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714 Normas de edição: o compromisso com a objetividade Vanessa Regina Duarte Xavier Universidade de São Paulo-FAPESP Resumo: O presente trabalho tenciona refletir sobre o papel das normas de edição no estudo filológico, uma vez que elas definem os procedimentos que devem ser adotados pelo editor, a fim de assegurar objetividade ao resultado obtido. Isso não implica dizer que a edição de manuscritos não resvala na subjetividade do editor, haja vista que cabem a ele as tomadas de decisões, diante das dificuldades surgidas na transcrição de documentos. Nesse sentido, analisamos as normas disponíveis em Megale e Toledo Neto (2005), assim como em filólogos como Cambraia (2005) e Spina (1977) para edições semidiplomáticas ou similares, com vistas a identificar possíveis avanços em termos de normatização, rumo à diminuição dos percalços da prática de edição. Palavras-chave: Edição semidiplomática. Normas de edição. Objetividade. Abstract: This paper intends to reflect about role of editing’s standards in philological study, since these define procedures to be adopted by editor, to ensure objectivity of result obtained. That does not means to say that manuscripts’s editing doesn’t slide in subjectivity of editor, considering that decision-making fit him, given difficulties in transcribing documents. Accordingly, we analyze available standards in Megale and Toledo Neto (2005), as well as in philologists as Cambraia (2005) and Spina (1977) for semi-diplomatic or similar editions, in order to identify possible progress in terms of regulation, toward decrease drawbacks of editing’s practice. Keywords: Semi-diplomatic edition. Standards edition. Objectivity. Introdução Este texto aborda algumas questões centrais que permeiam o trabalho filológico e, de modo especial, a realização de edições conservadoras de documentos manuscritos, vale dizer: Qual a importância das normas de edição? O que dizem as normas sobre as formas ambíguas ou que não possuem equivalentes no alfabeto da Língua Portuguesa? Os critérios existentes são suficientes para a edição dos mais diversos tipos de documentos? Quais fenômenos ainda carecem de normatização? É nosso intuito, portanto, problematizar estes questionamentos ao longo do texto, uma vez que eles se correlacionam à definição do aparato teórico- metodológico da nossa investigação. Cumpre dizer que a problemática ora apresentada surgiu em razão da elaboração da edição semidiplomática de manuscritos goianos setecentistas, pertencentes ao “Livro para

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Normas de edição: o compromisso com a objetividade

Vanessa Regina Duarte Xavier Universidade de São Paulo-FAPESP

Resumo: O presente trabalho tenciona refletir sobre o papel das normas de edição no estudo filológico, uma vez que elas definem os procedimentos que devem ser adotados pelo editor, a fim de assegurar objetividade ao resultado obtido. Isso não implica dizer que a edição de manuscritos não resvala na subjetividade do editor, haja vista que cabem a ele as tomadas de decisões, diante das dificuldades surgidas na transcrição de documentos. Nesse sentido, analisamos as normas disponíveis em Megale e Toledo Neto (2005), assim como em filólogos como Cambraia (2005) e Spina (1977) para edições semidiplomáticas ou similares, com vistas a identificar possíveis avanços em termos de normatização, rumo à diminuição dos percalços da prática de edição. Palavras-chave: Edição semidiplomática. Normas de edição. Objetividade. Abstract: This paper intends to reflect about role of editing’s standards in philological study, since these define procedures to be adopted by editor, to ensure objectivity of result obtained. That does not means to say that manuscripts’s editing doesn’t slide in subjectivity of editor, considering that decision-making fit him, given difficulties in transcribing documents. Accordingly, we analyze available standards in Megale and Toledo Neto (2005), as well as in philologists as Cambraia (2005) and Spina (1977) for semi-diplomatic or similar editions, in order to identify possible progress in terms of regulation, toward decrease drawbacks of editing’s practice.

Keywords: Semi-diplomatic edition. Standards edition. Objectivity.

