui claramente a diferença entre a classe e a condição (isto é, no ponto de vista das leis czaristas que dividiam assim os homens segundo as suas condições): este homem, pelo seu índice de classe é um operário, e pelo seu índice de condição, ele é um camponês. Mas aqui apresenta-se desde logo a questão seguinte: nós sabemos que a «política» (nela compreendido o direito) é a «expressão concentrada da economia». Podemos então parar no direito, sem descer mais profundamente?

Certamente que não; não dizíamos nós há pouco, justamente raciocinando sobre as classes, que era importante para nós, do ponto de vista do método, abordar os agrupamentos sociais expressamente pelo lado da produção? Como então pretender resolver a questão pelo lado das «condições»?

Ouçamos antes de tudo o que diz sobre esta questão o professor Solntsev, o autor do trabalho mais solido sobre as classes:

«Os grupos de condições socialmente desiguais aparecem, diz ele, não sobre o terreno das relações do processo do trabalho, nem sobre o terreno das relações econômicas, mas antes de tudo sobre o terreno das relações do Direito e do Estado. A condição é uma categoria jurídica e política, e como tal pode se manifestar sob diferentes formas... Diante da diferença da divisão em

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condições, a de classes aparece sobre as bases das relações econômicas...» (loc. cit., p. 22).

Todavia, não é a condição unicamente a classe «revestida» de uma categoria «juridico-política»? A isto, Solntsev responde negativamente. Entretanto, ele próprio indica que, por exemplo, no mundo antigo, «a ordem das condições não podia deixar de refletir as diferenças de classes...» (loc. cit., 25), que «a luta de classes reveste a forma particular da luta de condições», (loc. cit, 26). Esta posição extremamente embrulhada da questão obriga-nos a esforçar-nos em procurar uma fórmula mais clara.

Tomemos um exemplo. No tempo da grande revolução francesa, designava-se sob o nome de «terceiro estado» (isto é, «terceira condição») uma mistura de diversas classes, ainda mal diferenciadas então umas das outras: ele compreendia a burguesia, os operários e as classes intermediarias (artífices, pequenos comerciantes, etc.). Todos pertenciam ao terceiro estado. Por que? Porque, juridicamente, eles não eram «nada» em comparação com os proprietários territoriais feudais privilegiados. O «terceiro estado» era a expressão jurídica do bloco das classes levantadas contra os senhores do poder. Logo, classe e condição (ou «estado») podem não coincidir. Mas sob a crosta da condição oculta-se necessariamente a realidade de classe (há aqui uma condição, e não uma, porém várias classes, na verdade classes, e não alguma coisa de incerto como aparecia pouco mais ou menos a Solntsev).

Por outro lado, a não coincidência entre a classe e a condição pode ser de gênero diverso, como já falamos mais atrás: um homem pode pertencer a uma «classe inferior» e a uma «condição superior» (por exemplo, um nobre economicamente arruinado servindo de porteiro ou de chauffeur); e vice-versa, ele pode pertencer a uma condição inferior, e à classe dirigente superior (tal um grande comerciante, saído dos camponeses abastados, dos «kulaks»). Isto, que quer dizer? Onde haverá aqui um «conteúdo de classe sob uma crosta econômica»? É claro que isso não existe. Como pois exprimir teoricamente este «fato irredutível»?

Para encontrar, também aqui, a solução exata da questão, é indispensável estudá-la não do ponto de vista de um caso isolado, mas do ponto de vista das relações típicas nos quadros de uma organização econômica determinada. Fixemos nossa atenção sobre a circunstância fundamental seguinte: as condições foram suprimidas pelas revoluções burguesas, pelo desenvolvimento das relações capitalistas. Se examinarmos por que o capitalismo não pôde tolerar a existência das condições, chegaremos sem dificuldade às deduções seguintes: nas formas pré-capitalistas da sociedade, todas as relações eram muito mais conservadoras, o ritmo da vida muito mais lento, as mudanças

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muito menos frequentes que no capitalismo. A classe reinante — a aristocracia territorial — era aí, podemos dizer, hereditária. E é essa espantosa imobilidade das relações que tornam possível a firmeza dos privilégios de classe de uma parte, e das obrigações de outra, por uma quantidade de normas jurídicas; essa imobilidade permitia revestir uma classe (ou classes) com a denominação de «condição». Assim, no seu conjunto as «condições» marchavam lado a lado com as classes, ou melhor, grupos de classes, em sua oposição a uma classe qualquer. Mas a penetração das relações capitalistas comerciais, muito mais fluida e móbil, deu um golpe violento nessa correlação: «O homem de baixa condição» furou, os «novos ricos» apareceram; o fenômeno tornou-se vulgar; uma parte dos proprietários territoriais passou a ser constituída pelos capitalistas, uma outra empobreceu-se e caiu na miséria, a terceira se mantém no seu antigo nível, etc.. Deste modo a mobilidade das relações capitalistas tirou toda a base à existência das condições. O período transitório de decomposição das relações feudais tinha tido sua expressão na ausência crescente de correlação entre o conteúdo econômico das classes e o seu invólucro jurídico de condições. Um tal período desenvolveu a falta de correlação, que devia inevitavelmente conduzir à queda de todo o sistema das condições. O invólucro das condições se manifestou incompatível com o desenvolvimento das relações de produção capitalista, do mesmo modo que o invólucro das classes se manifestou por sua vez incompatível com a evolução futura das forças produtivas. Eis por que Marxescrevia na Miséria da Filosofia:

«A condição da libertação da classe operária é a abolição de todas as classes, exatamente como a condição do terceiro estado... era a supressão de todas as «ordens».

E Engels, em seu comentário, anexava a esta página a nota seguinte:

«Trata-se aqui das «condições (ou «ordens») no sentido histórico das «condições» do Estado feudal, das «condições» gozando de privilégios definidos e delimitados. A revolução burguesa aboliu as condições com todos os seus privilégios. A sociedade burguesa conhece somente as classes. Eis por que designar o proletariado com o nome de «quarto estado» está em contradição absoluta com a história».

Assim, para o período dos sistemas pré-capitalistas estáveis, as condições ou «ordens» eram a expressão jurídica das classes; a não coincidência crescente destes elementos (a ruptura de equilíbrio entre o conteúdo de classe e a forma jurídica de condição) foi provocada pelo desenvolvimento das

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relações capitalistas e pela decomposição das antigas classes feudais, tanto as inferiores como as superiores: no sistema feudal, o camponês como classe coincidia em geral com o camponês como condição; porém, mais tarde, os camponeses formam a burguesia agrícola e o proletariado, duas classes opostas: ora, a forma «condição» fica a mesma: é claro que ela devia desaparecer.

Convém agora definir exatamente uma terceira categoria ligada às questões estudadas. Convém saber o que é profissão. É claro que a profissão está ligada ao processo do trabalho. Ela se diferencia da classe, em primeiro lugar porque a repartição em profissão não segue as relações dos homens entre si, mas suas relações com as coisas; ela considera sobre que coisas e com que coisas eles trabalham, que coisa eles elaboram. O serralheiro se distingue do marceneiro e do pedreiro, não por que eles tenham relações diversas com os capitalistas, mas porque o serralheiro trabalha o metal, ao passo que o marceneiros trabalha a madeira e o pedreiro a pedra.

Entretanto, não se pode dizer que não se trata aqui senão de coisas, pois a profissão é, apesar de tudo, ao mesmo tempo uma relação social;no processo da produção, em que operários de profissões diversas são ligados entre si pelas normas do processo da produção, há evidentemente entre os homens relações determinadas. Porém, por mais diferentes que sejam estas relações, todas elas se apagam diante das diferenças existentes sob o ponto de vista principal e fundamental: as diferenças entre o trabalho dirigente e o trabalho executante, as diferenças expressas pelas relações de propriedade.

A divisão em profissões, repousando sobre as relações entre os homens, as quais decorrem de suas relações técnicas com os instrumentos, os métodos e o objeto do trabalho, não coincidem de nenhum modo nem com a divisão do trabalho em trabalho dirigente e trabalho subordinado, nem com a «repartição dos meios de produção» que lhe correspondem, isto é, com as relações de propriedade sobre estes meios de produção.

Eis porque é falsa a afirmação do professor Solntsev, a saber que a profissão é "uma categoria natural-técnica" (sublinhada pelo autor, N. B.), que ela é inata nas relações humanas mesmo no período pré-histórico, e em todos os estádios viventes, que "é uma categoria não histórica, não de ordem social" (op, cit., p. 21) enfim, que é uma categoria eterna. A profissão torna-se profissão porque uma espécie determinada de trabalho liga-seordinariamente ao homem durante a vida: o sapateiro está por toda sua vida ligado ao seu banco. Mas nada prova que tivesse sido sempre assim e que será sempre assim. O automatismo crescente da técnica libertará os homens desta

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necessidade e mostrará quanto esta categoria, como as outras, era simplesmente de ordem histórica.

Agora que já vimos a diferença que separa a classe da condição e da profissão, é-nos preciso parar ainda nesta questão: quais são as classes existentes. Nós julgamos poder dar, pouco mais ou menos, a divisão seguinte:

I — As classes fundamentais de uma determinada forma social (as classes no sentido próprio da palavra). As classes deste gênero são em número de duas: a classe dirigente e detentora dos meios de produção de um lado; a classe executante, privada dos meios de produção e trabalhando para a primeira, do outro lado. A forma especifica, particular desta relação de exploração econômica e de servidão determina também a forma da sociedade de classe que ela caracteriza. Por exemplo: se as relações entre a classe dirigente e a classe executante se reproduzem por meio da compra de força de trabalho no mercado, há capitalismo; se elas se reproduzem por meio da compra de homens ou da pilhagem, ou por outros meios, mas sem compra de nenhuma força de trabalho, e se, além disto, a classe dirigente dispõe não somente da força de trabalho, mas «da alma e do corpo» do explorado, há escravidão, etc..

No que concerne ao capitalismo, considera-se habitualmente que há nele três classes fundamentais. Isto parece confirmado por uma certa passagem do fim do tomo III do Capital, de Marx, onde o "manuscrito é interrompido", e onde está encaixada uma análise das classes da sociedade capitalista. Eis a passagem:

"Os proprietários de uma força de trabalho, os proprietários do capital e os proprietários fundiários, cujas fontes respectivas de rendas são o salário, o lucro e a renda, constituem as três grandes classes da sociedade contemporânea, repousando sobre o modo capitalista de produção."

Mas do fato de que o grupo dos proprietários fundiários forma uma grande "classe", não se segue que ela seja uma das classes fundamentais. Assim, em Marx, nós encontramos a seguinte passagem, à qual se refere também mui judiciosamente o professor Solntsev:

"O trabalho passado e o trabalho vivo são os dois fatores em oposição mutua sobre os quais repousa a produção capitalista, o capitalista e o operário assalariado são os únicos funcionários e fatores da produção, cujas relações

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mutuas decorrem do caráter da produção capitalista.... A produção, como o nota James Mill, poderia sem inconveniente continuar a sua marcha, mesmo que os proprietários fundiários particulares desaparecessem e que o seu lugar fosse tomado pelo Estado... Este fato, na origem do qual se encontra a essência mesma do modo capitalista de produção em oposição ao modo feudal, ao modo antigo, etc., — este fato de que as classes participando diretamente na produção se resumem a duas, capitalistas e assalariados, excluídos os proprietários fundiários (sublinhado por nós, N. B.), os quais não vêm senão post festum, e graças a relações determinadas de propriedade que não apareceram no terreno do modo capitalista de produção, mas que para aí se transportaram do seio da economia feudal(sublinhado por nós, N. B.)... este fato constitui a diferença especifica da produção capitalista e sua expressão teórica adequada." (Marx: Teoria sobre a mais valia. T. II, pp. 292-299).

E Marx fala do mesmo modo quando se refere à questão da nacionalização da terra.

As classes fundamentais se subdividem por sua vez em sub-classes, em frações diversas: por exemplo, na sociedade capitalista, a burguesia dominante fraciona-se em burguesia indústria!, burguesia comercial, banqueiros, etc.; a classe operária se fraciona em operários qualificados e não qualificados.

II — As classes intermediarias. Podemos aqui enumerar agrupamentos econômico-sociais que, não sendo restos de uma ordem antiga, e aparecendo como indispensáveis ao regime no qual eles se encontram, ocupam um lugar intermediário entre a classe dirigente e a classe explorada. Tal é, por exemplo, na sociedade capitalista, a classe dos técnicos intelectuais.

III — As classes de transição. — Contamos aqui grupos vindos de uma forma precedente da sociedade, e que, na forma atual, se decompõem, dando nascimento a diversas classes com funções opostas na produção. Tais são, por exemplo, na sociedade capitalista, os artífices e os camponeses. É uma herança do regime feudal, que dá nascimento a elementos tanto burgueses como proletários. Tomemos o campesinato. No capitalismo ele se decompõe constantemente em camadas diversas, ou, como diz a ciência econômica, ele se diferencia: do camponês médio sai o pequeno kulak; do grande camponês, um açambarcador qualquer; depois, um degrau mais e vós tereis o mais

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autentico burguês, e do outro lado, um proletariado se forma igualmente por graus: camponês pobre, camponês sem cavalo, meio-operário ou operário temporário, por fim proletário puro.

IV — Os tipos de classes mistas. Contamos aqui grupos que pertencem, ao mesmo tempo, por um lado a uma classe e por outro a outras classes. Assim um ferroviário que possui um pequeno sitio e toma ao seu serviço um jornaleiro, é, em relação à companhia de caminhos de ferro, um operário, e em relação ao seu empregado, um patrão, etc..

V — Enfim, convém classificar à parte o que se chama os grupos dos «desclassificados», isto é, os grupos de pessoas saídas dos quadros de todo trabalho social: lumpen proletariat, mendigos, «boêmios», vagabundos e outros.

