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O Contemporâneo e o Folk no artesanato São Gonçalo em Cuiabá – Mato Grosso Débora Tavares Universidade Federal de Mato Grosso – Docente Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso – Brasil. Líder e pesquisadora do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC. Muryllo Lorensoni Universidade Federal de Mato Grosso – Mestrando Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo, pesquisador do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC e professor do Centro Universitário Cândido Rondon. Renata Carvalho Oliveira Zambom Universidade Federal de Mato Grosso – Mestranda Aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo, pesquisadora do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC e professora do departamento de Artes da Universidade Federal de Mato Grosso. Resumo A produção artesanal tem grande potencial comunicacional à medida que diz muito sobre o lugar e sobre as pessoas de sua localidade. O trabalho em cerâmica desenvolvido pela comunidade São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá-MT possibilita o diálogo com o contemporâneo e a folkcomunicação, mantendo laços estreitos entre a manutenção da tradição e a incorporação de novos elementos advindos do presente na produção de seu artesanato. Este artigo tem como objeto as relações que se estabelecem a partir do artesanato produzido nesta comunidade ribeirinha localizada à margem esquerda do rio Cuiabá. Comunidade esta que via na cerâmica um modo de suprir a necessidade de utensílios de uso cotidiano e também um modo de complementar sua renda baseada na pesca e na agricultura de subsistência comercializando o excedente produzido. A perca do valor de troca e do valor de cultura atribuído à cerâmica da comunidade São Gonçalo ocorre juntamente com o crescimento da produção industrial de utensílios. O modo encontrado para que a tradição não se perdesse no caminho foi a sua renovação; diminuiu-se então a produção da cerâmica utilitária em virtude da produção da cerâmica decorativa. O trânsito desta produção entre o contemporâneo e o folk é percebido na busca de referências nas tradições ribeirinhas para a feitura das peças, na incorporação de novas funções e de novos elementos à produção original ao mesmo tempo em que consegue através desta prática dizer muito sobre si e sobre os elementos culturais que os constituíram ao longo do tempo e os constitui ainda. Assim este artesanato ultrapassa os limites geográficos e de domínio de sua técnica para estabelecer elos comunicacionais através da linguagem artística, demonstrando os resultados das suas operações culturais tocados pelas alterações sociais que interferem diretamente no modo de viver e expressar-se. Palavras – chave: Folkcomunicação, Artesanato Regional, Cuiabá, Mato Grosso Introdução O presente artigo articula-se com as discussões do EmiC - Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura a medida que tem como objeto as relações que se estabelecem a partir do artesanato, em

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O Contemporâneo e o Folk no artesanato São Gonçalo em Cuiabá – Mato Grosso Débora Tavares Universidade Federal de Mato Grosso – Docente Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso – Brasil. Líder e pesquisadora do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC. Muryllo Lorensoni Universidade Federal de Mato Grosso – Mestrando Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo, pesquisador do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC e professor do Centro Universitário Cândido Rondon. Renata Carvalho Oliveira Zambom Universidade Federal de Mato Grosso – Mestranda Aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCo, pesquisadora do Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura – EmiC e professora do departamento de Artes da Universidade Federal de Mato Grosso. Resumo A produção artesanal tem grande potencial comunicacional à medida que diz muito sobre o lugar e sobre as pessoas de sua localidade. O trabalho em cerâmica desenvolvido pela comunidade São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá-MT possibilita o diálogo com o contemporâneo e a folkcomunicação, mantendo laços estreitos entre a manutenção da tradição e a incorporação de novos elementos advindos do presente na produção de seu artesanato. Este artigo tem como objeto as relações que se estabelecem a partir do artesanato produzido nesta comunidade ribeirinha localizada à margem esquerda do rio Cuiabá. Comunidade esta que via na cerâmica um modo de suprir a necessidade de utensílios de uso cotidiano e também um modo de complementar sua renda baseada na pesca e na agricultura de subsistência comercializando o excedente produzido. A perca do valor de troca e do valor de cultura atribuído à cerâmica da comunidade São Gonçalo ocorre juntamente com o crescimento da produção industrial de utensílios. O modo encontrado para que a tradição não se perdesse no caminho foi a sua renovação; diminuiu-se então a produção da cerâmica utilitária em virtude da produção da cerâmica decorativa. O trânsito desta produção entre o contemporâneo e o folk é percebido na busca de referências nas tradições ribeirinhas para a feitura das peças, na incorporação de novas funções e de novos elementos à produção original ao mesmo tempo em que consegue através desta prática dizer muito sobre si e sobre os elementos culturais que os constituíram ao longo do tempo e os constitui ainda. Assim este artesanato ultrapassa os limites geográficos e de domínio de sua técnica para estabelecer elos comunicacionais através da linguagem artística, demonstrando os resultados das suas operações culturais tocados pelas alterações sociais que interferem diretamente no modo de viver e expressar-se. Palavras – chave: Folkcomunicação, Artesanato Regional, Cuiabá, Mato Grosso

