18
211 THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVA 1 , 2 Torben Spaak 3 1. Introdução Na linguagem cotidiana, o termo “competência” possui, no mínimo, dois diferentes significados: “competência” pode significar proficiência ou autorização. Uma pessoa pode ser competente para criar decisões no sentido de que, em regra, ela toma decisões boas e corretas, mas ela também pode ser competente no sentido de possuir a autorização de realizar certos tipos de decisão. A compreensão de “competência” como autorização é um conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude de uma norma e que o exercício dessa competência modifica a posição normativa de tal pessoa. Nosso interesse aqui é, obviamente, a competência no sentido de autorização. Eu uso, como o leitor irá observar, o termo “competência normativa” e não o termo “poder normativo” para designar o conceito em questão, e, assim fazendo, sigo aquilo que pode ser chamado de tradição escandinava dentro da Filosofia do Direito. Conforme observações de 1 O presente artigo é uma tradução direta da língua inglesa elaborada por Felipe Oliveira de Sousa, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e bolsista do programa PIBIC-UFC. 2 Notas do tradutor: para privilegiar, ao máximo, os traços característicos do autor, procurou-se, ao longo desta tradução, manter as citações e alguns termos tal qual foram colocados pelo professor Spaak no trabalho original. 3 Professor Associado de Direito da Universidade de Uppsala (Suécia). V.5 n.2 ago/dez 2007 V.5 n.2 ago/dez 2007

O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

  • Upload
    buidan

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

211

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVA1 , 2

Torben Spaak3

1. Introdução

Na linguagem cotidiana, o termo “competência”possui, no mínimo, dois diferentes significados:“competência” pode significar proficiência ou autorização.Uma pessoa pode ser competente para criar decisões nosentido de que, em regra, ela toma decisões boas e corretas,mas ela também pode ser competente no sentido de possuira autorização de realizar certos tipos de decisão. Acompreensão de “competência” como autorização é umconceito normativo, no sentido de que uma pessoa temcompetência em virtude de uma norma e que o exercíciodessa competência modifica a posição normativa de talpessoa. Nosso interesse aqui é, obviamente, a competênciano sentido de autorização.

Eu uso, como o leitor irá observar, o termo“competência normativa” e não o termo “poder normativo”para designar o conceito em questão, e, assim fazendo, sigoaquilo que pode ser chamado de tradição escandinavadentro da Filosofia do Direito. Conforme observações de

1 O presente artigo é uma tradução direta da língua inglesa elaborada por FelipeOliveira de Sousa, estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federaldo Ceará (UFC) e bolsista do programa PIBIC-UFC.2 Notas do tradutor: para privilegiar, ao máximo, os traços característicos doautor, procurou-se, ao longo desta tradução, manter as citações e alguns termostal qual foram colocados pelo professor Spaak no trabalho original.3 Professor Associado de Direito da Universidade de Uppsala (Suécia).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 2: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

212

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

Lars Lindahl, os escritores britânicos e americanos preferemo termo “poder”, enquanto os escritores escandinavos,europeus continentais e latino-americanos se referem maiscomumente à “competência”4 .

Por que o conceito de competência normativa deveinteressar aos advogados e filósofos do direito? A respostaé que precisamos de um conceito de competência paraanalisar e discutir adequadamente questões sobre(in)validade jurídica5 . Assim, como veremos, competência éuma condição necessária para a validade: somente umapessoa competente pode modificar uma posição normativa.

Gostaria de apontar, logo de início, que não estamosinicialmente interessados aqui nas condições que devemser preenchidas para que seja possível afirmar que umapessoa tem competência, mas em o que significa ela a ter:nós queremos saber o que é que a pessoa que temcompetência tem. Isso quer dizer que queremos umadefinição do ponto de vista da conseqüência jurídica para oconceito de competência. Tal conceito, desse modoconcebido, pode ser compreendido, no mínimo, a partir deduas diferentes formas: podemos (i) estudar a maneira comoos operadores do direito fazem uso de tal conceito em suasargumentações, ou podemos (ii) estudar o que os filósofose os estudiosos têm dito sobre esse conceito. Creio que épreferível a última alternativa, já que é um tanto obscura amaneira pela qual os operadores do direito compreendemo conceito de competência. Deixem-nos começar, então,

4 Lars Lindahl, Position and Change 194 (1977).5 Isso tem sido enfatizado por Svein Eng. Veja Svein Eng, Begrepene“kompetanse” og “gyldighet” i juridisk argumentation, Tidsskrift forrettsvitenskap 625, 669-70 (1990).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 3: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

213

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

pela observação daquilo que alguns renomados estudiososdo direito têm dito sobre o assunto.

