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Nilo Azul, As águas sagradas da Etiópia - NGBR

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Por Virginia Morell Fotos de Nevada lVier pode-se pedir ao espírito da nascente para cu- rar mil males diferentes ou abençoar um lavra- dor com urna colheita generosa." Marigeta explica que, ainda que o Nilo Azul afiare à superfície pela primeira vez aqui, no topo do monte Gishe, a verdadeira nascente, sua origem absoluta, fica no pé da montanha. "O Gishe paira sobre o lago Tana, de onde real- mente escorre o Abay", conta o sacerdote. A partir da nascente, a água desce pelo rio cha- 43

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Por Virginia Morell Fotos de Nevada lVier

o topo do monte Gishe, a 3200 metros, Marigeta Birhane Tsi-

ge, um velho sacerdote da Igreja Ortodoxa, admira a mina

d'água que, para muitos etíopes, é a nascente de um dos gran-

des rios da África, o Nilo Azul, ou Abay Wenz, o "Grande Rio".

A água brota em pequenas lagoas cercadas porum denso matagal e campos de relva. Os etío-pes contemplam o cenário com respeito ances-tral. Ao redor da fonte, moradores de aldeiasvizinhas esperam a vez de encher suas cabaças,garrafas, cantis e garrafões de plástico com aságuas sagradas da fonte do Nilo. "Todos vêmbuscar o poder do rio", diz Marigeta (nome quesignifica "instrutor santo"). "Com a promessade sacrificar um carneiro ou urna novilha,

pode-se pedir ao espírito da nascente para cu-rar mil males diferentes ou abençoar um lavra-dor com urna colheita generosa."

Marigeta explica que, ainda que o Nilo Azulafiare à superfície pela primeira vez aqui, notopo do monte Gishe, a verdadeira nascente,sua origem absoluta, fica no pé da montanha."O Gishe paira sobre o lago Tana, de onde real-mente escorre o Abay", conta o sacerdote. Apartir da nascente, a água desce pelo rio cha-

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mado de Pequeno Abay até chegar ao maiorlago da Etiópia. Outros riachos também desem-bocam ali. Então, no lado sudeste do lago, a águado Tana vaza e despenca pelas cachoeiras de TisIsat ("Fumaça de Fogo"). Começa então o ver-dadeiro caminho do Nilo Azul pela Etiópia.

Marigeta Birhane já acompanhou boa partedo curso sinuoso do rio pelo interior do país.Os etíopes entendem que essa jornada abran-gente dá ao Nilo Azul seus poderes especiais."Ele corre ao redor de toda a Etiópia, como umpastor protegendo os rebanhos", ilustra Mari-geta. "Os italianos bombardearam nosso paísem 1935, mas nunca nos derrotaram. Eles ti-nham as bombas, mas nós contávamos comuma arma muito mais forte: o poder do Abay."

Durante mais de um mês, nossa equipe se-guiu a rota do Nilo Azul pelo país africano. An-tes de visitar sua nascente, no monte Gishe,havíamos percorrido um trecho a pé e de barco

COM FÉ NOS PODERES do Nilo Azul, umpadre da Igreja Ortodoxa Etíope lança sobreuma mulher e seu filho (acima) a água dafonte no alto do monte Gishe, consideradapor muitos a nascente do rio. A fim de setornar monges e freiras, os crentes vão parao monte Gishe. Uma festa para os fiéis começacom o soar de uma trombeta (ao lado).

ao longo do rio, desde as cachoeiras de Tis Isataté a fronteira com o Sudão, numa viagem demais de 800 quilômetros. Durante esse longotrajeto, o ilo desce quase 1,2 mil metros e,num certo trecho, já escavou um cânion de 25a 30 quilômetros de largura, tão vasto e pro-fundo quanto o Grand Canyon americano.

Nossa expedição foi a primeira a percorrer,numa viagem ininterrupta, toda a extensão doNilo Azul na Etiópia. Constatamos que a repu-tação do rio varia muito. Em alguns lugares, eleé amado e odiado, reverenciado e temido, tra-tado como um santo e desprezado como o piordos pecadores. Suas águas levam embora a pre-ciosa camada fértil da superfície do solo e pas-sam velozes pelo país, sem deixar uma só gotaarmazenada. O rio é ainda infestado de croco-dilos, hipopótamos e mosquitos portadores demalária. Profundo como um fosso, divide opaís em dois. Ao mesmo tempo, suas águas sãoconsideradas, tanto pelos cristãos ortodoxoscomo pelos animistas, um abrigo de entidades

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Mar Mediterrâneo

. NiloAREA

AMPLIADA it:lAOLADO~

À FR I ,,>'I.,d ,

Uma pequena usinahidrelétrica nacachoeira de Tis Isatintercepta parte dacorrente do Nilo Azul.Depois, o rio correpor 800 quilômetrossem represas, levandoas águas que escoamdos planaltos etíopesaté o Saara. Questõespolíticas e falta derecursos impediramque a Etiópia usasseo rio para irrigaçãoou geração de energia.O Nilo Azul une-seao Nilo Branco paraformar o grande Nilo,que corre no Egito atéa foz, no Mediterrâneo.

