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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO Belo Horizonte 2014

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade Mineira de Direito

Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O

PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Belo Horizonte

2014

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Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O

PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação stricto

sensu em Direito Processual da Faculdade Mineira

de Direito da PUC/MG - Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial

para obtenção do título de Doutor em Direito

Processual.

Orientador: Rosemiro Pereira Leal

Belo Horizonte

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Soares Júnior, Dário José

S676d O dogmatismo do binômio acusatoriedade-inquisitoriedade e o processo

penal democrático / Dário José Soares Júnior. Belo Horizonte, 2014.

274 f.

Orientador: Rosemiro Pereira Leal

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito.

1. Processo Penal. 2. Dogmática jurídica. 3. Acusação (Processo penal). 4.

Sistema inquisitório. 5. Estado de direito. 6. Argumentação jurídica. I. Leal,

Rosemiro Pereira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 343.1

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Dário José Soares Júnior

O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O

PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação stricto

sensu em Direito Processual daFaculdade Mineira

de Direito da PUC/MG - Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais, como

requisito parcial para obtenção do título de Doutor

em Direito Processual.

_____________________________________________

Rosemiro Pereira Leal (Orientador) - PUC Minas

_____________________________________________

Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias - PUC Minas

_____________________________________________

Adilson de Oliveira Nascimento - PUC Minas

_____________________________________________

André Cordeiro Leal - FUMEC

_____________________________________________

Andréa Alves de Almeida - UNIFENN

Belo Horizonte, 04 de setembro de2014.

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A Marinalva, Gustavo e Júlia. Minha família. Razão de todo meu esforço e

fonte de energia para as batalhas. A meu pai, Dário, e a minha mãe,

Malvina, com afeto e muita saudade.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Rosemiro Pereira Leal. Admirável orientador, sem o qual este

trabalho sequer teria sido projetado, pois foi a teoria Neoinstitucionalista do Processo que

sempre me instigou a desbravar novas searas. Há mais de uma década me dedico ao estudo

desta singular conjectura e sou muito grato por todas as conquistas teóricas por ela

proporcionadas. Aproveito para pedir desculpas pelos momentos em que a dedicação à

pesquisa teve de ceder a outras demandas profissionais, o que pode ter limitado em alguns

aspectos o grau de profundidade teórica do texto definitivo.

Aos demais professores e colegas da PUC-Minas, notáveis cientistas que me ajudam a

desbravar e consolidar a perspectiva da processualidade democrática. Sou um soldado raso

desta tropa, um peão desta empreitada.

Ao curso de Direito das Faculdades Integradas de Caratinga, pelo incentivo que

viabilizou em vários aspectos a presente pesquisa.

A Karl Popper, Mário Ferreira dos Santos, Gaston Bachelard e Rui Cunha Martins

pelo fornecimento de diretrizes preciosas que contribuíram para o desenvolvimento desta

pesquisa.

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O conhecimento não é a procura da certeza. Errar é humano - todo o conhecimento

humano é falível e, consequentemente, incerto. Daí decorre que devemos estabelecer

uma distinção rigorosa entre a verdade e certeza. Afirmar que errar é humano

significa que devemos lutar permanentemente contra o erro, e também que não

podemos nunca ter a certeza de que, mesmo assim, não cometemos nenhum

erro[...](POPPER, 2006).

Quereis uma terapêutica para a crisis? Deixai surgir os humanos possíveis; mais que

possíveis, prováveis; mais que prováveis, actualmente potenciais. Acreditei neles e

não temei a crisis. Unireis os cumes das montanhas, sem deixar de compreender os

vales que precisam dos cumes para serem compreendidos. Em vez de separar, uni;

em vez de abstrair, concrecionai. Não aprofundeis os abismos com as vossas idéias,

as vossas atitudes, as vossas religiões, as vossas crenças, as vossas artes.Não vos

separeis nem do passado nem do futuro. Vivei o instante, não como instante, mas

como um grande prelúdio do amanhã e um grande realizar-se do ontem, como o

ponto de encontro de dois infinitos. (SANTOS, 1959)

É o devido processo legal, como co-extensão procedimental do devido processo

constitucional, que vai estabelecer o espaço discursivo legitimador da decisão a ser

neste preparada por todos os integrantes de sua estrutura procedimental. A atividade

processual reconstrutiva desse modelo de decidir, desde a criação da lei até sua

aplicação, supressão ou regulação, é que implicará concreção fundamentada do

projeto constitucional democrático na contrafactualidade do mundo da vida ou

mediante a problematização dos eventuais conteúdos de legalidade hostil ao

paradigma do Estado democrático de direito. (LEAL, 2002)

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RESUMO

O Direito Processual Penal, no curso histórico, tem se caracterizado pela contraposição

dogmática entre os princípios da acusatoriedade e inquisitoriedade. Houve desde a

antiguidade clássica uma oscilação entre um e outro princípio, sempre prevalecendo a

concepção de que se constituem como sistemas incompatíveis entre si, conciliáveis apenas

artificialmente, pelo chamado sistema misto. Nesta pesquisa, a proposta se concentra em

demonstrar que acusatoriedade e inquisitoriedade não possuem status sistemático, e sim

principiológico, o que permite esclarecer o caráter dogmático desse dualismo metafísico que

constitui forte entrave ao discurso jurídico no Estado Democrático de Direito. A

procedimentalidade penal deve apresentar traços acusatórios e inquisitórios que serão

constrangidos pelos princípios institutivos de forma a permitir uma abertura interpretativa a

todos os interessados, instaurando a processualidade democrática ao romper com a ciência

dogmática do Direito, construindo discursivamente o sentido normativo. Essa perspectiva

passa por uma releitura dos sistemas de enunciação da prova pela linguisticidade jurídica,

propondo uma epistemologia evolucionária capaz de apontar os desvios acusatórios ou

inquisitórios por uma plena processualização de todo o procedimento penal, permitindo a

interenunciatividade dos conteúdos argumentativos e decisórios, pela função heurística do

Processo.

Palavras-chave: Dogmática. Epistemologia. Processualidade.

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ABSTRACT

The Criminal Procedure Law, in the historical course, has been characterized by dogmatic

opposition between the principles of accusatory and inquisitorial way. Been since classical

antiquity an oscillation between one and another principle, always prevailing conception that

constitute as incompatible systems together, concilable only artificially, by calling mixed

system. In this research, the proposal focuses on demonstrating that accusatory and

inquisitorial way not have systematic but principle mode status, helping to clarify the

dogmatic character of this metaphysical dualism which constitutes a strong barrier to the legal

discourse in a democratic state. The criminal procedure must submit accusatory and

inquisitorial features, it will be constrained by institutive principles to allow an interpretative

openness to all stakeholders, establishing democratic processuality to break with dogmatic

science of law, discursively constructing the normative sense. This approach involves a

reinterpretation of the enunciation of proof for legal linguistics systems, proposing an

evolutionary epistemology able to point the accusatory or inquisitorial processualização for

full prosecution of all deviations, allowing inter enunciation of argumentative and decision-

making content, the heuristic function of Process.

Key-words: Dogmatic. Epistemology.Processuality.

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RIASSUNTO

La procedura penale, il percorso storico, è stato caratterizzato da opposizione dogmatica tra i

principi accusatorio e il inquisitorio. Stato fin dall'antichità classica un'oscillazione tra uno e

l'altro principio, sempre prevalente concezione che costituiscono come sistemi incompatibili

insieme, conciliabili solo artificialmente, il cosiddetto sistema misto. In questa ricerca, la

proposta si concentra sulla dimostrazione che accusatorio e il inquisitorio avere sistematica e

sì lo stato in linea di principio, contribuendo a chiarire il carattere dogmatico di questo

dualismo metafisico che costituisce un forte ostacolo al discorso legale in uno Stato

democratico. Il procedura criminale dovrebbe presentare caratteristiche accusatorio e

inquisitorio, sarà vincolata ai principi che istituisce per consentire l'apertura interpretativa a

tutte le parti interessate, stabilendo processualità democratica di rompere con la scienza

dogmatica del diritto, discorsivamente costruire il senso normativo. Questo approccio implica

una reinterpretazione della enunciazione di prova per i lingua giuridici, proponendo una

epistemologia evolutiva in grado di puntare il accusatorio o inquisitorio per il pieno

perseguimento di tutte le deviazioni, consentendo tra enunciazione di contenuti polemico e

decisionale, da funzione euristica il processo .

Parole-chiave: Dogmatici. Epistemologia. Processualità.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21

1 A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO

PROCESSO PENAL .............................................................................................................. 29

1.1 Acusatoriedade e inquisitoriedade: Os primórdios de um embate dogmático ........... 29

1.2 Trajetória do racionalismo dogmático greco-romano e o conceito de justiça ............ 33

1.3 A acusatoriedade bárbara................................................................................................ 40

1.4 Inquisitoriedade canônica e sincretismo jurídico na transição entre o medievo e a

modernidade ........................................................................................................................... 43

2 DO PENSAMENTO JURÍDICO METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO

POSITIVISMO KELSENIANO ........................................................................................... 48

2.1 Racionalismo empírico-determinista e o advento do idealismo transcendental ......... 48

2.2 Acusatoriedade e Inquisitoriedade: Um dualismo Metafísico ...................................... 56

2.3 Repercussões do idealismo alemão na formação das teorias da actio e suas

implicações nos sistemas acusatório-inquisitório ................................................................ 60

2.4 O caráter concreto da actio como pressuposto de liberdade individual em Kelsen e a

atividade punitiva (repressiva) do Estado ............................................................................ 69

3 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL DA AUTORICTAS JUDICIAL E A

AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO .......................... 76

3.1 Jura novit curia versus nemo judex sine actore: O mito do saber jurisdicional ......... 76 3.1.1 Ministério Público como parte ........................................................................................ 86

3.1.2 A prerrogativa investigatória do Ministério Público ...................................................... 88

3.2 Processo como judicium: ausência do devido processo e retorno aos primórdios do

Pensamento Metafísico ........................................................................................................... 90

3.3 A instrumentalidade do processo penal e a persistência do sincretismo jurídico dos

chamados processos acusatório e inquisitório ..................................................................... 95

4 O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-

RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS ........................................................................... 101

4.1 A tópica e a retórica como fontes de construção decisória e jurisprudencial ........... 101 4.1.1 O racionalismo crítico pela via processual ................................................................... 110

4.2 As teorias de Alexy e Dworkin e suas implicações tópico-retóricas ........................... 113 4.2.1 O discurso jurídico como caso particular do discurso geral na teoria de Robert Alexy

................................................................................................................................................ 113

4.2.2 A busca da resposta certa, o Direito como um romance em cadeia e a figura do Juiz

Hércules: Expressões do dogmatismo em Dworkin ............................................................... 116

4.3 Os impactos das visões contemporâneas, neo-modernas e pós-modernas no binômio

acusatoriedade-inquisitoriedade ......................................................................................... 119 4.3.1 A profanação do Direito Processual Penal na perspectiva pós-moderna .................... 130

5 O MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS

PROCEDIMENTALIDADES ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA ................................ 133

5.1 O caráter patrimonialista da sociedade civil como fator de uma jurisdicionalidade

diferenciada ........................................................................................................................... 134 5.1.1 Crítica à sociedade civil pressuposta e a mudança de paradigma no Direito Processual

Penal ....................................................................................................................................... 138

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5.2 As insuficiências teóricas do modelo patrimonialista de processo ............................. 139

5.3 A radicalização da acusatoriedade em face do sujeito natural e a persistência

inquisitorial ........................................................................................................................... 149 5.3.2 O dogma da acusatoriedade .......................................................................................... 158

6 A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A PARTIR DA CLÁUSULA

DUE PROCESS ..................................................................................................................... 161

6.1 Sobre Estado, Democracia e Processo .......................................................................... 161 6.1.1 A processualidade democrática como marco teórico da Pós-modernidade estatal ..... 163

6.2 Da paridade excludente na Inglaterra medieval à ampliação do alcance da cláusula

due process no direito norte-americano .............................................................................. 165

6.3 A releitura da cláusula due process no paradigma democrático ................................ 169

6.4 Contraditório como direito fundamental de vida plena ............................................. 170 6.4.1 O Contraditório diante do "Biopoder" .......................................................................... 173

6.5 Ampla defesa como liberdade ........................................................................................ 176 6.5.1 Defesa, Ampla Defesa e Contraditório: distinções ....................................................... 178

6.6 Dignidade como isonomia: uma perspectiva não-retórica do princípio da igualdade

................................................................................................................................................ 184

6.7 O Devido Processo Penal como médium linguístico .................................................... 190

7 AS DOUTRINAS DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA

PROCEDIMENTALIDADE PENAL ................................................................................. 197

7.1 A proposta da Hermenêutica Filosófica e suas insuficiências no plano democrático

................................................................................................................................................ 197

7.2 Gramsci e processo: uma evidente incompatibilidade ................................................ 200

7.3 O Direito fraterno e sua ambivalência .......................................................................... 201

7.4 Justiça restaurativa, justiça terapêutica e justiça instantânea ................................... 206

7.5 Modelo constitucional de processo, instrumentalidade garantista e a noção de

"Giusto Processo" ................................................................................................................ 212

8 O DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE

ENTRE ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE ............................................... 217

8.1 Prova, verdade e complexidade interna do processo penal ........................................ 217 8.1.1 A verdade como correspondência e o ceticismo de Popper .......................................... 221

8.1.2 A prova como elemento relevante no embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade

................................................................................................................................................ 224

8.1.3 A prova penal na Teoria Neoinstitucionalista ............................................................... 227

8.2 Acusatoriedade e inquisitoriedade como obstáculos epistemológicos ....................... 236

8.3 A epistemologia evolucionária e o enfrentamento dos dualismos dogmáticos .......... 241

8.4 O devir processual penal como interenunciatividade democrática ........................... 244

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 254

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 259

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21

INTRODUÇÃO

As pretensões desta pesquisa podem ser assim resumidas: apontar a crise dogmática do

Direito Processual Penal e as consequências da polarização entre os princípios acusatório e

inquisitório no curso histórico1. Por essa vertente, a pesquisa perpassa conteúdos que

contribuem para que o Processo Penal possa ser objeto de uma Teoria Geral do Processo de

modo que se torne, por uma mecânica gradual2, cada vez mais desembaraçado da ideologia e

do dogmatismo, contribuindo, desse modo, para a consolidação do Estado Democrático de

Direito. Em outras palavras, a abordagem que se segue procura adotar uma perspectiva

epistêmica do Direito Processual Penal3, apontando a inadequação de propostas e perspectivas

que, por intermédio de uma perigosa retórica, apontam soluções mágicas que, ao fim e ao

cabo, não passam de proselitismo, na medida em que atribuem ao Processo Penal, a tarefa de

atender a escopos metajurídicos que lhe são incompatíveis, pois implica uma adesão do

julgador e das partes a critérios sociológicos e políticos4, o que resulta em déficit democrático

e cognitivo.

O Processo de Conhecimento Penal, na perspectiva adotada nesta pesquisa, se

apresenta como “conquista teórica relevantíssima da humanidade” quando se reconhece que

toda a atividade de “cognição jurisdicional”, no Estado Democrático de Direito, “assenta-se

no sistema probatício da persuasão racional, em que a ratio legis há de anteceder ao logos

aleatório ou discricionário do julgador”5. Partindo de tal premissa, a pesquisa vai adotar

alguns eixos epistemológicos que precisam, desde já, serem explicitados.

1 “A idéia de crisis, para os gregos, é a acção que realiza o acto de separar, krisô [...]

[...]Na crisis, há uma separação, e separar é abrir distância entre pares; ela se-para. Mas a distância exige um entre

os separados.

E quando, no mundo corpóreo, separamos os sêres, nós os distanciamos. E a distância (mostra-nos a experiência)

pode ser aumentada, e é ela gradativa, pois pode ser maior ou menor, afastar-se mais ou menos. Portanto, no

conceito de crisis, temos sempre um “afastar” das coisas, um acto de “distanciá-las” umas das outras.”

(SANTOS, 1959. p.20.p. 20) 2 Esta expressão é extraída da obra de Karl Popper que a empregou como expressão de um método de mecânica

social que se contrapõe ao método utópico. Enquanto a mecânica social utópica se baseia na escolha racional de

um fim definitivo (ideal) a ser alcançado, pouco importando os meios a serem utilizados, a mecânica social

gradual não visa alcançar a perfeição e a felicidade sobre a terra, reconhecendo que cada geração de homens tem

suas próprias reivindicações. Sendo assim, o método da mecânica gradual visa ao aperfeiçoamento das condições

de dignidade do homem sem a ilusão de implantar a perfeição e felicidade definitivas.Contentando-se em

diminuir a infelicidade e o sofrimento humano, diminuindo também o grau de violência que sempre se verifica

quando o homem resolve se aventurar pela mecânica social utópica. (POPPER, 1974b.p. 173-174). 3TARUFFO, Michele.La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza, 2009. p. 137

4DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.187.

5LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.

141.

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22

Na busca de alguma singularidade, serão percorridos campos do conhecimento, tais

como: Teoria do Direito, Teoria Geral do Processo, Filosofia, História, Direito Constitucional

e Direito Processual Penal, com o precioso auxílio de autores de contextos díspares, mas que

permitem estruturar uma argumentação do modo mais coerente possível, com a intenção de

apontar as fragilidades de determinados discursos doutrinários, que se apresentam como

panaceia para os males do sistema jurídico-penal, mas que acabam por legitimar o arbítrio e a

inserção de critérios empíricos, não jurídicos, de domínio exclusivo do sujeito da enunciação

decisória, que se posiciona como autoridade ou sujeito-de-estado6.

Mas é fato que a abordagem aqui apresentada incursiona predominantemente pelo

plano da Teoria Geral do Processo. Isso certamente exige uma preocupação permanente com

a demarcação dos campos epistemológicos visitados pelo texto. É necessário ressaltar que a

epistemologia (epistéme) dos gregos tinha inicialmente a pretensão de abarcar todos os

campos do conhecimento, da filosofia à arte, da ciência à técnica (teknê). Posteriormente se

preocuparam em separar o conhecimento empírico (empeireia) do técnico, e este do saber

vulgar (doxa). Na modernidade, o termo epistemologia adquire o sentido de disciplina

destinada ao estudo teórico do saber científico, como ponto de convergência entre Filosofia e

Ciência, disciplina esta que também é chamada de gnoseologia7. O que ocorre é que a

experiência gnoseológica, ou epistemológica, deve tornar indiferente e inútil o debate entre

idealistas e realistas, pois a verdade não se encontra (somente) no sujeito ou (somente) no

objeto, conforme se extrai destas considerações de Pontes de Miranda:

A ciência não avança no sentido da objetividade, porque, em verdade, os objetos

como que se decompõem, se despem, crescem e diminuem, perdem exatamente o

que é oposição ao sujeito, à medida que ao mundo percepcional se substitui o

mundo científico, à cognição vulgar a cognição científica. O que se observa ao

longo do desenvolvimento da ciência é uma depuração, um eliminar do que é (sub)

jetivo do que é (ob) jetivo, para que se afirme o jetivo.8

Esse é um ponto de partida para extrair o conhecimento das amarras do subjetivismo

(idealismo) e do objetivismo (realismo), diminuindo os riscos e os enganos produzidos por

essa dicotomia. O jeto, que na visão de Pontes de Miranda, põe fim à oposição entre

experiência subjetiva e experiência objetiva, vai assumir na obra de Karl Popper, uma

sofisticada configuração pelo desenvolvimento da teoria dos três mundos. Grosso modo,

6 BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 293.

7 SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo:

Logos, 1958. p. 35. 8 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Campinas:

Bookseller, 2005.p. 119.

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23

pode-se afirmar que o "Mundo 3", em Popper, reúne os produtos da mente humana resultantes

do relacionamento entre o "Mundo 1", que reúne os estados ou processos físicos, e o "Mundo

2", que reúne os estados e processos mentais. "Mundo 1" e "Mundo 2" se expressam pelo

dualismo cartesiano representado pelo "problema corpo-mente". Na perspectiva pluralista de

Popper é ao "Mundo 3" que pertencem os argumentos e teorias9.

Os sistemas teóricos, os problemas e os argumentos críticos são desenvolvidos para

que a humanidade possa enfrentar as dificuldades epistemológicas. Enquanto se diz que um

“estado material” é inerente ao “Mundo 1”, e um “estado de consciência” é inerente ao

“Mundo 2”, pode-se afirmar que o homem se encontra no “Mundo 3” quando adquire um

estado de “discussão” ou de “argumento crítico”, proporcionado pelos conteúdos de livros,

revistas, bibliotecas, enfim, de todo um arcabouço de conhecimento disponibilizado a todos

indistintamente e que assegura a autonomia do “Mundo 3”, como um “mundo objetivo”.

Livros, revistas, pesquisas, problemas, conjecturas, argumentos e teorias não são apenas

“expressões simbólicas ou lingüísticas de estados mentais subjetivos”10

que o homem

desenvolve para provocar em outros uma disposição comportamental, mas um mundo

autônomo que oferece à mente humana uma retrocarga de conhecimento.

As cogitações contidas nessas plataformas, transpostas para a Ciência Jurídica,

proporcionam maior abertura argumentativa e possibilitam uma constante interrogação dos

conteúdos dogmáticos. Mostrando-se, assim, de grande relevância para a construção do

Estado Democrático de Direito. Esta pesquisa segue a trilha aberta pela Teoria

Neoinstitucionalista do Processo e o faz porque, mesmo em uma tese doutoral em que se

busca o ineditismo, é preciso consolidar a argumentação em teorias preexistentes, mediante a

confrontação das que reputamos mais relevantes, para extrair os conteúdos conclusivos que ao

final são apresentados como resultado, proposta ou conjectura que, por sua vez, poderá servir

de base para novos desenvolvimentos e críticas. O Direito Processual Penal, também pode se

servir de tais abordagens. Como afirma Rosemiro Pereira Leal:

Em Popper, como se infere, não há proibição, pela via da discussão crítica

(linguístico-evolucionário-problematizante), de eleger uma entre várias teorias como

marco de controle de nosso pensar, como também, a partir da teoria adotada,

podemos controlar as nossas teorias. Não quer dizer que teorias não possam ser

trocadas, substituídas, eliminadas. Porém, entre teorias concorrentes, há de se buscar

o melhor padrão teórico-regulador para não abolir emocionalmente o sistema que se

sustenta por uma testificação teórica continuada à realização de propósitos e

9 POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira

Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 17. 10

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 109.

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24

objetivos. No direito democrático, a linguagem teórico-processual apresenta uma

relação de inclusão com as ideias humanas de vida, liberdade e dignidade, daí não se

conceber vida humana sem concomitante abertura ao contraditório, ampla defesa e

isonomia. Humana não seria a vida se vedado ao homem descrever e argumentar.11

É pautada por essa concepção epistemológica que a pesquisa se desenvolve,

procurando discernir e demonstrar como o Direito Processual Penal foi marcado por uma

evidente oscilação entre os princípios da acusatoriedade e inquisitoriedade sem, contudo,

encontrar uma concepção teórica que pudesse harmonizá-lo com a teoria da Democracia e os

consequentes postulados constitucionais do Estado Democrático de Direito. A pesquisa

apresenta uma crítica a propostas que surgem na tentativa de apontar a superação dessa

dicotomia paralisante e busca demonstrar que tais propostas, por uma razão ou outra, não se

enquadram no paradigma da processualidade democrática, e que a epistemologia processual

adquire aspectos que, cada vez mais,a aproximam de uma epistemologia evolucionária. Esta

se contrapõe à epistemologia de senso comum na qual se estabelece a crença de que o

conhecimento verdadeiro é imediato e direto, fruto de nossas percepções, sem qualquer

intermediação de sistemas teóricos. Um sensorialismo prático e dogmático que só pode servir

de ponto de partida para cogitações, pois “o êxito passado está longe de assegurar o êxito

futuro”12

. Isso porque nossas intuições sensíveis são submetidas a esquemas abstratos

(teorias) que nos permitem separar os fatos e as informações que os compõem, de modo a

possibilitar o esclarecimento em sua atualidade geral (qualidade)13

.

Essa perspectiva, já no Capítulo 1, intitulado: A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO

DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO PROCESSO PENAL, permite encaminhar um

levantamento histórico para que se possa compreender como os princípios acusatório e

inquisitório vêm caracterizando os mais diversos sistemas político-jurídicos, prevalecendo um

ou outro conforme as ambições da autoridade de turno. Desde a antiguidade clássica,

passando pela acusatoriedade bárbara e pela inquisitoriedade, fruto do sincretismo jurídico do

medievo, tem-se um panorama dogmático, cuja pesquisa se mostra como importante

plataforma para as cogitações processuais da modernidade e da pós-modernidade.

O advento do positivismo kelseniano aprofunda a ambição cientificista que o Direito

adquire no pandectismo e seus congêneres. A relevância dogmática dessa concepção é objeto

do Capítulo 2. Esse tópico, como se observa do título: DO PENSAMENTO JURÍDICO

11

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo

Horizonte: Arraes, 2013. p. 81. 12

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999. p. 73. 13

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p.20.p. 20. p. 151

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25

METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO POSITIVISMO KELSENIANO, tem a pretensão

de abordar o embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade como expressão de um dualismo

metafísico que persiste na modernidade, sobretudo em razão das implicações idealistas sobre

as teorias da actio. Aqui, a atividade repressiva estatal é confrontada com a teoria da actio em

Kelsen, em que esta é concebida como pressuposto de liberdade individual e verdadeiro

sustentáculo de que depende a concretização de todo o sistema jurídico.

Já no Capítulo 3, tem-se a preocupação de investigar as repercussões do idealismo

alemão no sistema de persuasão racional. O título: A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL

DA AUTORICTAS JUDICIAL E A AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO

MINISTÉRIO PÚBLICO, fornece uma ideia dos conteúdos extraídos de uma abordagem que

se concentra em demonstrar a contradição entre os princípios jura novit curia e nemo judex

sine actore, como expressão da desprocessualização, em um sistema instrumentalista no qual

o processo se resume ao judicium.

No Capítulo 4, a intenção é demonstrar que a modernidade não superou o mito da

autoridade, muito especialmente no âmbito dos processos judiciais. Deste contexto não

conseguem se desvencilhar nem mesmo os chamados pós-positivistas, como já se percebe no

título: O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-

RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS. Neste ponto há uma especial atenção acerca dos

alicerces dogmáticos sobre os quais se estruturam as teorias de Robert Alexy e Ronald

Dworkin, com o objetivo de demonstrar que seu acolhimento irrefletido pode levar a uma

concepção autoritária do Processo Penal. A parte final deste capítulo busca encaminhar

algumas distinções que são úteis à compreensão do paradigma democrático: modernidade,

contemporaneidade, neo-modernidade e pós-modernidade. Ao expor esses conceitos e

estabelecer o que pode ser discernido entre eles, opta-se pelo termo pós-modernidade como

marco epistemológico de crítica e superação das insuficiências teóricas do Processo Penal

moderno.

No Capítulo 5, é possível descortinar as repercussões de uma arraigada concepção

civilística no Processo Penal, sob a enganosa fórmula do garantismo. Eis o título: O

MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS PROCEDIMENTALIDADES

ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA. A linha argumentativa adotada neste ponto se concentra

na abordagem sobre o caráter patrimonialista que ainda rege a processualidade de modo a

instituir-se uma jurisdição diferenciada que privilegia a persecução aos despossuídos. De

outro lado, mesmo adotando o dogma da acusatoriedade é possível perceber a persistência de

práticas inquisitoriais, notadamente quando o Processo Penal é invocado como mecanismo de

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26

Estado para o combate de fenômenos perniciosos como as máfias e o terrorismo.

Após apontar essas distorções, a pesquisa apresenta um esboço de sua concepção

pós-moderna de Processo Penal: A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A

PARTIR DA CLÁUSULA DUE PROCESS é a fórmula que vai estruturar os aportes teóricos

que sustentam a proposta de todo o trabalho. Desse modo, o Capítulo 6 vai empreender uma

experiência argumentativa no sentido de apresentar ao leitor as linhas gerais do inovador

conceito de hermenêutica isomênica, desenvolvido por Rosemiro Pereira Leal. A cláusula due

process passa por uma releitura, correlacionando os princípios do contraditório, ampla defesa

e isonomia, com os direitos fundamentais de vida, liberdade e dignidade, respectivamente.

Feitas essas correlações, é possível partir para a compreensão do Processo Penal como

médium linguístico de explicitação dos conteúdos fáticos e jurídicos que são pertinentes aos

destinatários dos efeitos decisórios que dele decorrem.

Um panorama dos esforços contemporâneos de superação do autoritarismo

instrumentalista e positivista é apresentado no Capítulo 7. Lê-se no título: AS DOUTRINAS

DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA

PROCEDIMENTALIDADE PENAL. As doutrinas de “Direito Justo” aqui apresentadas,

evidentemente não esgotam a matéria e possuem apenas caráter exemplificativo, porém de

grande significado. Esta miscelânea aborda perspectivas que vão desde a proposta inspirada

em Gramsci de criação de conselhos populares de justiçamento, passando pelas posturas de

cunho sociológico do chamado “Direito Fraterno”, até os sistemas que pretendem estabelecer

fórmulas como “Justiça Restaurativa”, “Justiça Terapêutica” e “Justiça Instantânea”. O

capítulo não descuida de abordar criticamente posturas epistemológicas que se apresentam

sob rótulos aparentemente democráticos tais como: “Modelo Constitucional de Processo”,

“Instrumentalidade Garantista” e “Giusto Processo”.

Por fim, a argumentação da pesquisa se completa no Capítulo 8, sob o título: O

DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE ENTRE

ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE. Neste ponto conclusivo, faz-se uma

abordagem sobre teoria da prova de modo a reconhecer a complexidade interna do Processo

Penal, demonstrando que a teoria da prova na perspectiva Neoinstitucionalista pode fornecer

as bases teóricas para a superação das indefinições epistemológicas até aqui experimentadas

pelo dualismo dogmático e metafísico dos princípios acusatório e inquisitório. Essa superação

é possível pela abertura proporcionada através da processualidade democrática nos marcos da

teoria Neoinstitucionalista, bem como do racionalismo crítico de Popper. Os temas tratados

no último capítulo aprofundam a perspectiva em torno de um Direito Processual Penal em que

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27

seja possível instaurar o primado da reflexão discursiva sobre a percepção, imediatista e, por

vezes, enganosa, o que se daria pela interenunciatividade estabelecida entre teorias e

argumentos14

, disponíveis a todos os destinatários dos termos, atos e decisões que marcam o

desenvolvimento processual.

Conforme é possível inferir da leitura que se segue, o Processo Penal no

constitucionalismo pós-moderno já não acolhe, em razão dos avanços recentes da Teoria

Geral do Processo, nem o acusatório, tampouco o inquisitório, como princípio ordenador ou

unificador. Rui Cunha Martins nos remete ao princípio da “democraticidade” como o

referente capaz de conferir legitimidade ao sistema:

Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por um modelo

de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de mais

fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o modo

instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo, ainda

que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de legalidade,

se ele comportar elementos susceptíveis de ferir o vínculo geral do sistema (o tal

“princípio unificador”: a democraticidade), ainda quando esses elementos podem até

não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o carácter acusatório desse

modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema processual

democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege.15

Democraticidade, como característica inerente àquilo que é democrático, se apresenta

como conteúdo a ser aferido pela gradual compatibilidade entre o sistema de Processo Penal e

as normas constitucionais, que o configuram como instituição destinada à preservação da

liberdade individual atuando como mecanismo de controle das ações governamentais e

políticas, em cuja bondade e sabedoria intrínsecas, não é prudente confiar16

.

A concepção Neoinstitucionalista parte desse pressuposto de controle recíproco das

formas e conteúdos que asseguram o devido processo legal como oferta de testabilidade

teórica das decisões estatais17

. Isso não equivale a acolher perspectivas que sob o rótulo de

neo-constitucionalismo e pós-positivismo investem em uma judicialização das relações

políticas e sociais, que passam a ser tuteladas por tribunais e juízes que são chamados a

ocupar no imaginário coletivo um locus privilegiado, adquirindo uma feição heróica pela qual

14

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo

Horizonte: Arraes, 2013. p. 105. 15

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 145-146. 16

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1974b. p. 138. v.1. 17

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.

(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:

Fórum, 2011. p. 591.

Page 20: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

28

se tornam agentes capazes de impor reformas estruturais18

.

Aqui, deve ser ressaltado que este é, antes de tudo, um trabalho de Teoria Geral do

Processo. As vertentes desta disciplina, desde Savigny, passando por Bülow, Chiovenda,

Goldschmidt, Couture e Fazzalari, são estudadas e confrontadas com a teoria

Neoinstitucionalista, que se apresenta como oferta teórica com capacidade para proporcionar

considerável ganho democrático também ao Processo Penal, que passa a ser compreendido

como instituição de controle da atividade jurisdicional, superando de vez as perspectivas

autoritárias que, sob uma aparência democrática, defendem exatamente o inverso, ou seja, o

controle jurisdicional do processo.

O desafio do Processo Penal na democracia é instaurar a abertura descritiva,

argumentativa e interpretativa superando a dicotomia entre acusatoriedade e inquisitoriedade.

A presente pesquisa tenta apontar um caminho possível. O caminho da interenunciatividade

como forma de explicitar os conteúdos fáticos e jurídicos de modo a assegurar a

democraticidade plena do Processo Penal, seja naquilo que se apresenta como acusatório ou

mesmo inquisitório. Tal conquista teórica só se mostra possível pela superação dos obstáculos

epistemológicos capazes de perturbar o desenvolvimento da processualidade no paradigma do

Estado Democrático de Direito.

18

BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 228.

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29

1 A DOGMÁTICA E O PREDOMÍNIO DE CONCEPÇÕES ARCAICAS NO

PROCESSO PENAL

As considerações sobre a ciência dogmática do Direito que permearão este trabalho

podem contribuir para demonstrar que no Direito Processual Penal há também uma forte

tendência dogmatizante, expressada por duas grandes correntes que se digladiam há séculos

pela primazia, tanto nas mais diversas legislações quanto no plano teórico. Trata-se das

vertentes inauguradas pelos princípios arcaicos da acusatoriedade e da inquisitoriedade. Neste

ponto, de caráter introdutório, o que se pretende é expor, de forma resumida, a oscilação no

curso histórico entre esses dois princípios, caracterizando um embate dogmático inócuo que já

não encontra acolhida no paradigma democrático. A revisitação histórica é importante para

que se promova uma decomposição descritiva desses pretensos sistemas e como eles

repercutem na atualidade19

. O que se vê é que, mesmo na contemporaneidade, essa dicotomia

se faz presente por uma dialética antinômica20

, que vem travando a evolucionariedade do

Direito Processual Penal no plano discursivo.

1.1 Acusatoriedade e inquisitoriedade: Os primórdios de um embate dogmático

A superação dessa dicotomia se torna possível pela implantação da processualidade

democrática nos marcos institucionalizados no Brasil desde a promulgação da Constituição da

República de 198821

, não como mera síntese dos opostos, mas como método de resistência e

crítica das suposições de senso comum do conhecimento jurídico22

. Para tanto, uma

observação sobre os eventos históricos desse embate pode ser proveitosa para o

esclarecimento de suas bases teóricas possibilitando a crítica que se pretende encaminhar mais

adiante.

19

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

47. 20

“Filosoficamente, são antinômicas as positividades (nomos=lei) vetorialmente diferentes, opostas (anti).

Há nas antinomias, um antagonismo de razão, porque uma antinomia é, para outra, não só de vector, como

especificamente é diferente. Assim, a qualidade e a quantidade são opostos antinômicos, porque uma e outra têm

lei diferente, e são especificamente diferentes. Portanto, a reducção de uma à outra, como o realizou o

mecanicismo, reduzindo a qualidade à quantidade é falsa. Ademais, as antinomias são positividades que se

opõem, e não meras contradicções de realidade ao segundo. Na antinomia, a afirmativa de um não recusa a

validez de existencialidade do outro, como a afirmativa da qualidade não implica no desaparecimento da

quantidade ou a sua simples negação” (SANTOS, 1959, p. 56) 21

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.

141. 22

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.p.

42.

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30

Pela narrativa histórica é possível observar que o embate entre acusatoriedade e

inquisitoriedade tem suas origens com o acolhimento, pelos romanos, no período arcaico (V a

II a.C.), de princípios já desenvolvidos pelos gregos, quando se instaurou a distinção entre

delicta publica e delicta privata, instituindo o procedimento penal público, conduzido por um

terceiro alheio à controvérsia experimentada pelas partes em conflito23

. O objetivo da

abordagem histórica que segue é demonstrar que o arcaísmo persiste na doutrina e na

legislação processual penal.

A alternância entre esses princípios basilares, remonta à antiguidade clássica (que

abrange o período arcaico). Como demonstra Antônio Alberto Machado:

O processo penal na Antiguidade Clássica, na Grécia e em Roma, alternou o seu

perfil entre os modelos inquisitivo e acusatório. Assim, na democracia ateniense o

processo assumiu contornos tipicamente democráticos com contraditório, direito de

defesa, julgamento público etc.; em Roma, esse mesmo modelo acusatório

prevaleceu apenas durante o período republicano, tendo assumido contornos

nitidamente inquisitivos no período da realeza e sob o governo dos imperadores.24

Na Grécia antiga, o sistema de Processo Penal contava com a participação direta do

povo, que tanto exercia a atividade de acusar como a de julgar. Havia um sistema de ação

popular, em nome coletivo, para os crimes mais graves e um sistema de acusação privada para

os chamados delitos privados, menos graves, num claro sincretismo entre direito civil e

penal25

. Os julgamentos se faziam por órgãos colegiados:

Na Grécia e especificamente em Atenas, a jurisdição criminal era toda ela exercida

por órgãos colegiados: A assembléia do Povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas.

A Assembléia do Povo se encarregava de julgar os crimes mais graves; o Areópago

tinha a competência para julgar os homicídios dolosos e os crimes punidos com a

pena de morte; os Efetas julgavam os homicídios não premeditados; e os Heliastas

(assim chamado porque era um tribunal composto por cidadãos que proferiam seus

julgamentos à luz do Sol) exerciam jurisdição criminal plena.26

Há que se destacar o papel do arconte, que servia de intermediário entre o acusador

particular e o tribunal, cuidando de aspectos formais, admitindo ou obstruindo o envio do caso

ao tribunal popular27

. Era o arconte que exercia um juízo prévio sobre a seriedade da

acusação quando então tomava uma caução do acusador, designava o tribunal competente e

23

OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982 p. 42 24

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 12 25

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 58-59 26

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 13 27

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

57

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31

indicava os juízes dos quais tomava o juramento antes de submeter-lhes a questão28

.

A organização judiciária grega e seu Processo Penal são apontados, por Antônio

Alberto Machado, como base do processo democrático, com predominância da acusatoriedade

e pelos rudimentos de acusação pública, contraditório entre as partes, direito de defesa e

publicidade que já podiam ser notados29

. No entanto, Omar Abel Benabentos destaca o fato de

que os gregos também utilizavam a tortura como meio de prova, sobretudo contra os escravos

que, quando levados a testemunhar não lhes era permitido prestar juramento, assim, a parte

contrária tinha prerrogativa de torturar os escravos de seu oponente para conferir credibilidade

ao seu depoimento. Mas também houve situações em que alguns homens "dignos e livres"

foram submetidos à tortura30

. O mesmo autor noticia a prática das ordálias (juízos de Deus)

entre os gregos, sobretudo as provas da água fervente e do ferro em brasa, muitos séculos

antes dos germânicos, que celebrizaram este procedimento probatório31

na Idade Média.

Essas provas, sobretudo a tortura, eram chamadas de “inartísticas” por Aristóteles,

pois eram produzidas sem o emprego da “arte” retórica e, por isso, não eram vistas

positivamente32

, sendo seu resultado considerado, no mais das vezes, enganoso. Aristóteles,

porém, não chega a condenar a tortura e apenas se limita a expor argumentos contra e a favor

do emprego de métodos tormentosos na obtenção da prova33

.

Já em Roma, no Período Régio e durante todo o período republicano (de 754 A.C.

28

"En los delitos públicos, quien asumía el papel de acusador producía su acusación ante un arconte, quien se

encargaba de juzgar la seriedad e formalidad de la acusación, conforme a los elementos de prueba que ella

portaba.Si el arconte la admitía, tomaba juramento al acusador y recebía la caución, elementos que aseguraban

que no abandonaría el procedimiento hasta la decisión del tribunal. Además, designaba el tribunal y los jueces

que lo componían y les tomaba también juramento, convocándolos para el día del juicio público." "Nos delitos

públicos, quem assumia o papel de acusador produzia sua acusação perante um arconte, quem se encarregava de

julgar a seriedade e formalidade da acusação, conforme os elementos de prova que ela portava.Se o arconte a

admitia, tomava o juramento do acusador e recebia a caução, elementos que asseguravam que não abandonaria o

procedimento até a decisão do tribunal. Ademais, designava o tribunal e os juízes que o comporiam e lhes

tomava também juramento, convocando-os para o dia do julgamento público" (BENABENTOS, 2005, p. 22,

tradução nossa). 29

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 13. 30

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 23. 31

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 24. 32

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

61. 33

“As confissões sob tortura são testemunhos de natureza peculiar, e parecem merecer confiança, porque nelas está

presente uma certa necessidade. Não é certamente difícil dizer sobre estas confissões os argumentos possíveis: se

elas nos forem favoráveis, podemos valorizá-las, dizendo que são os únicos testemunhos verídicos; se nos forem

contrárias e favorecerem o adversário, podemos então refutá-las dizendo a verdade sobre todo o gênero de

torturas; pois os que são forçados não dizem menos a mentira que a verdade, ora resistindo com obstinação para

não dizere m a verdade, ora dizendo facilmente a mentira para que a tortura acabe mais depressa. É necessário

poder invocar exemplos do passado que os juízes conheçam. É também necessário dizer que as confissões sob

tortura não são verdadeiras; pois muitos há que são pouco sensíveis e de pele dura como pedra, capazes de nas

suas almas resistir nobremente à coacção, mas os covardes e timoratos, apenas se mantêm fortes antes de verem

os instrumentos da sua tortura; de sorte que nada de credível há nas confissões sob tortura”. (ARISTÓTELES,

2005, p. 153-154).

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32

até o século I a.C.), esteve em vigência uma modalidade de Processo Penal notadamente

inquisitiva, a cognitio. Na cognitio, os magistrados tinham mais liberdade de atuação e seu

sistema recursal excluía mulheres e escravos. Somente o condenado que fosse cidadão e varão

tinha acesso ao recurso, denominado provocatio ou provocatio ad populum, um tipo de

reclamação dirigida diretamente ao povo que poderia livrar o condenado em caso de penas

capitais. Esse recurso constava da Lei das XII Tábuas (século 450 a.C.). Nesse período, a

jurisdição penal se dividia entre a Assembléia do Povo, o Senado e os magistrados que, por

delegação, formavam entre si comissões julgadoras chamadas questiones perpetuae,

compostas pelo pretor e pelos judices jurati, que dividiam as tarefas do julgamento. O pretor

era incumbido de uma apreciação preliminar da causa e, quando entendia pela plausibilidade

da acusação, a encaminhava aos judices jurati34

.

A cognitio, de viés inquisitivo, deu lugar à acusatio, em que prevalecia a

acusatoriedade. Um órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado ou um cidadão,

representante voluntário da coletividade, era quem encaminhava a acusação. Desse modelo,

decorrem características como a separação entre acusador e julgador, atividade probatória

reservada às partes numa radicalização do princípio da inércia (ne procedat iudex ex officio),

penalização para a denunciação caluniosa, acusação escrita, rudimentos de contraditório e

direito de defesa, além de procedimento oral35

. A acusatio prevaleceu no ocaso da república e

também se caracterizou pelo estabelecimento de fórmulas prévias que restringiam bastante a

atuação dos magistrados36

. Esse é o chamado período formular (ordo judiciorum privatorum)

que compreende o período arcaico (século V a II a. C.) e o período clássico do direito romano

(século I a. C. ao século III d. C.), em que prevalecia a arbitragem como principal instituto

jurídico a atuar na resolução de conflitos37

.

A transição da República ao Império, que culminou no século III d.C., é marcada

pela consolidação do sistema denominado cognitio extraordinem, que restaurou estruturas

com fortes características inquisitivas e serviu para reforçar o poder central38

, frente às

ameaças internas e externas:

Este tipo de processo entraria por todos os domínios do Império Romano e por toda

a Idade Média, projetando seus traços fundamentais até o alvorecer da modernidade.

34

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 14-15. 35

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011b. v.2. p. 59. 36

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 15 37

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 21-22. 38

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 49.

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33

O processo de partes, os comícios, as questiones perpetuae e, por conseguinte, os

pretores e as comissões ou judices jurati foram sendo abandonados pouco a pouco,

ampliando-se as jurisdições do Senado e do Príncipe que viriam a descartar

completamente a participação dos cidadãos nas funções judiciais em Roma e nas

províncias. Com o desaparecimento dos acusadores populares, o processo criminal

passou a ser instaurado de ofício, no antigo modelo da cognitio dos primeiros

tempos de realeza.39

Esse período tem como a principal de suas características a intervenção do Imperador

mesmo nos julgamentos de competência senatorial, instaurando um monopólio público da

jurisdição, pois passou a vedar a desistência do acusador privado que muitas vezes

abandonava o processo em troca de dinheiro. A persecução penal era então exercida por

delegados do Imperador:

O delegados do Imperador decidiam livremente sobre o início do processo,

investigavam os fatos, regulavam seu procedimento, o instruíam e julgavam. A

figura dos delatores não era a de um acusador propriamente dito, mas de um

informante. Conseqüentemente, os delegados não estavam vinculados às provas

existentes, podendo buscar outras para poderem decidir. Quanto à pena que deveria

ser aplicada, o julgador não estava vinculado aos limites máximos e mínimos

existentes, decidindo de acordo com a condição da pessoa e gravidade do fato.40

Essa concentração de poderes decisórios foi essencial para a sobrevivência do

império, pois evitou o colapso decorrente da decadência dos tribunais populares e

permanentes “motivada pelo rechaço dos cidadãos em formar parte deles”41

. O processo se

resumia ao exercício do judicium42

, variando tão somente o grau de intervenção e iniciativa do

julgador. O fato é que as civilizações da antiguidade clássica já experimentavam a

contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade, como propostas estratégicas

intimamente atreladas à própria forma de governo e de Estado, que por sua vez sofrem a

influência de matrizes filosóficas que se esforçam em compreender o que é a justiça e, como

tal, se consolidaram de forma a influenciar condutas e reflexões que foram determinantes para

a ciência jurídica durante séculos.

1.2 Trajetória do racionalismo dogmático greco-romano e o conceito de justiça

O presente trabalho não se propõe a um aprofundamento em torno do conceito de

39

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 16. 40

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

97. 41

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,

2008.p. 94. 42

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 117.

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34

justiça, porém, uma breve incursão sobre o tema se faz necessária quando se pretende apontar

os alicerces teóricos da dogmática processual penal e os discursos que lhe são subjacentes. Na

Grécia antiga, Aristóteles e Platão inauguraram as matrizes filosóficas mais influentes da

história, Realismo e Idealismo43

e também cuidaram de buscar compreender a justiça. Cada

qual a seu modo, contribuiu para o desenvolvimento da ciência jurídica.

Mesmo advertindo que a concepção sobre o justo pode variar segundo as concepções

individuais, Aristóteles procura encontrar uma definição racional de justiça. Na Ética, a

Nicômaco apresenta inicialmente uma concepção de justiça em sentido lato para depois se

ocupar da justiça em sentido estrito que, segundo ele, se manifesta de três modos: como

justiça distributiva, como justiça corretiva e como justiça retributiva.

Num sentido lato, a expressão “justiça” vem designar a capacidade de um homem

proporcionar “o bem de um outro”, o que leva a uma compreensão da justiça não como uma

parte da virtude, mas sim como a virtude inteira. Por outro lado, a “injustiça” não seria uma

parte do vício, mas o vício por excelência44

. Aristóteles empreende, entretanto, uma detalhada

investigação sobre o que ele aponta como sendo a concepção de justiça como um aspecto ou

parte da virtude.

Neste ponto, Aristóteles inicia por definir a justiça distributiva, proporcional ou

geométrica que se manifesta como uma espécie de justiça intermediária, em cujo contexto o

“injusto é o que viola a proporção; porque o proporcional é intermediário e o justo é

proporcional”45

. Em seguida, demonstra o que concebe como justiça corretiva ou aritmética

que consiste em estabelecer a igualdade nas transações individuais independentemente da

qualidade das partes envolvidas. Assim, não importa que “um homem bom tenha defraudado

um homem mau ou vice-versa”, o que a lei deve considerar é o caráter distintivo do delito.

Diante do delito, o filósofo invoca as propriedades extraordinárias inerentes à figura

43

A contraposição dessas duas concepções é evidenciada pela busca de primazia entre ontologia e epistemologia.

O debate filosófico sempre girou em torno destas concepções metafísicas que podem ser definidas como

“filosofias primeiras”. (PERELMAN, 1999, p. 131). 44

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 123. 45

“Com efeito, a proporção é uma igualdade das razões, e envolve quatro termos pelo menos (que a proporção

descontínua envolve quatro termos é evidente, mas o mesmo sucede com a contínua, pois ela usa um termo em

duas posições e o menciona duas vezes; por exemplo a “linha A está para a linha B assim como a linha B está

para a linha C”: a linha B, pois, foi mencionada duas vezes e, sendo ela usada em duas posições, os termos

proporcionais são quatro). O justo envolve pelo menos quatro termos, e a razão entre dois deles é a mesma que

entre os outros dois porquanto há uma distinção semelhante entre as pessoas e as coisas. Assim como o termo A

está para B, o termo C está para D; ou, alternando, assim como A está para C, B está para D. Logo, também o

todo guarda a mesma relação para com o todo; e este acoplamento é efetuado pela distribuição e, sendo

combinados os termos da forma que indicamos, efetuado justamente. Donde se segue que a conjunção do termo

A com C e do B com D é o que é justo na distribuição”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 125).

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35

do juiz a quem caberia restaurar a igualdade da relação46

dando a cada qual o que lhe

pertence. Com relação à justiça retributiva, denominada por Aristóteles como “reciprocidade”,

esta se mostra como fator de união da “cidade”, pois permite que os homens paguem “o mal

com o mal”, donde se extrai o fundamento das punições aos delitos, mas também decorre o

fundamento das trocas e transações mercantis que conferem também ao homem a faculdade

de pagar “o bem com o bem”. Estes procedimentos devem traduzir sempre uma retribuição

proporcional47

.

No idealismo, a justiça assume a condição de conferir validade ao Direito, pois este,

ao mesmo tempo que faz parte do mundo dos fenômenos (realidade), é também parte do

mundo das ideias, em que se encontram conteúdos normativos apreendidos a priori, ou seja,

independentemente de sua apreensão pelos sentidos, quando da experiência. O direito positivo

se submeteria, assim, a uma censura ética pela ideia de justiça, no que se denomina idealismo

material, que consiste no totalitarismo extraído do pensamento de Platão e que se expressa

pela separação de classes e dominação institucionalizada por um Estado auto-suficiente e

autárquico48

. Mas a completa dissociação entre direito e moral é também variedade de

idealismo, chamado idealismo formal, pois a validade das normas dispensa qualquer

indagação de cunho material, moral ou ético. Como demonstra Alf Ross, Kelsen é o principal

expoente dessa vertente, pois "aceita, sem reservas, como direito qualquer ordem vigente no

mundo dos fatos"49

Tanto realismo como idealismo, cada qual com suas concepções de justiça, atribuem

à figura do juiz um papel quase mítico como portador da função "concreta de decidir e

realizar o direito deduzido em juízo"50

. Desse modo, todo o desenvolvimento histórico da

atividade jurisdicional vai oscilar em torno da privatização ou estatização dos conflitos penais,

que se expressam pela predominância da acusatoriedade ou da inquisitoriedade, sendo o

raciocínio judiciário, quase sempre considerado como o raciocínio jurídico por excelência,

como se vê nas escolas da exegese, funcional-sociológica ou da tópica contemporânea51

.

46

“Eis aí por que as pessoas em disputa recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do

juiz é ser uma espécie de justiça animada; e procuram o juiz como um intermediário, e em alguns Estados os

juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio termo, conseguirão o

que é justo. O justo, pois, é um meio termo já que o juiz o é”. (ARISTÓTELES, 1984, p. 126). 47

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 128. 48

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1974b. v.1.p. 100-101. 49

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 93. 50

BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6. 51

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 29.

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36

Voltando a Aristóteles, sua tríplice concepção de “justiça” o leva a definir a ação

justa como a conduta intermediária entre praticar ou ser vítima de uma injustiça. Essa ação

justa, no entanto, guarda uma relação íntima com a noção de conveniência, pois consistiria em

proporcionar ao outro aquilo que convém. A conveniência, por seu turno, seria o meio termo

entre a deficiência e o excesso52

. Encontrar esse meio termo é possível entre homens cujas

relações são governadas pelas leis, pois estas estão acima da vontade dos homens, ou seja: a

cidade não deve permitir que “um homem governe, mas o princípio racional, pois que um

homem o faz no seu próprio interesse e converte-se num tirano”53

. O princípio racional se

define pela busca incessante de encontrar o meio termo entre os extremos das relações dos

homens entre si e destes com os administradores da polis.

Esse meio termo é “determinado pelos ditames da reta razão”54

. Curiosamente há

casos em que as convenções humanas55

podem produzir a iniquidade, o que poderia ser

solucionado pela equidade, que seria uma forma superior às espécies de justiça (sentido

estrito), mas inferior à justiça absoluta (sentido lato), capaz de proporcionar “uma correção da

lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade”, uma vez que não é possível

legislar sobre todas as coisas, principalmente sobre as coisas indefinidas. Quando isso ocorre,

a equidade age como a “régua de chumbo usada para ajustar as molduras lésbicas: a régua se

adapta à forma da rocha e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos”56

.

Esse tipo de perquirição que se faz acerca da “justiça”, como se viu, promove uma

associação com o termo “razão”, o que nos leva a tentar compreender o significado deste

último como ponto de partida para as abordagens subsequentes.Essa compreensão é

importante ao desenvolvimento da presente pesquisa,na qual se pretende enfrentar o dualismo

metafísico que se instaura como entrave ao discurso jurídico-científico doProcesso Penal. Esta

pesquisa pretende fazê-lo por meio da epistemologia como propõe Alf Ross57

para quem, se a

busca da "pedra filosofal" é uma inutilidade, por outro lado não podemos descuidar de

52

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 129. 53

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 130. 54

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). p. 141. 55

Aristóteles fala na existência de uma “justiça” posta pelas leis da natureza, que seriam imutáveis e com validade

em todas as civilizações independentemente de sua cultura ou de seus costumes particulares. Concomitantemente

há a “justiça legal”, posta pelas decisões humanas e suas convenções. Estas vigoram para uma civilização

determinada e suas regras podem variar. As regras legais podem colidir com as leis da natureza e quando isto

ocorre, o decreto dos homens pode ter seus limites ajustados, mediante a aplicação da equidade.

(ARISTÓTELES, 1984, p. 131). 56

Referência à ilha de Lesbos, onde se usavam réguas de chumbo que, por ser um metal flexível, se amoldava às

formações rochosas. (ARISTÓTELES, 1984, p. 137). 57

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 95.

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37

questões que dizem respeito à própria razão.

Umberto Eco demonstra que o conceito filosófico de razão é dos mais

controvertidos. O autor observa que, “qualquer forma de pensar sempre é vista como

irracional pelo modelo histórico de outra forma de pensar, que vê a si mesmo como racional.”

e acrescenta, “a lógica de Aristóteles não é a mesma de Hegel; Ratio, Ragione, Raison,

Reason, e Vernunft não significam a mesma coisa”58

. Na exposição desenvolvida por

Umberto Eco vê-se que um dos antônimos de “irracionalismo” é “moderação”, que significa

estar nos limites do modus, ou, da medida. Por isso, o que é racional aparece sempre como

aquilo que se ajusta aos limites estabelecidos por um padrão e que, no caso do racionalismo

grego de Platão e Aristóteles, tem o objetivo de produzir certo tipo de conhecimento,

confundindo-se com a determinação das causas dos fenômenos e acontecimentos mediante

uma cadeia unilinear, isso implica o entendimento dogmático segundo o qual, se um

movimento vai de A para B, não há força no mundo capaz de determinar o sentido inverso.