Introdução O presente artigo articula-se com as discussões do EmiC - Grupo de pesquisa Estudos de Mídia e Cultura a medida que tem como objeto as relações que se estabelecem a partir do artesanato, em

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específico, a produção em cerâmica desenvolvida pela comunidade São Gonçalo1 Beira Rio em Cuiabá-MT. O foco de interesse está presente na ocorrência de um diálogo entre a tradição e o contemporâneo onde a cerâmica se constitui como elemento folkcomunicacional2, ou seja, um elemento que ativa um processo de intercambio de informações operado através de um elemento do folclore, neste caso em específico a cerâmica produzida em São Gonçalo Beira Rio - Cuiabá – MT. “(o processo folkcomunicacional) processo de intercambio de informações e manifestações de opiniões, idéias e atitudes de massa, através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore”. (Beltrão apud Schimidt, 2006, p.10) Observa-se que a produção cerâmica da comunidade São Gonçalo Beira Rio estabelece entrecruzamentos da manutenção da tradição e a incorporação de novos elementos, opiniões e idéias advindas do tempo presente. Isto acontece através de processos de reorganização das relações estabelecidas dentro e fora desta comunidade. Estes novos elementos incorporados à produção cerâmica são resultados das modificações das estruturas sócio-culturais, então concretizados na forma de objeto cerâmico. O interesse por esta temática se dá, inicialmente, pela observação da procura e da valorização destes objetos pelos visitantes e pela população em geral, que tem interesse não só pelo objeto pronto e acabado, mas pelo o processo que envolve sua produção. O local da produção da cerâmica é também local onde se desenvolve atividades variadas relacionadas à dança do siriri e cururu3 e atividades de pesca dentre tantas outras atividades cotidianas e comerciais concomitantes com o modo de vida de uma grande cidade. Esta relação entre as atividades tradicionais da comunidade e as necessidades de consumo da cidade fomenta a atividade comercial de restaurantes típicos e comércio de souvenires. São Gonçalo é grande ponto de visitação de turistas e também de moradores da cidade que vêem nesta localidade um espaço para a manutenção da tradição e da história de Cuiabá. Frenquentam o lugar em busca de objetos artesanais e de restaurantes que servem pratos típicos da região, sobretudo aqueles em que tem como base o peixe. Nesta frequentação, pode-se observar que, mais forte ainda que a preservação da história de uma cidade é o sentimento de estar diante de uma região e de pessoas que convivem pacificamente com o desenvolvimento da cidade sem perder a relação com sua origem. Nesta comunidade observa-se que a vida moderna suscitada pelo desenvolvimento da cidade está em concomitância com as práticas culturais passadas de geração em geração. Mais do que manter a tradição ou a história nesta localidade tem-se á mostra o orgulho de ser cuiabano, orgulho este expresso na dedicação dispensada á pesca, no zelo com o preparo do peixe, no cuidado presente na singela cerâmica produzida e no vigor e arrebatamento provocado pela música e pela dança.