Quando nós analisamos um «tipo abstrato» de sociedade, isto é, uma forma social qualquer pura, nós nos preocupamos somente, ou quase somente, com as classes fundamentais. Ao contrário, quando vamos observar no seu movimento a realidade concreta, então é natural que temos de contar com toda a miscelânea dos tipos das relações sociais e econômicas.

A causa geral da existência das classes é determinada por Engels no Anti-Duhring, da maneira seguinte:

"... Todas as contradições históricas que até o presente têm existido entre exploradores e explorados, governantes e oprimidos, têm as suas raízes na produtividade relativamente não evoluída do trabalho humano. Desde que a população trabalhando efetivamente está de tal modo absorvida pelo seu trabalho indispensável que não lhe sobra tempo para cuidar dos negócios gerais da sociedade inteira — divisão do trabalho, negócios do Estado, arte, ciência, etc. — enquanto isso for assim deve sem dúvida existir uma classe particular, que, livre do verdadeiro trabalho, se ocupe dessas coisas, sem desfalecimentos, graças ao privilegio de que goza de lançar um fardo cada vez mais pesado sobre os ombros das massas trabalhadoras".

Noutra passagem. Engels repete quase a mesma coisa, dizendo que a sociedade se divide em duas classes, e acrescenta, para resumir:

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"lei da divisão do trabalho, eis em suma o que está na base da divisão em classes".

O professor Solntsev, criticando G. Schmoller, o qual vê na divisão do trabalho a fonte principal da formação das classes, replica à referencia por ele feita de Engels, da maneira seguinte:

"Engels põe efetivamente o processo da formação das classes em próxima ligação com o processo de divisão do trabalho; mas... para Engels, a divisão do trabalho não é senão uma condição natural e técnica indispensável da formação das classes sociais e não a sua causa; a causa fundamental da formação das classes, Engels a via, não na divisão do trabalho, mas nas relações de produção e de repartição, isto é, no processo de caráter puramente econômico", (op. cit., p. 203, sublinhado por nós, N. B.).

Como já vimos acima, examinando a questão da profissão, não se pode opor a divisão do trabalho às relações de produção, pois que a divisão do trabalho é ela também um dos aspectos das relações de produção. O erro de Schmoller (Cf. G. Schmoller: Die Tatschen der Arbeitsteilung "Os fatos da divisão do trabalho". Jahrbucher, 1890, e do mesmo: Das Wesen der Arbeitsteilung und Klassenbildung "A divisão do trabalho e a formação das classes", Jahrbucher, 1890), consiste em que ele apaga a diferença entre divisão profissional e divisão em classes, esforçando-se por espalmar as contradições de classe segundo o espírito da escola orgânica, A teoria de L. Gumplovitch e de F. Oppenheimer sobre a origem das classes, tirada da "violência extra-econômica"' não compreende a diferença entre uma teoria abstrata da sociedade e a marcha concreta dos acontecimentos históricos. Na realidade histórica, o papel da violência extra-econômica, ou conquista foi muito grande e teve sua influência sobre o processo da formação das classes. Mas em uma pesquisa puramente teórica, é indispensável deixar isto de lado. Suponhamos que analisamos "uma sociedade abstrata" na sua evolução: mesmo aí apareceriam classes, em virtude do que se chamam as "causas internas da evolução", como o demonstraEngels. Em suma, o papel das conquistas etc., não é senão um fator (muito importante) de complicações.

§ 52. O interesse de classe

Vimos pelo que precede, que as classes são grupos particulares de homens, «complexos reais» diferindo uns dos outros pelo seu papel na produção, que encontra sua expressão nas relações de propriedade. Mas

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sabemos também que com estes dois lados do processo de produção coexiste um terceiro lado — o processo de repartição dos produtos sob tal ou qual forma. A produção corresponde à distribuição.

Às formas de produção correspondem as de repartição. À posição das classes na produção, corresponde sua posição na repartição. O antagonismo entre classe dirigente e classe dirigida, classe detendo em monopólio os meios de produção e classe não possuindo os meios de produção, acha a sua expressão no antagonismo das rendas, na contradição entre as partes de produtos elaborados cabendo a cada classe na partilha da massa total dos produtos. Uma semelhante diferença de condição de existência (maneira de viver) entre classes determina também a sua «consciência». As contradições entre condições de vida (maneira de viver) acham a sua expressão a mais imediata na formação de interesses de classe. A expressão a mais primitiva e ao mesmo tempo a mais comum dos interesses de classe é o desejo das classes de aumentar sua parte na repartição da massa dos produtos.

No sistema da sociedade fundada sobre as classes, o processo da produção é ao mesmo tempo um processo de exploração econômica dos trabalhadores manuais. Eles produzem mais do que recebem. E não somente porque uma parte dos produtos fabricados (na sociedade capitalista, valores) é destinada a ampliar a produção (na sociedade capitalista, à acumulação), mas também porque a classe trabalhadora sustenta os proprietários dos meios de produção, trabalha para eles. Eis porque os interesses mais gerais da minoria no poder podem ser formulados como a aspiração de manter e ampliar as possibilidades da exploração econômica, e os interesses da maioria explorada, como a aspiração de se libertar dessa exploração. Ao passo que a primeira fórmula dada acima fala somente de uma sociedade dada e não sai de seus limites, a segunda implica a questão da própria existência duma determinada sociedade.

Mas a estrutura econômica de uma sociedade é, já o sabemos, fixada na sua organização de Estado e reforçada por uma quantidade infinita de superestruturas. Não há pois motivo para nos admirarmos de que o interesse econômico de classe tome a mascara de interesse político, cientifico, religioso, etc.. Assim os interesses de classe se desenvolvem em todo um sistema abraçando os mais diversos domínios da vida social. Esses interesses sistematizados, reunidos em feixe pelo interesse geral de classe, conduz à construção do que se chama o «ideal social», que aparece sempre como a quinta-essência dos interesses de classe.

Examinando a questão dos interesses de classe, é preciso fixar ainda a nossa atenção sobre alguns pontos.

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É indispensável, primeiramente, distinguir os interesses duráveis e gerais e os interesses transitórios, passageiros. Os interesses «passageiros» podem estar em contradição objetiva com os interesses duráveis. Do ponto de vista dos interesses transitórios, por exemplo, os operários ingleses têm agido judiciosamente vivendo em paz com a burguesia inglesa e defendendo-a durante a guerra imperialista; eles têm, com essa atitude, defendido mesmo a alta dos salários de que eles gozam à custa dos trabalhadores coloniais. Mas ao mesmo tempo, rompendo com esse ato a solidariedade dos operários em geral e fazendo frente única com os «seus» patrões, eles prejudicaram os interesses gerais e duráveis de sua própria classe.

Em segundo lugar, é indispensável distinguir, por um lado os interesses corporativos, os interesses de grupo, e por outro os interesses gerais de classe. Por exemplo, quando, na sociedade capitalista, a burguesia no poder suborna uma aristocracia operária (operários qualificados), os interesses particulares deste grupo não coincidem mais com os interesses de todo o conjunto da classe operária: são interesses de grupo e não de classe; ou então, quando, em tempo de guerra, os especuladores da burguesia infringem tanto quanto podem as regras comerciais elaboradas pelo seu próprio estado burguês, o qual faz a guerra no interesse da burguesia como classe. Vêem-se aqui os interesses de grupo da fração comerciante-especuladora (os «tubarões») da burguesia, interesses que em semelhante caso se afastam dos interesses da burguesia como classe.

Terceiro, é indispensável não perder de vista a mudança de princípio da direção dos interesses correntes de uma classe, que se produz ao mesmo tempo que a mudança de princípio de sua situação social. Tomemos um exemplo. Na sociedade capitalista, o proletariado tem por interesse o mais durável e o mais geral a supressão da ordem capitalista. Por conseguinte, é segundo esse plano que se estabelecem seus interesses parciais: estes consistem em conquistar posições estratégicas e em minar a sociedade burguesa. Melhorar sua situação material, aumentar seu poder social, reunir suas forças para atacar o sistema capitalista inteiro, eis ao que conduz a tarefa do proletariado. Mas eis que o proletariado preencheu a sua missão histórica. Ele destruiu a antiga máquina do Estado, construiu uma nova, um novo equilíbrio social se terá constituído; o proletariado passa a ocupar o lugar da classe dirigente provisória. É claro que a direção de seus interesses muda então, radicalmente: todos os seus interesses particulares, examinados do ponto de vista dos interesses gerais, se estabelecem sobre o plano da consolidação e da evolução das novas relações, de sua organização e da resistência a toda tentativa destruidora. Esta transformação dialética é a

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consequência da evolução dialética do próprio proletariado, o que se «tem constituído como poder político».

Em que consiste, pois, a síntese dessas duas direções de interesses opostos? É sua unidade superior: a edificação de uma nova forma social, trazida pelo proletariado, edificação que pressupõe a destruição do velho invólucro que impedia a evolução das forças produtivas.

Toda classe nova que é capaz não somente de destruir o antigo sistema de relações sociais, mas também de construir novo sistema, que por consequência é capaz de se tornar a organizadora de uma sociedade nova, deve inevitavelmente dar a seus interesses uma cor de produção, isto é, abordar as questões sociais não do ponto de vista da partilha e da simples repartição, mas do ponto de vista da destruição das antigas formas, em nome da construção de formas que implicam uma produção mais perfeita, e forças produtivas mais poderosas.

§ 53. Psicologia de classe e ideologia de classe

A diferença de condições de existência material, base da divisão da sociedade em classes, põe seu estigma sobre toda a consciência das classes, isto é, sobre a psicologia e ideologia de classe. Sabemos já, pelo que precede, que a psicologia de classe, ou mais exatamente a psicologia duma classe, não coincide sempre com o interesse material dessa classe (por exemplo, a psicologia do desespero, da renuncia ao mundo, a tendência para o suicídio, etc..) mas que ela deriva sempre e é sempre determinada pelas condições de vida dessa classe. Vejamos agora alguns exemplos da maneira pela qual se determina realmente uma psicologia e uma ideologia de classe.

Tomemos antes de tudo um exemplo prático, da vida corrente, de fatos comuns. Todos têm conhecimento da discussão havida na Rússia entre marxistas e socialistas-revolucionários, sobre qual a classe que levaria a sociedade ao socialismo; os marxistas afirmavam que seria a classe obreira, o proletariado; os socialistas-revolucionários esforçavam-se por todas as maneiras em demonstrar que a classe campesina suplantaria o proletariado. Os fatos deram toda razão aos marxistas: os camponeses têm sustentado o proletariado na sua luta contra os fidalgos e os capitalistas; eles os sustentam porque o proletariado protege a terra campesina e proporciona à economia campesina a possibilidade de se desenvolver, porém eles discordam completamente da «comuna», eles se apegam com todas as suas forças às antigas formas de propriedade da terra, de cultura da terra, da sua velha economia em geral. Como explicar este fenômeno? E como explicar ao mesmo tempo o heroísmo do proletariado na luta e o incomensurável apoio com que

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ele acolheu a edificação socialista e a ideologia comunista? Por outro lado, se pretendermos atribuir a solução da questão ao fato do mujik não ser tão pobre, então porque não foi o proletariado andrajoso, porque não foram os miseráveis, os desclassificados, etc., que forneceram os efetivos da luta?

Para respondermos a isto, poderemos formular a questão preliminar, a de saber quais os traços que deve ter a classe que pode executar a metamorfose da sociedade e levá-la da sua estrada capitalista para o caminho socialista.

1.º Deve ser uma classe que no regime capitalista é explorada economicamente e oprimida politicamente. Senão, é evidente que não terá razões suficientes para se revoltar contra a ordem capitalista; ela não poderá então, em caso algum, sublevar-se contra ela.

2.º Segue-se que essa classe deve também, numa expressão simplista, ser uma classe pobre; senão ela não poderá comparar sua pobreza à riqueza das outras classes.

3.º Ela deve ser uma classe produtora. Senão, se ela não tomar parte direta na criação dos valores, ela pode, na hipótese mais favorável, destruir, mas nunca construir, criar, organizar.

4.º Ela não deve estar ligada à propriedade privada. Pois, se tivermos uma classe cuja existência material estiver vinculada à propriedade privada, é facilmente compreensível que ela aspirará ao aumento do que é «seu», sua propriedade, e nunca na abolição da propriedade privada, queé o objetivo do comunismo.

5.º Ela deve enfim ser uma classe unificada pelas condições de sua existência, e habituada ao trabalho em comum, ao trabalho feito ombro a ombro, um ao lado do outro. Pois, doutro modo, ela não será capaz nem de desejar e nem de realizar uma sociedade tal que seja a encarnação do trabalho social, do trabalho de camaradagem. E ainda mais, ela não seria mesmo capaz de levar adiante uma luta organizada, ela não seria capaz de organizar um novo poder político.

Comparemos agora estes diversos índices num quadro, e examinemos qual é a classe que dentre os nossos três grupos satisfaz melhor a estas exigências. Assinalemos com + aquela que satisfizer a cada índice, e com — a que não satisfizer.

Campesinato

Proletariado

Proletariad

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andrajoso o

1. Exploração econômica + — +

2. Opressão política + + +

3. Pobreza + + +

4. Produtividade + — +

5. Sem vínculos com a propriedade privada

— + +

6. Unidade na produção, trabalho em comum

— — +

Vemos aqui claramente como se apresenta a questão. Falta muito à classe campesina, para ser uma classe realmente comunista; ela está ligada à propriedade, por ela está presa e serão precisos ainda muitos anos para processar-se a sua reeducação, fato que não é possível senão quando o poder do Estado está nas mãos do proletariado. O campesinato não é unido na produção, ele não está habituado ao trabalho social e à produtividade unificada; ao contrário, toda a alma do camponês está no seu pedaço de terra: ele está acostumado com a economia individual e não social. Quanto ao proletariado andrajoso, seu principal defeito está na ausência do trabalho produtivo. Ele poderá destruir, porém não está habituado a construir. Sua ideologia é frequentemente representada pelos anarquistas. Um homem de espírito disse que o seu programa se compunha de dois artigos: Art. 1.º: «Não haverá nada». Art. II.º: «Ninguém se encarregará da execução do artigo precedente».