O êxito desse procedimento depende da justificação da natureza unilinear da cadeia

causal, o que se torna possível com a adoção de princípios lógicos tais como o princípio da

identidade (A=A), o princípio da não contradição (é impossível algo ser A e não ser A ao

mesmo tempo) e o princípio do terceiro excluído (ou A é verdadeiro ou A é falso e tercium no

datur). A adoção incondicional desses princípios resulta no “modelo típico do pensamento

racionalista ocidental, o modus ponens: “se p, então q; mas p: portanto q”.”. Como resultado,

temos que a definição das causas levava à definição de Deus como “uma causa, além da qual

não pode haver nenhuma outra causa”59

, um Ser que absolutamente é, e cuja essência não

decorre de nenhum outro ser e não conhece limite ou finitude60

. No Direito, é ao poder

constituinte originário que se atribuem caracteres semelhantes61

A abordagem de Umberto Eco permite compreender a passagem desses princípios da

filosofia geral para o Direito quando atribui aos romanos a adoção dos princípios racionalistas

que, na visão dos latinos, se não garantiam a comprovação de existência de uma ordem física

no mundo, assegurava pelo menos a base de um contrato social. Em Roma, o modus não

significava apenas estar entre os limites, mas significava os próprios limites. O modus passa a

ter um sentido legal e contratual na medida em que o modelo legal é modus, mas modus

também significa a própria fronteira territorial:

58

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 30. 59

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 31 - 32. 60

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 43. 61

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 6.

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38

A obsessão latina por limites territoriais remonta diretamente à lenda da fundação de

Roma: Rômulo traça uma linha de fronteira e mata seu irmão por ele não a respeitar.

Se as fronteiras não são reconhecidas, então não pode haver civitas. Horácio torna-se

um herói porque consegue manter o inimigo na fronteira – uma ponte abandonada

entre os romanos e os outros. As pontes são sacrílegas porque transpõem o sulcus, o

fosso de água que delineia as fronteiras da cidade; por esta razão só podem ser

construídas sob o controle estrito e ritual do Pontífice. A ideologia da Pax Romana e

do desígnio político de César Augusto baseiam-se numa definição precisa de

fronteiras: a força do império está em saber sobre que linha de fronteira, entre que

limen ou limiares a linha defensiva deve ser disposta. Se chegar um momento em

que não exista mais uma clara definição de fronteiras, e os bárbaros (nômades que

abandonaram seu território original e que se movimentam em qualquer território

como se fosse seu, prontos a abandoná-lo também) conseguirem impor sua visão

nômade, então Roma estará acabada e a capital do império poderá muito bem estar

em outro lugar.62

Da mesma forma, segundo Eco, há uma preocupação extremada dos latinos com o

reconhecimento dos limites temporais. Há uma predominância da concepção segundo a qual o

tempo é irreversível e aquilo que ocorreu não pode ser apagado. O autor demonstra a

influência dessa concepção no pensamento de São Tomás de Aquino, que ao responder se

Deus poderia restituir a virgindade a uma mulher, afirma que Deus pode restituir tal mulher

ao estado de graça em virtude de sua misericórdia infinita que nos proporciona o perdão.

Poderia, por milagre, reparar a alteração física decorrente do ato, mas nem Deus poderia fazer

“o que foi não ter sido, porque tal violação das leis do tempo seria contrária à sua própria

natureza”63

.

Há nessa linha evolutiva, uma tentativa de compreensão e explicação dos fenômenos

de um modo geral. No pensamento aristotélico, é possível observar um esforço em delimitar

os vários tipos de ações humanas, chegando a enumerar as disposições que permitiriam à

“alma” o alcance da verdade. São elas: a arte, o conhecimento científico, a sabedoria prática, a

sabedoria filosófica e a razão intuitiva64

. Desse sistema extraem-se os conceitos de episteme e

techne, sendo o primeiro o hábito de explicar os fenômenos pela sua causalidade

(conhecimento científico e sabedoria filosófica) e o segundo o hábito de produzir algo

necessário e útil, por meio de uma reflexão razoável65

. A transposição desse sistema para o

Direito é feita pelos romanos, que foram notadamente influenciados, sobretudo pelas técnicas

62

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 32. 63

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2. edição, São Paulo:

Martins Fontes, 2005.p. 33. 64

ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.

D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores).p. 143. 65

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:

Imprensa Nacional, 1979. p. 54.

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39

de persuasão argumentativa dos gregos, a tópica e a retórica66

.

Viehweg relata que a tópica de Cícero, mesmo escrita 300 anos depois da tópica de

Aristóteles, foi nitidamente influenciada por esta última, na qual Cícero reconhecia a

propriedade de ser “um meio para dispor de elementos de prova aplicáveis a todas as

discussões imagináveis”67

. O autor demonstra que é inegável o vínculo da jurisprudência

romana com a aporética filosófica, a sofística e a retórica, pois por volta de 100 A. C., mesmo

não sendo uma disciplina especial, a retórica era amplamente difundida na formação dos

jovens romanos provenientes do extrato social mais nobre, quando de sua formação para a

obtenção do título que lhe conferia a autorictas de iuris consultus. Com isso todo caso de

conflito (principalmente penal) era transformado em um caso oratório em que primeiro se

buscava afirmar ou negar um fato e depois discutir sobre as questões de fato (status

coniecturalis) e de direito (status qualitatis)68

.

A retórica reunia técnicas argumentativas e oratórias que se expressavam por meio

de três gêneros de discursos: o deliberativo, o judicial e o epidítico, que se manifestam da

seguinte forma:

Numa deliberação temos tanto o conselho como a dissuasão; pois tanto os que

aconselham em particular como os que falam em público sempre fazem uma destas

duas coisas. Num processo judicial temos tanto a acusação como a defesa, pois é

necessário que os que pleiteiam façam uma destas coisas. No gênero epidíctico

temos tanto o elogio como a censura. Os tempos de cada um destes são: para o que

delibera, o futuro, pois aconselha sobre eventos futuros, quer persuadindo, quer

dissuadindo; para o que julga, o passado, pois é sempre sobre actos acontecidos que

um acusa e outro defende; para o género epidíctico o tempo principal é o presente,

visto que todos louvam ou censuram eventos actuais, embora também muitas vezes

argumentam evocando o passado e conjecturando sobre o futuro.69

Os tópicos ou topoi, por sua vez, são os lugares-comuns através dos quais se torna

possível formar silogismos por meio de entimemas em questões que dizem respeito a ramos

específicos do conhecimento como o Direito, a Física ou de qualquer outra disciplina70

. No

66

Para compreender a dimensão da tópica no pensamento de Aristóteles, há que se assinalar a distinção que este

faz entre conhecimento Apodítico e Dialético, sendo o primeiro identificado com o campo da verdade, em que se

encontram os postulados imutáveis sobres os quais não há como divergir. O Dialético é o campo do meramente

oponível em que se contrapõem as opiniões e é neste campo que se identifica a Tópica como uma técnica de

persuasão, seja pela indução ou pelo silogismo. (VIEHWEG, 1979, p. 24). 67

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa

Nacional, 1979. p. 28. 68

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa

Nacional, 1979. p. 55. 69

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 104. 70

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 103.

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40

Direito contemporâneo, esse papel é desempenhado pelos princípios gerais, que instauram a

compulsoriedade decisória característica da dogmática jurídica neo-aristotélica do segundo

pós-guerra, em que as construções jurídicas cumprem um papel análogo à moral, à filosofia e

à política, pois são submetidas ao controle da experiência na medida em que se destinam a

guiar a ação das cortes e tribunais para que atuem conforme o interesse público e a moral

dominante71

. A tópica vem se mostrando, na contemporaneidade, fonte de conteúdo decisório

de uma jurisdição hipertrofiada e tal circunstância será objeto de abordagem mais detalhada

adiante.

1.3 A acusatoriedade bárbara

Com o fim do Império Romano, na Idade Média, o que se vê é nova emergência da

acusatoriedade, sobretudo entre os povos germânicos, que, bárbaros, desconheciam a

Filosofia e se pautavam por um individualismo extremo, em que os direitos eram defendidos

pela força e o emprego de armas, prevalecendo a crença de que Deus jamais permitiria a

vitória de quem não fosse detentor do direito. Como demonstra Lydio Machado Bandeira de

Mello:

Não havia autoridade que pudesse substituir o indivíduo na avaliação de seus

direitos. Ao indivíduo, competia determinar se estava ou não ofendido pelo injusto

de outro. Ao indivíduo, e a mais ninguém, competia aceitar ou não uma reparação

pecuniária pela lesão de um seu direito natural (vida, saúde, integridade corporal),

liberdade de locomoção e de ação, sentimento de dignidade pessoal, honra sexual de

suas mulheres e filhas, propriedade) ou de seu parente mais próximo do lado paterno

(DO LADO DA LANÇA, para usarmos de uma imagem ou expressão turíngia). E,

em última e suprema instância, ao indivíduo, competia o direito de provar, mediante

um combate que estava com a razão.72

Os combates judiciais e os Juízos de Deus caracterizam o Processo Penal dos povos

germânicos, marcadamente acusatório, muito em razão de não haver, para esses povos,

qualquer distinção entre delitos civis e penais. Toda e qualquer infração era considerada uma

ofensa à paz comunitária o que implicava para seu autor um estado de "perda da paz" que

fazia com que este ficasse à mercê de seus congêneres73

.

71

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 111. 72

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.

p. 104-105. 73

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 10

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41

O sistema germânico de resolução de conflitos é marcado pela sucessão de várias

legislações74

, mas que mantiveram seus traços mais marcantes, que podem assim ser

relacionados: combate judicial, vingança privada e inércia judicial com tribunais compostos

por assembleias populares. O procedimento era predominantemente oral, público e

contraditório, marcado por um formalismo solene, em que as palavras proferidas tinham um

sentido quase místico, com as partes travando uma luta judicial por atos sacramentais, pouco

importando a pertinência das suas alegações. O processo judicial só tinha lugar após frustrada

a composição privada. Há que ser ressaltado que a atividade do juiz ou tribunal, se limitava a

aplicar a lei que disciplinava o duelo e que a vitória de um litigante em um duelo era sempre

considerada a vitória do Direito75

.

Curioso é que os bárbaros herdaram dos gregos, justamente aquilo que eles

praticavam de mais primitivo, ou seja: os juízos ordálicos ou juízos de Deus. Essa prática

consistia no fato dos litigantes invocarem uma espécie de apelação do tribunal humano para o

tribunal de Deus, na crença de que Este "ouviria e daria provimento à sua apelação sob a

forma de subtração miraculosa ao perigo inerente à prova escolhida", uma vez que Deus

jamais deixaria em desamparo o detentor do "bom direito"76

.

Lydio Machado Bandeira de Mello77

apresenta exemplos emblemáticos de ordálias,

além do duelo entre as partes: A Prova da Cruz, em que os litigantes postavam-se em pé e de

braços abertos durante a missa (o primeiro que deixasse o braço pender erra derrotado no

litígio). O Jus Feretri ou Cruentationis, em que levavam o suposto assassino diante do

cadáver da vítima ficando provada a culpa se, ao contato do suspeito, jorrasse sangue dos

ferimentos do cadáver. Na Prova da Caldeira, o acusado deveria retirar, com o braço nu, um

objeto mergulhado em água fervente (seria absolvido se não se ferisse). Na Prova de Fogo, o

réu submetia-se a uma travessia "descalço sobre brasas, ou sobre relhas de charrua

incandescentes" ou era compelido a atravessar uma fogueira. Aponta ainda a existência da

prova da Água Fria, na qual o acusado era imobilizado por uma corda e atirado no fundo de

um tanque, se "sobrenadava" era tido como culpado.

74 Lydio Machado Bandeira de Mello cita, por exemplo, a Lex Baiwariorum, cuja origem é controversa. Alguns

pesquisadores atribuem sua edição ao rei Carlos Martelo entre 725 e 728. Outros a atribuem ao rei Henrique

Brunner, entre 744 e 748. Esta disciplinava os combates judiciais e permitia aos mais fracos fisicamente

contratarem um "campeão" para combater em seu lugar. O "campeão" que fosse derrotado, acarretando a derrota

judicial de seu contratante era punido tendo o punho cortado. (MELLO, 1961, p. 107). 75

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 13-16 76

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961p.

129. 77

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961. p.

130.

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42

A partir do século XII, na França, as ordálias foram cedendo espaço aos duelos, que

persistiram ainda até o século XVI, apesar das várias tentativas de abolição, como a

condenação expressa dessa prática pelo pontífice Inocêncio IV em 125278

que levou a Igreja a

pronunciar a excomunhão de quem cometesse homicídio de um adversário em duelo, mesmo

sob forte oposição da nobreza. Os reis portugueses sempre mantiveram a prerrogativa real de

"conceder licença para que as partes resolvessem seu litígio por um combate judicial"79

. Na

Inglaterra, a lei que aboliu o duelo judicial em caso de apelação (duelo travado entre o

condenado e seus juízes)80

é relativamente recente, pois datada de 181981

.

O sistema judicial germânico influenciou as práticas judiciárias da Península Ibérica,

antes do advento da Inquisição. Tal influência se deu para além dos duelos judiciais e das

ordálias, como, por exemplo, através do instituto da compurgação. A compurgação consistia

num atestado de inocência prestado por terceiros em favor de um acusado82

. Essas pessoas

eram denominadas juratores, conjuratores, sacramentales ou compurgatores e deviam ter um

laço de solidariedade com o acusado, seja pertencendo à mesma comuna ou como membros

de uma mesma família e, para aumentar a credibilidade de seu testemunho, deveriam ter um

interesse direto na punição do culpado. O número de compurgadores variava

proporcionalmente à gravidade do fato imputado, havendo registros de casos em que

intervieram mais de trezentos. Contudo, o número normalmente aceito pelos tribunais

municipais, limitava-se a doze83

. Antes de provar ou atestar um fato, os compurgadores

serviam para mostrar "a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter, seu peso,

sua influência, a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiá-lo em

uma batalha ou em um conflito"84

.

78

Em 1252, Inocêncio IV publica a bula Ad extirpanda, com o objetivo de controlar de forma severa as doutrinas

religiosas da época, permitindo a tortura como forma de quebrar a resistência dos acusados. (SILVÉRIO

JÚNIOR, 2004, p. 83). 79

Lydio Machado Bandeira de Mello demonstra que os duelos judiciais eram expressamente previstos nas

ordenações do reino português. Nas Ordenações Afonsinas (1446 ou 1447 a 1512) estavam previstos no Livro II,

título XXIV. Nas Ordenações Manuelinas (1512 a 1514), no Livro II, título XX, § 2º. E nas Ordenações Filipinas

(em vigor até início do século XIX), havia uma repetição do disposto nas Ordenações Afonsinas, no Livro II,

título XXIV. (MELLO, 1961, p. 124). 80

Para tanto, cada juiz pronunciava o seu julgamento em voz alta, ocasião em que era retorquido pelo acusado,

que geralmente o acusava de julgamento falso, se iniciando então, um duelo entre ambos. Se o acusado deixasse

para suscitar esta falsidade, ao final, deveria travar um duelo com todo o colegiado, em evidente desvantagem.

(MELLO, 1961, p. 114). 81

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.

131. 82

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.

2009. p. 10. 83

MELLO, Lydio Machado Bandeira de. O direito penal hispano-luso medievo. Belo Horizonte: UFMG, 1961.p.

116. 84

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 59.

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43

Mas ainda assim, as práticas judiciárias mais marcantes da Península Ibérica foram

as inquisitórias instituídas pelo advento do Processo Penal canônico, após o domínio

sarraceno.

1.4 Inquisitoriedade canônica e sincretismo jurídico na transição entre o medievo e a

modernidade

A Inquisição Católica produziu de modo avassalador, uma nova inflexão em direção

ao sistema inquisitivo85

. É de se notar, que as práticas inquisitórias no âmbito da Igreja datam

do século XIII, sendo mesmo anteriores ao notório Manual do Inquisidor (Diretorium

Inquisitorium), elaborado por Nicolau Eymerich em 1376, pelos éditos no Papa Inocêncio III

no Concílio de Latrão em 1216, que estabeleciam um sistema de processo eclesiástico escrito

e inquisitivo86

.

Segundo Omar Abel Benabentos, o gérmen inquisitivo foi introduzido no Processo

Penal romano quando apareceram os primeiros funcionários oficiais, encarregados de velar

pela segurança pública e promover a acusação pelos fatos que chegavam ao seu

conhecimento. Nascia desse modo, a persecução penal pública87

. No início, tinha um caráter

subsidiário, pois só era exercida em caso de inércia do agente privado, que inicialmente teria

legitimidade para exercê-la. Paulatinamente foi se tornando o principal sistema de acusação e

se tornou fonte direta da Inquisição, que recepcionou suas principais características.

85

Antônio Alberto Machado (2009, p. 20), aponta como marco inicial da Inquisição a bula Excommunicanibus,

editada pelo Papa Gregório IX em 1234. No entanto, quando se fala em marco inicial da Inquisição, há que se

distinguir as diversas manifestações desse modelo procedimental no âmbito da Igreja como foi o caso da

Inquisição espanhola em que os inquisidores eram nomeados pelos Reis Católicos por delegação do Papa. O

mesmo aconteceu em Portugal quando o Papa Clemente VII concedeu ao rei D. Manuel I, pela bula Cum ad nihil

magis a prerrogativa de nomear um dos inquisidores-gerais estabelecendo um sincretismo entre a jurisdição

eclesiástica e a jurisdição régia. Outro fato marcante é a instauração da Congregação do Santo Ofício, uma

comissão formada por seis cardeais com jurisdição sobre toda a cristandade instituída através da bula Licet ab

initio, pela qual o Papa Paulo II promoveu uma importante reorganização da Inquisição romana em 1542. É

possível apontar diferenças entre a estrutura da Inquisição na península itálica e na península ibérica. Enquanto a

Inquisição nesta última se configura de forma organizada e coletiva mediante a atuação de uma “poderosa

máquina burocrática com controle sobre uma extensa rede local” a outra se apresenta estruturada por meio de

inquisidores locais sediados nos conventos das respectivas ordens (dominicana e franciscana) voltados,

sobretudo à perseguição dos protestantes estabelecendo assim, já no século XVI, “traços de continuidade entre a

Inquisição medieval e a Inquisição moderna”. Pode-se afirmar que não incorre em erro quem se refere a toda esta

gama de atividades e estruturas eclesiásticas e régias, como “Santo Ofício”. (BETHENCOURT, 2000, p. 18; 24;

27; 29). 86

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 65; SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 83;

BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 23 87

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2.p. 34

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44

Novamente, dos escombros da acusatoriedade, ressurgia com todo vigor a

inquisitoriedade, desta feita marcada por características como a escritura, o segredo dos atos

e, principalmente, o procedimento de ofício, afastando por completo a máxima ne procedat

iudex ex officio. De certa forma, a inquisitoriedade canônica marcou o surgimento de métodos

racionais de Processo Penal, se comparado com as ordálias e duelos, como observa Mauro

Fonseca de Andrade:

Os duelos e ordálias foram substituídos por um modelo processual muito mais

civilizado e adequado à realidade histórica daquela época, pois não utilizava a força

como principal meio para resolver conflitos. Assim, houve a retomada pela busca da

verdade como anteriormente praticavam os atenienses e romanos – baseada na

palavra do homem, ao invés da força ou misticismo.88

Na esteira dessas transformações, é possível observar no século XII o surgimento de

um importante mecanismo persecutório, que servirá tanto à Igreja quanto ao Direito estatal: O

Inquérito. Michel Foucault89

demonstra que na Alta Idade Média não havia a noção de falta

religiosa ou à lei, mas somente a noção de dano, que, como visto acima, era o núcleo de um

conflito privado cujo procedimento de resolução interessava somente às partes envolvidas.

Com as complexas transformações do medievo chegou-se a uma situação de verdadeiro

sincretismo entre o poder político e o eclesiástico, que partilhavam da noção de culpabilidade

para punir os faltosos. O dano provocado pela violação da lei seria, então, uma ofensa ao

poder, à soberania e à coletividade. O dano também adquiria um status de infração à moral

religiosa.

O sincretismo jurídico no curso da Idade Média é apontado por Antônio Alberto

Machado como efeito da diversidade legislativa decorrente da fragmentação do poder. Há, no

continente europeu, uma concomitância de vigência entre legislações díspares e dispersas

como o Breviário de Alarico de 506, o Código Justiniano de 530, o Código Canônico, já em

1234, as traduções espanholas da legislação dos visigodos e a legislação dos forais, editada

pelos reis e senhores feudais a partir do século VIII, experiência verificada nos reinos e

condados da Península Ibérica. Enfim, uma pluralidade de fontes legislativas que desaguava

numa pluralidade de jurisdições penais concomitantes: senhoriais, eclesiásticas, reais e

municipais90

. Pode-se falar em sincretismo, quando duas correntes inimigas se unem, mesmo

88

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá,

2008.p. 269. 89

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 73-74. 90

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 17.

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45

sem qualquer afinidade teórica, para combater uma terceira91

. Assim, nota-se que o poder dos

reis se une ao poder eclesiástico para subjugar o povo e evitar a fragmentação territorial ou

sua ocupação por outros povos hostis.

A bula Exigit sincerae devotionis affectus, assinada pelo papa Sisto IV em 1º de

novembro de 1478, de forma inédita concedeu aos reis poderes para nomear inquisidores

visando punir a difusão de crenças e ritos mosaicos entre os judeus cristãos-novos92

. Antes

esse poder era prerrogativa papal. Foi uma transferência de competência que simbolizou o

sincretismo entre elementos religiosos e laicos, numa conjunção da qual, segundo Michel

Foucault, ainda hoje não estamos totalmente livres93

.

Essa formulação que resultou na implementação do Inquérito como mecanismo de

busca e estabelecimento da verdade, acabou por se espalhar para outros campos do

conhecimento e do poder, além do jurídico, reorganizando as práticas judiciárias e até mesmo

científicas da Idade Média até a Idade Moderna:

De maneira mais geral, este inquérito judiciário se difundiu em muitos outros

domínios de práticas - sociais, econômicas - e em muitos domínios do saber. Foi a

partir desses inquéritos judiciários conduzidos pelos procuradores do rei que, a partir

do século XIII, se difundiu uma série de procedimentos de inquérito. Alguns eram principalmente administrativos ou econômicos. Foi assim que, graças a

inquéritos sobre o estado da população, o nível das riquezas, a quantidade de

dinheiro e de recursos, os agentes reais, asseguraram, estabeleceram e aumentaram o

poder real. Foi desta forma que todo um saber econômico, de administração dos

estados, se acumulou no fim da Idade Média e nos séculos XVII e XVIII.94

Mas é no campo jurídico que o Inquérito se apresenta como o mecanismo que, por

excelência, vai sustentar as práticas autoritárias do medievo, sobretudo as da jurisdição

canônica. Muito antes da implantação do Tribunal do Santo Ofício, já a partir do Concílio de

Latrão95

, a inquisitio ganhou corpo na estrutura da Igreja. A jurisdição eclesiástica, que de

início se destinava a julgar os delitos de fé, pouco a pouco passou a cuidar de julgar os demais

crimes, sempre por um processo secreto e sumário, conforme instituiu em 1298 Bonifácio

VIII, conhecido como o "Papa jurista"96

.

Aury Lopes Júnior demonstra como a Igreja, para preservar seu poder de crença

oficial do Império, passou a perseguir implacavelmente aqueles que ousavam discordar de 91

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 59. 92

BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.p. 17. 93

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 74. 94

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 74. 95

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20. 96

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 20.

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46

suas diretrizes:

A lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta, e nessa estrutura, a heresia

era o maior perigo, pois atacava o núcleo fundante do sistema. Fora dele não havia

salvação. Isso autoriza o "combate a qualquer custo" da heresia e do herege,

legitimando até mesmo a tortura e a crueldade nela empregada.97

Instaura-se um sistema em que as provas são tarifadas (hierarquizadas) e a confissão

alçada à condição de prova máxima, de validade incontestável. Por essa lógica, a prisão

cautelar passa a ser a regra, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege para o

momento em que precisar. A defesa era inexistente e, quando havia advogado, sua função era

orientar o acusado a confessar o mais rápido possível. Pelo Manual do Inquisidor, a tortura

poderia durar o máximo de 15 dias (eram 5 tipos progressivos de tortura, podendo ser

aplicado apenas um tipo por dia). Quando e se resistisse, o acusado era declarado inocente.

Mas nesse julgamento, a inocência jamais era pronunciada expressamente, apenas se fazia

menção à falta de provas. O procedimento poderia ser reaberto mais tarde sem o entrave da

coisa julgada pro reo98

.

Como ressalta Paolo Tonini, o modelo inquisitório se baseia no princípio da

autoridade, em que o imputado é um mero objeto do juízo que, por sua vez, detém poderes de

iniciativa ex officio, poderes instrutórios ilimitados, sob a proteção de um procedimento

escrito e secreto, que não conhece presunção de inocência, mas pelo contrário, trabalha com

presunção de culpa. Além do mais, a tortura é legitimada como meio de prova. Também é

feito amplo uso da prisão preventiva. Mas, observa Tonini: após a sentença, há certo

reconhecimento de que o sistema pode falhar, daí permitir a impugnação da decisão para um

juízo superior e dotado dos mesmos poderes instrutórios do primeiro (tradução nossa)99

.

Enfim, após tudo o que foi demonstrado sobre o sistema inquisitorial, tem-se como

emblemática a síntese de Aury Lopes Júnior, sobre o papel exercido pelo juiz inquisidor: "O

97

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 65. 98

LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade

constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 172. 99

"Molteplicità delle impugnazioni. Il regime totalitario dà ampi poteri al giudice inquisitore; nel momento in

cui egli li esercita, non può essere controllato dalle parti, pena la sconfessione del postulato che fonda il sistema.

Una volta che è stata pronunciata la sentenza, il sistema si ricorda che anche il giudice è un uomo e può

sbagliare. Ed allora il regime permette che le parti possano presentare impugnazione, sulla quale decidere un

giudice superiore che è dotato dei medesimi poteri inquisitori che sono concessi al primo giudice".

"Multiplicidade das impugnações: O regime totalitário dá amplos poderes ao juiz inquisidor; no momento em

que ele os exercita, não pode ser controlado pelas partes, sob pena de repudiar o postulado em que se funda o

sistema. Uma vez pronunciada a sentença, o sistema que antes, o juiz é um homem e pode falhar. E então o

regime permite que a parte possa apresentar impugnação, a qual será decidida por um juiz superior que é dotado

dos mesmos poderes inquisitórios concedidos ao primeiro juiz" (trad. livre). (TONINI, 2010, p. 3).

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47

juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga"100

. É certo que, na atualidade, não é

possível afirmar a prevalência de um modelo inquisitorial puro, daí ser afirmada a existência

do um sistema misto que tende a justificar teoricamente as práticas inquisitivas que ainda

persistem em ordenamentos ditos democráticos. Omar Abel Benabentos mostra que tal

modelo prosperou na América Latina ao longo do século XX, por influência dos modelos

autoritários prussianos, nazistas, comunistas e fascistas e que, paradoxalmente, foram

acolhidos por diversos estados constitucionais latino-americanos, mediante um

entrecruzamento ideológico inconciliável que levou o sistema processual do continente ao

desequilíbrio, exibindo fortes incongruências101

. Sua origem, no entanto, é francesa e pode ser

atribuída à chamada pós-inquisitoriedade napoleônica, expressada pelo Code d'instruction

criminelle de 1808102

. O caráter sincrético do sistema misto será abordado de forma um pouco

mais detalhada no Capítulo V.

Pelo que se viu até aqui, sempre houve uma oscilação entre um modelo e outro,

quando não, uma verdadeira disputa por primazia, ou mesmo, uma fusão sincrética. Tal não

foi uma constante apenas na antiguidade ou no medievo, o que poderia ser atribuído à

instabilidade política ou incipiência das instituições jurídicas européias na pré-modernidade.

Esse mesmo fenômeno também pode ser verificado na modernidade103

e mesmo já no final do

século XX e início do século XXI104

.Esse tema será objeto de aprofundamento mais adiante

demonstrando, sobretudo que acusatoriedade e inquisitoriedade, apesar de uma aparente

incompatibilidade, sucumbem ao dogmatismo e não representam qualquer ganho teórico-

científico para o Processo Penalna pós-modernidade, constituindo meras técnicas voltadas ao

exercício estratégico do poder105

.

100

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 63. 101

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2005. v.2. p. 166 102

OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.

123. 103

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 6. 104

Exemplo são as técnicas inquisitoriais adotadas contra indivíduos acusados de envolvimento com o terrorismo e

que caracteriza de modo emblemático, a persistência de uma inquisição estatal. Aos indivíduos capturados é

sonegado o status legal de prisioneiro ou mesmo de acusado. São apenas detainees, desprovidos de garantias e

direitos fundamentais. (AGAMBEN, 2007a, p.14). 105

Digna de nota, a reação ao Código de Processo Penal italiano de 1988, no qual prevalecia o princípio

acusatório. Este código foi apontado como sendo um código para a máfia, tendo sofrido desde então várias

alterações que resultaram em uma configuração de característica inquisitiva. (CHOUKR, 2002, p. 90).

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48

2 DO PENSAMENTO JURÍDICO METAFÍSICO-TRANSCENDENTAL AO

POSITIVISMO KELSENIANO

Como visto no capítulo anterior, o racionalismo greco-romano, pelas matrizes do

idealismo e do realismo, contribuiu para instaurar, também no campo do Processo Penal, um

evidente dualismo metafísico e dogmático, expressado pela contraposição entre os princípios

da acusatoriedade e inquisitoriedade no curso histórico. O que se percebe é que, com o ocaso

medieval, prevaleceu o intuito de superar as perspectivas magicistas, míticas, religiosas e

absolutistas. Mas esse ímpeto resultou muitas vezes numa ciência que, mesmo procurando

estabelecer uma distância entre o sujeito e o objeto de sua pesquisa ou observação, não

consegue se desvencilhar do princípio da imanência que estabelece um determinismo

metafísico, segundo o qual nada há de novo sob o sol, só restando ao homem buscar sua

autoconservação pela adaptação ao que já existe e que pode tão somente ser objeto de

descoberta, tal como ocorria nas narrativas míticas106

.

2.1 Racionalismo empírico-determinista e o advento do idealismo transcendental

No século XVIII, Kant desenvolveu,em sua “Crítica da Razão Pura”, as bases do

chamado idealismo transcendental, estabelecendo a distinção entre intuição e entendimento.

No primeiro caso, o conhecimento surge por representação, sem a mediação dos conceitos e

por meio de uma faculdade sensível do sujeito. Já o entendimento pode ser definido com um

conhecimento, não intuitivo, mas discursivo, por meio de conceitos que exercem a função de

permitir ao sujeito a formulação de juízos.

Os conceitos constituir-se-ão como “predicados de juízos possíveis” que, abstraídos

de seus conteúdos, podem ser classificados formalmente de modo a se desdobrar em quatro

momentos: quantidade dos juízos (universais, particulares, singulares); qualidade

(afirmativos, negativos, infinitos); relação (categóricos, hipotéticos, disjuntivos) e modalidade

(problemáticos, assertóricos, apodíticos)107

. O juízo, portanto, vai se constituir matéria do

entendimento pela lógica transcendental, que fornece conceitos puros a priori que permitirão

a síntese dos diversos elementos existentes no espaço e no tempo, produzindo assim o

conhecimento. Os conceitos puros do entendimento são as categorias, que Kant foi buscar em

106

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.

ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 67. 107

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 128 - 130.

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49

Aristóteles.

Assim como procedeu com a classificação das formas dos juízos, Kant reuniu os

conceitos originalmente puros num rol que constitui a expressão da “síntese que o

entendimento a priori contém em si”. Cada categoria contém uma correspondência intrínseca

com as funções lógicas do juízo acima descritas, pois Kant entende que “o entendimento

esgota-se totalmente nessas funções e sua capacidade mede-se totalmente por elas”. Assim se

apresenta a tábua das categorias: quantidade (unidade, pluralidade, totalidade); qualidade

(realidade, negação, limitação); relação (inerência e subsistência, causalidade e dependência,

comunidade – ação recíproca entre o agente e o paciente) e modalidade (possibilidade –

impossibilidade, existência – não-existência, necessidade – contingência)108

.

As categorias, como conceitos do entendimento, são pensadas a priori com relação à

experiência. Antes delas não há nenhum outro conceito e todo e qualquer objeto só pode ser

conhecido e determinado a partir delas. São a matéria do raciocínioe “visto constituírem a

forma intelectual de toda experiência, a sua realidade objetiva, tem, por único fundamento,

que a sua aplicação possa sempre ser mostrada na experiência”109

. O transcendental, na

construção teórica de Kant, se define como aquilo que é anterior a toda experiência e se

posiciona como condição de possibilidade de todo o conhecimento, sendo que a lógica

transcendental se define como uma forma de pensar por estruturas que independem da

experiência, mas que se restringem àquilo que é possível conhecer, ou seja, os objetos que

podem ser pensados e conhecidos,a priori, determinando a origem, o âmbito e o valor

objetivo de tais conhecimentos110

. Assim, na medida em que não se pode ter a experiência

sensível de Deus, o seu conhecimento, como qualquer conhecimento metafísico, é

impossível111

.

Trata-se de uma postura agnóstica, pois não nega a existência de Deus, que,

juntamente com a imortalidade da alma, é deduzida dos princípios apriorísticos da razão

prática, pois somente um Ser perfeitamente sábio e justo poderia de fato realizar a conexão

entre o bem e a felicidade; o mal e o sofrimento112

. Os termos a priori e transcendental são

assim explicados por Deleuze:

108

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 136-137. 109

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 333. 110

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 118. 111

SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 50-51. 112

LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 262 .

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50

A priori designa representações que não derivam da experiência. Transcendental

designa o princípio em virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às

nossas representações a priori . Assim se explica que à exposição metafísica do

espaço e do tempo suceda uma exposição transcendental. E à dedução metafísica das

categorias, uma dedução transcendental. «Transcendental» qualifica o princípio de

uma submissão necessária dos dados da experiência às representações a priori e,

correlativamente, de uma aplicação necessária das representações a priori à

experiência.113

Como visto, as categorias são conceitos puros do entendimento. Já as ideias são

definidas como conceitos puros da razão, também estruturados sinteticamente a priori:

Embora tenhamos de dizer dos conceitos transcendentais da razão que são apenas

idéias, nem por isso os devemos considerar supérfluos e vãos. Pois ainda quando

nenhum objeto possa por eles ser determinado, podem, contudo, no fundo e sem

serem notados, servir ao entendimento de cânone que lhe permite estender o seu uso

e torná-lo homogêneo; por meio deles o conhecimento não conhece, é certo, nenhum

objeto, além dos que conheceria por meio dos seus próprios conceitos, mas será

melhor dirigido e irá mais longe neste conhecimento. Sem falar de que podem,

porventura, esses conceitos transcendentais da razão estabelecer uma transição entre

os conceitos da natureza e os conceitos práticos e assim proporcionar consistência às

idéias morais e um vínculo com os conhecimentos especulativos da razão.114

A síntese a priori estabelecerá,desse modo, uma faculdade superior de conhecimento

se comparada com a síntese empírica. Enquanto esta se deixa pautar ou legislar pela

representação dos objetos, aquela vai encontrar em si mesma a sua própria lei, através da qual

irá legislar sobre os objetos do conhecimento, submetendo-os à faculdade de conhecer do

sujeito cognoscente. Esses objetos, por seu turno, não são as coisas em si, pois estas não se

submetem à faculdade de conhecer, mas as coisas como se apresentam, ou seja, configuradas

como fenômenos115

.

O idealismo transcendental vai se caracterizar, assim, pelos conceitos da razão pura

que ultrapassam todos os limites da experiência, que não são forjados arbitrariamente pelo

sujeito, mas são dados da própria natureza da razão. Nesse contexto, pouco importa as

condições empíricas que submetem o sujeito, pois “por ser a idéia da unidade necessária de

todos os fins possíveis, deverá servir de regra para toda a prática, como condição originária,

ou, pelo menos, limitativa.”.116

É para essa direção que apontam uma pluralidade de teorias metafísicas. Habermas

113

DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Germiniano Franco. Lisboa: Edição 70, 2000.p.

21. 114

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 344. 115

DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Germiniano Franco. Lisboa: Edição 70, 2000.p.

13. 116

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001. p. 344.

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51

elege três dos principais aspectos dessas teorias para uma análise resumida, porém,

esclarecedora de seus fundamentos. Para o autor, o pensamento metafísico se exprime,

sobretudo pelo princípio da identidade, pelo idealismo e pelo conceito forte de teoria, este

portador de uma importância salvífica117

.

O princípio da identidade busca um rompimento com a visão concretista e unitária de

mundo que se buscava explicar através do mito. O princípio e a origem das coisas passam a

ser explicados a partir de uma abstração, em que se reconhece um elemento primeiro, que se

subtrai às dimensões de tempo e espaço e permite discernir a variedade das coisas e os

acontecimentos intramundanos, como partes singulares de um todo unitário. Assim, o uno e o

múltiplo são delineados abstratamente e se definem como identidade e diferença, das quais

decorrem todas as coisas e acontecimentos, que se reproduzem na forma de uma variedade

ordenada.

Já em seu aspecto idealista, segundo Habermas, o pensamento metafísico se esforça

por uma compreensão do uno e do todo ao seguir os passos de Platão, afirmando que a ordem

fundadora da unidade é subjacente como essência na variedade dos fenômenos, mas possui

uma natureza conceitual. Uma concepção conceitual, contudo, ordenada pela natureza das

coisas e posicionada numa pirâmide hierarquicamente estruturada, visando realizar a

promessa de unidade, sendo perceptível uma tensão entre a forma discursiva (empírica) e

anamnésica (contemplativa), fenômeno e ideia, matéria e forma. As representações que

fazemos dos objetos e fenômenos se tornam possíveis através da autoconsciência, assim

entendida a relação do sujeito cognoscente consigo mesmo, que se estabelece como o ponto

central do idealismo alemão. A autoconsciência ocupa uma posição fundamental como fonte

espontânea de realizações transcendentais ou, em estado absoluto, como espírito.

De todo modo, seja a razão produtora do mundo ou assuma nele a figura de um

espírito que caminha sobre a história ou a natureza, ela se estabelece como “uma reflexão

totalizadora e auto-referente”, garantindo “o primado da identidade frente à diferença e a

precedência da idéia frente à matéria”118

. Diante de tal postura, a compreensão acerca das

condições de verdade só seria alcançável solipsisticamente119

. Nesse aspecto, a filosofia da

consciência, possui o status de prima philosophia.

Mas no afã de sepultar cosmovisões esotéricas, os iluministas dos séculos XVIII e

117

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 38. 118

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 39-41. 119

HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São

Paulo: Loyola, 2004b.p. 11.

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XIX acabaram por instituir a crença na Razão como substância, poder e forma infinitos. O

"sistema" do qual derivam todas as coisas, com todas as figuras míticas reduzidas ao mesmo

denominador: o sujeito ou unidade para a qual convergem racionalistas e empiristas120

.

Observe-se a clássica sentença de Hegel:

Ela é substância, ou seja, é através dela que toda a realidade tem o seu ser e a sua

subsistência. Ela é poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir

apenas o ideal, a intenção, permanecendo numa existência fora da realidade - sabe-

se lá onde - como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o

conteúdo infinito de toda essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade

finita, a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrair-se o

alimento e objeto de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria

referência. E ela é forma infinita, pois apenas em sua imagem e por ordem sua os

fenômenos surgem e começam a viver.121

A "Razão", em Hegel, concentra ao mesmo tempo a própria base de existência e a

meta final absoluta, realizada "a partir da potencialidade para a realidade, da fonte interior

para a aparência exterior". Isso ocorreria em todos os aspectos da realidade seja "no universal

natural, mas também no espiritual, na história do mundo". Assim, Ideia e Razão são termos

equivalentes e que traduzem "o Verdadeiro Poder Eterno Absoluto" que se manifesta num

mundo revestido de "glória e majestade"122

.

O outro aspecto do pensamento metafísico seria o conceito forte de teoria. Aqui, da

mesma forma que cada uma das religiões aponta o caminho que levaria à salvação da alma, a

filosofia também apresenta seu caminho salvífico, qual seja, a vida contemplativa. O bios

theoretikos ocuparia um lugar privilegiado de superioridade na vida ativa dos homens de

Estado, do pedagogo e do médico, possuindo um acesso privilegiado à verdade, enquanto aos

demais, isto é, a maioria, esse privilégio extraordinário, permaneceria inacessível. O teórico

estaria, assim, distanciado do contexto de interesses e da experiência cotidiana, imune aos

preconceitos e numa postura de desprezo ao materialismo e ao pragmatismo, o que é

sublimado na moderna filosofia da consciência, que acaba por produzir uma teoria que

fundamenta a si mesma, ou seja, dogmática123

.

Desse modo, é possível constatar que há, em certa doutrina jurídica, um apego à

dogmática como indispensável para a necessária e desejada estabilização das relações sociais,

120

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.

ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 62. 121

HEGEL, Georg W. F.. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Tradução de Beatriz

Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro. 2004.p. 53. 122

HEGEL, Georg W. F.. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. Tradução de Beatriz

Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro. 2004.p. 54. 123

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.p. 43.

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prevalecendo a concepção de que “não existe sociedade sem dogma”124

, na medida em que o

dogmatismo se faz presente nos campos da teoria, da ética, da religião, da axiologia e da

ciência, contribuindo para consolidar o conhecimento, às vezes de forma ingênua,

interditando as arguições e rejeitando a dúvida125

. Para esse segmento, não há nenhuma

contradição ao se falar em ciência dogmática do direito126

, pois esta atenderia às demandas de

decidibilidade, seja no paradigma liberal, que preza pelo dogma da completude da lei, com o

juiz se posicionando como garantidor das liberdades negativas eventualmente violadas pelo

Estado, seja no paradigma do Welfare State, com suas providenciais lacunas a serem

preenchidas pelo juiz, segundo critérios de conveniência para manter o equilíbrio social,

preservando a tradição e a autoridade127

.

Segundo Tercio Sampaio Ferraz Júnior, a Ciência Dogmática do Direito teria por

objeto central o próprio ser humano em suas variadas dimensões. O homem, como portador

de necessidades, seria contemplado pelo modelo analítico em que a decidibilidade, como

relação entre um determinado conflito e uma decisão, ambos hipotéticos, permite estabelecer

parâmetros decisórios racionais. Um segundo modelo, apontado pelo autor como

hermenêutico, contempla o homem como ser cujo agir sempre emite significados, seja em

seus menores gestos. Neste caso, a ciência dogmática do direito cumpre uma tarefa

interpretativa. Outro modelo, definido pelo mesmo autor como empírico, contempla o homem

como ser dotado de funções e que se adapta à contínua transformação e evolução de seu

ambiente. Aqui, a ciência dogmática do direito cumpriria um papel explicativo do

comportamento humano, enquanto conduta controlada normativamente128

.

Edgar da Mata Machado define a dogmática jurídica como a própria ciência empírica

do Direito Positivo, tendo seu início com Savigny que a identifica com o direito geral que

surge na consciência do povo. O problema é que o "povo", no pensamento de Savingy,

somente se "concretiza e se une no Estado"129

. Desse modo, quando se refere a "direito do

povo", Savigny está se referindo a um direito do Estado, um direito reduzido ao texto da lei

que expressa a vontade estatal. O Direito só adquire cientificidade quando deixa de ser algo

124

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São

Paulo: Atlas, 2007.p. 49. 125

SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,

1958.p. 42. 126

Contradição que é apontada por Rosemiro Pereira Leal, para quem, em linhas gerais, um método, sendo

dogmático, jamais pode ser também científico. (LEAL, 2010, p. 178). 127

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 99 128

FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed.

São Paulo: Atlas, 2007. p. 91-92. 129

MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.

121

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que vive apenas na consciência popular e passa a ser matéria de competência dos juristas, ou

representantes do povo, passando a experimentar o influxo simultâneo de uma dupla

vitalidade caracterizada de um lado pelo elemento político, que diz respeito à vida social do

povo, e de outro pelo elemento técnico, em que se apresenta como obra especial da ciência

manejada pelos juristas130

. Apesar de rechaçar os aspectos limitadores da legislação e ser um

opositor da tendência codificadora, Savigny concebe uma ciência jurídica em que o

dogmatismo se manifesta no fato de buscar as condições necessárias ao implemento de

conquistas civilizatórias de uma sociedade civil.

Ainda na Alemanha do século XIX, Rudolf Von Jehring ganhou projeção como

grande expressão do dogmatismo jurídico, através de uma concepção mecanicista e coativista

do direito, mediante uma separação radical entre os domínios do direito e da moral. O

dogmatismo de Jehring subtrai ao jurista qualquer possibilidade de interpretação da regra de

direito. A ciência jurídica teria tão somente a atribuição de converter as regras em definições

jurídicas:

O legislador pode limitar-se a estabelecer sua vontade na forma originária, praticável

imediatamente, enquanto que a ciência, pelo contrário, não só tem a missão de

explicar e coordenar estas vontades, mas deve também reduzi-las a elementos

lógicos de seu sistema. O legislador nos oferece, por dizer assim, corpos compostos

que só lhe interessam por sua utilidade imediata; a ciência, pelo contrário,

empreende a análise e os converte em corpos simples. Ao fazer esta operação é

quando se vê que as regras em aparência heterogêneas se compõem com a ajuda dos

mesmos elementos e podem desaparecer, sendo inutilizadas desde logo; que tal

regra, que não difere de outra senão em um só ponto, basta só indicá-lo; que tal outra

se compõe de muitos elementos, cuja noção é simples, e que se deve, por

conseguinte, reuni-los para obter a regra. Com uma análise parecida se adquire o

conhecimento da verdadeira natureza das regras de direito, oferecendo a vantagem

de que a ciência, em lugar de uma multiplicidade de regras distintas obtém um

número determinado de corpos simples, por meio dos quais pode recompor, quando

quiser, cada uma das regras do direito. (tradução nossa)131

130

SAVIGNY, F. de. De la vocacion de nuestro siglo para la legislacion y la ciencia del derecho. Tradução

de Adolfo G. Posada. Buenos Aires: Editorial Atalaya, 1946. p. 47. 131

"El legislador puede limitarse a establecer su voluntad en la forma originaria, praticable inmediatamente,

mientras que la ciencia, por el contrario, no solamente tiene la misión de explicar y de coordinar estas

voluntades, sino que debe también reducirlas a elementos lógicos de su sistema. El legislador nos ofrece, por

decirlo así, cuerpos compuestos que sólo le interesan por su utilidad inmediata; la ciencia, por el contrario,

emprende el análisis y los convierte en cuerpos simples. Al hacer esta operación es cuando se ve que reglas en

apariencia heteronegéneas se componen con ayuda de los mismos elementos y pueden desaparecer, siendo

inutilizadas desde luego; que tal regla, que no difiere de otra sino en un solo punto, basta solo con indicar éste;

que tal otra se compone de muchos elementos, cuya noción es simple, y que se debe, por consiguiente, reunirlos

para obtener la regla. Con un análisis parecido se adquiere el conocimiento de la verdadera naturaleza de las

reglas del derecho, ofreciendo la ventaja de que La ciencia, en lugar de una multitud de reglas distintas obtiene

un número determinado de cuerpos simples, por medio de los que puede recomponer, cuando le plazca, cada una

de las reglas del derecho." (JHERING, 1946, p. 30-31).

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A ciência jurídica em Jhering se traduz em dogmática analítica. Além da

decomposição e da simplificação, permite uma ampliação autopoiética do próprio direito, a

partir de suas forças intrínsecas. Desse modo, ao jurista caberia tão somente "deter-se sobre a

regra, o texto, a ratioscripta", sendo "condenado a não ir a além". Seu trabalho seria o de

sistematizar e simplesmente justificar o direito estatal, sem jamais questionar-lhe criticamente

o teor ou conteúdo. Essa concepção para Edgar da Mata Machado transformava o jurista, de

intérprete, em mero funcionário do Estado.

Ainda segundo o autor, o apogeu dogmático no século XIX se completa com o

advento da escola francesa da exegese, que consolidou o culto ao texto de origem legislativa

como a mais forte reação ao jusnaturalismo, tendo como base de todas as suas reflexões o

Código Civil de Napoleão, de 1804. Assim, a escola da exegese substituía o estudo do direito

pelo estudo dos códigos, reduzindo toda ciência jurídica ao Direito Positivo, fazendo que toda

"interpretação" tivesse como norte a "intenção do legislador". O Estado, como legislador

onipotente, recebe da burguesia a atribuição de traduzir a "vontade geral" e se consolida como

a única fonte e como fundamento único do direito, o que consagra o método dogmático como

o "método por excelência do estudo e do ensino do direito"132

. Mas a codificação e a exegese

cumprem também um papel estratégico, como demonstra Machado Neto:

Querendo concentrar no legislativo, exclusivamente, a competência para legislar, os

teóricos da exegese viram-se impelidos a resumirem todo o direito na lei.

Uma razão de ordem histórico-sociológica que não será de desprezar é que o

advento desta concepção legalista coincide com o das repercussões sociais da

Revolução Industrial. Entre tais repercussões destacam-se a racionalidade da vida

econômica e a aceleração da mudança social que então se processa. E é óbvio que a

lei, para ambos os casos, é a fonte jurídica mais funcional. Nem o costume, nem a

jurisprudência ou a doutrina poderiam competir com ela em racionalidade e

prontidão.133

Essas escolas dogmáticas formaram as bases de uma concepção científica que, não

obstante ter prevalecido ao longo do século XX, se mostra insuficiente para o esclarecimento

do direito no século XXI, sobretudo quando se tem o propósito de estudá-lo segundo o

paradigma democrático. O fato é que a ciência dogmática do direito apresenta um espectro de

investigação extremamente limitado:

O objeto dessa disciplina é a regra de direito, emitida pelo poder competente, seja o

Legislativo ou o Judiciário, de origem, pois, estatal, em qualquer hipótese. Esse o

132

MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.

128-132. 133

MACHADO NETO, A. L.. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 24

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"dado real" ou o dogma com o qual trabalha o jurista. Partindo dele, de sua

observação como fenômeno, o estudioso do direito indaga, a seguir, qual o

significado da regra. Como? Pesquisando-lhe as fontes, procurando surpreender o

sentido e o alcance que lhe pretenderam dar seus autores, verificando as

interpretações por que passou, tanto através da doutrina (comentadores) como da

prática dos tribunais (jurisprudência). Capacitado da função regulamentadora atual

da regra, o jurista dogmático procura incluí-la num sistema tanto quanto possível

coerente, a fim de torná-la utilizável na solução de casos concretos.134

Como se observa, a Ciência Dogmática do Direito é instituída pelo dogma da crença

axiomática do dever-ser, pela "proibição do non liquet como norma fundamental a impor uma

completude sistemática ao direito (o tudo saber) pelos juízos ontológicos de conveniência e

equidade de construção metajurídica do decisor jurisdicional."135

. No esquematismo

dogmático o decisor é dispensado de fundamentar teoricamente seus proferimentos, pois os

fundamenta apenas dogmática ou ideologicamente. Além do mais, só se reconhece o direito

de interpretação a alguns privilegiados e isso não se coaduna com o Estado Democrático de

Direito, em que deve prevalecer um direito igual de interpretação para todos ao invés de um

direito de igual interpretação136

.

2.2 Acusatoriedade e Inquisitoriedade: Um dualismo Metafísico

Expostos os caracteres acima, vê-se que a metafísica e o idealismo transcendental,

transpostos para o plano do Direito,acabaram por permitir tanto as justificações jusnaturalistas

quanto as juspositivistas, que na modernidade se constituíram como os dois grandes pilares da

ciência jurídica.

Também é possível afirmar que ao pensamento metafísico e ao idealismo

transcendental pode ser atribuída a especial atração que a teoria do Direito, de modo geral,

possui pelo binarismo, gerando dualidades e dicotomias dogmáticas, como é o caso dos

pretensos sistemas da acusatoriedade e da inquisitoriedade. Estes sistemas travam há séculos

um embate que tem servido, antes de tudo, à instrumentalização do Direito Processual Penal.

134

MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.

133. 135

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.

(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:

Fórum, 2011. p. 590. 136

Neste sentido é que Rosemiro Pereira Leal desenvolve o conceito de Isomenia: “A isomenia, em minha teoria

neoinstitucionalista, que é instituto operacional do princípio da legalidade, define-se pela oportunidade de

colocar todos os destinatários normativos (intérpretes) em simétrica posição ante idêntico referente lógico-

jurídico construtivo, aplicativo, modificativo ou extintivo do sistema jurídico (LEIS). É o devido processo, no

sentido da teoria neoinstitucionalista, que é o referente lógico-jurídico (interpretante) a balizar os limites

hermenêuticos de um sistema jurídico de “Estado Democrático de Direito” em concepções de uma sociedade

aberta”. (LEAL, 2010, p. 271).

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57

O fato é que, mesmo com o acentuado desenvolvimento das aptidões humanas, a utilização do

raciocínio binário parece inexorável:

Em outras palavras, para nós, seres humanos, para cada caso vertente sempre

existem duas diferentes e únicas hipóteses. Assim, quando qualquer questionamento

nos é formulado, a resposta naturalmente limita-se a uma afirmativa ou a uma

negativa. De igual modo, quando um engenheiro eletricista nos apresenta um projeto

de instalação elétrica, as ligações somente podem ser feitas em série ou em paralelo.

Nesse sentido, há o branco e o preto, o claro e o escuro, o belo e o feio, o alto e o

baixo etc.

Tão profundas são as raízes binárias de nosso raciocínio que a própria linguagem

empregada na informática obedece a esta virtual limitação humana: o zero e o um.137

Reis Friede, ao afirmar que o homem sempre tentou escapar do binarismo, demonstra

certo desalento ao constatar que uma terceira hipótese, quando existente, é sempre uma

combinação de duas hipóteses básicas e antagônicas, "não correspondendo, de nenhum modo,

a uma autêntica e genuína hipótese alternativa, capaz de superar a sinérgica restrição

binária"138

.

O que se pretende com este trabalho é demonstrar que a processualidade democrática

constitucionalmente instituída, não é "mera combinação" dos sistemas acusatório e

inquisitório139

e já fornece as bases teóricas que permitirão a superação desse dualismo

desprovido de sentido na pós-modernidade. Isso porque a evolução da ciência jurídica ocorre

cada vez mais mediante a "escolha racional entre teorias competitivas"140

, numa perspectiva

epistemológica em que a superação de teorias eventualmente consideradas inadequadas não é

mais fruto do simples acolhimento do raciocínio binário, no qual as conclusões sobre

determinado modo de pensar devem necessariamente levar à verdade ou à falsidade.

Écom tal objetivo que são adotadas, neste trabalho, concepções que buscam superar a

visão idealista de epistemologia como teoria do conhecimento capaz de produzir um juízo de

137

FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 1999.p. 20. 138

FRIEDE, Reis. Ciência do direito, norma, interpretação e hermenêutica jurídica. 2. Ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 1999.p. 21. 139

Talvez, na atualidade, fosse mais adequado usar o termo princípio para designar acusatoriedadee

inquisitoriedade, sobretudo diante da contraposição teórica entre a teoria dos sistemas de Luhmann e a teoria

discursiva de Habermas. A primeira preconiza uma complexificação social fundada na existência de sistemas

autopoiéticos ou operacionalmente autônomos que resulta na fragmentação do código moral. A segunda se funda

na distinção entre sistema e "mundo da vida", em que o sistema seria espaço de intermediação do agir

instrumental e estratégico e o "mundo da vida" como o horizonte comunicativo em que os "falantes" buscariam o

entendimento subjetivo de cunho universalizante. Assim, como será demonstrado mais adiante, nem

acusatoriedade, nem inquisitoriedade, numa perspectiva democrática, possuem status sistemático. Talvez

pudessem ser concebidos tão somente como princípios, pois os seus fundamentos e conteúdos devem ser

constantemente interrogados pela via processual. (NEVES, 2006, p. 123-124). 140

POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de

Brasília, 1972, p. 243.