1 Santo Portugues considerado protetor dos violeiros. 2 “ ... realizar um estudo dos processos comunicacionais inerentes as manifestações populares e folclóricas, é um estudo folkcomunicacional.” (Schimidt, 2006, p.13) 3 O Cururu pode ser definido como um canto de repente que obedece certas regras de construção para atuarem dentro de um ritual de cunho religioso, forma assim uma história cantada que norteia determinada festa, sendo esta tradicionalmente em louvor a algum santo. Os cururueiros são geralmente do sexo masculino organizados em duplas, cada qual com seu instrumento, a viola-de-cocho ou o ganzá. Ambos cantam simultaneamente, um canta por baixo fazendo a primeira voz, em tom mais baixo. O companheiro canta por cima, ajudando, ou fazendo a segunda voz. As vezes esta é a mais importante que a primeira dependendo da zoada – o som, o tom, o barulho da viola, do ganzá ou da voz do cantador – dos cantadores, ela se sobressai porque é mais alta. (TAVARES, BRANCO, 2010 p. 4)

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Toda estrutura social é permeada por inúmeros fatores de influência, sejam eles advindos de processos de aculturação ou endoculturação. Conforme Santos 1987, cultura é entendida como a dimensão da sociedade que inclui todo o conhecimento em sentido amplo e todas as maneiras como esse conhecimento pode ser expresso, possui uma dimensão dinâmica, criadora, em constante processo. Sendo assim, a produção do artesanato de um povo observada como uma dimensão social ampla de expressão de conhecimento e tida como dinâmica, incorpora novos elementos suscitados por novas configurações sociais. É importante enfatizar a idéia de processo e de dinamismo contida no conceito de cultura. As práticas tradicionais podem ser suscetíveis de serem vistas como estáticas ou imutáveis e o fato de se repetirem por muito tempo não caracteriza que sejam impassíveis de transformações. Sendo assim a “tradição” da cerâmica de São Gonçalo Beira Rio, insere-se neste contexto, e apresenta alterações advindas da dinâmica social em que é produzida. “Nada do que é cultural pode ser estanque, porque a cultura faz parte de uma realidade onde a mudança é um aspecto fundamental” (Santos, 1987, p. 42) São Gonçalo: A comunidade e a cerâmica A comunidade São Gonçalo Beira Rio4 tem o nome em homenagem a São Gonçalo o santo violeiro, foi fundada no século XVIII as margens do Rio Cuiabá. Os primeiros habitantes deste núcleo foram os índios da etnia coxiponé. Neste período as regiões localizadas próximas aos rios Cuiabá e Coxipó foram áreas de exploração de bandeirantes e mineradores vindos de outras regiões do país, sobretudo os paulistas. Sua população atualmente é de aproximadamente 300 moradores que mantém entre si algum grau de parentesco. A presença indígena deixou traços no desenvolvimento cultural 5desta região presentes na música, na dança, na cerâmica, na pesca dentre tantos outros aspectos. Inicialmente desenvolveu-se nesta região uma cultura baseada na economia de subsistência, nas atividades agrícolas, caça e pesca associada a uma produção artesanal doméstica. As peças artesanais produzidas em São Gonçalo são peças em cerâmica que inicialmente eram produzidas para suprirem as necessidades cotidianas das famílias para o transporte e armazenamento de bebidas e alimentos. A produção excedente destes utensilios adquire valor de troca por mercadorias as quais os ribeirinhos não produziam e assim, se fizeram presentes em inúmeras localidades e fazendas espalhadas pelo estado. “São Gonçalo desenvolve cerâmica secular, e no passado suprindo-se das funções, trocava o excedente produzido ao atendimento de outras comunidades. Potes e tálias antes usados em muitas fazendas do Pantanal procediam de São Gonçalo”. (MACP, 2101, p. 241) Com o desenvolvimento posterior da indústria, a produção utilitária perde espaço, e a produção cerâmica necessita ser reorganizada diante deste novo contexto suscitado pelo avanço da indústria, do comercio, das tecnologias e do desenvolvimento da cidade. Deste modo inicia-se a produção de peças cerâmicas de cunho decorativo. Ainda conforme Terezinha Arruda em texto publicado no livro MACP (2010, p. 244) “o artesanato no São Gonçalo é expressão no só do indivíduo/artista, mas de toda a coletividade: é a verdade vital expressa no objeto, que por isso mesmo apresenta-se “artístico”.”