Wesley Hohfeld distinguiu oito conceitos normativosque considerou serem fundamentais ao pensamento jurídico.Dentre eles está o conceito de competência normativa, ou,como Hohfeld apontou, o conceito de poder normativo:

“Uma modificação em uma dadarelação jurídica pode resultar em (1)de um fato superveniente ou de umgrupo de fatos que não estão sob ocontrole volitivo de um ser humano (oude seres humanos), ou (2) de algumfato superveniente ou de um grupo defatos que estão sob o controle volitivode um ou mais seres humanos. Comose considera na segunda classe decasos, pode-se dizer que a pessoa(ou as pessoas) cujo controle volitivoé superior tem o poder (normativo)para produzir a modificação particularde relações jurídicas que estáenvolvida no problema.6 ”

Hans Kelsen, também, analisou o conceito decompetência normativa (Ermächtigung). A passagemseguinte ilustra as suas idéias sobre tal conceito:

6 Wesley Newcomp Hohfeld, Fundamental Legal Conceptions as Applied inJudicial Reasoning 21 (David Campbell & Philip Thomas eds. 2001).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 4: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

214

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

“Die normative Funktion desErmächtigens bedeutet: einemIndividuum die Macht verleihen,Norme zu setzen und zu anwenden.Eine Moralnorm ermächtigt den Vater,seinem Kind verbindliche Befehle zugeben. Eine Rechtsnorm ermächtigtbestimmte Individuen Rechtsnormenzu erzeugen oder Rechtsnormenanzuwenden. In diesem Fällen sagtman: das Recht verleihe bestimmtenIndividuen eine Rechtsmacht... Einnicht dazu ermächtigtees Individuumkann nicht Recht erzeugen oder Rechtanzuwenden. Seine Akte habenobjektiv nicht den Charakter vonRechtserzeugung oderRechtsanwendung, auch wenn siesubjektiv in dieser Absicht erfolgen.Ihr subjektiver Sinn ist nicht ihrobjektiver Sinn. Diese Akte haben –wie man sagt – keine Rechtswirkung,sie sind nichtig, d.h. rechtlich nichtvorhanden.7 , 8 ”

7 Tal passagem foi mantida em sua língua original por dois motivos principais:(a) por ter sido, na versão original deste trabalho, a opção do professor Spaak,e (b) por envolver conceitos bastante específicos que, dificilmente, teriamalguma tradução equivalente no português, ou em qualquer outro idioma.8 Hans Kelsen, Allgemeine Theorie der Normen 82 (K. Ringhofer & R.Walter, eds. 1979).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 5: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

215

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

Outro filósofo do direito que se dedicou aos estudosdo conceito de competência normativa foi Alf Ross, queescreveu:

“Competência é a habilidadejuridicamente estabelecida para criarnorma jurídica (ou efeitos jurídicos)através e de acordo comenunciações para esse efeito. Essasenunciações em que a competênciaé exercida são chamadas actesjuridiques, ou acts-in-the-law, ou, noDireito Privado, declaraçõesdispositivas (dispositivedeclarations). Exemplos são: umapromessa, um testamento, umjulgamento, uma licençaadministrativa, um estatuto. Um act-in-the-law é, assim como osmovimentos no xadrez, um atohumano que ninguém pode performarcomo um exercício de suashabilidades naturais... A partir domomento em que uma norma decompetência prescreve as condiçõespara a criação de uma norma é umatautologia dizer que se uma tentativaé feita para exercer competênciaultra vires (fora do objetivo dacompetência) nenhuma normajurídica é criada. Isso é expresso ao

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 6: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

216

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

dizer-se que o pretendido act-in-the-law é inválido ou que a não-conformidade com uma norma decompetência resulta em invalidade.9 ,

10 ”

H.L.A. Hart também mostrou interesse no conceitode competência normativa, ou, como ele mesmo disse, noconceito de poder normativo. Criticando a teoria do direitode John Austin, Hart esclareceu que tal conceito não poderiaser o responsável pela existência de regras que outorgampoder (power-conferring rules), isto é, regras que“...concedem aos indivíduos facilidades para a realizaçãode seus desejos, em outorgando poderes normativos a elespara criar, através de determinados procedimentosespecíficos e sob certas condições, estruturas de direitos ede obrigações dentro de um campo coercitivo do direito.”11