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58

certeza que se instaura como "uma crença verdadeira justificada"141

ou como verdade

imutável apodítica (episteme-aletheia do pensamento grego)142

. Toda a pesquisa será

perpassada pelos conteúdos oriundos da epistemologia quadripartite de Rosemiro Pereira

Leal143

e da epistemologia evolucionária de Karl Popper144

, que se apresentam como aportes

teóricos de especial interesse para que o Processo Penal possa se desvencilhar do debate

dogmatizante entre acusatoriedade e inquisitoriedade,ingressando assim na cientificidade do

paradigma democrático.

Neste trabalho, permeado pela abordagem acerca do embate dogmático entre

acusatoriedadee inquisitoriedadeno Direito Processual Penal, o que se busca é demonstrar que

esse tipo de confronto na pós-modernidade se apresenta inócuo, e que a Teoria Geral do

Processo já fornece as bases epistemológicas para sua superação pela instituição

constitucional prototípica do Processo de Conhecimento oudo Devido Processo

Constitucional. O dualismo se expressa pela contraposição de conteúdos que se afastam e se

repelem com fundamento na impossibilidade de convivência e interação entre sistemas e

conceitos, instaurando sempre uma crise e impondo uma escolha, que por sua vez, só

aprofunda a separação, pois “há em todo ato de escolha, uma separação, porque algo é

preterido. Onde há uma preferência, há uma preterição”145

. Para Kelsen, o dualismo obscurece

a compreensão humana justamente porque separa radicalmente os conteúdos do saber:

O dualismo metafísico do “aqui agora” e do “além”, deste mundo e de outro mundo,

da experiência e da transcendência, conduz à doutrina epistemológica, amplamente

aceita, conhecida como teoria da imagem. Ela declara que, essencialmente, a

cognição humana apenas fornece, como um espelho, uma imagem das coisas tal

como elas realmente “são”, tal como “são em si mesmas”. Por causa da

impropriedade do material usado no espelho (os sentidos meramente humanos, a

razão meramente humana), essa é uma imagem inadequada, vaga, daquela realidade

ou verdade que nunca está ao alcance do homem. A importância decisiva desta

comparação da cognição humana com um espelho repousa no fato de que o mundo

verdadeiro e real está além do espelho, isto é, além da cognição humana, e que, seja

o que for que seja compreendido em sua moldura – o mundo tal como o homem o

experimenta com os seus sentidos e sua razão -, é apenas aparência, apenas o pálido

reflexo de um mundo superior, transcendente.146

141

GRAYLING, Anthony Clifford . Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de

filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 40. 142

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 170. 143

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012. p. 32. 144

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 72. 145

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 51. 146

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 600.

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Na filosofia de Kant, o dualismo se apresenta na própria estrutura do conhecimento

que pode ser empírico ou racional. A filosofia empírica é aquela que se baseia nos princípios

da experiência e a filosofia racional, em princípios a priori, razão pela qual é denominada

Metafísica. No entanto, isso não quer dizer que as cogitações metafísicas fiquem restritas a

instâncias transdencentes147

. Kant adota a concepção grega que divide as ciências em três

segmentos: a Lógica, a Física e a Ética. Acrescenta, contudo, que enquanto a Lógica só se

apresenta pelo aspecto formal ou empírico, a Física e a Ética possuem uma parte empírica e

outra racional, donde se conclui que é possível falar na existência de uma Metafísica da

Natureza e de uma Metafísica dos Costumes148

. Nesse sistema, a Metafísica dos Costumes vai

designar a Ética racional, que é onde se insere o Direito.

Esse tipo de estrutura dicotômica permeia a obra de Kant e vai produzir clivagens

como Moralidade/Legalidade, Legislação Interna/Legislação Externa, Direito Público/Direito

Privado, Liberdade Interna/Liberdade Externa, Autonomia/Heteronomia, Imperativos

Categóricos/Imperativos Hipotéticos149

. O Direito não escapa desse tipo de influência, pois as

dicotomias, os dualismos e as contraposições se mostraram de grande utilidade para a

consolidação da Ciência Dogmática do Direito,tanto no paradigma liberal quanto no

paradigma do Welfare State, tendo como base a concepção de que, ou se adota o Estado das

Leis (Gesetzstaat) ou o Estado dos Juízes (Richterstaat)150

. Ou se mantém o protagonismo do

legislador ou o protagonismo da magistratura, numa batalha de viés dogmático que vem

travando a consolidação e o desenvolvimento do Direito democrático, pois ainda persiste no

século XXI, como demonstra Rosemiro Pereira Leal:

O desaviso dos processualistas do novo milênio é o mesmo registrado nos séculos

passados: admite-se um direito produzido, atuado, modificado e extinto, segundo a

linguagem natural dos seus praticantes que, destinatários de uma Ciência Dogmática

do Direito, repassam aos especialistas (doutrinadores) a tarefa de explicitarem quais

dogmas devam apofanticamente prevalecer por uma nomenclatura categoremática

que, embalados nas asas de uma tópica e retórica nadificantes e sedutoras, são

147

“Não é a Metafísica um penetrar num mundo onde devemos nos despojar de tôdos os instrumentos dêste, e que,

neste, permita-nos obter conhecimentos. O modo de raciocinar metafísico é o mesmo que o do cientista.

E este, quando medita sôbre as coisas do mundo físico, tange sempre, quer queira ou não, o terreno da metafísica

que o cerca, exigente a solicitar-lhe soluções, que êle muitas vezes teme afrontar, retirando-se a uma posição

agnóstica, que é uma verdadeira renúncia à dignidade do saber humano.

Basta considerarmos a situação do físico ante as teorias sôbre o átomo que muitas vezes são um desafio à

inteligibilidade, como a acção à distância, a substancialidade da energia atômica, as contradições entre as ondas e

corpúsculos, e muitas outras, que enleiam o cientista em especulações metafísicas, porque já tange objetos supra-

sensíveis, ultra-experimetais, ou metempíricos, como se costuma dizer hoje” (SANTOS, 1958, p. 24-25) 148

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:

Edições 70, 2007. p. 13-14. 149

BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. São

Paulo: Editora Mandarim, 2000. p. 79-104. 150

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 107.

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60

insuscetíveis de arguição quanto à sua validade e legitimidade paradigmáticas a não

ser pelo confronto com outros dogmas jurisprudencialmente assentados por tribunais

excelsos.151

As incursões feitas no curso desta pesquisa talvez sejam insuficientes para alcançar o

ponto de reflexão que possibilite a superação do dualismo metafísico expressado no Processo

Penalpela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade, pelo simples fato de que o

conhecimento não consegue se desvencilhar da postura dualística. Esse é um desafio

epistemológico que se apresenta para a ciência jurídica.

Kelsen vai demonstrar que a superação das cosmovisões míticas dos povos

primitivos se dá por um dualismo metafísico-religioso variando apenas o grau de adesão à

divindade (ideia e justiça) ou ao empirismo (experiência jurídica), bem como a tentativa de

conciliação entre os opostos. O primeiro tipo é chamado de dualismo pessimista, pois o

homem deposita todo o seu destino sob os desígnios da divindade, uma vez que tem uma

péssima consciência de si próprio. O segundo tipo, chamado otimista, decorre de uma

consciência exaltada e autosuficiente. O terceiro tipo se caracteriza pela tentativa de

conciliação entre os extremos, por uma consciência cautelosa que não despreza as posturas

precedentes, e, por essa razão, não escapa do dualismo metafísico152

.

Essa concepção do conhecimento humano apresenta uma influência perceptível nas

mais variadas espécies de contraposições existentes na Ciência Jurídica. As objeções,

contudo, são muitas e antigas. Todo o idealismo transcendental, a pretexto de rechaçar a

Metafísica, termina por criar uma nova forma de Metafísica calcada em uma noção de dever

abstrata e sem conteúdo definido, pois fundada nas formas puras do entendimento, o que

resulta no abandono do Direito ao arbítrio e à consciência individual, que assumem um

aspecto totalizante, desprezando as especificidades da observação empírica153

.

2.3 Repercussões do idealismo alemão na formação das teorias da actio e suas

implicações nos sistemas acusatório-inquisitório

Foi no ambiente da Ciência Dogmática do Direito que os teóricos empreenderam

uma revisitação sobre a actio, com grandes repercussões para a ciência do processo. No

âmbito do Processo Penal, quando se pesquisa acusatoriedade e inquisitoriedade uma incursão

151

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo

Horizonte: Arraes, 2013. p. 18. 152

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 607. 153

LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.p. 277.

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61

sobre as tentativas de estabilizar a teoria da actio se mostra imprescindível. É um tema

relevante para que se possa aprofundar o estudo dessa histórica contraposição que ainda

persiste na contemporaneidade, impedindo a passagem do Processo Penal para a pós-

modernidade científica e sua consequente adequação ao paradigma da processualidade

democrática.

A actio romana era um dos meios de se obter em juízo a satisfação de um direito. O

outro era a vindicatio. Enquanto a actio se destinava à pretensão de direito obrigacional, a

reivindicação (vindicatio) tinha como objeto um direito real154

. Era o direito do cidadão de

pleitear em juízo tanto o que lhe era devido (actio autem nihilaliud est quamius perseguendi

in iudicio quod sib debetur) quanto o que era seu (vel quod suum est), o que provocava uma

confusão conceitual com o direito material. A ação era entendida como uma face do direito

material ou como o direito material violado em estado de reação155

. No século XIX, essa

concepção imanentista, fortemente influenciada pelo sistema romano das legis actiones, ainda

era adotada por Savigny156

.

Para esse autor, a reclamação exercitada contra outra pessoa a respeito de um

determinado objeto faz surgir uma nova relação obrigacional entre demandante e demandado,

desde que a parte lesada exerça o direito de ação. Como se vê, o direito de ação surge do não

cumprimento de uma obrigação por parte de um devedor. Desse modo, a ação é definida

como o próprio direito lesado revestido de uma forma especial. Savigny aborda as diversas

concepções que o termo actio assume no Direito Romano para concluir, com base em

Ulpiano, que o termo deve abranger tanto as actio in personam como as actio in

rem,abrigando as relações decorrentes das violações de direitos obrigacionais bem como as de

direitos reais. Para este segundo tipo, Savigny demonstra que o jurisconsulto romano

Papiniano empregava o termo petitio ao mesmo tempo que, para as duas espécies, empregava

o termo persecutio.

O minucioso relato de Savigny aponta ainda outras variações, como no caso em que

o termo ação é empregado para designar o ato escrito que dá início ao debate judicial, ou seja:

a petição inicial. Cita também outro aspecto da concepção de Ulpiano que distingue a actio da

persecutio, o qual constituiria uma espécie de extraordinaria cognitio que se desenvolveria

sem judex. Discorre também sobre a definição de Paulo, para quem o termo ação abrangeria a

154

SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,

1997.p. 64-65. 155

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 159-160. 156

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012. p. 134.

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62

persecutio, sem esquecer a acepção defendida por Celso, para quem o termo possui um

sentido mais restrito, designando tão somente as ações pessoais157

. Mas a conclusão de

Savigny é no sentido de que essas variações terminológicas não foram suficientes para afastar

o interesse pelo estudo da actio, que mesmo no período formular manteve sua relevância, pois

permaneceu sendo o ato pelo qual se iniciava o procedimento para a obtenção da fórmula.

Desse modo, seguindo a linha epistemológica de Savingy, seu grande precursor158

, a

Ciência Dogmática do Direito se consolida ao empreender a codificação jurídica na

Alemanha, tendo como base as Pandectas de Justiniano. Neste ambiente, vai se estabelecer

uma considerável polêmica sobre o tema, notadamente nos anos dedicados à elaboração do

BGB, o Código de Processo Civil:

Na Alemanha, adotavam-se duas terminologias para a tutela dos direitos subjetivos,

a actio (que rememorava o direito de o particular pedir ao magistrado a fórmula em

que a proteção estava condensada, e esse direito ao formulário era a actio) e a Klage,

ou Klagerecht – o direito de demanda, de querela, de queixa. A actio, que

WINDSCHEID quis substituir por pretensão (Anspruch) significava o direito de se

exigir de alguém uma ação ou uma omissão. A Klage não era essa pretensão, mas o

direito de ter a tutela jurisdicional do Estado, assim, a actio era dirigida contra o

obrigado, e a Klage, contra o Estado.159

Uma célebre polêmica entre Windscheid e Müther, travada em 1856, contribuiu para

romper com a concepção imanentista160

. Windscheid demonstrou inicialmente que no direito

romano o indivíduo não possuía um direito, e sim uma actio que consistia na possibilidade de

fazer valer judicialmente uma obrigação violada. A actio era inerente ao direito obrigacional.

A terminologia klagerecht deveria então ser utilizada para designar o direito exercido contra o

Estado com o objetivo de provocar o exercício da atividade jurisdicional. Müther procurou

refutar Windscheid afirmando que o sistema romano era, sim, um sistema de direitos

materiais, e que a actio era exercida quando o ofendido requeria a fórmula ao pretor. Dessa

forma, já seria possível vislumbrar no direito romano a klagerecht. Essa polêmica serviu para

estabelecer a autonomia do direito de ação com relação ao direito material e foi importante

157

SAVIGNY, F. de. Sistema del derecho romano actual. Tradução de do alemão M. Ch. Genoux; Versão para

o espanhol Jacinto Mesía y Manuel Poley. Madrid: F. Góngora y Compañia, Editores, 1879. t.4. p. 10-13 158

Este reconhecimento é feito por Carlos Cossio, para quem Savigny foi responsável por uma definição

ontológica do Direito Positivo ao afirmar que tal expressão seria mesmo pleonástica, pois o Direito só pode ser

positivo na medida em que se manifesta como experiência. Nessa perspectiva, se torna objeto da ciência jurídica

e faz com que o conhecimento científico acerca do direito só seja possível pelo estudo da experiência jurídica.

(COSSIO, 1954, p. 22). 159

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 134-

135. 160

GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial

Labor, 1936a. p. 99.

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63

para a publicização do Direito Processual161

.

O desenvolvimento da teoria da ação vai contar com uma singular contribuição de

outro importante autor alemão, Adolf Wach, que não obstante reconhecer a ação como direito

subjetivo, público e autônomo, acresce que se trata de um direito concreto à prestação

jurisdicional, cuja carga recai sobre o demandado que deverá suportá-la não diante do

demandante, mas diante do Estado que afirma assim a sua soberania, por um direito judiciário

de caráter material162

. Só teria ação aquele que fosse portador de “um direito a uma sentença

favorável” num claro “retrocesso às concepções de Windscheid e Müther, de vez que não

seria mesmo possível saber se alguém teria alguma razão em face de direitos, antes mesmo de

adentrar o juízo”163

.

Chiovenda, na clássica preleção L’azione nel sistema dei diritti, proferida em 03 de

fevereiro de 1903, na Universidade de Bolonha164

, ao apresentar a ação como um direito

potestativo que não poderia ser recusado pelo Estado, o fez afirmando se tratar de um direito

concreto a uma sentença favorável165

. Tal concepção provoca, nas palavras de Fazzalari, “um

engodo pegajoso”, pois introduz “uma inexistente e inútil duplicação da posição subjetiva

processual consistente na faculdade de instaurar o processo”, fundada na ideia de

concretude166

. O que se conclui é que a potestade, em Chiovenda, consistia no direito do autor

submeter o réu à “vontade concreta da lei” e, assim, a ação voltava às suas origens

privatísticas, pois nessa concepção a ação é dirigida contra o réu e não contra o Estado, como

haviam assentado os autonomistas167

.

Essa ambiguidade se reflete também na concepção de ação como forma típica do

direito de petição desenvolvida por Couture. Aqui, a ação civil é entendida como

manifestação, frente ao judiciário, do direito constitucional genérico de peticionar junto aos

órgãos estatais, garantia fundamental que comparece em todas as constituições escritas, desde

o Bill of rights, de 1689. A concretude aparece na formulação de Couture quando afirma que,

ao contrário do parlamento, que pode simplesmente ignorá-la, o judiciário não pode se abster

161

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 161-164. 162

GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b. p. 96 163

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 134. 164

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 133 165

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 135. 166

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 503. 167

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria geral do processo civil contemporâneo. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2007. p. 123.

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de decidir sobre a petição:

Mas quando o direito de petição se exerce ante o Poder Judiciário, sob a forma da

ação civil, esse poder jurídico não só resulta virtualmente coativo para o demandado,

que tem de comparecer para defender-se, se não deseja sofrer as consequências

prejudiciais da ficta confessio, mas também resulta coativo para o magistrado que

deve expedir uma ou outra forma de pronunciamento.

Este dever de pronunciamento por parte do juiz, é de tal maneira rigoroso ante o

exercício da ação civil, que sua omissão configura causa de responsabilidade

judicial. (tradução nossa)168

De todo modo, já havia se assentado o entendimento de que a ação direta, antes

exercida pelo titular do direito material violado, fora substituída pela ação de direito

processual, numa clara evolução jurídico-científica de modo a resguardar justamente “quem

não pode agir” diretamente, como defendia Pekelis169

. Assim, não é o particular que age em

juízo, mas o Estado que age em nome do particular170

. Por esta razão, ainda que tenha

movimentado a jurisdição de modo improcedente, o cidadão terá exercido o direito de ação,

conclusão a que chegaram o alemão Heinrich Degenkolb e o húngaro Plósz, em 1877171

, que

o definiram como direito público, subjetivo, autônomo, porém abstrato, pois mesmo que se

comprove não existir o direito material alegado, o direito de ação terá sido exercido em sua

plenitude, bastando que o pretenso direito material tenha se manifestado na consciência do

autor, ainda que, como mera abstração172

.

Mas a teoria da actio que obteve maior projeção no direito brasileiro foi a teoria

eclética de Enrico Tullio Liebman. Ao mesmo tempo em que reconhecia a ação como direito

autônomo, submetia seu exercício a condições estruturadas sob um trinômio formado pela

legitimidade de parte, o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido173

. Pela teoria

eclética a ação nada mais é do que o direito a uma sentença de mérito, tanto que a parte que

168

“Pero cuando el derecho de petición se ejerce ante el Poder Judicial, bajo la forma de acción civil, ese poder

jurídico no sólo resulta virtualmente coactivo para el demandado, que ha de comparecer a defenderse, si no desea

sufrir las consecuencias perjudiciales de la ficta confessio, sino que también resulta coactivo para el magistrado

que debe expedirse en una u outra forma acerca del pronunciamiento. Este deber de pronunciamento de parte del

juez, es de tal manera riguroso ante el ejercicio de la acción civil, que su omisión configura cuasa de

responsabilidad judicial” (COUTURE, 2007, p. 64). 169

SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,

1997.p. 169. 170

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 135. 171

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 58 172

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 165. 173

Liebman viveu e lecionou no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e em razão de sua forte influência sobre

os processualistas brasileiros sua teoria eclética foi adotada expressamente pela legislação do país, conforme é

possível constatar nos artigos 3º e 267, VI do Código de Processo Civil e também o art. 395, II do Código de

Processo Penal, incluído pela Lei 11.719/2008, o que demonstra a persistência da influência Liebmaniana.

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65

não atendesse a todas as condições seria considerada “carente de ação”, sendo decidido pela

extinção do processo sem resolução de mérito174

. O processo e a atividade jurisdicional

estariam assim subordinados ao atendimento das condições da ação, que, na doutrina de

Calamandrei, apesar de apresentarem a mesma configuração, são chamadas de requisitos

constitutivos para o exercício de um direito subjetivo, autônomo, porém concreto, pois visa

uma providência jurisdicional favorável175

.

Mas todo esse debate em torno do direito de ação pode parecer inútil, sobretudo

diante dos avanços teóricos proporcionados pelo processo constitucional. Mesmo do ponto de

vista do direito romano é possível afirmar que os romanos não se preocuparam em conceituar

a faculdade ou o direito de estar em juízo como autor176

. No entanto, a revisão do conceito de

ação vai se mostrar de grande relevância para a ciência processual no paradigma democrático.

Nesse sentido, é digna de nota a construção teórica desenvolvida por Elio Fazzalari:

FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação

para agir, que não pode ser concebida apenas ao autor, mas se estende a todos os

sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir

não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos.

Entretanto, a legitimação para agir, trabalhada pelo Direito Processual Civil, é

espécie do gênero legitimação, que é um conceito geral do Direito, e é por esta base

que desenvolve o argumento no qual procede ao reexame da ação.

A legitimação em gênero é contemplada por FAZZALARI sob um duplo aspecto: o

da “situação legitimante” e da “situação legitimada”.177

A expressão legitimação para agir, em Fazzalari, é aplicada também aos órgãos

jurisdicionais que, pela investidura, são considerados legítimos a praticar atos processuais178

.

Com relação às partes, Fazzalari desenvolve os conceitos de “situação legitimante” e

“situação legitimada”. Por estes dois ângulos o autor estuda a legitimação para agir, no plano

da teoria geral179

. Legitimação para agir é, então, a legitimação para o processo, que consiste

em estabelecer quais sujeitos podem ou devem cumprir a série de atos de um processo em

concreto.

Primeiramente, deve-se definir a “situação legitimante”, que vem a ser aquela em

que se define qual poder, faculdade ou dever pode ser concretamente conferido a um sujeito

174 PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 59. 175

CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.

Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 216-217. 176

SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,

1997.p. 166. 177

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 144 178

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006.p. 368. 179

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 369.

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66

visando cumprir um determinado ato. Já a “situação legitimada” é o conteúdo da legitimação,

ou seja, o poder, a faculdade ou dever que cabe (se põe como expectativa) ao sujeito

identificado pela “situação legitimante”. É sobre o conceito de “situação legitimada” que se

estrutura a teoria da ação de Fazzalari, pois rompe com a concepção de que no processo

existem sujeitos ativos e passivos, uma vez que não só os juízes são protagonistas do

processo, e sim todos os sujeitos estão “legitimados” a praticar os atos preparatórios do

provimento:

Tal série de atos constitui, de fato, o conteúdo da sua “legitimação para agir”, a

“situação legitimada” de cada um.

De outro lado, é óbvio constatar que as séries de atos que conduzem cada uma a um

dos participantes se implicam mutuamente: trata-se das séries relativas aos

contraditores, ou mesmo das séries relativas ao juiz ou a um seu auxiliar. A ordem

que se determina para a sucessão e mútua implicação dos atos dos vários

protagonistas (de uma parte, de outra, do juiz, do auxiliar, etc.) constitui justamente

o “processo”.180

Assim sendo, o conceito de parte passa a abranger todos os destinatários do

provimento. Nesse aspecto, deve ser ressaltado que em caso de decisão desfavorável, mesmo

que a medida requerida pelo autor não possa ser imposta, não se pode negar que o provimento

final, como ato imperativo, de um modo ou de outro, afeta as partes mesmo quando se

constata que não houve lesão e, portanto, “o universum ius não pode sofrer perturbação”181

.

Como se nota, a verificação da “situação legitimante” e da “situação legitimada” é

que se submete a condições e atendimento de elementos configurativos e estruturais de

formação182

. Desde modo, é possível concluir que a ação não se restringe àquele que promove

ou encaminha a pretensão em juízo:

Ao contrário, do iter processual, como positivamente disciplinado, é fácil e justo

deduzir que a situação legitimada do autor não se exaure na solitária faculdade do

sujeito de pôr em movimento o processo, mas consiste justamente – a olhá-la do

ângulo das posições subjetivas – em uma série de faculdades, poderes e deveres, os

quantos a lei assinale ao sujeito pela sua conduta, ao longo de todo o curso do

processo, até a sentença que acolhe ou refuta a demanda e, sem a realização dela –

isto é, sem o desenvolvimento do processo -, não se chega ao provimento do juiz,

que acolhe ou rejeita demanda.183

180

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 500. 181

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 147 182

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 135-137. 183

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 504.

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67

Assim, se a ação se configura “como a sequência das posições processuais que

cabem à parte”184

é possível concluir que não se define mais como facultas agendi, apoiada

ou não em lei processual, ou mesmo como ius agendi, instituído pelo direito positivo ou

natural, mas sim como procedimento, o que leva Rosemiro Pereira Leal a ressemantizar os

conceitos de direito de ação e direito de agir. Aquele como o direito incondicionado de

movimentar a jurisdição e este como “o direito de estar no procedimento apurável após a

instauração do procedimento pela existência e observância de pressupostos e condições que a

lei estabelecer”185

. Trata-se de uma importante contribuição epistemológica para afastar a

polissemia do termo, ora visto como direito (quando se diz que o autor é carente de ação), ora

como pretensão (o direito válido em nome do qual se promove a demanda), ou então, como

faculdade de provocar a atividade jurisdicional (poder jurídico individual de demandar)186

.

Todo esse percurso teórico repercutirá no plano do Processo Penal. Definir e

explicitar os contornos teóricos da ação penal é tarefa que não escapou a perplexidades, tendo

sido influenciada pelo debate do século XIX e que resultou num sincretismo que a

apresentava como direito concreto-abstrato, como observa João Porto Silvério Júnior:

A ação penal considerada em si mesma, qualquer que seja a sua natureza jurídica,

apresenta-se então, por uma parte, como entidade jurídica invocadora da jurisdição,

e por outra, como atividade processual, a atuar concretamente contra o autor de um

delito. Dada a natureza pública dos interesses em jogo, e salvo casos excepcionais, o

Estado brasileiro instituiu o Ministério Público como órgão titular da ação penal

pública. Mediante a atuação desse poder de acusar surge o direito de defesa,

constitucionalmente previsto, para possibilitar que o outro órgão do Estado – o juiz –

que imparcialmente decida, em definitivo, se num caso concreto e particular alguém

mereça a pena como autor de um delito.187

A doutrina processual penal também sofreu forte influência de Liebman, como é

possível observar na obra de Rogério Lauria Tucci que apresenta o direito de ação como um

direito subjetivo de caráter material, atribuível a qualquer membro da coletividade, tendo na

outra ponta dessa relação jurídica o Estado. Esse direito se manifesta pela ação propriamente

dita, definida como um direito subjetivo de caráter processual188

. Isso porque as relações

jurídicas se desenvolvem tanto entre os particulares, como entre estes e o Estado, que por sua

vez pode atuar como um particular no caso em que exerce o iure gestionis, ao buscar os bens

184

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 505. 185

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012. p. 133. 186

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007. p. 49-50. 187

SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 42. 188

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003.p. 76.

Page 60: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

68

necessários à objetivação de seus fins, ou como autoridade, exercendo iure imperii, o que

justifica o fato de que até mesmo nos regimes autoritários, em diversas relações, o Estado se

submete aos tribunais ordinários189

.

Com isso, mesmo que se procure afirmar a indistinção ontológica entre ação civil e

ação penal, nesta é possível encontrar peculiaridades que vão além da matéria jurídica que

constitui seu objeto. A primeira grande distinção diz respeito ao fato de que seu titular não é o

titular do direito de punir (ius puniendi), pois “tanto o Ministério Público quanto o particular

são os titulares do direito de ação, ou seja, do ius perseguendi in judicio; porém, nem um nem

outro são titulares do direito de punir (ius puniendi)”190

.

Na modernidade, a actio penal, por obra de concepções marcadamente idealistas, não

conseguiu se desvencilhar “do preconceito estabelecido pelos próprios feitores da

“concretude”, segundo os quais a ação consistiria e se exauriria na possibilidade de colocar

em movimento o processo”191

. Trata-se de uma perspectiva que leva em conta tão somente a

atividade do autor, justificando assim, o advento da acusatoriedade moderna calcada nos

princípios nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex officio ou nullum iudicio sine

actore192

. O autor penal passa a ser considerado agente livre e capaz de afetar o status

dignitatis de qualquer indivíduo amparado tão somente por indícios suficientes de autoria

(fumus boni iuris)193

.

Trata-se de um ambiente científico propício ao surgimento dos tipos-ideais e com o

Processo Penal não foi diferente. Como aponta Mauro Fonseca Andrade, os sistemas

acusatório, inquisitório e misto não apresentam maiores distinções no plano empírico e por tal

razão não devem ser considerados sistemas puros, mas tão somente, tipos-ideais, pois são

“conceitos genéricos, abstratos e irreais” e como tal “costumam ser utilizados como modelos

para a reforma ou construção de novos ordenamentos”194

. Os tipos-ideais são assim

identificados por Max Weber:

Trata-se de um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e muito menos da

realidade autêntica; não serve de esquema em que possa incluir a realidade à

maneira exemplar. Tem, antes, o significado de um conceito limite, puramente ideal

em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de

189

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas:

Bookseller, 1998. v.1.p. 20. 190

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 108 191

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006.p. 504. 192

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 173. 193

SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004. p. 47. 194

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

44.

Page 61: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

69

alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comparada. Tais

conceitos são configurações na quais construímos relações, por meio da utilização

da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada

segundo a realidade, julga adequadas.195

A actio penal, como marco distintivo entre os sistemas acusatório e inquisitório,

acaba atuando como conceito típico-ideal, pois visa afastar as contradições que caracterizaram

toda a história processual por meio do programa de uma nova ciência com forte tendência à

abstração e à generalidade “formada por conceitos e regras lógicas e universais, que se

manifestava, já em seu nascedouro contra os particularismos da análise de cada

procedimento.”196

.

2.4 O caráter concreto da actio como pressuposto de liberdade individual em Kelsen e a

atividade punitiva (repressiva) do Estado

Talvez o mais importante empreendimento teórico, visando a dessacralização e a

desmistificação do Direito, tenha sido o realizado por Kelsen com sua Teoria Pura do Direito.

Para Edgar da Mata Machado, “a Teoria Geral do Direito encontra na obra de Hans Kelsen,

qualquer que seja o juízo crítico que se lhe faça, o maior e mais poderoso impulso de

elaboração”197

, na medida em que buscou explicar o que é e como é o Direito, deixando claro

que não visava qualquer especulação sobre como deveria ser o Direito, pois sua teoria se

propunha a isolar o Direito Positivo das mais variadas ideologias que compunham o

jusnaturalismo198

. A Teoria Pura do Direito é, por assim dizer, anti-ideológica e positivista.

Ao distinguir a regra de Direito da lei da natureza, Kelsen chama a atenção para a

distinção no âmbito dos princípios que regem os enunciados descritivos dessas duas ciências.

Pela lei da natureza se “A” é, “B” é (ou será), enquanto que no âmbito das leis jurídicas se

“A” é, “B” deve ser. Isso implica em reconhecer que a lei da natureza descreve seus objetos

pelo princípio da causalidade,ao passo que a ciência do Direito descreve seus objetos pelo

princípio da imputabilidade ou da normatividade199

. Afirma-se, desse modo, a distinção entre

195

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. 4. ed. São Paulo: Cortez

Editora, 2001.p. 140. p.I.. 196

SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.2. ed. São Paulo: RT,

1997.p. 162. 197

MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995.p.

147. 198

MACHADO, Edgar da Mata. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.

148. 199

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 64.

Page 62: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

70

validade e eficácia jurídica, pois, para ser considerada válida, uma norma não precisa ser

necessariamente observada concretamente pelos indivíduos, uma vez que exprime um

comando “despsicologizado”, ou seja, que independe da vontade individual de cumpri-lo200

.

Neste ponto, vale lembrar a abordagem de Couture. Após recordar que a norma

jurídica pode ser cumprida espontaneamente (na medida em que a liberdade humana

pressupõe a realização de condutas juridicamente impostas ou não) ou coativamente, ressalta

que a coerção externa ao agente descumpridor seria a especificidade que difere a norma

jurídica da norma de ordem moral (no dizer de Couture, desprovida de formas materiais de

realização coativa). Por essa razão, submete a fórmula kelseniana a um acréscimo teórico de

grande importância ao concluir que, nenhuma coerção pode ser aplicada sem o prévio

processo. Em síntese: "Dado A deve ser B; e se não for deve ser C; prévio P (processo)"201

.

O prévio processo não aparece no discurso de aplicação kelseniano, tampouco no

chamado discurso de justificação, no qual se dedica a uma teoria hierarquizante e que não

esclarece como se poderia constituir democraticamente o direito, quando da passagem de

conteúdos jurídicos da mens legislatoris para a mens legis. Chega a afirmar que um sistema

legislativo deve ser dotado de estágios de atenuação legítima do princípio democrático202

como é o caso do sistema bicameral nos estados federados, onde uma câmara se destina a

representar o povo e outra se destina a se contrapor a esta representação.

Sobre a atuação de um devido processo203

na elaboração parlamentar da lei, não se vê

uma clara referência na obra de Kelsen. Em determinada passagem, chega mesmo a afirmar

que "o modo como a ideia de uma regra geral vem a existir é uma questão que não temos de

responder aqui"204

, de maneira a exprimir que a existência ou não existência de direitos

pressupõe sempre uma norma geral e generalizante, regulando a conduta humana nos moldes

do imperativo categórico kantiano, assumindo um caráter de universalidade ecuja observância

deve submeter às inclinações humanas, por ser algo bom em si mesmo205

.

200

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 49. 201

COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer

Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956.p. 157. 202

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 426. 203

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010;

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b. 204

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 114. 205

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa:

Edições 70, 2007, p. 52.

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71

Além do mais, na tentativa de explicar, mediante um encadeamento lógico, o

fundamento de validade das normas jurídicas, Kelsen deixa claro que tal fundamento decorre

sempre de uma norma posta logicamente num âmbito espacio-temporal, hierarquicamente

superior e anterior à norma objeto de perquirição. Com isso, Kelsen promove um regresso até

a norma fundamental (groundnorm), cujo fundamento de validade não deriva de nenhuma

outra e a partir da qual decorre o fundamento de validade de todas as outras normas (uma

norma em particular só é considerada parte do sistema na medida em que se verificar que seu

fundamento de validade decorre da norma fundamental), formando assim um sistema

denominado ordem jurídica206

.

Mesmo com a afirmação de que a norma fundamental é condição de existência do

sistema (ou ordem) jurídico (a), seus contornos teóricos permanecem inesclarecidos, pois

como demonstra Adrian Sgarbi, a certa altura Kelsen deixa de justificar a norma fundamental

pela lógica transcendental kantiana e passa a defini-la como uma ficção à qual é reservado o

papel de permitir “a leitura das normas que resultam dos atos de agentes competentes”207

. Na

explicação do próprio Kelsen tem-se que não é possível, por meio da realidade, interpretar o

sentido subjetivo dos denominados “atos ponentes de norma”.Essa interpretação só seria

possível por meio da ficção, pois a norma fundamental não expressa o “sentido de um real ato

de vontade, mas sim de um ato meramente pensado”208

. É nessa atemporalidade do ser que

reside a autocracia da norma fundamental, em que o devir, como vir-a-ser do dever-ser,

arrasta o passado e o presente para um futuro interminável, impossibilitando as investigações

sobre os seus conteúdos valorativos209

.

Não obstante a relevância dos estudos kelsenianos, é de especial relevância a

contundente crítica encaminhada por Rosemiro Pereira Leal:

O pensamento de Kelsen representa a maior proeza da inteligência jurídica para

ocultar a complexidade causal da realidade histórica. É um monumento à fuga

filosófica e a mais alienante teoria de que se tem notícia no Direito e a mais sedutora

construção jurídica do pensamento autocrático a despeito de sua proposta de

neutralidade ideológica e de autolegitimação, que, é claro, serve a qualquer direito,

mas que se liberta do fetiche, do sagrado, das cosmogonias, do panteísmo

humanista, embora crie um outro mito que é a norma régia e fundamental de origem

abstrata no cerne da humanidade, como se fosse a primeira e eterna rainha da

colméia normativa.210

206

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 168-169. 207

SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 62. 208

KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio

Antônio Fabris, 1986. p. 328-329. 209

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo

Horizonte: Arraes, 2013. p. 28. 210

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

Page 64: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

72

O fato é que, se por um lado Kelsen não desenvolveu maiores investigações em torno

do processo legislativo ou judicial, deve ser ressaltada sua abordagem em torno da ação.

Como sua construção teórica se baseia fortemente na ideia de que o direito subjetivo é sempre

o direito a determinada conduta de outrem, pois a cada direito corresponde uma obrigação ou

dever, a ação vai assumir em sua teoria um importante papel, como expressão da liberdade

individual enquanto “possibilidade jurídica de colocar a sanção em funcionamento”211

.

Para desenvolver esse raciocínio, Kelsen enfrenta o dualismo entre direito objetivo e

direito subjetivo212

, fundado em forte herança jusnaturalista, em que os direitos subjetivos

nada mais são que vontades ou interesses individuais reconhecidos e protegidos pela ordem

jurídica, e por tal razão, precedem lógica e temporalmente ao Direito estatal. Kelsen vai dizer

que essa concepção é lógica e psicologicamente insustentável, pois os direitos são abstrações

imperceptíveis aos sentidos e só podem ser afirmados ou negados pela existência ou não de

uma norma jurídica precedente. Assim, é possível afirmar que o direito objetivo é anterior ou

pelo menos concomitante ao direito subjetivo213

.

Isso ocorre porque nem sempre um interesse é amparado pelo Direito e, às vezes, um

direito não se mostra de interesse do titular, que pode deixar de pleiteá-lo. O mesmo ocorre

com a vontade. Quando ela se manifesta livremente através de um acordo firmado em

contrato, não se pode falar que o direito corresponde à vontade. O Direito vai proteger o

acordo, que é a expressão da vontade na medida em que o indivíduo isolado não pode

submeter juridicamente a outra parte214

. Ou como demonstra Calamandrei: “o Estado confia a

observância do direito, antes que à autoridade judicial, à livre vontade dos obrigados, e só

quando esta falta ou não se manifesta promete intervir, em um segundo momento, para

garanti-la”215

.

A “ação processual” aparece de modo relevante na construção teórica de Kelsen,

sendo definida como o direito jurídico em sentido técnico, pelo qual o particular, exercendo

2012.p. 18. 211

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 116. 212

Quando se refere ao primeiro, o faz em letra maiúscula, pois se trata de uma referência ao ordenamento jurídico

como um todo. Já o segundo, são os direitos atribuídos aos particulares especificamente. Neste ponto, Kelsen

demonstra que o dualismo está presente nos mais diversos sistemas jurídicos. Na Inglaterra se expressa por

termos distintos: Law (Direito Objetivo) e rigths (Direito Subjetivo). Na Alemanha e na França o termo direito,

aparece acompanhado dos adjetivos. Desse modo, têm-se: “objektives Recht” e “subjektives Recht”, na

Alemanha. Já na França: “droit objectif” e “droit subjectif”. (KELSEN, 2000, p. 112). 213

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 113-114. 214

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 114-117. 215

CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.

Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 229.

Page 65: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

73

sua liberdade, vai contribuir com a construção da ordem jurídica pela produção da norma

individual, ou seja, a sentença judicial,como observa Carlos Santiago Nino:

Kelsen assinala que o fato de que se outorguem aos particulares ações para reclamar

a aplicação de sanções é uma técnica particular que utilizam alguns ordenamentos

jurídicos, mas não outros. No direito penal não é geralmente utilizada,

monopolizando as ações processuais a certos funcionários públicos. No direito civil,

esta técnica é típica do sistema capitalista, nos quais se outorgam aos particulares a

faculdade de administrar seus negócios conforme a sua conveniência e a de

demandar, ou não, a quem não cumpre conforme seu interesse; do contrário, nos

sistemas socialistas, sua vigência está muito restringida.

Quando se outorga aos particulares este tipo de direitos, os permite participar da

criação da ordem jurídica, pois o exercício da ação processual tem por objeto que de

dite uma sentença judicial que é uma norma jurídica particular; ou seja, que

mediante a execução dos direitos subjetivos em sentido técnico os particulares

colaboram na criação do direito objetivo.216

(tradução livre)

De fato, tais afirmativas de Kelsen se amoldam mais perfeitamente à matéria do

Direito Civil, em razão da ampla disponibilidade dos bens, objetos de lesão pelo

inadimplemento de uma obrigação ou pela violação de uma abstenção relativa à propriedade.

O direito jurídico é uma norma que se põe em relação a um indivíduo que, por sua vontade,

pode ou não pleitear a imposição da sanção àquele que descumpriu o seu dever. A realização

da ordem jurídica está sempre a depender de “um queixoso em potencial”, que tem

assegurado o direito de ação processual independentemente de seu “interesse” ou “vontade”

de exercê-lo217

. Isso ocorre pelo fato de que os positivistas entendem que a cópula deôntica

(dever) desempenha tão somente a função de autorizar ao lesado exigir a reparação ou

pagamento, pois ainda que estabeleça uma relação imperativa-atributiva, é este último aspecto

o mais relevante, pois ao impor uma conduta ao obrigado, o faz tão somente como correlação

ao direito de outrem, que sempre se apresenta como faculdade, já que pode ou não ser

exercido, conforme a conveniência do titular.218

Com relação ao Direito Penal, a matéria se torna mais complexa. Mesmo que se diga

que no Direito Civil o exercício da ação judicial pelo indivíduo prejudicado atende ao

216

“Kelsen señala que el hecho de que se otorguen a los particulares acciones para reclamar la aplicaión de

sanciones es uma técnica particular que utilizan algunos órdenes jurídicos, pero no otros. En el derecho penal no

es generalmente utilizada, monopolizando las acciones procesales ciertos funcionarios públicos. Em el derecho

civil, esta técnica es típica de los sistemas capitalistas, em los que se otorga a los particulares la facultad de

convenir sus negocios y la de demandar, o no, a quienes no cumplen según sea su interés; en cambio, em los

sistemas socialistas, su vigencia esta muy restringida. Cuando se otorga a los particulares este tipo de derechos se

los hace participar em la creación del órden jurídico, pues el ejercício de la acción procesal tiene por objeto que

se dicte una sentencia judicial que es una norma jurídica particular; o sea que, mediante la ejecución de los

derechos subjetivos en sentido técnico los particulares colaboran en la creación del derecho objetivo.” (NINO,

2003, p. 205-206). 217

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 119. 218

MÁYNEZ, Eduardo García. Logica del juicio juridico. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 37.

Page 66: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

74

interesse geral de que a ordem jurídica seja preservada, é no campo penal que essa concepção

se apresenta de modo mais evidente. A técnica, contudo, é diferente. Diz Kelsen:

Um processo criminal não pode, via de regra, ser iniciado pelas pessoas cujos

direitos foram mais diretamente prejudicados pelo delito. Na maioria das vezes, é

alguma autoridade pública, um órgão da comunidade, que tem a competência para

fazê-lo. Como a sanção criminal não depende de uma ação judicial por parte de um

indivíduo particular, nenhum indivíduo particular tem o “direito” de não ser roubado

ou morto – ou, num sentido mais amplo, de não se tornar vítima de um delito

criminal. Mas como a execução da sanção penal depende de uma ação por parte de

um órgão competente do Estado, pode-se falar de um “direito” do Estado de que os

membros da comunidade devam se abster de crimes. Neste campo, em que

interesses especialmente vitais da comunidade têm de ser protegidos, o legislador

coloca o interesse coletivo acima do interesse privado. Contudo, o processo criminal

tem a mesma forma, ou, pelo menos, o mesmo aspecto interno, do processo civil; ele

exibe uma disputa entre duas partes: no processo criminal, uma disputa entre a

comunidade jurídica, o Estado, representado por um órgão público, e um indivíduo

particular, o acusado; no processo civil uma disputa entre dois indivíduos

particulares, o queixoso e o réu.219

Trata-se de uma concepção ainda concretista do direito de ação, pois afirma com

todas as letras que só será titular de um direito aquele que for titular da ação. Desse modo, o

princípio da obrigatoriedade da ação penal pública se apresenta como solução jurídica a

afastar quaisquer juízos de oportunidade e conveniência que poderiam levar o Estado a

negligenciar a preservação da ordem jurídica e, por conseguinte, a proteção da coletividade.

Esse é o princípio norteador da autuação dos órgãos de persecução penal, tais como a polícia

judiciária e o Ministério Público220

, desde que a modernidade afastou qualquer possibilidade

de jurisdição sem ação, o que era próprio do Processo Penal inquisitivo da Idade Média e

passou a exigir uma indiferença inicial do órgão jurisdicional que, para atuar, dependerá

sempre a provocação de um sujeito agente (nemo iudex sine actore)221

.

O que se percebe de todas essas construções é que elas são fruto de um racionalismo

dogmático. Na transição do medievo à modernidade há todo um esforço para superar a

tendência mistificadora do Direito, porém o que se verifica é a instalação de um dogmatismo

que caracteriza as diversas correntes do pensamento jurídico. É possível associar o

dogmatismo jurídico ao racionalismo ancestral que se manifesta por matrizes filosóficas que,

em busca de primazia, estabelecem um confronto entre idealismo e realismo. Nesse ponto a

teoria da actio penal assume especial relevância, pois, como visto, se estabilizou na forma de

219

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 121. 220

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 175. 221

CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.

Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 197.

Page 67: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

75

tipo-ideal, o que inviabilizou até aqui qualquer possibilidade de estabelecer um sistema

processual puro, seja ele acusatório, inquisitório ou misto222

.

Vai assumir assim um caráter concreto de realização de uma pretensão (anspruch)223

,

mesmo diante dos empreendimentos teóricos acima esquadrinhados. Tanto que há na doutrina

uma forte tendência em classificar as ações, do ponto de vista objetivo, conforme o tipo de

provimento estatal que se pretende obter. Têm-se assim, que as ações podem ser de

conhecimento, cautelares ou de execução224

, cujos provimentos, por sua vez, podem ser

classificados como condenatórios, declaratórios, constitutivos e mandamentais225

. De todo

modo, prevalece a ideia de que se trata de garantia individual de buscar o amparo da

autoridade, pois o sistema rechaça o exercício de direitos por ato próprio226

222

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

45. 223

ZAMORA Y CASTILLO. Niceto alcalà: cuestiones de Terminologia Procesal. México: Universidad Nacional

Autónoma de México, 1972. p. 48. 224

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 205 225

GOLDSCHMIDT, James. Derecho procesal civil. Tradução de Leonardo Prieto Castro. Barcelona: Editorial

Labor, 1936a. p. 100-114. 226

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007. p. 61.

Page 68: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

76

3 A RACIONALIDADE INSTRUMENTAL DA AUTORICTAS JUDICIAL E A

AMBIGUIDADE EPISTEMOLÓGICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A dogmática jurídica guarda uma estreita relação com a estabilização do Estado

moderno e, não obstante ser possível identificar suas raízes no Direito Romano, é com o

advento da concepção de Direito Positivo que a noção de dogmática jurídica se consolida, na

medida em que “a certeza e a segurança jurídica passa a vincular-se à exigência de uma

racionalidade abstrata, decorrente de um Estado soberano”227

, conceito que vem a ser

modelado por uma epistemologia (saber) positivista e por uma base política estatal (poder).

A modernidade consolidou a ideia de que os conflitos humanos deveriam ser

resolvidos por um terceiro imparcial, “manipulador do sentido normativo (juiz) pela

autorictas de que está investido”228

, algo que nunca provocou maiores questionamentos entre

os processualistas clássicos que vislumbravam nesse sistema o máximo de ganho civilizatório,

como se lê, por exemplo em Calamandrei:

A idéia fundamental que se encontra nos mais remotos clarões da civilização, e que,

constitui o germe de todos os institutos processuais posteriores, é a seguinte: para

alcançar uma solução pacífica do conflito, é necessário subtraí-lo às partes (as quais,

por estarem ambas ligadas ao mesmo interesse, seriam incapazes de avaliar

serenamente as razões da parte contrária: nemo judex in re sua) e confiar a decisão a

um terceiro, estranho ao conflito, que possa ser imparcial. Nessa idéia de

interposição entre as partes de um terceiro, estranho ao conflito, que possa decidir

imparcialmente, encontra-se a origem de todos os institutos judiciários.229

A despeito da imprescindibilidade que se atribui à existência dos juízes públicos, não

se pode passar ao largo da concepção de Derrida, de que a autoridade, em sua origem ou

fundação, é fruto de uma violência performativa, cujo limite possui contornos “místicos”, pois

não se garante ou se contradiz por nenhuma outra fundação preexistente, razão pela qual não é

justa, nem injusta, apenas um golpe de força230

.

3.1 Jura novit curia versus nemo judex sine actore: O mito do saber jurisdicional

Observando o status adquirido pela dogmática jurídica, é possível concluir que seu

227

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 88. 228

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 18-19 229

CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil 2. ed. Tradução de Douglas Dias Ferreira.

Campinas: Bookseller, 2003. v.1.p. 192. 230

DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o “fundamento místico da autoridade”. Tradução de Leyla Perrone-

Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 24-26.

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arcabouço de princípios e dispositivos está para a modernidade das relações sociais, como o

mito para a antiguidade arcaica. Por isso, há que se observar o papel das construções

mitológicas no desenvolvimento humano sob o ponto de vista social, religioso e cultural. O

fato é que:

Os mitos têm a ver com mistérios profundos surgidos na travessia humana. Nessa

travessia, toda vez que faltavam argumentos racionais para interpretar o significado

dos fenômenos (climáticos, sociais, culturais, etc.), criavam-se mitos para explicá-

los231

.

Com o Direito não foi diferente. Seu desenvolvimento ao longo da história sempre

guardou estreita ligação com os relatos míticos. Nas narrativas de Homero, no século VIII

a.C., o que se percebe é uma sociedade ainda primitiva e tribal, que já projetava na figura do

rei um líder com funções de ser o juiz dos conflitos privados e chefe militar nas guerras. Sua

autoridade não era absoluta. Considerava-se que Zeus estava acima do poder dos reis e chefes.

Acima de Zeus, contudo, estava o que os antigos chamavam de poder do destino, um poder

cósmico que atuava para manter para cada coisa o seu lote, impondo castigos a quem

subvertesse essa ordem natural. No final das contas, a ordem jurídica tribal era mantida por

meio das tradições, dos tabus, dos magicismos e das religiões232

.

Alf Ross demonstra que esse é o fundamento do jusnaturalismo, que se perpetuou

mesmo com o advento dos grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles, os quais

substituíram a magia e a religião primitivas pela especulação metafísica, porém, com o

mesmo intento de proporcionar ao homem a confiança irrefletida em um poder absoluto que o

governa desde sempre, perpetuando a ideia de que somente por meio de tal dominação é que

se garante aos povos a paz e a segurança:

E foi este espírito o que continuou caracterizando a posterior evolução durante um

longo tempo. A escolástica cristã (Tomás de Aquino) pôde, sem dificuldade,

interpolar uma nova doutrina religiosa no sistema de Aristóteles. Ainda hoje o

timbre do tomismo caracteriza a filosofia jurídica católica. Embora no mundo

protestante o direito natural tenha sido descristianizado e assumido a forma de uma

metafísica racionalista filosófica, na sua essência permaneceu o mesmo: uma crença

no eterno, numa validade sobrenatural absoluta.233

231

SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER, Theobaldo. O direito, a literatura, o mito e o juiz: construções em

torno do verbo decidir. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.3,

n. 1, jan./jun., p. 102-110, 2011. p. 102-110. 232

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269. 233

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.p. 269.

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Essa validade sobrenatural absoluta alimentava, ainda na antiguidade, uma

diversidade de concepções sobre o justo. Justificava tanto a confiança dos aristocratas na

manutenção da ordem (representada pelos relatos de Homero) quanto a esperança dos

camponeses de que Zeus lhes traria o alento castigando os poderosos e injustos (representada

pelos relatos de Hesíodo). Estaúltima concepção, que aparentemente se ampara em algo que

jamais se realiza, teria levado Sólon a afirmar que Zeus não se irrita facilmente com uma

ofensa, diferentemente dos mortais e nisto reside sua divindade. Porém “nenhum homem

perverso pode escapar de seu olhar vigilante”234

.

O fato é que as complexas narrativas mitológicas podem ser consideradas como uma

ciência primitiva que muito contribuiu para o desenvolvimento da humanidade. Levi Strauss,

após empreender uma cuidadosa abordagem sobre a estrutura do mito, chega à conclusão de

que entre o pensamento científico e o mítico há pouquíssima diferença qualitativa. Apenas

possuem como objeto diferentes dimensões da experiência humana235

. Tanto que Rosemiro

Pereira Leal reconhece e alerta que o mito na atualidade já não pode mais ser estudado "como

algo que tenha o poder mágico e sedutor de influenciar povos e crianças, cujo mistério

indecifrável deva ser mantido e celebrado", mas como algo que "cria a sua própria mística da

eternidade, multiplicando-se autopoieticamente em imaginosas versões como anestésico aos

delírios e alucinações pessoais e coletivas"236

.

O fato é que o mito, ao agir como esse "anestésico", desencoraja o "homem comum"

de "perquirir suas origens", aceitando com docilidade crenças que se apresentam, sobretudo

nas ciências humanas, "como regra heurística, erística, tópica, retórica e doxóloga de

generalizado convencimento"237

. As narrativas míticas da atualidade se destinam a perpetuar

as ideologias que oprimem a humanidade com uma perversidade insidiosa, pois muitas vezes

se apresentam travestidas como ciência e teoria.

Como demonstraram Adorno e Horkheimer, a ciência, na tentativa de destruir os

mitos, acaba caindo no feitiço mítico, pois o princípio da imanência do qual se vale para

confrontar o mito, sob o pretexto de conferir regularidade aos acontecimentos, dele em nada

se difere238

. O mesmo ocorre com o Direito que não consegue se desvencilhar da tradição, da

utopia e do mito expressos pelos "direitos materiais (maternais) surgidos de poderes, juízos

234

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000. p. 272. 235

STRAUSS, Levi. Antropologia estrutural. Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 265. 236

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 115. 237

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. 238

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.

ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998.p. 67.

Page 71: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

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ordálicos, simulacros, forças onipotentes, vontades coletivas naturais e de sistemas

normativos de fundo organicista" que decorrem dos "resquícios do poder constituinte

originário" e são continuadamente alçados a uma posição de primordialidade239

.

Como reflexo de toda esta mistificiação ou mitificação é que se consolida uma

doutrina jurídica permeada pela concepção de que a atividade jurisdicional, enquanto poder-

dever do Estado se manifesta como expressão da soberania ao impor coativamente entre os

particulares, a vontade concreta da lei, como pressuposto de ordem e segurança jurídica, ou:

“função pública de capital importância para o bom convívio dos homens na sociedade

complexa e tensa em que vivemos”240

. A jurisdição parece indissociável da ideia de

autoridade e, como no sentido primitivo da palavra resgatado por Giambattista Vico, se

apresenta como a onipotente autora do sentido normativo transmitido ao domínio dos civis241

.

Para alguns autores, contemporâneos, mais do que autoridade, jurisdição se manifesta como

potestade:

Em sentido amplo, jurisdição é o poder de conhecer e resolver com autoridade

certos negócios e conflitos que surgem das relações.

Em sentido restrito, jurisdição é o poder-dever das autoridades jurisdicionais de

decidir imperativamente o direito aplicável no caso concreto e de impor suas

decisões, as quais têm caráter de imutabilidade.

Etimologicamente, vem do vocábulo latino jurisdictio, que significa ação de dizer o

direito.242

Essa concepção, segundo a qual o juiz, ao exercer a atividade jurisdicional detém o

“poder” de “dizer o direito”, se sustenta no mito e no fascínio que este exerce. Segundo

Habermas:

O fascínio despertado por instituições detentoras de poder, que ao mesmo tempo

atrai e repele, revela a fusão de dois momentos aparentemente incompatíveis. A

ameaça de um poder vingador e a força de convicções aglutinadoras não somente

coexistem como também nascem da mesma fonte mística. As sanções impostas

pelos homens são secundárias: elas apenas vingam transgressões contra uma

autoridade cogente e obrigatória que vem antes delas. Dela, as sanções sociais

extraem, por assim dizer, o seu significado ritual.243

Como se nota, a ciência dogmática do Direito, ao afirmar que caberá ao juiz decidir

qual direito se aplicará ao caso concreto, instaura o princípio jura novit curia, estabelecendo a

239

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 51. 240

JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2005.p. 6. 241

VICO, Giambattista. Ciência nova. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2008. p. 62. 242

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 258. 243

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.p. 43.