EtBahr-elAzraq

(NiloAzul)

poderosas. Alguns são pequenos demônios, mashá também um grande espírito cultuado quasecomo um deus pelos etíopes. "Não deixem dedar um pedaço de pão ao Abay', foi o conselhode uma mulher com uma cruz azul tatuada natesta, assim que iniciamos nossa caminhadapelo desfiladeiro superior do Nilo Azul, a su-deste do lago Tana. "Na água existem djins, es-píritos maus que podem agarrar vocês,"

Sua advertência não nos pareceu tão im-plausível. Logo abaixo das cachoeiras de TisIsat, o Nilo Azul abre caminho por um estreitocânion de rocha vulcânica negra. Estávamos noinício de setembro, no fim da estação das chu-vas, e o rio, muito cheio, corria veloz, com suaságuas pesadas de tantos sedimentos. Longe deser azul, o Nilo era turvo, de um marrom bar-rento, e jorrava raivoso. As ondas que formavabatiam contra as rochas do caminho. Imagineiaquelas vagas horríveis arrastando um de nóspara o fundo. Por isso, com a melhor das inten-ções, atirei às águas o resto do meu tablete decereais, esperando que os espíritos gostassemde granola tanto quanto de pão.

Havia outros djins, outros perigos associa-dos ao rio. Para os etíopes, o Nilo Azul não éapenas um rio mágico - ele também tem enor-me importância estratégica. Seu caminho de

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A

900 quilômetros pelas regiões montanhosasdo centro do país já foi usado como linha dedefesa e bloqueio. Como, até o século 20, ape-nas duas pequenas pontes de alvenaria permi-tiam a travessia do Nilo, os reis e príncipes emguerra podiàm retirar-se para o topo dasmontanhas, cada qual de um lado do rio, e sen-tir-se em total segurança - como se tivessemerguido atrás de si uma ponte levadiça. Hojepode-se atravessar o Nilo Azul por três pontesmais modernas, de concreto e aço, ambas comduas pistas, que garantem uma restrita ligaçãoentre as duas metades do país. Mas, alguns me-ses antes da nossa chegada, um conflito fron-teiriço entre a Eti6pia e a Eritréia haviairrompido no norte do país - e agora todas es-sas pontes estavam muito bem protegidas. S6podíamos viajar porque o governo etíope nosconcedera uma autorização especial para pas-sar com nossos barcos por baixo de duas delas.

Mas várias outras preocupações rondavamnosso grupo: as famigeradas gangues de bandi-dos, os shiftas, que se escondem no desfiladeiroe já haviam atacado expedições anteriores; cro-codilos do tamanho de pequenos dinossauros ecom um temperamento igualmente feroz; o ca-lor sufocante; as doenças tropicais; as corredei-ras desconhecidas. E também havia as tribos

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te, era sempre fácil acompanhar a trilha de ar-gila negra, pisoteada por dezenas de milharesde pés descalços de lavradores etíopes.

Uma caravana de dezenas de pessoas que se-guiam para Bahir Dar, às margens do lagoTana, passou por nós. A cidade estava a um diade caminhada de suas aldeias e plantações, si-tuadas nos planaltos e montanhas acima dodesfiladeiro do Nilo Azul. Todos olhavam fixa-mente para nossa pele branca, quase sem acre-ditar no que viam. De fato, muitos nativosnunca haviam visto ferenjocch (estrangeirosbrancos), assim como nunca estrangeiros bran-cos tinham excursionado pelo interior do país.

Por isso, nós também os fitávamos com cu-riosidade. Esses etíopes das montanhas são daetnia amhara, povo que dominou o país duran-te o reinado do lendário imperador Hailé Selas-sié. Altos e esguios, com os zigomas salientes,os dentes uniformes e grandes olhos negros,eles irradiavam uma beleza exótica com seusmantos, turbantes e vestidos brancos de ricosbordados. As mulheres traziam no pescoçocruzes de prata ou de madeira, um sinal de sua

Reverenciado como um santo e desprezadocomo um pecador, oNilo Azul divide a Etiópia ao meio.

das regiões mais baixas, cujos membros têm o"amistoso" costume de atirar suas lanças antesde fazer qualquer pergunta. Contra tudo issocontávamos apenas com nossa sorte - e com aoferenda que atirei para o Nilo Azul.

O núcleo do nosso grupo era formado pordez pessoas, incluindo três barqueiros, um pa-ramédico e um intérprete. Com nossos guias ecarregadores, os burros e seus condutores, emuitos outros agregados de diversas funções,parecíamos mais uma caravana de mercadoresdo que uma força expedicionária. Nem sempreficava claro quem estava no comando. E tam-bém nunca se sabia onde era o começo ou ofim da equipe. Mas, apesar da bagunça aparen-

UMA CORDA é a única ligação entre asmargens do Nilo Azul na chamada SegundaPonte Portuguesa. O arco central da pontedesmoronou quando patriotas etíopesdestruíram seus alicerces, durante a ocupaçãoitaliana de 1935 a 1941. Existem apenas trêsoutras pontes sobre o rio, que durante séculosserviu para a defesa da região de Gojam.