Observamos que tais autores estão geralmente de

9 “Competence is the legally established ability to create legal norm (orlegal effects) through and in accordance with enunciations to this effect.Those enunciations in which competence is exercised are called actesjuridiques, or acts-in-the-law, or in private law, dispositive declarations.Examples are: a promise, a will, a judgment, na administrative license, astatute. An act-in-the-law is, like moves in chess, a human act which nobodycan perform as na exercise of his natural faculties.... Since a norm ofcompetence ultra vires (outside the scope of the com-petence) no legal normis created. This is expressed by saying that the intended act-in-the-law insinvalido r that no-compliance with a norm of competence results in invalidity.”10 Alf Ross, Directive and Norms 130 (1968).11 “...provide individuals with facilities for realizing their wishes, byconferring legal powers upon them to create, by certain specified proceduresand subject to certain conditions, structures of rights and duties within thecoercive framework of the law.”

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 7: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

217

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

acordo sobre, ao menos, os seguintes três pontos:

(1) alguém que tem competênciatem uma possibilidade de modificarposições normativas. Para firmar talidéia, pode-se afirmar, juntamente comos escritores citados acima, que apessoa competente possui umahabilidade ou um poder (Macht) paramodificar posições normativas.Prefiro, no entanto, dizer que talpessoa tem uma possibilidade, poiscreio que os termos “habilidade” e“poder” inicialmente se relacionamcom qualidades físicas e mentais,enquanto que o termo “possibilidade”pode ser usado para designar, porexemplo, uma relação entre umapessoa e um evento, possuindo,portanto, uma boa aplicação tanto nalinguagem normativa, como na não-normativa.(2) Há uma relação próxima entreos conceitos de competência e de(in)validade. Pelo menos Kelsen, Harte Ross parecem pensar que acompetência é uma condiçãonecessária à validade, mas o mesmopode provavelmente ser dito deHohfeld. Ao dizerem que a pessoa

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 8: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

218

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

competente tem a possibilidade demodificar posições normativas, elesindicam em seus pensamentos quesomente atos válidos modificamposições normativas. Em muitoscasos de (in)validade a questãoemerge sendo ou não o agentecompetente.(3) O agente modifica posiçõesnormativas ao performar um tipoespecial de ato. Nas citações acimasomente Ross se refereexplicitamente a essa questão de umtipo especial de ato, o act-in-the-law,mas também parece que os demaisautores acreditam que a competênciaé exercida através da realização deum tipo especial de ato. Irei denominá-lo de ato-C (C-act – a competence-exercising act).

Deve ser enfatizado, contudo, que o agente não possuicompetência em termos gerais, mas somente em um certo,definido aspecto. Para nossos propósitos, é, portanto,conveniente conceber a relação de competência comosendo uma relação de dois pólos: há sempre uma pessoaque tem competência em certo aspecto. Dentro dessapremissa, o conceito de competência se assemelha aconceitos como “dono”, “pai” e “irmão”. Um dono é o donode alguma coisa, um pai é o pai de alguém, e um irmão é oirmão de alguém.

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 9: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

219

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

Um enunciado do tipo:

(1) p tem competência é, conseqüentemente, elípticoe deve ser entendido desse modo:

(1*) p tem a competência de causar x,

onde x representa um enunciado formulado nos termos dosconceitos normativos básicos de Hohfeld. Isso faz com quese torne possível distinguir entre aqueles casos onde oagente, performando um ato-C, (i) causa a pretendidamodificação de posição, (ii) causa alguma outra modificaçãode posição, e (iii) não causa nenhuma modificação deposição. Quando o agente, performando um ato-C, causa apretendida modificação de posição, diz-se que ele estáexercendo a sua competência.

À luz do que vem sendo dito, proponho a seguintetentativa de definição do conceito de competência (p équalquer pessoa, PN é qualquer posição normativa, e a équalquer ato-C):

(D.1) p tem a competência de modificar PN se, esomente se existe um a tal que p tem a possibilidade de, emperformando a, modificar PN.

O conceito de competência assim concebido constituio menor denominador comum para os conceitos decompetência no Direito Positivo, como Geschäftsfähigkeit,Prozessfähigkeit e Kompetenz. A diferença entre o conceito(geral) de competência expresso em (D.1) e os conceitosde competência do Direito Positivo logo acima mencionadosé que o conteúdo destes últimos é mais específico, pois eles

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 10: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

220

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

versam, somente, sobre o Direito Privado ou sobre o DireitoProcessual.