Tocamos assim o laço que une a condição da existência material com a psicologia e a ideologia de classe ou de grupo que daí resultam: no proletariado, ódio ao capital e ao seu Estado, espírito revolucionário, hábito de agir duma maneira organizada, psicologia de camaradagem, atitude criadora, produtiva, desprezo ao passado, atitude negativa em face da «sacrossanta propriedade privada» alicerce da sociedade burguesa, etc.; no campesinato, apego à propriedade privada, que o torna hostil a todas as inovações, individualismo, desconfiança de tudo que ultrapassa ao seu horizonte estreito; no proletariado andrajoso, negligencia e inconsistência, ódio às velharias e ao mesmo tempo impotência e inércia na construção, na organização, individualismo desorganizados caráter fantasista. A uma tal psicologia, uma ideologia correspondente: no proletariado, comunismo revolucionário; no campesinato, ideologia de propriedade; no proletariado

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andrajoso, anarquismo instável e histérico. É evidente que uma vez que se tenha por base semelhante psicologia e ideologia, é ela que dá o traço característico geral a toda uma psicologia e ideologia duma classe ou dum grupo correspondente.

Nas antigas discussões entre marxistas e socialistas-revolucionários russos, estes últimos apresentavam a questão sob o ponto de vista da filantropia, da "ética", da "piedade" para com os "irmãos inferiores" e outras tolices de fidalgos intelectuais. Para a maioria dos "ideólogos" deste gênero, a questão de classes era uma questão de ética de intelectuais torturados pelos remorsos da consciência, que visavam derrubar a autocracia, que não lhes oferecia muito espaço, ensaiavam apoiar-se sobre o mujik (uma vez que este não lhes tinha incendiado os castelos dos seus tios e tias), e esforçavam-se em conquistar sua confiança, redimindo as faltas cometidas por um nobre "auxilio aos humilhados e aos ofendidos". Enquanto que para os marxistas não era questão nem de lamurias e nem de filantropia, mas da exata avaliação das capacidades das classes, para saber qual seria a atitude que tomaria inevitavelmente cada uma delas na iminência da luta pelo socialismo.

Um bom estudo (se bem que conservador e apologético, destinado a sustentar toda reação) sobre a psicologia do campesino, nos é apresentado no trabalho do pastor evangélico A. l'Houet: Zur Psychologie des Bauerntums ("Da psicologia do campesinato", 2.ª edição, 1920, de Mohr, Tubingen, em alemão). O sábio eclesiástico cristão aprecia a classe camponesa "em primeiro lugar" como... reservatório de saúde corporal, espiritual, moral e religiosa, como tesouro militar para o país (Reichskriegsschatz: o autor quer dizer — "como carne para canhão", N. B.), etc.. (op. cit., IV). O pastor Houet, que, no número dos caracteres do campesinato, conta a sua homogeneidade (massa homogenia), sua separação do resto do mundo, seu tradicionalismo, etc., dá muito justa definição da ideologia da classe camponesa. Apenas entusiasma-se com frequência justamente por aquilo que nós consideramos como a "idiotice da vida camponesa" (Marx). Ele exalta, por exemplo, a inércia do camponês, sua repugnância por tudo que é novo:

"... Em face do amor à novidade, o camponês pertence a um outro mundo, aquele que coloca acima de tudo os tempos antigos, que conserva firmemente os fundamentos vitais do passado, que continua a fiar os antigos fios.... Com o inconveniente dele "atrasar o seu tempo", "não caminhar passo a passo com ele"; em compensação, com a vantagem de que todas as suas manifestações de vida, precisamente em virtude dessa unilateralidade, se

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distinguirem favoravelmente pela sua segurança, sua seriedade e seu valor durável" (op. cit,. p. 16).

Esta rotina se manifesta por toda parte:

"Conservação dos antigos lugares de estabelecimento, conservação da antiga casa, conservação dos antigos bens, costumes, nomes; conservação do dialeto, da velha poesia popular, da velha estrutura espiritual, do antigo tipo de fisionomia! Por toda parte, o mesmo espírito conservador..." (ibidem).

O sr. Houet regozija-se extremamente pelo fato de serem as habitações dos camponeses, em 1871, pouco diferentes do que eram na idade da pedra (pag. 17). Ele se regozija com o simplismo e pobreza hereditária da alma do camponês, de que o

"número dos seus problemas da vida, como sejam religiosos, morais, de arte e outros quaisquer, serem extremamente restritos" e de que "a mesma concepção destes problemas se transmite de geração em geração" (op. cit., pag. 29);

mas ele não se regozija pelo fato de que esse espírito limitado, esta "idiotice" que não é a falta, mas a desgraça dos camponeses, seja quebrado pelo vapor e pela eletricidade, pois, admirai! este princípio de tradição conduz "à simples, à antiga e grandiosa existência". A gravidade, a desconfiança e a avareza, a cupidez do proprietário, etc., são, bem entendido, louvados por todas as maneiras por este pastor (ex. pag. 63), e isto ocupando páginas e páginas inesgotáveis.

Os exemplos apresentados mostram bem o essencial da psicologia e da ideologia de classe dos proprietários agrários e de seus curas e pastores, que se esforçam em salvaguardar e lisonjear os caracteres do camponês que o impedem de "marchar de acorda com a sua época".

Na nobreza fundiária, (isto é, entre os proprietários feudais) a psicologia de classe se caracteriza também por um inevitável espírito conservador e reacionário, cruamente expresso, de tal forma que não existe nenhum paralelo em nenhuma outra classe, E é bem compreensível: os proprietários feudais são com efeito os representantes supremos da sociedade feudal, a qual "entregou sua alma a Deus", além de tudo. O culto da tradição, das "formas solidas", da família aristocrática e da "ancestralidade" (de seus privilégios, de sua gloria, de

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seu "valor"), simbolicamente expresso na "arvore genealógica"; os "serviços" e os "méritos", o feudo, a "honra", os costumes convenientes à "nobreza", o desprezo aos "plebeus", o direito às relações sexuais e outras somente com "iguais", são tais os traços característicos desta antiga classe dirigente. (Conforme Simmel: Sociologia, digressão sobre a nobreza — em alemão — pgs. 737 e 399).

A psicologia e a ideologia das classes da sociedade burguesa isto é, das classes urbanas, é muito mais dócil. A burguesia, sobretudo no período de sua evolução, quando ela não estava diretamente ameaçada pela revolução proletária, não se caracteriza absolutamente por um conservadorismo semelhante ao da nobreza. Seu traço predominante é seu individualismo, decorrente da luta pela concorrência, o racionalismo, fruto do ''cálculo econômico", como fundamentos vitais desta classe; a psicologia e a ideologia liberal repousam sobre "a iniciativa", a "liberdade de empreendimento". Especialmente sobre a psicologia econômica da burguesia em diversos estádios de sua evolução, encontraremos bastantes observações interessantes em Sombart (der Bourgeois) e em Max Weber (ob. cit.). Sombart, por exemplo, remonta até a aparição do espírito de empreendimento. Este devia constituir-se pela fusão de três tipos psicológicos: o conquistador, o organizador e o mercador. O "conquistador" dá a possibilidade de projetar um plano e de realizá-lo: ele tem a resistência e a firmeza, a elasticidade, a energia intelectual, a capacidade de intensificar os seus esforços, a força de vontade; o organizador deve saber dispor coisas e gentes de modo a atingir o maximum de resultado útil; o comerciante, o mercador distingue-se pela sua capacidade de discutir com não importa quem e de ganhar o seu negócio (Sombart. ob. cit. cap. V: L'essence de l'esprit d'entreprise, pgs. 69-399). É pela combinação desses traços que se caracteriza a burguesia na época do seu aparecimento.

Quanto à psicologia do proletariado, dela já nos ocupamos anteriormente, e é sobretudo do que mais falamos neste livro.

É claro que a psicologia e a ideologia das classes mudam em correlação com as trocas da «maneira de ser social» dessas classes, como nós já o notamos nos capítulos precedentes, mais de uma vez.

Convém fazer aqui mais uma observação. De tudo que nós dissemos ressalta claramente que a psicologia das classes intermediarias é igualmente intermediaria, a dos grupos mistos, igualmente mista, etc.. É isto que explica que, por exemplo, a pequena-burguesia e o campesinato «hesitem» constantemente entre o proletariado e a burguesia, que «tem nelas duas almas», e assim por diante.

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«Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre o que se chama as condições de existência, se eleva toda uma superestrutura de sentimentos diversos e originalmente constituídos, de ilusões e modos de pensar e conceber a vida. Toda a classe as cria e as forma sobre a base material e sobre as relações sociais correspondentes». (Marx, Le 18 Brumaire).

§ 54. «Classe em si» e «classe para si»

A psicologia e a ideologia de classe, a consciência que uma classe tem de seus interesses, não somente passageiros, mas duráveis e gerais, decorre da posição dessa classe na produção. Mas isso não significa absolutamente que essa posição dessa classe na produção provoque dum só golpe, nessa classe, a noção de seus interesses gerais e fundamentais. Ao contrário, podemos dizer que isso não acontece quase nunca. Então na vida real, primeiro, o processo de produção percorre diversos estádios de sua evolução e as contradições da estrutura econômica não se descobrem senão no curso da evolução ulterior; segundo, uma classe não cai por acaso do céu, mas ela se constitui, por assim dizer, inconscientemente, a partir de diferentes outros grupos sociais (classes de transição, intermediarias e outras, camadas, agrupamentos sociais em geral); terceiro, passa-se ordinariamente um certo tempo, antes que a experiência da luta dê a uma classe sua consciência de classe, tendo seus interesses particulares, seus desejos, suas aspirações próprias dela e exclusivamente dela, seus «ideais» sociais, que a opõe de modo decisivo a todas as outras classes da sociedade da qual ela faz parte; enfim, quarto, não se deve esquecer o trabalho de nivelamento psicológico e ideológico que pratica constantemente a classe no poder, tendo nas mãos o organismo do Estado, afim de, duma parte, aniquilar os rebentos da consciência de classe, nas classes oprimidas, e de outra, inculcar-lhes por todos os meios possíveis a ideologia da classe dominante, ou então fazer-lhe penetrar numa medida mais ou menos intensa a influência dessa ideologia, ou até, finalmente, implantá-la à força. Todas estas circunstâncias tornam possível uma situação tal, que uma classe já exista, embora como um conjunto de pessoas desempenhando um papel determinado no processo da produção, conquanto não exista ainda como classe consciente de si mesma. A classe então existe, mas ela «não é ainda consciente». Ela existe como fator de produção; ela existe como complexo determinado de relações de produção. Mas não existe ainda como força social independente, que saiba o que quer, ao que aspira, e que tenha consciência de sua personalidade, da oposição dos seus interesses aos das outras classes, etc..

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Para designar esses diversos estados no processo da evolução das classes, Marx emprega duas expressões: Ele chama classe «em si» uma classe não tendo ainda consciência de si mesma; e chama classe «para si» aquela que já tenha adquirido consciência do seu papel social. Na Misére de la Philosofie, (Stuttgart, 1920, pags. 161, 162) Marx declara:

"As primeiras tentativas dos trabalhadores se unirem uns aos outros, tomam sempre a forma de coalizões. A indústria pesada une num só e mesmo laço uma massa de gente desconhecida entre si, a concorrência os divide quanto aos seus interesses; mas a manutenção do salário a um nível conveniente, esse interesse comum contra seu patrão, une-os em um só pensamento comum de resistência, em uma coalizão (por "coalizão", entende-se nessa passagem, em todo este trecho, união de trabalhadores, N. B.). Assim a coalizão tem constantemente um fim duplo: pôr fim à concorrência entre trabalhadores, a fim de ficar em estado de fazer concorrência comum ao capitalista. Embora o fim primordial da resistência seja somente a manutenção do salário a um nível conveniente, as coalizões, isoladas ao começo, se formam à medida que os capitalistas por seu lado, sob a pressão, se unem em grupos e, contra o capital em vias de constante unificação, a defesa das associações torna-se ainda mais importante para eles do que a defesa do salário. Nessa luta, verdadeira guerra civil, todos os elementos se unem e se desenvolvem para a próxima batalha. Uma vez atingido esse objetivo, a coalizão toma seu outro caráter: político.

"As relações econômicas transformaram em seguida uma massa da população em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, de interesses comuns. Assim essa massa aparece já como uma classe em relação ao capital, mas não ainda como uma classe em si mesma. Na luta da qual nós indicamos algumas fases, a massa acha-se a si própria, constitui-se como classe em si mesma. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe". (O grifo é nosso, N. B.).

§ 55. As formas da solidariedade relativa dos interesses

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Do que acabamos de dizer ressalta já a possibilidade, em condições determinadas, duma solidariedade relativa das classes. É necessário, não obstante, distinguir aqui duas formas principais dessa solidariedade relativa.

Em primeiro lugar, essa solidariedade pode ser tal que ela una o interesse permanente de uma classe com o interesse temporário de outra, esse interesse temporário contradizendo os interesses gerais dessa classe.

Em segundo lugar, essa solidariedade pode ser tal que não exista contradição, como se tratasse da coincidência do interesse durável duma classe com o interesse transitório de uma outra, ou de interesses transitórios das duas partes.

