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trankhue
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N 5 janeiro-junho de 2016
ISSN 2319-0698
Editora Responsvel
Renata dos Santos Ferreira
Editor Assistente
Thiago Cavaliere Mourelle
Reviso e Diagramao
Renata dos Santos Ferreira
Capa
Adriana Cox Holls
Renata dos Santos Ferreira
Conselho Editorial
Adriana Cox Holls
Carlos Frederico Coelho da Silva Bittencourt
Leonardo Augusto Silva Fontes
Luiz Salgado Neto
Renata dos Santos Ferreira (Presidente)
Rodrigo Aldeia Duarte
Thiago Cavaliere Mourelle
Conselho Consultivo
Alex Alexandre Molinaro (Fiocruz)
Aluf Alba Vilar Elias (UFRJ)
Brenda Couto de Brito Rocco (Arquivo
Nacional)
Biancca Scarpeline de Castro (UFRRJ)
Cndida Fernanda Antunes Ribeiro (Univ. do
Porto)
Carlos Fico da Silva Jnior (UFRJ)
Ceclia Maria Bouas Coimbra (GTNM-RJ)
Cibele Vasconcelos Dziekaniak (FURG)
Ciro Marcondes Filho (USP)
Daniel Flores (UFSM)
Dnis Roberto Villas Boas de Moraes (UFF)
Diego Barbosa da Silva (Arquivo Nacional)
Fbio Koifman (UFRRJ)
Francisca Deusa Sena da Costa (TRT 11 Regio)
Helosa Esser dos Reis (UFG)
Izabel Cristina Gomes da Costa (UCAM)
Jane Felipe Beltro (UFPA)
Jos Maria Jardim (UNIRIO)
Juliana Fiza Cislaghi (UERJ)
Karla Guilherme Carloni (UFF)
Ktia Maria Ribeiro Motta (Pedro II)
Leandro Jos Luz Riodades de Mendona (UFF)
Lia Ramos Jordo (Biblioteca Nacional)
Lvio Sansone (UFBA)
Lcia de Ftima Guerra Ferreira (UFPB)
Luciana Quillet Heymann (FGV-RJ)
Luclia Maria Sousa Romo (USP)
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (UERJ)
Mara Torres Corra (IPHAN)
Marcelo Badar Mattos (UFF)
Mira Lini Marconsin Caetano (UFF)
Orlando de Barros (UERJ)
Paulo Cavalcante de Oliveira Jnior (UNIRIO)
Paulo Victor Leite Lopes (UFRJ)
Rafael Simone Nharreluga (Arquivo Histrico de
Moambique)
Rosanara Pacheco Urbanetto (UFSM)
Sylvia Debossan Moretzsohn (UFF)
Vera Lcia Boga Borges (UNIRIO)
Victria Lavnia Grabois Olmpio (GTNM-RJ)
Vinicius Mitto Navarro (SEDUC-RS)
Viviane Gouva (Arquivo Nacional)
ACESSO LIVRE uma publicao eletrnica
semestral da Associao dos Servidores do
Arquivo Nacional ASSAN.
Diretoria binio 2015-2016
Presidente: Eduardo de Oliveira Lima
Vice-presidente: Ana Carolina Reyes
Secretria: Helba Maria da Silva Mattos Porto
de Oliveira
Tesoureiro: Leandro Hunstock Neves
Suplentes: Carlos Frederico Coelho da Silva
Bittencourt e Bruno Duarte dos Santos
Praa da Repblica, 173, bloco E, trreo
Centro Rio de Janeiro RJ CEP 20211-350 Tel.: (55-21) 3203-5885
https://revistaacessolivre.wordpress.com
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
2 Sumrio
Apresentao .............................................................................................................................. 3
Luiz Salgado Neto
Dossi Crises no Brasil e no Mundo Contemporneo
1. Crise do trabalho hoje: desenvolvimento tecnolgico, instabilidade do emprego
e crise do capitalismo ................................................................................................................. 6
Maurilio Lima Botelho
2. Interdependncia temporal e sintomas crsicos: Uma anlise da ideia de crise no
pensamento histrico contemporneo ...................................................................................... 25
Gabriel Fernandes Barbosa Sanchez
3. O fenmeno da crise na Zona do Euro (2008-2010) ................................................................ 39
Maria de Ftima Silva do Carmo Previdelli
4. Crise econmica: fatos em uma histria de valores-notcia no jornalismo brasileiro .............. 73
Maria Lcia de Paiva Jacobini
5. A outra face da crise: a importncia do setor do saneamento no contexto
da escassez hdrica .................................................................................................................... 88
Renata de Souza Leo, Mariana Gutierres Arteiro da Paz e Juliana Cassano Cibim
6. Migrao haitiana para o Brasil: problemtica e perspectivas .............................................. 106
Viviane Mozine Rodrigues e Vinicius Francisco Marchese
7. Experincia de liberdade e tentativas de normatizao no Rio de Janeiro recentemente
emancipado da escravido e republicano ................................................................................ 125
Alline Torres Dias da Cruz
8. A educao ambiental na crise ecolgica contempornea .................................................... 146
Antonio Soler e Eugnia Antunes Dias
Artigos Livres
9. Contribuio integrada entre gesto documental e inteligncia competitiva
nas organizaes ..................................................................................................................... 165
Las Pereira de Oliveira
10. Acessando o passado e redescobrindo a Marinha Imperial: o projeto descrio
dos documentos da Secretaria de Estado e Negcios da Marinha no sculo XIX ....................... 187
Wagner Luiz Bueno dos Santos
11. O serto brasileiro e o conceito de civilizao e barbrie no imaginrio
social do sculo XIX ................................................................................................................. 200
Cesar Augusto Neves Souza
12. Jos Honrio Rodrigues: uma historiografia para o tempo presente ................................... 214
Luiz Antonio Albertti
Resenha
13. Por uma nova experincia do tempo moderno ................................................................... 237
Giselle Pereira Nicolau
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
3 Apresentao
com grande prazer que apresentamos mais uma edio da Revista Acesso
Livre. Dando continuidade ao nosso propsito de refletir de forma crtica sobre o Brasil
e o mundo, trazemos ao nosso pblico leitor um dossi dedicado a uma pauta que tem
ocupado as manchetes da grande mdia e dominado anlises acadmicas e debates
polticos neste momento: crise.
No h quem no seja atingido pela torrente de reportagens na imprensa e por
uma profuso de anlises sobre a crise econmica no Brasil. Em geral, analistas e
jornalistas sugerem que a crise vivida pelos brasileiros uma das mais graves pelas
quais o pas j passou. Tendo essa percepo em mente, apresentam tendncias e as
mais variadas sugestes de como poderamos sair dessa condio indesejvel. No
entanto, por mais diversificadas que sejam, a maioria das anlises carece de
profundidade e no se sustenta diante de uma reflexo crtica.
Por outro lado, a noo de que o Brasil e o mundo vivem em constante estado de
crise tem mostrado que os campos a que o termo se aplica ultrapassam em muito os
limites de uma crise puramente econmica. So apontadas crises em variados mbitos:
crise poltica, crise de representatividade, crise de confiana...
Alm disso, saindo do mundo poltico e econmico e adentrando a esfera
acadmica, muitos analistas avaliam que vivemos em um tempo de crise em certos
campos de conhecimento. Tais crises ocorrem em disciplinas h muito estabelecidas que
devem, em um momento de questionamentos sobre seus fundamentos, dar respostas e
demonstrar sua efetividade em interpretar e explicar uma esfera da realidade humana.
Nesse sentido, diante da disseminao da noo de crise, o propsito dessa
edio ampliar o olhar e ultrapassar as barreiras temporais, geogrficas e temticas.
Isto , apresentar crises que ocorreram na poca contempornea desde fins do sculo
XVIII e no apenas no nosso presente mais imediato; no mundo e no apenas no
Brasil; e nas mais variadas esferas no apenas na economia.
Ao propormos anlises, discusses e reflexes sobre as Crises no Brasil e no
mundo contemporneo, desejamos levantar um debate sobre variados processos de
crise e sobre como somos levados a enxergar crises especficas. O objetivo pensar
sobre outras crises para que no aceitemos sem questionar no que divulgado na grande
mdia ou nas anlises de especialistas.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
4 Com isso, o presente dossi caracterizado por um olhar plural e abrangente,
que retira o foco excessivo que tem sido dado crise econmica no Brasil, nos levando
a enxergar que as crises so parte do mundo contemporneo. Assim, esse dossi conta
com contribuies valiosssimas, que contemplam um campo amplo de temas.
Em uma dessas contribuies, podemos contar com uma anlise apurada sobre a
crise do trabalho. Em seu artigo, Maurilio Lima Botelho busca articular sua discusso
ao debate mais profundo sobre a crise da prpria sociedade do trabalho. J Maria de
Ftima Silva do Carmo Previdelli discute a crise na Zona do Euro e como as propostas
de soluo calcadas em medidas austeras se encaminham ao desmonte das estruturas de
proteo ao trabalhador nos pases mais frgeis da Zona do Euro. O dossi conta
tambm com uma contribuio de relevo para o debate sobre o prprio conceito de
crise, no artigo de Gabriel Fernandes Barbosa Sanchez, em que o autor analisa o
conceito de crise na disciplina histrica tal como difundida na segunda metade do
sculo XX.
Por outro lado, to importante quanto analisar crises em si a discusso a
respeito de como uma crise noticiada. Esse debate est presente no artigo de Maria
Lcia de Paiva Jacobini, em que a autora analisa como o jornalismo brasileiro percebeu
a crise econmica mundial. Para compor sua anlise, a autora se vale de reflexes
tericas sobre como fatos se tornam notcias e sobre a presena da economia no
jornalismo, alm de dialogar com pensadores que refletiram criticamente sobre o
contexto de crise.