Introdução

Este texto aborda algumas questões centrais que permeiam o trabalho filológico e, de

modo especial, a realização de edições conservadoras de documentos manuscritos, vale dizer:

Qual a importância das normas de edição? O que dizem as normas sobre as formas ambíguas

ou que não possuem equivalentes no alfabeto da Língua Portuguesa? Os critérios existentes

são suficientes para a edição dos mais diversos tipos de documentos? Quais fenômenos ainda

carecem de normatização? É nosso intuito, portanto, problematizar estes questionamentos ao

longo do texto, uma vez que eles se correlacionam à definição do aparato teórico-

metodológico da nossa investigação.

Cumpre dizer que a problemática ora apresentada surgiu em razão da elaboração da

edição semidiplomática de manuscritos goianos setecentistas, pertencentes ao “Livro para

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servir no registro do caminho novo de Parati – Thomé Ignácio da Costa Mascarenhas (1724-

1762)” e que constituem o corpus da pesquisa.

Isto posto, a primeira seção discorre sobre algumas concepções de edição em Bueno

(1967) e Spina (1977) e, particularmente, sobre a finalidade da edição semidiplomática,

abordando os fatores que interferem na escolha do tipo de edição e a importância da

divulgação dos critérios utilizados, com base em Cambraia (1999).

A segunda parte do trabalho expõe algumas dificuldades de aplicação das normas de

edição (CAMBRAIA, 1999, 2005; MEGALE, 1999), que apontam para a necessidade de

revisão das mesmas, dada, ainda, a ausência de tratamento de alguns fenômenos. Assim,

mostramos qual foi a postura por nós adotada diante dos casos de grafemas dúbios, bem como

das formas sem representação no nosso alfabeto.

Além disso, analisamos as normas para edições semidiplomáticas ou similares

postuladas por filólogos como Cambraia (2005), Megale e Toledo Neto (2005) e Spina

(1977), verificando os avanços no que tange à normatização, que visam diminuir os

empecilhos das práticas de edição.

As normas de edição e a busca pela objetividade

Spina (1977, p. 77) assevera que “Editar um texto consiste em reproduzi-lo”, mas tal

reprodução não deve se realizar, no âmbito da Filologia, de maneira aleatória. Existem

normas que devem ser seguidas para cada tipo de edição, ainda que com algumas adaptações

necessárias, devido às especificidades de cada documento. Entenda-se aqui por edição de

documentos a sua disponibilização e divulgação em outro(s) formato(s).

Bueno (1967, p. 83), por sua vez, diz que: “Consiste a crítica dos textos em

estabelecer e, algumas vêzes, em restabelecer um documento em tôda a sua perfeição, não só

quanto às idéias, mas também quanto à linguagem, às expressões, às palavras do autor”,

demonstrando uma concepção de edição essencialmente conservadora, visto que postula a

preservação não apenas do conteúdo do documento, mas também do vocabulário e da

linguagem empregados pelo autor.

Vale ressaltar que o filólogo precisa escolher o tipo de edição que melhor atende à sua

finalidade e, então, descrever os critérios que nortearão o seu trabalho. Assim, decidiu-se pela

realização da edição semidiplomática do corpus, segundo as normas constantes em Megale e

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Toledo Neto (2005), pelo fato de ela ser conservadora, preservando as características

essenciais dos documentos, como a ortografia, a pontuação, a acentuação, a fronteira

vocabular e a translineação. Por outro lado, ela facilita a consulta aos documentos ao público

em geral porque desenvolve as abreviaturas, marcando em itálico as letras omitidas nos

originais.