Para explicar o primeiro caso, tomemos como exemplo a guerra imperialista de 1914-18, e ensaiemos a análise da atitude dos trabalhadores no começo dessa guerra. É um fato conhecido que na maior parte dos grandes países, os mais evoluídos sob o ponto de vista capitalista, os trabalhadores, esquecendo os seus interesses internacionais e gerais de classe, atiraram-se em defesa de suas «pátrias». Ora, sob estas «pátrias» se ocultavam, em realidade, as organizações de Estado da burguesia, isto é, as organizações da classe do capital. Por consequência, a classe trabalhadora partiu em defesa das organizações econômicas, marchando umas contra as outras numa guerra de concorrência para a repartição dos mercados de escoamento, de mercados de matérias primas, de esferas de expansão do capital. É claro que houve aqui, da parte dos trabalhadores, traição aos seus interesses de classe. Não obstante, qual era o fundo da questão? Onde residia a causa oculta a mais profunda dessa monstruosa negação, conscientemente sustentada pelos partidos sociais-democratas oportunistas? Essa causa, era a solidariedade relativa entre o proletariado e a burguesia dos países capitalistas financeiros. Eis aí sobre que ela se baseava. Representemo-nos toda economia mundial. Na inumerável rede de fios que se entrecruzam — as relações de produção — existem nós fortes e espessos: os grandes países capitalistas. Lá se encontram os grupos «nacionais» da burguesia, organizados politicamente. Eles se assemelham às gigantescas empresas, aos grandes trustes, que «trabalham» nos limites da economia mundial. Tanto mais um desses Estados é poderoso, mais ele explora sem piedade a sua periferia econômica: colônias, esferas de influência, semi-colônias, etc.. Com a evolução da sociedade capitalista, a situação da classe trabalhadora deveria piorar. Mas os estados rapaces da burguesia, escorchando até arrancar sangue suas enormes possessões coloniais e «esferas de influência», induzem «seus» trabalhadores a interessar-se na exploração das colônias. Assim se cria uma «comunidade de interesses» relativa, entre a burguesia imperialista e o proletariado. Dessas relações de

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produção germina também a psicologia e ideologia correspondente, que se liga à renascença da idéia de pátria. O raciocínio era dos mais simples: se «nossa» indústria (em realidade, dever-se-ia dizer: «a indústria de nossos patrões») desenvolve-se, o salário de seu lado aumentará; e a indústria se desenvolve quando ela possui mercados e esferas de colocação de capital; então a classe trabalhadora é interessada na política colonial da burguesia; então, é necessário defender «a indústria da pátria», é necessário bater-se pelo seu lugar ao sol. E daí decorre todo o resto: celebração da potencia da pátria, da grande nação, etc., e também aranzeis empolados ao infinito sobre a humanidade, a civilização, a democracia, o desprendimento e outros temas que tiveram curso nos primeiros tempos da guerra. Era com a ideologia de «imperialismo obreiro», que a classe trabalhadora traía seus interesses permanentes gerais pelas migalhas que lhe atirava a burguesia, oprimindo os trabalhadores e semi-trabalhadores das colônias. E, feitas as contas, a marcha da guerra e o período do após-guerra mostraram à classe trabalhadora que ela tinha jogado uma má cartada, que os interesses duráveis de uma classe são mais importantes do que seus interesses passageiros. Então começa um processo de rápida «revolucionarização».

O professor Tugan Baranovski, já falecido, que se considerava como "quase marxista'', mas que encontrou tempo, durante a revolução russa, de ser por um momento ministro branco (isso por excesso de "ética": ele reprovava sem cessar a Marx de não ser bastante "ético" e de se deixar levar demasiado pelo ódio de classe, o que é, certamente, muito pouco filantrópico), esse Tugan Baranovski fazia ainda a Marx a objeção seguinte:

"Marx, dizia ele, não vê a solidariedade de interesses e nega-a na sociedade capitalista. Portanto "na defesa da independência proletária do Estado (do Estado burguês, N. B.) todas as classes estão igualmente interessadas quanto ao ponto de vista ideal. No domínio econômico, o Estado serve não somente de base à dominação de uma classe, mas também de auxilio à evolução econômica e ao aumento da soma total da riqueza nacional, o que corresponde aos interesses de todas as classes sociais como coletividade. A isto acrescenta-se também a missão educadora do Estado, que está diretamente interessado no progresso da cultura e na elevação do nível intelectual da população nacional, quando mais não seja, pela razão do poderio político e econômico estar ligado à "cultura"." (Tugan-Baranovski. Theorische Grundiangen des

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Marxismus — "Fundamentos teóricos do marxismo" — em russo).

O sr. Cunow (op. cit., vol. IL pag. 78-79) cita esta passagem de Tugan e a aprova, afirmando somente que aí Tugan confunde interesses sociais e interesses do Estado. Mas, realmente, Cunow confunde o ponto de vista revolucionário de Marx com o ponto de vista de traição da social-democracia de Scheidemann. A argumentação de Tugan—Cunow é pueril. Desde o momento em que o Estado não se preocupa somente de opressão,mas também de..., então todas as classes aí estão interessadas. Brava gente! Deste modo, pode-se provar tudo que se deseja. Depois que os trustes não se preocupam somente de exploração, mas também de produção, eles são de utilidade publica. E assim por diante. Aí vê-se com que tolices o sr. Cunow enche dois volumes "de estudos" sobre a sociologia marxista! Cunow, deste modo, bate o record sobre todos os falsificadores do marxismo, por sua cínica insolência.

"De acordo com a doutrina de Marx — escreve ele, às páginas 77 e 399 do segundo volume da sua obra — aquela vontade geral, na qual se baseava a antiga filosofia social, não existe absolutamente, porque a sociedade não é uma coisa concreta com interesses absolutamente idênticos, (Que sociedade!) mas ela é dividida em classes (isto não é mau, mas enfim, que faz Cunow do Estado? De quem este exprime a vontade? N. B.). Mas existem perfeitamente interesses sociais universais, porque (notai bem!) como a vida e a atividade social são impossíveis sem uma certa ordem, todos os membros da sociedade — desde que não neguem pertencer à sociedade — estão interessados na manutenção da uma tal ordem: mas como, em virtude de suas diversas posições dentro dessa ordem social, têm um ideal de ordem diversa, visto não serem identicamente interessados nas regras de ordem particular, eles encaram estas regras sob o ponto de vista de sua classe, isto é, sob prismas diferentes".

Em linguagem vulgar: — há indivíduos que pensam, por exemplo, que no regime capitalista a burguesia se interessa pelo regime, e o proletariado pela queda do mesmo. Absolutamente! No fim Cunow se adianta e explica: visto que a vida é impossível sem ordem, todos estão interessados em manter o capitalismo. Mas considerando que os operários têm "um ideal" diferente, — pois bem, Cunow os autoriza a que critiquem as "regras particulares". Mas se

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fizerem mais qualquer coisa, então... adeus, — cairão de chofre entre os indivíduos que negam pertencer à sociedade. Eis aí o marxismo corrigido e completado pelo sr. Cunow!

Tomemos ainda o período da evolução da classe operária, quando esta ainda se achava em «relações patriarcais» com seus patrões, em cada empresa tomada à parte; a prosperidade da empresa, dada a fragilidade dos laços sociais em geral, interessa os operários no sucesso do patrão. Os operários e seu «benfeitor», aquele que os «alimentava», aquele que lhes dava trabalho, ilustram também a questão do papel da solidariedade relativa dos interesses em detrimento dos interesses comuns da classe em seu conjunto.

Há aqui alguma analogia com a comunhão dos interesses dos escravos e dos senhores de escravos no mundo antigo, na medida que havia ainda «escravos de escravos» (por exemplo, os «vicarii» romanos); os escravos que possuíam escravos, eram por esse fato considerados possuidores de escravos, e compreende-se bem que nesse terreno eles tinham uma «comunhão de interesses» com os senhores de escravos «do primeiro grau», por assim dizer.

Nas atuais cooperativas agrícolas da Europa ocidental, observa-se frequentemente que os camponeses vão lado a lado com os proprietários de terras e com seus patrões agrícolas e capitalistas: eles se ligam com aqueles no terreno da venda de seus produtos agrícolas; eles se opõem à população urbana, como seus fornecedores, interessados em preços elevados, exatamente como está nisto interessado o grande proprietário agrícola.

Mas as este exemplo nos conduz, desde já, fora dos limites da primeira forma de solidariedade relativa das classes, porquanto na realidade ela constitui pouco a pouco no seio da classe camponesa uma verdadeira burguesia agrícola, que em nada se distingue da burguesia agrícola hereditária.

Como segunda forma de solidariedade relativa entre classes, na qual essa solidariedade relativa se pôs em contradição com os interesses permanentes das classes, pode-se designar antes de tudo os casos onde se formam blocos de classes contra um inimigo comum. Num determinado grau de evolução, esse fato é perfeitamente possível. Por exemplo, durante a revolução francesa, (na sua primeira fase) ela tinha contra o regime feudal, tanto na economia, como na política, diversas classes: burguesia, pequena-burguesia, proletariado. Todos esses agrupamentos tinham um interesse comum na derrubada do feudalismo. Em seguida, naturalmente, o bloco comum se desagregou e a pequena-burguesia, em seu conjunto, em luta contra a grande burguesia, passou à contra-revolução, desembaraçou-se ao mesmo tempo, sem dó nem piedade, de todas as tentativas de movimentos independentes do proletariado,

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(execução dos «enragés», etc.). Temos aqui um exemplo de solidariedade de classes não contradizendo os interesses gerais e duráveis das mesmas.

§ 56. Luta de classes e paz de classes

Os diferentes graus de interesses originam diferentes aspectos da luta. Sabemos agora que todo o interesse de uma parte de uma determinada classe não representa por si só um interesse de classe. O interesse dos operários de uma usina isolada, se contradiz os interesses das outras partes da classe operária — não é um interesse de classe, mas um interesse de grupo; mas mesmo se tivermos presente o interesse de um grupo de operários não contrariando os interesses de outros grupos, mas, contudo, não unindo ainda esses grupos, não existe ainda aqui, de fato, nem na consciência das massas, o interesse de classe e por conseguinte, rigorosamente falando, a luta de classes ainda não existe: quando muito, o que existe são germens de interesse de classe e germens de luta de classes. O interesse de classe aparece quando ele opõe uma classe ou outra. A luta de classe aparece quando ela opõe uma classe contra outra, na ação. Em outros termos: A luta de classes propriamente dita só se desenvolve num determinado grau de evolução da sociedade de classes; noutras fases desta evolução, ela pode aparecer também como gérmen (quando se assiste a uma luta entre parcelas isoladas de classes, uma luta que não se eleva à altura dos princípios de classes, não envolvendo nem unindo uma classe como tal), ou como forma oculta «latente» (já que não há luta aberta, mas sim «resistência passiva», um descontentamento surdo com o qual, de bom ou mau grado, a classe dominante deve contar).

«Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre-artesão e aprendiz, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que termina sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição simultânea das duas classes em luta». (Manifesto Comunista, sublinhado por nós, N. B.).

Vamos dar alguns exemplos para ilustrar o que se acaba de dizer.

Suponhamos que na época da escravatura, num latifúndio qualquer, se produza uma revolta com saque de bens, depredações, etc.. isto ainda não é a luta de classes no sentido próprio da palavra: É um assalto isolado de uma pequena parcela da classe dos escravos; todo o resto da classe está calma, um punhado se mete numa luta incruenta; mas esse punhado se acha isolado, ele se compõe de poucos homens: a classe propriamente dita não entra em

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jogo; aí não há oposição de classe contra classe. É porém diferente quando os escravos sublevados sob a direção dum Spartacus fazem uma verdadeira guerra civil para a libertação dos escravos: neste caso são levantadas massas de escravos, isto é de fato uma luta de classe. Suponhamos ainda que assistimos a uma greve de operários de uma usina visando aumento de salários; todos os outros operários ficam em silencio e sem ação nas suas colocações, isso ainda não significa mais do que o gérmen de luta de classes, pois a classe propriamente dita não entra em ação. Mas tomemos o caso, por exemplo, de uma «onda de greves»: isto já é a luta de classes, porque aí uma classe se opõe a outra classe. Não se trata dum interesse de grupo pondo em movimento um grupo, mas dum interesse de classe, lançando em movimento uma classe: Isso é de fato uma luta de classe, no sentido próprio da palavra. Tomemos ainda um exemplo: Um descontentamento ainda vago, turvo, se expande largamente entre os camponeses servos; ele pode irromper, mas por qualquer motivo ele não se produz; os escravos têm medo, e eles não empreendem a luta, mas eles começam a «resmungar». Aí está uma forma «latente» de luta, aludida no Manifesto Comunista.

Assim, por luta de classe entende-se uma luta em que uma classe se opõe à ação de outra. Daí deduz-se um axioma de grande importância, que«toda luta de classe é uma luta política» (Marx). Com efeito, o que se passa quando a classe oprimida se dirige como força de classe contra a classe opressora? Isto significa que a classe oprimida procura minar as bases da «ordem existente». E como a organização do poder da «ordem existente» é a organização de Estado da classe dirigente, compreende-se perfeitamente que toda ação da classe oprimida é objetivamente dirigida contra a máquina estatal da classe dirigente, mesmo que aqueles que tomam parte na luta da classe oprimida disto não tenham consciência no princípio.

Toda ação deste gênero tem por consequência inevitável um caráter político.

Consideremos por exemplo os sindicalistas revolucionários, ou os «Operários Industriais do Mundo» (Industrial   Workers of the World  — abreviado I. W. W.) da América. Eles nem querem ouvir falar em luta política.

É que por luta política, como bons oportunistas ingênuos que são, eles só entendem a luta parlamentar. Suponhamos, portanto, que os I. W. W. organizem, não uma greve geral, mas apenas uma greve de foguistas, mineiros e metalúrgicos. Quem não compreenderia toda a enorme importânciapolítica que tomaria inevitavelmente esta greve? Por que? Porque neste caso os quadros do proletariado seriam atirados à luta. Porque uma

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semelhante greve seria perigosa para a burguesia como classe. Porque ela ameaçaria fazer uma brecha na máquina da burguesia organizada. Porque consequentemente ela seria objetivamente dirigida contra o poder de Estado da burguesia.