O dossi conta tambm com uma anlise importantssima sobre a crise hdrica
que tem acometido partes do estado de So Paulo nos ltimos anos. Ampliando as
discusses sobre a escassez hdrica, Renata de Souza Leo, Mariana Gutierres Arteiro
da Paz e Juliana Cassano Cibim discutem o assunto pela perspectiva do saneamento,
ressaltando a importncia da elaborao de polticas pblicas voltadas a garantir o uso
sustentvel da gua.
J o artigo de Viviane Mozine Rodrigues debate um tema de grande importncia
humanitria e que requer um posicionamento decidido por parte de autoridades e da
sociedade civil brasileira. A autora discute a migrao haitiana para o Brasil em um
contexto de crise generalizada no Haiti poltica, econmica, ambiental e humanitria
e a integrao problemtica dos haitianos recm-chegados ao Brasil.
Por sua vez, o artigo de Alline Torres Dias da Cruz aborda os problemas
habitacionais que acometiam a populao mais pobre do Rio de Janeiro no incio do
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
5 sculo XX, no que se constitua em uma grave crise social e sanitria na cidade. A
autora analisa as diversas formas de construir e modos de morar no Rio de Janeiro logo
aps o fim da escravido e instituio da Repblica, abrindo uma discusso sobre as
ideias e prticas de saneamento da capital do pas.
J o Antonio Soler e Eugnia Antunes Dias chamam a ateno para a crise
ecolgica enquanto consequncia de uma percepo arraigada sobre a necessidade de
um crescimento econmico ilimitado. Os autores apresentam uma discusso relevante
sobre como o mercado capitalista dialoga com uma situao de crise para expandir-se,
por meio de variados mecanismos de adaptao.
Por fim, alm do dossi que contempla um vasto repertrio de anlises e
abordagens, essa edio de Acesso Livre conta tambm com artigos livres
interessantssimos, que debatem questes de diferentes reas do conhecimento.
Boa leitura a todos!
Luiz Salgado Neto
Membro do Conselho Editorial da Revista Acesso Livre.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
6
Resumo: O artigo procura retomar o tema da crise do trabalho discutindo trs
dimenses: o papel do desenvolvimento tecnolgico na eliminao de postos de
trabalho; a constante transformao nos processos produtivos que cria instabilidade no
emprego e a improdutividade progressiva da fora de trabalho mundial. Essas reflexes
so a base para uma discusso mais ampla sobre a crise da sociedade do trabalho, isto ,
a contradio estrutural que enfrentamos hoje de uma sociedade que tornou o trabalho
como mecanismo bsico de socializao, mas mobiliza todos os meios para elimin-lo.
Palavras-chave: Crise da sociedade do trabalho; desemprego; trabalho improdutivo.
Labor crisis today: technological development, employment instability and crisis of capitalism
Abstract: The article takes up the theme of crisis of work discussing three dimensions:
the role of technological development in the elimination of jobs; the constant change in
the productive processes that creates instability in employment and the
unproductiveness progressive of the global workforce. These reflections are the basis
for a discussion on the crisis of the work society, that is, the structural contradiction we
face today a society that put the work as a basic mechanism of socialization but
mobilize all means to eliminate it.
Keywords: Crisis of the work society; unemployment; unproductive labor.
mais de uma dcada, a discusso sobre a crise da sociedade do trabalho
foi relegada, no Brasil, ao quarto de despejo da teoria social. A profunda
crtica dirigida ao papel central ocupado pelo trabalho tanto na filosofia e
cincia burguesas (liberalismo, protestantismo e economia poltica) quanto na teoria
socialista (marxismo) foi descartada como erro de interpretao. A ideia de crise do
H
Maurilio Lima Botelho Doutor em Cincias Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor
adjunto no Departamento de Geocincias da UFRRJ.
Crise do trabalho hoje: desenvolvimento
tecnolgico, instabilidade do emprego e
crise do capitalismo
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
7 trabalho seria uma impossibilidade objetiva, j que o trabalho seria a prpria relao
eterna homem e natureza. A ontologia serviu como fundamento irrefutvel para a
renncia a uma crtica radical da sociedade burguesa. Mas a rejeio no se restringia ao
plano terico, pois as agruras de um mercado de trabalho cada vez mais reduzido,
restrito e seletivo eram tachadas como impresso equivocada: a instabilidade do
mercado de trabalho seria uma constante na histria capitalista. Com isso, as prprias
singularidades de nossa poca passaram a ser ignoradas.
Agora se chega ao fundo histrico de toda essa rejeio: os anos de espetculo
de crescimento serviram de iluso queles que ainda confiavam no pas do futuro e
no desenvolvimento nacional at mesmo intelectuais crticos da economia de
mercado se renderam s fantasias do curto ciclo de ascenso fictcia, acreditando que os
ndices manipulados do mercado de trabalho teriam liquidado essa discusso. No resto
do mundo, a linha interpretativa no seria diferente: os ciclos cada vez mais acelerados
de ficcionalizao da riqueza tornaram secundria a discusso sobre a crise do trabalho.
Relatrios anuais das organizaes internacionais, informes de sindicatos e institutos de
pesquisa continuariam apresentando os ndices assustadores de destruio dos postos de
trabalho, mas a euforia especulativa deixava essas informaes cobertas pelos ganhos
imediatos nos mercados e pelas possibilidades abertas prpria administrao
financeira do oramento pblico.
A crise da economia mundial, retomada com fora aps o estouro da bolha
imobiliria americana e seguida de uma desvalorizao acelerada das commodities,
trouxe de volta a realidade incontestvel da crise do trabalho. Os ndices de desemprego
saltaram novamente em todo o mundo e empregos temporrios inflados pelas finanas
foram rapidamente descartados. No Brasil, enxergamos agora o esgotamento do modelo
de direo financeirizada de um pretenso desenvolvimentismo nacional: em apenas um
ano, o desemprego cresceu 41,5 %,1 chegando a 10,9 % e ultrapassando 11 milhes de
indivduos procurando emprego.2 Mesmo mudanas na metodologia de aferio de
desempregado ou a reduo da taxa de participao na fora de trabalho estimulada por
polticas governamentais no foram capazes de segurar por muito tempo os ndices
reduzidos de desemprego. Como o feitio de Dorian Gray, rapidamente a jovialidade e
juventude desapareceram e o velho problema social da excluso voltou ordem do dia.
1 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 2 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
8 evidente que o rpido desmanche da economia brasileira com o esgotamento
do projeto petista no governo central no deve ser visto como a vitria da sociedade de
mercado. O malogro desse ciclo a demonstrao de que os limites do desenvolvimento
capitalista no podem ser mobilizados voluntariamente por governos bem intencionados
e, mais importante ainda, que a prpria estrutura social mantida intacta nesses anos deve
ser encarada de modo crtico. Isso uma exigncia de qualquer teoria que no se rende
positividade do mundo, mais ainda nesse momento em que a priso categorial ao
horizonte estreito de administrao da crise deixou um quadro de devastao na teoria
social. A rejeio a uma radical crtica da sociedade do trabalho foi levada frente
inclusive por aqueles que, limitados por uma compreenso superficial da sociedade
burguesa, se enraizavam nos mesmos marcos desta.
A insistncia numa normalidade da sociedade do trabalho diante do quadro de
decomposio acelerada s pode ser encarada como o sintoma desse autismo terico
que nos prendeu a um apertado escaninho onde as polarizaes ideolgicas se anulam.
A necessidade de superar esse reducionismo terico deve comear pela crtica da
ideologia bsica de nossa sociedade, a ideologia do trabalho. Apenas a partir de uma
reconstruo crtica do histrico de afirmao do trabalho como valor e pressuposto da
vida social inclusive como elemento ontolgico de nossa sociedade, tal como
prescreve uma certa linha marxista que os fundamentos dessa sociedade podem ser
questionados. Infelizmente, no podemos fazer isso devido aos limites de nossa
reflexo.
Por isso nos limitaremos aqui a trs aspectos que consideramos importantes para
demonstrar as razes da crise do trabalho: a progressiva substituio da fora de
trabalho humano por mecanismos automticos de produo; a reorganizao dos
processos produtivos que impe uma dinmica incessante de extino de postos de
trabalho e a improdutividade crescente da fora de trabalho remanescente. Embora com
um foco histrico-emprico, as discusses sero mediadas conceitualmente pela teoria
do valor para que seus significados sociais mais profundos sejam ressaltados.
A progressiva inutilidade da fora de trabalho
H algum tempo que as informaes sobre a substituio da fora de trabalho
humana por mquinas cada vez mais sofisticadas e robs ganham os noticirios
econmicos. Entretanto, h ainda grande resistncia ideia de que isso implique em
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
9 impacto significativo sobre a disponibilidade de emprego, dado que o argumento mais
utilizado que enfrentamos periodicamente apenas a substituio de tarefas com a
incorporao de mquinas e robs no processo produtivo. A transferncia da fora de
trabalho do processo produtivo para a manuteno dos operadores automticos ou para
outros setores criados por essa mesma tecnologia seriam os caminhos mais comuns,
tudo passando de mero deslocamento dos trabalhadores, no a sua eliminao.
O problema que o uso de mquinas cada vez mais avanadas reduz a cada ano
as exigncias em sua manuteno: as montadoras japonesas, por exemplo, j utilizam
robs em suas linhas de montagem que passam trinta dias inteiros sem manuteno
humana, trabalhando a pleno vapor e com intensa capacidade produtiva.3 Esse exemplo,
embora possa ser considerado um dos mais avanados do ponto de vista da economia
capitalista, significativo porque h dcadas a indstria automobilstica continua sendo
a mais importante atividade econmica de nossa sociedade e num momento de crise
mundial, onde a maior parte das montadoras enfrentam dificuldades econmicas
gigantescas, salta aos olhos que as montadoras japonesas continuem sendo as nicas que
operam com lucros.4 Pode-se presumir da que, conforme a teoria do valor tal como
desenvolvida por Marx, as empresas que menos se utilizam de fora de trabalho
humana, portanto as que menos adicionam valor reproduo geral do capital, so
aquelas que mais captam a mais-valia socialmente produzida pelas demais.