4 Segundo Romancini, 2006, a comunidade foi fundada em 8 de abril de 1719 com o nome de São Gonçalo Velho, na década de 60 com a incorporação da região a zona urbana da cidade de Cuiabá recebe o nome de São Gonçalo Beira Rio 5 É possível observar, por exemplo, semelhanças nos passos de danças batidos no chão como herança de rituais indígenas

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Esta mudança no aspecto da produção da cerâmica São Gonçalo, que sai da produção utilitária para uma produção de cunho decorativo, vai de encontro com a fala de Cristina Schimidt – abaixo - no sentido em que as manifestações da cultura são entendidas como processos dinâmicos que se dão no interior de dada sociedade como um modo de reorganizar suas relações com a sociedade. É bem verdade que as manifestações populares surgem das necessidades primeiras de trocas simbólicas e materiais para a sobrevivência em comunidade, ligadas a questões que vão da moradia à alimentação, da saúde à fé. A partir das condições ofertadas pela natureza e adequadas pelas necessidades dos envolvidos – a cultura é o resultado, onde cada grupo social se manifesta de modo a criar referências, estabelecer diálogos e conquistar espaços sociais que lhe proporcionem uma vida melhor. (SCHMIDT 2008, p. 03) O povoamento da região de Mato-Grosso inicia-se no ano de 1719 motivado pelo interesse na captura índios em substituição da mão de obra escrava passando posteriormente por diversos fluxos migratórios ao longo de sua história: no início do século XX inicia-se outro grande fluxo migratório fomentado pelo segundo ciclo do ouro, na década de 1940 a motivação foi política econômica fomentada pela marcha para oeste durante o governo de Getúlio Vargas, na década de 1960 foi a construção de Brasília que fomentou um processo de interiorização no país, na década de 1970 ocorre um grande fluxo migratório para Cuiabá em virtude da migração sulista. Cuiabá ainda hoje é foco de movimentos migratórios menos concentrados. As modificações que chegam juntamente com os novos moradores influenciam o pensamento e a organização do povo cuiabano, um exemplo disto ocorre na década de 70 com a criação dos CTGs –Centro de Tradição Gaúcha, tal fato impulsiona a criação, no final da década de 80 início da década de 90, do Muxirum Cuiabano6 a fim de exaltar a cultura cuiabana, dar força a suas manifestações culturais. Tal mudança no contexto sócio-cultural interfere fortemente no modo de viver e no modo de se representar culturalmente. Até o século XIX a vida cultural da cidade com apresentações de teatro, musica e dança era voltada mais para a elite, com isso a população ribeirinha e de zonas rurais desenvolveram formas próprias de divertimento. Percebe-se neste contexto de fluxos migratórios e de inserção de uma cultura estrangeira que existe uma preocupação de cunho hegemônico que motiva o incentivo ao estabelecimento de uma cultura cuiabana por parte das elites. A visibilidade da cerâmica São Gonçalo desenvolve-se juntamente com o percurso de outras manifestações da cultura cuiabana como, por exemplo, a grande visibilidade adquirida pelo Siriri e Cururu7. As manifestações da cultura local - antes quase anônimas e restritas às festas de santos – adquirem visibilidade através da criação do festival de Siriri e Cururu no ano de 20018. A cerâmica consequentemente fica em evidencia e esta maior visibilidade, atribuída à comunidade, modifica sensivelmente suas relações sociais. Os processos de revitalização da cultural local leva as peças produzidas pelos artesãos de São Gonçalo para o Museu de Arte e Cultura Popular – MACP em Cuiabá. “Conectados com o mundo, a estrutura social é permeada pelas decorrências dos meios de comunicação de massa, pelos mecanismos de comunicação locais ou regionais, que traduzem um interesse mais localizado. Essa realidade á a que contém o mundo do trabalho, do lazer, da economia e da cultura.