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devoção à Igreja Ortodoxa. Por outro lado, amaioria dos homens portava armas automáti-cas - fuzis Kalashnikov e G3.

A maioria dos nossos guias e carregadorestambém levava armas semelhantes - como elesintegram as milícias de defesa de sua aldeia, ogoverno exige que estejam sempre armados.Um deles, Kes Yeshambel Berhanu, tambémera sacerdote e trazia ao pescoço, junto com aKalashnikov, uma grande cruz de bronze. Qua-se todos os aldeões por quem passávamos reco-nheciam nosso sacerdote armado. E paravampara lhe pedir a bênção e beijar a sua cruz.

assa trilha descia paralela à margem es-querda do ilo Azul, tão perto da beira do rioque, às vezes, desaparecia sob uma torrente delama. Na Etiópia, a primavera chega com o fi-

nal das chuvas. As terras que atravessávamosestavam com novos brotos de relva, margaridasamarelas e plantações de milho. Ramos de jas-mim sobre os galhos das acácias perfumavam oar. Os pássaros tecelões-de-cabeça-branca (Di-nemellia dinemelli), que acompanham os búfa-los, viajavam entre os arbustos das margenscomo grandes abelhas douradas.

Depois de 25 quilômetros, porém, demosadeus ao ilo Azul. osso novo caminho subiaaté um planalto cultivado, bem elevado, en-quanto o rio despencava num cânion com pa-redões verticais de basalto negro. A rocha dodesfiladeiro brotou de fissuras no solo há cercade 30 milhões de anos, e hoje recobre camadasde calcário e arenito - em certos trechos, a fai-xa de basalto chega a ter 2 quilômetros de es-

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pessura. A dura pedra vulcânica é a mão quevai conduzindo o Nilo Azul em sua viagemcurvilínea e duradoura pela África.

O rio jorrava com estrondo pelo cânion,quase 1 quilômetro abaixo de nós, quandopassamos por grupos de casas circulares co-bertas com sapé e cercadas por muros baixosde pedra e moitas de margaridas. Em ambosos lados do desfiladeiro, o terreno se elevavaem vastas encostas com terraços. Cada pedaci-nho de terra plana era recoberto por áreas cul-tivadas que rebrilhavam ao sol com seus tonsverdes e dourados. Em muitos desses campos,pequenos grupos de homens, mulheres ecrianças, de cócoras, arrancavam laboriosa-mente o mato com as mãos, fileira por fileira.Alguns nos olhavam espantados. Outros nos

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cumprimentavam, inclinando o corpo três ouquatro vezes, com rapidez. Um camponês pa-rou sua junta de bois, largou o arado, correuaté a beira do campo e estalou o chicote. Am-pliando então a voz com as mãos em concha,anunciou aos gritos nossa chegada, para que anotícia alcançasse seus vizinhos vale abaixo.Outros se aproximaram ansiosos para nos ofe-recer grossas fatias de injera (pão) ou nos con-vidar para um café em suas casas.

"Tenaistellegnl" (Que Deus lhes dê saúdel),gritávamos para todos, como havíamos apren-dido com nossos guias. "Endernen adderache-hu!" (Bom dia para vocêsl) Mesmo assim,alguns tremiam de medo com a nossa presen-ça. Uma jovem adolescente, carregando umjarro de água nas costas, simplesmente caiu emprantos. "Ela nunca tinha visto uma pessoabranca", explica depois nosso intérprete, Zela-lem Abera Woldegiorgis. Rapaz decidido, Zela-lem já percorrera todo o país como guia e sabiacomo acalmar os temores da moça. Pegou suamão com delicadeza, falou com ela em voz bai-xa, garantiu que tínhamos boas intenções e ex-plicou que a cor da nossa pele não era umadoença contagiosa. "Nós só conhecíamos [e-renjocch em fotografias. Gente com os intesti-nos, o estômago, o coração saindo para fora",conta Atele Asseras, chefe da aldeia de Genet

OS MEMBROS da expedição foram bemrecebidos nas muitas aldeias gumuzes(ao lado). Como raramente recebem visitas, osnativos ficaram espantados com a aparênciaestranha dos estrangeiros. U A curiosidadedeles foi cativante", diz o remador BruceKirkby (abaixo). "Nada podia impedi-Ios deinspecionar cada centímetro do nosso corpo!"

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"Ouvi o tropel dos burros perto da barraca.Veio então o clarão e o disparo de uma Kalaskmikov:"

Yamaryam. Ele se referia às fotos de soldadositalianos mortos feitas durante a ocupação daEtiópia, cerca de 60 anos atrás. "Nunca tínha-mos visto um estrangeiro de tão perto."

Agora, porém, a casinha de taipa de Atele es-tava cheia de ferenjocch, já que cinco de nósaceitamos seu convite para tomar café. Senta-mos em bancos baixos de madeira enquantosua mulher torrava punhados de grãos de café.Uma fragrância deliciosa tomou conta do ar.