Esse exemplo extremo no significa de modo algum a impossibilidade de sua
universalizao. Pelo contrrio, a avanada tecnologia tem generalizado a robtica
como meio de produo: robs industriais avanados, que h poucos anos custavam
milhares de dlares, so vendidos hoje a 150 mil dlares e utilizados por diversos tipos
de indstrias. Graas ao barateamento, o volume anual de robs industriais sendo
negociados saltou: em 2013 foram vendidas 179 mil unidades em todo o mundo, j em
2014 ocorreu a venda de 225 mil robs.5
O resultado dessa generalizao raramente avaliado de um ponto de vista
terico e conceitual, muito menos integrado a uma teoria da reproduo econmica
capitalista: um rob sendo vendido a pouco mais de 100 mil dlares no mercado 3 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 4 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 5 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. Ver tambm: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
10 mundial representa um impacto gigantesco sobre a economia do trabalho. Calcula-se
que para a criao de cada posto de trabalho na indstria, em termos competitivos
internacionais, seja necessrio um investimento de mais de meio milho de dlares.6
Portanto, a reduo dos custos de produo de avanados mecanismos de produo
automatizados apontam no apenas para uma realidade j dada a configurao de
fbricas inteiras com um mnimo de uso de fora de trabalho humana mas indicam
uma tendncia a se expandir.
Esses nmeros se referem, evidentemente, apenas a robs, no tratam de
computadores avanados, impressoras 3D, ferramentas e equipamentos cada vez mais
sofisticados. E no tratam, principalmente, das chamadas mquinas ferramentas de
controle numrico (MFCN), isto , mquinas industriais dotadas de ferramentas que
possuem crebros eletrnicos acoplados. Esses novos meios de produo, desenvolvidos
graas microeletrnica, so nada mais do que as antigas mquinas ferramentas
industriais agora adicionadas de um computador e que podem ser programadas segundo
as necessidades imediatas da produo, assim como seus braos-ferramentais podem ser
alterados, removidos e modificados de acordo com o novo objetivo (PALLOIX, p. 81).
Esse conjunto de elementos mostra a complexidade da estrutura produtiva
contempornea e poderamos utilizar centenas de exemplos por todo o mundo de
fbricas com o mnimo de empregados , mas preciso salientar como esse processo
ultrapassa os marcos da indstria e avana para outros setores da economia. A
agricultura industrializada tem feito uso de semeadoras e colheitadeiras automticas,
mas at mesmo a direo desses veculos tem sido guiada por satlite, sem a
necessidade de operadores humanos. Por outro lado, em lojas comerciais mquinas
automticas de saque ou pagamento tm sido amplamente utilizadas. Mquinas de caf,
quiosques eletrnicos para venda de alimentos, livros e gadgets, servio automticos de
cobrana por meio de cartes bancrios... a lista de exemplos poderia continuar
6 Segundo Norbert Trenkle (2000), para a criao de um nico emprego nas condies mdias do mercado mundial, na metade da dcada de 1990, seriam necessrios investimentos na ordem de 300 mil a um milho de dlares. Uma dcada depois, o economista Carlos Lessa (2006) calculava que, no patamar tecnolgico de ento, seriam necessrios 250 mil dlares para gerar um posto de trabalho de operrio. Um estudo de 2014, realizado a pedido do governo de Minas Gerais, calculava os investimentos mdios necessrios para a criao de emprego em diversos campos. Na indstria qumica seriam necessrios mais de dois milhes de reais para cada emprego gerado; na siderurgia, o volume de investimento estaria em torno de 200 mil reais. A mdia obtida em vrios setores para uma nica vaga criada seria de cerca de 280 mil reais. Contudo, possvel que o estudo estivesse subdimensionando os investimentos exigidos, j que citava a criao de empregos diretos e indiretos. Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
11 indefinidamente para as atividades comerciais. Entretanto, esse processo est longe de
estar completo e, devido prpria natureza interna da revoluo tecnolgica no
capitalismo onde a revoluo nos meios de produo se torna uma coero inevitvel
devido coero da concorrncia (Marx) a tendncia futura de um
aprofundamento assustador devido ampliao das aplicaes da robtica.
A China, ainda considerada como cho de fbrica mundial e pas de
concentrao do operariado industrial, vem realizando um esforo monumental de
investimento em tecnologia automtica e robtica. J o mais importante mercado
mundial de robs industriais e provavelmente ter superado em 2017 todos os pases do
mundo em sua utilizao absoluta no processo produtivo. Mas a utilizao relativa ainda
reduzida: existem apenas trinta robs para cada dez mil trabalhadores hoje na China,
nvel baixo comparado Coreia do Sul, com 437 robs, ou o Japo e Alemanha, onde
h respectivamente 323 e 282 robs para dez mil empregados.7
Com a ampliao do uso de robs e o barateamento sistemtico de suas unidades
robs de servio pessoal como o Baxter j so vendidos nos EUA a menos de 25 mil
dlares e robs de limpeza domstica so comercializados popularmente na China e
Japo por poucas centenas de dlares8 , os impactos sobre o emprego sero
gigantescos. Calcula-se que, na velocidade atual de dispensa de operrios nas unidades
industriais, os robs devam eliminar sessenta milhes de empregos at 2025, tornando
ainda mais rara a figura do operrio fabril.9
A permanente transformao dos postos de trabalho
A viso do mundo sobre a China ainda aquela fixada nas indstrias que
empregam uma volumosa fora de trabalho a custo baixssimo e longas jornadas.
evidente que essa imagem ainda revela uma realidade incontestvel da estrutura
produtiva chinesa, responsvel, em parte, pela desindustrializao de vrias economias
ocidentais (em conjunto com a automatizao da produo) e pela inundao do mundo
7 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 8 Em 2012, trs milhes de robs de uso domstico e pessoal foram vendidos em todo o mundo. Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 9 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
12 com mercadorias de todos os tipos e de baixo valor.10 Contudo, essa imagem parcial e,
tal como a fotografia de um processo, fixa uma realidade em transformao sem dar
conta do movimento. A China no apenas est no limite mximo de utilizao de sua
fora de trabalho chegando ao provvel pico de 72% de populao total em idade de
trabalhar11 como a maior parte est empregada em atividades tercirias, isto , servio,
comrcio, administrao etc. Assim como a mudana na estrutura produtiva nos pases
centrais levou transferncia da maior parte da fora de trabalho da indstria para o
chamado setor tercirio da economia, tambm o desenvolvimento chins segue essa
trajetria. Mas na China essa velocidade muito maior do que aquela levada a cabo
pelos pases da Primeira Revoluo Industrial (Inglaterra, Frana) ou mesmo aqueles da
Segunda Revoluo Industrial (Alemanha). Essa uma dinmica comum a todos os
pases que passaram pelo processo de industrializao em suas economias, ainda que
nem sempre seguindo o mesmo caminho os pases de industrializao perifrica,
como Brasil e Mxico, saltaram de uma estrutura da fora de trabalho baseada na
agricultura para uma maioria empregada no setor de servios, sem que a indstria
tivesse ocupado a maior parte dos trabalhadores. Isso configurou uma hipertrofia do
setor tercirio que culminou no desemprego disfarado e na ampla informalidade da
economia perifrica.
Historicamente, o setor tercirio foi visto como o necessrio absorvente social da
fora de trabalho desempregada pela tecnologia nos demais setores da economia. A
ortodoxia econmica, seguindo a velha teoria de compensao dos salrios, verso da
lei de Say no mercado de trabalho, asseverava que o capital economizado com a
destruio de empregos, devido ao uso de nova tecnologia, deveria ser dirigido a outro
setor. Ao ser reinvestido teramos a recriao do posto de trabalho at ento
eliminado.12 Integrante da concepo de um automatismo em que o mercado nunca
10 Mas questionvel o peso exagerado que se d ao deslocamento de empregos industriais dos pases ocidentais para a China. Segundo alguns estudiosos do impacto da economia chinesa nos EUA, o nmero de empregos diretamente perdidos para a China at o momento pela terceirizao no exterior irrisria (HUTTON, p. 26). Num momento em que j havia a discusso sobre as maquiladoras mexicanas, os Tigres Asiticos estavam por cima e a indstria chinesa comeava a ser notada, os economistas Krugman e Lawrence (p. 47) argumentavam que a destruio de empregos nos EUA por causa da automao estava mais prximo da realidade do que a presumida perda desses empregos devido concorrncia internacional. 11 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 12 Marx (p. 54-60) foi o primeiro a realizar uma crtica sistemtica da teoria da compensao dos salrios. Pollock (p. 97-120), em seu trabalho clssico sobre a automao, tambm realizou uma crtica dessa tese, mostrando que no ps-guerra a nica compensao que atuava (parcialmente) diante do
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
13 enfrenta de fato o desemprego para a economia neoclssica, como se sabe, s existe
desemprego como opo pessoal , essa tese do setor tercirio como amortecedor
compensatrio foi ampliada com a argumentao de que nele a magnitude de capital
utilizada baixa. A explicao que atividades como comrcio, finanas,
administrao, educao ou servios pessoais, por exemplo, so normalmente grandes
empregadoras, mas exigem volume de capital reduzido.