Em consonância com Cambraia (1999), o tipo de edição deve levar em consideração o

público ao qual ela se destina. Isso se explica em razão de os linguistas demandarem edições

com um baixo nível de intervenção do editor, isto é, que não modernizem o texto original, já

que disso depende a confiabilidade das considerações que nelas se baseiem. Diante disso, os

linguistas precisam de edições conservadoras e rigorosas que sirvam de fontes aos estudos de

fenômenos diversos, como evidencia a assertiva que segue abaixo:

A viabilização dos estudos diacrônicos depende, sem dúvida, da realização de edições rigorosas e fidedignas, que ofereçam o máximo possível de informações sobre o texto, reproduzindo, na medida do possível, todas as características do original e efetuando apenas aquelas intervenções que se fizerem necessárias para a inteligibilidade do texto (como, por exemplo, o desdobramento de abreviaturas) (CAMBRAIA, 1999, p. 14).

Portanto, é nosso objetivo constituir um material que possa ser acessado, sem maiores

problemas, tanto pelos estudiosos da língua, quanto por pesquisadores outros e pelos não-

especialistas de modo geral. Cumprimos, assim, a finalidade básica da Edótica, qual seja:

“estabelecer um texto que se avizinhe o mais possível do original” (1977, p. 88).

Escolhido o tipo de edição, é preciso, ainda, elucidar os critérios que serão seguidos

para a apresentação do texto ao leitor. Os procedimentos adotados pelo editor devem estar

explícitos ao consulente, de modo que ele possa verificar a rigorosidade da sua aplicação.

Desse modo, o leitor saberá se está ou não diante de uma fonte fidedigna, através da avaliação

da técnica empregada pelo editor, identificando o que é próprio do texto e o que lhe foi

modificado por conjectura.

Desta feita, a aplicação rigorosa das normas que são adequadas a um determinado tipo

de edição tem como meta conferir objetividade ao texto editado, evitando que o filólogo se

funde tão somente em suposições para o estabelecimento do texto. Ademais, tende a impedir a

realização de edições arbitrárias, muito dissidentes e sem cientificidade.

Nesse contexto, Spaggiari e Perugi (2004) salientam que Lachmann foi pioneiro na

proposição de um método para a elaboração de edições críticas, com a finalidade de evitar a

subjetividade no restabelecimento do texto. Segundo eles, “o objetivo de Lachmann era o de

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elaborar um método de edição científico, não aleatório, que desse como resultado – através de

vários processos e fases escrupulosamente efetuadas – a reconstituição objetiva, quase

mecânica, do original perdido” (p. 30).

Percebe-se, assim, o esforço da Filologia para evitar a subjetividade na transcrição dos

textos e para solidificar, efetivamente, o seu aparato teórico-metodológico. No entanto, é

forçoso reconhecer que editar um texto é, fundamentalmente, uma tarefa subjetiva, pois

resulta da interpretação do editor ou, em outros termos, da decifração que o editor faz dos

documentos originais.

É digno de nota, contudo, que nenhum estudo científico deve se assentar em bases

subjetivas. Em decorrência disso, se a primeira aproximação do filólogo com o texto é

marcada por uma interpretação subjetiva, esta precisa ser transcendida em um estágio

posterior, em que o editor deve confirmar ou refutar as suas suposições através de argumentos

objetivos.

De acordo com Fachin (2008, p. 237), “A Filologia portuguesa passa por um momento

muito produtivo no que diz respeito aos trabalhos de edição voltados para a conservação do

estado de língua de documentos manuscritos”, o que demonstra uma maior conscientização

dos filólogos a respeito da preservação das características originais dos manuscritos, tendo em

vista a sua relevância para o esclarecimento de fenômenos linguísticos ao longo do tempo.

Sobre a aplicação dos critérios de edição e seus problemas

Spina (1977) explicita que a edição de documentos deve seguir rigidamente as

normatizações estabelecidas para cada tipo de edição. Em suas palavras, “a preparação do

texto, para editá-lo na sua forma canônica, definitiva, também apela para um conjunto de

normas técnicas, hoje também sistematizadas e mais ou menos universalmente respeitadas”

(p. 76). Apesar disso, nem sempre o conjunto de critérios existentes é suficiente para a edição

de documentos diversos, porque nem todas as dificuldades encontradas estão nele previstas.