Atele não foi o primeiro etíope a nos falarsobre os italianos. Estava claro que ninguémhavia esquecido aquele amargo período da his-tória do país. Mais de uma vez tivemos de apa-ziguar grupos de homens armados que nosolhavam com suspeita, garantindo-lhes quenão fazíamos parte de nenhum exército inva-sor. "Eu reconheci um de vocês",continua Ate-Ie, indicando o barqueiro, Michael Speaks, queestivera na região em 1996. "Eu o vi passandono barco e pensei que os italianos haviam vol-tado para nos invadir. Cheguei a enquadrarvocê na mira do meu rifle': completa, apontan-do para a Kalashnikov encostada na parede."Estava pronto para disparar, mas aí você ace-nou para mim." Demos boas risadas e toma-mos nosso café - e também decidimos acenarpara toda pessoa que encontrássemos.

p(GUNSSONS são capazes de nos desper-tar num mstante - a pessoa senteque algo está errado antes mesmode estar completamente acordada.

Entre as névoas da minha mente adormecida,ouvi primeiro o tropel dos burros passandopela barraca. Sentei na cama e logo ouvi o gri-to e a correria dos homens. Veio então o clarãoe o disparo de uma Kalashnikov. Um tiro. De-pois outro. Mais um. Deitei-me no chão dabarraca, com O coração aos pulos. Mais dois ti-ros ecoaram pela noite. A primeira reação, paratodos, foi pensar que estávamos sendo ataca-dos pelos shiftas. Começamos a gritar, cada umde sua barraca, desesperados. "Foi apenas umladrão de burros", anuncia Zelalem. O gatunoconseguiu escapar, de mãos vazias.

Pela manhã, os moradores da aldeia próxi-ma queixaram-se de que nossos homens não

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haviam matado o ladrão. "Com certeza não édaqui. Entre nós não há bandidos", juravam.Outro homem, de turbante azul e brinco de pi-rata na orelha, anunciou: "É mais provável queseja um espírito. Um demônio do Gihon quetomou a forma de um ladrão. É por isso quevocês não conseguiram acertar nenhum tiro".

Gihon é mais um nome dado pelos etíopespara o Nilo Azul, e que também tem fortes co-notações bíblicas. Para os moradores das al-deias locais situadas à beira do desfiladeiro, oNilo era um dos quatro rios que jorravam doJardim do Éden no princípio do mundo. Era orio que, no livro do Gênesis, é mencionadocomo "abrangendo toda a terra da Etiópia" Emsuas águas vivia um rei também chamado Gi-hon. "Há noites em que ele sobe à superfície,com todas as suas luzes", conta uma mulhercom um xale branco no cabelo. "Se nesse mo-mento ele vir alguém, pode atacar. Por isso épreciso olhar para o outro lado." Também ha-via pequenos diabos nas profundezas daságuas. Seres capazes de mudar de forma, talcomo o ladrão de burros.

Passamos a manhã inteira descendo poruma trilha íngreme que nos levou de volta àsmargens do Nilo Azul, junto à segunda dasduas velhas pontes de alvenaria. Por causa dapresença de missionários portugueses na re-gião desde o século 17, seu nome original é Se-gunda Ponte Portuguesa. Mas, em 1935, ospatriotas etíopes destruíram o arco do meiopara tentar deter o avanço dos italianos. Porisso, ela é conhecida hoje simplesmente comoponte Quebrada. Continua sendo usada, maspara cruzar o rio os viajantes dependem deuma corda grossa e de homens fortes para se-rem puxados de um lado a outro do rio.

Enquanto carregávamos nossos barcos paraa jornada até a fronteira do Sudão, percebemosum fluxo constante de moradores atravessan-do o rio. Suspensos pela corda, eles deslizavamcom as pernas balançando sobre as corredei-rasoDepois de atravessar, alguns tiravam a rou-pa e se sentavam dentro de um rodamoinho norio, enquanto outros jogavam água sobre suacabeça. "Estão sendo batizados', diz Zelalem."E depois vão levar água benta para a família."

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Nossa atividade nas margens transtornou ocotidiano tranqüilo do lugar. As pessoas fica-ram deslumbradas com duas visões inéditas:gente branca e barcos no ilo Azul. "Parecemaviões", opina um miliciano atarracado, KassaMongenet, sobre nossos barcos a remo. Havía-mos nos despedido de nossos guias e carrega-dores na ponte, mas contratamos Kassa - e suaKalashnikov, é claro - para fazer parte do nos-so grupo. Ele disse que sabia nadar. Também ti-nha certeza, contudo, de que muitos demônioshabitavam o rio. Desconfiado, examinava aten-tamente as águas barrentas e revoltas.

A caminho do Sudão, levamos uma semanapara percorrer a primeira parte do rio, um tre-cho de 190 quilômetros desde a ponte Quebra-da até a ponte Abay. É impressionante pensarque, na virada do século 21, conseguimos fazeressa expedição num rio tão grande e vigorosocomo o Nilo Azul. Quase todos os rios simila-res do mundo há muito foram represados oudesviados para a irrigação. Porém, com exceçãode um pequeno conduto abaixo das cachoeiras

-de Tis Isat, que canaliza parte do rio para umausina hidrelétrica, o Nilo Azul segue ininter-rupto, intocado, até atravessar a fronteira. Narepresa de Roseires, que fica já no Sudão, o flu-xo contínuo do rio enfim é detido. Suas águassão aprisionadas num imenso e indolente re-servatório. Depois da represa, o Nilo Azul con-tinua seu caminho errante, vagando pelasquentes e áridas planícies sudanesas por mais480 quilômetros, até chegar à confluência como Nilo Branco na cidade sudanesa de Cartum.Os dois então unem suas forças, transforman-se no grande Nilo, e rumam para o mar Medi-terrâneo, a 3 mil quilômetros de distância.