Entretanto, desde que a microeletrnica foi desenvolvida e generalizada, os
setores de servios tm sofrido os efeitos economizadores de fora de trabalho tal como
os demais. Diferente de grandes mquinas ou equipamentos industriais tradicionais, os
microcomputadores se tornaram uma realidade em toda a atividade social, inserindo-se
no apenas nas diversas etapas das finanas (bancos, administrao e contabilidade)
como servindo diretamente aos usurios-consumidores e com isso reduzindo a
necessria mediao pessoal. Assim, temos a contabilidade eletrnica cujas notas
fiscais, lanamentos contbeis e registros so realizados automaticamente nos atos de
compra e venda, emprstimos ou pagamentos. Tambm presenciamos o uso de
computadores domsticos onde possvel fazer o acompanhamento pessoal de contas
ou operaes financeiras. Mas nessa rea presenciamos mais significativamente a
extino de trabalho com a substituio de bancrios por caixas automticos. Em 2014,
o setor bancrio no Brasil demitiu cerca de cinco mil funcionrios. No seguinte, 2015,
foram quase dez mil postos de trabalho fechados13 e isso numa conjuntura em que os
bancos apresentaram recorde em seus lucros, no sentindo o efeito da crise econmica
como as demais empresas. Mais ainda: at mesmo os mercados financeiros, at ento
considerados vencedores diante das hards industries, sofrem hoje os efeitos
economizadores da microeletrnica, a ponto de os traders das bolsas de valores serem
desempregados por operadores de alta frequncia, computadores que realizam
automaticamente operaes financeiras e j dominam mais da metade de todas as
negociaes em Wall Street.14
Tambm nas atividades comerciais, como nos demais espectros do tercirio,
uma infinidade de aplicaes da microeletrnica, dos computadores e da leitura tica
tem substitudo trabalhadores: seja na extino de caixas nos mercados e redes
desemprego tecnolgico era a grande absoro de trabalhadores pelos gastos improdutivos do complexo industrial-militar. 13 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. 14 Disponvel em: . Acesso em: abr. 2013.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
14 varejistas, a utilizao de equipamentos automticos que estimulam o autosservio e,
cada vez mais, a ampliao do comrcio eletrnico. J em 1999 portanto antes da era
de popularizao da internet no Brasil o DIEESE alertava para os impactos do
comrcio eletrnico sobre o trabalho no setor comercial:
As novas tecnologias e as novas formas de organizao e de
gesto introduzidas no comrcio so destruidoras de postos de
trabalho e de emprego, em vrias sees e departamentos da
empresa. E, numa dimenso mais ampla, at no segmento
atacadista, apesar de estar excludo da integrao varejo-
fornecedores, a gerao de emprego vem sendo menor diante da
intensificao do comrcio eletrnico, particularmente do
intercmbio eletrnico de dados (DIEESE, 1999).
A ampliao do emprego da informtica em diversas atividades no decorre
apenas da flexibilidade inerente microeletrnica, capaz de ser inserida em qualquer
ambiente de produo ou de negcio, mas tambm da reorganizao ampla do processo
produtivo e burocrtico que a prpria microeletrnica implica. O que se trata, portanto,
no apenas uma mudana nos meios de produo (hardware) que leva eliminao
definitiva de muitos empregos, mas tambm uma contnua transformao na
organizao do prprio processo de produo (software), isto , a reestruturao
permanente das relaes de trabalho. No acaso que toda a discusso sobre crise do
trabalho e automao seja acompanhada de reflexes sobre a superao da lgica
fordista de produo, a ruptura com a organizao taylorista do trabalho e a insero de
novos modelos de gesto da produo (toyotismo, ohnosmo, volvosmo etc.).
A flexibilidade inerente nova tecnologia microeletrnica se estendendo em
novas aplicaes como a impresso em superfcie tridimensional, nanotecnologia e
tecnologia do conhecimento provoca a reorganizao do processo produtivo devido s
inovaes frequentes no ciclo dos produtos. Grupos de controle de qualidade,
departamentos de automao e crculos de tecnologia e inovao tm sido responsveis
pela progressiva reduo dos tempos-mortos na atividade produtiva ou nos processos
comerciais e financeiros. O uso generalizado dos microcomputadores em cada etapa e
incorporando cada vez mais funes se transforma em elemento de constante inovao
organizacional. No que toca ao processo de produo propriamente dito, essa
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15 autorreflexo organizacional leva a uma realidade completamente nova na histria da
economia capitalista. Em virtude das novas tcnicas e novos modelos organizacionais
em constante transformao, a inovao dos processos produtivos ultrapassa a
inovao das mercadorias produzidas. Levando ao extremo a lgica apontada por Marx
da produo pela produo, isto , o fetichismo em que o desenvolvimento da
produo o objetivo primrio e determinante da organizao social, o capitalismo
superdesenvolvido microeletrnico criou uma dinmica irrefrevel de revoluo
organizacional e tecnolgica.
Os ncleos dos computadores duplicam a capacidade de processamento em
menos de dois anos; a capacidade de armazenamento tem sido duplicada, num mesmo
espao fsico, a cada quarenta meses; um simples tablet de hoje tem a mesma
capacidade de processamento do computador mais moderno existente h trinta anos,
com um custo infinitamente menor. Isto significa que, no af de ampliar ao mximo as
capacidades produtivas, maximizar os lucros e reduzir os custos e inconvenientes dos
meios, o processo de produo alterado mais rapidamente do que os prprios bens
finais que so por ele criados. Com algumas excees, as mercadorias utilizadas
cotidianamente por um consumidor mdio so as mesmas h vinte ou trintas anos, mas
o modo de produzi-las mudou vrias vezes nesse perodo. Enfim, as maneiras de se
produzir as mercadorias tm sido radicalmente alteradas, provocando impactos
gigantescos na economia como um todo, mas os bens consumidos so mais ou menos os
mesmos.
As implicaes ecolgicas dessa constante transformao so evidentes. Uma
mercadoria produzida a cada rodada de modo distinto precisa ter sua vida til reduzida
ou pelo menos deve ser falsamente apresentada como diferente das anteriores para que a
cadeia produtiva no enfrente uma embolia devido superproduo. Mas esse aspecto
ambientalmente destrutivo no o nosso tema aqui ainda que a discusso ecolgica
no possa ser isolada de uma reflexo sobre a crise do trabalho. O que nos interessa
particularmente que os efeitos dessa dinmica so destrutivos tambm de um ponto de
vista economicamente abrangente: em termos macroeconmicos, o ritmo de
racionalizao da produo supera o ritmo de ampliao dos mercados.
Desde o fim do ciclo expansivo do ps-guerra essa condio tem sido apontada
por uma srie de importantes intelectuais: os nveis elevados de produtividade obtidos
com a transformao produtiva e organizacional da microeletrnica so amplamente
superiores aos ndices do prprio crescimento econmico, cada vez mais rastejante a
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
16 no ser nos anos de bonana baseada na ficcionalizao de ativos financeiros. O
resultado dessa coliso entre produtividade e crescimento a destruio de postos de
trabalho sem a devida recomposio pela expanso econmica:
Em contraste direto com o desenvolvimento nos anos 50 e ainda
nos anos 60, nos anos 70 as taxas de crescimento da
produtividade do trabalho esto acima das da produo com a
consequncia de que a fora de trabalho liberada pelo progresso
tcnico no mais pode ser absorvida pela expanso da produo
(OFFE, p. 92).
Nas dcadas de 1980 e 1990, enxergaramos um aprofundamento desse processo
em que a racionalizao da produo no seria compensada mesmo quando o
crescimento econmico fosse discernvel no horizonte. Chamado pelos economistas de
jobless growth, essa situao foi aprofundada devido ao poder da microeletrnica de se
inserir em todos os possveis setores da economia, ultrapassando a tecnologia industrial
tradicional e eliminando o carter absorvente do tercirio:
Constituindo um paradigma intensamente malevel, a
microeletrnica ir permitir a automao de uma ampla gama
de servios de natureza burocrtico-administrativa. Atravs dos
sistemas informacionais integrados, pesadas estruturas
administrativas perdem totalmente a razo de ser, e por meio
dos processos de reengenharia, so literalmente extintas. Desse
modo, o que antes era um intenso e confuso fluxo de pessoas e
papis se torna um simples fluxo de eltrons e quanta de luz,
monitorado por alguns poucos executivos e analistas de
sistemas. Os ganhos de produtividade dessa mudana so
obviamente elevados e fazem com o que o setor tercirio-
burocrtico j no mais contribua para uma baixa taxa mdia de
crescimento da produtividade da economia (ALBAN, p. 209).15
15 Antes, quando os postos de trabalho na indstria eram eliminados ou reduzidos, podiam ser substitudos por postos de colarinho branco. Mas hoje, se as posies de colarinho branco desaparecerem, onde sero criados os novos empregos? pergunta o socilogo Wallerstein (2016).
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
17 Embora a primeira dcada do sculo XXI tenha apresentado uma reduo dos
ndices de desemprego em boa parte do mundo ocidental, a fragilidade dessa reduo foi
logo demonstrada com a abrupta elevao desses ndices com o estouro das bolhas
financeiras responsveis pela expanso econmica daquele perodo crise imobiliria e
queda nos preos das commodities no mercado mundial. Mesmo que pequenos sinais de
recuperao estejam sendo apresentados pelos governos europeus e norte-americano, os
economistas oficiais tm apontado para o ressurgimento do fenmeno do crescimento
sem emprego, agora renomeado como jobless recovery: o desemprego persistente e
invulgarmente elevado sugere que esta recuperao sem emprego pode ser mais
dolorosa do que as duas anteriores (KOLESNIKOVA; LIU, p. 18).16
O que essas anlises indicam que, para a expresso da crise mundial do
emprego, no conta apenas a eliminao definitiva de postos de trabalho, mas tambm a
agilidade com que empregos so criados e destrudos em ciclos cada vez mais curtos. O
relatrio da Organizao Internacional de Trabalho, Tendncias Mundiais de Emprego
2014, apontou que, em 2013, o nmero de desempregados em todo o mundo chegou
a 202 milhes de pessoas. Projetando o futuro, a tendncia uma ampliao para 215
milhes de desempregados em 2018, mesmo com a criao, nesse perodo, de quarenta
milhes de empregos. A criao de novos postos de trabalho no ser capaz de dar conta
nem da destruio de empregos nem da entrada de novos trabalhadores no mercado o
que implica em saldo lquido negativo.17
Isso cria uma situao de extrema instabilidade na fora de trabalho mundial:
crise do trabalho no apenas ampliao progressiva do nmero de desempregados em
todo o mundo, mas tambm uma instabilidade crescente para aqueles que permanecem
ativos no mercado. E isso se deve no apenas ampliao desse exrcito de reserva
que pressiona os empregados tanto pela concorrncia que oferecem quanto pela reduo
dos salrios diante da oferta crescente de mo de obra mas principalmente em virtude
dos ciclos de reestruturao cada vez mais acelerados dos processos de produo.