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presunção de que o juiz conhece a lei, sendo portador nato de um saber privilegiado que não

encontra nenhuma limitação na atividade de decidir qual o direito se aplica aos fatos que lhe

são apresentados. O juiz não estaria,assim, adstrito aos dispositivos legais invocados pelas

partes, podendo decidir segundo sua ciência e consciência244

.A jurisdição se resume à

atividade do juiz e aparece legitimada, a priori, como o poder de dizer o direito por meio de

uma técnica apropriada que garante, “a partir do ato de criação do Estado, do sentimento dos

juízes, ou de escopos metajurídicos, o mais alto grau de violência realizante possível”245

.

O enfoque jurisdicêntrico, confere à atividade dos juízes uma confiabilidade

pressuposta, numa concepção egológica em que o objeto da ciência jurídica deixa de ser as

leis e o seu esclarecimento e passa a ser a conduta humana em face das leis. Nesse contexto, o

método jurídico se torna irrelevante, como se constata na obra de Carlos Cossio:

[...] uma vez iniciada uma experiência jurídica, à medida que esta se desenvolve,

aparece um fenômeno de objetivação axiológica muito mais interessante e firme

como possibilidade de ciência dogmática e como pauta para comprovar a

objetividade emocional da instituição judicial. Refiro-me à jurisprudência dos

tribunais. Quando já existe assentada uma jurisprudência a respeito do alcance

preciso de uma norma geral, todos os métodos ficam em silêncio e nenhum acordo

se extrai deles, nem sequer dos teóricos que trabalham de verdade sobre o Direito

positivo. Basta invocar a jurisprudência existente e o conhecimento resulta mais

seguro e, por isto, mais eficaz, sem importar que esta jurisprudência neste caso seja

exegética, em outro sistemática e em outro teleológica e em outro sociológica, etc.

A questão do método desaparece da experiência e da ciência. Só renasce quando se

deseja promover uma mudança de jurisprudência.(tradução nossa)246

Os juízes assumem, desse modo, um papel de contornos quase míticos, como

detentores de um conhecimento privilegiado das normas, dos valores e mesmo das emoções

que preponderam na sociedade:

Ser juiz evidentemente implica conhecimento da lei e provavelmente também

conhecimento de uma gama muito mais ampla de negócios humanos de

repercussões jurídicas. Implica também, contudo, o “conhecimento” dos valores e

atitudes julgados adequados a um juiz, estendendo-se até os que são proverbialmente

244

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007.p. 234. 245

LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.

119. 246

“[...] una vez iniciada una experiencia jurídica, a medida que ésta se desarrolla, aparece un fenómeno de

objetivación axiológica mucho más interesante y firme como posibilidad de ciencia dogmática y como pauta

para comprobar la objetividad emocional de la intuición judicial. Me refiero a la jurisprudencia de los tribunales.

Cuando ya existe sentada jurisprudencia respecto del alcance preciso de una norma general, todos los métodos se

llaman a silencio y nadie se acuerda de ninguno de ellos, ni siquiera los teóricos que trabajan de verdade sobre el

Derecho positivo. Basta invocar la jurisprudencia existente y el conocimiento resulta más seguro y, por ello, más

eficaz, sin importar que esa jurisprudencia en este caso sea exegética, en aquel otro sistemática, en aquel otro

teleológica, en aquel otro sociológica, etc. La cuestión del método ha desaparecido de la experiencia y de la

ciencia. Sólo renace cuando se desea promover un cambio de jurisprudencia.” (COSSIO, 1954,p. 248-249).

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considerados convenientes para a esposa de um juiz. O juiz deve também ter um

“conhecimento” adequado no domínio das emoções. Deverá saber, por exemplo,

quando tem de refrear seu sentimento de compaixão, para mencionar um requisito

psicológico importante deste papel. De tal maneira, cada papel abre uma entrada

para um setor específico do acervo total do conhecimento possuído pela

sociedade.247

No Processo Penal brasileiro, há notável reflexo dessa confiança irrefletida nas

virtudes dos juízes. O princípio jura novit curia atinge seu ápice pela norma do art. 385 do

Código de Processo Penal, que atribui ao juiz, nas ações públicas, a possibilidade de sentença

condenatória, ainda que o órgão do Ministério Público, titular constitucional da ação, tenha

requerido a absolvição. Pelo mesmo dispositivo legal, pode o juiz reconhecer agravantes que

não tenham sido alegadas pela parte autora. O que se extrai do dispositivo supracitado é um

claro retrocesso inquisitivo, pois viola os princípios do contraditório e da congruência, além

de caracterizar exercício de jurisdição, desprovido de ação248

.

A persistência de normas com essa configuração autoritária no Processo Penal

decorre do absolutismo do saber solitário que se instaura quando não é acolhido o processo

como “um discurso argumentativo de compartilhada fixação procedimental ad hoc do sentido

normativo em níveis instituinte, constituinte e constituído do Direito”249

. Esse saber vai

conduzir o Processo Penal à condição de vetor de políticas emergenciais, postura que o

distancia do paradigma democrático.

O tema da emergência penal é tão atual e tão presente que inúmeros pretextos

acabam contribuindo para que se recorra ao Estado de Exceção, como forma de

enfrentamento da chamada emergência penal, cujos contornos mais evidentes, são expostos na

análise de Fauzi Hassan Choukr:

Aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo,

constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na

normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse

subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a

adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o

modelo de estado democrático e de direito como limite máximo da atividade

legiferante nessa seara.250

O resultado é que, atualmente, nos mais diversos países, verifica-se uma situação de

fato que se caracteriza como emergencial e que resulta na sensação de que há uma

247

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 107. 248

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011b. v.2.p. 377-378. 249

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 40. 250

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 5-6.

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necessidade concreta de adoção de medidas que não se furtam em restringir direitos

fundamentais em nome de um combate mais intenso e sem tréguas à criminalidade crescente.

Esse movimento, conhecido como “da lei e da ordem” (law and order)251

, atingiu o Brasil,

paradoxalmente, após a redemocratização, com a difusão ampla da idéia de que a edição de

leis mais repressivas, tanto no campo material quanto processual, seria uma espécie de pronta

resposta a uma demanda por segurança que, por meio de pressões momentâneas movem o

legislador na direção do recrudescimento do sistema penal. Tais pressões, por serem

momentâneas, quando cessam deixam como herança um inevitável retrocesso do

ordenamento jurídico penal, transformando a normalidade em exceção252

.

Para Ferrajoli, no cenário italiano, a “cultura da emergência e a prática da exceção”,

que normalmente se desenvolvem antes das necessárias transformações legislativas, seriam as

responsáveis por uma verdadeira involução do ordenamento penal, a qual se percebe pela

“reedição, em trajes modernizados”, de esquemas característicos da pré-modernidade e que se

traduzem pela adoção de práticas e técnicas inquisitivas e policias pelos juízes, de modo que a

exceção se transforma em regra253

.

Esse direito emergencial, segundo Ferrajoli, se implanta em três fases, todas elas

identificáveis através da análise de sucessivas leis penais editadas na Itália ao longo do século

XX. A primeira fase se dá mediante o estabelecimento de um “direito especial de polícia” em

que se confere à administração policialesca quase todos os poderes de instrução próprios da

autoridade judiciária, tais como: prisão, perquirição, interrogatório e investigações sumárias.

A outra fase se caracteriza pela assunção por parte da magistratura de uma série de atribuições

na luta contra o terrorismo ou contra a máfia, ferindo o princípio da inércia e outras garantias,

caracterizando-se como um Direito Penal especial. A última fase se caracteriza por uma

difusão das práticas emergenciais na rotina judiciária, resultando em um notável afastamento

das garantias individuais por parte dos juízes254

.

Esse aspecto perverso do princípio jura novit curia vai confrontar o basilar princípio

da inércia, expresso pelos aforismas latinos nemo iudex sine actore, ne procedat iudex ex

officio e nullum iudicio sine actore255

. Esse princípio, também denominado princípio da

demanda, é a base de todo o sistema acusatório. Tal confronto leva à constatação de que o

251

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 4. 252

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 131–132. 253

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 649. 254

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 656-659 255

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 173.

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sistema acusatório em sua pureza, não subsiste hoje, nem mesmo na Inglaterra, sobretudo

após a edição, em 1984, do PACE (The Police Criminal Evidence Act), ato que disciplina a

atividade policial e a produção de provas em juízo. Mesmo relegando a atividade judicial a

uma posição de complementariedade, ao estabelecer a plena liberdade das partes na produção

da prova, há momentos em que as diversas cortes podem intervir ativamente na aquisição de

elementos probatórios eventualmente negligenciados pelas partes. Além disso, os poderes

instrutórios atribuídos à polícia e ao Serviço de Persecução da Coroa (CPS) fazem com que a

maior parte dos processos termine de forma negociada (plea-bargaining) com as chamadas

sentenças mitigadas, em que o acusado se abstém do direito de defesa em troca de uma pena

que normalmente é reduzida em 30% do quantum que normalmente se aplicaria ao fim do

procedimento256

.

Wienfried Hassemer alerta para a preocupante tendência atualmente observada no

tratamento dos direitos fundamentais pela União Européia, pois a população tende a enxergá-

los como “certo obstáculo numa luta eficaz do Estado contra a criminalidade”, na contramão

do estágio atual de desenvolvimento do direito constitucional. Ao externar a impressão de que

“a União Européia não tem nenhuma sensibilidade formada acerca dos riscos do Direito

Penal”, afirma que há limites para a restrição dos direitos fundamentais. Não são limites

traçados graficamente, porém, por serem jurídicos, surgem como reforços argumentativos a

partir de duas fontes: “a tradição jurídico-penal, sobretudo dos séculos XVIII e XIX e da

primeira metade do século XX, a qual consistiu sempre numa limitação das intervenções do

Estado por intermédio do Direito Penal”; e os direitos de liberdade constitucionalizados. O

problema para Hassemer é que as duas tradições andam separadas, pois “os penalistas não têm

a menor idéia da Constituição, e os constitucionalistas têm uma atitude de total indiferença

perante o Direito Penal, com algumas exceções”257

.

O autor ressalta que é perfeitamente possível reduzir criminalidade sem restrições

aos direitos fundamentais, utilizando-se o que ele chama de “equivalentes funcionais” ao

Direito Penal, como, por exemplo, os investimentos em tecnologia de segurança que já se

demonstraram eficientes no combate à criminalidade organizada, evitando-se o uso de

expedientes invasivos e violadores dos direitos fundamentais. Seu argumento volta-se contra

o projeto de Constituição Européia, o qual incorpora a tentativa de estabelecimento de um

256

SPENCER, Herbert . O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.

Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen

Juris. 2005. p. 249;275;294;332. 257

HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,

Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75.

Page 76: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

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corpus juris, com o objetivo de proteger os interesses econômicos predominantes na União

Européia e que se mostra bastante restritivo de direitos fundamentais e de soberania dos

Estados-membros, sobretudo em razão da previsão de um novo instituto: o mandado de

detenção europeu. Afirma com propriedade que “uma Constituição que atente contra a

dignidade da pessoa humana não deve existir, independentemente de qual seja a maioria e

qual seja a situação”258

.

Esse é o dilema que se apresenta aos pensadores do Direito. Como evitar maiores

restrições aos direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, preservar a autoridade jurídica

estatal como medium de que se vale a sociedade em busca de segurança259

? Não há como

negar o caráter excepcional exercido pelas chamadas Cautelas Penais num ambiente

constitucional que consagra princípios como “presunção de inocência”, “devido processo

legal”, “contraditório”, “ampla defesa”, “isonomia”, “liberdade provisória” e outros mais que

se apresentam como garantias individuais e coletivas. Dentre as Cautelas Penais, chamam

especial atenção aquelas que atuam diretamente na constrição da liberdade corpórea.

Mesmo em situações de pretensa normalidade, o sistema acusatório não se sustenta

integralmente e o que se vê é a prevalência de um cálculo utilitarista, relegando à legislação

um papel meramente retórico. Como todo cálculo utilitarista, as práticas penais autoritárias,

que ocorrem em sistemas proclamados como democráticos, se baseiam em argumentos

pragmáticos, e, como tal, buscam sempre demonstrar que os fins justificam os meios e que as

consequências que se pretende imediatamente alcançar trazem sempre um valor indiscutível.

Ou seja, "a aplicação do princípio da utilidade supõe que a importância de cada uma das

conseqüências é invariável e a mesma para todos"260

.

O reflexo dessa postura no Direito Processual Penalbrasileiro é o surgimento de

assimetrias as quais, se não são acolhidas expressamente pela Constituição brasileira, que

proclama um modelo acusatório, podem ser percebidas no plano da infraconstitucionalidade

(ex. arts. 156, I e 311 do CPP)261

. Se uma total simetria entre os sujeitos processuais parece

258

HASSEMER, Wienfried. Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey Jurídica, Belo Horizonte,

Ano 8, n. 16, 2006. p. 71-75. 259

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 171. 260

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 17. 261

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação

dada pela Lei nº 11.690, de 2008). I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e

relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690,

de 2008). -----

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longe de ser alcançada, como se vê nos mais diversos ordenamentos, o conceito de isomenia,

desenvolvido por Rosemiro Pereira Leal e que permeia esta pesquisa, busca implementar "a

possibilidade de entender e discutir os problemas jurídicos que possam enfrentar e erradicar

com significados constitucionalizados mediante o simétrico exercício de igual direito

fundamental (instituinte da co-institucionalidade) de interpretação para todos"262

.

Para uma compreensão mais adequada do princípio da demanda (nemo iudex sine

actore) no Processo Penal, uma importante tarefa que se impõe diz respeito ao exato papel

desempenhado pelo Ministério Público. Compreendê-lo como parte em sentido processual é

um passo importante:

Como bem explica HÉLIO TORNAGHI, enfatizando que o interesse dele “em que

se faça justiça não o induz a proceder da mesma forma que o juiz, pois então haveria

uma inútil duplicação”, o Ministério Público “é parte como órgão (e não

representante) do Estado. O aspecto ritual do processo a tanto leva, porque, além de

o Ministério Público ser fiscal de aplicação da lei, ele exerce a função de acusar.

Essa última é sua atribuição precípua, uma vez que o processo está organizado em

forma contraditória. Pode acontecer que durante o processo o Ministério Público se

convença da inocência do acusado e peça para ele a absolvição. Mas o contraste

inicial, nascido com a denúncia, permanece, uma vez que a lei não dispensa o juiz de

apurar a verdade acerca da acusação e de condenar, se entender que o réu é

culpado”.263

Como parte, ou seja, como “pessoa legitimada pela lei a atuar a lei”264

, ao Ministério

Público são atribuídos ônus processuais dos quais deve se desincumbir satisfatoriamente para

que obtenha a procedência de sua pretensão. No atual estágio das cogitações acerca do

Processo é possível afirmar com Aroldo Plínio Gonçalves:

Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não

pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer

das partes, resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as

conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.265

Essa ambiguidade que cerca a instituição do Ministério Público, como se observa,

contribui para obscurecer a compreensão da posição do Direito Processual Penal em face da

Teoria Geral do Processo e até mesmo acerca das possibilidades dessa teoria. Esse é um

debate gerado por uma concepção dogmática do tema e que precisa ser enfrentado com

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada

pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do

assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). 262

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 270. 263

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 186. 264

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 95. 265

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.

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86

argumentos teóricos estruturados numa perspectiva que leve em conta o paradigma

democrático.

3.1.1 Ministério Público como parte

No Processo Penal, em particular, o Estado se apresenta como parte e como julgador.

Isso, à primeira vista, poderia causar perplexidade266

, porém se mostra uma estrutura viável,

tendo em vista a presença do contraditório o qual, segundo Aroldo Plínio Gonçalves, faz do

Processo Penal um verdadeiro procedimento detentor da característica essencial capaz de

defini-lo como Processo267

. O que deve ser objeto de crítica científica é a explicação retórica

de que o Ministério Público atua como representante do Estado-administração, detentor do jus

puniendi, expondo a pretensão punitiva diante do Estado-juiz, pois no Estado Democrático de

Direito (art. 127 da CB/88) o Ministério Público se define como instituição popular

permanente e de inafastável essencialidade ao funcionamento do judiciário, como bem

demonstra Charley de Oliveira Chaves:

Sua legitimação é para instaurar o procedimento penal emanado da lei, o qual deverá

observar o Devido Processo Constitucional. A expressão jus puniendi é errônea. A

punição pode ser ou não o resultado do provimento final. Não se pode falar em

titular da punição como algo imanente e natural. A expressão jus puniendi dá uma

idéia de um direito subjetivo prévio ao processo, uma condenação sem julgamento.

No Estado Democrático não se chega a nenhuma conclusão sem o exercício do

Devido Processo Legal.268

Essa concepção leva a uma necessidade de repensar o princípio da obrigatoriedade

que, em regime de democracia não pode mais ser concebido como obrigatoriedade de

propositura da Ação Penal, mas tão somente como obrigatoriedade de formação da opinio

delicti269

, podendo o Ministério Público manifestar-se de forma fundamentada pelo

arquivamento da investigação, pela absolvição do acusado ou pela desistência de recurso

interposto nos crimes de Ação Pública, isso em razão da independência funcional assegurada

constitucionalmente (art. 129 da CB/88). Desse modo, não teriam sido recepcionados pela

nova ordem constitucional os arts. 42 e 576 do Código de Processo Penal brasileiro270

.

266

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 109. 267

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 130. 268

CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos

processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012.p. 183. 269

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p.117. 270

SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto. Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2004.p. 160.

Page 79: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

87

Essa concepção reforça a ideia de que o Ministério Público deve ser reconhecido

como parte no Processo Penal, pois afirmar que, após o oferecimento da denúncia, deixa de

ser acusador e passa a ser fiscal da lei (custos legis) é apenas um exercício de ficção jurídica,

pois é de se indagar como pode permanecer como "fiscal" um órgão que, no curso das

atividades processuais que se sucedem, "continua atuando, inquirindo, provando, ou seja,

participando ativamente do procedimento penal, agora, não na função de acusar"271

. A

principal virtude de tal postura é a clareza na definição do papel exercido pelo Ministério

Público, no Processo Penal. O contrário se dá quando Carnelluti passa a rechaçar a concepção

de lide no Processo Penal, definindo-o como processo de jurisdição voluntária, pois, ao

mesmo tempo em que se afirma que as partes não têm interesses contrapostos, se reconhece

que o Ministério Público, possui, sim, interesse na punição, a despeito de não ser considerado

parte no conflito subjacente. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho aponta as contradições

dessa concepção:

A figura principal do processo penal, nessa linha de raciocínio, é o Ministério

Público, que tem o encargo de punir, mesmo porque a punição, mormente nos casos

de privação da liberdade, não é a condenação. “Afinal, o Ministério Público não atua

para que o juiz possa julgar, mas ao contrário, o juiz julga para que o Ministério

Público possa portar a fundo a sua ação”.

Com uma premissa desse jaez, não é muito difícil levar a imaginação a conceber um

processo penal onde o Ministério Público possa punir ainda que não tenha

autorização do órgão jurisdicional, pois, sempre segundo CARNELUTTI, “será um

sistema imprudente e até incivil, mas não é um sistema absurdo”.272

Note-se que, esclarecer os contornos da atuação do Ministério Público é

fundamental. No Processo Penal italiano, é possível identificar uma contribuição importante.

Na Itália, a Constituição confere ao membro do Ministério Público a nomenclatura de

"magistrato", que também é atribuída aos juízes. Mas sua configuração constitucional é muito

próxima à do Ministério Público brasileiro, com as mesmas garantias de estabilidade,

inamovibilidade e independência (arts. 104 a 107 da Constituição Italiana). Mas o Pubblico

Ministero, ao atuar no Processo Penal, o faz como "parte pública", com atribuições

claramente distintas da "advocacia pública". Enquanto a "parte pública" representa o interesse

geral do "Estado-comunidade" afetado pelo crime, a "advocacia pública" representa o

interesse específico do Estado enquanto pessoa jurídica, eventualmente lesada pela ação

271

CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos

processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 67. 272

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,

1998a. p. 107.

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88

delituosa ( tradução nossa)273

.

Essa configuração jurídico-teórica permite evitar a confiança irrefletida que muitas

vezes se deposita sobre o Ministério Público, na expectativa de que seus integrantes venham

sempre a se comportar de modo imparcial, como se lê no texto de José Carlos Teixeira

Giorgis: "Embora seja o órgão ministerial o titular do jus accusationis que lhe é correlata, isto

não significa que os Promotores de Justiça atuem parcialmente"274

. O fato é que a retórica da

imparcialidade do Ministério Público provoca déficit isonômico, sobretudo quando se trata de

processo submetido a juízes leigos, como o Tribunal do Júri. Por essa razão, Jorge A. Clariá

Olmedo275

, analisando os termos "acusador", "autor penal", "querelante", "órgão requerente",

opta por adotar o termo "órgão de acusação" para melhor definir a atribuição do Ministério

Público no Processo Penal.

3.1.2 A prerrogativa investigatória do Ministério Público

Como visto, a defesa da imparcialidade do Ministério Público é um esforço retórico

que pretende conferir a tal instituição um status que muito se assemelha à figura do

"Soberano", tão bem descrita por Agamben como aquele que está ao mesmo tempo dentro e

fora da ordem jurídica, podendo decidir sobre o "Estado de Exceção"276

. O que se afirma

neste ponto é que, se posicionando ambiguamente como "acusador" e como "fiscal", o

Ministério Público sempre pode atribuir a si próprio propriedades performativas que o

coloquem em posição de imunidade argumentativa, pois seu discurso restaria inalcançável por

qualquer esforço de testificação.

A propalada imparcialidade do Ministério Público é apresentada como razão a

justificar a possibilidade e conveniência da realização de investigações preliminares

273

“Il pubblico ministero svolge nel procedimento penale la funzione di parte pubblica. Egli rappresenta l'interesse

generale dello Stato-comunità, e cioè l'interesse della società che è stata lesa dal reato.Ben distinta è la situazione

soggetiva dello Stato-persona, che è rappresentato dall'avvocatura dello Stato. Infatti, quarola il reato abbia

cagionato un danno ad un bene dello Stato, il ministro competente può decidire di chiedere il risarcimento nel

processo penale. In tal caso il ministro, che si costituisce parte civile, è rappresentato dall'avvocatura dello Stato”

“O Ministério Público desenvolve no procedimento penal a função de parte pública. Ele representa o interesse

geral do Estado-comunidade, e aquele interesse da sociedade lesada pelo crime. Bem distinta é a situação

subjetiva do Estado-pessoa, que é representado pela advocacia do Estado. De fato, em qualquer crime que causa

um dano a um bem do Estado, o ministro competente pode decidir de buscar o ressarcimento pelo processo

penal. Em tal caso, o ministro que se constitui como parte civil, é representado pela advocacia do Estado” (tradução nossa) (TONINI, 2010, p. 50-51). 274

GIORGIS, José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto Alegre: Letras Jurídicas

Editora, 1991. p. 111. 275

OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p. 9-

10. 276

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007a.p. 57.

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89

(persecução penal extra judicio) pelos seus órgãos nas mais variadas esferas de

competência277

. Há uma notável tendência de reconhecer a possibilidade do Ministério

Público conduzir a investigação preliminar, conforme é possível observar em países como

Espanha, Portugal e Itália278

.

No caso italiano, o Codice di Procedura Penale de 1988, estabeleceu expressamente

em seus arts. 326 e 327 atribuições investigativas ao Ministério Público, submetendo a Polícia

Judiciária às suas determinações, nos procedimentos instaurados pela instituição. Como

demonstra Aury Lopes Júnior, tal sistema teria despertado um verdadeiro furor investigativo

no Pubblico Ministero:

Já em 1992, quando o promotor Antonio di Pietro começa a investigar "um caso de

menor importância", culmina por colocar de manifesto um escândalo de corrupção

política sem precedentes (tangentópolis). A partir de então, a operazione mani pulite

- inicialmente levada a cabo por sete promotores de Milão e posteriormente por uma

ampla equipe - processa, em menos de um ano, seis ministros, mais de uma centena

de parlamentares e os dirigentes das mais importantes empresas da Itália. Em 1997

este número é elevado a cinco mil pessoas, os interrogatórios passam de vinte mil e

as cartas rogatórias a outros países superam as quinhentas. São números elevados e

preocupantes, não só pelo nível de criminalidade que representam, mas

principalmente porque por detrás deles está uma elevada cifra da injustiça (pessoas

inocentes injustamente submetidas ao processo). O que parece ser a supremacia da

lei reflete na realidade o império do Ministério Público. As cifras indicam não só

uma suposta eficácia da perseguição, mas também reais e elevadas cifras dos casos

de abusos de autoridade, perseguição política, desnecessária estigmatização e todo

tipo de prepotência.279

Os números realmente impressionam, mas não se pode de antemão afirmar que as

consequências para o sistema democrático de Processo Penal tenham sido nefastas. O fato é

que a legislação processual brasileira (art. 43, § 1º do CPP) deixa claro que o Inquérito

Policial não é o único procedimento investigativo com idoneidade para instruir a Ação Penal.

Abre-se um flanco para que possam ser utilizadas peças de informações produzidas por outros

órgãos administrativos (Receita Federal, Banco Central, dentre outros) e legislativos

(Comissões Parlamentares de Inquérito), o que faz com que a prerrogativa de investigar

delitos não possa ser negada justamente ao órgão legitimado a propor a Ação Pública.

O que deve ser ressaltado é que como qualquer outro procedimento a ser instaurado

no âmbito do Estado Democrático de Direito, qualquer investigação criminal levada a efeito

pelo Ministério Público não pode se pautar por uma "ética de resultados" que venha a

277

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2001. p. 81. 278

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 162 279

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2001. p. 82-83.

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90

desconsiderar direitos fundamentais em nome da segurança, valendo-se de "técnicas

processuais aberrantes"280

. Pelo contrário, ao investigar, com amparo nas atribuições que lhe

conferem a Constituição (art. 129, I, III, VI, VII e VIII), a lei 8.625/93 (art. 26) e a Lei

Complementar 75/93 (art. 5º), o Ministério Público brasileiro se vê em posição de "estrita

obediência ao princípio constitucional do devido processo legal"281

.

Qualquer tentativa de reforma legislativa ou constitucional, visando excluir a

possibilidade do Ministério Público conduzir investigações criminais é inconstitucional, na

medida em que reduz o espectro de atuação desta que é "instituição permanente e popular"282

.

No Processo Penal, especificamente, há que ser reconhecida como "parte" para que seu labor

investigativo seja submetido discursivamente ao crivo do devido processo legal, pois essa é a

única forma de constrangimento possível na processualidade democrática, à atuação de quem

quer que seja, pois como sintetiza Aury Lopes Júnior: "Quanto maior é a parcialidade das

partes, mais garantida está a imparcialidade dos juízes"283

.

3.2 Processo como judicium: ausência do devido processo e retorno aos primórdios do

Pensamento Metafísico

Na modernidade, sob os auspícios do desenvolvimento científico nos mais diversos

segmentos, o estabelecimento de teorias, que buscavam justificar racionalmente o poder

estatal e a consolidação do positivismo jurídico, faz surgir o problema de se afirmar ou não a

possibilidade de uma Teoria Geral do Processo, que pudesse abarcar em sua área de

investigação todos os ramos do Direito Processual.

Essa matéria ganhou força desde que os teóricos começaram a desenvolver

concepções científicas acerca do Processo. Como demonstra Jorge Olmedo, no final do século

XVIII, mesmo com o esforço dos pós-glosadores e outros comentaristas em conferir-lhe uma

base teórica, o Processo Penal ainda era mero apêndice do Direito Penal. No entanto, ao longo

do século XIX, aproveitou a conquista de autonomia do Direito Processual e cortou o cordão

umbilical que o mantinha atrelado ao direito material284

.

280

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 85. 281

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 163. 282

CHAVES, Charley Teixeira. Ministério Público como instituição permanente popular: os sujeitos

processuais no direito democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. p. 153. 283

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2001. p. 84. 284

OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.

43.

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91

Acusatoriedade e inquisitoriedade são, então, acolhidas numa tentativa de

compatibilização legislativa de grande repercussão em toda Europa: o code d'instruction

criminelle francês de 1808, promulgado por Napoleão. Este código é resultado de um esforço

que vinha sendo empreendido desde a Revolução para implantar o modelo acusatório em

substituição à ordenança francesa de 1670, que tinha um viés inquisitivo e que foi o grande

instrumento do absolutismo monárquico. Não tendo sido possível implantar um modelo

acusatório puro como na Inglaterra, instaurou-se, então, um sistema misto, com uma fase

inquisitorial e a outra acusatória285

. Trata-se de síntese resultante da dialética entre

acusatoriedade e inquisitoriedade, que conforme será abordado adiante, apesar de ter se

espalhado por diversos sistemas legislativos, inclusive o brasileiro, carece de sustentação

teórica adequada ao paradigma democrático286

. No entanto, serve para apontar a pertinência

de um dos eixos deste trabalho, ou seja, a indistinção epistemológica entre essas vertentes

dogmáticas, quando se trata de buscar uma perspectiva evolucionária para o Processo Penal.

De todo modo, é no século XIX que se inicia um esforço de elaboração da Teoria

Geral do Processo, tanto que, no prólogo de sua clássica obra, Bülow já vislumbrava a

possibilidade de suas cogitações servirem também para o processo criminal287

. Com Bülow, o

Direito Processual adquire autonomia científica e as repercussões de sua teoria no Processo

Penal são também objeto de interesse desta pesquisa.

Como já demonstrado acima, o século XIX foi marcado pela ciência dogmática do

Direito e pelo positivismo jurídico. Neste cenário, em 1868 Oskar Von Bülow, desenvolveu

notável estudo em que sistematizou o entendimento de que existe uma relação jurídica

processual que se distingue da relação material por três aspectos: a) pelos seus sujeitos (autor,

réu e Estado-juiz); b) pelo seu objeto (a prestação jurisdicional); c) pelos seus pressupostos

(os pressupostos processuais). Bülow teria se valido de um aforismo cunhado pelo jurista

romano Bulgaro (século XII): judicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei.

Trata-se de teoria que se espalhou mundialmente pelos textos de seguidores como Chiovenda,

285

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 5-6; OLMEDO,

Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 2. 1982. p.43. 286

"O modelo napoleônico de processo misto se difundiu no século passado em toda Europa, fixando raízes firmes

especialmente na Itália. Importo no Reino itálico contra o projeto de codificação elaborado por Romagnosi em

1806, foi acolhido pelos Códigos borbônico de 1819, de Parma de 1820, pontifício de 1831, toscano de 1838 e

pelos Códigos piemonteses de 1847 e 1859; e se conservou ininterruptamente, com variações apenas marginais,

no Código italiano de 1865, no de 1913 e finalmente no Código Rocco de 1930. A mistura e o compromisso

entre os dois modelos continuaram na era republicana, através da introdução de fracos elementos acusatórios na

fase instrutória, mas ao lado de maiores poderes judiciais aos órgãos inquiridores. Disso resultou uma ulterior

acentuação do caráter de juízo autônomo da fase instrutória e um progressivo esvaziamento da fase dos debates,

reduzida a mera e prejulgada duplicação da primeira" (FERRAJOLI, 2002, p.454). 287

BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 4.

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92

Carnelutti, Calamandrei e Liebman.

No Brasil, exerce ainda forte predomínio, sobretudo como esteio da escola

instrumentalista, vez que propala uma relação jurídica posicionando as partes em situação de

sujeição ao Estado-juiz, sendo o réucomo integrante do “pólo-passivo” submetido aos

interesses do autor que, por sua vez, se posiciona no “pólo-ativo”288

. O mérito dessa teoria

reside no rompimento com as concepções privatísticas de Pothier (processo como contrato) e

Savigny (processo como quase contrato)289

. Com Bülow, o processo passou a ser estudado

como ramo do Direito Público, graças a uma concepção inovadora para a época:

A relação jurídica processual se distingue das demais relações de direito por outra

característica singular, que pode ter contribuído, em grande parte, ao desconhecimento

de sua natureza de relação jurídica contínua. O processo é uma relação jurídica que

avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo. Enquanto as relações

jurídicas privadas que constituem a matéria do debate judicial, apresentam-se como

totalmente concluídas; a relação jurídica processual se encontra em embrião. Esta se

prepara por meio de atos particulares. Somente se aperfeiçoa com a litiscontestação, o

contrato de direito público, pelo qual, de um lado, o tribunal assume a obrigação

concreta de decidir e realizar o direito deduzido em juízo e de outro lado, as partes

ficam obrigadas, para isto, a prestar uma colaboração indispensável e a submeter-se

aos resultados desta atividade comum. Esta atividade ulterior decorre também de uma

série de atos separados, independentes e resultantes uns dos outros. A relação jurídica

processual está em constante movimento e transformação.290

Mas o fato é que Bülow, não obstante ter inaugurado a ciência processual, enredou-a

em um paradoxo insanável apontado com acuidade por André Cordeiro Leal291

e que consiste

no fato de que ao afirmar que o Processo é uma relação jurídica de direito público, vincula as

partes às interpretações e decisões dos tribunais, instaurando uma estrutura autoritária. Em sua

clássica obra editada em 1868, afirma:

A validez da relação processual é uma questão que não pode deixar-se liberada em

sua totalidade à disposição das partes, pois não se trata de um ajuste privado entre os

litigantes, só influenciado por interesses individuais, mas sim de um ato realizado

com a ativa participação do tribunal e sob a autoridade do Estado, cujos requisitos

são coativos e em maior parte, absolutos.292

288

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 280-281; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do

processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 83-84. 289

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007. 290

BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 6. 291

LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.

60. 292

BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 258.

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93

Desse modo, os magistrados são alçados a um patamar de controle de todo o direito

vigente, e o Processo passa a ser compreendido como o instrumento empregado na atividade

do juiz, que deveria criar o Direito em nome do Estado, mediante critérios de experiência e

sentimento íntimo. O que Bülow não explica é como se daria o controle dessa atividade

judicial293

.

O paradoxo reside no fato de que o Processo não pode ser, ao mesmo tempo,

instrumento de exercício do poder e mecanismo destinado a limitar e controlar a atividade

jurisdicional, compreendida até então de forma inequívoca como uma das modalidades de

exercício de poder pelo Estado294

. Com amparo nas cogitações de André Cordeiro Leal,

Sérgio Tiveron conclui a respeito do paradoxo de Bülow:

Esse paradoxo constitui-se num obstáculo à garantia dos direitos fundamentais, por

ser inconcebível que algo (processo) seja instrumento, meio ou método livre de

atuação do poder de criação e dicção do Direito e, ao mesmo tempo, sua própria

limitação.

À falta de adequadas respostas (crise) do modelo formalista (liberal-burguês),

concomitante ao avanço do desenvolvimento técnico proporcionado pelo

capitalismo gerador de um mundo desencantado (Weber), contrapôs Bülow a criação

do Direito conforme o sentimento ou desejo dos juízes (livre e discricionariamente)

hauríveis à coletividade de sangue e solo (nação) e aos seus concretos valores, ainda

que além, contra ou fora dos textos legais.295

O problema com a teoria bülowiana é que o Processo se torna mera técnica de

atuação dos juízes, visando até mesmo a realização de escopos metajurídicos (sociais e

políticos)296

. Mesmo afirmando se tratar de uma relação de direito público, ainda se estabelece

por um vínculo de sujeição entre pessoas que, no fim das contas, sempre se define como um

"fundamento típico do direito privado obrigacional"297

. Bülow, com sua teoria, adota uma

concepção social de Estado, com um totalitarismo embrionário, subordinando e

instrumentalizando o indivíduo, que passa a ter seu papel social e político consideravelmente

desvalorizado em função da prevalência de uma "ideologia do poder", conforme as palavras

293

Este é talvez, o ponto mais importante deste trabalho e será adiante desenvolvido tendo como marco a Teoria

Neoinstitucionalista do Processo, que concebemos capaz de escapar do paradoxo de Bülow, pois estabelece o

Processo como "instituição pública constitucionalizada de controle tutelar da produção dos provimentos, sejam

judiciais, legislativos ou administrativos" (LEAL, 2012, p. 53). 294

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012.p. 139. 295

A relação jurídica como técnica de suspensão da lei pelo juiz e a ideologia da decisão judicial como atividade

complementar da função legislativa e fonte criadora do direito ainda presentes no novo CPC: apontamentos

críticos à exposição de motivos. (ROSSI, 2011, p. 602). 296

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

188. 297

LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.

30.

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94

de Sérgio Tiveron298

.

As consequências práticas e teóricas das cogitações de Bülow, mediante a sua

notável influência na processualística dos países de Direito romano-germânico, são visíveis

também no Direito Processual Penal. Ainda que este se estruture sob o rótulo de acusatório, a

teoria relacionista vai produzir efeitos altamente nefastos, pois contraria o paradigma

democrático ao servir de sustentáculo à "ditadura do senso comum como agente municiador

de expectativas securitárias de lei e ordem"299

.

É perceptível a influência de tais concepções, pela atuação solipsista e, por vezes,

discricionária do julgador300

, instaurando um protagonismo judicial, cujo primeiro grande

exemplo no campo da legislação se deu com a Ordenança Processual Civil (ZPO) do império

austro-húngaro, elaborada em 1895, por Franz Klein, então Ministro da Justiça, que

consagrou os princípios da oralidade, mediação, concentração dos atos processuais e

informalidade301

.

A ZPO austríaca tem como fonte direta a StPO (Strafprozessording) alemã de 1877,

que já consagrava o princípio do juiz diretor, que se lançava à instrução, investigação e busca

da "verdade material" independente da atividade das partes, conforme constata Jairo Parra

Quijano302

. O fato é que, no contexto da monarquia dual austro-húngara, Franz Klein já

atribuía ao processo escopos metajurídicos (políticos, econômicos e sociais) e, ao mesmo

tempo, via nos litígios uma expressão de crise social que reclamava uma atuação mais direta e

ativa do Estado na sua resolução303

.

Há uma relação entre as inovações legislativas capitaneadas por Klein e a teoria de

Bülow. Este último, como é notório, desenvolveu toda a sua teoria das exceções e dos

pressupostos processuais tendo como destinatária a comissão que trabalhava na elaboração da

ordenança processual civil da confederação alemã304

, ordenança esta que, como visto, serviu

de fonte inspiradora para as medidas de Klein. Ambos representam um modelo de socialismo

processual próprio do final do século XIX, que se caracteriza principalmente pelo

298

LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.p.

30.p. 598. 299

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 53. 300

A exemplo do disposto nos arts. 156 e 385 do Código de Processo Penal brasileiro. 301

QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.

40. 302

O autor demonstra ainda uma inspiração remota para a legislação elaborada por Franz Klein: O regulamento

processual do monarca austríaco José II em 1791, exemplo de legislação produzida pelo chamado "despotismo

ilustrado". (KLEIN apud QUIJANO, 2004, p. 42). 303

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 83. 304

BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. 2. ed. Tradução de Ricardo

Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2005.p. 266.

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95

intervencionismo estatal nas questões privadas. Enquanto a influência de Bülow se fez notar

na doutrina, Klein exerceu forte influência na legislação305

, contribuindo para que concepções

autoritárias de processo vicejassem no século XX, criando fortes entraves ao desenvolvimento

de uma processualidade democrática, pois instaura uma nova inquisitoriedade, ainda que

disfarçada.

3.3 A instrumentalidade do processo penal e a persistência do sincretismo jurídico dos

chamados processos acusatório e inquisitório

A corrente unitária, que defende a possibilidade de uma Teoria Geral do Processo, é

adotada por Cândido Rangel Dinamarco para quem o elemento unificador não seria a lide, a

pretensão ou o contraditório, mas a instrumentalidade, que, em uma abordagem teleológica, se

apresentaria como a síntese dos objetivos do sistema processual:

O que a teoria geral do processo postula é, resumidamente, a visão metodológica

unitária do direito processual. Unidade de métodos não implica homogeneidade de

soluções. Pelo método indutivo, ela chegou à instrumentalidade do processo como

nota central de todo o sistema e tendência metodológica do direito processual

contemporâneo como um todo; a visão instrumentalista, alimentada pela

comprovação que a teoria geral fornece, é o vento mais profícuo da atualidade, em

direito processual.306

Em semelhante direção, segue Aury Lopes Júnior que, mesmo demonstrando

preocupação em superar a teoria de Bülow, não consegue se afastar da concepção

instrumentalista. O autor rende homenagens a Goldschmidt, a quem considera como sendo o

mais bem sucedido refutador de Bülow, ao rechaçar a ideia de que existem direitos e

obrigações processuais, instaurando assim uma epistemologia da incerteza307

, pela qual o

Processo se resolve como uma guerra, vencendo aquele que obtiver mais êxito em se

desincumbir das cargas ou ônus atribuídos pela lei308

. Mesmo assim, adota a mais importante

herança bülowiana, ou seja, a concepção de instrumentalidade do Processo, que considera o

principal fundamento de sua existência. Faz, no entanto, uma ressalva:

305

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 98. Ainda

QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.

47. Onde se colhe que A ZPO austríaca influenciou sobretudo o Código de Processo Civil Húngaro de 1911, a

ZPO polonesa de 1930, o Código da Iugoslávia de 1929, a legislação da Tchecoslováquia no mesmo período, a

ZPO norueguesa de 1915, a lei processual da Dinamarca em 1916 e, lei processual da Suécia, quase 50 anos

depois, em 1942. 306

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 89. 307

Esta concepção, será melhor abordada no tópico 4 deste trabalho. 308

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 134-136.

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96

É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo

penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal e à pena, mas,

principalmente, um instrumento a serviço da máxima eficácia das garantias

constitucionais. Está legitimado como instrumento a serviço do projeto

constitucional.309

Essa instrumentalidade tem forte amparo no garantismo penal de Luigi Ferrajoli,

sendo denominada pelo autor de "instrumentalidade constitucional" que permitiria a

operacionalização, com "máxima eficiência", de um "sistema de garantias mínimas",

destinado a minimizar os "espaços impróprios de discricionariedade judicial", fornecendo,

assim, um sólido aparato a proporcionar "independência da magistratura", diante da chamada

"panpenalização"310

.

Mesmo nessa vertente, a instrumentalidade mantém aquela que é a sua maior

característica, ou seja: o controle jurisdicional do processo ao invés do controle processual da

jurisdição311

, não escapando à crítica de André Cordeiro Leal, aqueles que defendem um

processo voltado "à realização dos valores do Estado e da própria sociedade", pois aposta

numa concretude alicerçada numa pré-compreensão de que tais valores intrínsecos a uma

realidade social só poderiam ser resguardados por um juiz "magnânimo e preparado",

mediante um enfoque do Direito que "antes de axiológico, é axiologizante"312

.

Esse caráter se evidencia com a radical afirmação de Cândido Rangel Dinamarco de

que como todo instrumento o Processo é meio e, como tal, só se legitima em razão dos fins a

que se destina313

. Estes fins ou escopos se estenderiam às questões sociais e políticas, não se

restringindo apenas ao jurídico. Os escopos sociais, segundo Dinamarco, seriam a pacificação

social com justiça e a educação. Na concepção do autor, a pacificação social seria alcançada

com a eliminação do conflito mediante critérios justos, levando à máxima potência o

decisionismo estatal, que seria capaz de por fim às angústias, pois os indivíduos, mesmo

diante de uma decisão desfavorável, tendem a confiar na idoneidade do sistema:

[...] psicologicamente, às vezes, a privação consumada é menos incômoda que o

conflito pendente: eliminado este desaparecem as angústias inerentes ao estado de

insatisfação e esta, se perdurar, estará desativada de boa parte de sua potencialidade

309

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29. 310

LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade

constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p. 71. 311

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. .

56. 312

LEAL, André Cordeiro. A instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008. p.

137. 313

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

181.

Page 89: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

97

anti-social.314

Outro escopo social é o de educação. O Processo instrumental atrairia forte confiança

da população no judiciário e este, com sua postura altiva e ativa, induziria cada um dos

cidadãos "a ser sempre mais zeloso dos próprios direitos" e ao mesmo tempo "mais

responsável pela observância dos alheios"315

. A educação se daria, desse modo, "através do

adequado exercício da jurisdição" com a finalidade de "chamar a própria população a trazer

suas insatisfações a serem remediadas em juízo"316

.

Os escopos políticos, por sua vez, atuariam segundo uma tríplice finalidade:

Primeiro, afirmar a capacidade estatal de decidir imperativamente (poder), sem a

qual nem ele mesmo se sustentaria, nem teria como cumprir os fins que o legitimam,

nem haveria razão de ser para o ordenamento jurídico, projeção positivada do seu

poder e dele próprio; segundo, concretizar o culto ao valor liberdade, com isso

limitando e fazendo observar os contornos do poder e do seu exercício, para a

dignidade dos indivíduos sobre os quais ele se exerce; finalmente, assegurar a

participação dos cidadãos, por si mesmos ou através de suas associações, nos

destinos da sociedade política.317

É possível observar, na concepção instrumentalista, uma visão autárquica de Estado,

herdeira direta do paradoxo de Bülow e do voluntarismo de Klein, onde a participação dos

afetados na produção do provimento estatal318

se dá não como exercício de um direito

fundamental, mas como concessão ou tributo que o "Poder" presta aos indivíduos e que serve

justamente como forma de auto-afirmação, pois o "Poder" sendo "um conceito

sociologicamente amorfo", como adverte Weber, permite que "todas as qualidades

concebíveis de uma pessoa e toda combinação concebível de circunstâncias podem pôr

alguém numa situação na qual possa exigir obediência à sua vontade"319

. Essa perspectiva

demonstra que a relação processual consiste numa estrutura em que a intersubjetividade se dá

mediante o estabelecimento de vínculos de sujeição320

.

314

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

196. 315

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

197. 316

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

198. 317

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

204. 318

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001;

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 119. 319

WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard

Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 97. 320

A contraposição do instrumentalismo com a teoria da processualidade democrática será melhor explorada no

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98

Outro aspecto notável, é que as perspectivas instrumentalistas estão sempre imersas

em dicotomias paralisantes, dentre as quais se destaca a que existe entre acusatoriedade e

inquisitoriedade. Rogério Lauria Tucci aponta outras situações:

[...] não se pode deixar de ter na devida conta que, estreitamente ligado ao Direito

Penal, e atendendo às diretrizes estabelecidas pelo escopo de suas respectivas

normas - de consecução do bem comum e correlata pacificação social, assecuratória

da segurança pública -, o processo penal objetiva, concomitantemente, dupla

finalidade, a saber:

a) por um lado, a tutela da liberdade jurídica do indivíduo, membro da comunidade;

e,

b) de outra banda, o de garantia da sociedade, contra a prática de atos penalmente

relevantes, pelo ser humano, em detrimento de sua estrutura.321

Fauzi Hassan Chouckr demonstra que as dicotomias do instrumentalismo podem ser

ainda muito mais nefastas, pois ao transformarem o Processo Penal numa arena, na qual é

travado um embate entre liberdade individual e segurança pública, levam a propostas

antagônicas que defendem,, por um lado um sistema fraco como forma de preservar as

garantias individuais e, por outro, um sistema que privilegie a segurança social em detrimento

do indivíduo, ambas com forte viés ideológico. Na mesma linha de Tucci, o autor aposta na

complementariedade entre os opostos e num Processo Penal salvífico que tenha a notável

propriedade da pacificação social sob a tutela do Estado:

Da segurança individual advinda do respeito pelo Estado dos direitos individuais e

coletivos, nasce a segurança social que com a primeira interagirá num processo

dialético, sendo que o sistema penal num Estado democrático e de direito pauta-se

pela tutela de ambos os pólos em questão.322

Mas a superação dos dualismos metafísicos, positivistas e instrumentalistas não é

tarefa das mais fáceis. A proposta deste trabalho é no sentido de apontar que tanto o modelo

acusatório quanto o inquisitório são estruturados dogmaticamente e permitem o decisionismo,

pois se ancoram em argumentos pragmáticos ou utilitaristas pouco afeiçoados com o

paradigma democrático. Um Processo Penal que vá além dessas escolhas, calcadas na

intersubjetividade de cunho axiológico e que possa acolher uma perspectiva de

interenunciatividade, com aportes de conteúdos fornecidos pelo racionalismo crítico e pela

teoria Neoinstitucionalista, constitui a busca desta pesquisa323

.

Para tanto, há que se empreender a sua desmitificação pelo abandono de concepções

Capítulo 4. 321

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 170-171. 322

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 12. 323

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 105

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99

ideológico-dogmáticas (senso comum do conhecimento) e pelo acolhimento de uma

perspectiva teórico-epistemológica que permita expor, a teste incessante, todos os argumentos

encaminhados pelas partes, auxiliares e julgadores no plano da procedimentalidade penal, que

na contemporaneidade324

, na ausência de conteúdos científicos desenvolvidos de modo mais

consistente, incorrem no puro e simples sincretismo entre acusatoriedade e inquisitoriedade,

como aponta Mauro Fonseca Andrade:

O fato do Ministério Público de um determinado país possuir o monopólio

acusatório, invariavelmente nos leva a crer que, nesse modelo de processo, está

presente o princípio acusatório material em sua plenitude, já que somente esse órgão

público poderá exercer as funções de acusador. Entretanto, essa situação encobre

uma dura realidade: esse monopólio somente garante que o Ministério Público será o

único legitimado a assinar a acusação. Em nenhum momento, a legitimidade

exclusiva do Ministério Público se refere a quem será o responsável por determinar

o conteúdo de uma acusação, e muito menos se o acusador pode ser obrigado a

ajuizá-la. Essas situações são responsáveis por converter o princípio acusatório

material em princípio acusatório formal, e, infelizmente, fazem parte da realidade

existente nos direitos alemão e italiano.325

O autor se refere a mecanismos legais existentes na Alemanha e na Itália pelos quais

o Ministério Público pode ser obrigado por decisão judicial a propor a ação penal, em clara

subversão do princípio acusatório proclamado em suas respectivas constituições. No direito

alemão, o princípio da obrigatoriedade ou da legalidade (Legalitäprinzip, § 152, II, StPO)

vem sendo mitigado nos casos de infrações de médio e pequeno potencial ofensivo pela

adoção progressiva do princípio da oportunidade (Opportunitätsprinzip), conferindo ao

Ministério Público a decisão sobre a conveniência de ajuizamento da ação penal. Contudo, em

certas situações ainda persiste a possibilidade de uma decisão judicial obrigar o Ministério

Público a promover a persecução em juízo326

.

Já no direito italiano, o art. 409 do Codice di Procedura Penale, estabelece um

intricado procedimento que atribui ao juiz das indagações preliminares (indagini preliminari)

a competência de apreciar o pedido de arquivamento encaminhado pelo Ministério Público.

Quando não acolher de plano o pedido, o juiz poderá promover uma audiência de conciliação

que contará com a participação do autor do crime, da vítima e do Ministério Público,

podendo, a depender do resultado da audiência, determinar novas investigações. Ao final

324

Este trabalho aborda adiante as possíveis distinções entre contemporaneidade, pós-modernidade e neo-

modernidade. 325

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008.p.

329. 326

JUY-BIRMANN, Rudolphe. O sistema alemão. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da

Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro:

Lumen Juris. 2005.p. 23.

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100

dessa etapa, o juiz pode determinar, no prazo de dez dias, que o Ministério Público formule a

imputação (L’imputazione coatta – art. 409, comma 5)327

, numa clara derrogação do princípio

nulla jurisditio sine actione, que, segundo a doutrina, se justifica pela exigência permanente

de assegurar a garantia de um órgão imparcial numa fase em que o Ministério Público pode

adotar providências que vão incidir sobre o direito fundamental de liberdade328

.

Esses exemplos ajudam a encaminhar o ponto central desta tese, que se propõe a

apontar a verdadeira crise dogmática que se instaura pela contraposição entre acusatoriedade e

inquisitoriedade, como tipos ideais estruturados ideologicamente, ao sabor das preferências

dos regimes de “Poder”. Contudo, as tentativas de superar essa dicotomia, não raras vezes,

resultam em mero sincretismo e pouco contribuem para o esclarecimento dos fundamentos

teóricos da linguagem decisória empregada no Processo Penal, o que se mostra de

considerável importância no paradigma do Estado Democrático de Direito.

327

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 289. 328

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 233.

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101

4 O INSTRUMENTALISMO PENALÍSTICO E O AUTORITARISMO TÓPICO-

RETÓRICO DOS PÓS-POSITIVISTAS

Como foi demonstrado no Capítulo 1, o discurso, segundo Aristóteles, apresenta três

espécies: deliberativo, judicial e epidítico. Também foi objeto de abordagem o

desenvolvimento da tópica e da retórica e sua importância para a estabilização do discurso,

em geral, no racionalismo greco-romano. Nesse ponto, há que se concentrar nos efeitos da

tópica e da retórica no discurso judicial contemporâneo, sobretudo no Processo Penal, que, ao

se estruturar dogmaticamente sobre o binômio acusatoriedade-inquisitoriedade, acaba por

demonstrar uma forte dependência de recursos persuasivos, porém, cada vez mais desprovidos

de conteúdo científico.

4.1 A tópica e a retórica como fontes de construção decisória e jurisprudencial

Para compreender a distinção entre tópica e retórica devemos buscar inicialmente em

Aristóteles, a relação entre retórica e dialética. Afirmando que ambas possuem um caráter

generalista por não se ligarem a nenhuma ciência específica, ressalta que tanto a retórica

quanto a dialética se ocupam de questões relativas ao conhecimento, mas enquanto a retórica

se constitui como a arte da demonstração e do discernimento, a dialética se define pela

oposição de argumentos contrários329

. O conteúdo da retórica é a apodítica330

, pois pretende se

sustentar pela afirmação de coisas verdadeiras e primordiais por si mesmas331

, enquanto na

dialética, o conteúdo é meramente opinativo332

havendo mesmo que levar em consideração as

intensões sofísticas dos litigantes333

.

A tópica, por sua vez, é que vai conferir à retórica um sentido mais concreto, mais

próximo à dialética, na medida em que os raciocínios e as provas por persuasão passam a ser

formados por argumentos comuns, voltados ao convencimento dos auditórios ou mesmo dos

julgadores, deixando de lado os argumentos científicos que seriam próprios ao ensino, mas

329

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 89-93. 330

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

p. 73 331

ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.

Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90. 332

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:

Imprensa Nacional, 1979. p. 24. 333

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 94.

Page 94: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

102

ineficazes na comunicação com as multidões334

. Como pretende a persuasão de um auditório,

a tópica vai sempre se sustentar pelo raciocínio erístico, baseado na plausibilidade de suas

afirmações, que prevalecerão no debate tanto quanto forem aceitas como verdadeiras pela

maioria dos ouvintes, ou então, pelos mais conhecidos e de melhor reputação. O raciocínio

erístico pode se basear também em conteúdos apenas aparentemente plausíveis, mas que não

possuem consistência, muitas vezes se caracterizando como falso raciocínio335

, que pode levar

a pseudoconclusões e paralogismos336

.

O que se busca é o hábil manejo dos entimemas337

por uma linguagem que prima por

ser acessível às massas, desprezando-se termos científicos, cujo significado não é acessível à

maioria das pessoas ou fazem sentido apenas para iniciados em determinado ramo do

conhecimento. Segundo Aristóteles, os oradores incultos são os mais persuasivos diante da

multidão, pois são “inspirados pelas musas”. Eles não fazem deduções muito longas, nem

seguem todos os passos da lógica dedutiva, se concentrando nos pontos que interessam e que

são abalizados pelos juízes ou por aqueles de maior reputação, tornando o discurso mais

acessível aos ouvintes338

.

Os tais argumentos ou lugares-comuns, deverão nortear a demonstração dialética

com o claro objetivo de melhor persuadir. São os chamados tópicos ou topoi, extraídos de

quatro cânones ou gêneros norteadores do raciocínio e que correspondem aos lugares-

comuns339

: o gênero, a definição, o proprium e o acidente, deste decorrem, por sua vez, dez

categorias básicas do entendimento (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo,

estado, posição, ação e paixão). Sempre com amparo no princípio da identidade, os topoi são

definidos como “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a

favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e podem conduzir à verdade”340

. Opera-se

através da identificação de problemas e do confronto de suas semelhanças com outros casos:

334

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 93. 335

ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.

Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 90-91. 336

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina

Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48. 337

Silogismo retórico formado por premissas prováveis, que não apresentam uma conclusão de certeza absoluta.