6 O modo de vida ribeirinho ou do morador da zona rural se transforma em um movimento e, posteriormente em associação que recebe o nome de Muxirum Cuiabano. Muxirum significa mutirão ou trabalho comunitário, termo este que reflete apropriadamente as relações estabelecidas nas comunidades em questão. 8 A primeira realização deste evento se deu no ano de 2002.

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Balizadas por este contexto, novas configurações são moldadas nos diversos aportes da formação do indivíduo para localizar-se nesse meio.” (Schimidt, 2006, p.10) Cresce a procura por conhecer a tradição cuiabana, ou o que é ser um “cuiabano de chapa e cruz” 9 e a comunidade se re-organiza para atender a esta demanda, que suscita uma maior produção. Esta produção deve estar integrada com a cidade que delineia formatos diferentes dos tempos iniciais da produção cerâmica da comunidade São Gonçalo Beira Rio agora não mais destinada a suprir as necessidades utilitárias cotidianas e sim atender a um público ávido em conhecer e consumir um produto cultural tipicamente cuiabano. Preparar o barro, moldá-lo e prepará-lo para a queima é uma herança passada de geração para geração, assim como a tradição da dança, da música ou da confecção da viola-de-cocho10. Dentro da comunidade as ações são integradas e um sabe sobre da prática do outro. Os mais jovens aprendem com os mais velhos, é assim que se transmite este conhecimento. É herança também o estilo, a forma desenvolvida por cada artesão no formar do barro. Cada um realiza a produção em sua própria casa, com seus materiais e seu forno; à seu tempo e conforme manda a tradição. O modo de trabalhar o barro e a queima da peça cerâmica pouco se difere do modo como se fazia antigamente. Cada artesão também desenvolve seu estilo de trabalho, ou seja, há a escolha de uma temática por parte de cada um, e não existe um artesão que produza uma peça igual à do outro. Para um a temática é a do rasqueado11, que se apresenta na forma de pequenos casais que parecem se arrastar dançando pelo quintal noite a fora. Para outro o barro se transforma em pequenos pescadores em suas embarcações, ou mesmo em burricos que carregam os ribeirinhos em curtas distâncias. Há ainda peixes, codornas, ânforas, pássaros, moradias, frutas, cestas, objetos utilitários, bonecas, santos dentre tantos outros objetos. Eles são ornamentados com relevos, e desenhos que recebem uma delicada pintura, bem discreta, e em sua maioria recebem ainda a assinatura daquele que a produziu. O artesão dá vida ao barro. Na produção desta cerâmica há a marca de cada nova geração. Os filhos que aprendem a técnica da cerâmica com seus pais e avós, incorporam elementos de seu tempo a sua produção, não fosse isto, estaríamos ainda diante somente de pote, tálias e ânforas para transporte e armazenamento de alimentos e bebidas. Pelo trabalho realizado por esta comunidade, vislumbra-se o estreitamento das relações com o meio, pois o objeto cerâmico produzido é então o signo, o conceito, aquilo que é capaz de estar no lugar de outra coisa, o resultado do engendramento deste homem e sua cultura. Por seu trabalho o homem transforma o mundo como um mágico: um pedaço de madeira, um osso, uma pederneira, são trabalhados de maneira a assemelharem-se a um modelo e,com isso, são transformados em signo, em nomes, em conceitos. O próprio homem é transformado de animal em homem. (Fischer,2007, p. 42)

9 “... cuiabano legítimo que nasceu, vive, e pretende morrer em terra natal...” (ALMEIDA, in ALMEIDA E COX, 2005:24, grifo do autor). 10 A viola-de-cocho é um instrumento musical singular quanto á forma e sonoridade produzido exclusivamente de forma artesanal (...). Seu nome deve-se a técnica de escavação da caixa de ressonância da viola em uma tora de madeira inteiriça, mesma técnica utilizada na fabricação de cochos ( recipientes em que é depositado o alimento para o gado). Nesse cocho, já talhado no formato de viola são afixados um tampo e em seguida as partes que caracterizam o instrumento, como cavalete, espelho, rastilho e cravelhas. A produção de violas-de-cocho é realizada por mestres cururueiros, seja para uso próprio, seja para atender a demanda do mercado local, também constituída por cururueiros e mestres da dança do sisriri.(IPHAN, 2004) 11 Ritmo de música, e dança característico da região da baixada cuiabana que mescla elementos da polca paraguaia e do siriri.