16 Os autores se referem aos perodos de recuperao econmica posteriores s recesses de 1973-1975 e 1981-1982, comparando-as recuperao atual diante da recesso de 2007-2009. 17 Disponvel em:
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18 A precarizao da fora de trabalho no decorrente apenas da elevada
rotatividade a que boa parte dos trabalhadores est submetida hoje no Brasil, 45% dos
trabalhadores com carteira assinada so demitidos a cada ano.18 O que temos visto
que, alm da ampliao do desemprego, os postos de trabalho que restam esto sujeitos
a uma elevada transformao, so destrudos e novos so criados conforme as dinmicas
da reestruturao produtiva. Da a insistncia de especialistas em apontar que as
informaes sobre a grave crise que vivemos no pode ser dimensionada apenas pelas
taxas oficiais de desemprego, pois a necessidade cria presses sociais que levam s mais
variadas estratgias de sobrevivncia. Conforme apontou o economista indiano Prabhat
Patnaik (2016), utilizando-se de dados da prpria OIT, 63% da fora de trabalho global
atual est em situao de desemprego, desencorajada (desistiu de procurar emprego) ou
se trata de empregados vulnerveis, isto , trabalhadores por conta prpria,
trabalhadores sem rendimento, membros de cooperativas de produtores etc.
A improdutividade crescente da fora de trabalho
Como relatado h pouco, a estrutura da fora de trabalho chinesa passou por
uma transformao explosiva nas ltimas duas dcadas de uma maioria de
trabalhadores empregados na agricultura, rapidamente as mudanas nesse pas asitico
levaram a uma ocupao predominante no setor tercirio. Embora tenha chegado a
ocupar quase 30% de sua fora de trabalho total, a indstria nunca se tornou o principal
empregador na sociedade chinesa: os servios ultrapassaram a agricultura como
principal setor de ocupao da fora de trabalho em 2012, 35,7% dos empregos j
estavam no setor tercirio da economia.19
O que essa informao nos revela que mesmo a mais importante estrutura
produtiva mundial j no capaz mais de empregar grande parte de sua fora de
trabalho: afetada pela transformao produtiva, os empregos se deslocaram para as reas
comerciais, financeiras, a administrao pblica e privada e demais atividades de
servio.
18 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016. A importante obra de Pochmann (2012, p. 92-97 e 120-121) questionando a nova classe mdia tem uma srie de informaes sobre a ampliao da rotatividade do trabalho no Brasil. 19 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2014.
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19 A princpio isso no indicaria nada alm da prpria vitalidade de uma economia
que se ajusta constantemente s transformaes ou como acreditam os apologistas de
uma pretensa sociedade ps-industrial o deslocamento do eixo da produo para
uma economia criativa baseada no conhecimento e no mais na produo material.
Essas intepretaes so superficiais e ignoram os traos mais profundos da
transformao em nossa poca.
Em primeiro lugar, esse deslocamento est longe de ser um mero ajuste no
mercado de trabalho ou uma compensao de empregos perdidos embora com ndices
oficiais de 5% de desempregados, a colossal economia chinesa tambm apresenta
assustadoras formas de desemprego que no so representados na estatstica
governamental provvel que um ndice mais amplo, que avaliasse o desemprego nas
reas rurais, atingiria trs ou quatro vezes as taxas oficiais. Nos momentos de
dificuldade econmica, quando a taxa de ocupao diminui, as autoridades chinesas
foram milhes de trabalhadores urbanos a voltarem para suas provncias de origem e
assim reduzir o impacto sobre o mercado de trabalho isto ocorreu depois da crise de
2009, quando mais de vinte milhes retornaram s comunidades rurais.20
A ampliao substancial do setor de servios, portanto, no se deve a nenhuma
reformulao das atividades econmicas, mas em grande parte a mero ajuste espontneo
do desempregado situao de expulso dos postos de trabalho tradicionais: a tradio
perifrica de formao de uma economia subterrnea como estratgia de sobrevivncia
se tornou uma realidade mundial. Na China isso to significativo quanto em qualquer
outra parte do mundo: estudo publicado pelo Banco Mundial revelou que nas grandes
cidades chinesas a informalidade de trabalhadores pode chegar a 37%, dependendo da
forma como se define estatisticamente a informalidade. Mas os dados so ainda mais
expressivos para os migrantes, cuja informalidade pode abranger at mesmo 65%
daqueles que no tem residncia oficial na cidade em que trabalham (PARK; WU e DU,
2012). A maior economia industrial do mundo segue um fato j atestado h alguns anos
pela Organizao Internacional do Trabalho:
no final do sculo XX, a manufatura deixou de ser um setor
importante de desenvolvimento do emprego, exceto no Leste e
Sudeste Asitico. Nas economias em desenvolvimento, a queda
da proporo do emprego agrcola coincidiu, de fato, com um 20 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
20 aumento do emprego no setor de servios, que passou de 28% a
32,6% no perodo compreendido entre 1995 e 2005. Entre as
diferentes categorias de servios, o setor no quais o emprego
est aumentando mais rapidamente o comrcio, que inclui as
atividades informais do comrcio ambulante que tanto
predomina entre os povos e cidades dos pases em
desenvolvimento (OIT, p. 34).
Com efeito, o economista Patnaik (2016) indica que boa parte da fora de
trabalho deslocada da agricultura, onde realizavam atividades precrias e em pequenas
unidades de produo, entraram outra vez no segmento dos empregados vulnerveis
nas cidades. A economia de servios pode estar relacionada ao avanado
desenvolvimento tecnolgico, mas isso no significa de modo algum elevada qualidade
de vida. Tericos que se debruam sobre a realidade das grandes economias urbanas
integradas ao mercado global apontam que, ao lado da estrutura avanada de servios
sofisticados e atividades financeiras, prolifera a multido de trabalhadores no
qualificados de comrcio, limpeza, servios pessoais etc.21 Aliado rotatividade elevada
de parte crescente da fora de trabalho mundial e sua transferncia para os servios,
temos uma precarizao evidente das condies em que essas novas formas de ocupao
se desenvolvem.
Do ponto de vista de uma compreenso dos mecanismos mais profundos da
reproduo capitalista preciso ressaltar ainda outra caracterstica dessa terciarizao
progressiva do trabalho mundial: a improdutividade crescente a implicada.
Ao tratarmos da improdutividade do trabalho no queremos de modo algum
julgar a sua importncia, natureza ou finalidade. Produtividade aqui se refere
unicamente capacidade de determinada atividade de ampliar a magnitude de valor
presente no circuito econmico capitalista. O que se trata, portanto, o contedo formal
da atividade de trabalho e no o resultado material em si desta atividade. A capacidade
de ampliao substancial do circuito global capitalista o que define a contribuio
formal de uma atividade trabalho produtivo aquele capaz de perfazer a valorizao
do valor. Sem entrar no complexo universo conceitual sobre a natureza produtiva ou
improdutiva do trabalho, possvel definir, por derivao e excluso, um trabalho
produtivo se for realizado no mbito de um capital produtivo e, portanto, contribuindo
21 Veja por exemplo, Sassen (1993).
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
21 para a produo e ampliao da massa de valor presente no processo global da
circulao capitalista. Todo o trabalho circunscrito ao capital monetrio (atividades
financeiras e da mediao do dinheiro em geral) ou ao capital do comrcio de
mercadorias (atividades comerciais) improdutivo, pois no acrescenta valor algum ao
circuito global capitalista. Obviamente, trabalho produtivo unicamente aquele
relacionado ao capital produtivo, capital produtor de mais-valia, enquanto as demais
formas de trabalho realizam a mera circulao de mercadorias e dinheiro, nada
adicionam em termos substanciais estrutura reprodutiva do capital.22
A vertiginosa ampliao das atividades tercirias no mundo contemporneo pode
ser vista como o resultado de uma informalizao crescente da fora de trabalho, que
sobrevive em meio a uma economia de misria e num nvel muito prximo ao da
subsistncia. O relatrio j citado da OIT, sobre as tendncias do emprego, informa que,
em 2013, um total de 839 milhes de trabalhadores sobrevivia com suas famlias com
menos de dois dlares dirios.23 A automatizao dos setores produtivos e a
transferncia de parte da fora de trabalho para as atividades comerciais, administrativas
ou financeiras (quando no lanadas de vez na excluso social) um processo crescente
de improdutividade do trabalho. Isso significa que, mesmo com a ampliao da
populao economicamente ativa mundial, parte considervel desse universo, se no foi
excludo integralmente da sociedade do trabalho graas aos efeitos da transformao
tecnolgica, no contribui mais para a reproduo ampliada de capital, ainda que
execute tarefas muito necessrias economia de mercado.