No Manifesto Comunista, Marx descreve claramente, tomando o exemplo do proletariado, essa transformação de episódios isolados da luta em luta de classes. No começo,

''às vezes os operários triunfam; mas esse triunfo é efêmero. O verdadeiro resultado da suas lutas, não é tanto o sucesso imediato, mas antes a solidariedade crescente dos trabalhadores. Essa solidariedade é facilitada pelo aumento dos meios de comunicação, que permite aos operários de localidades diferentes se porem em contacto. As vezes basta esse contacto para transformar as numerosas lutas locais, que em toda parte revelam o mesmo caráter, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política".

Nas Cartas a Sorge (em alemão, pag. 42) Marx define da seguinte maneira esta transformação dos conflitos separados em luta de classes, isto é, em luta política. (A carta é escrita em alemão misturado com palavras em inglês):

"O movimento político da classe obreira tem, naturalmente, por objetivo a conquista do poder político; e para isso, evidentemente, uma organização preliminar da classe obreira desenvolvida até a um certo ponto e tendo nascido dela própria na luta econômica, é indispensável. Mas do outro lado, todo movimento no qual a classe operária se atira, como classe contra as classes dominantes, e visa constrange-las por uma pressão exterior, é um movimento político".

O sr. Cunow, que fez essa citação (op. cit., t. II, pag. 59), assim o explica:

"'... A um determinado grau de evolução do processo econômico em seu conjunto, surgem classes sociais distintas, que em virtude de sua participação neste processo têm seus interesses econômicos particulares e procuram lhes dar um caráter político".

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Este comentário não é absolutamente exato, porque Cunow dissimula o que é fundamental, o que Marx faz sobressair em primeiro plano: a oposição de princípios de classe para classe, onde toda luta é uma parte do processo da luta geral para o poder e para o domínio na sociedade.

O professor Hans Delbruck, no seu artigo excepcionalmente insolente: A concepção da história em Marx (Preussische Jahr-buecher, vol. 182, caderno 2, pp. 157 e 399) "critica" a teoria da luta de classes, e assim fazendo revela uma ignorância verdadeiramente surpreendente dos problemas do marxismo. Na página 165 ele afirma que Marx não distinguia classe de condição; à página 166 ele afirma que em Roma antiga não houve a "desaparição de duas classes em luta" desde que a queda do Império Romano é um fato incontestável: havia no princípio guerras civis e em seguida nem os senhores vencedores, ou os escravos vencidos, se sentem capazes de fazer a sociedade progredir. Na página 167, ele diz que jamais houve feudalismo na Inglaterra! Na página 169 ele "refuta" Marx, mostrando que os camponeses caminham às vezes lado a lado com os junkers (V. sobre este ponto o que dissemos mais atrás) e assim por diante. Mas o cumulo de suas "objeções" é este: Delbruck cita um texto descoberto pelo célebre egiptólogo Ehrmann, que fala duma revolução no Egito antigo, onde os escravos teriam galgado o poder. O texto tem algo de curioso, que parece até ter sido escrito por um Merejkovsky ou outro grande senhor branco enfurecido contra os bolcheviques. Aí se pintam os horrores os mais tremendos. E o sr. Delbruck exclama num tom terrível: Eis aí vossa luta de classes! Mas o respeitável professor alemão não se lembra que ele cai em contradição quando acrescenta (pag. 171) que semelhante estado de coisas durou "trezentos anos". Mesmo um asno compreenderia que viver trezentos anos sem produção e numa anarquia absoluta é impossível. De sorte que a coisa deixa de ser tão terrível, e que a argumentação de Delbruck, apoiando-se no caso sobre o sentimento dum "burguês apavorado", é simplesmente ridícula.

Encontram-se também impagáveis objeções sobre a teoria de Marx em J. Delevsky (Os antagonismos sociais e a luta de classes na história, em russo, São Petersburgo, 1910). Eis sua objeção principal: Ele cita a seguinte passagem de Engels (prefacio do 18 Brumário, de Marx):

"Ninguém descobriu antes de Marx a grande lei do movimento histórico, isto é, que toda luta histórica, quer se realize no domínio político, religioso, filosófico, ou qualquer outro domínio ideológico, não é senão a expressão mais ou menos clara da luta de classes sociais".

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Citando este trecho, o sr. Delevsky concorda com Sombart, propondo-se a completar o princípio da luta de classes pelo "princípio da luta das nações". A réplica de Plekanof, mostrando que nada havia a completar aí porque a luta de classes é uma noção do domínio dos processos internosda sociedade e não de vínculos entre sociedades, não parece satisfazer o sr. Delevsky.

"De duas uma — diz ele — ou bem existem na base da história dois princípios ou então não há mais do que um... se há dois princípios, o da luta de classes e o da luta das nações, então qual é a lei que rege o segundo princípio...? E se... não há senão o princípio da luta de classes, então qual é o sentido da distinção entre a luta no interior da sociedade, e a luta entre as sociedades...? Ou serão talvez as sociedades, as nações, os Estados, também classes?" (pag. 92).

Essa saída é "sui generis". Examinemos, portanto, a questão em si. Poderá haver duas causas fundamentais: pode-se tratar ou bem de uma única sociedade (por exemplo, a atual economia mundial); retalhada em organizações de Estado, de frações ''nacionais'' da burguesia mundial; ou então de sociedades inteiramente distintas, quase sem ligações entre si (por exemplo, quando se trava uma luta entre dois povos diferentes, dos quais um, suponhamos, seja de outra parte do mundo, coisa que certamente já se deu mais de uma vez na história: assim por exemplo, a conquista do México pelos espanhóis). No primeiro caso a luta entre burguesias é um modo particular da concorrência capitalista. Mas só o sr. Delevsky pode ter a idéia bizarra, de que a teoria da luta de classes exclui, por exemplo, a concorrência capitalista. Isto é uma forma de antagonismo no interior de classes, que, entretanto, não podem em caso algum mudar os fundamentos de uma estrutura de produção conhecida. Se a teoria de Marxreconhece a possibilidade duma solidariedade relativa entre classes, ela também reconhece a possibilidade dum antagonismo relativo no interior das classes. Mas haverá uma objeção à teoria da luta de classes? Quanto ao segundo caso, temos aí uma questão de método. A teoria da evolução da sociedade é uma teoria da evolução duma sociedade abstrata, e está inteiramente justificado que ela não tenha, rigorosamente falando, relação com as sociedades concretas. Sua análise tem por alvo: Que é a sociedade em geral, e quais são as leis de sua evolução? Se nós passamos destas questões a outras mais concretas, e entre outras, aquela das relações entre as diversas sociedades, encontramos certamente leis particulares, mas que também não estarão em contradição com a teoria marxista; e isso não porque as sociedades sejam diversas classes (esta suposição do sr. Delevsky é simplesmente absurda), mas porque a "expansão" em si tem causas

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econômicas; porque, por exemplo, a conquista viria inevitavelmente a favor do reagrupamento das forças de classe; porque, em semelhantes casos, é sempre o modo de produção mais levado que obtém a vitória, etc.. Mas tudo isso não abala de forma alguma a teoria da luta de classes.

Portanto, vimos acima que as classes oprimidas não levam sempre a uma luta de classes no sentido próprio da palavra. Mas isso, como vimos mais adiante, não implica absolutamente que em períodos de relativa calma «tudo esteja calmo, apaziguado, sob a vigilância divina». Isso significa apenas que a luta de classes lá está, em seu estado latente, ou no estado embrionário: é daí que se desenvolve a luta de classes no sentido próprio da palavra. Precisamos então nos recordar da dialética que considera tudo em movimento, em vias de acontecer; momentaneamente pode não haver luta de classes, mas «ela se prepara». É assim que as coisas se passam do lado das classes oprimidas. E do lado das classes dominantes? Estasdirigem constantemente a luta de classes. Pois o caráter aparente da organização de Estado mostra que a classe dominante se constituiu como uma classe para si mesma, quanto ao poder político. Isto faz supor uma plena consciência dos interesses fundamentais da classe que guia a luta contra as classes opostas aos seus interesses (contra a sua ameaça direta e contra a sua ameaça possível) e isto por todos os meios que lhe fornece a máquina do Estado.

§ 57. Luta de classes e poder político

A questão do Estado, como superestrutura determinada pela base econômica, já foi estudada mais atrás (V. § 38). É no momento indispensável abordá-lo sob outro prisma, examiná-lo sob um ponto de vista especial, sob o ponto de vista da luta de classes. Antes de tudo, é preciso frisar-se novamente, de modo mais categórico, que o organismo de Estado é um organismo exclusivamente de classe, «uma classe constituída em poder político», «a violência social duma classe concentrada e organizada» (Marx). A classe oprimida, portadora de uma nova forma de produção, se transforma, como já vimos, no desenvolvimento da luta de classe, numa classe de per si; na luta igualmente ela cria suas organizações de combate, que se tornam pouco a pouco organizações que arrastam atrás de si toda a classe em questão. Quando se produz uma revolução, uma guerra civil, etc.., estas organizações se atiram contra o inimigo e aparecem como células embrionárias de um novo aparelho de Estado sob forma direta ou disfarçada. Tomemos por exemplo a grande revolução francesa.

«Os clubes populares, ou jacobinos, foram as antigas sociedades dos Amigos da Constituição, outrora burgueses, depois democráticos, montagnards, sans-

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culottes, fanáticos, partidários da igualdade e da união... Foram fundados para fins educativos populares, antes para a propaganda do que para a ação; mas as circunstâncias os forçaram a agir no domínio político, e, (quando a pequena-burguesia subiu ao poder, N. B.) eles se imiscuíram diretamente na administração... Pelo decreto de 12 de frimaire, os jacobinos tornaram-se em toda França instrumentos da escolha e da nomeação dos funcionários» (Aulard: História política da Revolução Francesa, pags. 386 e 387).

«Finalmente... foram as sociedades jacobinas que mantiveram... a unidade e salvaram a pátria» (ibidem).

Durante a revolução inglesa o «Conselho do Exercito», corpo revolucionário composto de oficiais, pôs seus homens no «Conselho de Estado». Durante a revolução russa, os órgãos de combate dos obreiros e dos soldados — os soviets — e o partido revolucionário extremista — formaram os organismos de base do novo Estado.

Contra a concepção do Estado como Estado de classe e do seu poder como poder político, opõem-se duas objeções principais:

A primeira diz: O traço predominante dum Estado é ser uma administração centralizada. É por isso — dizem por exemplo, os anarquistas, — que toda administração centralizada significa a existência dum poder de Estado. Por conseguinte, na sociedade comunista avançada, por exemplo, onde a economia estará de acordo com um plano, ainda aí haverá um Estado. Este raciocínio repousa inteiramente sobre um ingênuo erro burguês: a ciência burguesa vê, em lugar de relações sociais, relações materiais ou técnicas. Mas é claro que o «espírito» do Estado não está nas coisas, mas sim nas relações sociais; não na administração centralizada, como tal, mas na periferia das classes da administração centralizada. Exatamente como o capital não é uma coisa (por exemplo, uma máquina), e sim uma relação social entre o empregado e seu patrão, relação expressa nas coisas, da mesma maneira a centralização não é absolutamente na essência uma centralização de Estado, ela se torna «do Estado», desde que ela exprime relações de classes.

Já examinamos, em parte a segunda objeção contra a teoria «de classe» do Estado, que é ainda mais tola e ridícula.Ela parte disso, de que o Estado preenche uma série de funções de utilidade geral (por exemplo, o Estado capitalista contemporâneo constrói suas estações elétricas, hospitais, vias

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férreas, etc.). Este argumento reúne de uma maneira chocante o social-democrata Cunow, o socialista-revolucionário da direita Delevsky, o conservador Delbruck, e até mesmo.... o imperador babilônico Hamurabi! Mas este respeitável quarteto não se engana menos redondamente, porque a existência de funções de utilidade geral do Estado não modifica em nada o caráter puramente de classe do poder político. A classe dominante, para poder explorar as massas, aumentar o campo desta exploração, favorecer sua marcha «normal», deve recorrer a empresas de «utilidade geral» de diferentes espécies. Por exemplo, sem o desenvolvimento da rede das vias férreas, o capitalismo não pode desenvolver-se; sem escolas profissionais, não terá a força obreira eficiente; sem institutos científicos, não haverá progresso na técnica capitalista, e assim por diante. Mas em todas as medidas semelhantes, o poder político dos capitalistas raciocina e age no interesse de sua classe. Já apresentamos o exemplo do trust. O trust também guia a produção, sem a qual a sociedade não poderia viver. Mas ele a guia partindo de um cálculo de classe. Tomemos qualquer antigo Estado de propriedade fundiária despótica, do gênero do Estado dos faraós do Egito. Enormes trabalhos de regularização do movimento das águas eram socialmente necessários. Mas o Estado faraônico os protegia e os empreendia, não para nutrir os esfomeados ou por se incomodar com o bem de todos, mas porque eles eram o prelúdio indispensável do processo de produção, que era ao mesmo tempo um processo de exploração. O cálculo de classe — tal era, nesse caso, o objetivo do Estado. Por conseguinte, esta ordem de instituições do Estado não é de maneira alguma uma prova da falsidade do ponto de vista de classe.

Uma outra ordem de medidas de utilidade geral é provocada pela ofensiva das «classes inferiores». Tal é, por exemplo, a legislação obreira dos países capitalistas. Partindo desta constatação, numerosos sábios (V. por exemplo Takhtaref) consideram que o Estado não é um organismo puramente de classe, pois ele é fundado sobre um compromisso. Basta refletir sobre isso por um instante, para descobrir-se o fundo da questão. Será, por exemplo, que o capitalista cessa de ser um «capitalista, na acepção da palavra», desde que, sob a ameaça de uma greve, considere mais vantajoso, para si mesmo, ceder? Evidentemente não. O mesmo sucede quanto ao Estado. Bem entendido, o Estado de classe pode fazer concessões às outras classes, do mesmo modo que no nosso exemplo o patrão faz concessões aos operários. Mas não se deduz daí absolutamente que cesse por isso de ser puramente de classe para se tornar um organismo de bloco das classes, isto é, um organismo efetivamente de utilidade geral.