(ABBAGNANO, 2007, p. 334). 338

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 213-214. 339

ARISTÓTELES. Tratados de lógicas. Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.

Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. Libros II a VII. 340

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:

Imprensa Nacional, 1979. p. 26-27.

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103

A consideração do semelhante é útil para os argumentos por comprovação, para o

raciocínio a partir de uma hipótese ou para dar as definições. Para os raciocínios por

comprovação porque julgamos oportuno comprovar o universal mediante a

comprovação de casos singulares com base nas semelhanças: pois não é fácil

comprovar sem perceber as semelhanças. Para os raciocínios a partir de uma

hipótese, porque é coisa admitida que, tal como ocorre com uma das semelhanças,

assim também ocorre com as restantes. De modo que, com respeito a qualquer

dessas coisas de que disponhamos boas bases para a discussão, acordaremos

previamente que, tal como ocorre nesses casos, assim também ocorre ao

previamente estabelecido, e, uma vez demonstrado aquilo, também teremos

demonstrado através da hipótese o previamente estabelecido, pois havendo dado por

suposto que, tal como ocorre nesses casos, assim também ocorre no previamente

estabelecido, teremos construído a demonstração. (tradução nossa)341

Um vasto catálogo de topoi é apresentado por Aristóteles, o que permite estruturar

uma infinidade de perguntas e respostas que contribuem para o entendimento comum342

. São

verdadeiros postulados da boa argumentação, como por exemplo: o dos contrários (ser sensato

é bom porque ser licencioso é nocivo); o das relações recíprocas (se um tem direito, outro tem

obrigação); o do mais e do menos (se nem os deuses sabem tudo, muito menos os homens);

dentre outros343

. Os topoi atuam nos três gêneros oratórios, deliberativo, judicial e epidítico,

sendo que, neste último não têm a função de influenciar nenhuma decisão, pois o próprio

gênero era voltado mais ao espetáculo, cabendo aos ouvintes apenas apreciar o talento do

orador344

. Nos dois primeiros, contudo, o discurso retórico é voltado para uma decisão,

sobretudo no caso do judicial. Contudo, há o alerta para que se deixe o mínimo possível de

questões submetidas à decisão dos juízes:

[...] não havendo uma definição clara do legislador, é certamente ao juiz que cabe

decidir, sem cuidar de saber o que pensam os litigantes.

É, pois, sumamente importante que as leis bem feitas determinem tudo com maior

rigor e exactidão, e deixem o menos possível à decisão dos juízes. Primeiro, porque

é mais fácil encontrar um ou poucos homens que sejam prudentes e capazes de

legislar e julgar do que encontrar muitos. Segundo, porque as leis se promulgam

depois de uma longa experiência de deliberação, mas os juízos se emitem de modo

341

“La consideración de lo semejante es útil para los argumentos por comprobación, para los razonamientos a

partir de una hipótesis y para dar las definiciones. Para los argumentos por comprobación porque juzgamos

oportuno comprobar lo universal mediante la comprobación por casos singulares sobre la base de las semejanzas:

pues no es fácil comprobar sin percibir las semejanzas. Para los razonamientos a partir de uma hipótesis, porque

es cosa admitida que, tal como ocurre con una de las semejanzas, así también ocurre con las restantes. De modo

que, respecto a cualquiera de esas cosas en que dispongamos de buenas bazas para la discución, acordaremos

previamente que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente establecido, y, una vez

ayamos mostrado aquello, también habremos mostrado, a partir de la hipótesis, lo previamente establecido; pues,

habiendo dado por supuesto que, tal como ocurre en esos casos, así también ocurre en lo previamente

establecido, hemos construido la demonstración.” (ARISTÓTELES, 1982, p. 119-120). 342

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:

Imprensa Nacional, 1979. p. 41. 343

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 216-218. 344

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 147.

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104

imprevisto, sendo por conseguinte difícil aos juízes pronunciarem-se rectamente de

acordo com o que é justo e conveniente. E, sobretudo, porque a decisão do

legislador não incide sobre um caso particular, mas sobre o futuro e o geral, ao passo

que o membro da assembleia e o juiz têm de se pronunciar imediatamente sobre os

casos actuais e concretos. Na sua apreciação dos factos, intervêm muitas vezes a

amizade, a hostilidade e o interesse pessoal, com a consequência de não mais

conseguirem discernir a verdade com exactidão e de o seu juízo ser obscurecido por

um sentimento egoísta de prazer ou de dor.345

Apesar dessas recomendações, é evidente que são muitas as questões submetidas aos

juízes e, sobretudo na experiência jurídica dos séculos XX e XXI,até mesmo questões de

fundo axiológico passaram a ser submetidas ao judiciário que, por sua vez, passou a decidir

com a preocupação de que seus argumentos recebam a maior adesão possível de um auditório

universal, formado pelo conjunto de cidadãos, prevalecendo, assim, os argumentos

“privilegiados pelo senso comum”, acolhidos pela ciência jurídica na forma de princípios

gerais e enunciados jurisprudenciais, formando desse modo, um catálogo de topoi

específico346

. Essa perspectiva pode ser observada nos trabalhos de Chaïm Perelman e

Theodor Viehweg.

Perelman, ao desenvolver sua teoria da argumentação, à qual denomina “nova

retórica”, pretende atribuir aos juízos valorativos um grau de objetividade, que antes o

positivismo jurídico só reconhecia aos chamados juízos de realidade. A solução jurídica

dependerá das peculiaridades do problema, conceitos ou ideias abstratas podem adquirir

concepções variadas e relativas, perdendo seu caráter absoluto:

Que fazer quando a adesão simultânea a vários valores ou a várias regras redunda,

em casos particulares, em incompatibilidades e antinomias? O senso comum

considera valores, admitidos por todos, a liberdade e a justiça. Mas pode acontecer,

mal os definimos desta ou daquela maneira, que eles venham a chocar-se em uma

situação particular. Para resolver a incompatibilidade que se apresenta, será

necessário sacrificar um dos dois valores ou redefinir um deles, a fim de subordiná-

lo ao outro. Para tanto, dissociamos uma noção, qualificando de aparentes alguns de

seus aspectos. Se certa concepção de justiça conduz a uma tirania que queremos a

todo custo evitar, nós a qualificaremos de justiça aparente. Se certo uso da liberdade

viola o ideal de justiça, ao qual concedemos primazia dentro de certa visão do

homem e da sociedade, diremos que se trata de licença ou de liberdade aparente. É

assim que a solução de conflitos entre valores, aceitos pelo senso comum, pode

conduzir a concepções filosóficas e ideológicas diferentes, pois há várias maneiras

de resolver um conflito entre valores e normas múltiplos em dada situação.347

345 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 91. 346

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.

152. 347

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 162-163.

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105

Na construção de Perelman, essa ponderação de valores é atribuição solitária do

julgador pela prática prudencial que deve sempre buscar o razoável em cada situação: “O

julgador possui o poder, inclusive, de superar a lei para fazer justiça”348

. Trata-se de uma

tentativa de superar a jurisprudência dos conceitos e o positivismo jurídico por uma

jurisprudência dos valores que permeia as decisões das Cortes, de modo que a ideologia, as

preferências políticas e até mesmo concepções religiosas acabam inevitavelmente

influenciando decisões judiciais, predominando um realismo jurídico pelo qual nem sempre a

lei é o fator mais importante a ser levado em consideração pelo julgador349

Mas a concepção de Perelman, também se baseia num critério teleológico por meio

de um relativismo normativo em que a aplicação da regra pode ser desqualificada, caso haja

um afastamento dos fins que deveria originariamente alcançar. Naquilo em que a regra

cumpre com seus fins, qualificada como real e como aparente, na parte ou sentido de

aplicação em que deve ser descartada. Os juízos de valor é que devem estruturar o real por

meio de uma lógica não-formal reconhecida como técnica capaz de promover uma constante e

naturalmente virtuosa interação entre pensamento e ação350

. Com a relevância assumida pelos

valores nos juízos de aplicação, a lei passa a ser definida como um entre diversos topoi a

serem empregados na decisão jurídica351

, e o único conflito que ainda atormentaria o julgador

nesse abandono normativo seria quanto a seguir o standard individual (subjetivo) ou

comunitário (objetivo), como se observa na tradição judicial norte-americana, cuja tendência

aparece resumida de modo lapidar por Benjamin N. Cardozo:

Minha análise do processo judicial vem, pois, a dar no seguinte, ou em pouco mais

do que isso: a lógica, a história, o costume, a utilidade e os standards aceitos de

comportamento correto são as forças que, separadamente ou em combinação,

impulsionam o progresso do direito. Qual dessas forças dominará em um caso

concreto, eis o que dependerá, largamente da importância ou do valor comparado

dos interesses sociais que, em consequência, serão promovidos ou prejudicados. (24)

Um dos interesses sociais mais fundamentais é o de que o direito deve ser uniforme

e imparcial. Não deve haver na sua ação coisa alguma que tenha visos de prevenção

ou favor, ou mesmo de capricho ou inconstância arbitrários. Portanto, na maioria

dos casos, haverá adesão ao precedente.352

348 ALMEIDA, Guilherme Assis de; BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia do direito. 4. ed. São Paulo:

Atlas, 2005. p. 420 . 349

BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 206208. 350

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 174. 351

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.

150. 352

CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat

Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 63-64.

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106

Essa uniformidade ou imparcialidade não pode constituir uma fonte de opressão, e a

certeza ou segurança, dela decorrentes, podem ser equilibradas pela equidade, pelo sentimento

de justiça e pelos interesses que assegurem o bem-estar social. Esses cânones ou standards

estariam por essa concepção já implantados na prodigiosa mente do magistrado, ao qual

recomenda-se policiar a si próprio para não colocar suas idiossincrasias à frente dos interesses

comunitários. Cardozo, no entanto, reconhece que o julgador pode contribuir para “levantar o

nível do comportamento corrente”353

. Mesmo assim, há autores que não desprezam o papel do

inconsciente como motivador das decisões judiciais, uma vez que o juiz, por ser humano, não

escapa de sofrer influências emocionais e passionais ao formular seus juízos354

.

A tópica também assume estreita relação com a prática judiciária na obra de

Viehweg, queatravés de um estudo sobre a característica assistemática do Direito Romano,

mesmo com seu corpus iuris, atribui grande relevância ao problema, sendo possível afirmar

que toda uma série de postulados e concepções científicas foi desenvolvida a partir de lições

extraídas de casos concretos:

Esta é uma característica do pensamento problemático que reclama an eternal

dialectical research, an “open system” (15). Cada um se vê impelido, não a ordenar

um caso dentro de um sistema previamente encontrado, mas sim a exercitar sua

própria dicaiosine por meio de considerações medidas e vinculadas. O modo de

trabalho a ser seguido deve ser adequado a esta tarefa. É preciso desenvolver um

estilo especial de busca de premissas que, com o apoio em pontos de vista provados,

seja inventivo. O que mediante estes esforços se obtém fica pronto para tentativas

semelhantes. Este estilo especial cumpre uma função importante na incessante busca

do direito e deve-se cuidar que não se perca este valor funcional por causa de

tratamentos equivocados. Este modo de trabalhar se caracteriza, sobretudo porque

permite aos juristas entender o direito não como algo que se limitam a aceitar, mas

sim como algo que eles constroem de maneira responsável.355

Os conceitos e posições desenvolvidas pela predominância do problema sobre o

sistema jurídico são, desse modo, resultados do pensamento tópico. Ao evitar a sistematização

das proposições extraídas dos problemas jurídicos, Viehweg busca demonstrar que mesmo

entre os romanos já se reconhecia a necessidade do Direito se desvencilhar da lógica formal,

encarando o silogismo como uma indesejável forma de se afastar do problema concreto e que

produz, com suas generalizações, um discurso jurídico dogmático356

. Isso explica o sentido

353

CARDOZO, Benjamim N. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat

Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 61. 354

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,

1998a. p. 140. 355

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa

Nacional, 1979. p. 50. 356

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília: Imprensa

Nacional, 1979. p. 50.

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107

mais prático da tópica de Cícero, com relação à tópica de Aristóteles, como demonstra

Manuel Atienza:

A Tópica de Cícero (obra dedicada precisamente a um jurista) teve uma influência

histórica maior que a obra de Aristóteles e se distingue pelo fato de,

fundamentalmente, tentar formular e aplicar um inventário de tópicos (quer dizer, de

lugares-comuns, de pontos de vista que têm aceitação generalizada e são aplicáveis

seja universalmente, seja num determinado ramo do saber) e não, como a de

Aristóteles, de elaborar uma teoria. Em Cícero desaparece a distinção entre o

apodítico e o dialético, mas em seu lugar surge uma distinção que tem uma origem

estóica (e que lembra até certo ponto a distinção vista no tema anterior entre

contexto de descoberta e contexto de justificação), entre a invenção e a formação do

juízo. A tópica surge precisamente no campo da invenção, da obtenção de

argumentos; e um argumento é, para Cícero, uma razão que serve para convencer de

uma coisa duvidosa (rationem quae rei dubiae faciat fidem); os argumentos estão

contidos nos lugares ou loci – os topoi gregos -, que são, portanto, sedes ou

depósitos de argumentos; a tópica seria a arte de achar os argumentos (cf. García

Amado, 1988, pág. 68). A formação do juízo, pelo contrário, consistiria na passagem

das premissas para a conclusão.357

Enquanto os teóricos da Nova Retórica, por influência da tópica ciceroniana, buscam

substituir a lógica formal por uma lógica do razoável (material, informal) como forma de abrir

novos horizontes para a argumentação jurídica, o que predomina no Direito Processual, em

muitos aspectos, é o sincretismo das lógicas. Jairo Parra Quijano afirma que no processo

convivem duas espécies de lógica: a formal e a dialética. A lógica formal atuaria no momento

da decisão em que se manifesta por silogismo, com ênfase nas relações entre objetos,

resultando em um juízo pretensamente rigoroso. A lógica dialética atuaria no iter

procedimental no que o autor denomina de descobrimento da decisão judicial, sendo a espécie

de lógica que vai permitir a reflexão e a interpretação para sanar ambiguidades e incertezas358

.

Mas, sendo o Processo uma subclasse das proposições normativas, não há como deixar de

reconhecer o papel da lógica deôntica, em que o dever-ser se apresenta como "operador

diferencial" que se manifesta tripartido nas modalidades do obrigatório, do permitido ou do

proibido359

.

Segundo Rosemiro Pereira Leal, o positivismo jurídico não consegue escapar do

"sincretismo das lógicas" no plano da produção normativa, o que favorece o monopólio

interpretativo pelos órgãos jurisdicionais, permitindo até mesmo o aparecimento de

proposições modais, que se baseiam em juízos de necessidade, contingência e

357

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina

Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 48. 358

QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.

33-36. 359

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,

1997.p. 70-72.

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108

possibilidade360

. O que se mostra então de grande importância epistemológica é estabelecer

para o âmbito do Processo um critério de demarcação teórica que permitirá distinguir ciência

de metafísica, critério esse que passa pela identificação de quais são as espécies de enunciados

que o integram enquanto sistema361

. Daí a relevância de se estabelecer a distinção entre

enunciado, proposição, sentença linguística e atos de fala como propõem Michel Foucault362

e

Suzan Haack363

.

Buscar a compreensão plena do enunciado jurídico-processual talvez seja tarefa para

a Metafísica, mas, no plano científico parece perfeitamente possível identificá-lo e estabelecer

sua função para a estabilização do sentido normativo, bem como, para análise ou

decomposição das construções conclusivas em torno de questões de fato. Nesse ponto, é

pertinente destacar a postura de Popper que certa feita afirmou aceitar a lógica clássica não

como "organon da demonstração, mas como organon da crítica"364

. Afirma-se o mesmo sobre

o processo e a prova,os quais podem ser vistos, antes de tudo, como mecanismos de refutação

crítica que só terão alguma serventia relevante se efetivamente atuarem para "constranger a

evidência", definida por Rui Cunha Martins como "vertigem anti-crítica e anti-

democrática"365

.

Esse posicionamento intelectual vai em sentido oposto ao de Aristóteles quando

concebe o discurso judiciário como uma demonstração entimemática estruturada em máximas

(topoi) que permitirão facilitar a aceitação do discurso pelo julgador, pois contribuem para o

truque de extrair uma conclusão mais plausível do que as premissas em que se baseiam366

. O

organon aristotélico, sobretudo quando se dedica às "Refutações Sofísticas", se apresenta

como um conjunto de ensinamentos que visam fortalecer o raciocínio diante das refutações

aparentes, traiçoeiramente engendradas no discurso pelos falsos sábios (sofistas)367

. A lógica

360

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 154. 361

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 38. 362

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008a.p. 91. 363

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113. 364

POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial

Fragmentos, 2006. p. 9. "Organon é o título do conjunto de textos aristotélicos que, para muitos, inauguraram a

lógica clássica. São eles: Categorias, Sobre a interpretação, Analíticos primeiros (dois livros), Analíticos

segundos (dois livros); Tópicos (oito livros) e Refutações sofísticas. Em 1620, Francis Bacon publica uma obra

refutando toda a Lógica de Aristóteles, instaurando um sistema de investigação fortemente estruturado no

indutivismo. A esse trabalho deu o título de Novum Organun. (ABBAGNANO, 2007, p. 734). 365

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 4. 366

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005 p. 290-291. 367

ARISTÓTELES. Tratados de lógicas - Órganon I: Categorías - tópicos - sobre las refutaciones sofísticas.

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seria o mecanismo empregado para que uma conclusão adquirisse irrefutabilidade. Mas há

que se observar a diferença de método entre a tópica retórica (método antigo) e a lógica de

Descartes (método moderno ou crítico), assinalada por Viehweg, em sua “alusão a Vico”:

Vico caracteriza o método novo (crítica) da seguinte maneira: o ponto de partida é

um primum verum que não pode ser eliminado nem mesmo pela dúvida. O

desenvolvimento ulterior se dá na medida do possível, através de longas cadeias

dedutivas (sorites). Em sentido contrário, o método antigo (tópica) assim se

caracteriza: o ponto de partida é o sensus communis (senso comum, common sense),

que manipula o verossímil (verosimilia), contrapõe pontos de vista conforme os

cânones da tópica retórica e, sobretudo, trabalha com uma rede de silogismos. As

vantagens do procedimento novo localiza-se, segundo Vico, na agudeza e na

precisão (caso o primum verum seja mesmo um verum); as desvantagens, porém,

parecem predominar. Elas consistem na perda em penetração, estiolamento da

fantasia e da memória, pobreza da linguagem, falta de amadurecimento do juízo, em

uma palavra: depravação do humano. Tudo isto, porém, segundo Vico, pode ser

evitado pelo antigo método retórico e, especialmente, pela sua peça medular, a

tópica retórica. Esta proporciona sabedoria, desperta a fantasia e a memória e ensina

como considerar um estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir

uma trama de pontos de vista. Deve-se intercalar, diz Vico, o antigo modo de pensar

tópico com o novo, pois este sem aquele não se efetiva (diss. III, Sec. 2 e 3).368

Com o giro metodológico de Popper, não se pretende restringir a lógica à resolução

de questões puramente teóricas, deixando de reconhecer que a passagem do ser para o dever-

ser, mesmo envolvendo juízos valorativos, pode e deve ser submetida a critérios lógicos, pois,

do contrário, o raciocínio jurídico estaria confinado pelo positivismo e as decisões sempre

submetidas "às emoções, aos interesses e, no final das contas, à violência” assim como

submetido estaria “o controle de todos os problemas relativos à ação humana", como

demonstra Perelman369

.

Esse reconhecimento do papel da lógica em Direito é ainda no sentido de uma

atuação voltada para estabelecer juízos confirmatórios, buscandosempre estabilizar a

confiabilidade das afirmações, ainda que calcadas em juízos valorativos. Mas é preciso

ressaltar que Aristóteles reconhecia que os entimemas, enquanto silogismos, não se prestavam

somente aos raciocínios demonstrativos, mas também refutativos370

, e é por este ponto que o

Direito Processual, pelo instituto da prova, adquire relevância no Estado Democrático de

Direito, pois foi o aperfeiçoamento dos sistemas jurídicos de apreciação da prova que marcou

Tradução de Miguel Candél Sanmartín. Madrid: Editorial Gredos, 1982. p. 310. 368

VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Brasília:

Imprensa Nacional, 1979. p. 20-21. 369

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 137. 370

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 215-216.

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110

"a dolorosa caminhada do homem pra se libertar das atrocidades"371

.

4.1.1 O racionalismo crítico pela via processual

Quando Popper propõe uma teoria das consequências institucionais que se debruçaria

sobre problemas relativos à criação e desenvolvimento das instituições sociais, o faz

afirmando que a epistemologia poderia ser uma saída para a "intranquilidade filosófica e

religiosa de nossos tempos" que resultou em niilismo, desolação e existencialismo. Essas

perspectivas, que demonstram um desapontamento com a atividade intelectual no século XX,

decorrem do fato de que não podemos justificar racionalmente nossas teorias, ou mesmo

"provar que são prováveis". No entanto, deveríamos nos satisfazer com o fato de poder

criticá-las racionalmente. É o que nos proporcionaria distingui-las de "outras piores"372

. É

pelo racionalismo crítico que avançamos a uma epistemologia processual evolucionária que,

como será demonstrado adiante, pode contribuir para afastar o ceticismo radical marcado por

uma inteira desconfiança em nossas capacidades cognitivas373

.

Como a crítica esclarecida somente é possível por meio de teorias, Rosemiro Pereira

Leal vai afirmar que tal postura requer uma teoria do discurso proposicional que possa

permitir ao Direito escapar do sincretismo das lógicas, que hoje se mostra tão útil ao

protagonismo do juiz-decisor:

Há que se lembrar que, ao falarmos de teorias do discurso proposicional, estas se

tornam meras ideologias se, por desaviso científico ou ingenuidade resvalarem para

a sustentação do deôntico a serviço do apofântico e do ontológico, porque se erigem,

com essa mimese repressiva secular, numa hermenêutica em juízos de saberes

371

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 186. 372

POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;

Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

p. 34. 373

“Pràxicamente, o céptico não vive o cepticismo, como nos mostrou Aristóteles. Êle sabe quando come porque

come, e evita confundir os factos uns com os outros (um trireme com uma carruagem, etc.). Distingue uma

ilusão de uma realidade. Não é, para êle, a mesma coisa a imagem de um prato de comida e o prato de comida

que êle come. Portanto, tem de reconhecer que tem um critério, por duvidoso que seja êle, mas que lhe serve

para não enganar-se sempre.De omnibus dubitare (duvidar de todas as coisas) não o consegue, e quer queira quer

não, tem certezas especulativas inevitáveis.

O nihil esse certum implica contradição por que é certum que nada é certo.

A objeção céptica poderia ser exposta sologìsticamente assim:

Não podemos ter fé em nossas faculdades se nos induzem ao êrro.

Ora, elas nos induzem ao êrro. Logo não podemos confiar em nossas faculdades.

Responde-se deste modo: examinemos a maior. Se nossas faculdades sempre e por si mesmas nos induzem ao

êrro, concederíamos. Mas se é de algum modo ou acidentalmente, já negaríamos.

Se nem sempre erramos, nem tudo é êrro. É preciso ver até onde vai o êrro e como se dá.” (SANTOS, 1958, p.

109-110)

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111

absolutos, equidade e conveniência, na produção e aplicação das leis, a preservarem

o status de um direito não includente, em seus fundamentos proposicionais

democráticos, para os despatrimonializados.374

Essa inclusão discursiva permitiria que nos livrássemos dos conceitos absolutizantes,

pois a ambiguidade dos conceitos estaria já reconhecida, na medida em que seu sentido

depende sempre das intenções de quem os pronuncia375

. Uma vez que se reconhece a chamada

intentio operis, é possível concluir que cada texto pretende formar um leitor-modelo, o que

implica em relativizar a intentio lectoris. Conforme demonstra Umberto Eco, “um texto é um

dispositivo concebido para produzir seu leitor-modelo. Repito que este leitor não é o que faz a

“única” conjetura “certa”. Um texto pode prever um leitor-modelo com o direito de fazer

infinitas conjeturas”376

. Mas isso não implicaria acolher de modo irrefletido a veriphobia, a

ponto de afirmar que a verdade não só deixou de constituir um valor como passou a ser

entendida como um desvalor no contexto do Estado Democrático de Direito377

. A inclusão

discursivamente proposicional é que vai permitir superar essas perplexidades, porém, sem

instaurar uma nova crença.

É importante, pois, esclarecer que a proposição em si, é tão somente uma forma

lógica e, como tal, para se apresentar como portadora de verdade, deve permitir que suas

variáveis sejam submetidas a teste, pois a verdade do composto depende da verdade dos

componentes378

. O que o paradigma democrático vai exigir é que haja uma possibilidade de

arguição incessante das verdades que sustentam os componentes proposicionais, e aqui surge

o caráter refutativo das normas de processo pelas quais, dentre outras garantias, se enuncia a

prova, o que não quer dizer que esta atividade não possa estar sujeita a paradoxos379

. É que

geralmente a prova é vista como demonstração. Ocorre que no seu demonstrar se expõe ao

374

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 155-156. 375

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 68. 376

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 75. 377

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.

2009. p. 98-99. 378

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 118. 379

Cabe aqui uma referência ao célebre paradoxo da prova formulado por Rui Cunha Martins como resultado de

seu diálogo com o filósofo Fernando Gil: "A prova não deve ser fraca: prova fraca é aquela que se satisfaz com a

verosimilhança, com o que se diz ser uma crença racional. Mas a verosimilhança que, fora da lógica e da

matemática, é o regime normal da prova, não é em si um critério satisfatório, por mais convincente que seja. A

verosimilhança não remove a eventualidade de excepções e de contra-exemplos - e as crenças racionais podem

revelar-se erróneas: os erros judiciários assentam sempre em verosimilhanças e crenças racionais. Portanto, a

prova tem de ser forte. Mas a prova forte revela-se de imediato demasiado forte - e, nesse momento, se essa

demasia se dá nos termos de uma ostensão de feição alucinatória, ela resvala sem escape, para o terreno da

evidência, a qual, veja-se a ironia, tende a dispensar a prova" (MARTINS, 2011, p.7-8).

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112

teste intersubjetivo de suas proposições pela decomposição de seus enunciados, o que vai

permitir a dessujeitização da linguagem por uma declaração de sentido desgarrada do sujeito

da enunciação e produzida coletivamente em um nível heterodiscursivo380

, com auxílio da

lógica jurídica, que, se não fornece o conteúdo de uma “razão suficiente”, exige que se

aplique tal princípio para determinar a validez ou invalidez de uma norma, bem como a

verdade ou falsidade de um determinado enunciado jurídico, seja ele um texto legal ou uma

sentença judicial381

.

É possível afirmar, desse modo, que o discurso jurídico-processual tem como ponto

relevante de sua caracterização democrática a forma como vai lidar com a formação dos

juízos valorativos que são inevitáveis em Direito, haja vista a própria necessidade de

valoração e valorização da prova cujos critérios são objeto de justificada atenção da Teoria

Geral do Processo382

. A valoração ou valorização em processo não pode ocorrer por decisões

solipsistas pautadas por critérios de ponderação que, apesar de engenhosos não se prestam a

um esclarecimento epistemológico, como exige o paradigma democrático, pois confundem

princípios jurídico-constitucionais com valores, argumentando que do mesmo modo que

podem ocorrer colisões entre princípios é possível haver uma colisão entre valores383

.

Também não é recomendável que a valoração ou valorização, em Direito Processual

Penal, ocorra por critérios discursivos com pretensões de ética universal que buscam se

estabelecer a pretexto de livrar a humanidade da catástrofe da qual ela própria é causadora

pelas "incursões técnico-científicas do homem na natureza"384

. Não seria a confiança de que

os sujeitos processuais se comportariam conforme uma ética universal, ou conforme uma

"dimensão espiritual"385

, segundo a observância da alteridade, por uma concessão magnânima

do sujeito, que asseguraria a democraticidade processual386

. É que na atualidade dos estudos

processuais não basta afirmar a plurissubjetividade do procedimento, pois só haverá processo

legitimador da decisão se for assegurada aos "destinatários dos efeitos"387

do ato decisório a

380

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274-

275. 381

MÁYNEZ, Eduardo García. Introducción a la logica juridica. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1951. p.

132 . 382

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 194. 383

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:

Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 138. 384

COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 174. 385

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. Estado de direito e decisão jurídica: as dimensões não-

jurídicas do ato de julgar. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão judicial: a

cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012.p. 130. 386

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. p. 103. 387

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

Page 105: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

113

simétrica paridade, que não só dispensa expectativas esperançosas, como permite interrogar a

"ética" do julgador. O desdobramento dessa conjectura fica para o capítulo final desta

pesquisa.

4.2 As teorias de Alexy e Dworkin e suas implicações tópico-retóricas

No século XX, muito se falou de certa perspectiva pós-positivista como capaz de

empreender uma superação do dogmatismo jurídico. O que aqui se define como pós-

positivismo não é um conceito livre de ambiguidades, pois, como demonstra Andréa Alves de

Almeida, terminologias como "pragmatismo jurídico, pragmatismo político, pragmatismo

jurídico-político, neopositivismo, neoconstitucionalismo e teoria estruturante" são

basicamente abordagens voltadas para a interpretação do direito, com forte viés idealista, pois

se baseiam em critérios como justiça, bem comum, moralidade, razoabilidade e

proporcionalidade e também de cunho sociológico e histórico388

, tendo como métodos de

expressão e mecanismos argumentativos, a tópica e a retórica.

No entanto, tais correntes, na sua variedade de forma, conteúdo e método, não

deixam de adotar uma postura dogmática. Tome-se como exemplo os pensamentos de Robert

Alexy e Ronald Dworkin, dois grandes expoentes do chamado pós-positivismo jurídico. As

concepções desses dois autores não conseguem superar o decisionismo, pois fornecem as

bases para uma hermenêutica que, no campo do Direito Processual Penal, acaba por permitir

que os critérios de aferição do ato delituoso e a aplicação das sanções penais permaneçam

submetidos ao solipsismo decisório, e a despeito de sua aparente abertura interpretativa se

sustenta em “conteúdos metajurídicos e metafísicos de conveniência, equidade,

proporcionalidade, ponderabilidade, flexibilidade, repercussão geral, senso de justiça e bem

comum”389

.

4.2.1 O discurso jurídico como caso particular do discurso geral na teoria de Robert Alexy

Em sua Teoria da Argumentação Jurídica, Robert Alexy faz uma tentativa de

atualizar o discurso dogmático buscando um posicionamento intermediário entre o

2006. p. 119. 388

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012.p. 120. 389

LEAL, Rosemiro Pereira. LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória

conjectural. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 8.

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114

dogmatismo pleno da jurisprudência conceitual alemã e as tentativas de confinar o papel da

dogmática jurídica "à análise lógica das normas jurídicas"390

. A abordagem de Alexy

considera a argumentação dogmática como um caso especial de argumentação prática, e para

se posicionar teoricamente propõe que a definição de dogmática jurídica deveria levar em

conta o atendimento de certas condições, que implicariam no seguinte conceito:

A dogmática jurídica é (1) uma classe de proposições que (2) se relacionam com

normas atuadas e lei causal mas não são idênticas à descrição das mesmas, e (3)

estão em algum inter-relacionamento mútuo coerente, (4) são compostas e discutidas

no contexto de uma ciência jurídica institucionalmente organizada e (5) tem

conteúdo normativo.391

Sendo a dogmática jurídica uma classe especial de proposições, Alexy enumera

vários aspectos do papel por ela exercido na argumentação. Esses aspectos são a estabilização

de conceitos jurídicos autênticos (de cunho normativo), a aplicação de conceitos

extrajurídicos em decisões judiciais (na medida em que são aceitas pelos tribunais,

proposições extrajurídicas adquirem contornos dogmáticos), a possibilidade de aferir a

aceitação de uma proposição pelos cientistas jurídicos, a descrição de estados de coisas

(objetos de normas) e a formulação de princípios (proposições normativas com alto grau de

generalidade)392

.

Na perspectiva Alexyana, as justificações jurídicas deverão ser necessariamente

sempre dogmáticas. Sua distinção entre justificação dogmática pura e justificação dogmática

impura393

é apenas uma espécie de radicalização da dogmática jurídica como dotada de

funções de considerável valor positivo e sistemático. Essas funções seriam (1) de

estabilização, (2) de desenvolvimento, (3) de redução de encargo, (4) técnica, (5) de controle

e (6) heurística.

Não caberia neste trabalho uma abordagem mais detalhada dessas funções, mas

poderíamos resumir o que o autor afirma de cada uma delas da seguinte forma: pela função

estabilizadora, a dogmática (como parte de um estabelecimento institucional) impede

390

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p. 243. 391

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p. 245. 392

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p.245-248. 393

"Há casos de aplicação das proposições da dogmática em que as proposições a serem justificadas seguem destas

proposições dogmáticas juntamente com apenas proposições empíricas, ou por adição de formulações das

normas jurídicas positivas. Também há casos em que outras premissas normativas são necessárias. No primeiro

caso, é possível falar de uma justificação dogmática pura, no segundo de uma justificação dogmática impura. No

caso da justificação dogmática impura, há a necessidade de argumentos práticos gerais em adição aos

argumentos dogmáticos." (ALEXY, 2001, p. 249).

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115

mudanças bruscas de posicionamento sobre uma questão sem que haja uma violação das

regras do discurso jurídico e do discurso prático geral; pela função de desenvolvimento, a

dogmática desenvolve a si própria contribuindo para o progresso da ciência jurídica; pela

função de redução de encargos, a dogmática tornaria desnecessários novos exames nos

processos de justificação (na ausência de motivos especiais); já pela função técnica, a

dogmática, com sua contribuição para a construção de significados, conceitos básicos e

instituições jurídicas, terminaria por exercer também um papel didático, influenciando o

ensino jurídico; em seguida o autor aborda a função controladora em que a dogmática

permitiria um exame de consistência das proposições jurídicas (num sentido estrito seria o

controle de sua compatibilidade lógica e num sentido amplo o controle de sua compatibilidade

prática geral); por fim, a dogmática teria uma função heurística, pois permite em torno de suas

proposições o estabelecimento de um sistema de perguntas e respostas que seria um fecundo

ponto de partida para novas descobertas na área jurídica394

.

O que se observa na abordagem da dogmática por Alexy é uma tentativa de

demonstrar sua centralidade na ciência jurídica. Em seu ponto de vista, o discurso jurídico é

sempre um caso particular do discurso prático geral (moral, ética, economia, dentre outros) e,

como caso particular, é portador de limitações de forma, conteúdo e finalidade395

. Essa

concepção leva a uma subordinação do Direito à Moralidade, o que a torna incompatível com

uma perspectiva pós-metafísica, uma vez que se mostra ainda presa ao jusnaturalismo396

.

Razão pela qual, a dogmática, através das características acima expostas adquire em Alexy

um enfoque, estritamente instrumental. Desse modo:

A dogmática jurídica é um instrumento que pode acarretar resultados inatingíveis

unicamente por meio do discurso prático geral. Algumas destas conquistas, como a

contribuição para satisfazer o princípio da universalidade no contexto das funções de

estabilização e controle, são exigências da razão prática geral; outras, como a função

heurística, são desejáveis por razões semelhantes. Assim sendo, a dogmática jurídica

é uma atividade racional.397

Para Alexy, há sempre um elo entre argumentação dogmática e argumentação prática

geral, pois a primeira sempre poderá recorrer à segunda, quando por si só for insuficiente para

394

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p. 252-257. 395

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p. 212. 396

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito processual constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,

2000a. p. 107. 397

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p.257.

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116

justificar uma determinada solução398

. E é justamente essa ligação que garante a racionalidade

da dogmática jurídica399

. No entanto, o que permanece inexplicado por Alexy é qual a

criteriologia empregada na passagem do discurso jurídico ao discurso prático geral e no

retorno do discurso prático geral ao discurso jurídico.

4.2.2 A busca da resposta certa, o Direito como um romance em cadeia e a figura do Juiz

Hércules: Expressões do dogmatismo em Dworkin

Dos autores mais proeminentes do chamado pós-positivismo, Ronald Dworkin talvez

seja aquele que de modo mais acentuado sustente sua teoria no decisionismo solipsista,

apresentando a moral política como fio condutor de uma prática jurídica, notadamente no

plano do Direito Constitucional400

, voltada à resolução de casos e que por vezes se vê

enredada por perplexidades401

que precisam ser contornadas.

No entanto, a aparente abertura do pensamento de Dworkin402

, esconde um forte

conteúdo dogmático, como, por exemplo, sua obstinada defesa da resposta correta, como

possibilidade a ser buscada nos debates jurídicos, sobretudo nos debates judiciais. A resposta

certa seria possível pelo fato de que uma determinada proposição jurídica só pode ser

considerada "bem fundada, se faz parte da melhor justificativa que se pode oferecer para o

conjunto de proposições jurídicas tidas como estabelecidas"403

. Essa "melhor justificativa",

segundo o autor, se daria em duas dimensões discursivas, a de "adequação" e a da

"moralidade política"404

.

Na dimensão da adequação seria possível distinguir se certa teoria política consegue

atender melhor que outra os ditames já estabelecidos pelo ordenamento. Para Dworkin,

somente em "sistemas jurídicos imaturos" é que duas teorias diferentes podem apresentar

respostas igualmente boas. De tal conclusão decorre que, em sistemas jurídicos mais

398

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p.250. 399

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica.Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo:

Landy, 2001. p.257. 400

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 246. 401

Os chamados casos difíceis (hard cases) para os quais não há no ordenamento norma que possa servir de

fundamento imediato para a decisão. Para decidir eses casos, o autor desenvolve a figura juiz Hécules, que seria

dotado de "capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas”. (DWORKIN, 2002, p. 165). 402

Por exemplo, quando afirma que "política, arte e Direito estão unidos, de algum modo, na filosofia".

(DWORKIN, 2002, p. 249). 403

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 213. 404

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001. p. 213.

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117

complexos, a tendência é que haja uma possibilidade cada vez menor de empates

argumentativos. Na segunda dimensão, há sempre a possibilidade de duas respostas

igualmente boas, mas deverá prevalecer a que melhor atende às justificativas de ordem moral,

ainda que haja divergências "porque juristas que sustentam tipos diferentes de moral irão

avaliá-las de forma diferente"405

. Isso faz com que eventual conclusão pela inexistência da

resposta correta só ocorreria "em virtude de algum tipo mais problemático de indeterminação

ou incomensurabilidade na teoria moral"406

.

Outra demonstração eloquente do dogmatismo dworkiniano, se dá no ponto de sua

obra em que compara a atividade dos juízes com a exercida por um grupo de escritores

encarregados de elaborar um romance em cadeia:

Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto

e que jogue dados para definir e ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o

capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte,

o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está acrescentando um

capítulo a este romance, não começando outro, e, depois, manda os dois capítulos

para o número seguinte e assim por diante. Ora, cada romancista, a não ser o

primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o

que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance

criado até então.407

Dworkin compara a atividade do juiz à do integrante dessa cadeia de romancistas, na

medida em que ao decidir um caso (sobretudo no sistema de Common Law) o juiz deve se

inteirar das decisões precedentes não só para conhecer as razões ou o estado de espírito que

levaram os juízes a decidir desta ou daquela forma, mas também para formar uma opinião

própria sobre aquelas decisões precedentes.

Ao decidir um novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um

complexo empreendimento em cadeia, do qual estas inúmeras decisões, estruturas,

convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro

por meio do que ele fez agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem

a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em

alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o

motivo das decisões anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito

ou o tema da prática até então.408

405

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 214. 406

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 215. 407

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 237. 408

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001.p. 238.

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118

O pós-positivismo em Dworkin seria então um amálgama de decisionismo e

dogmatismo, pois exclui por completo qualquer referência ao papel das partes na construção

deste arcabouço decisório que, no final das contas, tem sua integridade assegurada pela razão

auto-suficiente de um julgador hercúleo, capaz de suspender sua própria concepção de

moralidade política para que prevaleça na resolução dos conflitos uma concepção de

moralidade comunitária como expressão de uma moralidade política que é pressuposta pelas

leis e pelas instituições409

.

Percebe-se, no entanto, que o juiz Hércules, de Dworkin, é uma figura metafórica, na

medida em que seus atributos são extraordinários. Sua técnica é apresentada aos juízes como

forma de encorajá-los a enfrentar os casos difíceis, pois a essa categoria, a despeito de sua

falibilidade não seria dado deixar de decidir, tampouco submeter questões, ainda que de

ordem política a outros órgãos do Estado ou mesmo da sociedade, pois em seu entender "não

há razão para atribuir a nenhum outro grupo específico uma maior capacidade de

argumentação moral"410

, deixando claro que, se tal razão existir, seria o caso de mudar os

critérios de seleção dos juízes, mas não as suas técnicas de decisão. Após demonstrar toda a

magnitude do juiz Hércules, Dworkin faz uma inflexão afirmando que os atributos de sua

criatura serviriam para alertar aos magistrados de que eles estariam sujeitos a erros na

elaboração de juízos políticos, e que por tal razão devem decidir "os casos difíceis com

humildade"411

. Os chamados hard cases seriam aqueles que envolvessem três aspectos que

podem provocar perplexidade: ambiguidade da linguagem, desacordos morais razoáveis e

colisões de normas constitucionais ou de direitos fundamentais412

.

Mesmo ressalvando que Dworkin defende uma discricionariedade judicial "fraca", e

que os juízes não podem criar o direito sob pena de invadirem a seara legislativa (argumento

democrático) e ferirem as expectativas dos cidadãos criando norma retroativa (argumento de

justiça)413

, no fim das contas o que se percebe é a hipertrofia da atividade jurisdicional, pois

no decorrer de suas alentadas exemplificações não há espaço para a articulação argumentativa

pela via processual destinada a evitar esse protagonismo que se mostra incompatível com o

paradigma democrático. Isso ocorre, sobretudo porque na teoria de Dworkin o princípio

jurídico não se enuncia normativamente, mas é "achado pelo juiz nos vazios ditos inevitáveis

do direito em vigor (analogia) como modo de tornar o direito revestido de uma integridade

409

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 197. 410

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203. 411

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 203. 412

BARROSO, Luís Roberto. O novo constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2013.p. 37-38. 413

SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.p. 162.

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119

(completude) permanente"414

, permanecendo atrelado a uma concepção positivista.

4.3 Os impactos das visões contemporâneas, neo-modernas e pós-modernas no binômio

acusatoriedade-inquisitoriedade

Até este ponto a intenção foi apresentar uma narrativa capaz de demonstrar como o

Processo Penalse encontra ainda atrelado a concepções arcaicas que espelham um

dogmatismo dicotômico do qual a ciência jurídica precisa se desvencilhar. No estudo

desenvolvido até aqui foi possível perceber que a ciência jurídica ainda mostra dificuldades

para assentar uma perspectiva não-dogmática, voltada à construção do Estado Democrático de

Direito415

. Em razão dessa postura, é possível verificar nas decisões jurisdicionais, simulacros

de fundamentação estruturados pela tópica-retórica de uma autoridade que se esmera na busca

de argumentos já assentados no senso comum do conhecimento jurídico, dispensando-se de

apresentar fundamentos teóricos.

Como conclusão a este capítulo seria proveitosa uma abordagem acerca de algumas

terminologias que podem contribuir para demarcar os rumos desta pesquisa de modo a

proporcionar a compreensão do Direito Processual Penal, na pós-modernidade, como

instituição jurídica livre das mitificações ideológicas e dogmáticas, instaurando, nesse

segmento da ciência jurídica, a processualidade democrática. Para tanto, é necessário abordar

ainda que em breves palavras, conceitos como contemporaneidade, modernidade, neo-

modernidade, pós-modernidade e profanação.

No atual estágio de desenvolvimento da Ciência do Processo, em que esta já não se

configura como uma disciplina confinada às ideologias que impregnam o discurso científico,

e sim como vertente teórica voltada ao “esclarecimento crítico do discurso das realidades

normativas”416

, faz-se necessária uma releitura do Direito Processual Penal numa perspectiva

contemporânea, em contraposição ao enfoque dogmático predominantemente verificado entre

os autores mais proeminentes.

Uma perspectiva contemporânea exige certo anacronismo, certa distância, uma não

adesão completa à época em que se vive, pois só assim seria possível uma observação livre de

414

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 155. 415

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).

O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,

2011. p. 592. 416

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 15.

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120

influências perniciosas417

. Para Agamben, o contemporâneo seria capaz de manter fixo o olhar

no seu tempo para nele perceber, não as luzes, mas a obscuridade. O observador

contemporâneo é aquele que não se deixa cegar pelas luzes de seu tempo e compreende a

escuridão como algo que o interpela e que lhe é pertinente418

. Ou seja: o observador

contemporâneo, mais do que o conforto da claridade, se ocupa em perceber o que há de

obscuro nas interfaces de seu tempo.

Diante de tal percepção, o observador contemporâneo adotaria uma conduta que

consiste em dividir o tempo e estabelecer a sua descontinuidade. Com essa fratura conseguiria

promover um encontro dos tempos e das gerações e ao estabelecer essa relação percebe a

escuridão do presente com o objetivo de apreender sua “resoluta luz”419

. Diga-se: qualquer

abordagem em torno da obscuridade do passado está impregnada de uma interrogação teórica

que se dá, necessariamente, no tempo presente. Isso implica que o ordenamento jurídico seja

submetido, na contemporaneidade, a uma perspectiva diacrônica, sendo pesquisado como um

conjunto de normas em constante mutação numa sequência dinâmica capaz de fornecer

importantes subsídios investigativos420

.

Uma perspectiva semelhante, tendo em vista o Direito Processual Penal, nos levaria a

interrogar em quais bases teóricas esse segmento jurídico deveria se assentar para que pudesse

adquirir compatibilidade com o paradigma do Estado Democrático de Direito, em que a

institucionalização jurídica se dá pela Constituição formal, e a lei, como ser jurídico concreto,

processualmente construído, é pressuposto do dever-ser jurídico e se define como existência

hermenêutica posta em todos os níveis pela própria lei421

.

Com isso, seria possível interrogar qual o sentido das tensões que se colocam entre

doutrina sempre partidária da acusatoriedade e legislação, sempre disposta a reforçar a

inquisitoriedade, ainda que preste alguns tributos à primeira422

, como apregoa Ada Pellegrini

Grinover, para quem o "Código de Processo Penal Modelo para a Ibero-América",

apresentado nas "XI Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual - Rio de Janeiro, 1988",

contribuiu para que o Processo Penal adquirisse feições acusatórias na América Latina

417

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.

Chapecó: Argos, 2009. p. 59. 418

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.

Chapecó: Argos, 2009. p. 63-64. 419

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.

Chapecó: Argos, 2009. p. 72. 420

GUASTINI, Riccardo. La sintassi del diritto.Torino: Giappichelli Editore, 2011. p. 284. 421

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 46. 422

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 27.

Page 113: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

121

durante a década de 1990, como tendência de superação de "um modelo apegado a ritos

superados e a fórmulas inquisitoriais, no qual continuam a prevalecer a falta de respeito à

dignidade humana, a delegação das funções judiciárias, o sigilo e a ausência de imediação,

características que repugnam ao processo penal moderno."423

.

Ao dizer que o modelo acusatório é o que mais se harmoniza com a modernidade, Ada

Pellegrini Grinover evidentemente emite um parecer correto, porém involuntariamente o

aprisiona ao paradigma liberal, como instrumento garantidor das liberdades negativas. Uma

concepção que se mostra insuficiente ao paradigma democrático, pois instaura um dogma no

lugar de outro, estreitando as nuances epistemológicas do Processo Penal.

Como já abordado no Capítulo II, a crença absoluta na razão é a expressão mais

evidente do paroxismo racional experimentado no período histórico, comumente chamado de

Iluminismo ou modernidade, ao qual chamaremos Ilustração adotando a terminologia

encontrada na obra de Sérgio Paulo Rouanet424

. Este autor afirma que "pertencem ao

Iluminismo as correntes de idéias que combatem o mito e o poder utilizando argumentos

racionais" o que nos remete aos pensadores da antiguidade clássica. O termo Ilustração passa

a ser utilizado para designar o movimento intelectual que floresceu no século XVIII. Essa

distinção ajudaria a "compreender o debate que se trava atualmente em torno da razão, do

poder e da modernidade e que assume, estranhamente, a forma anacrônica de uma

arregimentação de forças contra ou a favor das Luzes, da Alfklärung".

A distinção empreendida por Rouanet, segundo o próprio autor, permite uma tomada

de posição frente a um novo irracionalismo, pois torna possível identificar iluministas que se

posicionam contra a Ilustração (Foucault) e ilustracionistas que adotam posições contra-

iluministas (neo-conservadores americanos, franceses e alemães). Na esteira dessa percepção

o que se conclui é que a tarefa de separar o que seja pré-moderno do que seja moderno ou

pós-moderno não é das mais fáceis. Daí o autor preferir falar na existência de uma

"neomodernidade" uma vez que qualquer luta a ser travada contra os conteúdos repressivos da

modernidade só é possível através dos instrumentos de emancipação fornecidos pela própria

modernidade:

Para a consciência pós-moderna, a modernidade se tornou antiquada. Para a

consciência neomoderna ela nunca se realizou completamente. Para a primeira, ela

está abandonando o palco e, para a segunda, ela continua em cena. A consciência

temporal do pós-moderno está mergulhada no sonho; a consciência neomoderna

423

GRINOVER, Ada Pellegrini. Influência do código de processo penal para Ibero-América na legislação latino-

americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 1, p. 41-63, 1993. p. 44. 424

ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 301.

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rejeita o sonho. Ela despreza o historicismo e opta pela história. Das duas

perspectivas, sustento que somente a neomoderna tem o poder de compreender o

presente e de transformá-lo. Pois dispõe, para compreendê-lo, das categorias de

análise desenvolvidas pela modernidade e, para transformá-lo, das energias

explosivas depositadas no legado da ilustração.425

Essa perspectiva parte de pressuposto segundo o qual a modernidade tem um caráter

emancipatório, a despeito das consequências nefastas que impôs à humanidade, através do

advento de ideologias como o liberalismo desenfreado e os totalitarismos utópicos e

"concentracionários" que propunham instalar o paraíso na terra, provocando ainda mais

opressão. Sem falar nas perversões e atrocidades, resultantes de um "iluminismo sombrio", ou

"ciência bárbara" de que nos fala Elisabeth Roudinesco426

.

A autora fornece um interessante panorama das perversões da modernidade

começando pelos textos admiravelmente lógicos e racionais do Marquês de Sade. No panfleto

de 1789, intitulado "Franceses, mais um esforço para serem republicanos", lido pelo libertino

Dolmancé em "A filosofia da alcova", preconiza como fundamentos da república, a sodomia,

o incesto e o crime. O matricídio ou o parricídio poderiam ser livremente praticados, pois o

sentimento de afeto entre pais e filhos expressaria, antes, um condenável traço obscurantista:

aos olhos de Sade só é aceitável a coletividade dos irmãos predadores, as mulheres

tornando-se ora seus carrascos, porque os superam no vício, ora suas vítimas,

quando se negam a obedecer às leis de uma natureza integralmente tomada pelo

exercício do crime. Sade propõe, de certa forma, um modelo social fundado na

generalização da perversão. Nem interdito do incesto, nem separação entre o

monstruoso e o ilícito, nem delimitação entre loucura e razão, nem divisão

anatômica entre homens e mulheres.427

Também impressiona o positivismo militante da personagem Juliette, que tomando

por base a razão kantista, controladora dos sentimentos e inclinações humanas, tem a ciência

como credo, ama o sistema e a coerência, além de manejar de forma excepcional o raciocínio

lógico, colocado a serviço da destruição e da perversidade. Exercita com gosto a destruição da

civilização pelas suas próprias armas e repugna a religião como irracional e incoerente,

tomando como exemplo a contradição do Cristo, um Deus morto, que subverte a própria

essência da divindade428

.

425

ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 26. 426

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André

Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 427

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André

Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 52-53. 428

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialectica de la ilustración.Tradução de Juan José Sánchez. 3.

ed. Madrid. Editorial Trotta, 1998. p. 141-143.

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123

Do sadismo, passando pela taxonomia positivista, que investiu na classificação dos

perversos, e pela preocupação da medicina e da psicologia em tratá-los, o que se vê é a

prevalência de uma ideia geral, partilhada inclusive por Freud, de que "a existência humana

caracteriza-se menos por uma aspiração ao bem que pela busca de um permanente gozo do

mal", que se manifesta pela "pulsão de morte, desejo de crueldade, amor ao ódio, aspiração ao

infortúnio e ao sofrimento"429

. Essa perspectiva contribuiu para o surgimento de uma

biocracia (biopoder ou biopolítica para Foucault430

) que consistia em governar os povos, não

por meio da filosofia política ou da história, mas pelas ciências naturais ou humanas, com o

objetivo de produzir um homem novo, regenerado pela ciência, o que acabou levando à busca

de uma "raça pura" e a práticas científicas abomináveis como a eutanásia em doentes mentais,

além do extermínio de judeus, ciganos, testemunhas-de-jeová, comunistas, homossexuais e

outros que podiam ser classificados como "degenerados", nos campos de concentração

nazistas431

. É o crime "cometido em nome de uma norma racionalizada e não enquanto

expressão de uma transgressão"432

.

Para Rouanet, no entanto, o legado da Ilustração é incontrastável e, por tal razão,

possui com a neomodernidade uma relação de objeto exposto à crítica, mas ainda longe de ser

superado por outro conjunto de valores e procedimentos, pois é inegável que a modernidade:

[...] acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino,

livre da tirania e da superstição. Propôs ideais de paz e tolerância, que até hoje não

se realizaram. Mostrou o caminho para que nos libertássemos do reino da

necessidade, através do desenvolvimento das forças produtivas. Seu ideal de ciência

era de um saber posto a serviço do homem, e não de um saber cego, seguindo uma

lógica desvinculada de fins humanos. Sua moral era livre e visava uma liberdade

concreta, valorizando como nenhum outro período a vida das paixões e pregando

uma ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo Estado, o fiel não fosse

oprimido pela religião e a mulher não fosse oprimida pelo homem. Sua doutrina dos

direitos humanos era abstrata, mas por isto mesmo universal, transcendendo os

limites do tempo e do espaço, suscetível de apropriações sempre novas, e gerando

continuamente novos objetivos políticos.433

O que se percebe no trecho acima é que a neomodernidade não consegue desgarrar-

se das concepções, ideais e utopias da modernidade, quando muito, encaminha uma censura,

429

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André

Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 99. 430

Que se manifesta pelo código legal instituído pelo Direito (medieval), pelo regime de disciplina e vigilância

(moderno), bem como pelo dispositivo de segurança (contemporâneo). (FOUCAULT, 2008b, p. 9). 431

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André

Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. p. 119-122. 432

ROUDINESCO, Elizabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André

Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.p. 131. 433

ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 27.

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por vezes conservadora e reacionária, porém sem conseguir proporcionar uma evolução

paradigmática, o que, veremos, é buscado com mais êxito pela concepção pós-moderna. Essa

é uma busca também da ciência jurídica que tem como grande desafio, na atualidade,

esclarecer os fundamentos do sistema jurídico adotando um viés autocrítico.

No entanto, essa busca esbarra muitas vezes em concepções que impregnam o direito

não de teorias, como na definição de Popper, mas de ideologia pura. Para Lênio Luiz Streck,

por exemplo, não se trata de pugnar, sobretudo no Brasil, por uma superação da modernidade

pela via do neo-liberalismo. Para o autor, o Brasil sequer chegou a experimentar as conquistas

do welfare state, tendo vivido tão somente um "simulacro de modernidade". Haveria um

déficit de desenvolvimento sócio-econômico que só aumentaria com a prevalência do

neoliberalismo. O fervor com que este autor defende o Estado intervencionista o leva a

apontá-lo como "o" verdadeiro Estado Democrático de Direito, numa leitura muito particular

da Constituição de 88. Sobre o avanço da globalização e do neoliberalismo, afirma:

Tudo isto acontece na contramão do que estabelece o ordenamento constitucional

brasileiro, que aponta para um Estado forte, intervencionista e regulador, na esteira

daquilo que, contemporaneamente, se entende como Estado Democrático de Direito.