EM LUTA CONTRA A CORRENTEZA,mercadores transportam cabras de umamargem a outra, num ponto do Nilo Azulem que a força das águas impede a presençados crocodilos. Não há comércio organizadoao longo do rio. Por isso, esses negociantescompraram as cabr-as para depois lucrar coma venda nas aldeias da região de Gojam.

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~----------------~~------------------------~~--------------~----------------------------.Dos dois rios, o Branco é o mais conhecido e

talvez o mais revestido de uma aura romântica.Em parte isso se deve ao mistério da sua nas-cente, que só foi descoberta em 1862. Havia sé-culos os etíopes consideravam a fonte domonte Gishe o ponto inicial do Nilo Azul. Em1618 eles conduziram um padre jesuíta, PedroPáez, até a mesma campina lamacenta que visi-tei. A nascente, entretanto, sempre foi a únicaporção que o Nilo Azul deixou explorar comfacilidade. Os etíopes das montanhas raras ve-zes se aventuram por seu estreito desfiladeiro,temendo o calor, a malária e os maus espíritos.

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EPOR ISSO QUE, nos mapas, seu cursolimitou-se a uma linha pontilhadaaté o final da década de 20, quando omajor R.E. Cheesman, cônsul britâ-

nico, começou a explorar o rio. Pôr um barcono Nilo era uma hipótese fora de cogitação. Al-gumas tentativas haviam sido feitas, mas osbarcos arrebentavam-se nas corredeiras cheiasde pedras. Em vez arriscar-se num barco,Cheesman decidiu mapear o rio a pé e em lom-bo de mula, numa tarefa que lhe consumiu oitoanos. Sua esperança era poder viajar sempre aolado do rio, mas logo descobriu que isso eraimpossível: as montanhas e as paredes verticaisdo desfiladeiro do Nilo Azul eram muito íngre-mes. Assim, resignou-se a acompanhar e traçaro curso do rio a partir dos planaltos, seguindopela margem do rio apenas quando era possí-vel chegar até ela.

A primeira vez que alguém conseguiu descerde barco uma distância considerável do NiloAzul foi há cerca de 50 anos. E só em 1968 umaequipe finalmente percorreu todo o curso dorio na Etiópia. Mesmo este último grupo, lide-rado por um explorador britânico, coronelJohn Blashford-Snell, foi obrigado a dividir orio em trechos, descendo a parte inferior doAbay no final da estação das chuvas e, em se-guida, retomando ao desfiladeiro superior de-pois que o nível das águas baixou. Desde então,alguns outros grupos já conseguiram navegartrechos determinados do rio.

Apesar dos relatos desses exploradores an-teriores, não sabíamos com certeza a localiza-ção e o grau de perigo das corredeiras queteríamos de enfrentar, especialmente na épocadas cheias. Assim, fomos obrigados a redobrarnossa atenção sobre o ilo Azul. os primeiros20 quilômetros da aventura, o próprio rio luta-

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va para atravessar um estreito desfiladeiro. Ogrande volume de água aprisionado num espa-ço exíguo explodia continuamente em ondasrevoltas. Essas pequenas seqüências de corre-deiras sempre acabavam numa série de roda-moinhos profundos, que sugavam nossos barcose os faziam despencar girando pela correnteza.Não podíamos fazer nada. O rio parecia estarmandando um recado: era capaz de nos apa-nhar a qualquer momento e brincar comnossos barcos como se fossem patinhos de ba-nheira. Desconfiado das águas escuras e revol-tas, Kassa examinava o caminho como se fossea passagem para o inferno. Mas era dia claro,com o céu azul acima dos paredões do cânione, se é que o Nilo de fato abrigava maus espíri-tos, eles decidiram nos deixar passar.

Parecia muito mais provável que os perigosviessem do alto do cânion. Éramos um alvo fá-cil para qualquer pessoa mal-intencionada queestivesse de tocaia. Várias histórias nos assusta-vam. Em 1968, por duas vezes a equipe do co-ronel Blashford-Snell trocou tiros com shiftasque, à noite, se aproximavam furtivamente doacampamento. Os exploradores foram força-dos a embarcar em plena escuridão e descer àscegas as corredeiras do cânion. Um americanoque percorreu a pé todo o desfiladeiro haviadesaparecido. Outros remadores foram atingi-dos por pedradas de atacantes invisíveis. E o

UM SACERDOTE AMHARA posa diantede uma imagem de São Rafael (páginaoposta I, no mosteiro da ilha de Oek, no lagoTana. No século 16, os arnharas, de fé cristã,detiveram o avanço de invasores pagãos noNilo Azul. Acima, um homem da etnia boranalê o Corão. Seus ancestrais estabeleceram-seperto do rio e converteram-se ao islamismo.