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Figura1 Loja Artesanato em São Gonçalo Beira Rio – Cuiabá – MT

Foto: Renata C. O. Zambom Outro importante fator é a adaptação da rotina da comunidade á demanda do mercado. Fator preponderantemente contemporâneo. Anteriormente, a produção era menor e cada artesão colocava sua produção a venda na porta de sua casa, porém, com o crescente movimento de visitantes interessados em conhecer e adquirir seus produtos, eles se organizaram em um espaço único onde cada um coloca seu trabalho em exposição para venda. O espaço é comum e eles se revezam em sistema de rodízio para atendimento ao público. Vê-se a interferência de fatores comerciais na organização do espaço, o artesanato produzido adquire valor de produto, todos tem consciência do potencial comercial que seu artesanato adquire e que o trabalho de mídia de incentivo sobretudo ao turismo potencializa a atividade comercial, podemos concordar com a fala de Cristina Schmidt (2008, p.9) quando destaca que, de modo geral, “o folclore adquire valor comercial e reconhecimento internacional enquanto produto, atraindo turistas, estudiosos e consumidores de vários perfis. Mas, principalmente, adquire valor enquanto processo comunicacional, percebendo-se como meio de mobilização e identificação de grupos locais no contexto globalizado.

Consideraçoes finais É interessante perceber como, através de um objeto, é possível se estabelecer um entrelaçamento de relações de proximidade de um “dentro” com um “fora”. A cerâmica artesanal, produzida pela manutenção da tradição desta comunidade comporta em si mesma, todas as características sócio-culturais que fazem dela uma potência simbólica. Mais do que estar diante de uma peça que expresse a habilidade e domínio da técnica ou forma do objeto, a peça está como um objeto que transporta para aquele que está fora do ambiente em que foi produzido, todo o contexto de vida e modo de ser daquele que o produziu. Deste modo se revela a potência comunicacional intrínseca ao objeto artesanal que tem em si a potência de dizer ao outro, não por meio de

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palavras, que tal objeto expressa por si próprio, em sua essência, o que vem a ser “ser cuiabano”, comunica ao outro valores preciosos à cultura e a um povo, em específico, o povo cuiabano. Importante é também compreender o movimento que impele o fluxo de afirmação identitária presente atualmente nas manifestações da cultura cuiabana, inclusive em sua cerâmica. Uma região constituída por uma grande variedade de pessoas de origens diferentes, pessoas que vieram de vários pontos do país para fixar residência neste solo e fazer daqui seu local de moradia suscita a emergência de um movimento que permita fazer com que aqueles que são deste lugar e aqueles que o escolheram para ser seu, não se esqueçam das origens e da essência desta localidade.

Figura2 Loja Artesanato em São Gonçalo Beira Rio – Cuiabá – MT

Foto: Renata C. O. Zambom A afirmação da identidade cuiabana está então presente na força empregada para a manutenção de sua cultura, na organização dos festivais, na valorização da pesca, da culinária regional, no turismo e na cerâmica produzida nas margens do rio Cuiabá. Esta cerâmica apresenta-se como a força de uma cultura que se materializa no objeto cerâmico que está repleto das características de um povo orgulhoso de sua origem e de seu desenvolvimento, simples no trato e grande na alma. Este entrelaçamento de signos presentes na produção cerâmica permite com que a cerâmica de São Gonçalo Beira Rio seja objeto de estudos Folkcomunicacionais à medida que retrata fortemente da potencia comunicacional presente nos objetos de produção artesanal, pois são, eles próprios repostas as alterações pertinentes a dinâmica da cultura de seu povo, sofrem influências internas, externas, da mídia, do desenvolvimento da cidade e dos aparatos tecnológicos que permeiam a todos. “A folkcomunicação não é, pois, o estudo da cultura popular ou do folclore, é bom que se destaque com clareza. A folkcomunicação é o estudo dos procedimentos comunicacionais pelos quais as manifestações da cultura popular ou do folclore se expandem, se sociabilizam, convivem com outras cadeias comunicacionais, sofrem modificações por influência da comunicação massificada e industrializada ou se modificam quando apropriada por tais complexos”. (Holfeldt apud Schimidt, 2006, p.13)