O Direito recupera, pois, sua especificidade. No Estado Democrático de Direito,

ocorre a secularização do Direito. Desse modo, é razoável afirmar que o Direito,

enquanto legado da modernidade - até porque temos uma Constituição democrática -

deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para a implantação das

promessas modernas.434

As tais promessas da modernidade estariam assentadas sobre um projeto sócio-

cultural, que segundo Boaventura de Sousa Santos, se estrutura em dois pilares: regulação e

emancipação, cada qual constituído por três princípios. O primeiro pelos princípios do Estado

(Hobbes), do mercado (Locke) e da comunidade (Rousseau), que na sucessão dos

acontecimentos históricos disputam entre si a primazia. O segundo é composto pelos

princípios de racionalidade lógica como a estético-expressiva (artes e literatura), a moral-

prática (ética e direito) e cognitivo-instrumental (ciência e técnica)435

. Cada uma das

chamadas lógicas de emancipação teria uma forma de inserção no pilar da regulação, sendo

possível encaminhar esse estudo pela História e pela Sociologia.

Esses dois pilares podem ser identificados na trajetória moderna do liberalismo

(laissez faire - em que prevaleceu o princípio do mercado), passando pelo Estado-providência

(welfare state - prevalecendo o princípio do Estado), chegando a um período de pujança sem

434

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 25. 435

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:

Edições Afrontamento, 1999. p. 77.

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125

precedentes do princípio do mercado, denominado período neoliberal, com empresas

multinacionais globalizadas que, por seu poderio incontrastável, acabam por contornar "ou

mesmo neutralizar a capacidade de regulação nacional"436

.

Boaventura de Sousa Santos afirma que algumas das promessas da modernidade

foram cumpridas até mesmo em excesso, inviabilizando, por essa razão, o cumprimento das

demais. No entanto, aquelas que não foram cumpridas só poderão sê-lo por outro paradigma

que não o da modernidade e seus dualismos dogmatizantes como, por exemplo, Estado-

sociedade civil437

. O Processo Penal, como foi demonstrado, também não escapou ao

dualismo, pois sempre oscilou entre um modelo e outro de atuação, conformando-se com "um

simulacro de pluralidade que confunde o acto político com a mera possibilidade de discussão,

reduzindo-o ao confronto de opiniões."438

.

O Direito também estaria aprisionado ao dogmatismo da modernidade pela Teoria

Pura do Direito de Kelsen e sua pseudo-isenção axiológica e ideológica439

de cunho

positivista. Ora se confere ao Direito um viés liberalizante de cunho garantista, ora uma

condição de verdadeiro instrumento da luta de classes. Esse é um debate anacrônico que

somente poderá ser superado por uma concepção pós-moderna, processualizada e

processualizante de modo a implantar o constitucionalismo democrático nos mais diversos

segmentos440

.

A pós-modernidade que se pretende acolher neste trabalho é aquela que caminha na

direção apontada por Popper e que propicia desvelar as ideologias que impregnam a base dos

discursos instituinte e constituinte do Direito. Com amparo em David Harvey, Andréa Alves

de Almeida traça um panorama preciso da transição da modernidade para a pós-modernidade:

[...] o modernismo é geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico,

racionalista e identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas,

no planejamento racional de ordens sociais ideais e com a padronização do

conhecimento e da produção. Já o pós-moderno tem como marco a intensa

desconfiança de todos os discursos universais e totalizantes. Privilegiando a

heterogeneidade e a diferença na redefinição do discurso cultural, a pós-

modernidade acentua a indeterminação, o fugidio, o efêmero e comemora com

entusiasmo e sem precedentes a dispersão e fragmentação na experiência do espaço

e do tempo.441

436

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:

Edições Afrontamento, 1999. p. 87. 437

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:

Edições Afrontamento, 1999. p.80-81. 438

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 77. 439

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:

Edições Afrontamento, 1999. p. 86. 440

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. 441

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Page 118: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

126

Um enfoque parecido se percebe na obra de Lyotard. O saber científico na pós-

modernidade se pauta por uma notável mudança de paradigma, em que o determinismo é

encarado como a própria crise do saber. A superação da crise se torna possível mediante a

adoção de uma postura não-dogmática em que o saber científico adquire uma característica

fragmentária e descontínua:

Interessando-se pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta,

pelos conflitos de informação não completa, pelos paradoxos paradigmáticos, a

ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução, descontínua,

catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e diz como

esta mudança pode se fazer. Produz não o conhecido, mas o desconhecido. E sugere

um modelo de legitimação que não é de modo algum o da melhor performance, mas

o da diferença compreendida como paralogia.442

Em Popper a pós-modernidade se manifesta pela caracterização do saber científico

como conjectural ou hipotético443

. Na perspectiva popperiana, um sistema só adquire

cientificidade quando é possível submetê-lo a um critério de demarcação, em que a sua

"comprovação pela experiência" ocorre, não pela sua verificabilidade, mas pela sua

falseabilidade, ou seja, sua validação se dá não pela confirmação de seus enunciados, mas

pela possibilidade de refutação444

. A evolução do conhecimento seria então uma disputa entre

teorias concorrentes em que as mais aptas sobrevivem, podendo também ser eliminadas a

qualquer momento445

. As teorias prevalecentes se convertem em hipóteses que passam

também a ser testadas criticamente. Uma hipótese nova, para prevalecer sobre uma

antecedente, deverá (1) explicar "todos os aspectos que a hipótese anterior conseguia explicar

com êxito", (2) "evitar ao menos algumas falhas da hipótese anterior" e (3) se possível,

explicar "os aspectos que a antiga hipótese não pôde esclarecer ou prever"446

.

Nessa concepção, testar uma teoria é expô-la à discussão racional. Discutir

racionalmente uma teoria é submetê-la à crítica. Para Popper, "racional" é sinônimo de

"crítico". Em decorrência, conclui que uma "discussão crítica nunca pode firmar razão

suficiente para alegar que uma teoria é verdadeira", no máximo afirmar que, em determinado

Editora CRV, 2012.p. 118-119. 442

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio Editora, 1998. p. 107-108. 443

POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial

Fragmentos, 2006. p. 32. 444

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany

Silveira da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 42. 445

POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto

Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996.p. 25. 446

POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial

Fragmentos, 2006. p. 32.

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127

estágio da discussão, ou por resistir a "conjecturas ousadas" e "testes severos", determinada

teoria se aproximou mais da verdade do que qualquer outra teoria concorrente447

.

No Direito, contudo, é a Teoria Geral do Processo, na concepção

Neoinstitucionalista, que vai possibilitar uma abertura teórica para interrogar o "mito do

modus-ternus (moderno)" o qual, segundo Rosemiro Pereira Leal448

, é um modo "de

conjecturar o mundo no espaço-tempo-forma pela sacralização do espaço-tempo". O modus-

ternus produz assim "formas autopoiéticas de convívio social (historicismo)" como expressão

de uma herança da metafísica grega (meta-physis) pela "crença iluminista" implantada de

forma a criar dicotomias maniqueístas que sinalizariam um caminho inevitável à humanidade

"(do mal para o bem, do injusto para o justo, do martírio para a salvação)", mediante a

regência de "leis universais e imutáveis", que levariam a um "natural entendimento

racionalizante", expressado pelo "senso comum e pelo senso comum do conhecimento", que

vem a ser justamente a mais acabada definição de dogmatismo.

A toda evidência, a crítica desenvolvida neste trabalho filia-se à concepção

teorometodológica, de Popper, como demarcação científica necessária ao exercício de uma

autocrítica continuada, que é exercida:

[...] por teorias cientificamente bem-sucedidas no equacionamento e

operacionalização de sua reprodução ininterrupta de liberdade (ampla defesa) como

autoprivação de livre (indemarcada) vontade para todos e pelo exercício de direitos

iguais de vida-contraditório e isonomia-dignidade em todos os níveis da incidência

jurídica.449

É por essa abertura espistemológica que Rosemiro Pereira Leal desenvolve o

conceito de isomenia450

, que se mostra como âncora para as pretensões da presente pesquisa,

na medida em que se apresenta como "instituto operacional do princípio da legalidade", pois

oportuniza a todos os "destinatários normativos" serem reconhecidos como intérpretes que se

posicionam simetricamente "ante idêntico referente lógico-jurídico construtivo, aplicativo,

modificativo ou extintivo do sistema jurídico (Leis)". O referente lógico-jurídico é justamente

o devido processo como interpretante que atua no balizamento dos limites hermenêuticos do

Estado Democrático de Direito concebido como sociedade aberta, no qual o processo como

instituição permite a desconstrução das autocracias "de "eus" solipsistas, inatos e,

447

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 85-86. 448

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 200. 449

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185. 450

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271.

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128

pressupostamente, contextualizados em seus absolutos e estratégicos saberes deontológicos e

corretivos na justificação e aplicação do Direito"451

.

Isso é possível quando se concebe o devido processo como metalinguagem452

a

exercer autocrítica incessante sobre a procedimentalidade jurídica que, por tal razão, assume

aspecto exossomático453

(forma de evolução que distingue os homens dos animais), pois

exerce sobre a linguagem objeto uma crítica incessante e reconstrutiva de seus fundamentos.

Com isso, fica afastada qualquer espécie de restrição à liberdade descritivo-argumentativa,

inaugurando assim novas possibilidades para a própria teoria do Direito.Instaura-se uma

"fiscalidade procedimental em espaço-tempo" que não se confunde com "o da realidade

imanentemente racional do indutivista-positivista-verificacionista"454

, em que prevalece a

"legitimação pelo desempenho"455

, por uma hipótese determinista na qual a relação

input/output ocorre pela presunção de que o sistema que recebe o input é estável e capaz de

estabelecer uma "função contínua e derivável que permitirá antecipar convenientemente o

output"456

.

Essa fiscalidade se constrói pela racionalidade implantada por um Direito crítico,

assim definido como um saber que transponha a órbita subjetiva e adquira autonomia,

permitindo uma testabilidade ampla e irrestrita no âmbito do chamado "Mundo 3" de

Popper457

, em que seus enunciados são submetidos a "arguições confrontativas"458

prevalecendo aqueles que apresentam maior grau de resistência, sendo sua permanência,

nunca definitiva, sempre ad hoc.

451

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012.p. 104. 452

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012. 453

"A evolução animal marcha amplamente, embora não exclusivamente, por meio de modificação de órgãos (ou

comportamento) ou pela emersão de novos órgãos (ou comportamento). A evolução humana marcha,

amplamente, pelo desenvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos ou pessoas: "exossomaticamente",

como o chamam os biólogos, ou "extrapessoalmente". Estes novos órgãos são instrumentos, ou armas, ou

máquinas, ou casas.Os começos rudimentares deste desenvolvimento exossomático podem, sem dúvida, ser

encontrados entre animais. A construção de luras, ou tocas, ou ninhos é uma realização primitiva. Posso também

lembrar que os castores constroem represas muito engenhosas. Mas o homem, em vez de desenvolver melhores

olhos e ouvidos, desenvolve óculos, microscópios, telescópios, telefones e aparelhos auditivos. E em vez de

desenvolver pernas cada vez mais velozes, desenvolve cada vez mais velozes automóveis". (POPPER, 1999, p.

218). 454

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 198. 455

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio Editora, 1998. p. 99. 456

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio Editora, 1998. 457

POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto Ferreira

Gomes. Lisboa: Edições 70. p. 17. 458

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 173.

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129

O pós-moderno expressa ambiguidades como qualquer conceito, sendo considerado

por Boaventura de Sousa Santos "um nome autêntico em sua inadequação"459

, pois surge da

superação do paradigma da modernidade, envolto no paradoxo de que algumas de suas

promessas se realizaram até mesmo em excesso e, ao mesmo tempo, mas não ao ponto de

evitar sua obsolescência, pois o que há de déficit no cumprimento das promessas da

modernidade se mostra de impossível cumprimento. Ou seja: aquilo que a modernidade

cumpriu está cumprido, aquilo que não logrou cumprir deve ser apagado do horizonte das

expectativas.

A humanidade, tomada pela perplexidade ante aos impactos causados por Copérnico,

Darwin e Freud - que provocaram as célebres feridas narcísicas da cultura ocidental -, precisa

encontrar uma saída epistemológica para a crise que se instaura460

. O Direito Processual Penal

se insere nesse contexto como um campo científico a reclamar um verdadeiro giro

epistemológico que lhe permita desconstruir determinadas concepções arcaicas que, como

visto acima, se expressam notadamente pela dicotomia entre acusatoriedade e

inquisitoriedade, que buscam a primazia uma sobre a outra e, ao mesmo tempo, convivem

numa síntese arbitrária imposta pelo legislador se disfarçando e se confundindo mutuamente,

o que acaba por obstruir a passagem desse segmento normativo ao paradigma da pós-

modernidade democrática461

.

Essa dicotomia, por vezes suprimida por uma síntese arbitrária ou pela mera

inobservância dos conteúdos jurídicos que condicionam a atividade jurisdicional, expressa

uma crise dogmática persistente. É possível caracterizar esses fluxos e refluxos como

expressão da instabilidade provocada por uma disputa pela predominância de modo que se

instaura um “ciclo de formas viciosas”, que resulta em decadência e desintegração, pois os

fundamentos de cada uma dessas formas são pura abstração, o que mascara fatores que podem

produzir resultados perniciosos, uma vez que se manifesta de modo absolutista nos períodos

em que determinada forma consegue a hegemonia “exercendo influência sobre as atitudes e os

459

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto:

Edições Afrontamento, 1999. p. 77. 460

As feridas narcísicas, que tanto abalaram a bela imagem que a humanidade tinha de si mesma, segundo Freud,

teriam sido causadas por Copérnico, quando mostrou que a terra não é o centro do universo, por Darwin por

mostrar que o homem é apenas um elo na cadeia evolutiva, na medida em que descende de um primata e pelo

próprio Freud quando afirma suas descobertas acerca do inconsciente, demonstrando que não somos

integralmente senhores de nossos atos. (FOUCAULT, 1997, p. 17). 461

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal

inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).

Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.

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130

destinos do homem”, não raro produzindo experiências amargas e dolorosas462

.

4.3.1 A profanação do Direito Processual Penal na perspectiva pós-moderna

Até aqui foi possível observar na trajetória do Direito Processual Penal um misto de

dogmatismo, mitificação, idealismo e empirismo, dicotomias teóricas e pragmáticas, tudo

condensado por um sincretismo paralisante, fruto do positivismo jurídico. Para superar o

embate entre crenças opostas e seus respectivos dogmas, Agamben fornece um interessante

aporte que pode servir ao desenvolvimento de uma epistemologia da processualidade penal

harmonizada com o paradigma do Estado Democrático de Direito.

Em seu elogio à profanação463

, Agamben confronta os termos "consagrar (sacrare)"

e "profanar". Quando algo era consagrado, significava ser subtraído ao "livre uso e comércio

dos homens", sendo considerado sacrílego aquele que violasse esta "especial

indisponibilidade" das coisas sagradas (pertencentes aos deuses celestes) ou religiosas

(infernais). O ato da profanação consistia em restituir algo sagrado ou religioso ao "livre

comércio dos homens", ou seja, à propriedade e ao uso comum.

A religião seria então "tudo aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao

uso comum e as transfere a uma esfera separada". Agamben conclui que não há religião sem

separação e que o "dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício", que se produz

por meio de rituais e que, em última análise, é que determinam o modo de passagem do

profano ao sagrado, "da esfera humana para a divina". O trajeto contrário também se dá pelo

rito ou, de outro modo, se é o rito que consagra é também o rito que profana ou restitui aos

homens o que antes lhes havia sido subtraído.

Essa mesma perspectiva, mutatis mutandi, pode ser aplicada à esfera jurídica e em

especial ao Direito Processual Penal. O dogmatismo, a mitificação e as ideologias464

o

consagraram ao uso de alguns privilegiados propiciando sua instrumentalização para os mais

diversos fins que o afastam de sua configuração autocrítica e constitucional. O embate entre

acusatoriedade e inquisitoriedade acaba por criar entraves diversos à sua compreensão como

medium linguístico testificador da realidade normativa em vigor.

Relevante no texto de Agamben é a distinção entre secularização e profanação.

Ambas são consideradas operações de natureza política, sendo que a primeira apenas

transmuta a natureza do poder mantendo-o intacto (como na transição da monarquia celeste

462

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 149. 463

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007c.

. p. 58-71. 464

QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.

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131

para a monarquia terrena). Já a profanação:

[...] implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido

profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído

ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício

do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa

os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia

confiscado.465

Profanação do Direito Processual Penal tem o sentido de institucionalização,

desencantamento ou dessacralização, sem, contudo, instrumentalizá-lo. Um Direito

Processual Penal restituído ao "uso comum" evita o retorno à barbárie, que fatalmente ocorre

quando o homem se coloca acima das instituições jurídicas por ele mesmo criadas "num

incitamento obsessivo ao culto de poderes estatais ou personalidades supostamente

salvadoras"466

. Não se trata de simplesmente "des-pensar" ou mesmo "trivializar" ou

"vulgarizar" o Direito como forma de estabelecer sua autonomia ante as intenções das classes

profissionais que controlam sua elaboração e aplicação, como quer Boaventura de Sousa

Santos, pois as bases epistemológicas de sua proposta desconsideram, por completo, a

processualidade. Em sua pretensão anti-ideológica, instaura uma censura à

"profissionalização" do Direito associando-a à "sacralização" sem, contudo, encaminhar uma

crítica cientificamente estruturada467

. A profanação, na perspectiva deste trabalho, é uma

possibilidade ofertada pela democracia jurídica e pelo devido processo constitucional através

de uma ciência do processo que se oriente por uma epistemologia evolucionária468

.

Esse ganho epistemológico é possível através da Teoria Geral do Processo que se

firma como Teoria-Jurídico-Científica capaz de “transpor a crítica científica” e obter

“aceitabilidade contributiva”. Para um melhor esclarecimento do Direito Processual, no

sentido de aumentar o seu campo de investigação, a Teoria Geral do Processo age de forma a

“explicitar, de modo inter e multicontextual, realidades e contradições ausentes nas interfaces

do discurso do conhecimento”469

, e para isso deve partir, sobretudo daquilo que lhe confere

generalidade na órbita jurídica, o que neste caso se traduz pelo devido processo legal como

465

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007c.

. p. 61. 466

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012.p. 56 467

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed.

São Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 222. 468

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

p. 72. 469

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 39.

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132

“referente lógico-jurídico dos procedimentos”, de modo que as decisões resultem de um

necessário “compartilhamento dialógico” entre as partes afetadas470

.

470

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 95.

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133

5 O MODELO CIVIL DE PROCESSO E SEUS IMPACTOS NAS

PROCEDIMENTALIDADES ACUSATÓRIA E INQUISITÓRIA

Certas abordagens em torno do direito democrático reconhecem a emergência de

uma sociedade composta de “mundos da vida em si mesmos pluralizados e profanizados”471

,

em que se verifica um aumento do risco de dissenso e que não consegue se desvencilhar da

autoridade mítica que se exerce por meio de instituições fortes. Há nessa concepção uma

preocupação em reconhecer a autonomia jurídica dos cidadãos, que consiste no fato de que

estes, enquanto destinatários do direito, possam ao mesmo tempo se reconhecerem como seus

autores472

, mediante a pressuposição de coexistência mútua de uma autonomia pública e uma

autonomia privada, que permitiria a institucionalização de um discurso encaminhado por uma

sociedade descentralizada que rompe com a filosofia do sujeito, uma vez que a soberania

popular só se validaria enquanto pudesse ser reconhecida como “poder gerado por via

comunicativa”473

.

Nesse aspecto, há certa superação das concepções estatais, ainda calcadas em

justificativas metafísicas474

, que são características da teoria do Estado na modernidade em

que o poder encontraria sua justificação não mais na autoridade personalíssima do monarca,

mas como “um fenômeno jurídico de organização e de regulação que se caracteriza, já em sua

emergência, por sua capacidade normativa”475

, se consolidando sob o signo do humanismo

jurídico. Contudo, o Direito moderno, justamente por ser moderno, guarda um inequívoco

nexo interno com as concepções metafísicas476

, o que se observa mesmo em análises mais

atuais em que as pretensões de legitimidade e os controles de formação da vontade política se

constituem em função da problemática existente em torno da “gestão do poder em uma

sociedade formada por membros que se pretendem livres e eqüidistantes em relação ao

471

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 46. 472

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton

Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 301. 473

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton

Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a. p. 291. 474

O termo Metafísica está sendo empregado neste trabalho, como um tipo de pensamento que, mesmo após a

crítica Kantiana que não mais o define como um pensamento conclusivo e integrador, ainda se identifica com

uma teoria da consciência a fornecer as condições subjetivas necessárias para conferir objetividade a juízos

sintéticos a priori, tendo como principal característica um idealismo que, segundo Habermas, se origina em

Platão e passa por pensadores como Plotino, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Cusano, Pico de

Mirandola, Descartes, Spinoza, Leibniz até chegar aos grandes expoentes da modernidade como Kant, Fichte,

Schelling e Hegel. (HABERMAS, 1990, p. 22;27;3). 475

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 57. 476

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 20.

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134

processo político”477

, ou seja, a sociedade diante do poder político numa posição de

subalternidade. Enfrentar a dicotomia existente entre Estado e Sociedade talvez seja

insuficiente para compreender certos caminhos trilhados pela procedimentalidade penal na

modernidade. De fato, há que se perquirir os contornos epistemológicos daquilo que se

convencionou chamar de “sociedade civil”.

5.1 O caráter patrimonialista da sociedade civil como fator de uma jurisdicionalidade

diferenciada

No Direito Processual Penal da modernidade, a tríplice relação entre Estado-

sociedade-indivíduos vai se caracterizar, sobretudo pela estabilização de institutos jurídicos

voltados à contenção do poder estatal, com especial preocupação em reduzir as intervenções

sobre a liberdade individual478

, uma vez que, de Hobbes a Kant, o direito privado, fundado na

liberdade de contratar e no direito de propriedade, se apresenta como “protótipo para do

direito em geral”479

. De outro lado, a sanção penal adquire um sentido perverso, pois se

mostra especialmente voltada para a exclusão do indivíduo despatrimonializado, de modo que

a opção por acusatoriedade ou inquisitoriedade perde relevância epistemológica, abrindo a

vertente crítica, que esta pesquisa busca percorrer.

Estudados como princípios informativos, acusatoriedade e inquisitoriedade se

apresentam como "variáveis lógico-jurídicos dos princípios institutivos"480

e, como tal, vão

estar submetidos à institucionalidade fundante, e, por Isonomia, todos os indivíduos,

indistintamente, poderão encaminhar seus argumentos defensivos em Contraditório,

subtraindo-se ao arbítrio. Mesmo em tese, escapando ao arbítrio estatal, os indivíduos estão

inseridos em sociedade e dela recebem uma forte carga dogmatizante.

Um primeiro e importante aporte para o desenvolvimento deste estudo é a distinção

entre comunidade e sociedade encontrada na obra de Max Weber. Enquanto a comunidade

constitui um tipo de relação social estruturado na solidariedade motivada por vínculos

emocionais ou tradicionais de seus integrantes, a sociedade seria fruto "de uma reconciliação

e de um equilíbrio de interesses motivados por juízos racionais, quer de valores, quer de

477

PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito constitucional democrático: controle e participação como Elementos

Fundantes e Garantidores da Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 35. 478

OLMEDO, Jorge A. Clariá. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. t. 1. 1982.p.

24. 479

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1. p. 48. 480

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 110.

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135

fins"481

. Desse modo, a sociedade pode se fundamentar, ora num consentimento mútuo, ora na

fé compartilhada de seus integrantes, ora num cálculo pragmático em torno da conveniência

da adesão ao grupo.

No clássico estudo de Peter L. Berger e Thomas Luckmann482

, a sociedade é

apresentada como realidade da vida cotidiana e que pode ser investigada tanto como realidade

objetiva quanto subjetiva. O que chamamos sociedade é visto como um organismo complexo

que se estrutura dialeticamente por um processo de exteriorização e objetivação por

mecanismos de institucionalização, mas também por uma adesão subjetiva mediante

fenômenos de interiorização483

.

Como realidade objetiva, os autores demonstram que enquanto os animais possuem

um ambiente fixo com o qual se relacionam por determinação de sua condição biológica, o

homem se abre para o mundo e, em razão de sua condição biológica imperfeita, se adapta aos

mais variados ambientes. Nesse aspecto, o processo de tornar-se homem se dá em correlação

com o ambiente, um ambiente não apenas natural, mas também social, ou seja, "uma ordem

cultural e social específica". Assim, a sobrevivência da criança não só "depende de certos

dispositivos sociais, mas a direção de seu desenvolvimento orgânico é socialmente

determinada"484

.

De outro lado, como realidade subjetiva, a sociedade é objeto de apreensão pelo

indivíduo por um processo de interiorização. Num primeiro momento como base de

compreensão dos seus semelhantes e depois como forma de identificar o "mundo como

realidade social dotada de sentido"485

:

Esta apreensão não resulta de criações autônomas de significado por indivíduos

isolados, mas começa com o fato do indivíduo "assumir" o mundo no qual os outros

já vivem. Sem dúvida, este "assumir" em si mesmo constitui em certo sentido um

processo original para cada organismo humano e o mundo, uma vez "assumido",

pode ser modificado de maneira criadora ou (menos provavelmente) até recriado.

Em qualquer caso, na forma complexa da interiorização, não somente "compreendo"

os processos subjetivos momentâneos do outro, mas "compreendo" o mundo em que

481

WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerard

Georges Delaunay. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008. p. 71. 482

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. 483

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p, 173. 484

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 71. 485

O termo "sentido" é empregado por Weber, para identificar a coerência da atuação de um ator num determinado

contexto histórico, ou como aproximação pela repetição de casos, como também para identificar a coerência

subjetiva de uma determinada conduta com relação à pessoa que a pratica hipoteticamente. (WEBER, 2008, p.

11).

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136

vivo e esse mundo torna-se o meu próprio.486

Como se vê, a relação indivíduo-sociedade se dá de forma que aquele, ainda que

possa ser reconhecido como agente de mudanças e transformações, primeiro se dogmatiza.

Isso não é diferente quando se trata da chamada "sociedade civil", à qual se pretende conferir

um caráter plural, mas que se estrutura, sobretudo sobre bases patrimonialistas487

. Para isso

contribui o mito da neutralidade normativa, calcado na impossibilidade investigativa dos

conteúdos axiológicos que oculta "a property mercantilista (civilista) no âmago construtivo

das formas de vida e liberdade praticadas pelo homem"488

. É sob o signo da neutralidade

ideológico-normativa que o Processo Penal do século XX vai buscar fazer frente a uma

permanente emergência, adotando na infraconstitucionalidade critérios inquisitivos489

, mesmo

sustentando que só o princípio acusatório é capaz de proclamar um autêntico processo e

cumprir com as exigências de justiça490

.

Proudhon, em sua crítica à Revolução Francesa, afirma que por ser fruto da "cólera e

do ódio" não poderia o movimento de 1789 produzir os efeitos de algo que fosse produto do

"conhecimento profundo das leis da natureza e da sociedade"491

e, por isso, no máximo teria

produzido um progresso no sentido de que o governo passou das mãos de um para as mãos da

maioria, mas não uma verdadeira revolução. Segundo Proudhon, ao fazer inserir na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dispositivos que assegurassem ao "povo"

acesso aos cargos públicos e à propriedade, o movimento teria perdido uma oportunidade

revolucionária, pois o serviço púbico deveria passar a ser encarado como um dever, não como

fonte de recompensas e benesses e a propriedade deveria ser abolida. O caráter patrimonialista

da "sociedade civil" que deixou de ser "plebe" foi exposto de modo implacável:

O povo não inventou a propriedade; mas como ela não existia para ele da mesma

forma que para os nobres e tonsurados, decretou a uniformidade desse direito. As

formas acerbas da propriedade, a corveia, a intransmissibilidade, o despotismo, a

exclusão dos empregos, desapareceram; o modo de gozo foi modificado: conservou-

486

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 174. 487

Neste ponto, percebe-se que a afirmativa, reconhecidamente reducionista de Rousseau faz sentido: "O primeiro

que cercou um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar

nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil." (ROUSSEAU, 1999, p. 203). 488

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.

(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:

Fórum, 2011. p. 585. 489

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 77. 490

GOLDSCHMIDT, Werner. Introduccion ao derecho. Buenos Aires: Aguilar, 1960. p. 322. 491

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial

Estampa, 1975.p. 27.

Page 129: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

137

se o fundo. Houve progresso na atribuição do direito; não houve revolução.492

A "revolução" ilustracionista, ao cunhar o conceito de "sociedade civil", formada por

homens "livres e iguais", estabeleceu um antropocentrismo ambivalente493

pelo qual, ao

mesmo tempo em que o homem atingia uma autonomia na construção de seu destino, ainda

era tido como herdeiro de direitos naturais, dentre os quais o direito de propriedade sempre foi

o mais proeminente. Habermas se esforça em demonstrar que na contemporaneidade a

"sociedade civil" não mais se confunde com a "sociedade burguesa" de tradição liberal,

fundada na economia de mercado. Em sua concepção:

a sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais

captam os ecos dos problemas sociais, que ressoam nas esferas privadas,

condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da

sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos

capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral

no quadro de esferas públicas.494

Essa concepção, contudo, não consegue se desgarrar da concepção rousseauniana em

que o "povo" se apresenta como "ser coletivo" que "só pode ser representado por si mesmo",

sendo detentor de uma "vontade geral"495

intransmissível, inalienável ou incomunicável. A

"vontade" seria uma categoria acima do "poder", pois este pode ser objeto de delegação, mas

uma delegação sempre revogável pela "vontade"496

. Como demonstra Carl Schmitt, a

"vontade geral" é o conceito nuclear da construção política de Rousseau, base da soberania e

da unidade do Estado e portadora de propriedades salvíficas, pois:

coincide sempre com o que deve ser conforme a justiça. Assim como Deus reúne em

si poder e direito, e, segundo seu conceito, o que Ele quer é sempre bom e o bom é

sempre sua vontade efetiva, assim também aparece o soberano em Rousseau, isto é,

a vontade geral, como algo que, por sua mera existência é já o que deve ser.

[...]

É imperecível, imutável, pura (IV, I). Do contrário, a vontade individual, a vontade

particular ou individual é nula e sem valor (III, 2). Um ato particular, uma vontade

particular, um interesse particular, toda dependência particular (II, 2), toda força

particular, toda preocupação particular (III, 15), carece em si de valor ante a unidade

e a grandeza do geral. Particular é, como em Hobbes a palavra privado, uma palavra

492

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial

Estampa, 1975.p. 30. 493

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 331. 494

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2. p. 99. 495

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 231. 496

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 181.

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ignominiosa. (tradução nossa)497

Tal concepção de sociedade é que tem levado ao surgimento de vertentes que cobram

um retorno ao welfare state, no que se pode denominar de comunitarismo, em que o direito se

aplica por uma "razão moral comunitária e em função de uma responsabilidade social com

valores densos da comunidade, como virtude cívica republicana"498

, tendo como referente

hermenêutico as raízes culturais e os valores homogêneos de uma dada comunidade,

entendendo que o grande mal contemporâneo seria a "solidão das massas"499

, razão pela qual

busca implantar um novo senso comum fundado na ética, na solidariedade e na

participação500

.

5.1.1 Crítica à sociedade civil pressuposta e a mudança de paradigma no Direito Processual

Penal

Ocorre que, na contemporaneidade dos estudos jurídicos, a sociedade não é fruto de

uma "construção anônima" com a qual o homem se depara ao nascer, mas sim uma

construção "edificada paulatinamente" pela totalidade do povo. Uma sociedade seria então

democrática quando processualmente criada. Ao povo é assegurada a participação nessa

construção, pois aos indivíduos é reconhecido o status irrestrito e incondicionado de

legitimados ao processo501

, o que torna irrelevante e sem aplicação no Direito, teorias

sociológicas de estratificação social, que fundamentam o poder e o privilégio como uma

questão de classe ou inserção do indivíduo em um determinado sistema institucional502

. A

partir dessas conclusões, Rosemiro Pereira Leal demonstra que a concepção de sociedade

497

"coincide siempre lo que es con lo que debe ser conforme a justicia. Así como Dios reúne en sí poder y derecho

y, según su concepto, lo que él quiere es siempre bueno y lo bueno es siempre su voluntad efectiva, así también

aparece el soberano en Rousseau, esto es, la volonté générale, como algo que por su mera existencia es ya lo que

debe ser.

[...]

Es imperecedera, inmutable, pura (IV,I). En cambio, la voluntad individual, la volonté particulière o individuelle,

es nula y sin valor (III 2). Un acto particular, una voluntad particular, un interés particular, toda dependencia

particular (II, 11), toda fuerza particular, toda preocupación particular (III, 15) carece en sí de valor ante la

unidad e la grandeza de lo general. Particular es, como en Hobbes, la palabra privado, una palabra ignominiosa."

(SCHMITT, 1968, p. 159). 498

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.

155. 499

expressão atribuída a Amitai Etzioni por Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 153). 500

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São

Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 111. 501

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 58. 502

LENSKI, Gerhard E.. Poder y privilegio: teoria de la estratificacion social. Tradução de Roberto Bixio.

Buenos Aires: Paidos, 1969 p. 86.

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139

pressuposta leva ao predomínio da ideologia e do autoritarismo:

Nessa "sociedade" pronta e pressuposta de homens livres de quaisquer embaraços

jurídicos que lhes pudessem obstar a plena autonomia de uma iluminada e poderosa

vontade imanente de realizar o que acham bom para todos e de iguais nessas

mesmas vontades auspiciosas é que se instala a JUSTIÇA CIVIL arbitradora de

conflitos (disputa de poderes) entre livres e iguais de uma sociedade mítica (corpo-

social-primal) e condutora do melhor destino para os homens.503

O que se nota é que o Direito Processual Penal, como "justiça civil", tem contribuído

para perpetuar esta tricotomia indivíduo-sociedade-Estado, sobretudo diante do que se

observou até aqui pela oscilação entre os princípios acusatório e inquisitório, no decurso

histórico. Ora a primazia do indivíduo (princípio acusatório), ora a primazia da sociedade ou

do Estado (princípio inquisitivo e o chamado sistema misto). Isso levou a um maniqueísmo

entre "interesse privado" e "interesse público" que já não pode subsistir no paradigma

democrático, pois em matéria penal todos os interesses são públicos504

.

Essa mudança de paradigma estabelece as bases para o estudo e o desenvolvimento

do Estado Democrático de Direito no qual o processo já não pode mais receber rótulos ou

nomenclaturas a serviço de um ícone específico (penal, civil, econômico, constituinte,

administrativo, trabalhista...)505

. É a partir de tal entendimento que se torna viável uma Teoria

Geral do Processo, não como um "programa acabado", mas como uma exposição científica e

didática das teorias que informaram o advento das leis processuais e das interpretações que

estas leis receberam no decurso histórico, sendo assim uma "disciplina auxiliar da Ciência do

Direito"506

, na qual o Direito Processual Penal, enquanto segmento normativo se insere como

objeto de investigação.

5.2 As insuficiências teóricas do modelo patrimonialista de processo

Na tentativa de formular uma crítica à teoria do processo como relação jurídica,

Goldschmidt, na Alemanha dos anos 20 do século passado, desenvolveu a teoria do processo

como situação jurídica. Em sua concepção, o processo como relação jurídica expressava uma

503

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 58. 504

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 11. 505

MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti

Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São

Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 73. 506

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 78.

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140

visão estática do direito, enquanto a teoria da situação jurídica permitia uma perspectiva

dinâmica:

O conceito de situação jurídica se diferencia do de relação processual, em que este

não possui relação alguma com o direito material que constitui o objeto do processo,

enquanto aquela designa a situação em que a parte se encontra com relação a seu

direito material, quando o faz valer processualmente. É errôneo crer, por isto, que o

conceito de "situação jurídica" não é distinto do de relação processual , e por isto é

impossível admitir que esta se desenvolva até chegar a ser uma "situação jurídica";

esta não é uma mera situação da relação processual, mas do direito material que

constitui o objeto do processo. Resulta por isto desnecessário recorrer ao conceito de

relação processual, para assegurar a unidade do processo, já que tal unidade vem

predeterminada pelo direito material, objeto de referência das "situações jurídicas"

que surgem no processo. (tradução nossa)507

Como o processo se destinava a assegurar a realização do direito material,

Goldschmidt o comparava a um duelo entre as partes, pouco importando se o vencedor era

anteriormente portador de um direito. Como nas guerras, o que interessa é o resultado que

pode guardar ou não relação com as alegações das partes508

. Note-se que nessa teoria, o

direito subjetivo migrou para a atividade do juiz, na medida em que este "poderia emitir

sentença sem nexo jurídico de causalidade imperativa com as situações criadas pelas partes no

curso do processo"509

.

É justamente a ênfase de Goldschmidt na imprevisibilidade do resultado processual

que leva Aury Lopes Júnior a lhe reconhecer relevância no paradigma democrático, conforme

já visto no capítulo terceiro. O autor contemporâneo reconhece na teoria do processo como

situação jurídica, a virtude de ter superado Bülow com todos os méritos, pois, como já dito,

instaura uma epistemologia da incerteza, gerada pela concepção de processo como estado de

guerra:

O processo é uma complexa situação jurídica, na qual a sucessão de atos vai gerando

situações jurídicas, das quais brotam as chances, que, bem aproveitadas, permitem

que a parte se liberte de cargas (probatórias) e caminhe em direção favorável. Não

aproveitando as chances, não há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de

507

El concepto de situación jurídica se diferencia del de relación procesal en que éste no se halla en relación alguna

con el derecho material que constituye el objeto del proceso, mientras que aquél designa la situación en que la

parte se encuentra respecto a su derecho material, cuando lo hace valer procesalmente. Es erróneo creer, por esto,

que el concepto de "situación jurídica" no es distinto del de relación procesal, y por ello es imposible admitir que

ésta se desenvuelva hasta llegar a ser uma “situación jurídica”; ésta no es una mera situación de la relación

procesal, sino Del derecho material que constituye el objeto del proceso. Resulta por ello innecesario recurrir al

concepto de relación procesal, para asegurar la unidad del proceso, ya que tal unidad viene predeterminada por el

derecho material, objeto de referencia de las "situaciones jurídicas" que surgen en el proceso.

(GOLDSCHMIDT, 1936a, p. 9). 508

GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso.Barcelona: Editorial Labor, 1936b.p. 39. 509

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 85.

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141

uma sentença desfavorável.

O processo, enquanto situação - em movimento -, dá origem a expectativas,

perspectivas, cargas e liberação de cargas. Do aproveitamento ou não dessas

chances, surgem ônus ou bônus.510

A tentativa de resgatar Goldschmidt, no entanto, esbarra no fato de que o processo no

Estado Democrático de Direito, ao se afastar do determinismo decisório, vai fazê-lo em bases

teóricas e epistêmicas que buscam justamente conter o subjetivismo, conforme será exposto

mais adiante. Isso não será possível pela concepção do processo como guerra pela qual o

encaminhamento de pretensões se daria no espaço indemarcado da luta de todos contra todos,

vencendo sempre o mais forte, o mais bem equipado com instrumentos eficazes de luta ou

aquele mais sagaz. Pelas conjecturas adotadas e desenvolvidas no presente estudo, o processo

se posiciona em uma dimensão teórica além da batalha entre as partes tendo o Estado como

interveniente. Tal embate se dá no âmbito do procedimento, que se define como instituto

jurídico distinto do processo, conforme a teoria de Elio Fazzalari.

A crítica formulada por Fazzalari à predominante teoria do processo como relação

jurídica define-o como uma espécie de procedimento realizado em contraditório. O mérito

dessa teoria é rechaçar a ideia de relação jurídica processual por meio da lógica de classes511

.

Enquanto para os adeptos da teoria da relação jurídica o procedimento é apenas o meio

extrínseco pelo qual o processo se instaura, desenvolve e termina, para Fazzalari, o

procedimento é gênero do qual o processo é a espécie que se caracteriza pela participação, na

preparação do provimento estatal, dos interessados em contraditório. A essência do

contraditório é a simétrica paridade entre os destinatários que irão sofrer os efeitos da decisão.

Nas palavras do autor:

Se, pois, o procedimento é regulado de modo que dele participem também aqueles

em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos - de modo que o

autor dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais destinatários o conhecimento

de sua atividade, e se tal participação é armada de modo que os contrapostos

"interessados" (aqueles que aspiram a emanação do ato final - "interessados" em

sentido estrito - e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os "contra-interessados")

estejam sob o plano de simétrica paridade, então o procedimento compreende o

"contraditório", faz-se mais articulado e complexo, e do genus "procedimento" é

possível extrair a species "processo".512

510LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 43. 511

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p.111 a

115. 512

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 94.

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142

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho chega a afirmar que essa teoria foi adotada pela

Constituição brasileira de 1988, ao prever a garantia do contraditório nos processos judiciais

ou administrativos513

. O fato é que o pensamento fazzalariano significou um considerável

salto epistemológico para a ciência do processo, possibilitando seu estudo sob um enfoque

mais adequado ao princípio democrático, como é o caso da teoria Neoinstitucionalista,

segundo demonstra Andréa Alves de Almeida:

A partir do salto epistemológico da teoria estruturalista (Fazzalari), que passou a

compreender o processo como conquista teórica do cidadão em dado momento

histórico e instituto de direitos fundamentais (contraditório e simétrica paridade) e

disciplinadores da atividade do Estado, a visão neo-institucionalista preceitua a

processualização procedimental.

Em outras palavras, o processo, nesse modo de ver, não significa espécie de

procedimento como teorizou Fazzalari, mas instituição regencial - devido processo

constitucional - de todo procedimento, para que o povo total da sociedade política seja

a causalidade deliberativa ou justificativa (pressuposto de legitimidade) das regras de

criação, alteração e aplicação do direito, por meio do devido processo legislativo e

pelo devido processo legal.514

Há que se destacar ainda, as contribuições de Eduardo J. Couture515

, Andolina e

Vignera516

, José Alfredo de Oliveira Baracho517

e Hector Fix-Zamudio518

que entenderam o

processo como garantia constitucional, tornando possível o desenvolvimento de um novo

enfoque acerca do processo como instituição jurídica “constitucionalizadora e

constitucionalizada de direitos”519

.

Desenvolvida por Rosemiro Pereira Leal, a teoria Neoinstitucionalista estuda o

processo como instituição, porém, não em bases sociológicas, mas como um “conjunto de

princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional”520

,

distinguindo-se da Teoria Constitucionalista por entender que o processo não se constrói

constitucionalmente pelo diálogo de especialistas - em que a jurisdição constitucional é

513

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista

da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b. p. 186. 514

ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa. Belo Horizonte: Forum,

2005. p. 67-68. 515

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007. 516

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. 517

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 518

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 88. 519

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 172. 520

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 89.

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143

concebida como atividade tutelar521

-, mas pela "atuação crítico-participativa das partes

juridicamente legitimadas à instauração dos procedimentos em todos os domínios da

jurisdicionalidade"522

.

Contudo, ao conceber o processo como instituição, Rosemiro Pereira Leal não o faz

nos mesmos moldes de Jaime Guasp, cuja concepção institucionalista foi desenvolvida nos

anos 40 do século passado. Na tentativa de refutar Bülow, o institucionalismo guaspiano foi

pouco aproveitado pelos processualistas, que desde logo apontaram seu viés sociologizante.

Couture chegou a adotar essa teoria durante certo tempo e ao justificar o abandono de tal

concepção o autor uruguaio apontou como principal motivo “os equívocos e mal entendidos

que provocam a multiplicidade de acepções” da palavra instituição. O autor relata que em

duas oportunidades, em um debate ocorrido em uma universidade e na 2ª edição dos seus

“Fundamentos de Direito Processual Civil”, tentou precisar o sentido desse vocábulo e dotar

de certo rigor o conceito, confessando não ter logrado êxito neste propósito523

. Coulture pediu

desculpas a Guasp, mas não se fez de rogado ao firmar que estava deixando de acolher a

teoria pelo menos até que esta concepção projetasse suas ideias conforme os planos mais

rigorosos da dogmática jurídica.

Ao referir-se sobre os motivos que levaram Couture a rechaçar e teoria

institucionalista, Rosemiro Pereira Leal aponta para o fato de que a ideia de instituição

processual desenvolvida por Guasp carecia de contornos jurídicos amparando-se nos pilares

do positivismo sociológico, muito em voga nas décadas iniciais do século passado. Os

teóricos de então não trabalhavam com a concepção de direitos fundamentais

constitucionalizados, o que fazia com que explicassem as instituições jurídicas como algo que

brotava na sociedade e depois adquiria proteção pela lei, esta se encarregava, assim, de

homologar realidades estabelecidas pelos fatos históricos524

.

A instituição de viés sociológico é resultado de uma atividade tornada habitual e que

assim se estabelece historicamente com a função de controlar a conduta humana, para que esta

se estruture cada vez mais em padrões de homogeneidade, como se lê no estudo de Peter L.

Berger e Thomas Luckmann:

521

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de

Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 1-44. 522

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 91. 523

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial B

de F, 2007. p. 115. 524

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 86.

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144

A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações

habituais por tipos de atores. Dito de maneira diferente, qualquer uma dessas

tipificações é uma instituição. O que deve ser acentuado é a reciprocidade das

tipificações institucionais e o caráter típico não somente das ações mas também dos

atores nas instituições. As tipificações das ações habituais que constituem as

instituições são sempre partilhadas. São acessíveis a todos os membros do grupo

social particular em questão, e a própria instituição tipifica os atores individuais

assim como as ações individuais.525

A institucionalização teria, assim, a função de atuar na administração de um

consenso pressuposto, de fundamental importância para o convívio humano, que

necessariamente se baseia na estabilização de expectativas comportamentais como se vê nos

estudos de sociologia jurídica de Luhmann526

.

Em Guasp, o processo seria instituição, porém em razão da habitualidade com que

aparece nos mais diversos grupamentos humanos. O autor não experimentou o movimento

constitucionalista do segundo pós-guerra e, por isso, não lhe foi possível pensar o processo

como instituição caracterizada pela “anterior e explícita construção constitucional de seus

princípios claramente assegurados e agrupados como institutos inseparáveis de sua

conceituação legal”527

. Nessas condições, tais princípios institutivos se estabelecem como

normas que vinculam a “estruturação dos procedimentos na infraconstitucionalidade

normativa”528

. Segundo Rosemiro Pereira Leal, “[...]essa proposição assume a denominação

de devido processo constitucional como instituição problematizante e autoproblematizável, no

plano jurídico-estatal-discursivo, de abertura a todos de testificação incessante das certezas

propostas pela lei”529

.

Testificação pode aqui ser compreendida no sentido que Karl Popper atribui ao

termo, ou seja, como refutação. Para Popper a irrefutabilidade reclamada por determinadas

teorias científicas, demonstra antes um vício do que uma virtude da teoria:

(4) A teoria que não for refutada por qualquer acontecimento concebível não é

científica. A irrefutabilidade não é uma virtude, como freqüentemente se pensa, mas

um vício.

(5) Todo teste genuíno de uma coisa é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de

testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém,

diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais “testáveis”,

525

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de uma sociologia do

conhecimento. 14. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1997.p. 79 526

Sociologia do Direito I. p. 80 527

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 86. 528

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 87. 529

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 145.

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145

mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos.530

Essa postura permite estudar o processo sob o enfoque da teoria discursiva da

democracia, e, para que isso se concretize, Rosemiro Pereira Leal afirma que é de grande

valia uma revisitação ao pensamento popperiano:

porque, ao rejeitar uma ciência das certezas (episteme e alethéia ante-gregas) e um

devir automático (episteme grega), retirou da indução (epagoge), no sentido de

Hume, a pecha frustrante que desfigurava o projeto pós-moderno da possibilidade de

um conhecimento não prescritivo. A mediação da linguagem, como mundo objetivo

impregnado de teorias (Popper), direcionada à problematização constante das

asserções negativas ou afirmativas, é que propiciou conjecturar-se uma razão

discursiva (não kantiana) pela aceitação interrelacional de um falibilismo de idéias

cuja validade só seria obtida pelo processo de testificação (falseabilidade) constante

à busca de níveis de resistência teórica pelo melhor argumento para decidir.531

Daí, o próprio autor definir da seguinte forma sua teoria:

A minha teoria neoinstitucionalista do processo nenhuma relação apresenta com as

demais teorias que, ao se proporem a instrumentalizar soluções de conflitos numa

sociedade pressuposta, não se comprometem com a autoinclusão processual de todos

nos direitos fundamentais, sem os quais se praticaria, a nosso ver a tirania da

ocultação dos problemas jurídicos e não sua resolução compartilhada.

O processo, nessa concepção, não se estabelece pelas forças imaginosamente

naturais de uma Sociedade ideal ou pelo poder de uma elite dirigente ou genialmente

judicante, ou pelo diálogo de especialistas, mas se impõe por conexão teórica com a

cidadania (soberania popular) constitucionalmente assegurada, que torna o princípio

da reserva legal do processo, nas democracias ativas, o eixo fundamental da

previsibilidade das decisões.532

Com as diferenças acima explicitadas, torna-se possível a plena adoção da teoria

Neoinstitucionalista como marco teórico a reger as reflexões em torno do Direito Processual

Penal e, mais precisamente, em torno do tema central do presente estudo. Neste ponto, há que

se ressaltar as razões teóricas que levam à refutação da concepção de instrumentalidade do

processo, que resulta por impregnar grande parte da reflexão jurídico-processual.

A instrumentalidade do processo, a despeito de superar a concepção Chiovendiana de

que o processo constitui um complexo de atos coordenados à atuação da vontade concreta da

lei, passa a vislumbrar a necessidade de afirmação e realização a todo custo das "tutelas

prometidas pelo direito material e à proteção do caso concreto"533

. Como foi abordado em

tópico anterior, a concepção de instrumentalidade do processo expõe à toda evidência o

dogmatismo da centralidade da jurisdição no sistema processual. A jurisdição comparece no

530

POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Ed. Universidade de

Brasília, 1972. p. 66. 531

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 144. 532

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012. p. 86 e p. 91. 533

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 419.

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146

esquema da instrumentalidade como um poder que legitima a si mesmo, na medida em "que

opera como fator de manutenção das regras sociais de convivência e de garantia contra as

inevitáveis tendências à desagregação social e desvio das metas coletivas"534

.

O constitucionalismo processual não destoa dessa concepção na medida em que

deposita na jurisdição constitucional a confiança na realização das promessas do Welfare

State, mediante o reconhecimento do princípio da Dignidade da Pessoa Humana como

metavalor, verdadeiro e único responsável pela unidade axiológica da Constituição, por meio

de decisões pautadas por critérios de proporcionalidade e razoabilidade (jurisdição

constitucional comunitarista)535

.

A jurisdição constitucional, pautada por essa espécie de voluntarismo, remete ao

fenômeno Magnaud, célebre juiz francês que presidiu o Tribunal de Primeira Instância de

Château-Thierry entre 1889 e 1904. Magnaud se caracterizava por empregar critérios

subjetivos em suas decisões com a justificativa de interpretar humanamente os inflexíveis

rigores da lei. Sua particular concepção de justiça consistia em ser "clemente com os

miseráveis e severo para com os poderosos"536

. Aqueles que se inspiram em Magnaud

entendem o judiciário como portador de atribuições compensatórias, com o juiz atuando no

caso concreto como verdadeiro "engenheiro social"537

.

O que Magnaud fazia há mais de um século nada mais era do que realizar em cada

caso uma ponderação de valores, que, a despeito das justificativas de Robert Alexy538

, sempre

tendem a resultar em prevalência do subjetivismo e decisionismo, escapando no mais das

vezes ao controle racional dos afetados pela decisão, instaurando um verdadeiro anarquismo

ou impressionismo judicial, em que le bons juges, como os do tribunal presidido por

Magnaud, abandonam os marcos legais ou mesmo adotam normas incompatíveis sempre em

nome de uma decisão que seguisse apenas os parâmetros que seriam adotados por “um

homem bom” diante de tais circunstâncias539

.

É a partir dessa ideia de decisão judicial como ato de positivação do poder estatal540

,

534

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

175-176. 535

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.

190. 536

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 97. 537

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 81. 538

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid: Centro

de Estudos Constitucionales, 1993p. 156. 539

CARDOZO, Benjamim N.. A natureza do processo e a evolução do direito. Tradução de Lêda Boechat

Rodrigues. Brasil: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 78. 540

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

109.

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147

paradoxalmente realizado segundo as "convicções íntimas do juiz"541

, que o instrumentalismo

se estrutura e mantém ainda um relevante papel como forma de catalisar práticas que

traduzem uma postura autoritária, em que o processo é, antes de tudo, tomado como

instrumento de realização de políticas tranquilizadoras eas decisões são tomadas sem o

necessário compartilhamento discursivo, em evidente déficit democrático542

, sobretudo no

campo da procedimentalidade penal.

Na visão instrumentalista, o discurso da efetividade adquire primazia sobre o devido

processo legal, visto muitas vezes como um entrave do qual o juiz deve se desvencilhar para

que a tão almejada pacificação social seja alcançada. Nesse sentido, afirma José Roberto dos

Santos Bedaque:

O processualismo exagerado leva à distorção do instrumento, que perde a relação

com seu fim e passa a viver em função dele próprio. Esta visão do fenômeno

processual, além dos malefícios causados à própria sociedade e ao próprio Estado,

contribui para o amesquinhamento da função jurisdicional, pois torna os juízes

meros controladores das exigências formais, obscurecendo a característica principal

dessa atividade estatal - qual seja, o poder de restabelecer a ordem jurídica material,

eliminar os litígios e manter a paz social.543

O que se vê no texto acima, com efeito, é muita mitificação para tão poucas linhas,

evidenciando, em crítica estritamente científica, uma característica da escola instrumentalista:

Abordagens em que o processo está sempre a serviço de uma "ordem jurídica material" e os

conflitos (litígios) precisam ser "eliminados", buscando com isto atingir uma utópica "paz

social". Os autores instrumentalistas não alcançam a concepção teórica de que não basta a

"legitimação pelo procedimento"544

, caracterizado pelo exercício de um poder que legitima a

si mesmo, mas, pelo contrário, deve ser reconhecida a complexidade social da democracia

definida como "espaço de liberdade que não anula, mas permite a manifestação de conflitos",

sendo que "a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expressão de um

poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica"545

. Ou seja: em processo,

forma é conteúdo. A maneira como se produz ou constrói uma decisão diz muito do tipo de

Estado que se está implementando.

541

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 195. 542

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. 543

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:

Malheiros, 2010. p. 30. 544

"A legitimação pelo procedimento e pela igualdade de possibilidades de obter decisões satisfatórias substitui os

antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do consenso. Os procedimentos

encontram como que um reconhecimento generalizado, que é independente do valor do mérito de satisfazer a

decisão isolada, e este reconhecimento arrasta consigo a aceitação e consideração de decisões obrigatórias."

(LUHMANN, 1980, p. 31-32). 545

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 52.

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148

Como demonstra Calmon de Passos, a concepção instrumentalista de processo

padece ou de perversidade ideológica (que precisa ser combatida) ou de descuido

epistemológico (que precisa ser corrigido), na medida em que parece ignorar a crise pela qual

passou a razão instrumental ao longo do século XX, em seu entender, causada por uma

conjunção de fatores como:

os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização do político, a

partir dos desencantamentos existenciais recolhidos da experiência do capitalismo

tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do bem-estar social e,

principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnico-científico,

acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial - a eletrônica, seguida pelas

revoluções das comunicações, dos novos materiais, da biotecnologia, todas elas

incorporando lógicas próprias que determinaram a hibridização das várias lógicas

organizativas que, por sua vez, influenciaram a mudança radical operada pela

ciência organizacional, com inevitável repercussão sobre o Estado e o Direito, tudo

isso denunciando um novo paradigma a pedir que seja repensado o que ontem foi

tido como certeza.546

A presente pesquisa vem apontando as dicotomias paralisantes que surgiram no curso

histórico do Direito Processual Penal. Como se observa, ainda que sob o manto retórico do

constitucionalismo, o processo, em geral, ainda se rege, na praxis, pelo instrumentalismo

implantado pela teoria da relação jurídica, que resulta em ativismo, decisionismo e

protagonismo judiciais, sendo insuficiente o pretexto de reabilitar a instrumentalidade ainda

que seja "a serviço da realização do projeto democrático" ou "da máxima eficácia das

garantias constitucionais"547

, pois tanto o "projeto democrático" quanto as "garantias

constitucionais" só estariam assegurados em um processo que estivesse imune ao

protagonismo judicial e isto não é possível com instrumentalidade, em razão de sua intrínseca

incompatibilidade teórica com o paradigma da democracia.