Isso ocorre porque cada documento apresenta problemas específicos de leitura e,

consequentemente, de edição, que requerem o estabelecimento de normas complementares, a

serem aplicadas com rigor em cada caso. Nesse sentido, é comum que as normas disponíveis

para cada tipo de edição não consigam englobar a multiplicidade de fenômenos que matizam

os mais variados tipos de documentos.

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Megale (1999, p. 10) observa que “Há mesmo casos em que o mesmo editor segue

critérios diferentes ao editar dois textos da mesma natureza. Esta última observação significa

que a tendência à uniformização de critérios, largamente adotada, encontra dificuldades em

sua própria aplicação”. Depreende-se, portanto, que as normas sofrem uma adaptação em cada

edição realizada, já que, na maioria das vezes, os documentos têm exigências distintas. Assim

é que os critérios não são empregados em sua totalidade em toda e qualquer edição, e outros

precisam ser elaborados e esclarecidos pelo editor.

Na edição semidiplomática que efetuamos do corpus, por exemplo, fez-se necessário

elucidar que alguns tópicos, constantes nas “Normas para transcrição de documentos

manuscritos para a história do português do Brasil” (MEGALE e TOLEDO NETO, 2005),

não foram aplicados. Isso decorre, em parte, do fato de tais normas determinarem a realização

da edição justificada dos fólios, enquanto nós optamos por fazer a lição justalinear dos

mesmos, de modo a facilitar o cotejo com os fac-símiles.

Tal postura acarretou consequências, como a ausência da barra vertical indicativa da

mudança de linha, procedimento usual da lição justificada, além da necessidade de usar, por

vezes, um tamanho menor da fonte, assim como o espaçamento simples entre as linhas, e

fazer alterações na configuração das margens, para que o conteúdo do fólio pudesse ser

incluído em uma única página e na mesma linha em que se localiza no fólio. Abaixo, é

possível comparar as lições justalinear e justificada de um fragmento do recto do fólio 92:

Lição justificada

“Tomey esta determinação fundado no que determinam as Pro | vizoens deSua Magestade de 13 deNovembro de1732, e 15 de Iulho de1734, cujas | copias remetto”

Outra reformulação refere-se à numeração das linhas, que não ocorreu de maneira

contínua por documento, mas foi reiniciada a cada nova página, tendo em vista que o corpus é

composto pelos fólios de número 66 a 139, ou seja, ele não abrange o início do códice. No

entanto, tal procedimento não impediu a consecução da sua finalidade primordial, a saber,

favorecer a localização imediata dos fenômenos linguísticos.

Quanto ao critério de sublinhar as assinaturas dos documentos, convém dizer que

assim procedemos com o nome do governador da Capitania goiana, que em geral aparece ao

Lição justalinear

“Tomey esta determinação fundado no que determinam as Pro vizoens deSua Magestade de 13 deNovembro de1732, e 15 de Iulho de1734, cujas copias remetto”

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final dos mesmos, embora nos pareça mais provável que ele tenha sido redigido pelos escribas

do códice, pois o mesmo revela ao menos dois punhos distintos.

Cambraia (2005) considera que as normas de edição devem estar explícitas aos

leitores. Entretanto, isso não ocorre satisfatoriamente, porque não é usual encontrar trabalhos

de edição que evidenciem, por exemplo, como foram representados o <r> dois de conta e o

<s> longo ou caudal, a saber, se através das respectivas letras maiúscula ou minúscula. Face a

isto, convém assinalar que na edição do corpus deste estudo, registramos as formas referidas

através do <s> e do <r> minúsculos.