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Os meios de comunicação exercem importante papel para promoção das manifestações da cultura regional, através da divulgação de eventos nas mais diferentes mídias. A implementação dos festivais também fomenta o desenvolvimento do turismo da região que adquire maior consistência através da divulgação realizada pela mídia. Assim, devido ao grande fluxo de pessoas que vão ao festival de Siriri e Cururu, este se torna um local apropriado para a divulgação e comércio de itens característicos da cultura cuiabana, ali, são oferecidas atrações de dança e música, culinária e artesanato local. Deste modo, não poderia faltar nas prateleiras à oferta da cerâmica produzida em São Gonçalo Beira Rio exercendo o papel de vitrine das manifestações culturais. A incorporação das manifestações culturais aos ciclos festivos e seu atrelamento a mídia é uma condição natural do tempo presente. As manifestações culturais relacionadas ao folclore são um fenômeno sociocultural e sendo assim não se separa da superestrutura da sociedade, estando diretamente ligadas aos dinamismos inerentes a sua sociedade, dentre eles a influencia das mídias, que podem sim, implicar em situações que motivam mudanças, que impliquem na perca da espontaneidade, porem, mudanças são também elementos constituintes da dinâmica de qualquer cultura. Referências bibliográficas ALMEIDA e COX. Vozes Cuiabanas: estudos lingüísticos em Mato Grosso. 1ª ed. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005. ARANTES, Antonio Augusto. O que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 2006 (Coleção Primeiros Passos, 36). BABHA, Homi K. O local da cultura. 4 reimpr. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed; 3 reimpr. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008. FISCHER, Ernest. A necessidade da Arte. 9ª ed.- Rio de Janeiro: LTC,2007. GRANDO, Beleni Salete. Cultura e Dança em Mato Grosso: Catira, Curussé, Folia de Reis, Siriri, Curur, São Gonçalo, Rasqueado e Dança Cabocla na Regiao de Cáceres. 1 reimpr. Cuiabá-MT: Central do Texto; Cáceres: Unemat Editora, 2005. HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro, DP & A: 2005. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. HTTP:// WWW.portal.iphan.gov.br. Acesso em 13 de outubro de 2011. LARAIA, Roque de Barros. Cultura – Um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2004. LOUREIRO, Roberto. Cultura mato-grossense: Festas de santos e outras tradições. Cuiabá: Entrelinhas, 2006. MACP: [animação cultura e inventário do acervo do Museu de Arte e Cultura Popular da UFMT] /Aline Figueiredeo, Humberto Espíndola, organizadores. – Cuiabá, MT: Entrelinhas, 2010. MARTINS Jr., Moisés Mendes. Revendo e Reciclando a Cultura Cuiabana. 2ª ed. Cuiabá-MT: Janina, 2006. PÓVOAS, Lenine C. História da Cultura Mato-Grossense. Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso; Academia Mato-Grossense e Sul-Mato-Grossense de Letras, Cuiabá-MT, 1994. ROMANCINI, Sônia Regina. Entre o barro e o siriri: um estudo sobre o papel da mulher na cultura popular de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá-MT. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 7 – gênero e preconceitos, 2006, Florianópolis. Seminário internacional Fazendo Gênero. Florianópolis: Editora Mulheres, 2006. SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Coleção Primeiros Passos, 110). SCHIMIDT, Cristina. Org. Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. São Paulo: Ductor, 2006.

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