A superação da concepção instrumentalista, ainda que com roupagem

constitucionalista, passa por uma abordagem em torno do giro linguísticoem que a

linguisticidade se interpõe entre sujeito e objeto, reduzindo a influência da filosofia da

consciência e da interpretação subjetiva, em temas de grande repercussão, tanto para o

indivíduo como para os grupamentos humanos sujeitos à ordem democrática.

546

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Sobre o Tema. In:

FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho (Coord.). Temas atuais de

direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 13. 547

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 26, 28 e 29.

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149

5.3 A radicalização da acusatoriedade em face do sujeito natural e a persistência

inquisitorial

Quando se afirma ao longo da pesquisa o caráter dogmático do embate secular entre

os sistemas (princípios) acusatório e inquisitório no Processo Penal, o objetivo é encaminhar

uma crítica sobre um ponto que se mostra de especial relevância para a reflexão deste

particular segmento do sistema normativo, segundo os contornos da processualidade

democrática. Para tanto, cumpre esclarecer a demarcação das concepções sobre a ciência

processual que efetivamente nortearam a pesquisa até aqui.

Parte-se do pressuposto de que a ciência processual tem como objeto não o Direito

Processual em si, mas o seu esclarecimento548

. Na concepção epistemológica da teoria

Neoinstitucionalista há uma distinção dos campos da técnica, ciência, teoria e crítica. A

conceituação e o estudo das finalidades e aplicações práticas dos institutos de Direito

Processual ficam a cargo da teoria, da ciência e da técnica, ao passo que a crítica científica

atua verificando, decompondo, discernindo, dissertando, dessacralizando, demarcando,

testando, enfim, submetendo-o a interrogações constantes, estabelecendo um permanente

esclarecer dos conhecimentos, postulados, técnicas, teorias, princípios, ideias, institutos e

instituições jurídico-processuais549

. É com este intento que se conduziu a pesquisa tendo o

Direito Processual Penal como objeto.

Delimitando um pouco mais, é certo que o Direito se insere no campo das ciências

sociais aplicadas e como tal deve-se colocar sob suspeita toda e qualquer pretensão a uma

compreensão holística e historicista dos conteúdos do Processo Penal, que podem levá-lo a ser

encarado como fenômeno marcado pelo determinismo e a fatalidade da quadra histórica em

que foi legislado ou que venha a ser eventualmente aplicado, pois, como demonstra Popper,

tais posturas em ciência sempre acabam por resultar em totalitarismo550

. Assim como o

historicismo, devem ser rechaçadas outras concepções dogmáticas, tais como: o biologismo, o

psicologismo ou mesmo o ecologismo, pois a predominância de qualquer destes fatores de

forma isolada instaura a crise do conhecimento que resulta numa abordagem apenas parcial do

fenômeno estudado, uma vez que não leva em consideração o que é predisponência e o que é

548

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 13. 549

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 33-34. 550

POPPER, Karl Raimund. A miséria do historicismo. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira da

Motta. São Paulo: Edusp, 1980. p. 46.

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150

emergência no plano das ações humanas551

.

Pelas conclusões até agora alcançadas, entende-se que a perspectiva

Neoinstitucionalista vai permitir a demarcação teórica dos fundamentos do saber processual,

permitindo também alcançar o que, em nosso entendimento, deve ser um dos primeiros

objetivos da argumentação científica: A neutralidade ideológica. Esta era a busca de Kelsen.

Uma busca pela dessacralização do direito e uma tentativa de rompimento com a abordagem

metafísica da Ciência do Direito. O empreendimento kelseniano, contudo, resultou em

interdição e imunização do debate jurídico, erigindo uma Ciência Dogmática do Direito ao

substituir um mito por outro, como é o caso da norma fundamental, em que justamente o

fundamento de validade do sistema jurídico se mostra refratário ao esclarecimento,

contentando-se em tornar dispensável toda e qualquer fundamentação de origem divina para o

Direito552

. Mas a proposta de neutralidade (pureza) kelseniana esbarra no fato de que os

homens vivem em sociedade, o que provoca conflitos de interesses que, no campo penal,

implicam a necessidade de uma análise sociológica e criminológica553

.

É esse aspecto particular que se busca superar com a teoria Neoinstitucionalista e os

aportes teóricos de Karl Popper, pioneiramente aproveitados em Ciência Jurídica por

Rosemiro Pereira Leal. Nesse sentido, cumpre empreender o que talvez seja o maior desafio

desta pesquisa, qual seja: Demonstrar que o chamado Sistema Acusatório se estudado e

acolhido de forma irrefletida também assume contornos dogmáticos. Como já visto, a ciência

processual adquiriu notável desenvolvimento epistemológico, capaz de evitar a genuflexão

diante de determinadas doxas554

. Estudando a acusatoriedade como princípio, não como

sistema, é possível avançar para uma compreensão em contornos mais adequados à

democracia, sem descartar por completo conteúdos de inquisitoriedade e de impulso oficial do

procedimento.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho usa indistintamente os termos "sistema" e

"princípio", afirmando que tais nomenclaturas trazem uma carga mitológica e que, no âmbito

do Processo Penal, a identificação do "princípio unificador" que rege a gestão da prova

definirá a prevalência da acusatoriedade ou da inquisitoriedade, sendo este último

551

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959. p. 148. 552

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 170. 553

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá Editora,

1998a. p. 27. 554

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução de Monica Stahel. 2.ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 41.

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151

absolutamente incompatível com os postulados em vigor com a Constituição de 88555

. No

entanto, o que se pode definir como estrutura acusatória do Processo Penal é sempre motivo

de divergências teóricas, e disto resulta o fato de que, mesmo autores que ainda preferem

utilizar o termo "sistema", acabam por fazê-lo de modo a reconhecer "os desacordos

semânticos" sobre tal noção556

. Note-se a tentativa de distinguir "sistema" de "princípio"

acusatório no trabalho de Antônio Alberto Machado:

Não é rara a utilização da idéia de sistema processual acusatório como sinônimo de

princípio acusatório, pois, no fundo, ambos estão mesmo naturalmente ligados.

Porém, o sistema processual acusatório, como toda idéia de sistema, se refere a um

conjunto de normas, princípios, leis e procedimentos concatenados para a realização

de um fim que, nesse caso, é a obtenção do julgamento efetivamente justo, com

ampla publicidade dos atos processuais; já o princípio acusatório é uma espécie de

valor que informa esse sistema e resulta num processo de partes, caracterizado pela

rígida separação das funções de investigar, acusar, defender e julgar, configurando,

assim, verdadeira oposição ao desvalor do processo inquisitivo.557

De todo modo, quando se instaura a crença de que o "sistema" ou princípio

acusatório assegura por si só o caráter de democraticidade de um determinado ordenamento

processual, torna-se necessário aprofundar a pesquisa nesse sentido. Inicialmente, identificado

com os ordenamentos de common law, sua adoção costuma não passar de ficção como deixa

claro Mireille Delmas-Marty:

[...] o direito inglês é, em teoria, diretamente inspirado no modelo acusatório.

Entretanto, a igualdade de armas se torna uma ficção durante toda fase preparatória,

na qual as persecuções escapam freqüentemente das mãos da vítima para serem

exercidas pela polícia, à qual se juntou, desde 1985 um Crown Prosecution Service

(Ministério Público) composto de funcionários da Coroa. Quanto ao juiz, seu papel é

marginalizado, seja quando se efetua o plea barganing, negociado sem a sua

presença e diretamente atuado entre a acusação e defesa, seja deformado, vez que o

juiz, abandonando seu papel de árbitro neutro, toma, de ofício, a iniciativa de

convocar a acusação e a defesa para a negociação sobre a pena.558

Observação semelhante é feita por Michelle Taruffo quando estuda as bases do

adversary system e da law of evidence, ambos em vigor nos EUA. O autor procura demonstrar

que, diante da complexidade interna do processo, sempre que se escolhe entre acusatoriedade

555

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal

inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).

Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 223. 556

PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: O acordo sobre a pena e o modelo acusatório no

Brasil: a transformação de um conceito. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al. Decisão

judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.49 557

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 9-10 558

DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a

colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p. xli.

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152

e inquisitoriedade, esta é, antes, uma escolha ideológica. As escolhas ideológicas também

influenciam o legislador processual, os doutrinadores e, obviamente, a jurisprudência. Ou

seja, sempre haverá entre a dimensão epistêmica do processo e as escolhas ideológicas uma

relação de tensão, contradição e conflito559

. A escolha ideológica talvez se dê em termos

legislativos, mesmo porque os estados constitucionais modernos fazem questão de explicitar

sua opção pela acusatoriedade como princípio fundante de seu Processo Penal, como forma de

atestar e ressaltar, ainda que em termos simbólicos, a própria opção pela democracia, sendo

apresentada como importante "conquista do mundo civilizado"560

.

No entanto, historicamente desde o Code d'instruction criminelle, promulgado por

Napoleão em 1808, ganhou força o chamado "sistema misto" no qual o Processo Penal se

estrutura em duas fases561

. A primeira de viés inquisitório e a segunda, acusatório. Na

primeira fase, denominada instrutória, ocorre a chamada investigação preliminar, porém com

alguns elementos acusatórios, pois a defesa poderia acompanhar certos atos. Apesar de

conduzida por um juiz instrutor, em muito se distinguia do procedimento inquisitorial que

predominava no absolutismo monárquico. A fase seguinte, em que ocorria o debate

plenamente acusatório e contraditório, era também temperada pelo exercício de alguns

poderes inquisitivos pelo juiz. O Processo Penal misto assegura, sobretudo a separação entre

acusador e julgador562

. Tal modelo se espalhou pela Europa durante o século XIX e foi

acolhido também no Brasil com a promulgação do atual Código de Processo Penal (Decreto

Lei n. 3.689/41), porém com a supressão da figura do juiz instrutor visto como um entrave à

atividade policial563

.

Mas a terminologia "sistema misto" vem sendo rejeitada por autores

contemporâneos. Aury Lopes Júnior alerta para o fato de que este sincretismo entre os

559

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

111;136-137. 560

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 164 561

Ferrajoli define o sistema misto como uma monstruosa mistura entre os processos acusatório e inquisitório,

apontando como sua origem remota o Código Termidoriano de 1795. (FERRAJOLI, 2002, p. 454). 562

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6 563

"O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos,

averiguar a materialidade de crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias

dentro de seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em

comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação dos juizados de instrução em cada sede

do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende

como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns

dos outros e da sede da comarca, demandando muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda

praticados na maior parte do nosso hinterland, vários dias de viagem. Seria imprescindível, na prática, a quebra

do sistema: nas capitais e as sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz instrutor, ou a instrução

única; nos distritos longínquos, a continuação do sistema atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas virtudes

do juízo de instrução." Trecho extraído do item IV da Exposição de Motivos do CPP, assinada pelo então

Ministro da Justiça Francisco Campos, datada de 8 de setembro de 1941. (BRASIL, 1941).

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153

sistemas históricos encobre uma fraude:

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo

trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do

julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais

variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova

judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um

exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma

condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da

inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação

da primeira fase.564

Alexandre Morais da Rosa, por seu turno, ao rechaçar a ideia de existência de um

"sistema misto", o faz afirmando que sequer existem os sistemas puros, concluindo que o

dilema entre acusatório e inquisitório não faz mais nenhum sentido, pois os ordenamentos

nacionais apresentam hoje características de ambos, sendo traço comum das democracias

ocidentais565

. Denilson Feitoza Pacheco, com notável originalidade, afirma que de modo

inequívoco a Constituição de 88 adota o sistema acusatório, porém o Processo Penalbrasileiro

ainda ostenta traços marcadamente inquisitivos, resultado da forte presença da cultura

inquisitiva em nossa história, o que poderia levar um observador externo a considerá-lo como

um "sistema misto" em fase ainda embrionária. Constata o autor: "A contradição, hoje,

portanto, é entre o princípio acusatório de natureza constitucional e o princípio inquisitivo de

natureza cultural."566

.

A prevalência do chamado "sistema misto" demonstra a dificuldade que os

ordenamentos constitucionais enfrentam para se desvencilhar do decisionismo, que sempre

acaba sendo uma válvula de escape quando o Estado precisa de alguma forma, ou por alguma

razão, hipertrofiar sua atividade sobre a liberdade individual. O decisionismo pode assumir

variadas roupagens, como se vê na preciosa síntese de Adilson de Oliveira Nascimento:

Legitimando-se por juízos de valor, a técnica decisionista vale-se da credibilidade do

órgão judicante e da fonte de legitimação política do seu poder (soberano, Deus,

povo, experts, e outros); de outro lado, vale-se dos valores e das avaliações por ele

adotados como fundamento de sua decisão (sabedoria, espírito ético, bem comum,

interesse nacional e outros). Assim, a atividade instrutória é apenas valorativa em

relação ao fato.567

564

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 70-71. 565

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2013. p. 57. 566

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006. p. 49 567

NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Dos pressupostos processuais penais. Belo Horizonte: Mandamentos,

2008. p. 74.

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O exemplo italiano é particularmente interessante, pois o recurso ao processo

inquisitório e ao decisionismo parece ser sempre uma possibilidade. Após adotar o "sistema

misto", em 1865, experimentou um período de maior predominância do sistema acusatório,

em 1913 e de maior prevalência inquisitória com o Codice Rocco, de 1930568

. Essa oscilação

se verificou também após a edição do Codice di Procedura Penale, em 1988, de contornos

inicialmente acusatórios, que foi posteriormente reformado pela Lei 479, de 1999,

possibilitando mais uma guinada em direção ao sistema inquisitório. Paolo Tonini explica que

essa lei, alterando os arts. 507, 431 e 493, estabelece um sistema acusatório atenuado pela

possibilidade de iniciativa instrutória do juiz em caso de inércia das partes.

O autor afirma que tais dispositivos dizem respeito ao ônus da prova em seu aspecto

formal, que seria compartilhado pelos sujeitos processuais, ao passo que o ônus da prova

substancial, que diz respeito à valoração da prova e ao convencimento do julgador,

permaneceria exclusivo da acusação. A iniciativa probatória do juiz, contudo, é de caráter

excepcional, devendo ocorrer somente em caso de absoluta necessidade. Essa tendência já se

verificava na jurisprudência da Corte de Cassação desde a Sessão Única, de 6 de novembro de

1992. Há que ser ressaltada a possibilidade do órgão colegiado reproduzir provas e reinquirir

testemunhas, peritos, assistentes e partes. Tal previsão se encontra no art. 506 do CPP

italiano. A regra geral, no entanto é a do art. 190 que estabelece a iniciativa probatória como

atribuição das partes569

.

5.3.1 O Processo Penal como mecanismo de combate à máfia e ao terrorismo

Essas oscilações percebidas no caso italiano decorrem de um sentimento de eterna

emergência provocado de um lado pela máfia e de outro pelo terrorismo, como bem ressalta

Fauzi Hassan Chouckr570

, tema já abordado de passagem no Capítulo III deste trabalho. Em

muitos momentos essa emergência resultou em um mal disfarçado Direito Penal de exceção,

baseado em maxi-processos, que se caracterizaram por um gigantismo ineficiente, com

centenas de pessoas sendo presas com base em simples indícios e sofrendo com a morosidade

(para que se cumprisse o máximo de prisão preventiva) e a pluralidade de procedimentos

relativos ao mesmo fato, como se deu no caso das investigações sobre o sequestro e

assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro (investigações Moro um, Moro-bis, Moro-ter,

568

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 6. 569

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 348-349. 570

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 74.

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Moro-quater). Esses processos tomaram "a forma de labirintos intricados", ao mesmo tempo

concorrendo entre si ou se entrelaçando, produzindo ainda "montanhas de papel mensuradas

por toneladas, por dezenas de mil páginas" o que resultava em "neutralização do princípio da

publicidade do processo e as possibilidades materiais de defesa", como bem demonstrou

Ferrajoli571

.

É possível constatar que, via de regra, ante uma situação emergencial, a

acusatoriedade sempre cede à força das pressões por uma jurisdição redentora que se contente

em apenas homologar decisões já tomadas e pré-concebidas no âmbito da investigação

preliminar a cargo de órgãos policiais ou administrativos. Um exemplo contemporâneo de

sacrifício das liberdades públicas em nome da segurança é o que se verifica nos Estados

Unidos da América, em razão da guerra permanentemente travada contra o terrorismo após os

atentados de 11 de setembro de 2001 e que resultaram na edição do USA Patriot Act, lei

extremamente restritiva dos direitos fundamentais572

. As principais características dessa lei

emergencial causadora, dentre outros problemas, de um evidente desequilíbrio entre os

poderes estatais, prevalecendo neste campo os interesses do Executivo, podem ser assim

resumidas:

(I) aumentou os poderes de vigilância com um controle judicial ou congressual menor

ou insignificante;

(II) aumentou a capacidade do governo de rastrear e-mails, registros telefônicos,

monitorar operações financeiras e conduzir interceptações telefônicas em todo o

território, reduzindo já abatidas expectativas de privacidade nos termos da 4ª Emenda;

(III) tornou mais ampla a definição de “terrorismo doméstico” para que fosse possível

abranger grupos de protesto domésticos e ativistas da desobediência civil. Esta

providência também coloca em risco os direitos de expressão e associação política

previstos na 1ª Emenda;

(IV) permitiu que a ocorrência de buscas em domicílio ou escritório de uma pessoa de

forma furtiva, escondida, sem notificá-la a respeito do mandado até que a busca esteja

concluída; e

(V) permitiu que o Departamento de Justiça prenda indefinidamente imigrantes não

cidadãos sem acusação criminal. Portanto, não cidadãos verão um aumento da erosão

do seu princípio do devido processo legal declarado na 14ª Emenda, já que de acordo

com a Lei eles estão sujeitos à prisão arbitrária e podem ser removidos dos Estados

Unidos.573

571

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 661. 572

“The USA PATRIOT Act é uma sigla que significa The Uniting and Strengthening America by Providing

Approriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act (Lei de União e Fortalecimento da América

Através do Fornecimento de Instrumentos para a Interceptação e Obstrução do Terrorismo). Também conhecida

apenas como “Patriot Act”, esta Lei pode ser considerada como uma lei singular, extensa e complicada, que não

foi criada através do processo legislativo comum, que teria envolvido a divulgação pública dos dispositivos em

discussão (com audiências abertas e debates), mas através de negociações informais entre os líderes do Senado e

da Câmara, o Departamento de Justiça e a Casa Branca.” (LEITÃO, 2003, p. 123-124). 573

LEITÃO, Ricardo Azevedo. Restrições aos direitos fundamentais como mecanismo de controle da ordem

pública. São Paulo: Fiuza Editores, 2003. p. 125-126.

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156

Diante das repercussões do USA Patriot Act, Geraldo Prado, mesmo reconhecendo as

insuficiências do modelo acusatório, ressalta sua crucial importância para que as pessoas não

sejam expostas de modo irracional ao poder do Estado:

A vigorosa tradição do processo adversary não impediu por bastante tempo o

desenvolvimento de procedimentos penais em sigilo, com violação do juiz natural,

restrições ou supressões do direito de defesa e do contraditório, e perpetuação de

detenções "provisórias" sem acusação formal. Sem falar na tolerância com as provas

obtidas por meios ilícitos.

O retorno, malgrado lento, às bases mais humanizadas do processo penal nos

Estados Unidos, no entanto, tem sido orientado pela fidelidade à "tradição"

adversary de processo penal, que serve como parâmetro para questionar e invalidar

ações arbitrárias, de índole inquisitorial, no marco do Estado de Direito.574

O fato é que o USA Patriot Act, juntamente com a "military order", instauraram o

mais evidente Estado de Exceção, conforme foi demonstrado por Giorgio Agamben:

O significado biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o

direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente

na "military order", promulgada pelo presidente dos Estados Unidos, no dia 13 de

novembro de 2001, e que autoriza a "indefinite detention" e o processo perante as

"military comissions" (não confundir com os tribunais militares previstos pelo

direito da guerra) dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades

terroristas.

Já o USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001,

permite ao Attorney general "manter preso" o estrangeiro (alien) suspeito de

atividades que ponham em perigo "a segurança nacional dos Estados Unidos"; mas,

no prazo de sete dias, o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei

de imigração ou de algum outro delito. A novidade da "ordem" do presidente Bush

está em anular radicalmente o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa

forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.575

Desse modo, os talibãs capturados no Afeganistão e outros suspeitos de terrorismo

não gozavam do status de prisioneiros de guerra e assim não podiam contar com a proteção da

Convenção de Genebra. Tampouco podiam contar com as salvaguardas conferidas pelo

direito interno. Não eram considerados prisioneiros, nem acusados, mas apenas detainees, ou

detidos. Por esse eufemismo, "a vida nua atinge sua máxima indeterminação" na base de

Guantánamo, conclui Agamben576

. Mas o tradicional argumento de que tais medidas servem

para que as democracias ocidentais se posicionem frente ao "choque de civilizações" é

refutado pela constatação de Zizek sobre a evidência de "choques" dentro da mesma 574

PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: O acordo sobre a pena e o modelo acusatório no

Brasil: a transformação de um conceito. In: In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de et al.

Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.

50. 575

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007a.p. 14. 576

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial,

2007a.p. 15.

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157

civilização, no mais das vezes, provocados por interesses econômicos e geopolítcos577

e que

no plano interno se traduz pela afirmação de existência de um permanente e cotidiano estado

de emergência a justificar práticas marcadas pela inquisitoriedade, mesmo sob o manto

jurídico-constitucional da acusatoriedade.

O cálculo político-utilitarista e a postura pragmatista são especialmente nefastos no

Processo Penal, pois vão permitir a sua instrumentalização, uma vez que são fortemente

amparados em escopos metajurídicos, os quais, para que se realizem, vão sempre depender de

uma "tomada de consciência teleológica", que parte do seguinte pressuposto: "Todo

instrumento, como tal, é meio; e todo meio só é tal e se legitima, em função dos fins a que se

destina"578

. No particular aspecto do Processo Penal, a proeminência dos escopos

metajurídicos reforça o papel centralizador da jurisdição e, sobretudo permite reconhecer ao

judiciário um papel de protagonista a quem é atribuída a missão de implementar a política de

segurança pública, subvertendo até mesmo o princípio acusatório, quando os fins

aparentemente justificam, como no caso da criminalidade organizada579

.

O que se nota em diversos trabalhos de pesquisa e de doutrina é que há uma

tendência generalizada em "reforçar os poderes do juiz", flexibilizando a técnica processual

como forma de obter resultados mais úteis, como defende José Roberto dos Santos Bedaque:

Em primeiro lugar é preciso abandonar a idéia de que os atos processuais devem

atender rigorosamente a determinada forma previamente estabelecida, não tendo o

juiz poderes para flexibilizar os rigores da lei. O formalismo exagerado é

incompatível com a visão social do processo. Não podemos olvidar que o Estado

está comprometido com a correta solução das controvérsias, não com a forma do

processo. Este constitui fator de garantia de resultado e de segurança para as partes,

não podendo ser objeto de culto.

Quanto mais o legislador valer-se de formas abertas, sem conteúdo jurídico definido,

maior será a possibilidade do juiz adaptá-la às necessidades do caso concreto. Esse

poder não se confunde com a denominada "discricionariedade judicial", mas implica

ampliação da margem de controle da técnica processual pelo julgador.580

A preocupação de encontrar o meio termo entre o juiz protagonista/ativista e o juiz

inerte está presente na abordagem de José de Assis Santiago Neto, só que com intenção

diametralmente oposta, pois visa rechaçar o instrumentalismo jurisdicêntrico:

O processo penal no paradigma do Estado Democrático de Direito não comporta o

577

ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Tradução de Paulo César Castanheira. São Paulo: Boitempo,

2003. p. 61. 578

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

180. 579

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 163 580

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 3. ed. São Paulo:

Malheiros, 2010. p. 109-110.

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158

juiz ator, protagonista, este modelo de juiz volta-se ao inquisidor, prima por colocar

a hipótese em preponderância sobre os fatos. O juiz deve deixar às partes a atuação

ativa, apenas interferindo para fins de assegurar a isonomia entre os sujeitos. Isso

não faz com que o julgador se torne condescendente com o crime ou com a

criminalidade, mas apenas o faz imparcial e assegura às partes a isonomia necessária

para que possam participar da construção do provimento.

O juiz no Estado Democrático de Direito não é nem o juiz inerte do paradigma

liberal e nem o juiz justiceiro do Estado Social, deve encontrar seu lugar no

equilíbrio como garantidor dos direitos fundamentais e, consequentemente,

assegurar que as partes tenham iguais oportunidades de fala e de produção

probatória durante o procedimento.581

Há, como se percebe, uma forte preocupação dogmática que pode ser colocada nos

seguintes termos: encontrar um modo de compatibilizar a autonomia pública com a autonomia

privada no âmbito do Direito Processual Penal, segmento dos mais sensíveis no que diz

respeito às consequências de sua aplicação, pois repercute diretamente sobre direitos

fundamentais. Há uma conflitualidade entre julgamentos pela imprensa e julgamentos pelo

direito, que reflete um conflito entre segurança pública de um lado e liberdade individual do

outro, conflito que muitas vezes se resolve pela adesão à “ditadura do senso comum como

agente municiador de expectativas securitárias de lei e ordem”582

.

5.3.2 O dogma da acusatoriedade

Diante da tentativa de apresentar soluções legislativas pretensamente eficazes para

distanciar o juiz da gestão da prova, ou do simples apelo à adesão a uma ideologia

democrática, é que a defesa da acusatoriedade assume um caráter dogmático, como fica

evidenciado, por exemplo, nesta assertiva de Aury Lopes Júnior:

O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo, frente à atual estrutura

social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranqüilidade psicológica

do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado que

deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva no

processo penal. Também conduz a uma maior tranqüilidade social, pois evita-se

eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz

“apaixonado” pelo resultado de sua labor investigadora e que, ao sentenciar, olvida-

se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o

início da investigação.583

581

SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: a

participação dos sujeitos no centro do palco processual. 2011. 179f. Dissertação (Mestrado em Direito

Processual) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo

Horizonte. p. 131-132. 582

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 53. 583

LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal (fundamentos da instrumentalidade

constitucional). 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 165.

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159

A acusatoriedade como postulado constitucional inafastável aparece na teoria de

Luigi Ferrajoli sob o epíteto de garantismo. O embate dogmático entre acusatoriedade e

inquisitoriedade é apresentado como a oposição entre garantismo e autoritarismo, vista como

a busca de uma alternativa entre duas epistemologias judiciais distintas, que se expressam

antagonicamente da seguinte forma: cognitivismo e decisionismo, comprovação e valoração,

prova e inquisição, razão e vontade, verdade e potestade584

.

Para o autor esta é a versão atual da antiga contenda entre o mito iluminista da

certeza jurídica objetiva e o decisionismo subjetivista que decorre de um embate mais amplo

entre dogmatismo realista e ceticismo relativista. Neste ponto, o autor faz menção a Popper

reconhecendo seu mérito em afirmar que tais correntes seriam as faces opostas de uma mesma

moeda e que ambas são compostas por “verificacionistas” e “justificacionistas desenganados”

que acabam estimulando o irracionalismo ao tentar em vão justificar suas crenças

científicas585

. No âmbito judicial, demonstra que a decisão se dá por uma cadeia de silogismos

distintos. Primeiramente, por meio de uma inferência indutiva chega-se a uma conclusão de

fato. Em seguida, por uma inferência dedutiva chega-se a uma conclusão de direito e, por fim,

por um silogismo prático chega-se a uma conclusão dispositiva. Tal metodologia, reconhece o

autor, também é imperfeita, pois a indução fática é, sem dúvida, probabilista, ao passo que a

dedução também inclui escolhas nas premissas de direito, “inevitavelmente opinativas e

igualmente subjetivas”586

.

Para Ferrajoli, ao contrário de outros campos da ciência, o Direito, por ser uma

construção humana decorrente de um universo linguístico artificial, permite com suas técnicas

estabelecer controles lógicos e empíricos sobre as decisões, convalidando-as ou invalidando-

as e, com isso, subtraindo-as ao erro e ao arbítrio. O problema do garantismo penal seria,

então, “elaborar estas técnicas no plano teórico, torná-las vinculantes no plano normativo e

assegurar sua efetividade no plano fático”587

.

O fato é que, no plano legislativo ou no plano ético, os antídotos ou vacinas contra a

atuação deletéria de juízes apaixonados, paranóicos ou simplesmente autoritários, têm se

mostrado inócuos, pois são construídos apenas dogmaticamente. É possível sustentar que a

584

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38. 585

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 51. 586

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 53. 587

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p.57.

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160

pretensão de um sistema acusatório puro não assegura democraticidade, pois se estabelece por

uma autocontradição performativa que precisa ser objeto de arguição crítica permanente ao

invés de simplesmente acolhida como expressão de legitimidade, pelo fato de se fundar numa

ética discursiva fundada na "autotutela de direitos"588

.

588

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 165.

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161

6 A PROCESSUALIDADE PENAL DEMOCRÁTICA A PARTIR DA CLÁUSULA

DUE PROCESS

Qualquer abordagem teórica do Processo Penal deve estar associada a uma incursão

acerca do paradigma estatal vigente no texto constitucional. O Estado Democrático de Direito

é que vai permitir a abertura teórica pela processualidade, que por sua vez, permitirá a

superação do embate dogmático entre aucsatoriedade e inquisitoriedade.

Tendo como suporte conjecturas teóricas de grande relevância para o discurso

jurídico, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito pressupõe o princípio da

reserva legal, o que faz com que o próprio Estado não se defina como um “ente que orbita ou

exorbita a lei, mas uma instituição criada pela lei e posta a serviço da lei”589

. Essa concepção

leva a uma compreensão do Estado como “Administração Governativa”, instituição jurídico-

constitucional, cuja atuação, seja no âmbito da administração em sentido estrito, do exercício

da função legislativa ou do exercício da função jurisdicional, deve se dar nos limites da

competência legal de seus agentes, mandatários, concessionários, permissionários ou

credenciados diversos590

.

Semelhante concepção de Estado, ao ser estudada em concurso com a teoria da

Democracia, apresenta uma intrínseca relação com a epistemologia processual.

6.1 Sobre Estado, Democracia e Processo

Segundo Ronaldo Brêtas, o "Estado Constitucional Democrático de Direito" adquire

uma dimensão sem precedentes na medida em que a democracia contemporânea, "mais do

que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos

constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder". Isso porque o "poder"

emana do povo, como "comunidade política", formada por "governantes e governados", todos

submetidos a um sistema jurídico que resulta da articulação dos princípios do Estado

Democrático e do Estado de Direito, "cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas

normas constitucionais"591

.

Para definir o Estado nesses termos foi necessário que a Ciência Jurídica, que se

589

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 48. 590

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 48. 591

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2012. p. 58-59.

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162

inaugura pela negação do dogma e pelo esclarecimento do fetiche das formas jurídicas592

,

criasse as condições para que pudesse empreender suas articulações a partir de um direito

constitucional que articula horizontalmente uma diversidade de instituições jurídicas em que o

Estado comparece como uma delas em um plano poliárquico, numa perspectiva que supera as

concepções arcaicas em que a relação Estado-sociedade-indivíduo se dá de modo autárquico,

hierárquico, autocrático, verticalizado, com o Estado exercendo uma primazia sobre as demais

instituições593

.

A poliarquia se caracteriza pela implementação de um conjunto de instituições sem

as quais, afirma Robert Dahl, não é possível instaurar uma democracia em larga escala. Suas

principais características seriam a plena cidadania, por um amplo direito de oposição aos

membros do governo a ponto de poder fazê-los abandonar seus cargos pelo mecanismo do

voto. A plena cidadania seria assegurada por sete instituições594

, que devem ter atuação

efetiva e permanente: (1) os ocupantes dos cargos com poder de decisão política devem ser

eleitos; (2) estas eleições devem ser livres e imparciais; (3) o sufrágio deve ser inclusivo e

acessível à quase totalidade da população adulta; (4) o direito de ocupar cargos públicos

também deve ser acessível à quase totalidade de adultos; (5) liberdade de expressão e de

crítica; além de assegurar uma (6) variedade de fontes de informação e (7) autonomia

associativa.

Contudo, Robert Dahl demonstra que a poliarquia nos Estados nacionais é ainda

insuficiente no que diz respeito à plena participação dos cidadãos e ao pleno controle das

decisões dos governantes, afirmando que, "comparada com outras opções históricas e atuais, a

poliarquia é um dos mais extraordinários inventos humanos, embora seja inquestionável que

não chega a cumprir com um processo democrático"595

(tradução nossa). O autor sustenta que

nos países que experimentaram a poliarquia há certo fastio, certo desdém com suas conquistas

e um clamor por mais avanços. No entanto, em outro extremo, há países que não oferecem as

condições para que a poliarquia se instaure, sendo esse o grande desafio da pós-modernidade.

É que a democracia institucional não dispensa os homens de responsabilidades, o que muitas

vezes é esquecido pelos seus críticos que insistem em não distinguir o aspecto pessoal do

institucional, como bem demonstra Popper:

592

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 2. 593

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 30. 594

DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992. p. 267 595

"Comparada com sus otras opciones históricas y actuales, la poliarquía es uno de los más extraordinarios

inventos humanos, aunque es incuestionable que no llega a cumplir con un proceso democrático." (DAHL,

1992,p. 269).

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163

A maior parte dêles (os críticos) mostra-se insatisfeita com as instituições

democráticas por achar que estas não impedem necessàriamente que um estado ou

uma política decáiam de certos padrões morais ou de certas exigências políticas que

podem ser tão prementes quanto admiráveis. Mas tais críticos dirigem mal seus

ataques; não compreendem o que se pode esperar das instituições democráticas, nem

qual seria a alternativa para as instituições democráticas. A democracia (usando esta

etiqueta no sentido acima sugerido) fornece o arcabouço institucional para a reforma

das instituições políticas. Torna possível a reforma das instituições sem usar de

violência, e portanto, o uso da razão na formulação de novas instituições e no

reajustamento das antigas.596

Para Popper, as instituições não fornecem os conteúdos de razão que vão nortear seu

funcionamento e desenvolvimento. Esses continuam a depender do padrão moral e intelectual

dos cidadãos e por essa razão, não se pode censurar a democracia pelos problemas verificados

em um estado democrático. Essa censura deve ser feita aos cidadãos que fazem mal uso das

instituições. Tais concepções, que apontam para uma democracia institucionalizada, se

mostram de grande proveito para os desenvolvimentos da presente pesquisa, pois é o Processo

a instituição à qual pode ser atribuída, com razoável grau de confiabilidade, a função de

articular discursivamente as demais.

6.1.1 A processualidade democrática como marco teórico da Pós-modernidade estatal

Na concepção desta pesquisa, o salto para uma etapa superior de democratização,

que segundo Robert Dahl, não foi transcendida por nenhum país597

, seria possível pela

compreensão de que o pluralismo ou diferença só se garante pela igualdade de discutir de

forma incessante no espaço processual, acerca da constitucionalidade das decisões políticas,

bem como acerca da criação, modificação, aplicação e extinção de direitos. O embate deixa de

ocorrer no espaço físico e passa para o espaço processual598

, pelo confronto de teorias

concorrentes resultando em um "debate crítico apreciativo"599

, mediante uma

"procedimentalidade tecnicamente estruturada segundo os princípios do contraditório,

isonomia e ampla defesa"600

. Tal concepção de Processo permite compreendê-lo como

instituição que pode auxiliar os homens a enfrentar o embate entre racionalismo e

irracionalismo que ainda persiste em vários campos do conhecimento e, sobretudo na política

596

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1974b. v.1. p. 142. 597

DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós,. p. 269. 598

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012.p. 61. 599

POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto

Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 24. 600

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 165.

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164

e na ciência jurídica601

.

As inquietações de Robert Dahl poderiam ser amenizadas (ou talvez aprofundadas)

se concluirmos que o salto para a democracia plena se dá pela adoção radical da concepção de

processualidade democrática602

, como bem demonstra Andréa Alves de Almeida:

[...]a discursividade no espaço processual possibilita que o direito democrático no

nível instituinte e instituído não fique na esfera da subjetividade, da realidade nua

(ideologizada) ou na "comunidade prévia de sentido". A processualidade jurídica

possibilita que o discurso na democracia seja instalado num espaço em que os

problemas, as teorias e os argumentos críticos sejam os principais fundamentos para

tomada de decisão e não as expectativas da tradição e as probabilidades, pois, como

já discorremos, o probabilismo inibe a crítica e ofusca o contraditório e a ampla

defesa, reduzindo-os à dialética.603

Essa concepção, segundo Rosemiro Pereira Leal, é que vai superar os modelos

democráticos até então concebidos nas linhas liberal e republicana. Mas enquanto Habermas

aponta como saída uma teoria do discurso em que a política se estabelece como "um sistema

de ação ao lado de outros" legitimamente estabelecidos, admite que a comunicação entre este

sistema e os demais pode se dar "informalmente, nas redes da opinião pública"604

ou no vazio

normativo de uma "esfera pública"605

, Rosemiro Pereira Leal aponta o caminho do devido

processo constitucional:

O que os liberais e republicanos ainda não perceberam é que o povo é um conjunto

de indivíduos circunscritos a um recinto espacial no qual a plebiscitarização do

direito, ao se fazer pela processualidade, em paradigmas institucionais democráticos

já constitucionalizados, não ocorre pela mobilização ou escuta provocada das

massas populares, mas pela fiscalização jurídico-processual abstrata e concreta,

irrestrita e incessante, da constitucionalidade no espaço procedimental e não físico-

nacional.606

601

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1974c. v.2.

. p. 231. 602

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012. p. 124. 603

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012. p. 74. 604

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton

Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a. p. 292. 605

"A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não

constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de

pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear

seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis"..

"Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir

comunicativo implicando apenas o domínio de uma linguagem natural." (HABERMAS, 1997, p. 92). v.2. 606

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 181.

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165

No Direito Processual Penal, o caráter assistemático da esfera pública só produziria

iniquidade. No entanto, há que se rechaçar o arcaísmo expresso pela busca de primazia e

status de sistema entre os princípios acusatório e inquisitório607

. Para que se torne possível o

giro espistemológico necessário à efetiva constitucionalização do Processo Penal, não basta

que nos apeguemos a um garantismo quimérico que defende um Processo Penal sem Prisão

Preventiva, sob o argumento de que tal medida cautelar ofende o "senso comum de justiça",

sendo que sua supressão é esperada pela confiança "na responsabilidade intelectual e política

dos juristas e dos legisladores" para "defender e consolidar os valores de razão, de tolerância e

de liberdade" que formariam a estrutura básica "daquela conquista de civilidade que é a

presunção de inocência"608

.

A processualidade penal democrática vai além de uma esperança ingênua na

prevalência natural de valores éticos na consciência dos juristas, pois conforme demonstra Rui

Cunha Martins609

, ela expressa um sistema contrário de "inquisitivo", contrário de "misto" e

mais do que "acusatório"610

. No mesmo sentido, Rosemiro Pereira Leal afirma que o Processo

de Conhecimento, reconhecido como "modalidade de direito fundamental

constitucionalizado", ou seja, instituído conforme os princípios da ampla defesa, do

contraditório e da isonomia, "proscreveu, de vez, os sistemas inquisitório e dispositivo de

livre convicção do juiz"611

. Disso decorre que é pela processualidade democrática que se torna

possível assentar o discurso jurídico-penal em bases epistemológicas não-retóricas,

dessubjetivadas e que sejam capazes de estabelecer novas demarcações para a relação

indivíduo-sociedade-Estado.

6.2 Da paridade excludente na Inglaterra medieval à ampliação do alcance da cláusula

due process no direito norte-americano

A cláusula due process of law, expressamente contida no art. 5º, inciso LIV da 607

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 54. 608

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 450. 609

O professor português usa a expressão "democraticidade processual". Parece não haver razão para preferi-lo ao

invés de "processualidade democrática", pois esta última se mostra mais adequada aos propósitos desta pesquisa

na medida em que se pretende perpassar modelos, sistemas ou princípios processuais que no curso histórico se

mostraram incompatíveis com a democracia jurídica. Falar em "processualidade democrática" permite um

contraponto com realidades processuais autoritárias ou discricionárias. (MARTINS, 2012, p. 71;85). 610

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 93. 611

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 141.

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166

Constituição brasileira de 1988, é atualmente concebida como Devido Processo

Constitucional que pode ser definido como meta-princípio articulador de vários outros,

institutivos (fundantes)612

e informativos, cujos contornos teóricos levam a considerá-lo,

conforme Ronaldo Brêtas, "como um bloco aglutinante e compacto de direitos e garantias

fundamentais inafastáveis, ostentados pelas pessoas (povo) quando deduzem pretensão à

tutela jurídica nos processos, perante os órgãos jurisdicionais"613

. No entanto, a origem

histórica da cláusula aponta para uma garantia seletiva deferida pelo Rei João Sem-Terra aos

Barões e Prelados ingleses.

Em 1215, o Rei João Sem-Terra, que sucedera seu irmão Ricardo I (Ricardo

Coração-de-Leão), morto em 1199, estava há mais de 15 anos no poder, e havia levado a

Inglaterra à ruína em todos os sentidos: militar, econômica, territorial e cultural. A

insatisfação era generalizada, sobretudo entre os Barões que sofriam constantemente com

arbitrárias expropriações. Formaram um auto-intitulado "Exército de Deus" e, liderados pelo

Cardeal Lagton, marcharam sobre Londres e exigiram do Rei a outorga de uma Carta de

Direitos, o que ocorreu em 24 de maio de 1215614

.

A Magna Cartha Libertatum (Great Charter), de início, não reconhecia as mesmas

franquias e imunidades a todos os cidadãos. A Carta contemplava apenas os homens livres

(freeman) que conquistaram a prerrogativa de serem julgados pelos seus pares (his equals)

segundo o costume da terra (law of the land). A expressão due process of law, no entanto,

passou a constar da Magna Cartha somente em 1354, quando seu alcance foi ampliado pelo

Rei Edward III, ocasião em que passou a contemplar todo e qualquer súdito, sendo

considerada até hoje o marco de nascimento do direito inglês615

. Pontes de Miranda adverte,

contudo, que "o valor da Magna Carta é restrito à sua obtenção em si: o interesse baronial

contra o despotismo do rei, tal a razão do ato de 1215. Não se lhe peça concepção do "homem

como titular de direitos”."616

. Michele Taruffo, por sua vez, se refere à Magna Cartha

Libertatum como a primeira grande constituição da história europeia (tradução nossa)617

que

612

"Os princípios fundantes são aqueles que se desdobram a partir da cláusula do due process of law dos

americanos, ou do law of the land dos ingleses, como regras que sustentam aquele que é, por assim dizer, a

cláusula pétrea ou a matriz dos processos penais modernos: o devido processo legal". (MACHADO,

2009.p.158). 613

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2012. p. 129. 614

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,

1999. t. 1. p. 45. 615

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 17. 616

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História e prática do habeas corpus. Campinas: Bookseller,

1999. t. 1. p. 55. 617

“A Londra, poco dopo il 15 giuno, i lre Giovanni fu costretto dai suoi baroni a concedere la Magna Charta

Libertatum, che è considerata come la prima grande costituzione della storia europea. Il re probabilmente non si

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167

deu início a uma série de outras constituições e à longa história do constitucionalismo inglês.

O pioneirismo da Magna Cartha também é ressaltado por Simone Goyard-Fabre, que

a aponta como inspiração para as declarações de direitos que se sucederam nos séculos

seguintes, mas deixa claro que os textos modernos é que são mesmo os mais significativos em

termos de reconhecer e assegurar os "direitos do homem": são eles: a Petition of Rights, de

1628, o Habeas Corpus Act, de 1679 e o Bill of Rigths, de 1689. Na Inglaterra, a Declaração

de Independência, nas colônias norte-americanas, em 1776 e a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, na França, em 1789618

.

Mas é no constitucionalismo norte-americano que a cláusula do devido processo

legal ganha especial relevância, porém somente após a Guerra Civil (1861-1865). O fato é que

"já em 1776 a "Declaração dos Direitos" de Maryland já fazia menção à law of the land como

via garantista e ativista dos direitos de vida, liberdade ou propriedade (life, liberty or

property)619

". À época da promulgação da constituição, em 1787, Thomas Jefferson, o maior

defensor da inserção de um Bill of Rights no texto, estava na França acompanhando os

acontecimentos políticos que antecederam a Revolução, sendo então vencido neste intento.

Mas em 1791 foram acrescidas 10 emendas ao texto original, que constituíram uma

Carta de direitos (Bill of Rights). A Emenda nº 5 tratou de assegurar o Devido Processo Legal

e o direito à não auto-incriminação, voltados tão somente para causas criminais. Contudo, a

imprecisão do texto permitia violações e discriminações no âmbito dos Estados que só

passaram a se submeter à cláusula através da Emenda XIV, ratificada por 3/4 dos legislativos

estaduais, em 1868620

.

Essa ampliação da cláusula não foi apenas quanto à sua abrangência territorial, mas

também com relação ao seu próprio conteúdo e passou a ter um sentido de proteção geral

(equal protection of the laws) contra as possíveis iniquidades estatais (substantive due process

of law), não somente como cláusula assecuratória de garantias processuais (procedural due

process of law)621

. No seu sentido substancial, a cláusula do Devido Processo Legal se

rendeva conto del fatto che stava dando inizio ad una seria di altre costituzioni, e soprattutto ad una lunga storia

del diritti costituzionale inglese”. “Em Londres, logo após o 15 de junho, o rei João foi obrigado pelos seus

barões a conceder a Magna Charta Libertatum, que é considerada como a primeira grande constituição da

história europeia. O rei provavelmente não se deu conta do fato de que estava dando início a uma série de outras

constituições, e sobretudo a uma longa história do direito constitucional inglês.” (tradução nossa) (TARUFFO,

2009, p. 3). 618

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 330-331. 619

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).

O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,

2011. p. 582. 620

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28. 621

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 28.

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168

conjuga com os direitos de vida e liberdade "como propriedade"622

.

Trata-se de uma concepção que tem origem no pensamento de John Locke, que

engloba em sua definição geral de "propriedade", a "vida, a liberdade e os bens", sendo a sua

preservação e gozo em segurança "o objetivo capital e principal da união dos homens em

comunidades sociais e sua submissão a governos"623

. A law of the land seria, assim, portadora

de uma imanência que se caracteriza pelo ativismo e o substancialismo, sendo manejada

convenientemente pelos interesses culturalistas e patrimonialistas dos homens livres e iguais,

havendo, neste ponto, uma equivalência entre os sistemas jurídicos de Common Law e Civil

Law, como espaços de articulação mítico-utópica por uma autoridade jurisdicente, segundo

observação de Rosemiro Pereira Leal624

.

Interessante notar que para Locke o "estado de natureza", mesmo sendo um "estado

de liberdade", não é um "estado de permissividade", pois nele o homem estaria submetido ao

direito natural e, por tal razão, não poderia dispor de sua própria vida e nem de qualquer

outra, salvo para a própria preservação625

. Diferentemente de Hobbes, o "estado de natureza"

em Locke não se traduz na guerra de todos contra todos. A passagem do "estado de natureza"

para o "governo civil" se deu para que o gozo da propriedade não estivesse sempre exposto à

insegurança e à precariedade, razão pela qual as constituições de inspiração lockeana não se

descuidaram da cláusula do substantive due process, que se estabelece como mecanismo de

contenção legislativa.

Mesmo diante de todo esse desenvolvimento histórico que consolidou um sistema de

contenção do poder jurisdicional em face de liberdades individuais, acusatoriedade e

inquisitoriedade acabam sempre diluídos pela legislação infraconstitucional, à medida que

cedem à ideologia predominante: acusatório quando prevalece a ideologia do processo como

um problema das partes e o juiz, por obrigação de imparcialidade, deve manter-se como um

espectador. Inquisitório, quando prevalece a ideologia de que o processo tem por fim a busca

da verdade, devendo o juiz se portar como interventor, sendo portador de iniciativas e poderes

para produzir provas de ofício626

.

622LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).

O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,

2011. p. 582. 623

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.

ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 156. 624

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 69 625

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.

ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 84. 626

QUIJANO, Jairo Parra. Racionalidad e ideología en las pruebas de oficio. Bogotá: Editorial Temis, 2004.p.

12.

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169

6.3 A releitura da cláusula due process no paradigma democrático

A concepção pós-moderna da cláusula Devido Processo Legal passa pela superação

das concepções de cunho excludente e patrimonialista acima abordadas, conforme a crítica de

Rosemiro Pereira Leal:

O devido é legislativamente posto sob sanção, punição, castigo, aos infratores e

delinquentes (o potus). A autoridade sancionadora (hércules dworkiano) é dotada

aqui de uma pesada carga de saber (integridade) por juízos monológicos de

adequabilidade principiológica, conveniência, equidade, justiça e ponderabilidade,

encarregada que é de uma vigilância perpétua que só a ela cabe tecer e conduzir.627

O Devido Processo Legal também não se destina estrategicamente à realização de

uma ordem concreta de valores oriunda de um pacto fundamental que materializa uma

determinada identidade ético-cultural, como querem os comunitaristas628

. Nessa conjectura, é

perceptível a singularidade com que o tema é abordado por Rosemiro Pereira Leal, de modo a

encaminhar a concepção pós-moderna do Devido Processo Legal, que, uma vez assegurado

pelo texto constitucional, passa a ter "como lugar devido de sua criação, a Lei

Constitucional"629

, ou, Devido Processo Constitucional. Essa seria uma inigualável conquista

teórica, cuja observância estrita é a única fonte de legitimidade das decisões jurisdicionais630

.

Mais do que um princípio de Direito Processual, o devido processo é concebido como devir:

[...] a partir de uma linguisticidade jurídica que é marco interpretante de criação

(vir-a-ser) e atuação de um sistema normativo de tal modo a permitir a fusão

biunívoca de vida-contraditório, liberdade-ampla defesa, isonomia-dignidade

(igualdade), como direitos fundantes (fundamentais) de uma constitucionalidade

instrumental à sua respectiva implementação.631

A Constituição passa a ser compreendida como um discurso que se encaminha por

uma teoria Neoinstitucionalista632

do processo. Neste ponto da investigação cumpre anotar

627

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).

O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,

2011. p. 587. 628

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Devido processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000b.

p. 67. 629

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.

42. 630

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.

45. 631

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al. (Coord.).

O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum,

2011. p. 592. 632

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo

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170

que na atual quadra dos estudos jurídico-constitucionais devem ser acolhidas as concepções

que definem princípio como norma633

. No Direito Processual Penal, a observância dos

princípios constitucionais institutivos é inafastável, para que se assegure uma interpretação

adequada ao texto fundamental, pois como demonstram Flaviane de Magalhães Barros e

Felipe Daniel Amorim Machado, "o modelo constitucional do processo é uma base

principiológica uníssona, na qual os princípios que o integram são vistos de maneira co-

dependente"634

, uma vez que qualquer violação ou inobservância a um dos princípios

fundantes faz com que todos os demais também sejam afetados.

O fato é que qualquer abordagem constitucionalizada do processo e, sobretudo do

Processo Penal, ficaria prejudicada sem as incursões acima apresentadas, que inauguram na

Teoria do Direito o conceito de isomenia no qual se define, conforme já vimos, como

referente lógico-jurídico à disposição dos destinatários normativos, atuando na construção,

aplicação, modificação ou extinção de direitos. Essa é a concepção pós-moderna do Devido

Processo Legal, em que se articulam os princípios do Contraditório, Ampla Defesa e

Isonomia, com os direitos líquidos, certos e exigíveis de Vida, Liberdade e Igualdade635

.

6.4 Contraditório como direito fundamental de vida plena

Como princípio institutivo do processo, tendo em vista a sua expressa previsão

constitucional, o Contraditório, segundo Dierle José Coelho Nunes, com base na doutrina de

Nicola Picardi, tem seus alicerces na antiga parêmia grega “audiatur et altera pars”. Em texto

especializado demonstra que o princípio, que teve seu ápice no Estado Liberal em que o papel

das partes era privilegiado, foi posteriormente mitigado pelo Estado Social em que prevaleceu

o princípio autoritário, instaurando um evidente ativismo judicial. Para o autor, o princípio do

Contraditório ganhou “novos horizontes” nos estados constitucionais do segundo pós-guerra,

proporcionando o que chama de "comparticipação na estrutura procedimental"636

.

Na teoria de Elio Fazzalari637

, a projeção do contraditório como diferença específica

Horizonte: Arraes, 2013; ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade

metalinguística. Curitiba: Editora CRV, 2012. 633

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdez. Madrid:

Centro de Estudos Constitucionales, 1993p. 83; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:

Martins Fontes, 2002. p. 36. 634

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo

Horizonte: Del Rey, 2011. p. 20-21. 635

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 271 636

Princípio do Contraditório. p. 41. 637

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006.

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171

capaz de distinguir o Processo do Procedimento, faz com que o princípio seja estudado com

destaque ainda maior. Como divulgador maior da obra de Fazzalari no Brasil, Aroldo Plínio

Gonçalves apresenta uma nova dimensão do contraditório:

O contraditório não é apenas “a participação dos sujeitos no processo”. Sujeitos do

processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as

partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação, em

simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença,

daqueles que são os “interessados”, ou seja, aqueles sujeitos do processo que

suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.638

Assim, em se tratando de Direito Processual Democrático não é possível mais

admitir decisão jurídica construída sem que sejam levadas em consideração as argumentações

das partes interessadas e que serão por ela afetadas, pois é pela controvérsia que o

Contraditório se manifesta na sua mais completa configuração639

.

Segundo a conclusão de André Cordeiro Leal, uma decisão jurisdicional que

desconsiderasse o Contraditório sequer poderia ser reconhecida como tal, pois lhe faltaria

legitimidade. É que existe um entrelaçamento lógico-jurídico entre o Contraditório e o

princípio da fundamentação das decisões, o que faz com que os argumentos lançados pelas

partes no iter procedimental devam obrigatoriamente ser observados no texto decisório640

. Por

essa razão, percebe-se que, especialmente no processo jurisdicional, a presença do

Contraditório é exigida de modo inafastável como pressuposto lógico da decisão, a qual, sem

que este princípio seja observado em toda sua extensão, jamais se revestirá de legitimidade,

faltando-lhe assim um atributo indispensável a qualquer decisão tomada pelo Estado na órbita

democrática. O Contraditório é que permitirá a comparticipação paritária das partes no

procedimento formativo da decisão jurisdicional, removendo o desequilíbrio originário que

surge pelo princípio da demanda, ou seja, permitindo à outra parte (audiatur et altera pars)

replicar as deduções da parte autora641

.

Mas além dessa posição de princípio institutivo (fundante) a reger a função

jurisdicional, o Contraditório adquire na processualidade democrática a possibilidade de

encaminhar juridicamente "a indissolúvel associação homem-ciência na construção da

638

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 120 639

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 125. 640

LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões no direito processual

democrático. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 105. 641

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. p. 108.

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172

sociedade aberta, ao combate entre teorias e não entre os homens que as enunciam"642

. É pelo

princípio do Contraditório que a "vida" se enuncia processualmente no Estado Democrático

de Direito.

Como demonstra Giorgio Agamben, os gregos se utilizavam de dois termos distintos

para expressar o que hoje designamos como "vida": zoé que designava o simples ato de viver,

comum a todas as criaturas. É a vida portadora de primordialidade e eternidade. Já o termo

bíos designava a forma de viver de um indivíduo ou grupo. É a vida cotidiana e passageira643

.