2. Ter competência

Ter competência, então, é ter a possibilidade de, emperformando um tipo especial de ato, modificar posiçõesnormativas. Para que se tenha uma melhor compreensãoda natureza dessa possibilidade, devemos distinguir entre(i) competência como permissão, (ii) competência como umapossibilidade prática, e (iii) competência como (do jeito quenós deveremos denominar) uma possibilidade hipotética12 .Deixe-nos tratar dessas noções nessa ordem.

Conceber competência como um caso especial depermissão é, simplesmente, um erro. Os autores quesustentam que competência deve ser analisada nos termosde permissão parecem querer dizer ou (a) que competênciaé uma permissão, ou (b) que competência pressupõe umapermissão13 . A primeira alternativa é difícil até de entender,e a segunda parece não convergir com os fatos. Todos nóssabemos que um ladrão pode vender bombons roubadospara um comprador sem permissão, assim como umapessoa que é autorizada a agir em nome de alguém pode –mas não deve – agir contrariamente às suas instruções14 .

Conceber a competência pessoal da possibilidadede modificar posições normativas como um caso especialde possibilidade prática também não converge com os fatos.12 Eu sigo Lars Lindahl aqui. Veja Lindahl, Position and Change, nota 3supra, em 194.13 Veja, p.ex., Carlos Alchourròn & Eugenio Bolygin, Normative Systems151-2 (1971); Georg Henrik von Wright, Norm and Action 192 (1963).14 Para uma análise mais completa da relação entre competência e permissão,veja Spaak, Competence, nota 10 supra, em 80-7.

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 11: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

221

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

Lindahl sugere que Hohfeld pensou sobre uma pessoacompetente nos termos de habilidade ou possibilidade demodificar posições normativas nos termos de umapossibilidade prática15 , mas creio que, ao contrário, comoquase todo advogado, Hohfeld pensou sobre a habilidadeou a possibilidade nos termos de uma possibilidadehipotética16 .

Acredito que o entendimento mais correto sobre oconceito de possibilidade usado na definição do conceitode competência é a alternativa (iii): ter competência é teruma possibilidade hipotética neste sentido: se o agente(numa situação adequada) performa um ato-C (e o faztambém de uma maneira correta), ele irá provocar apretendida mudança de posição. E isso é completamenteconsistente com a idéia de ele não possuir a possibilidadeprática de performar o ato-C, talvez em virtude de umimpedimento físico17 . Eu, portanto, sugiro a definição finaldo conceito de competência normativa:

(D.2) p tem a competência de modificar PN se, esomente se existe um a e um S tal que se p em S realiza a,procedendo da maneira correta, p irá, através de a, modificarPN.

3. Exercitar Competência

Ter competência é uma coisa, exercitá-la éoutra. Há, entretanto, diferentes maneiras através das quais

15 Lindahl, Position and Change, nota 3 supra, em 206-10.16 Para saber mais sobre esse tópico, veja Spaak, Competence, supra nota10, em 87-92.17 Id. Em 80-7. Minha análise é inspirada pela análise de Carl Weillman em

Carl Weillman, A Theory of Rights 47-8 (1985).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 12: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

222

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

uma pessoa pode modificar posições normativas, e oimportante é distinguir entre aquelas mudanças que resultamdo exercício da competência pelo agente e aquelas queresultam do exercício de sua habilidade geral ou poder demodificar posições normativas. Para começar, precisamosfazer a distinção entre competência e Deliktsfähigkeit, queé a possibilidade de modificar a posição normativa dealguém, a partir do cometimento de um crime ou de umatortura. O motivo para tal distinção é que, enquanto acompetência tem sido outorgada a uma pessoa paraconceder-lhe a possibilidade de modificar posiçõesnormativas, a possibilidade de cometer um delito constituisomente o efeito de um aspecto do objetivo de prevenir quecertos tipos de ato possam ser performados. Destaca-se,também, a distinção entre a competência e a possibilidadede modificar a posição normativa de alguém levando emconsideração as taxas ou os benefícios sociais, entre outrascoisas, que ocorrem quando da transferência de uma cidadepara outra. Por o direito fazer com que a posição normativadas pessoas dependa, até certo grau, de seus lugares dedomicílio não se pretende significar que alguém dar a essaspessoas a possibilidade de provocar a pretendida mudançatransferindo-se, mas é, em geral, razoável que uma pessoapague suas taxas e etc onde ela vive. Assim, as mesmasrazões que servem de defesa para a não-presença deDeliktsfähigkeit no conceito de competência tambémservem de defesa para que outras maneiras de modificarposições normativas sejam desvinculadas de tal conceito.