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Isso naturalmente não é o sr. Cunow que o compreende. Porém, dá prazer ver como o cínico professor Hans Delbruck, já citado, mete a ridículo esses muito doutos falsificadores do marxismo:

"A diferença entre nós outros, burgueses de espírito social e político, e vós. é apenas de um degrau. Mais alguns passos no caminho que trilhais, amáveis senhores, e a neblina marxista se dissipará" (loc. cit., pag. 172).

§ 58. Classe, partido, chefes

Quando se fala de uma classe, entende-se um grupo de pessoas reunidas por uma circunstância comum na produção, por conseguinte, por uma circunstância comum na repartição e partindo de interesses comuns (interesses de classe). Entretanto, seria uma ingenuidade supor que cada classe constitui um todo perfeitamente homogêneo, onde todos os partidos são iguais, onde João é semelhante a Pedro.

Para esclarecer com um exemplo, tomemos o trabalhador contemporâneo. Não se trata aqui unicamente de desigualdade de espírito ou de capacidade. Mesmo a situação, a «maneira de viver» das diversas partes da classe obreira, não é idêntica. Isto provém: Primeiro, porque não há perfeita homogeneidade das unidades econômicas; segundo, porque a classe trabalhadora não cai do céu já feita, mas forma-se constantemente entre os camponeses, artesãos, pequena-burguesia urbana, etc., isto é, entre os demais grupos da sociedade capitalista.

Não está claro, com efeito, que o operário de uma grande usina magnificamente instalada e o operário de uma pequena oficina sejam duas cousas diferentes? Aqui a causa da heterogeneidade é a heterogeneidade das empresas e de todo o seu regime de trabalho. Uma outra causa é o tempo da permanência na classe proletária: Um camponês que acaba de entrar numa usina é diferente dum operário que ali trabalha desde a sua infância.

A diferença do «modo de vida» se reflete na consciência. O proletariado não é mais homogêneo em sua consciência que na sua posição social. Ele é mais ou menos homogêneo comparado às outras classes. Mas se examinarmos esses diversos partidos, obtêm-se o quadro que acabamos de esboçar.

Assim, quanto à sua consciência de classe, isto é, em relação aos seus interesses mais duráveis, gerais, não comparativos, não de grupos, não grosseiramente materiais, nem pessoais, e sim os seus interesses gerais de

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classe, a classe operária é dividida numa série de grupos e subgrupos, como se fosse uma única corrente, composta de uma série de elos, cuja solidez seja variável.

É esta heterogeneidade de classe que torna um partido indispensável.

Com efeito, suponhamos por um instante que a classe operária seja perfeita e absolutamente homogênea. Ela poderia então a qualquer tempo agir como massa compacta. Para a direção de todas as suas ações, poder-se-ia escolher os homens ou os grupos por turnos: uma organização continua de direção seria supérflua, essa necessidade não se faria sentir.

A realidade é bem diferente. A luta da classe operária é inevitável. Uma direção é indispensável para esta luta. Ela é tanto mais indispensável, quanto mais o adversário é forte, astuto, e a luta contra o mesmo é uma luta incruenta. Quem deve dirigir toda a classe? Qual de suas partes? Está claro: a mais avançada, a mais educada e a mais unida.

É esta parte que é o partido.

O partido não é uma classe, mas uma parte da classe, talvez uma parte muito restrita, mas o partido é a cabeça da classe. Eis porque é o cumulo do absurdo opor o partido à classe. O partido da classe operária é o que exprime do melhor modo os seus interesses de classe. Pode-sedistinguir classe e partido do mesmo modo que se distingue a cabeça do resto do corpo. É impossível opô-los, da mesma forma que é impossível decapitar um homem sob o pretexto de lhe prolongar a vida.

Do que depende, nestas condições, o sucesso da luta? Das relações normais entre as diferentes partes da classe operária, e antes de tudo, das relações normais entre o partido e os sem-partido. É preciso, de um lado, dirigir e comandar; doutro, educar e convencer. Sem educação e sem convicção, não é possível dirigir. De um lado é preciso que o partido seja compacto e organizado à parte, como fazendo parte da classe operária. Doutro, ele deve unir-se mais e mais estreitamente às massas sem partido, atraindo-as cada vez mais para dentro de sua organização. O crescimento moral e intelectual duma classe encontra em suma a sua expressão no crescimento do partido desta classe. E inversamente, o declínio duma classe se exprime no declínio de seu partido ou na diminuição de sua influência sobre os sem partido.

Acabamos de ver que a heterogeneidade duma classe tem por resultado a necessidade dum partido desta classe. Mas as condições de vida capitalista e o baixo nível intelectual não somente da classe operária, mas também de

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outras classes, criam uma situação tal que à vanguarda do proletariado, isto é, ao seu próprio partido, também falta homogeneidade. Ele é mais ou menos homogêneo se o compararmos às outras partes da classe operária, mas se tomarmos as diferentes partes desta vanguarda, isto é, do partido em si mesmo, põe-se facilmente a descoberto esta heterogeneidade interna.

Retomamos aqui, ponto por ponto, o mesmo raciocínio que há pouco para a classe.

Imaginemos um caso contrário à realidade, a saber, uma homogeneidade perfeita do partido, sob todos os pontos de vista: quanto à consciência de classe, quanto à experiência, quanto à arte de dirigir, etc.. Não haveria então necessidade de chefes. As funções de «chefe» poderiam ser assumidas sucessivamente por cada um, sem mal para a causa.

Mas, de fato, esta plena homogeneidade não existe, mesmo na vanguarda. E aí está a causa fundamental da absoluta necessidade de agrupamentos mais ou menos estáveis de pessoas dirigentes, designadas pelo nome de «chefes», «guias», «dirigentes», etc..

Os bons chefes são chefes porque exprimem da melhor forma as justas tendências do partido. E do mesmo modo que é absurdo opor o partido à classe, será absurdo opor o partido aos seus chefes.

É contudo isto que temos feito, quando opunhamos a classe operária aos partidos social-democratas ou às massas organizadas de operários a seus chefes. Mas nós o fizemos e o fazemos para destruir a social-democracia, para destruir a influência da burguesia, que toma por seus intermediários os chefes social-traidores. Mas seria estranho transportar tais métodos de destruição das organizações inimigas para nós mesmos, e apresentar isto como expressão do nosso espírito revolucionário por excelência.

Descobre-se uma situação análoga nas outras classes. Tomemos por exemplo a Inglaterra contemporânea. A burguesia é aí a classe dominante, mas ela governa pelo partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin, e o partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin governa por intermédio dos seus chefes.

Isto mostra bem, entre outras coisas, a inépcia das lamentações proferidas contra a ditadura do partido bolchevista na Rússia, ditadura que os inimigos da revolução opõem à ditadura da classe operária. Depois do que acabamos de dizer, compreende-se bem que uma classe dirige por intermédio da sua cabeça, isto é, do partido. E é somente desta forma que pode dirigir. Portanto,

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suprimindo-se a cabeça, isto é, o partido, atinge-se com o mesmo golpe a própria classe, como classe para si, fazendo dela, invés duma força social consciente e independente, um simples fator de produção, nada mais.

Não é este naturalmente o modo de ver do sr. Heinrich Cunow. Ele protesta contra o caráter de classe dos partidos em geral. Eis sua argumentação (op. cit., t. II, p. 68):

"Um partido não pergunta a quem quer que seja que queira aderir a ele: "Pertences a esta ou aquela classe?" O partido social-democrata também não faz esta indagação. Pode aderir quem quer que reconheça os seus princípios fundamentais e suas reivindicações, seu programa. E este programa contém, não só reivindicações econômicas determinadas, provocadas pelo interesse, mas também, na mesma forma que o programa de outros partidos, opiniões determinadas, políticas e filosóficas, exteriores à esfera dos interesses materiais. (A última frase grifada por nós, N. B.). Certamente a base da maior parte dos partidos é um agrupamento determinado de classe; mas pela sua estrutura, todo partido é ao mesmo tempo uma formação ideológica, o representante dum complexo particular de pensamentos políticos. E muitas pessoas entram num partido não devido aos seus interesses particulares nem da classe que representam, mas porque são atraídas por este complexo ideológico".

Estes argumentos do principal teórico social-democrata atual são extremamente instrutivos. O sr. Cunow, sem suspeitar de nada, opõe os pontos de vista políticos e filosóficos do partido às suas reivindicações econômicas. Que é isto, cidadão Cunow? Que resta do vosso marxismo? O programa é o mais alto grau da tomada de consciência de todos os "complexos ideológicos". Os "pontos de vista políticos e filosóficos" não estão suspensos nas nuvens, nascem das contradições da existência destas classes. Não somente não contradizem, mas pelo contrário, exprimem estas condições de existência, e tanto quanto se trata de reivindicações de programa, está claro que as partes filosóficas e políticas servem de invólucro à sua parte econômica.

A mesma coisa pode-se estudar no partido do sr. Cunow, a social-democracia alemã. Como ela incorpora um número crescente de não operários, e se separa da classe operária, apoiando-se, dentro da classe operária, sobretudo na sua aristocracia qualificada, o complexo ideológico e

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político do seu "programa" também se transforma. Nas suas reivindicações, tornou-se extremamente moderada: e eis a razão por que, ideologicamente, a social-democracia alemã faz um marxismo deslavado, castrado, um "marxismo" do sr. Cunow; eis porque ela escolhe para comentador do seu programa o sr. Bernstein, há longo tempo traidor do marxismo, e para filósofo oficial o sr. Vorlaender, idealista kantiano.

§ 59. As classes como instrumento de transformação social

Se se encara a sociedade como um sistema que evolui objetivamente, vê-se que a passagem dum sistema de classe (duma «formação social» de classe) a outro, se processa através de uma luta violenta de classes. As classes são, na evolução objetiva do processo das transformações sociais, o aparelho vivo e fundamental de transmissão, por meio do qual se produz toda a transformação do conjunto das relações vitais da sociedade. A estrutura da sociedade se transforma pelos homens e não ao lado deles e sem eles; as relações de produção são um produto da atividade e da luta humana, da mesma forma que o fio ou o tecido (Marx). Mas se no meio da infinita quantidade de vontades individuais indo para as direções as mais diversas, e dando afinal uma certa resultante social, tentamos isolar as direções fundamentais, obteremos alguns feixes homogêneos de vontades: estes serão as vontades de classe. A sua oposição é particularmente sensível nas revoluções, isto é, quando a sociedade toda se abala na passagem duma forma de classe para outra.

Mas, doutro lado, sob as leis da evolução da vontade de classe, no emaranhado de idéias diferentes, no choque de vontades de classe opostas e diversas, escondem-se as leis mais profundas da evolução objetiva, que, em cada fase, determina os fenômenos de ordem voluntária.

Doutro lado, sabemos que os efeitos da vontade são definidos pelas condições exteriores, isto é, que as mudanças de condições susceptíveis de serem produzidas pela influência em torno da vontade dos homens, são limitadas pelo estado precedente destas condições. Assim, a luta de classes e a vontade de classe constituem o aparelho de transmissão que funciona na passagem duma estrutura social para outra.

Nesta passagem, a nova classe deve agir como organizadora e portadora duma nova forma de vida social e econômica. Uma classe que não é portadora duma nova forma de produção, não pode «refundir» a sociedade. Pelo contrário, a força de classe que encarna as relações de produção em gestação, e mais progressivas, constitui a alavanca viva da transformação social. Assim a burguesia, portadora de novas relações de produção, duma

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nova estrutura econômica, transportou, com as suas revoluções, toda a sociedade das antigas vias feudais para as novas vias da evolução burguesa; assim o proletariado, portador e organizador do modo socialista de produção, sob a sua fórmula primitiva de classe, transporta a sociedade, que objetivamente não pode viver sobre sua antiga base, das vias burguesas para as vias proletárias.

§ 60. A sociedade sem classes do futuro

Tocamos aqui numa questão que tem sido pouco esclarecida pela literatura marxista. Eis no que ela consiste. Vimos mais acima que a classe dirige por intermédio do partido, o partido por intermédio dos chefes; que classe e partido têm, por assim dizer, o seu quadro de comando. Este quadro é tecnicamente indispensável, porque, como vimos, ele nasce da heterogeneidade da classe e da não-homogeneidade intelectual dos membros do partido. Noutras palavras, cada classe tem seus organizadores. Se se encara por este lado a evolução da sociedade, chega-se naturalmente a propor esta questão: é possível a sociedade sem classes de que falam os marxistas?

Com efeito, sabemos que as classes, elas mesmas, derivam organicamente, como Engels frisou, da divisão do trabalho, da necessidade de funções organizadoras para a evolução da sociedade. Ora, está claro que a sociedade futura não precisará menos deste trabalho organizador. Pode-se, é verdade, responder a isto que na sociedade futura não haverá propriedade privada nem formação da sociedade privada.

Ora, estas relações de propriedade privada são precisamente o que constitui essencialmente uma classe.

Mas existe contra isto uma contra-argumentação. Assim, por exemplo, o professor Robert Michela, no seu interessantíssimo trabalho Zur Sociologie des Parteiwesen in der modernen Demokratie (Sociologia dos partidos na democracia contemporânea), Leipzig, edição do Dr. Werkner Klinhkardt, 1910 (em alemão) escreve (p. 370):

«Existem ainda sobre este ponto dúvidas muito reais, cujo exame atento leva à integral negação da possibilidade dum Estado (mais exatamente: duma sociedade, N. B.) sem classes. A gestão dum enorme capital (isto é, meios de produção, N. B.)... dá aos administradores um poder pelo menos igual ao que lhes daria a posse dum capital privado, a propriedade privada».

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Desta forma, toda evolução social se apresenta no máximo como uma troca, de grupos de chefes (V. Vilfredo Pareto com a sua teoria daCirculação das elites).

Importa examinar esta questão. Pois se esta teoria é certa, a dedução que R. Michels tira, a saber, que os socialistas podem vencer, mas não osocialismo, também o é.