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No fundo do cânion, os barcos da expediçãoeram um alvo fácil para qualquer miliciano desconfiado.

nosso barqueiro, Michael Speaks, quase levaraum tiro. Diante disso tudo, qual seria a reaçãodos nativos ao ver três barcos descendo o riocom oito estrangeiros brancos a bordo?

Por sorte, um primeiro aviso minimizou nos-sos temores. Avistamos um grupo correndo nabeira do cãnion, dançando e batendo palmaspara nos incentivar: "Konjo! (Que belezal), Go-bez! (Que corageml), Melkam gouzo! (Boa via-geml)" Seus gritos nos acompanharam rioabaixo durante vários quilômetros. Essa tor-rente de boa vontade e inocência, totalmenteinesperada, deixou nosso grupo envergonhado.

Onde estavam os tiros, as pedradas, os ladrões?Como explicou Zelalem, nossa viagem era umanovidade para aquela gente do interior. Os na-tivos nunca iriam se esquecer de nós.

Naquele dia viajamos cerca de 25 quilôme-tros rio abaixo, acompanhando o Nilo Azul emseu caminho tortuoso pelo cânion. Centenasde riachos e cachoeiras desciam pelos paredõesaté o rio. Ao longo desses fios d'água, brotavammoitas emaranhadas de samambaias e altosjuncos verdes. Em contraste, a rocha nua do câ-nion parecia árida e áspera - não é à toa que os .etíopes das montanhas chamam de "deserto" o

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fundo do desfiladeiro. Às vezes, passávamospor largos bancos de areia clara e num delesavistamos o nosso primeiro crocodilo.

No dia seguinte, o cânion começou a se alar-gar. Sempre remando, passamos por duas altasformações de basalto escuro que se elevavamdo rio como chaminés em ruínas. Logo depoisentramos num cenário completamente distin-to. Em ambas as margens o rio escavara largosplanaltos em degraus, separados por faixas dearenito vermelho e calcário amarelado. Emtodo e qualquer pedacinho de terra plana, pos-sível de ser cultivada, havia plantações de pain-ço, milho e sorgo. Mas não vimos nenhumaaldeia. As poucas pessoas que encontramos nosexplicaram que suas casas ficavam mais paracima, no topo dos planaltos, a uma distância detrês ou quatro horas de caminhada. Nesses lu-

COM AS CHUVAS, o Nilo Azul ganhavolume rapidamente. Por isso, em algunstrechos, os barcos (acima) foram lançadossobre rochedos. Apesar do temor dosbandidos, a expedição só encontrou homensarmados nas aldeias. São grupos formadospelo governo para levar a lei e a ordem auma região antes isolada e selvagem (ao lado).

gares mais altos, o clima é mais fresco e são ra-ros os mosquitos transmissores de malária.

Enquanto o Nilo Azul rumava veloz para osul, outros rios vinham juntar-se a ele. As águasdespencam por desfiladeiros íngremes, passampor canais pedregosos e depois desembocamno rio principal, aumentando-lhe a força e ovolume. Para compensar o balanço das ondas,avistamos garças-vermelhas-gigantes (Scopusumbretta) e imponentes águias-pescadoras, to-das ocupadas em garantir a próxima refeição.Andorinhas-de-cauda-afilada (Hirundo smt-thii) e martins-pescadores (Alcedo semitorqua-ta) passavam rente ao rio, com suas penas azulbrilhante reluzindo ao sol, enquanto bandos debabuínos e macacos-vervet (Cercophitecus ae-thiops) corriam pelas margens.

À noite, procurávamos lugar para acamparem trechos onde o leito do ilo se abre e formapraias de areia. Embora estivéssemos distantesde qualquer aldeia, muita gente vinha nos visi-tar - em geral homens. Éramos mais visíveispara os moradores da margem oposta. Para al-cançar nossos acampamentos, eles desciam odesfiladeiro e procuravam um tronco de árvo-re para usar como bóia. Tiravam então a roupae atravessavam o rio a nado - uns bons 90 me-tros - batendo os pés e agarrando-se ao troncocomo se fosse uma pequena prancha de surfe.

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Foi assim que conhecemos Melese Menesha,médico do posto de saúde de Mertule Maryam,uma aldeia tão distante no planalto que nemconseguíamos avistá-Ia. Magro e pequeno, comzigomas salientes e cabelo negro encaracolado,Melese contou a razão de sua visita em voz bai-xa, enquanto se aquecia junto à fogueira doacampamento. Ele revelou que, embora nuncativesse visto um estrangeiro, decidira nos visi-tar porque ouvira dizer que os brancos têm ex-celentes remédios. Queria descobri-los.

INFELIzMENTE NOSSO GRUPO não dis-punha de novos conhecimentos ou re-médios milagrosos para oferecer aocurioso visitante. E, depois que Melese

explicou o que faz - distribui anticoncepcio-nais e comprimidos para dor de cabeça e aplicainjeções de quinino nos doentes de malária-,ficou claro também que ele tinha muito maistreinamento médico do que nós, além de ummelhor estoque de remédios. Possuía tambémum rádio, em sua casa na aldeia, e nos infor-mou das últimas notícias da guerra entre aEtiópia e a Eritréia. Zelalem e Kassa ouviamtudo, abanando a cabeça em desalento.