A título de exemplificação, em Pinheiro e Coelho (2006), que fazem uma transcrição

paleográfica do “Diário de viagem do Barão de Mossâmedes – 1771-1773”, percebe-se tanto

o uso do <r> maiúsculo como do minúsculo para representar o <r> dois de conta, ignorando

um princípio básico de qualquer edição, vale dizer, “fatos iguais devem receber tratamento

igual” (CAMBRAIA, 2005, p. 110). É o que demonstram os excertos a seguir, os dois

primeiros extraídos da página 26, o terceiro da 68 e o quarto da 70:

Ranchos Rossinhas rio ribeyros

Também não é comum obter esclarecimentos sobre o critério empregado para a

distinção de maiúsculas e minúsculas, vale dizer, se a dimensão ou o traçado da letra foi

priorizado. Na obra dos autores mencionados, também não se observa o tratamento coerente

desse aspecto, como evidenciam os vocábulos abaixo, localizados às páginas 26 e 68,

respectivamente, pois embora no primeiro fique evidente o uso do <s> maiúsculo, ele é

registrado por este grafema minúsculo, assim como no segundo, que não deixa dúvidas de se

tratar do <s> minúsculo:

A esse respeito, Cambraia indica como um dos problemas da edição “a diferenciação

de maiúscula e minúscula” (1999, p. 19), apontando como solução a proporção assumida pela

letra em relação às demais que compõem a palavra, quando o seu traçado não é suficiente.

sam seis

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Para o autor (2005), as letras podem variar em dois aspectos, quais sejam: a) tipos, ou seja, os

estilos apresentados pelos grafemas; e b) módulos, que se referem à dimensão do caractere.

Disso decorre que, na transcrição de alguns grafemas, o seu tipo ou traçado pode não

ser o bastante para distinguir entre maiúsculos ou minúsculos. Nesses casos, a dimensão pode

ser igualmente relevante e, algumas vezes, decisiva para tal distinção. Há, ainda, grafemas

que podem ser considerados intermediários ou ambíguos, quando ambos os critérios não são

suficientes para determinar se são maiúsculos ou minúsculos.

Em nossa investigação, na distinção entre maiúsculo e minúsculo, por vezes o traçado

do grafema foi suficiente e, outras vezes, foi preciso considerar a dimensão do mesmo. O

grafema <c>, por exemplo, em (1) pôde ser definido como maiúsculo pelo seu traçado, mas

em (2), a sua dimensão é que levou-nos a representá-lo como tal. O traçado do grafema <o>

em (3) também foi decisivo para registrá-lo em maiúsculo, mas em (4) foi o módulo que nos

fez considerá-lo assim.

(1) (2) (3) (4)

Por outro lado, no caso do grafema <e> em (5), mesmo em se tratando de uma

dimensão maior em relação aos demais grafemas componentes da palavra, o seu traçado foi

considerado minúsculo. O mesmo ocorreu com os grafemas <n>, <z> e <x>, pois apesar de o

módulo sugerir, em vários casos, como em (6), (7) e (8), que o seu uso fosse maiúsculo, o seu

estilo deu mostras do contrário e eles foram registrados como minúsculos.

(5) (6) (7) (8)

Outro problema levantado por Cambraia (2005, p. 120) é concernente à fronteira

vocabular, cuja “dificuldade está em determinar com precisão e segurança o que está junto e o

que está separado”. Nesse sentido, Pinheiro e Coelho (2006, p. 19) também não empregam,

com rigor, o critério segundo o qual “as palavras indevidamente grafadas unidas foram

separadas, mantendo-se apenas aquelas que não dificultassem a leitura como, por exemplo, os

pronomes enclíticos”, como demonstra a tabela a seguir, cujos exemplos constam da página

68:

Meyaponte de Matto

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Além do mais, percebe-se que, segundo dispõe o critério transcrito acima, o próprio

argumento que justificaria a separação vocabular conforme a ortografia contemporânea é, por

excelência, subjetivo, considerando-se que as dificuldades de leitura dependem da maior ou

menor prática de leitura e edição de manuscritos do consulente.