Estamos vendo porque devemos delimitar oconceito de competência. Isso nos remete à questão decomo devemos proceder para fazer tal coisa. Sugiro que o

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 13: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

223

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

importante é o modo de ação do agente ao performar amudança de posição. Podemos expressar isso dizendo queo agente exercita sua competência ao performar o ato-C.Mais especificamente, a realização de um ato-C constituiuma condição necessária e suficiente para o efeito jurídico.Portanto, se (e somente se) nós soubermos quando umapessoa performou um ato-C, nós poderemos saber quandoela exercita (ou tenta exercitar) a competência. Ou seja, osatos-C são as nossas únicas pistas na busca do efeitojurídico; e isso significa que é importante que estejamos bemesclarecidos sobre suas características.

O que é, então, um ato-C? A minha sugestãoé que um ato-C consiste numa ação que depende, para seuefeito jurídico, de ter sido performada com o desejo (real ouimputado) de provocar o dito efeito. Como Neil MacCormickcoloca, “poder é conferido por uma regra quando a regracontém uma condição que é satisfeita somente por um atoperformado com a (real ou imputada) intenção de invocar aregra.”18 . Num amplo entendimento do conceito de declararuma intenção, devemos dizer que o agente exercita suacompetência ao declarar seu desejo, um Willenserklärung 19 .

4. Tipos de Competência

Há diferentes tipos de competência normativa.A mais comum e também a mais notável distinção é,indubitavelmente, aquela entre a competência autônoma,

18 Neil MacComirck, H.L.A. Hart 74 (1984).19 Para uma análise posterior do conceito de uma declaração de intenção, osleitores que falarem sueco podem consultar Ola Svensson, Viljeförklaringenoch dess innehall (1996).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 14: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

224

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

que é uma cmpetência que modifica posições normativasda própria pessoa competente, e a competênciaheterônoma, que é uma competência que modifica posiçõesnormativas de outros de um modo que obriga esses outros20 .Essa distinção existe em duas diferentes versões, e étambém não muito clara em muitos aspectos. Kelsen, porexemplo, faz uma distinção entre a competência autônomae a heterônoma, concebendo uma distinção acerca de duasmaneiras de se criar normas21 . Alf Ross, por outro lado, fazuma distinção entre autonomia privada e autoridade pública,que envolve, ou parece envolver, quatro diferentes critériosde distinção22 . Acredito, no entanto, que, a tratar das versõesde Kelsen e de Ross, estamos tratando de versões damesma distinção, e que o ponto importante é se o agentepode ou não obrigar outras pessoas sem que elas não lhoconsintam.

A distinção entre competência autônoma eheterônoma então concebida é claramente relevante doponto de vista moral. Ao passo que a competência autônomararamente se envolve em dificuldades morais, a heterônomanormalmente se envolve. Em análise final, a existência dacompetência heterônoma se vincula à questão dalegitimidade do sistema jurídico e , também, da relação entreo direito e a moralidade.

Outros autores fazem uma distinção entre a

20 Para saber mais dessa distinção, veja Spaak, Competence, nota 6 supra, em128-34.21 Hans Kelsen, General Theory of Law and State 203-5 (1945).22 Ross, Directives, nota 7 supra, em 132-3.

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 15: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

225

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

criação de normas e a competência regulativa23 . Assimcomo a distinção entre as competências autônoma eheterônoma, essa distinção existe em duas diferentesversões e é também não muito clara em muitos aspectos.Cruamente posta, a competência de criação de normas éuma competência para criar normas, ao passo que acompetência regulativa é uma competência para modificarposições normativas sem a criação de normas. Comoexemplo da competência de criação de normas, pode-semencionar a competência o poder legislativo; comoexemplos da competência regulativa, podem-se mencionara competência do governo de declarar um estado deemergência, a sua competência para nomear juízes e acompetência de um padre para casar um homem e umamulher.