A Unio Europeia j apresenta 72% do total de sua fora de trabalho no setor
tercirio da economia. Os EUA e Canad possuem 79% nesse setor. No Brasil, 71% dos
trabalhadores j esto ocupados com atividades tercirias. Transferindo grande parte da
22 Marx distingue entre o trabalho empregado pelo capital produtivo ou, mais exatamente, pelo capital na fase de produo, e o trabalho empregado pelo capital-mercadoria ou capital-dinheiro, mais precisamente, o capital na fase de circulao. Somente o primeiro tipo de trabalho produtivo, no porque produza bens materiais, mas porque empregado pelo capital produtivo, isto , capital na fase de produo (...). O carter produtivo do trabalho uma expresso do carter produtivo do capital (RUBIN, p. 287). A determinao aqui proposta de trabalho produtivo nos permite aproximar da reflexo sobre as atividades improdutivas do setor tercirio da economia, mas ela ainda limitada pela esfera particular dos capitais, sem considerar a circulao global, isto , a reproduo: Uma definio do trabalho produtivo, referida ao processo de mediao da reproduo capitalista no seu todo, s pode ser avanada em ltima instncia em termos de teoria da circulao. Quer dizer: em termos da teoria da circulao, s produtivo de capital aquele trabalho cujos produtos (e tambm cujos custos de reproduo) refluem no processo de acumulao do capital; ou seja, aquele cujo consumo recuperado de novo na reproduo ampliada. S este consumo um consumo produtivo, no apenas imediatamente, mas tambm em referncia reproduo (KURZ). 23 Disponvel em: . Acesso em: mai. 2016.
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
22 fora de trabalho para as atividades improdutivas do tercirio, o capitalismo cava um
fosso cada vez mais profundo em sua capacidade de reproduo ampliada como se o
gasto de energia necessrio para colocar um gerador em movimento fosse
progressivamente se ampliando diante da energia resultante dessa mesma engrenagem.
Como atestou Marx (p. 92 e 93), os agentes da circulao precisam ser pagos pelos
agentes da produo. (...). Em vrios negcios, compradores e vendedores so pagos por
meio de uma porcentagem do lucro. Enfim, os custos de manuteno da economia
capitalista, de sua administrao, de sua operao financeira e comercial crescem
proporcionalmente diante dos lucros obtidos na sua unidade de produo qualquer
empresa capitalista individual seguindo uma trajetria dessas estaria fadada falncia.
disso que se trata a dinmica econmica atual no um acaso que, h quatro
dcadas, os noticirios econmicos de toda parte apontem para uma trajetria
descendente das taxas de crescimento mundiais. Crescimento rastejante, recesso
crnica, estagnao secular e crise estrutural so termos distintos, de procedncias
tericas diversas, que tentam dar conta desse arrefecimento visvel da economia
mundial.
A crise da sociedade do trabalho no de modo algum o horizonte feliz de
sociedade do cio, sociedade ps-industrial ou era do conhecimento. Crise da
sociedade do trabalho o resultado da autocontradio interna do capitalismo que
tornou o trabalho a nica atividade capaz de realizar a mediao social e, no entanto,
move-se diuturnamente para eliminar o mximo possvel de trabalho disponvel. A
sociedade do trabalho tornou essa atividade o nico padro de referncia para a vida
social, mas a torna progressivamente improdutiva para sua lgica econmica. Crise do
trabalho a face autodestrutiva da sociedade capitalista em sua manifestao mais
avanada. A nica maneira de escapar a essa dinmica de destruio seria fundar uma
nova sociedade sobre outra lgica.
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Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
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Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
25
Resumo: Esse artigo procura analisar a ideia de crise na disciplina histrica difundida
na segunda metade do sculo XX. Para isso, procuramos abordar a percepo de crise
enquanto conceito processual inerente lgica das transformaes paradigmticas.
Palavras-chave: Crise; temporalidade; paradigma.
Temporal interdependency and crisical symptoms: an analysis of the idea
of crisis in contemporary historical thinking
Abstract: This article intent to analyze the idea of crisis in the historical discipline in
the second half of the twentieth century. For this, we approach the perception of crisis
as a inherent procedural concept to the logic of the paradigmatic transformations.
Keywords: Crisis; temporality; paradigm.
. K. Chesterton (1874-1936) desenvolveu, paralelamente carreira de
ficcionista, uma vasta obra ensastica. Em 1906, publicou um importante
volume intitulado Ortodoxia, cuja temtica procurava discutir os caminhos
que o cristianismo havia tomado desde o advento da Reforma, defendendo de forma
provocativa a ortodoxia primitiva da doutrina crist. No captulo O suicdio do
pensamento, Chesterton desenvolve um argumento em que tenta rebater o gradativo
estabelecimento de uma tendncia intelectual de dvida exacerbada em relao razo.
Todo o mundo moderno est em guerra contra a razo; a torre j oscila
(CHESTERTON, 2009, p. 55). Para ele, a autoridade religiosa de seu tempo havia se
voltado para uma posio de intolerncia e, paradoxalmente, o materialismo caminhava
para se tornar um duplo dessa manifestao, uma vez que ambos possuiriam a mesma
G
Gabriel Fernandes Barbosa Sanchez
Mestre em Histria pela Universidade Federal de Gois.
Interdependncia temporal e sintomas
crsicos: uma anlise da ideia de crise no
pensamento histrico contemporneo
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
26 natureza primria e autoritria. Segundo o autor, essas constataes fazem parte de um
sintoma da modernidade tardia em que o pensamento perde sua capacidade de fazer
conexes devido a um bloqueio causado pela individualidade de um tempo que, ao
procurar romper com as geraes anteriores, se v inseguro ao ter que lidar com
transformaes. O progresso possui como condio intrnseca a mudana, porm, para
Chesterton, uma alterao fundamental em padres histricos torna invivel refletir
sobre o passado, ou mesmo sobre o futuro. Portanto, lidar com a mudana em um
determinado padro, ou ortodoxia, exige que a realidade contingente da
contemporaneidade de quem analisa seja interpretada como uma unidade com
circunstncias pretritas e ulteriores.
Qualquer tendncia que se sobressaia como um cisma dentro de um padro
preexistente tende a ser analisada como definitiva e com maior autoridade em relao ao
j existente. H nesses casos um risco em relegar s geraes futuras um conhecimento
distorcido do passado, dificultando a expanso do pensamento dos partcipes desse
tempo por permitir o entendimento de que o pensamento humano que no compactua
com a tendncia em voga, no possui validade (Ibidem, 2009, p. 56). Aquele que
entende a mudana como fator decisivo do progresso (aqui visto como melhoria, e no
como teleologia) deveria, segundo o autor, desafiar seu tempo fugindo daquilo que ele
chama de ideal de monotonia (Ibidem, p. 60) na inteno de exercer em sua plenitude
sua capacidade de leitura de mundo e, consequentemente, criar condies de lidar com a
mudana de forma serena e responsvel.
O exemplo didtico. Criou-se na tradio recente da teoria da histria um
campo de investigao fundamentalmente semelhante ao de Chesterton, em que h uma
interpretao dos debates realizados a partir da dcada de 1960 como um perodo de
crise para a disciplina. No ncleo desse argumento, h uma srie de direes para
tentar situar a histria em um local seguro passvel de legitimao, justificao e
validao: crise de paradigmas, crise de sentido, fim da histria, predomnio do
discurso, representao, ps-modernidade etc. Discute-se um deslocamento fundamental
do referencial na pesquisa histrica. O modelo estabelecido na modernidade baseado em
uma perspectiva cientificista inspirada nas metanarrativas de cunho teleolgico seria
contraposto s novas matrizes paradigmticas, onde h um questionamento exacerbado
sobre a possibilidade de estudo do passado devido primazia dada ao discurso em
detrimento do mtodo que estabeleceria uma conexo confivel entre a historiografia e
o real. Nesse cenrio, os principais tericos da histria colocam como problema a
Acesso Livre n. 5 jan.-jun. 2016
27 capacidade da histria de produzir significado atravs do confronto com as fontes e sua
organizao em um discurso dotado de sentido, uma vez que, segundo a perspectiva
adotada pela modernidade, o contedo do texto seria um reflexo do passado em si, j
que sua urdidura estaria amparada pelo acesso e anlise de documentos. Nesse sentido,
a teoria da histria contempornea passa a ser a disciplina que expe as fragilidades de
um conhecimento que foi tido como seguro durante mais de um sculo de
institucionalizao acadmica.
Mas, partindo dessas informaes, surge o questionamento que guia este artigo:
por que crise? Talvez o principal vetor argumentativo que orienta essa ideia de crise se
refira a uma dvida em relao ao estatuto cientfico da histria enquanto disciplina que
investiga e significa o passado. A aproximao da histria com a literatura, por
exemplo, enxerga na narrativa histrica o principal problema para o estabelecimento
epistemolgico da disciplina. Hayden White, um dos principais autores responsveis por
esse giro, alertava, em um texto clssico de 1974,1 que as narrativas histricas seriam
fices verbais cujos contedos so tanto inventados quanto descobertos e cujas
formas tm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com seus
correspondentes nas cincias (WHITE, 2001, p. 98, grifos do autor). Essa mudana de
nfase de fato abala o sustentculo estabelecido durante o sculo XIX, em que a histria
poderia fazer frente ao avano dos modelos oriundos das cincias naturais atravs de um
mtodo imparcial e passvel de regulao e comprovao de fenmenos. Ocorre que nas
dcadas seguintes, no contexto que nos propomos analisar, os peridicos destinados
divulgao das pesquisas no campo da teoria da histria se tornaram campos de
discusses que, em nosso entendimento, trouxeram avanos significativos para o
fortalecimento crtico e analtico da disciplina, porm, em contrapartida, desvirtuaram o
que de mais importante a histria pode oferecer, sua capacidade de gerar sentido e de
promover a tolerncia em uma sociedade ainda profundamente idiossincrtica e incapaz
de promover a convivncia pacfica com a diferena. Roger Chartier chamou essas
discusses de falsos debates, uma vez que tinham como ponto de partida a ideia de
irredutibilidade de um cisma (partilha) entre a objetividade das anlises estruturais e a
subjetividade das representaes (CHARTIER, 1990, p. 19-20). Utilizando o exemplo
de Chesterton, o radicalismo encontrado em algumas vertentes da teoria da histria em
1 WHITE, Hayden. O texto histrico como artefato literrio. In: ______. Trpicos do discurso. So Paulo: Edusp, 2001.
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28 seu perodo de crise no sculo XX contribuiu para uma perda da capacidade de
estabelecimento de conexes com uma tradio que, mesmo nos momentos mais agudos
de cisma, manteve sua relevncia na elaborao dos construtos mentais acerca do
passado. Nesse sentido, acreditamos que um dos problemas centrais est em um
deslocamento da noo de temporalidade na pesquisa histrica.