Tornemos antes um exemplo. Quando a burguesia domina, ela domina, sabemo-lo, não simultaneamente por todos os membros de sua classe, mas por seus chefes. No entanto sabe-se e vê-se bem que isto não produz nenhum desmembramento no interior da burguesia. Os senhores nobres reinavam na Rússia por meio de seus funcionários superiores, que representavam todo um quadro, toda uma camada social. E no entanto, esta camada não se opunha, como classe, aos demais senhores. Por que? Por esta razão muito simples: porque a situação vital destes últimos não diferia em nada da dos primeiros; o nível intelectual era também, em linhas gerais, o mesmo, e é sempre na classe dos senhores que se recrutavam aqueles que «dirigiam» o aparelho do Estado.

Aí está porque Engels tinha perfeitamente razão quando escrevia que as classes são, até um certo momento, a consequência do insuficiente desenvolvimento das forças produtivas: é preciso administrar, e «não existem sempre meios suficientes para remunerar convenientemente a administração». Daí, paralelamente ao desenvolvimento das funções organizadoras, socialmente indispensáveis, o crescimento simultâneo da propriedade privada. Mas a sociedade comunista é uma sociedade onde as forças produtivas são muito desenvolvidas e se desenvolvem muito depressa. Por consequência, não existe nela base econômica para a criação duma classe dominante particular. Porquanto — mesmo se supomos um poder estável de administradores, segundo Michels — será um poder de especialistas sobre máquinas, e não sobre homens. Com efeito, como poderiam eles realizar este domínio sobre homens? Não teriam nenhum meio para isto. Michels admite um ponto fundamental e decisivo: toda posição dominante e administrativa tem sido até hoje pretexto para a exploração econômica. Mas um poder fechado, estável, dum grupo de homens, não seria possível nem mesmo sobre as máquinas. Porquanto a base das bases desaparecerá para a formação de grupos monopolizadores deste gênero, ou seja o que Michels classifica na eterna categoria de «incompetência da massa». A «incompetência da massa» não é absolutamente atributo obrigatório de toda vida em comum: ela é precisamente, ela também, um produto de condições econômicas e técnicas, que agem por intermédio da situação intelectual geral e das condições de educação. A

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sociedade futura verá uma grandiosa superprodução de organizadores, de forma que não haverá mais estabilidade de grupos dirigentes.

A questão é muito mais árdua no período de transição do capitalismo ao socialismo, isto é, para o período da ditadura proletária. A classe operária vence no momento em que não é — e não pode ser — uma massa homogênea. Ela vence em condições de declínio das forças produtivas e de insegurança das massas. Esta é a razão por que uma tendência para a «degenerescência», isto é, para a separação duma camada dirigente, como gérmen de classe, aparecerá fatalmente. Mas doutro lado, ela será paralisada por duas tendências opostas: o crescimento das forças produtivas e a supressão do monopólio de instrução. A reprodução em grande escala de técnicos e de organizadores em geral, saídos do seio da classe operária, cortará pela raiz qualquer nova classe eventual. O resultado da luta dependerá somente de saber quais as tendências que se mostrarão mais fortes.

Assim a classe operária, tendo à sua disposição um instrumento tão belo como a teoria marxista, deve lembrar-se que é por suas mãos que se constitui e que se estabelecerá definitivamente uma ordem de relações sociais tal que se diferenciará em princípio de todas as formações sociais do passado: da horda comunista primitiva, por isto que será uma sociedade de homens de alta cultura, conscientes deles mesmos e dos outros; das formas fundadas sobre classes, por isto que, pela primeira vez, a existência do homem será assegurada não somente para alguns grupos isolados, mas para toda a massa dos homens, massa que cessará de ser massa e se tornará sociedade humana única, harmonicamente construída.

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Suplemento: Breves notas sobre o problema da Teoria do Materialismo Histórico

No meu livro «Teoria do Materialismo Histórico», procurei não somente expor de novo o que tinha sido dito antes, mas ainda dar-lhe outras fórmulas e, além disso, precisar e desenvolver os princípios do materialismo histórico, fazer avançar o estudo dos problemas que ele comporta. Como é sabido, Engels dizia, pouco antes de sua morte, que não se tinha dado senão os primeiros passos no domínio do materialismo histórico. Assim, a tarefa imediata que incumbia aos discípulos dos grandes mestres, lhe parecia ser a de trabalhar no desenvolvimento desses problemas teóricos. Porém, tal é a força do conservantismo inerente ao pensamento humano, que muitos são organicamente incapazes de compreender esta tarefa(1). Entretanto, o estudo e a solução destes problemas estão na ordem do dia. A literatura dos nossos adversários tem aumentado formidavelmente. Nós devemos proceder a um contra-ataque, e isto sobre a base ampliada de nossas próprias teses teóricas. Nestas «breves notas» eu tentarei justificar as «inovações» que se encontram em minha obra e que, afirmo, estão inteiramente conformes com «a interpretação a mais ortodoxa, a mais materialista e a mais revolucionária de Marx»(2)

1.º O «Mecânico» e o «Orgânico»

Até os últimos tempos opunham-se estas noções em nosso meio. No domínio das ciências sociológicas, nós, marxistas, protestávamos contra «a explicação mecânica», preferindo falar de laços «orgânicos», etc., se bem que fossemos completamente estranhos aos preconceitos do que se chama a escola orgânica, em sociologia.

Depois, dois fatores decisivos apareceram: em primeiro lugar a falência das concepções sobre a estrutura da matéria; em seguida, o desenvolvimento extraordinário do idealismo na ciência burguesa oficial. A revolução na teoria sobre a estrutura da matéria mudou completamente a concepção do átomo como unidade absolutamente isolada. Ora, é precisamente esta concepção do átomo que se trazia para o indivíduo («átomo» e «indivíduo» se traduzem em russo por uma única e mesma palavra: «indivisível»). As «Robinsonadas» nas ciências sociológicas correspondiam exatamente aos átomos da antiga mecânica. Entretanto, no domínio das ciências sociológicas, tratava-se precisamente de conseguir «Robinsonadas». Era preciso enérgica e resolutamente pôr em primeiro plano o ponto de vista social, o que havia sido feito de maneira genial porMarx, opondo-se às teorias dos individualistas burgueses, compreendendo entre eles os brilhantes «clássicos» da economia

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política (Smith eRicardo). Os protestos contra o elemento «mecânico» no domínio das ciências sociológicas eram então justificados? Evidentemente que sim.

Mas é preciso não se limitar a lembrar termos, sem compreender a essência da questão. Agora, o que é justo dialeticamente se transforma em seu contrário. Pois a concepção atual da matéria transtornou as antigas idéias. O átomo isolado e desprovido de qualidade morreu. O elemento do vinculo, da interdependência, da eclosão de qualidades novas, etc., foi restabelecido em todos os seus direitos. Opor o «mecânico» ao «orgânico» é, deste ponto de vista, uma falta de senso.

Por outro lado, a extensão que o idealismo tomou na ciência e na filosofia burguesa conduziu ao misticismo «orgânico. A concepção de «vida» tornou-se mística (Bergson, Drisch e seus compadres). Que se segue daí? Que é preciso, na nossa ideologia, renunciar à antiga oposição entre o mecânico e o orgânico, se quisermos seriamente lutar pela concepção materialista do mundo em geral e pela sociologia materialista em particular.

2.º Dialética e teoria do equilíbrio

Marx, sabe-se, despiu à dialética de seu invólucro místico, expondo a tese segundo a qual a dialética, como categoria do pensamento, é o reflexo da dialética no processo do pensar real, material, pois o «ideal» não é senão o «material» traduzido no cérebro humano numa língua especifica. Entretanto, tenta-se ainda, e de mais em mais frequentemente, destacar o processo pensado do processo material, transformar a dialética em uma construção puramente ideológica, em um método ao qual não corresponde nenhuma realidade. A este respeito, o «austro-marxismo», com o seu teórico Max Adler, é típico. Como combater-se este desvio manifestamente antimaterialista do marxismo? É claro que é preciso pôr em evidencia a raiz material da dialética, isto é, encontrar nas formas da matéria em movimento aquilo ao que «corresponde» a fórmula dialética de Hegel. O choque incessante das forças, a desagregação, o desenvolvimento dos sistemas, a formação de sistemas novos e o seu próprio movimento, em outros termos, a destruição contínua do equilíbrio, o seu restabelecimento sobre uma outra base, restabelecimento seguido de uma nova destruição, e assim por diante, eis o que corresponde de maneira real à tríade de Hegel. Que trás de «novo» esta interpretação? No fundo, nada. Ela porém sublinha o processo material e o movimento da forma material. Em outras palavras, tem-se aqui a dialética do pensamentomaterial, expressa ideologicamente pela tríade hegueliana.

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Increpar esta formulação por ser mecânica, é errar, e isto porque não se pode opor a mecânica atual à dialética. Se a mecânica não é dialética, isto é, se o movimento no seu conjunto não é dialético, que fica então da dialética? Ao contrário, o movimento constitui, se assim nos podemos exprimir, a alma material do método dialético e sua base objetiva.

Marx e Engels despiam a dialética de seu invólucro místico na ação, isto é, nela aplicando, de maneira materialista, o método dialético no estudo dos diferentes domínios da natureza e da sociedade. Trata-se agora de fazer uma exposição teórica sistemática deste método e de assentá-lo sobre uma argumentação igualmente teórico sistemática. Chega-se a este resultado precisamente pela teoria do equilíbrio.

Há ainda um argumento, e não dos menores, em favor da teoria do equilíbrio. Esta teoria desembaraça a concepção do mundo de um certo elemento teleológico inevitavelmente ligado à formulação hegueliana, que repousa sobre a evolução imanente do «espírito». Em lugar de evolução, eunicamente de evolução, ela permite ver também os casos de destruição das formas materiais. Por isso mesmo, ela constitui uma formula mais geral das leis que regem os sistemas materiais em movimento, fórmula que é, além disso, expurgada de todo elemento idealista.

3.º Teoria do equilíbrio e forças produtivas

A questão fundamental para a teoria do materialismo histórico é a de saber porque se tomam as forças produtivas como causa final, como causa que tudo explica (em última análise). Sobre este ponto há uma diferença bem marcada entre os marxistas (aí compreendidos os marxistas ortodoxos, os comunistas). Frequentemente conduz-se a questão para a «teoria dos fatores», teoria, manifestamente sem valor, ao mesmo tempo que se substitui a noção das forças produtivas pelas das relações de produção («fator econômico»). Muitas vezes levanta-se a questão do ovo e da galinha do ponto de vista da sua «gênese». A solução que dá o próprio Plekanov (no ponto de vista monista) não é satisfatória. Como ele apresenta a questão? Ele toma a controvérsia entre duas correntes de pensamentos: uma que afirma: «as opiniões regem o mundo» e outra que assevera que «as condições de vida criam o homem». Para empregar a nossa terminologia, diríamos superestruturas e base. A superestrutura influi sobre a base? Sim. A base influi sobre a superestrutura? Sim, igualmente. E Plekanov reconhecia que, posta assim, a questão é insolúvel. Onde está pois a solução? Segundo Plekanov, ela está no fato de que estas duas grandezas que influem uma sobre a outra dependem de uma terceira (as forças produtivas). É isso justamente que resolve todo o problema.

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Não é entretanto difícil de ver que, desta maneira, a questão não é senão afastada e não resolvida. Com efeito, a superestrutura e a base influem elas por sua vez sobre as forças produtivas? Sim. E estas sobre aquela? Sim, igualmente. Assim a questão apresenta-se de novo, sobre outra base, e é tudo.

É esta a questão central da sociologia. Pois se a isso não se responde no espírito do monismo metodológico e procura-se entrincheirar-se atrás da «teoria dos fatores», não se tratará mais, como o faz notar com justeza o professor burguês alemão E. Brandenburg:

«senão de uma diferença quantitativa na apreciação das influencias econômicas e espirituais»(3).

Mas então ter-se-á uma teoria que antes de tudo nada absolutamente explica e por conseguinte nada tem de marxista.

O professor Brandenburg inclina-se graciosamente diante desta assim dita teoria marxista. Mas eis aqui o que ele diz da verdadeira concepção materialista da história:

«Ela quer ligar todas as variações da vida em comum dos homens às mudanças que sobrevêm no domínio das forças produtivas; mas ela não pode explicar porque estas últimas devem, elas próprias, mudar constantemente e porque esta mudança deve necessariamente se efetuar na direção do socialismo»(4)

É precisamente esta fórmula do professor Brandenburg que melhor pode nos servir para pôr no justo lugar a nossa própria metodologia na solução do problema sociológico em questão, problema que, eu repito, é capital.

A única resposta justa a esta questão é esta: as forças produtivas determinam a evolução social porque elas exprimem a correlação entre a sociedade, conjunto real determinado, e o seu meio... Ora a correlação entre o meio e o sistema é uma grandeza determinando, em última análise, o movimento de não importa que sistema.

Está aí uma das leis gerais que regem a dialética da forma em movimento. É o quadro no qual se produzem os deslocamentos moleculares das forças e onde se atam, se desatam e se entrecruzam as inúmeras ações, reações e contradições. Que as forças produtivas sofram modificações sob a influência da «base» e das «superestruturas», a constatação dessas influencias não altera em nada este fato fundamental: a correlação entre a sociedade e a natureza, a

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quantidade de energia material sobre a qual vive e sociedade e que é susceptível de toda a sorte de transformações no processo da vida social, é cada vez uma grandeza determinante.

É assim, e unicamente assim, que pode ser resolvido o problema fundamental da teoria do materialismo histórico.