Enquanto a distinção entre a competência decriação de normas e a competência regulativa é menosinteressante do ponto de vista moral do que a distinção entreas competências autônoma e heterônoma, a primeiradistinção pode ser mais interessante dentro de um ponto devista teórico. O que é realmente interessante sobre essadistinção é a natureza exata da competência regulativa.Joseph Raz sustenta que a competência regulativa controlaa aplicação de normas pré-existentes24 . Contudo, alguémpode se questionar sobre até onde é possível alguém

23 Para saber mais dessa distinção, veja Spaak, Competence, nota 8 supra, em134-43. Veja, p.ex., Joseph Raz, The Concept of a legal System (2ed. Ed. 1980);Nils Kristian Sundby, Om normer 361 (1974).24 Joseph Raz, Voluntary Obligations and Normative Powers, The AristotelianSociety. Supplementary Volume XLVI 79, 82 (1972).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 16: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

226

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

modificar uma posição normativa sem criar, modificar ourevogar uma norma jurídica? Infelizmente, Raz não explicaexatamente como o agente exercita esse tipo decompetência. Mas talvez não obtenhamos conclusões tãoimportantes ao nos questionarmos sobre esse problema. Ébem verdade que as normas jurídicas aderem a efeitosjurídicos para muitos diferentes atos e eventos, como, porexemplo, diferentes tipos de violência física e o nascimentoe a morta de seres humanos, e por que, alguém se podequestionar, esses atos em que o agente exercita umacompetência regulativa devem precisamente ser tãoproblemáticos? Estou, então, inclinado a acreditar quesatisfaz notar que o exercício da competência regulativamodifica posições normativas não através da criação denormas, mas sim, normalmente, através da proferição deperformativos juridicamente relevantes, o que não exclui aidéia de a pessoa competente poder criar normas proferindoum performativo.

Finalmente, é importante notar que tercompetência não significa ter um direito. Um juiz pode tercompetência para julgar certos tipos de caso estando sob aobrigação de exercitar tal competência quando um caso dotipo relevante for levado até ele, e, como vimos, um ladrãotem a competência de vender bombons roubados a umcomprador mesmo sem ele ter a permissão de fazê-lo. Emnenhum dos casos a pessoa competente possui um direito.Isso é suficiente para mostrar que ter competência não

25 Para saber mais sobre esse tópico, veja Spaak, Competence, nota 10 supra,em 143-51.

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 17: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

227

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

significa possuir um direito25 .5. Normas que conferem Competência

Até agora nada falamos sobre como acompetência é conferida aos seus agentes. É óbvio que apessoa competente recebe sua competência de algumaordem jurídica, e é razoável assumir que são normas jurídicasde algum tipo que conferem a competência. A questão é senós temos ou não razão ao pensarmos acerca de um tipoespecial de normas jurídicas, cuja única função seja a deconferir competência a pessoas. Mais especificamente,devemos questionar se normas que conferem competênciadevem ser entendidas como normas que impõem deveres(duty-imposing norms) dirigidas a alguns operadores dodireito, ou como normas de competência (competencenorms) especiais, cuja única função é conferir competência,e que são diretamente dirigidas aos legitimados a exercitá-la. Uma norma que impõe dever atribuindo competência seriadirigida a determinados operadores do direito, impondo umdever a eles de reconhecer como juridicamente válidascertas modificações de posições normativas provocadas decerta maneira numa situação determinada por certa categoriade pessoas. Ou seja, tal norma conferiria competência a umapessoa, p, através da imposição de uma obrigação a umaoutra pessoa, q, para reconhecer que p, ao performar certotipo de ato, a, num certo tipo de situação, podem provocaruma determinada modificação nas posições normativas. Ouseja, tal norma conferiria competência a p dando a p apossibilidade, em performar a em S, de modificar PN. Paraser mais claro, o tipo anterior de norma conferiria

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007

Page 18: O CONCEITO DE COMPETÊNCIA NORMATIVAbdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/37132/conceito_competência... · conceito normativo, no sentido de que uma pessoa tem competência em virtude

228

THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará

competência indiretamente a uma pessoa, impondo umdever a alguns operadores do direito, enquanto o último tipode norma conferiria competência à pessoa diretamente semimpor um dever a ninguém.

Minha opinião é que normas que conferemcompetência são mais bem compreendidas como normasque impõem deveres a certos operadores do direito, e comofragmentos de tais normas que impõem deveres. O motivoé que normas que impõem deveres, e não normas decompetência, são normas (completas) no sentido de que elasconcedem (completas) justificativas para ação26 .

26 Para saber mais sobre esse tópico, veja Torben Spaak, Norms that ConferCompetence, 16:1 Ratio Júris 89 (2003).

V.5 n.2 ago/dez 2007V.5 n.2 ago/dez 2007