Est claro que as teses na teoria da histria da segunda metade do sculo XX
fazem parte de uma mudana da disciplina em termos de fundamentao crtica, que
pressupe uma ampliao de possibilidades terico-metodolgicas. Segundo Edgar
Morin (2007), qualquer evoluo, seja no campo biolgico, poltico ou cientfico, no se
manifesta de forma regular e frontal. Nesse sentido, o estabelecimento de um novo
paradigma, por exemplo, comearia a ser gestado de forma marginal e, atravs de uma
srie de rupturas transgressoras, se desenvolveria at se tornar maduro. Esse
mecanismo, de acordo com Morin, obedeceria a seguinte ordem: 1) inovao; 2)
transgresso; 3) tendncia; 4) nova norma ou ortodoxia (MORIN, 2007, p. 16). Segundo
esse modelo, possvel constatar uma imprescindvel dinmica temporal entre passado,
presente e expectativa projetada de um futuro, onde a ideia de crise esvazia-se, ainda
que permanea semanticamente vlida.
No caso da crise do pensamento histrico que discutimos, no cabe questionar
que seus fundamentos residem em uma problemtica dialgica com os modelos
estabelecidos na modernidade, especialmente na historiografia do sculo XIX, pois esse
seu preceito bsico. Nesse contexto especfico, houve uma redefinio incisiva na
concepo norteadora da pesquisa histrica no que se refere relao do indivduo que
estuda o passado e a orientao temporal de sua abordagem. A ruptura com o modelo
teleolgico amplamente utilizado no sculo XIX d lugar a uma realidade fragmentria,
cujos discursos acerca do passado aparecem de forma refratria, no obedecendo
premissa terico-metodolgica de causalidade subsumida a um determinado objetivo,
uma realidade idealizada de um fim. Nesse caso, o problema reside no confronto com as
propostas estabelecidas pelo projeto moderno. Em nossa abordagem, esse confronto
deve ser analisado atravs do deslocamento das formas de discurso acerca do passado
que perpassam por uma perspectiva ctica em relao capacidade da histria de
estabelecer sentido e coerncia experincia temporal humana atravs do resultado de
sua pesquisa. Conforme nos orienta Jrn Rsen (2001), a disciplina histrica tambm
obedece contingncia que permeia seu objeto. Nesse sentido, assim como os
fenmenos humanos estudados em contextos espao-temporais, a cincia histrica
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29 tambm passa por revisionismos, reavaliaes e alteraes. Portanto, a pergunta
permanece: por que crise?
Edgar Morin, ao analisar o sculo XX em um texto escrito em 1981 intitulado
Para onde vai o mundo? (2007), estabelece a dcada de 1970 como o perodo central no
estabelecimento de um cenrio de incertezas. Essa assertiva seria constatada pela
falncia da ideia de um continuum progressivo, em que a premissa de um
desenvolvimento linear das condies civilizatrias (tecnologia, cincia, economia,
industrializao, consumo, moral) estaria comprometida pela percepo de que, embora
a humanidade tenha experimentado um significativo avano no bem-estar
proporcionado pelos avanos tecnolgicos, a linearidade evolutiva no se sustentaria,
por conta da tensa coexistncia entre melhoria tecnolgica e barbrie. O autor menciona
o termo foras da morte para exemplificar a institucionalizao do aniquilamento de
outrem em funo de interesses de ordem poltico-ideolgica que impossibilitam a
manuteno da ideia de uma sociedade em marcha evolutiva intermitente (MORIN,
2007, p. 21). Certamente os eventos crticos do sculo XX que possibilitaram essa
(re)avaliao de um modelo at ento seguro no poderiam ser previstos e, devido a
esse carter eventual do inesperado na histria humana, chegamos a um momento em
que o termo crise se estabelece como tnica das sociedades contemporneas em suas
mais diferentes manifestaes. Morin analisa esse contexto de incertezas como sintomas
crsicos ao definir sua ideia de crise:
() digamos inicialmente que o emprego multiplicado pelo
termo crise (crise do progresso, crise das civilizaes, crise da
adolescncia, crise do casal etc.) vem da prpria multiplicao
dos sintomas crsicos... Tentemos definir o termo. Numa
primeira abordagem, a crise se manifesta no somente como
uma fratura no interior de um continuum, perturbao num
sistema at ento aparentemente estvel, mas tambm com o
crescimento das eventualidades, isto , das incertezas. Ela se
manifesta pela transformao das complementaridades em
antagonismos, pelo aumento rpido das transgresses em
tendncias, pela acelerao do processo
desestruturante/desintegrante (feedback positivo), pela ruptura
das regulaes, pela deflagrao de processos incontrolados
tendendo a autoamplificar-se por si mesmos ou chocar-se
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30 violentamente com outros processos igualmente antagnicos e
incontrolados (MORIN, 2007, p. 23).
De acordo com essa definio, a crise inseparvel do desenvolvimento. O
antagonismo entre modelos distintos se torna motor para o avano. O carter crsico
da realidade social humana , portanto, a condio transformadora que engloba
desorganizao e reorganizao. Nesse sentido, a causalidade teleolgica da
modernidade deve ser substituda por uma causalidade complexa (multicausalidade)
sustentada na interdependncia temporal entre futuro, passado e presente. Se a evoluo
de uma sociedade ou disciplina no obedece a leis deterministas, seu desenvolvimento e
mudanas em contextos eventuais so influenciados por uma multicausalidade baseada
em inter-retro-aes que se combinam e se desafiam em um movimento perptuo. A
ideia de que o presente serve de base para a indagao do passado e que, por isso,
possui sustentculos que permitem garantir um conhecimento seguro tanto de si como
do pretrito se esvazia nessa concepo de multicausalidade. O passado construdo
pelo presente atravs de um movimento duplo de retrospectiva (escolhe-se aquilo que se
quer estudar) e prospeco (estabelecem-se os resultados que o objeto escolhido
produziu no futuro do passado, seja ele o contexto do historiador ou uma realidade
anterior a do historiador, mas posterior ao objeto em anlise). Segundo Morin, esse
duplo movimento que cria a iluso de que eventos pretritos justificam os ulteriores
como se a trama desses eventos fosse preestabelecida e previamente conhecida, o que
acaba por transformar o imprevisto em algo provvel e, consequentemente, relegar o
que no aconteceu como algo inevitvel, uma vez que j foi estabelecido a relao
causal entre passado e futuro do passado. O conhecimento do presente requer o
conhecimento do passado que, por sua vez, requer o conhecimento do presente
(MORIN, 2007, p. 13).
Ilya Priogine afirma, citando Karl Popper, que o senso comum pressupe que
todo evento tem como causa outro evento predecessor, dessa forma, qualquer evento
estaria passvel de ser explicado ou mesmo predito (PRIGOGINE, 1996, p. 9). Segundo
Rsen, essa caracterstica ilusria, que Edgar Morin menciona, seria fruto do processo
de racionalizao que o pensamento histrico sofreu a partir do Iluminismo, cujo
aperfeioamento se deu no historicismo do sculo XIX, que estabeleceu a crtica das
fontes e a interpretao como formas de transformar fatos em fatos histricos,
contribuindo, dessa forma, para a sedimentao da ideia da histria como uma ligao
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31 temporal entre o passado, o presente e o futuro, dotada de sentido (RSEN, 1997, p.
87). Prigogine resume o problema apresentando as questes que se colocam nesse
determinismo temporal:
Esta tenso no interior do senso comum traduz-se no
pensamento ocidental por um problema maior, que William
James chamou de dilema do determinismo. Esse dilema tem
como desafio nossa relao com o mundo e particularmente
com o tempo. O futuro dado ou est em perptua construo?
uma iluso a crena em nossa liberdade? uma verdade que
nos separa do mundo? A questo do tempo est na encruzilhada
do problema da existncia e do conhecimento. O tempo a
dimenso fundamental de nossa existncia. () em termos da
descrio fundamental da natureza, no h flecha do tempo
(PRIGOGINE, 1996, p. 9-10, grifos do autor).
Nesse ponto, temos a base do modelo proposto por Morin, em que novas
ortodoxias (em nosso caso, as teses do perodo crsico da teoria da histria na segunda
metade do sculo XX) surgem atravs de uma dinmica contnua que reavalia
constantemente os postulados terico-metodolgicos ento vigentes para que as
demandas do contexto contemporneo exeram as transformaes no interior da
disciplina. Inicialmente essas transformaes so tidas como inovaes, posteriormente
como transgresses e, por fim, como uma tendncia. O carter crsico permeia toda a
atividade historiogrfica e a interdependncia temporal que estabelece um fluxo
constante de questionamento e de reavaliao no permite a viso difundida por muitos
tericos de cisma ou alterao paradigmtica definitiva. Trata-se de um movimento
natural e necessrio para a manuteno da relevncia da cincia histrica.