Melese partiu ao amanhecer, voltando aatravessar o ilo com vigorosas batidas dospés. "É um homem de idéias progressistas,mesmo morando num lugar tão remoto", dizZelalem com admiração. Eu estava pensando omesmo e fiquei perturbada ao ver como está-vamos mal preparados para encontrar pessoasbem-intencionadas ao longo do Nilo Azul. Es-perávamos cruzar com bandidos e nativos ati-rando lanças. Jamais com paramédicos queacompanhavam as notícias pela BBC.

Com o tempo, homens como Melese Menes-ha decerto vão trazer muitas mudanças ao NiloAzul. Muitos outros nativos que encontramos,porém, como os mercadores de gado, conti-nuam levando uma vida semelhante à de váriosséculos atrás. Hoje, como sempre fizeram, oscomerciantes das aldeias na região de Gojamcruzam o Nilo em bóias de madeira ou de cou-ro de cabra, depois sobem a pé pelos planaltosaté os mercados na região de Borana. Ali com-pram cabras, burros, cavalos e vacas a bom pre-ço e conduzem os animais até o rio, fazendo-osatravessar a nado até o outro lado. Para eles, oNilo Azul é apenas um obstáculo irritante.

Observando um desses homens atravessar orio a nado, segurando, ao mesmo tempo, pela

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FURAR O NARIZ e fumar cachimbo sãoantigos hábitos dos gumuzes (acima e páginaoposta). No passado, para escapar demercadores de escravos, eles fugiram paraas terras úmidas e infestadas de malária quemargeiam o Nilo Azul. Hoje, o governo estálevando o progresso à região, com escolas,postos de saúde e novas técnicas agrícolas.

cabeça suas três cabras acima das ondas, fiqueide novo impressionada com o uso limitadoque os povos das montanhas fazem de todaessa imensidão de águas. Embora uma equipede engenheiros etíopes e americanos tenha tra-çado planos para vários reservatórios e proje-tos de irrigação, há 40 anos, nenhuma obra foisequer iniciada, devido ao alto custo e aos obs-táculos políticos. Com isso, os agricultorescontinuam dependendo apenas da chuva.Quando a água é muito escassa, eles são obri-gados a contemplar suas plantações de milho ecevada morrendo, enquanto logo abaixo aságuas do Nilo jorram com força. "Há um pro-vérbio sobre isso", comenta Zelalem. "No ve-rão, o Abay lavra a terra com bois negros, masonde semeia milho só nasce pimenta." Tal comomuitos outros pensamentos etíopes, esse tem

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o PEQUENO ABAY une-se a outros riosafluentes para alimentar o maior lagoda Etiópia (página oposta). Os moradores daaldeia oferecem ao rio galinhas e araki, numritual mais antigo que o cristianismo (acima).Às vezes o rio irriga as plantações. Em outrasocasiões, inunda as casas. Os etíopes,apesar de tudo, sempre buscam sua bênção.

vários níveis de significado, mas de maneira ge-ral sua mensagem é clara. "O ilo leva emboranosso solo fértil e nada nos dá em troca", com-pleta Zelalen. Por quê, perguntam os campo-neses, o rio não pode retardar seu curso, passarmais lento ao longo de suas terras?

DEPOIS DAS DUAS modernas pon-tes de concreto, 240 quilômetrosabaixo de onde estávamos, o NiloAzul faz uma curva para o oeste,

rumo ao Sudão, e enfim oferece aos campone-ses aquilo de que precisam: uma terra saturadade água e de ricos nutrientes na camada supe-rior do solo. Pouco além desse trecho, aindacavalgando em suas ondas, entramos nos am-plos vales dos gumuzes, um povo que tem apele muito negra e lustrosa e um rosto largo detraços delicados. Até por volta de 1930, os gu-muzes sofriam um bocado nas mãos dos etío-

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pes montanheses, que atacavam suas terras embusca de escravos e do precioso marfim daspresas de elefante. Hoje os elefantes quase de-sapareceram, vítimas da caça excessiva, e rarasvezes avistamos hipopótamos ou crocodilos.Muita gente da etnia gumuz vive à beira do rio,cultivando sorgo e algodão e criando gado.

Nossa presença, mais uma vez, provocoualarme geral e instantâneo. As crianças corre-ram aterrorizadas para longe das margens, asmulheres fugiram para os campos de sorgo e oshomens agarraram suas inseparáveis Kalashni-kov, prontos para enfrentar os forasteiros."Corram, depressa!", grita um grupo de crian-ças para os pais. "Tem algo enorme voandopelo rio!" A recepção, contudo, foi cordial- omaior motivo de susto, segundo eles, foram oslongos remos entrando na água em círculos,que faziam nossos barcos parecerem enormesgansos batendo asas. Mais: para os gumuzes,nossos olhos pareciam de gato. E os cabeloslembravam a pelugem de um babuíno ou deuma cabra. Brincando, um homem advertiuZelalem, cuja pele tem cor de mel: "Cuidado!Você está começando a desbotar como eles':

Alguns camponeses que plantavam feijãona beira do rio largaram suas enxadas e corre-ram para casa.Voltaram trazendo exóticos ins-trumentos musicais, como trombetas feitas de