Megale et al (2007, p. 151) alvitram que “Tal como no caso das fronteiras de palavra,

somente uma transcrição conservadora revela a variação gráfica e permite ao pesquisador

considerar o estado de língua da época”, enfatizando que a modernização de alguns aspectos

dos documentos tende a anular o usus scribendi e dificulta, consequentemente, as

investigações de natureza linguística, sobretudo as de cunho morfológico, no caso da

separação vocabular.

Confrontando as normas para edições semidiplomáticas ou similares em filólogos

como Spina (1977), Cambraia (2005) e Megale e Toledo Neto (2005), merece registro que

somente a última obra abordou os casos ambíguos no caso de grafemas maiúsculos ou

minúsculos, postulando que “a comparação do traçado da mesma letra deve propiciar a

melhor solução” (p. 148).

Todavia, na edição realizada, a comparação com outros trechos do documento nem

sempre foi suficiente para solucionar os casos dúbios definitivamente. Por isso, tornou-se

imperativo reconhecer que a edição fidedigna do texto resvala na subjetividade do editor que,

para assegurar a validade da sua interpretação da fonte, precisa descrever e justificar aos

consulentes os procedimentos que não estão previstos nas normas existentes.

A transcrição diplomática-interpretativa, segundo a tipologia de Spina (1977, p. 79),

determina “a divisão das palavras, o desdobramento das abreviaturas (trazendo as letras, que

não figuram no original, colocadas entre parênteses)” e a pontuação do texto. Observa-se,

assim, que ela assinala as letras omitidas nas abreviaturas, preservando as características do

texto de um lado, mas uniformizando-o de outro, já que separa as lexias que estão escritas

juntas e modifica a pontuação original.

Já o conteúdo da edição paleográfica, na classificação feita por Cambraia (2005), em

muito se assemelha ao das normas para edições semidiplomáticas, constantes em Megale e

Toledo Neto (2005), mantendo a grafia, a pontuação, a paragrafação, a acentuação e a

fronteira vocabular originais. Sendo assim, tais normas representam um avanço em relação às

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postuladas por Spina (1977), haja vista que preservam mais as características dos documentos

originais e, por isso, oferecem mais subsídios à constituição de fontes conservadoras.

À guisa de conclusão, Cambraia (2005, p. 109) afirma que “é de se esperar que um

dado tipo de edição seja realizado seguindo-se sempre as mesmas normas”, de modo que as

diretrizes fundamentais de cada tipo de edição sejam mantidas e, assim, possam ser

reconhecidas sem dificuldade pelo consulente. Contudo, ainda podemos notar uma grande

diversidade de práticas de edição e de aplicação das normas.

Considerações finais

O texto mostrou que a aplicação rigorosa dos critérios existentes a um determinado

tipo de edição assegura uma maior objetividade à transcrição conservadora dos documentos.

Entretanto, as normas existentes não garantem a ausência de oscilações de leitura e nem

sempre permitem distinguir os caracteres gráficos dos textos, a exemplo do <s> longo ou

caudado e do <r> dois de conta, cujas normas existentes não dispõem de recursos para a sua

identificação na edição e, por isso, geralmente eles são representados pelo <s> minúsculo,

impossibilitando análises futuras mais aprofundadas sobre os contextos de uso de tais

realizações, que poderiam trazer contribuições aos estudos fonológicos ou mesmo indicar os

hábitos de escrita de uma época.

Segundo Megale et al (2007, p. 154), “o exame das dificuldades na leitura de

manuscritos é muito profícuo”. Diante desta assertiva, salienta-se que não foi nosso intuito

oferecer soluções definitivas para as falhas existentes na normatização de edições

semidiplomáticas ou similares, mas suscitar a discussão sobre a necessidade urgente de

aprimoramento e de complementação dos seus critérios, com o fito de diminuir as

dificuldades com as quais o filólogo se defronta, que levam à criação de critérios subjetivos,

arbitrários e dissidentes para questões fundamentais da edição de documentos.

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