Para compreendermos melhor esse argumento, tomemos como eixo a discusso
empreendida por Thomas Kuhn no que se refere ao carter mvel das cincias. Em texto
intitulado A tenso essencial: tradio e inovao na pesquisa cientfica (KUHN,
2011), Kuhn faz um alerta importante para a anlise de perodos de transformaes no
interior das cincias. Para ele, a tarefa mais importante em momentos de crise evitar a
observao das diferentes propostas em jogo e tentar o produzir o mximo com as
ferramentas que j esto disponveis. Essa assertiva traz uma implicao que se
assemelha s inter-retro-aes de Morin, no sentido de observar que na conduo da
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32 prtica cientfica a convergncia to importante como a divergncia. Afirmar algo
desse tom estabelece que qualquer eventual situao vista como definitivamente crtica
equivocada, devendo prevalecer sempre um dilogo entre tradio e inovao. Nessa
condio dialgica, Kuhn observa que a dinmica de transformao das cincias no
passvel de predio, sendo a maioria delas ocorridas de forma quase acidental, graas,
no caso da histria, a um novo conceito, uma nova releitura do passado ou algum
resultado inesperado que algum tipo de fonte desconhecida ou pouco estudada
proporciona. A partir da constatao de uma mudana fundamental em uma certa ordem,
o cientista (nesse caso, o historiador) precisa rearranjar os postulados que at ento
guiavam sua prtica enquanto pesquisador.
Essa tenso entre modelos preestabelecidos (tradio ou ortodoxia) e a inovao
(transgresso ou heterodoxia) estaria localizada na prpria natureza do conhecimento.
Entretanto, esse ponto de vista foge maioria dos pesquisadores, e na histria essa fuga
ainda mais acentuada. Isso se deve especialmente a dois fatores: 1) um pesquisador
geralmente um resolvedor de enigmas dentro de padres preestabelecidos, e no um
inovador ou criador (KUHN, 2011, p. 250); 2) a emergncia de novos pontos de vista
sobre um determinado problema dificilmente denota consenso entre os membros da
comunidade cientfica em um primeiro momento (Ibidem, p. 248). A ausncia desse
fator consensual faz com que, em certos momentos, coexistam em uma determinada
prtica cientfica diferentes correntes disputando a predominncia entre seus partcipes.
Essa disputa entre modelos ortodoxos e novas propostas tangenciando a prtica
considerada segura e consensual gera uma situao de crise. Utilizando o argumento de
Edgar Morin, esse momento estaria localizado entre as etapas um (inovao) e dois
(transgresso) da construo de novos padres da produo do conhecimento.
Se considerarmos o imaginrio acerca de uma crise para a disciplina histrica a
partir da relao dialgica entre tradio e inovao, necessrio que levemos em
considerao a mecnica do estabelecimento de padres inseridos na conduo da
prtica cientfica. Kuhn, enquanto historiador da cincia e observador do funcionamento
interno de suas manifestaes, desenvolveu suas ideias iniciais contidas em A tenso
essencial a partir da noo geral de paradigma. Em A estrutura das revolues
cientficas (2011), o autor aprimora sua ideia de tenso, elaborando um eficiente aparato
interpretativo para o funcionamento das prticas cientficas. Embora Kuhn refira-se
cincia de uma forma geral, enfatizando especialmente as cincias naturais por meio dos
exemplos selecionados para sustentar sua teoria, podemos deslocar seus conceitos para a
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33 histria sem perder a densidade e aplicabilidade de suas propostas.
Segundo o autor, a conduo de pesquisas cientficas s possvel mediante a
existncia de determinadas regras, conceitos e mtodos amplamente aceitos pela
comunidade especfica de pesquisadores. O conjunto desses elementos foi construdo ao
longo do tempo por indivduos que precedem a prtica contempornea de determinada
disciplina, fornecendo, dessa forma, os fundamentos no qual os trabalhos desse
segmento se basearo. Quando esse conjunto de normas recebe o reconhecimento e gera
um certo consenso, estabelece-se um paradigma (Ibidem, p. 29-30). Na histria, o
modelo fundador da disciplina elaborado nos sculos XVIII e XIX rene uma srie de
procedimentos, prticas e conceitos comumente identificados como paradigma
moderno. medida que determinado paradigma ganha adeptos e passa a ser executado
sem maiores questionamentos, ele se torna, segundo Morin, uma norma ou ortodoxia. A
partir disso, tal prtica paradigmtica passa a incorporar o que comumente se identifica
como tradio. Nesse ponto temos o problema responsvel pelo surgimento de
momentos crticos, identificados aqui como crises.
Levando em considerao a j mencionada existncia de dois tipos fundamentais
de pesquisadores (aquele que apenas resolve enigmas e aquele que cria), partimos do
pressuposto de que aquele pesquisador que realiza suas atividades levando em
considerao apenas o corpus inserido em um determinado paradigma exercer a funo
bsica de preencher pginas de roteiros e manuais. J aquele que orienta sua atividade
pensando sua disciplina no intuito de inov-la partir sempre dos limites do paradigma
vigente para ampliar seus horizontes e aprimor-lo por meio de novas perspectivas at
ento desconsideradas. Nessa abordagem, de acordo com Kuhn, surgem os perodos de
redefinio dos postulados de determinada cincia, que tanto oprimem aqueles apegados
ordem estabelecida por paradigmas consolidados.
Quando um cientista pode considerar um paradigma como
certo, no tem mais necessidade, nos seus trabalhos mais
importantes, de tentar construir seu campo de estudos
comeando pelos primeiros princpios e justificando o uso de
cada conceito introduzido. Isso pode ser deixado para os autores
de manuais. Mas, dado o manual, o cientista criador pode
comear suas pesquisas onde o manual a interrompe e desse
modo concentrar-se exclusivamente nos aspectos mais sutis e
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34 esotricos dos fenmenos naturais que preocupam o grupo. Na
medida em que fizer isso, seus relatrios de pesquisa comearo
a mudar, seguindo tipos de evoluo que tm sido muito pouco
estudados, mas cujos resultados finais modernos so bvios
para todos e opressivos para muitos (KUHN, 2011, p. 40).
O trecho supracitado elucida um problema de ordem terica que tanto foi
abordado por Jrn Rsen nas ltimas dcadas. Em defesa de uma maior difuso da
teoria da histria, Rsen (2001) argumenta em sua Razo Histrica que a vasta maioria
dos historiadores no pensa as categorias bsicas de seu ofcio, tomando como
pressupostos implcitos determinados postulados normativos da operao
historiogrfica. Isso se deve, de acordo com o que expomos da obra de Kuhn, ao
problema da ausncia de reflexo e inquirio dos mecanismos internos (sutis) da
prpria disciplina, onde a fundamentao de determinados paradigmas eximem o
pesquisador de considerar problemas bsicos.2 No caso da histria, raros so os
historiadores que consideram questes sobre a natureza da disciplina, como a real
possibilidade de apreenso do passado, a forma como o discurso histrico apresentado
e os limites da comprovao documental. Nesse sentido, no cenrio de crise que
abordamos, Hayden White, por exemplo, seria uma espcie de modelo de pesquisador
criador nos termos colocados por Kuhn, j que ele parte dos limites impostos pelo
paradigma moderno para repensar pressupostos bsicos da pesquisa histrica para ento
fundamentar uma nova forma de enxergar o fazer historiogrfico.
Com efeito, o exemplo de White esclarecedor para compreendermos a
dinmica do trnsito paradigmtico. De acordo com Kuhn, pesquisadores de ndole
criativa tendem a refutar postulados estabelecidos para investigar determinados
2 No texto A histria da cincia, inserido na coletnea A tenso inicial, Thomas Kuhn desenvolve esse problema ao comentar a resistncia de novos pesquisadores de consultarem obras fundadoras, como a Fsica de Aristteles, por exemplo. Isso ocorre, segundo o autor, devido tendncia da cincia moderna de tomar esses tipos de obras como obsoletas pelo simples fato de teorias posteriores j terem provado que os postulados contidos nelas estavam errados. Para Kuhn, isso reflete a importncia do consenso de comunidades de pesquisadores em relao a determinados paradigmas, responsvel por inibir a atividade criativa do jovem cientista. Citando a Bertrand Russell, ele afirma que, ao estudar um determinado autor, no se deve procurar onde ele errou, e sim partir de uma simpatia hipottica para tentar compreender como esse autor chegou s concluses que sua obra demonstra, ao ponto de podermos compreend-lo e at mesmo acreditar naquilo que ele props. Autores como Alexandre Koyr, Anneliese Maier e E. J. Dijksterhuis seriam pioneiros por combaterem esse tipo de perspectiva dentro da filosofia da cincia (KUHN, 2011, p. 130-131).
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35 problemas sob novas perspectivas. No caso de White, a emergncia de sua teoria no
mbito da histria coloca em discusso determinadas certezas construdas durante a fase
da historiografia moderna, problematizando, por exemplo, o ideal de cientificidade da
disciplina subsumida a uma relao ordenada entre fonte e o real. Ao realizar essa
problematizao, obras como Metahistory oferecem uma nova matriz de abordagens
para a pesquisa histrica, invertendo a lgica interna da disciplina ao aproxim-la da
literatura e das anlises do discurso. No obstante a narratividade e o discurso histrico
serem hoje parte do corpus de objetos amplamente pesquisados por historiadores das
mais diversas tendncias, a inverso causada por autores como White foi responsvel
por um perodo de incerteza e insegurana para a comunidade de pesquisadores. Esse
perodo de trnsito entre a emergncia de um novo paradigma e sua absoro por parte
dos pesquisadores identificado como um cenrio, tambm transitrio, de crise.
Segundo Kuhn:
A emergncia de novas teorias geralmente precedida por um
perodo de insegurana profissional pronunciada, pois exige a