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bambu e cabaças. Para tocá-Ias, os homens e osgarotos inflavam as bochechas como um trom-petista de jazz e, depois, soltavam todo o ar deuma vez só, produzindo sons muito próximosaos de trompetes, trombones, clarins e saxofo-nes. "É uma canção': explica nosso guia gumuz.A letra tinha um tema universal: "Minha garo-ta tem seios grandes e uma bunda grande ... Elaé a mais bonita, a melhor de todas". Quandoperguntamos se tinham alguma canção sobre o

DOIS HOMENS NAVEGAM pelo lago Tanaem barcos de papiro tankwas. Quando deixao lago, o Nilo Azul torna-se violento e começauma longa viagem até encontrar-se como Nilo Branco em Cartum, no Sudão, e formarentão o grande rio Nilo. Adorado e temidopelos etíopes, o Nilo despeja suas águasrevoltas no coração dessa terra antiquíssima.

Nilo Azul, eles nos olharam espantados. "Ora,o rio é o rio e nada mais': explicam. Lá dentronão há demônios nem reis nem deuses. Os gu-muzes chamam o rio pelo mesmo nome usadopelos montanheses, Abay, mas ali os espíritosmaus já abandonaram suas águas. Talvez por-que o rio lhes dê água e terra fértil.

Nem por isso estávamos livres de perigos rioabaixo. Certa manhã, ao acordar, notamos umgrande grupo de homens armados na outramargem. Um deles nos acenou com uma ban-deira branca, enquanto os outros gritaram queprecisávamos parar e lhes mostrar nossas per-missões de viagem. Havia uns 25 milicianos, al-guns de uniforme cáqui, outros com paletópuído. Muitos traziam no rosto marcas e cica-trizes tribais. Todos pareciam tristes, temendoque estivéssemos levando armas para alguém.E quem era Zelalem? Para eles, talvez um es-

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tréia se esse país ficava para o norte, e nós sópodíamos viajar rio abaixo? Além disso, ele, talcomo os milicianos, era etíope e patriota.

Aos poucos os semblantes carrancudos fo-ram desaparecendo. Um deles pediu para serfotografado. Depois, outros milicianos come-çaram a brincar, tentando conseguir o melhorângulo e a pose mais feroz. Estava tudo bem.Quando voltamos ao rio, eles nos acompanha-ram pela margem, acenando em despedida.

Durante a maior parte da viagem, o NiloAzul espumava sob nossos barcos. Ao chegarao Sudão, porém, o rio tornou-se lento, pregui-çoso. Estávamos a quase 65 quilômetros da re-presa de Roseires, mas ela já tinha aprisionadoo rio. Seu espírito vivaz e brincalhão desapare-cera. Não havia mais demônios em suas pro-fundezas nem trechos revoltos. Ao tirarmos osbarcos da água, na cidade fronteiriça de Bum-badi, demos adeus a um rio tão plácido e do-mesticado que o apelidamos de "lago" Abay.

"ONilo Azul ficou surpreso coma oferendainesperada. Ele estáfeliz. E vai abençoar a sua jornada. ))

pião da Eritréia, disfarçado. Nossa pilha de sal-vo-condutos não os deixou satisfeitos. Um su-jeito de turbante, com a Kalashnikov nosbraços, fez cara feia e dispensou nossos papéis,dizendo que era melhor segui-los até o quartel-general- a 6 horas de caminhada dali!

Começava a cair uma chuva forte e gelada. Aperspectiva de caminhar até o longínquo postopolicial nos fez ficar tão infelizes como nossosanfitriões. Só fomos salvos pela habilidade di-plomática de Zelalem. Ele escutou com paciên-cia todos os temores e queixas dos homens edepois lhes explicou em detalhes a nossa via-gem. Como poderíamos estar ajudando a Eri-

VOLTEI MAIS tarde ao lago Tana comdois guias, num giro solitário pelaEtiópia. Consegui um barco e atra-vessei o lago até a foz do Pequeno

Abay, o Pequeno Nilo Azul, o riacho que correda nascente simbólica do Nilo, no monte Gishe.

Embora naquela época do ano não fossecostumeiro oferecer sacrifícios ao Nilo Azul,perguntei se era possível abrir uma exceção.Os aldeões concordaram e comprei deles café,uma garrafa de araki (uma bebida alcoólica),três galinhas e um carneiro. Tudo foi ofertadoao rio numa cerimônia simples. Ao ver que ascarcaças das galinhas e os intestinos do carnei-ro flutuavam, em vez de afundar, todos sorri-ram. "É um bom sinal", explica um homemidoso. "O rio ficou surpreso e feliz com a ofe-renda inesperada. E vai abençoá-Ia." Sentadacom alguns aldeõesna margem do rio edegustando um típicobanquete de carneiroe galinha, eu sorri aopensar na minha sortee nessa última bênçãodo Nilo Azul. O

~ MAIS EM NOSSO SITE

A fotógrafa Nevada Wier

registrou outras imagens dos

nativos e das paisagens do

inóspito interior da Etiópia.

Elas estão em www.national

geographicBR.com.brj0012

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