4.º Relações de produção

Segundo Marx, as relações de produção são a base material da sociedade. Entretanto, entre numerosos grupos marxistas (ou, antes, pseudo-marxistas), existe uma tendência irresistível para «espiritualizar» esta base material. Os progressos da escola e do método psicológicos na sociologia burguesa não podiam deixar de «contaminar» os meios marxistas e semi-marxistas. Este fenômeno caminhava de par com a influência crescente da filosofia acadêmica idealista. Puseram-se a reproduzir em obras inferiores a construção de Marx, introduzindo-lhe sob a sua basematerial a base psicológica «ideal», a escola austríaca (Böhm-Bawerk), de L. Word e tutti quanti. Presentemente também, a iniciativa parte outra vez do austro-marxismo teoricamente em decadência. Põem-se a tratar da base material no espírito do «Pickwick Club». O econômico, o modo de produção passaram para a categoria inferior de reações psíquicas. O alicerce sólido do material desapareceu do edifício social.

Na literatura russa, esta transformação psicológica do marxismo foi proseguida sistematicamente nas obras de A. Bogdanov. Segundo Bogdanov, a própria técnica não é uma coisa material, mas a habilidade dos homens, a arte de trabalhar com o auxilio de instrumentos determinados, um treino psicológico, por assim dizer.

É evidente que um tal marxismo «psiquizado» afasta-se nitidamente do materialismo sublinhado «con amore» por Marx, em sociologia.

Como pois considerar o caráter material das relações de produção?

Na literatura marxista, não se deu, segundo me parece, resposta precisa a esta questão, e é o que explica em parte que construções «psicológicas», às quais não se pode negar uma certa unidade e uma certa lógica, exercem ainda influência sobre espíritos marxistas(5).

Como resolver este problema? O adversário trás uma série de argumentos sérios. O mais importante é que a concepção das relações entre os homens pressupõe a ação psíquica recíproca destes últimos. O laço de trabalho se

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torna assim um vinculo de ordem psíquica e como não se pode duvidar que a criação e a manutenção dessas relações constituem um processo psicológico resultante de atos psíquicos objetivando-se sobre o plano social, o caráter social psíquico da «base» se acha por isso mesmo estabelecido.

Eu afirmo que a esta argumentação nada foi oposto em nossos meios. Eis porque eu proponho uma solução nova, materialista, do problema, solução conforme as de Marx. Ei-la:

Como relações de produção, eu entendo a coordenação dos homens (considerados como «máquinas vivas») pelo trabalho no espaço e no tempo.O sistema dessas relações é tão pouco «psíquico» quanto um sistema planetário com o seu sol. A determinação do seu lugar em cada ponto cronológico, eis o que constitui um sistema. Deste ponto de vista, toda atribuição de caráter psíquico desaparece pela base. E o fato de que os elementos psíquicos são um fator intermediário, não destrói nem afeta o encadeamento do nosso argumento: toda superestrutura serve de fator intermediário no processo de reconstituição em comum da vida social.

Eu considero esta solução como a única justa e como a única materialista. Só ela, além disso, permite refutar Adler e seus pares.

5.º Superestrutura e ideologia. Estrutura das superestruturas

A análise destes fenômenos sociais, no seu «corte» estático(6), tem sido extremamente insuficiente.

Daí uma série de mal entendidos, erros, assim como impasses teóricos e explicações falsas ou fictícias. Por exemplo, caía-se sobre um laboratório cientifico, com seus instrumentos de trabalho, suas relações particulares de trabalho, etc.. Concluia-se daí que o trabalho de laboratório (por extensão, todo trabalho cientifico) se refere à produção. Proseguindo mais longe o desenvolvimento desta tese, acabava-se por achar que todo o trabalho socialmente útil é um trabalho produtivo. Resultado: tudo reentrava na «produção», e a teoria marxista se transformava em explicação absurda da parte pelo todo, nada mais do que isso. Ou melhor, não se sabia onde colocar, no esquema arquitetural de Marx, fenômenos tais como uma associação científica, um aparelho burocrático, uma sociedade filosófica, um observatório astronômico.

Eis porque eu propus, em meu livro, separar as noções ideologia e superestrutura, tomando esta última como noção mais larga e mais geral. A ideologia é o sistema de idéias, de sentimentos, de imagens, de

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normas, etc.. A superestrutura engloba ainda muitas outras coisas. Nas superestruturas é preciso distinguir três esferas principais:

1. — A técnica da superestrutura, os «instrumentos de trabalho» (utensílios de laboratório nas ciências; casas, canhões, máquinas de calcular, diagramas, etc., no aparelho estático; pincéis, instrumentos de música, etc., na arte, etc.).2. — As relações entre os homens (associação científica, organização burocrática, relações das pessoas em um «atelier» artístico, coordenação dos músicos em uma orquestra).3. — Os sistemas de idéias, de imagens, de normas, de sentimentos, etc.. (ideologia).

Eu procurei ainda levar esta análise adiante, isto é, esboçar as linhas de um fracionamento e de uma diferenciação ainda maior (notadamente na música). Assim desaparecia uma série de dificuldades, e o método histórico-materialista tornava-se mais exato e mais preciso.

6.º Dependência das superestruturas em relação à base

O ponto de vista acima exposto permite apresentar, de maneira muito mais concreta, a questão da dependência das superestruturas em relação à base e, em seguida, às forças produtivas. O vício fundamental da posição sumaria da questão residia e reside na indeterminação da noção de dependência ou de determinação. Foi o que deu lugar a «desvios» nos meios marxistas e vizinhanças. É bastante citar, entre muitas outras, as obras do camarada Chuliatikov (Justificação do capitalismo na filosofia da Europa Ocidental), ou de Eleutheropulos e outros. Nossos inimigos, em suas críticas, têm, muitas vezes, explorado esta divergência. Entretanto, se se distingue em cada superestrutura os elementos que a constituem, não é difícil demonstrar que ela é: 1.º a dependência concreta desses elementos em relação um ao outro; 2.º sua dependência em relação aos elementos das outras superestruturas; 3.º a dependência destes últimos em relação à base; 4.º a dependência direta destes elementos em relação à base; 5.º sua dependência da técnica, etc.. Por isso mesmo desaparecem todos os «desvios», simplificação, vulgarização, posição sumária da questão. Ao contrário, isso impõe, é verdade, ao investigador a obrigação de «cavar» profundamente a análise da superestrutura que ele estuda, isto é, de se entregar a um trabalho extremamente minucioso. Mas convenhamos que isso não pode constituir um argumento contra as minhas «inovações».

7.º As superestruturas como esferas de trabalho diferenciado

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Eu me propus igualmente analisar as superestruturas do ponto desvista do trabalho. Não é sem razão que Marx falava de «produção intelectual» e de «clãs» ideológicos (ideologische Stands). Eu não falarei aqui do valor pratico destas questões, especialmente para a nossa época e para o nosso partido. Eu me limitarei a justificar de maneira puramente teórica este «aspecto» da questão.

Em primeiro lugar, o ponto de vista mencionado acima esclarece maravilhosamente a questão da correlação existente entre a produção materiale as produções «intelectuais» e mostra com evidencia o absurdo que há em apresentar a questão em bloco também neste domínio (tudo o que é «útil», é produção). Com uma tal solução da questão, é claro que o trabalho intelectual de alguma forma deriva constantemente, depois sediferencia da produção material; as questões casuísticas sutis concernentes às categorias situadas mesmo nos confins destes domínios, são metodologicamente afastadas, do mesmo modo que as «terríveis» questões concernentes aos agrupamentos sociais intermediários e outras grandezas variáveis.

Em segundo lugar, uma tal maneira de apresentar a questão permite explicar a necessidade da aparição de tal ou qual gênero de trabalho superestrutural, assim como a disposição particular dos diferentes ramos deste trabalho, isto é, suas dimensões relativas numa determinada sociedade. (Antes, parece-me, não se propunham questões como a da proporção entre o trabalho material e o trabalho não material, entre os diferentes gêneros de trabalho «espiritual» e assim por diante. Entretanto, isto é indispensável, para explicar toda uma série de fenômenos essenciais. Compare-se, por exemplo, o valor pratico que tem para nós a questão da produção material e do aparelho administrativo burocrático).

8.º O modo de representação e os princípios formando a vida social

Como teórico, eu julguei dever pôr em primeiro plano a tese de Marx sobre o «modo de representação» (Vortstellimgsweise), tese que todo mundo esqueceu. Não resta dúvida que, em Marx, esta concepção era correlativa à do «modo de produção». Em outros termos, a um modo dado de produção corresponde um modo de representação adequado a este último e determinado por ele. Marx não expôs a questão do modo de representação com uma lógica tão clara e tão precisa como a do modo de produção. Mas, várias notas isoladas (por exemplo, sobre a necessidade de estudar a questão dos «clãs intelectuais», etc..) mostram claramente seu ponto de vista sobre a maneira de colocar estes problemas. Assim se resolve a questão concernente ao «estilo» fundamental único da vida social, da base à cumeeira, assim como o caráter

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historicamente relativo de todas as ideologias, consideradas não do ponto de vista de seus princípios (que podem ser eternos), mas do ponto de vista dos tipos de ligaçãoexistentes entre elas, dos princípios particulares de coordenação que são o índice constitutivo da concepção do «modo de representação».

9.º A fisiologia humana e as leis da evolução social

Eu procurei conduzir para um terreno inteiramente novo os debates intermináveis sobre a correlação das leis da biologia e da sociologia, etc.. Assim, eu considero as particularidades fisiológicas dos agrupamentos humanos, assim como as particularidades psicológicas que lhes correspondem, como a qualificação das forças de trabalho determinadas da sociedade (particularidades psico-fisiológicas do carregador, do músico, do industrial, do comerciante, do espião, do chauffeur, do oficial, etc.). Esta solução do problema não implica de nenhum modo este absurdo desdobramento das «leis» que se encontra a cada instante mesmo nas melhores obras marxistas (de um lado, as leis da biologia, da fisiologia, etc., do outro, as da evolução social). Na realidade, há aí dois aspectos de uma única coisa. Um só e mesmo fenômeno é considerado de diferentes pontos de vista. A estrutura psico-fisiológica do carregador e a qualificação de seu trabalho não são duas grandezas diferentes, mas duas maneiras de considerar uma única e mesma grandeza. É o que aparece com uma clareza particular no estudo do taylorismo, da psicotécnica, etc..

10.º Materialização dos fenômenos sociais

Outra «inovação» minha é a teoria que expus sobre a materialização dos fenômenos sociais, sobre o processo especial de acumulação da cultura, que se produz quando a psicologia e a ideologia sociais se condensam e se cristalizam sob forma de coisas, tendo uma existência social original. Estas psicologia e ideologia sociais materializadas se tornam, por sua vez, o ponto de partida de toda evolução ulterior (livros, bibliotecas, galerias de arte, museus, etc.). Se a materialização dos fenômenos sociais é uma das leis fundamentais do desenvolvimento da sociedade, é claro que é por aí que é preciso começar a análise nos domínios correspondentes (isto é, nas superestruturas). Aqui ainda, o ponto de vista materialista encontra uma nova confirmação(7).

11.º A lei do período de transição e a lei da decadência

Uma das objeções capitais levantadas contra o materialismo histórico, é a da, suposta essência mística, em Marx, das forças produtivas, que devem, não se sabe porque, se desenvolver custe o que custar. É preciso reconhecer que,

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em suas obras, numerosos marxistas «exigem» este desenvolvimento. Marx, porém, pessoalmente, não está por isso, pois ele tem por muitas vezes assinalado o caso de «destruição das duas classes em luta» e, ao mesmo tempo, de toda a sociedade, portanto de suas forças produtivas. A questão de saber se a sociedade é destinada a se desenvolver ou a perecer, não pode ser resolvida de maneira abstrata nem em um sentido nem em outro. Ela não pode ser solucionada senão sobre uma base concreta.

Do mesmo modo, está demonstrado empiricamente que os períodos de transição, acompanhados de revoluções, estão ligados a uma decadência temporária, mais ou menos prolongada, das forças produtivas.

Por consequência, a fórmula habitual das bases teóricas do materialismo histórico que começa pelas palavras: «O crescimento das forças produtivas», é por demais restrito, pois ela não abrange nem as épocas de decadência, nem os períodos transitórios revolucionários.

Eis porque, ainda aqui, como teórico, eu julguei de meu dever fazer a análise da lei destes fenômenos que têm desempenhado um papel importante. E isto é tanto mais necessário fazê-lo, quanto, sem esta análise, é impossível compreender o período atual. Assim pois caracterizei socialmente com precisão, e nos quadros gerais da teoria, estes períodos como período de regressão das forças produtivas sob a influência das superestruturas, com limitação constante deste fenômeno pelo estado anterior das forças produtivas; em outros termos, caracterizei a lei fundamental destes períodos como o processo temporário da reação das superestruturas (nos casos de período transitório até o momento em que se estabelece um novo equilíbrio social).

Por outra parte, esforcei-me por dar a fórmula das fases necessárias no processo da revolução, apoiando.me em parte, (como na Economia do período de transição) sobre as observações do camarada Kritzman, a quem cabe a prioridade da solução deste problema. Deste modo a teleologia foi expulsa do seu último refugio.

Eu não mencionei aqui senão as minhas principais «inovações». Eu poderia enumerar uma série de outras, notadamente no que concerne à doutrina das classes, às relações entre os chefes e o partido, à doutrina da revolução, etc.. Infelizmente, falta-me o tempo. Eu me desculpo portanto, junto ao leitor, do caráter fragmentário destas «breves notas». Como se pôde ver, os problemas que temos diante de nós são bastante complexos. Na medida de minhas forças, procurei resolve-los. Para todo homem inteligente, e com mais forte razão para todo bolchevique, é claro que a tendência geral das minhas

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«inovações» está conforme à interpretação ortodoxa, revolucionária e materialista de Marx. Aceitarei com reconhecimento toda observação proveitosa, pois aqui, como em qualquer outro domínio, uma ampla colaboração é indispensável. «Mas, dirá talvez o leitor, como se explica que nenhum dos vossos críticos tenha mesmo mencionado todos esses problemas importantes, fundamentais?»

«Perguntai ao vento nos campos», como dizia Knut Hamsun, em outra circunstância.