Essa distinção pode nos levar a entender que o direito "à vida", na constitucionalidade

contemporânea, deve ir além do direito à simples existência física, buscando abranger as

dimensões que integram a Vida Activa, na acepção de Hannah Arendt, composta de três

atividades fundamentais: Labor, Trabalho e Ação. A primeira, ligada ao desenvolvimento

biológico e cuja condição humana correspondente, é a própria vida. A segunda, ligada ao

artificialismo das coisas elaboradas pelos homens, cuja condição correspondente, é a

mundanidade humana. Por fim, a Ação, que diz respeito às relações entre os homens, sendo a

própria condição de existência de toda atividade política, fundada na pluralidade, pois mesmo

sendo todos humanos, não somos iguais individualmente a nenhuma outra pessoa que existiu,

exista ou venha a existir644

.

Os homens são condicionados não só pela natureza, mas também pelas coisas e por

que não, pelas instituições que eles mesmos criam. Essas condições que se estabeleceram a

partir da organização humana em sociedade eram vistas por Rousseau como causa daquilo

que o homem produz de mais destrutivo como as guerras, vinganças, assassinatos, roubos e

revoluções. O Homem, no Estado de Natureza, seria portador nato de um sentimento de

piedade e justiça em razão de seu desapego às "paixões artificiais". É o mito do bom

selvagem:

[...] o homem selvagem e o homem policiado diferem tanto no fundo do coração e

das inclinações que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao

desespero. O primeiro aspira só ao repouso e à liberdade, quer apenas viver e ficar

ocioso, e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença

por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se,

atormenta-se continuamente para encontrar ocupações ainda mais laboriosas;

trabalha até a morte, até corre ao seu encontro para se colocar em condição de viver

ou renuncia à vida para alcançar a imortalidade.645

642

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 194. 643

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 9. 644

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2001. p. 16. 645

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.p. 241-242.

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173

O "homem policiado" de Rousseau é aquele sujeito à autoridade, à proteção e à

regulamentação do Estado. É o componente da sociedade civil. É o homem assujeitado ao

"biopoder" estatal como foi demonstrado por Foucault.

6.4.1 O Contraditório diante do "Biopoder"

A narrativa foucaultiana apresenta uma trajetória da relação indivíduo-poder em três

estágios básicos646

: primeiramente no plano do exercício da soberania em que a vida do súdito

tem um valor neutro, na medida em que o soberano detém o poder de vida ou morte decide

sobre "fazer morrer e deixar viver". Mas a ideia do contrato social não engloba o direito de o

soberano "fazer morrer", pois o contrato somente se justifica na medida em que os indivíduos

a ele recorrem "premidos pelo perigo e pela necessidade", em busca de proteção. Surge então

um novo método de poder que consiste em "fazer viver e deixar morrer".

Essa nova realidade é que vai permitir o aparecimento de mecanismos, técnicas e

tecnologias que vão caracterizar os outros dois estágios da relação indivíduo-poder.

Primeiramente, o "poder disciplinar" exercido diretamente sobre o corpo através do

treinamento, da punição, do alinhamento, da classificação e da vigilância. Em seguida, o

chamado "biopoder" (ou biopolítica). Uma nova tecnologia do poder que cuida da

regulamentação não do homem-corpo, mas do homem-espécie na sua dimensão coletiva, pois

atua sobre os fenômenos de massa, como natalidade, mortalidade, doenças, previdência,

seguridade e população.

Foucault conclui que disciplina e regulamentação (biopoder ou biopolítica) surgem

em momentos históricos distintos, mas próximos, na transição do século XVIII para o XIX.

Possuem também uma diferença de nível, pois estão sobrepostas. Mas nem em razão da

diferença cronológica, nem da distinção de nível, elas se excluem. Pelo contrário, se articulam

uma com a outra647

. Daí as técnicas de separação e divisão espacial nas cidades, as

classificações das ciências biológicas, da medicina e da psicologia. Os rótulos e as etiquetas,

servindo à administração da vida pelo governo estatal.

Essas tecnologias identificadas por Foucault possuem um elemento integrador,

identificável, tanto no poder disciplinar quanto no regulamentador: a "norma". A "norma da

disciplina" e a "norma da regulamentação" se cruzam numa "sociedade de normalização", um

646

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 285;316. 647

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 299.

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174

"poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida", ou seja: "da vida em geral, com o

pólo do corpo e o pólo da população"648

. Para Foucault, a emergência desse "biopoder" fez

surgir o racismo de Estado, que começou por separar a população em subgrupos (raças),

implementando uma "biopolítica" pautada pela identificação de uma raça inimiga a ser

eliminada, num darwinismo perverso em que a morte da "outra espécie" não significa

somente a "vida" da "minha espécie", mas a sua própria evolução, seu aperfeiçoamento, pelo

"imperativo da morte", não só do "outro inimigo", mas também de elementos mais frágeis da

própria raça.

A grande expressão da junção do poder disciplinar e do poder regulamentador,

traduzida pelo racismo de Estado foi a experiência nazista:

[...] ao mesmo tempo que se tinha essa sociedade universalmente previdenciária,

universalmente seguradora, universalmente regulamentadora e disciplinar, através

dessa sociedade, [houve o] desencadeamento mais completo do poder assassino, ou

seja, o velho poder soberano de matar. Esse poder de matar,que perpassa todo o

corpo social da sociedade nazista, se manifesta, antes de tudo, porque o poder de

matar, o poder de vida e de morte é dado não simplesmente ao Estado, mas a toda

uma série de indivíduos, a uma quantidade considerável de pessoas (sejam os SA, os

SS, etc.). No limite, todos têm o direito de vida e de morte sobre o seu vizinho, no

Estado nazista, ainda que fosse pelo comportamento de denúncia, que permite

efetivamente, ou fazer suprimirem, aquele que está a seu lado.649

É de se pensar se existe mesmo diferença entre o comportamento do povo alemão

"alucinado"650

pelo discurso nazista e um tryal norte-amerciano, ou um julgamento da França

revolucionária, ou mesmo um julgamento do Tribunal de Nuremberg, quando se decide pelo

envio de um acusado ao patíbulo. Há que se indagar se não seria o mesmo direito soberano de

"fazer morrer ou deixar viver", o mesmo "direito de vida ou morte". É o paradoxo da

soberania descrito por Giorgio Agamben:

O paradoxo da soberania se enuncia: "O soberano está, ao mesmo tempo, dentro e

fora do ordenamento jurídico". Se o soberano é, de fato, aquele no qual o

ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de

suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então "ele permanece fora do

ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a

constituição in toto possa ser suspensa" (Schmitt, 1922, p. 34). A especificação "ao

mesmo" tempo não é trivial: O soberano, tendo o poder legal de suspender a

validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode

ser formulado também deste modo: "a lei esta fora dela mesma", ou então: "eu, o

648

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2005.p. 302. 649

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 310. 650

É a "vertigem alucinatória" provocada por uma "verdade da evidência", alheia ao processo, que se contrapõe à

"verdade da prova", que se submete ao exame do processo. É possível afirmar que no regime nazista o povo foi

tomado por esta perniciosa vertigem por uma "verdade" que se estabeleceu do modo "alucinado", em que o

outro, a raça inferior era apontada como causa de todos os males. (MARTINS, 2011, p. 5).

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175

soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei".651

De todo modo, soberania é matar sem cometer homicídio e essa vida nua ou sacra, na

concepção de Agamben, é aquela entregue ao bando soberano que dela pode dispor, ou seja, é

insacrificável, porém matável. A sacralidade da vida, antes de significar seu reconhecimento

como direito humano fundamental, significa o seu abandono, a sua sujeição a um poder de

vida ou morte652

. A toda evidência, no Estado Democrático de Direito, a vida não está "a-

bandonada", ou entregue e sujeita ao "bando soberano", podendo por este ser exterminada

impunemente.

No Estado Democrático de Direito, não é possível conceber exclusões, seleções,

classificações, etiquetamentos, segregações ou abandonos que resultem no reconhecimento de

"vidas que não merecem viver"653

. É justamente o princípio do Contraditório que vai

promover a plena "inclusão do outro" (audiaturet altera pars), e não a simples confiança no

sistema político como capaz de abrigar o multiculturalismo, porém, sujeito a uma "cultura

comum" que evite a fragmentação da unidade política, tão cara ao comunitarismo654

.

Ao ouvir o outro, o Processo Constitucional instaura o acolhimento da diferença, não

para que esta venha a sucumbir a uma igualdade totalitária ou ditatorial, mas para que os

conteúdos teóricos encaminhados processualmente possam concorrer livremente na busca de

prevalência (corroboração)655

, resolvendo-se os conflitos humanos sem que vidas humanas

sejam sacrificadas, ou, numa perspectiva popperiana, que as hipóteses possam morrer no lugar

dos homens, postura que distingue o conhecimento científico do conhecimento animal e do

conhecimento pré-científico, em que os defensores das "hipóteses incapazes" é que são

eliminados fisicamente656

.

No Processo Penal, a decisão surpreendente, eventualmente tomada em supressão de

Contraditório, é que vai provocar a eliminação física do acusado, num claro proceder pré-

científico. Nessa circunstância, ocorre a declaração de incapacidade da hipótese articulada de

651

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2007b. p. 23. 652

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2007b.p. 91. 653

expressão que surge pela primeira vez em um ensaio de Karl Binding em 1922, no qual o autor expunha teses

em que defendia a eutanásia. Este texto foi apropriado pelos nazistas posteriormente para justificar o conceito de

"vida indigna de ser vivida", vida esta passível de aniquilamento impune ou mesmo juridicamente permitido.

(AGAMBEN, 2007b, p. 144). 654

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton

Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 173. 655

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 34. 656

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 999.

p. 238.

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176

modo absolutamente desconectado dos conteúdos encaminhados discursivamente, em total

inobservância ao "trinômio estrutural do contraditório - informação, reação, diálogo - que se

instala na dinâmica do procedimento"657

, em correlação com o princípio constitucional da

fundamentação das decisões. Surge, então, o viés inquisitivoque se evidencia no art. 385 do

Código de Processo Penal brasileiro que permite decisão totalmente divorciada da

argumentação das partes. O mesmo ocorre no art. 156, inciso I, que permite ao juiz determinar

a produção de provas ex officio mesmo antes de iniciada a ação penal, dispositivos que violam

o princípio da imparcialidade, e, por isso, devem ter sua incompatibilidade constitucional

declarada658

.

A vedação da decisão surpresa, não é de hoje, parece ser uma preocupação nos mais

diversos ordenamentos processuais. Dierle José Coelho Nunes aponta como exemplos o

Código de Processo Civil Francês, de 1975, o Código de Processo Civil Austríaco659

e o

modelo processual de Stutgart na Alemanha, que preconizam uma nova oportunidade para as

partes argumentarem quando o juiz identifica um ponto que pode influenciar no julgamento e

que não foi objeto de abordagem pelos litigantes660

. Desse modo, "não mais se permite que o

provimento seja um ato isolado de inteligência do terceiro imparcial"661

, ou, nas palavras de

Rosemiro Pereira Leal: "um ato eloquente e solitário de realização de justiça"662

.

6.5 Ampla defesa como liberdade

Há uma preocupação recorrente entre alguns autores em demonstrar que os conceitos

de Contraditório e Ampla Defesa são indiscerníveis. Andolina e Vignera atribuem essa

confusão à redação do art. 24, parágrafo segundo, da Constituição italiana e afirmam que a

distinção deve ser explicitada por questões práticas e metodológicas663

. Luiz Guilherme

Marinoni identifica a mesma zona sombria na redação do art. 5º, inciso LV da CB/88, que

levaria a uma equivocada concepção de que Contraditório e Ampla Defesa, são "conceitos

657

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo constitucional e estado democrático de direito. 2. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2012. p. 104. 658

BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re) forma do processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 37. 659

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 228-229. 660

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 121. 661

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo

Horizonte: Del Rey, 2011. p. 22. 662

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 45. 663

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. p. 155.

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177

interligados"664

.

Andolina e Vignera adotam uma posição garantista em que a defesa se institui para

regulamentar a relação entre o indivíduo e o Estado, tendo a função de tutelar a liberdade do

cidadão frente à autoridade no exercício de uma função soberana665

. Ou seja: é a defesa que

produzirá o que Ferrajoli chama de legitimação substancial, consistente na "imunidade do

cidadão contra intervenções arbitrárias"666

. Em decorrência de tal garantia, os mais diversos

ordenamentos constitucionais trataram de instituir juridicamente verdadeiros "direitos

fundamentais", cuja proteção não pode ser restringida por ausência ou insuficiência de norma

interna, devendo o Estado, na execução de tais direitos, conferir efetividade ao Direito

Internacional pertinente, conforme defende José Alfredo de Oliveira Baracho:

A dimensão histórica dos direitos e liberdades fundamentais proporciona o

conhecimento do regimes de liberdades, propiciando a compreensão da evolução

dos direitos e liberdades fundamentais, inclusive a sua vertente internacional e

européia. Decorrem daí as particularidades da norma internacional de proteção dos

direitos do homem e a questão da prevalência da norma internacional sobre o juízo

nacional, não-reciprocidade, aplicabilidade direta, direitos intangíveis, direitos

condicionados, direitos indiretos ou o alargamento do acesso do direito ao recurso.

A proteção dos direitos e liberdades fundamentais pelas Cortes Constitucionais criou

várias formas de defesa, constatando-se a heterogeneidade da sua efetiva

concretização.667

Para Couture, essa fundamental instituição, denominada "tutela jurídico-

constitucional das liberdades", antes de se dirigir ao juiz e às partes se dirige ao legislador que

deve agir sempre para reforçar o alcance de tais disposições na infraconstitucionalidade, bem

como conter-se, evitando legislar de modo a restringi-las668

. A concepção de Ampla Defesa,

como uma garantia constitucional assegurada ao réu para que possa utilizar todos os

"mecanismos processuais indispensáveis à salvaguarda de todos os seus direitos"669

, é

prevalente na doutrina e decorre da cisão teórica e conceitual entre "ação" e "defesa" que

seriam institutos paralelos e correlatos:

664

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 311. 665

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. p. 159. 666

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 735. 667

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição constitucional da liberdade. In: SAMPAIO, José Adércio de

Oliveira (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 30 668

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. Ed.Montevideo-Buenos Aires: Editorial

B de F, 2007. p. 124. 669

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 161.

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178

É fácil perceber que o direito de defesa constitui um contraponto ao direito de ação.

A jurisdição, para responder ao direito de ação, deve necessariamente atender ao

direito de defesa. Isso pela simples razão de que o poder, para ser exercido de forma

legítima, depende da participação dos sujeitos que podem ser atingidos pelos efeitos

da decisão. É a participação das partes interessadas que confere legitimidade ao

exercício da jurisdição. Sem a efetividade do direito de defesa, portanto, estaria

comprometida a própria legitimidade do exercício do poder jurisdicional.670

Marinoni, como é possível notar, trabalha com a concepção de jurisdição como

exercício de positivação do poder e de processo como instrumento voltado ao exercício deste

poder, sendo admissível restringir o direito de defesa para atender às necessidades do

chamado direito substancial, que por vezes necessitaria de procedimentos mais céleres,

incompatíveis com o pleno exercício da defesa.

Esse discurso que enxerga um dilema entre compatibilizar a necessidade de um

judiciário célere, prestativo, eficiente e um processo efetivo que resulte em decisões eficazes

com a garantia da Ampla Defesa é, no paradigma democrático do Devido Processo

Constitucional, um falso dilema que desafia os processualistas das mais variadas vertentes671

.

O fato é que o constituinte não se valeu do termo "Ampla", precedendo o termo "Defesa", por

mero acaso.

6.5.1 Defesa, Ampla Defesa e Contraditório: distinções

Como princípio institutivo do processo, a Ampla Defesa nem sempre é

adequadamente estudada. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e

Cândido Rangel Dinamarco, em sua clássica obra de Teoria Geral do Processo, a estudam

como um mero consectário do exercício do Contraditório672

, enquanto Marinoni afirma que o

Contraditório exterioriza a Defesa, sendo esta pressuposto do Contraditório673

. Quem lhe

empresta um tratamento mais específico é Rosemiro Pereira Leal, que concebe primeiramente

a Defesa como instituto jurídico de "excetividade plena" no processo, pelos princípios do

670

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1.p. 305. 671

SOUZA, Bonifácio. Efetividade do processo e acesso à justiça. In: TAVARES, André Ramos; LENZA,

Pedro; LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Reforma do judiciário: analisada e comentada. São Paulo: Método,

2005. p. 51. 672

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.p.55-57. 673

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. São Paulo: RT, 2009.

v.1. p. 311.

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Contraditório e da Ampla Defesa, ambos institutivos da processualidade democrática674

.

Dessas lições depreende-se que sem Contraditório não há Defesa e sem Ampla

Defesa, muito menos. Se o Contraditório, na fundamentalidade jurídica, se mostrou como o

próprio encaminhamento da vida discursiva no âmbito espácio-temporal do Processo675

, a

Ampla Defesa676

é ampla justamente porque não pode ser comprimida por procedimentos

sumaríssimos que não permitem uma reflexão adequada sobre as alegações e provas

apresentadas pelas partes no processo, sendo assim a própria expressão da Liberdade

constitucionalmente assegurada. Mas como Liberdade não se confunde com livre vontade677

,

há que se observar que “a amplitude de defesa não supõe infinitude de produção da defesa a

qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e

provas no tempo processual oportunizado pela lei”678

.

No paradigma do Estado Democrático de Direito, o princípio da Ampla Defesa é

submetido a uma reconstrução. As concepções de que se trata do “correlato-paralelo” do

direito de ação (desenvolvida por Marinoni), antítese da ação (desenvolvida por Couture)679

,

ou de que se trata de meio para se proteger do arbítrio estatal (formulada por Andolina e

Vignera), se mostram insuficientes ao esclarecimento do alcance deste princípio

constitucional institutivo do Processo. A Ampla Defesa se apresenta na pós-modernidade

como direito fundamental de ampla argumentação, conferido constitucionalmente não apenas

ao acusado ou réu, mas também ao autor, pois o direito de ação pressupõe o direito de

encaminhar suas razões com plena liberdade, vez que o autor também “defende” algo ao

exercer o direito incondicional de movimentar a jurisdição:

Assim, tomando estes dois conceitos como base – direito de ação e contraditório -, a

ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente

argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão

(contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a

formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente afirmação

da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui são compreendidos como

674

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 39 e 47. 675

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012.p. 75. 676

Na dicção do inciso XXXVIII do art. 5º da CB/88, tem-se o termo Plenitude de Defesa como direito a ser

assegurado aos acusados nos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Não nos parece, por uma questão de isonomia,

que entre os termos "Ampla" e "Plenitude" possa haver uma diferença de grau, quantitativa ou qualitativa, pois

sendo o Júri uma espécie de Processo, não é possível afirmar que os acusados submetidos a este tribunal teriam

maiores prerrogativas defensivas que os acusados perante a jurisdição togada. 677

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 185 678

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 100. 679

COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais. Tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer

Russomano. São Paulo: Max Limonad, 1956. p.162.

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indissociáveis. Assim, a ampla argumentação garante como conseqüência lógica a

possibilidade de ampla produção de prova para a reconstrução do fato e das

circunstâncias relevantes para o processo.680

Como se observa, uma percepção democrática da Ampla Defesa leva à superação da

visão beligerante do Direito Processual, em que, muitas vezes, o Processo é enxergado como

um campo no qual se trava uma batalha entre ataque e defesa, pretensão e resistência, sujeito

ativo e sujeito passivo. Uma compreensão da Ampla Defesa, como ampla argumentação, se

mostra mais adequada à teoria da democracia enquanto teoria discursiva e processual de

criação, aplicação e testificação do direito.

É por meio da Ampla Defesa que a função argumentativa da linguagem pode ser

plenamente exercitada no Direito. Popper entende a função argumentativa como a mais

evoluída, sendo própria da espécie humana, juntamente com a função descritiva. Segundo o

autor, as funções da linguagem são quatro: As primeiras são consideradas inferiores e são

exercidas também pelos animais. Trata-se das funções expressiva (ou sintomática) e

sinalizadora (ou liberadora). As funções descritiva e argumentativa são consideradas as

funções superiores da linguagem, sobretudo esta última:

A função argumentativa da linguagem não só é a mais elevada das quatro funções

que aqui estou discutindo, mas foi também a última delas a evolver. Sua evolução

tem sido estreitamente ligada à de uma atitude argumentativa, crítica e racional; e

como esta atitude tem levado à evolução da ciência, podemos dizer que a função

argumentativa da linguagem criou o que é talvez o mais poderoso instrumento de

adaptação biológica que já apareceu no curso da evolução orgânica.681

Como só é possível argumentação sobre algo que foi objeto de descrição, Popper

demonstra que qualquer juízo sobre um relato no âmbito da função descritiva se dá segundo

critérios de verdade ou falsidade. Já o uso argumentativo leva a conclusões que devem ser

avaliadas segundo critérios de validez e invalidez. Rosemiro Pereira Leal, em sua singular

concepção de isomenia como a "simétrica paridade interpretativa do direito legislado"682

,

articula o princípio institutivo da Ampla Defesa com o direito fundamental à Liberdade, que

jamais pode ser objeto de vedação "em todos os instantes construtivos, operacionais,

680

PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros; CARVALHO, Marius Fernando Cunha; GUIMARÃES,

Natália Chernicharo. O princípio da ampla defesa: uma reconstrução a partir do paradigma do Estado

Democrático de Direito. In: CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO,14, 2006,

Florianópolis. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. 681

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 217. 682

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274.

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181

modificativos, aplicativos e extintivos da normatividade"683

, permitindo assim o pleno uso

argumentativo da linguagem.

Para o Direito Processual Penal, esta biunivocidade é pertinente, pois a Ampla

Defesa se desdobra em dois flancos: a defesa técnica e a autodefesa (defesa pessoal)684

, em

que a liberdade argumentativa se articula com uma liberdade de postura (defesa pessoal

negativa-nemotenetur se detegere)685

, em defesa da liberdade individual, não somente física,

na medida em que as sanções penais vão além da privação do direito de ir e vir. A defesa

técnica realizada por profissionais habilitados e autorizados para essa atividade (advogados

constituídos pela parte, defensor público ou dativo), constitui requisito essencial para a

fruição do direito fundamental à Ampla Defesa, conforme disserta Aury Lopes Júnior, que

enxerga o acusado como parte hipossuficiente no Processo Penal:

A justificação da defesa técnica decorre de uma esigenza di equilibrio funcionale

entre defesa e acusação e também de uma acertada presunção de hipossuficiência do

sujeito passivo, de que ele não tem conhecimentos necessários e suficientes para

resistir à pretensão estatal, em igualdade de condições técnicas com o acusador. Essa

hipossuficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder da

autoridade estatal encarnada pelo promotor, policial ou mesmo juiz. Pode existir

uma dificuldade de compreender o resultado da atividade desenvolvida na

investigação preliminar, gerando uma absoluta intranquilidade e descontrole.

Ademais, havendo uma prisão cautelar, existirá uma impossibilidade física de atuar

de forma efetiva.686

A conjectura acima, a toda evidência, está pautada no maniqueísmo Estado-indivíduo

que tanto marcou o liberalismo processual em que se propugnava uma autossuficiência da

autonomia privada687

na medida em que estabelecia, de antemão, uma desconfiança da

atuação estatal nos mais diversos campos da atividade humana, justificando, desse modo, o

absenteísmo como forma de consagrar a liberdade individual, em termos lockeanos, como

uma instância indevassável que deve permanecer protegida contra a arbitrariedade do governo

e seus magistrados688

.

O liberalismo, que segundo Foucault, consiste em deixar as pessoas fazerem (laisser-

faire), deixar as coisas passarem (laisser-passer) e deixar as coisas andarem (laisser-aller), é

que vai desenvolver uma técnica insidiosa que aos poucos se sobrepõe ao poder disciplinar

683

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 184 684

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 143. 685

Art. 5º, inciso LXIII da Constituição brasileira de 1988. 686

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 192. 687

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 74 688

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3.

ed. Petrópolis: Vozes, 2001b. p. 165.

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182

(que sujeitou a criança, os soldados e os operários, no século XVIII). Trata-se do Dispositivo

de Segurança, um tipo de mutação da tecnologia de poder que atua sobre a Liberdade de

modo menos restritivo, se apresentando como ideologia e, ao mesmo tempo, técnica de

governo689

. O Processo, em certa leitura, é também visto como "um dispositivo articulador de

elementos de vária ordem"690

. Ou como diz Michele Taruffo:

O processo, de fato, é também, um "lugar" em que se aplicam normas, se atuam

valores, se asseguram garantias, se reconhecem direitos, se tutelam interesses, se

compõem escolhas econômicas, se enfrentam problemas sociais, se alocam recursos,

se determina o destino das pessoas, se tutela a liberdade do indivíduo, se manifesta a

autoridade do Estado[...] e se resolvem controvérsias por meio de decisões

esperançosamente justas (tradução livre).691

Essa perspectiva acerca da multiplicidade de acontecimentos e thema decindendum,

verificados em qualquer Processo, nos remete à configuração da Ampla Defesa como

princípio institutivo articulador da ampla Liberdade, que também se configura como

enunciado normativo caracterizado como princípio constitucional de reconhecida

fundamentalidade (art. 3º, inciso I; art. 5º, caput da Constituição brasileira de 1988).

Um Processo é único em seu desenrolar, pois mesmo se desenvolvendo segundo

normas procedimentais que prezam por estabelecer uma sequência lógica de normas, atos e

posições subjetivas692

, a Ampla Defesa se encarrega dos incidentes e acidentes que reforçam

sua singularidade, pois expressam a Liberdade democrática dos "legitimados", ou seja, do

povo, em "um regime de interpretação aberta a todos"693

.

As regras do Processo se assemelhariam assim às regras de um jogo, pois num

primeiro momento cumprem o papel de estabilização das expectativas de comportamento no

espaço-tempo da tramitação processual. Mas, segundo Alexandre Morais da Rosa, essas

seriam regras de um jogo "dinâmico de informação incompleta" no qual o êxito do jogador

(parte) depende, sobretudo de se saber "que tipo de jogador se está enfrentando e qual o

689

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:

Martins Fontes, 2008b. p. 62-63. 690

MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti

Castanho de et al. (Org.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São

Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 71-85.p. 73. 691

"Il processo, invero, è anche un "luogo" in cui si applicano norme, si attuano valori, si assicurano garanzie, si

roconoscono diritti, si tutelanointeressi, si compiono scelte economiche, si affrontano problemi sociali, si

allocano ricorsi, si determina il destino delle persone, si tutela la libertà degli individui, si manifesta l'autorità

dello Stato... e si risolvono controversie per mezzo di decisioni auspicabilmente giuste." (TARUFFO, 2009, p.

136). 692

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 113. 693

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 49.

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julgador a quem se dirige a informação do jogo", como também antecipar as motivações

objetivas, subjetivas e inconscientes dos demais envolvidos, na tentativa de desvendar os

trunfos ainda ocultos, sendo que "o resultado depende da sucessão de subjogos e da

informação-prova validamente trazida ao contexto do jogo"694

.

A defesa técnica, ao suprir deficiências cognitivas, argumentativas e hierárquicas do

acusado, não só atende a preceitos legais indisponíveis695

, como permite que o controle da

atividade jurisdicional seja também feito pela parte e seu defensor696

, transformando também

o julgador em "jogador". A Ampla Defesa, como Liberdade, permite a oposição simétrica de

informações, estratégias e táticas, pois:

Ao mesmo tempo que cada jogo processual é singular (único), está inserido na

dinâmica de processos repetitivos. Daí a formação de padrões táticos que podem não

funcionar pela ausência de cuidado com as informações preliminares e as

possibilidades probatórias. É o meio pelo qual o Estado sustenta o monopólio da

força e justifica a aplicação da pena. Significa a estratégia para se evitar os combates

reais, substituídos pela metáfora de guerra: jogo processual, no qual as táticas de

cada batalha (subjogos) se apresentam.697

No Direito Processual Penal, adotando-se a isomenia processual, é possível romper

com a clivagem habermaseana "agir comunicativo versus agir estratégico"698

. É que para

Habermas, a linguagem natural ou se apresenta como meio transmissor de informações,

produzindo a interação entre ego e alter (indivíduo e sociedade) mediante a indução de

determinado comportamento no destinatário (agir estratégico), ou se presta a produzir entre

esses atores o entendimento (agir comunicativo). Seriam mecanismos mutuamente

excludentes699

.

Esta mútua exclusão não ocorre no Direito Processual Penal constitucionalizado, pois

a linguagem aqui empregada não é a linguagem natural, mas a linguagem argumentativa em

que os sujeitos comunicativos se relacionam por meio de signos que permitem a

decodificação do código linguístico compartilhado por ambas as partes (destinador e

destinatário do discurso), numa relação em que a captação da "mensagem referencial" pelo

694 ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2013. p. 18. 695

Art. 8.2 da Convenção Americana dos Direitos Humanos; Art. 5º, inciso LXXIV e 134 da Constituição

brasileira de 1988 e art. 261 do Código de Processo Penal brasileiro. 696

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 194. 697

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 27. 698

HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São

Paulo: Loyola, 2004b. p. 117-118. 699

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 71

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184

destinatário abre a possibilidade de contra-argumentação700

, o que se torna possível na medida

em que os códigos linguísticos são bens coletivos701

, enquanto a linguagem natural é, no mais

das vezes, solipsista. Através do medium linguistico do Devido Processo Legal, a linguagem

defensiva, mesmo empregada visando atingir determinada consequência (resultado), permite o

"entendimento mútuo", pois seus conteúdos são explicitados "comunicativamente", segundo

as regras do jogo processual democraticamente limpo (fair play)702

, pois expõe o emissor da

mensagem a uma contraditoriedade plena.

6.6 Dignidade como isonomia: uma perspectiva não-retórica do princípio da igualdade

O tormentoso tema da igualdade entre os homens vem desafiando filósofos e juristas

há séculos. Rousseau estudou o tema e dividia a desigualdade em duas espécies: a física,

decorrente das condições, talentos, forças e fraquezas individuais, e a moral ou política,

decorrente dos privilégios de uns homens sobre outros. Esta última teria sido instaurada pelo

Direito no momento em que sucedeu ao estado de natureza e leva o forte a servir ao fraco e o

povo a se submeter à dominação em busca de uma "tranquilidade imaginária pelo preço de

uma felicidade real"703

. O mundo e a organização social são estruturados sobre desigualdades

congênitas.

Com a Ilustração, a civilização ocidental vai acolher concepções teóricas nas linhas

de Hobbes, Locke, Kant e outros, que vão alçar o homem à condição de "único centro de

gravidade possível do Poder", pois no constitucionalismo moderno, com seu ímpeto

iconoclasta, racionalista e individualista, somente ao homem caberia a iniciativa das leis,

havendo mesmo uma pulsão iluminista pela autonomia humana frente à religião e ao

absolutismo monárquico704

. Mas ainda assim, essa busca civilizatória se mostrou legitimadora

de desigualdades.

Na Grécia antiga, a própria concepção de polis era excludente, pois escravos e

bárbaros não participavam das deliberações. Eram, assim, destituídos de todo um modo de

vida que buscava a resolução de conflitos não pela violência, mas pelo discurso persuasivo705

.

700

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 17. 701

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274. 702

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2013.p. 15 703

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 160. 704

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A.

Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 98. 705

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense

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185

Como já demonstrado, a cláusula Devido Processo Legal, quando surgiu em 1215, se

destinava aos homens livres (landers). Estes, e somente estes, teriam a vida, a liberdade e a

propriedade a salvo de intervenções arbitrárias, mediante a prerrogativa de julgamento pelos

seus pares (his equals)706

. E mesmo na modernidade, com todas as suas Cartas e Declarações

de Direitos, que proclamavam a igualdade entre os homens, a exclusão sempre se fez

presente, demonstrando o caráter, muitas vezes retórico do constitucionalismo.

O desenvolvimento teórico da concepção de igualdade humana está intrinsecamente

ligado aos acontecimentos histórico-políticos que constituem os marcos estruturais do Direito

Político na modernidade.Ao lado da liberdade e da fraternidade, a igualdade compôs o

frontispício da plataforma revolucionária francesa, quando só se pensava em rechaçar o poder

régio e clerical a todo custo. O quadro descrito por Proudhon é esclarecedor:

No ano de 1789 depois de Cristo, a nação francesa, dividida por castas, pobre e

oprimida, debatia-se sobre o absolutismo real, a tirania dos senhores e dos

parlamentos e a intolerância sacerdotal. Havia o direito do rei e o direito do padre, o

direito do nobre e o direito do plebeu, havia privilégios de nascença, de província,

de comunas, de corporações e de ofícios: no fundo de tudo isto a violência, a

imoralidade e a miséria. Já há algum tempo que se falava em reforma; os que mais a

desejavam para se aproveitar dela e o povo, que tinha tudo a ganhar, não esperavam

grande coisa nem se manifestavam. Durante muito tempo este pobre povo hesitou

sobre os seus direitos quer por incredulidade, desconfiança ou desespero: dir-se-ia

que o hábito de servir tinha roubado a coragem às velhas comunas, tão orgulhosas

na Idade Média.707

Feita a revolução, decapitou-se o Rei, mas não a monarquia, como se lê em

Foucault708

. O poder soberano nas mãos do povo desaguou no Terror em Napoleão e na

Restauração, comprovando que a declaração de igualdade civil ou política não passava de

retórica, pois o que prevalecia era sempre, por uma ou outra roupagem, o absolutismo de

Estado, estabelecendo a dominação sobre os indivíduos, mantidos estes nas mesmas

condições desiguais de antes da Revolução709

.

A Revolução Proletária levou ao paroxismo a ideia de igualdade, porém com

consequências extremamente nefastas, pois sua implementação se deu mediante a

expropriação totalitária da propriedade, produzindo, no mais das vezes, violência, escassez e

Universitária, 2001. p. 36. 706

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 19 707

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Tradução de Marília Caeiro. Lisboa: Editorial

Estampa, 1975.p. 25-26. 708

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2005. p. 278. 709

SCHMITT, Carl. La dictadura. Tradução de José Díaz García. Madrid: Revista de Occidente,1968.p. 169.

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186

miséria710

. Comunismo e Socialismo resultaram num movimento internacional que grassou

por todo o século XX e que, segundo Bobbio, tornou-se "a grande ofensiva de todos os

facismos e de todos os regimes militares e policialescos do mundo"711

, expressando uma

forma de "tutelar a intra-subejtividade de diferentes identidades culturais, com suporte na

concepção de "patriotismo republicano""712

, que hoje se expressa de modo mais brando pelo

comunitarismo norte-americano e pela jurisprudência de valores na Europa.

Em ambos os casos, há uma tendência em identificar na sociedade uma comunidade

de valores igualitários construídos historicamente, em que "os direitos de cidadania, direitos

de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos. Eles não

garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma praxis

comum"713

. No Estado Democrático de Direito, a igualdade se apresenta como princípio

legitimador do discurso jurídico, como demonstra Marcelo Campos Galuppo:

[...] só garantindo a igualdade é que uma sociedade pluralista pode se compreender

também como uma sociedade democrática. Conseqüentemente, só permitindo a

inclusão de projetos de vida diversos em uma sociedade pluralista é que ela pode se

autocompreender como uma sociedade democrática (Habermas, 1997b: 1974),

mesmo que tais projetos alternativos requeiram, em algumas situações, uma

aplicação aritmeticamente desigual do direito (ou seja, justificados pela produção de

mecanismos de inclusão, como no caso das políticas de ação afirmativa)."714

A plena inclusão política de todos os indivíduos no demos, ou seja, seu

reconhecimento como cidadão habilitado a influir no processo político em condição de

absoluta igualdade, é que vai caracterizar o sistema democrático715

. Essa absoluta igualdade

decorre do princípio fundante da Dignidade Humana, uma associação que se encontra

expressa no art. 13/1 da Constituição da República Portuguesa, de 1976716

. Rosemiro Pereira

Leal nos apresenta aporte semelhante em sua concepção de hermenêutica isomênica717

.

A Isonomia Processual, por seu turno, não nos parece definir-se por “tratar

710

POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte:

Itatiaia, 1974c. v.1. p. 90. 711

BOBBIO, Norberto. Ideologias e poder em crise. Tradução de João Ferreira. 4. ed. Brasília: Editora UNB,

1995. p. 37. 712

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.

156. 713

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução de George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton

Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004a.p. 280. 714

GALLUPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: estado democrático de direito a partir do pensamento de

Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 210. 715

DAHL, Robert. La democracia y sus críticos. Tradução de Leandro Wolfson. Barcelona: Paidós, 1992.p. 159. 716

"1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei." 717

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 247.

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187

igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”,

como ensina Nelson Nery Júnior718

, em afirmação de nítida inspiração aristotélica encontrada

em importantes textos de tendência liberal como, por exemplo, na "Oração aos Moços" de Rui

Barbosa719

. Canotilho demonstra que essa fórmula relacional da igualdade implica sempre a

necessidade de um critério valorativo para que possamos concluir quando uma discriminação

entre indivíduos é justa. A resposta do Tribunal Constitucional Português de que a

desigualdade é admissível no sistema constitucional, desde que não seja arbitrária, é

reconhecidamente insuficiente:

A necessidade de valoração ou de critérios de qualificação bem como a necessidade

de encontrar «elementos de comparação» subjacentes ao carácter relacional do

princípio da igualdade implicam: (1) a insuficiência do «arbítrio» como fundamento

adequado de «valoração» e de «comparação»; (2) a imprescindibilidade da análise

da «natureza», do «peso», dos «fundamentos» ou «motivos» justificadores de

soluções diferenciadas; (3) insuficiência da consideração do princípio da igualdade

como um direito de natureza apenas «defensiva» ou «negativa».720

O fato é que sempre que critérios valorativos precisam ser invocados e que tal tarefa

é atribuída ao Tribunal Constitucional abrem-se as portas ao protagonismo e ao ativismo

judicial, na medida em que se atribui ao judiciário a tarefa de reparar desigualdades. Ao

judiciário caberia a prerrogativa de reconhecer a cada grupo em disputa a sua "relevância

jurídico-constitucional", identificando-se a partir daí, os pressupostos de fato que determinem

a sua essencial igualdade ou desigualdade721

.

No Direito Processual e, muito especialmente, no Direito Processual Penal não é

possível reconhecer desigualdades congênitas,conforme se extrai da assertiva de José Augusto

Delgado:

O princípio da igualdade tem por finalidade garantir a identidade de situação jurídica

para o cidadão. Não se refere, conforme se depreende do texto constitucional, a um

aspecto ou a uma forma de organização social; existe como um postulado de caráter

geral, com a missão de ser aplicado em todas as relações que envolverem o homem. É

um direito fundamental que exige um comportamento voltado para que a lei seja

aplicada de modo igual para todos os cidadãos.722

718

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev., atual. amp. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72. 719

BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 26. 720

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 566. 721

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 570. 722

DELGADO, José Augusto. A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão. In:TEIXEIRA,

Salvio de Figueiredo. Garantias do cidadão na justica(as). São Paulo: Saraiva, 1993. p.73.

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188

Não havendo desigualdades congênitas, não há que se falar na distribuição de

direitos processuais em critérios de proporcionalidade e razoabilidade segundo a razão

solipsista do julgador. Para Rosemiro Pereira Leal, a compreensão do princípio da Isonomia

passa, em direito democrático, pela necessária distinção entre o direito à diferença e

desigualdade, esclarecendo o seguinte:

O direito à diferença não equivale a ser desigual no Estado de Direito Democrático

que sempre assegura pelo devido processo constitucional a isonomia argumentativo-

procedimental na defesa e reconhecimento de direitos, mas corresponde a um dado

singular da personalidade ou patrimonialidade de cada qual dos indivíduos, cuja

defesa e afirmação, quando negado, também se fazem isonomicamente no espaço-

tempo da estrutura procedimental processualizada e não pela segurança

discriminadora de uma jurisdição sábia, filantrópica e providencial. O negro, o índio,

o homossexual, a lésbica, o deficiente, não são desiguais a ninguém quanto a direitos

fundamentais na teoria da constitucionalidade democrática. Tanto eles quanto os

brancos, os não-índios, o heterossexual: homem ou mulher, são iguais em direitos

fundamentais e titulares de igualdade processual (simétrica paridade-isonomia) no

direito democrático.723

Pouco estudado, o princípio da Isonomia também é apontado por Rosemiro Pereira

Leal como institutivo do processo democrático (art. 5º, caput, CB/88). Isonomia também se

distingue da simétrica-paridade, na medida em que é pressuposto desta última, ao exercício de

direitos fundamentais líquidos e certos para uma vida digna:

A asserção de que há de se dar tratamento igual a iguais e desigual a desiguais é

tautológica, porque, na estruturação do procedimento, o dizer e contradizer, em

regime de liberdade assegurada em lei, não se operam pela distinção jurisdicional do

economicamente igual ou desigual. O direito ao Processo não tem conteúdos de

criação de direitos diferenciados pela disparidade econômica das partes, mas é

direito assegurador de igualdade de realização construtiva do procedimento.724

Assim sendo, é possível concluir que Isonomia Processual só é possível de se realizar

em um sistema inclusivo em que não haja pessoas excluídas sem acesso à vida, à liberdade e à

dignidade, estabelecendo-se um “piso de igualdade” a partir do qual será possível a

implantação da Isonomia, enquanto possibilidade igualitária de argumentação no espaço

juridicamente demarcado e que se define por Processo:

Ora, se os direitos fundamentais não forem executados judicialmente, nunca se

poderá falar em um piso de igualdade para incluídos e excluídos como ponto de

partida ao reconhecimento cognitivo, por igual tempo de argumentação processual

723

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 79, 80. 724

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 99.

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189

(ISONOMIA), de direitos a serem alegados ou pretendidos pelas minorias e

diferentes. Só se saberá se alguém pertence ao bloco das minorias ou dos diferentes

após atendimento dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à dignidade mínima

para que se habilitem a disputar processual e igualmente direitos em face de outrem.

Antes de atendimento desses direitos fundamentais, as pessoas estarão sempre em

níveis de uma desigualdade ilegal que os impedem de debater e pretender, no

espaço-tempo procedimental, direitos em condições argumentativas isonômicas.725

Ao criticar as chamadas “ações afirmativas” que atuam no sentido de evidenciar o

“direito à diferença”, Rosemiro Pereira Leal o faz afirmando que os partidários de tais ações

não se preocupam com a inclusão e o acesso aos direitos fundamentais mínimos daqueles que

são verdadeiramente despossuídos e famintos. Para se afirmar um “direito à diferença” deve

ser antes implantada a plena igualdade em direitos fundamentais já acertados no plano

constituinte e, desse modo, criar-se a condição para uma argumentação isonomicamente

assegurada:

A ISONOMIA como princípio jurídico-processual de primeira geração não pode ser

descuidada na construção e exercício da constitucionalidade democrática, porque é

ela que torna possível a igualdade (simétrica paridade) entre os economicamente

desiguais, entre os física e psiquicamente diferentes e entre maioria e minoria

política, ideológica ou social. Processualmente, na democracia, é inconcebível uma

desigualdade jurídica fundamental, porque, se tal ocorresse, romper-se-ia com as

garantias constitucionais do processo em seus princípios enunciativos do

contraditório, isonomia e ampla defesa na produção, correição e aplicação do direito,

inclusive do próprio direito processual. Daí, também, a inconstitucionalidade de

diversos trechos do ordenamento jurídico brasileiro que estabelecem prazos

diferentes, foros diferentes, tratamentos pessoais e funcionais diferentes, para os

sujeitos do processo.726

Assim, a Isonomia se estabelece como parte integrante dos “conteúdos isegóricos e

dialógicos” do Estado Democrático de Direito, como afirma Rosemiro Pereira Leal, em

esclarecedor aporte das lições de Francis Wolff:

O espaço-político (isegoria) de criação do direito só será continente democrático se

já assegurados os conteúdos processuais dialógicos da isonomia - que são a isotopia,

isomenia e isocrítica -, em que haja, portanto, em sua base decisória, igualdade de

todos perante a lei (isotopia), igualdade de todos de interpretar a lei (isomenia) e

igualdade de todos de fazer, alterar ou substituir a lei (isocrítica). Essa situação

jurídico-processual devida é que permitirá a enunciação das democracias como

governo da totalidade social concreta, isto é: povo concretizador e criador da sua

própria igualdade jurídica pelo devido processo constitucional.727

725

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 79. 726

LEAL, Rosemiro Pereira. Relativização inconstitucional da coisa julgada: temática processual e reflexões

Jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.p. 80-81. 727

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 49.

Page 182: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

190

Rodrigo Rigamonte Fonseca, também amparado nas lições de Francis Wolff, chega a

conclusão parecida:

A igualdade processual prende-se, tão somente, à participação temporal idêntica que

deve ser conferida aos interessados na construção do provimento estatal, ou melhor,

igualdade temporal de oportunidades para dizer e contradizer no processo, a fim de

fazer valer suas razões. Como bem explica Francis Wolff, “essa mesma igualdade

tem por função garantir boa parte das regras formais da instituição judiciária no

direito clássico, a verdade devendo manifestar-se primeiro pela simples aplicação

da regra isegórica: igualdade estrita dos tempos de fala, equiparação de todos os

meios de defesa das teses opostas.728

Tendo em vista essa compreensão sobre a Isonomia Processual e sua condição de

princípio instituidor do Processo nas democracias, torna-se inadmissível a existência de

dispositivos que subtraiam a possibilidade de argumentação em torno de um direito

fundamental como a liberdade, sobretudo mediante a exclusão pressuposta de indivíduos

colhidos por etiquetamentos que possam conferir à sua pessoa condições como a do

"terrorista"729

, a do "inimigo"730

ou do "criminoso de alta periculosidade"731

.

6.7 O Devido Processo Penal como médium linguístico

Neste ponto há que se ressaltar que o Processo, como neo-instituição nos moldes

isomênicos abordados no curso da pesquisa, se apresenta como interpretante da linguagem

jurídica, sendo esse o aspecto que vai permitir uma abordagem teórica em que o Processo

Penal possa se desvencilhar dos grilhões dogmáticos que lhe são impostos pelo debate

paralisante entre acusatoriedade e inquisitoriedade. Aqui, se mostra relevante certa

compreensão sobre o giro linguístico-pragmático ocorrido na filosofia do século XX e que

tanto influenciou as ciências sociais, dentre as quais o Direito.

Uma primeira questão que se coloca é a de que existe uma interligação inegável entre

linguagem, mente e mundo, na medida em que é pela linguagem que descrevemos o mundo

ou expressamos nossos pensamentos sobre ele. Isso faz com que se instaure um debate sobre a

728

FONSECA, Rodrigo Rigamonte. Isonomia e contraditório na teoria do processo. In: LEAL, Rosemiro Pereira

(Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito

processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 18. 729

MIRANDA, Jorge. Os direitos fundamentais e o terrorismo: os fins nunca justificam os meios, nem para um

lado, nem para o outro. Revista do Tribunal Regional Federal da 3. Região, São Paulo, n. 5, p. 89-104,

jan./fev. p. 89-104, 2006.; ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. Tradução de Paulo César

Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003. 730

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de

André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 45. 731

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

Page 183: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

191

existência de prioridade entre linguagem, mente e mundo. Após analisar que uma prioridade

pode ser analítica (y só pode ser analisado em termos de x, que lhe é anterior), ontológica (x é

pressuposto da existência de y) ou epistemológica (o conhecimento de y passa pelo

conhecimento de x), Martin Davies, conclui que a relação de prioridade entre linguagem e

mente, deve ser estudada em termos de independência lógica, apontando assim as três

concepções possíveis:

(1) Mente primeiro: A concepção segundo a qual é possível descrever

filosoficamente a intencionalidade dos pensamentos sem se reportar, de modo

essencial, à linguagem, e segundo a qual a noção de significado lingüístico pode

então ser analisada nos termos dos pensamentos que a linguagem costuma expressar.

(2) Linguagem primeiro: A concepção segundo a qual uma descrição do significado

lingüístico pode ser fornecida sem revelar a intencionalidade dos pensamentos, e de

acordo com a qual aquilo sobre o que versam os pensamentos de uma pessoa pode

ser analisado em termos do uso da linguagem.

(3) Prioridade nula (para ambos): A concepção segundo a qual não há como

elucidar a noção daquilo sobre o qual versam os pensamentos de uma pessoa sem

trazer à luz a noção de significado lingüístico, nem a de intencionalidade. Ambas as

noções têm de ser explicadas juntas.732

Esse autor, oriundo da escola analítica norte-americana, tende a acolher a terceira

perspectiva no sentido de que linguagem e mente são indissociáveis. O mesmo ocorre quando

aborda a possível prioridade entre linguagem e mundo, fundamentada no dualismo metafísico

entre sujeito-predicado, em que os objetos ou particulares corresponderiam aos termos do

sujeito, e as propriedades ou universais corresponderiam aos termos do predicado. A distinção

entre tais termos seria possível somente no aspecto linguístco, não no aspecto ontológico, o

que se traduz pela fórmula S é P733

.

Mas as conjecturas filosóficas em torno da linguagem quase sempre remetem a uma

prioridade desta, sobretudo para as elucidações que ocorrem em termos científicos (não-

metafísicos). A partir do chamado linguitic turn734

, a linguagem adquire uma nova dimensão,

pois não se restringe mais a funções de descrição ou enunciação (elocuções constativas),

passando a filosofia a identificar na linguagem funções de atuação (elocuções performativas),

principalmente a partir da teoria dos atos de fala de J. L. Austin, que abandonou a distinção

entre atos constativos e performativos, definindo as elocuções comunicativas em geral como

732

DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133. 733

DAVIES, Martin. Filosofia da linguagem. In: BUNNIN, Nicholas et al. (Org.). Compêndio de filosofia.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 91;133. 734

Esta expressão intitula uma notável antologia editada por Richard Rorty originalmente em 1967, que reúne

nomes como Rudolph Carnap, John Wisdom, Gustav Bergmann, Stuart Hampshire e outros. Este trabalho

demonstra a afinidade existente entre filosofia da linguagem, filosofia analítica e teorias semânticas. (RORTY,

1992).

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192

"atos ilocucionários"735

.

Os atos ilocucionários em Habermas são aqueles que vão permitir o entendimento

mútuo caracterizando o chamado "agir comunicativo", que se baseia no reconhecimento

intersubjetivo, na medida em que "os atores participantes tentam definir cooperativamente os

seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vida

compartilhado e na base de interpretações comuns da situação"736

. Os atos de fala podem

ainda ser perlocucionários. Estes necessitam de um sucesso ilocucionário para atingirem sua

meta. São atos que, segundo Habermas, atendem ao agir estratégico, na medida em que

buscam, quando proferidos, provocar um efeito que se caracteriza como um entendimento

mútuo indireto, como uma promessa, um juramento, uma difamação, uma intimidação ou

mesmo uma ameaça: "Aqui, a comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir

racional orientado a fins"737

.

A teoria dos atos de fala tem como antecedente epistemológico a construção de

Ludwig Wittgenstein, que se sustenta sobre o conceito de "jogos de linguagem" e expressa o

linguistic turn738

, guinada pragmática739

ou virada linguística740

, conforme os seguintes

pressupostos:

Mediante uma análise esmerada do uso da linguagem, em particular pela análise de

conceitos psicológicos, Wittgenstein tentou minar a idéia de que a filosofia é um

empreendimento fundacionista. Estabeleceu, pelo contrário, que a filosofia é um

empreendimento puramente descritivo, cuja tarefa não é nem reformar a linguagem

nem tentar dar aos vários usos da linguagem fundamentos seguros. Em vez disso,

eliminam-se os problemas filosóficos mediante uma compreensão correta de como a

linguagem funciona de fato.741

O empreendimento filosófico de Wittgenstein se estrutura em duas obras básicas.

Ainda em vida, seu único trabalho publicado foi o Tractatus Logico-Philosophicus742

, em

735

SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de

filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 8. 736

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 72. 737

HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São

Paulo: Loyola, 2004b. p. 123. 738

RORTY, Richard M. (Ed.). Linguistic turn: essays in philosophical method. Chicago/London: The

University of Chicago Press, 1992. p. 9. 739

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. p. 65. 740

HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução de Milton Camargo Mota. São

Paulo: Loyola, 2004b. p. 240. 741

SEARLE. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de

filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 9. 742

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:

Editora USP, 1968.

Page 185: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

193

1921, reconhecido pelos filósofos como o "primeiro Wittgenstein". Já o "segundo

Wittgenstein" aparece expressado nas "Investigações Filosóficas"743

, obra póstuma publicada

em 1953.

A proposta de Wittgenstein visa superar o solipsismo metafísico, pois a constituição

do significado das palavras é pressuposta no sistema linguístico como "substância" objetiva

do mundo, ou seja, imutável. Desse modo, não guarda nenhuma relação com a comunicação

individual ou experiencial, pois se constituiria de forma idêntica para todos os usuários da

linguagem, independentemente de intercâmbio de experiências ou acordo de sentido744

.

Assim, a verdade ou falsidade de uma proposição só pode ser aferida se esta corresponder a

uma dada realidade. Cada proposição traz em si um sentido, o mesmo ocorrendo com sua

negação. Descrever o sentido das proposições é a tarefa da filosofia, que ao definir claramente

o dizível e o pensável, consequentemente, acaba por demarcar o indizível e o impensável745

.

No "primeiro Wittgenstein", a verdade e o sentido de uma proposição resulta sempre

de sua relação com outras proposições (chamadas elementares). Disso decorre que tais grupos

de condições de verdade ordenam-se em série, e toda proposição que seja verdadeira ou falsa

em toda e qualquer condição, constitui-se como tautologia no primeiro caso e contradição no

segundo. Ambas são vazias de sentido746

. No entanto, o signo (elemento constitutivo da

proposição) contém em si mesmo um sentido que lhe permite ser denotado, resultando no

sentido de todas as suas combinações, afastando assim qualquer possibilidade de erro lógico

quando a introdução do signo se dá de forma correta747

. E, mesmo que os signos introduzidos

apontem para um enunciado falso, a estrutura lógico-formal permanece válida748

.

Já o Wittgenstein tardio parece reconhecer que o logicismo por si só pode levar a

erros substanciais, na medida em que um enunciado logicamente válido pode conter uma

falsidade decorrente da incorreção das premissas ou da conclusão. Nas "Investigações

743

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. 744

COSTA, Regenaldo da. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 80. 745

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:

Editora USP, 1968. p.76- 77. 746

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:

Editora USP, 1968. p. 87. 747

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de José Arthur Giannotti. São Paulo:

Editora USP, 1968. p. 100-101. 748

"Num experimento gramatical - que cuida da correção da linguagem e não dos valores-de-verdade das orações -

, posso substituir vocábulos nos lugares adequados e ainda que dê orações corretas, enunciados falsos,

formalmente a estrutura se mantém intacta. Assim, é formalmente válido enunciar. "toda árvore é um metal / esta

coisa é uma árvore / então esta coisa é um metal", ainda que uma premissa e a conclusão sejam falsas. A

validade é propriedade da forma lógica de relacionar independente do conteúdo gramatical e conceptual das

proposições constituintes. A validade independe da correção gramatical e da verdade empírica. Há algo próprio

na forma lógica" (VILANOVA, 1997, p. 45).

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194

Filosóficas" vai descortinar o conceito de "jogos de linguagem" com o qual denomina os

processos de aprendizado linguístico, assim como aqueles em que se estabelece uma relação

entre um nome (um código) e um objeto correspondente749

. Nesse trabalho há certo resgate do

papel da filosofia em sua relação com a linguagem. Não mais apenas de ordem descritiva, mas

como "uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios de nossa

linguagem"750

, ou seja, os enganos decorrentes das "superstições" linguísticas podem ser

apontados pela filosofia, que mesmo sem possuir uma força transformadora da linguagem ou

do uso efetivo da linguagem, ao descrevê-lo, pode tornar visíveis as suas contradições: ‘Os

resultados da filosofia consistem na descoberta de um simples absurdo qualquer e nas

contusões que o entendimento recebeu ao correr de encontro às fronteiras da linguagem. Elas,

as contusões, nos permitem reconhecer o valor desta descoberta”.751

O que Wittgenstein propõe nas "Investigações Filosóficas" é a recondução da

utilização das palavras ao seu sentido cotidiano, pois o entendimento recíproco entre

interlocutores fica bastante prejudicado quando se empregam palavras em sentido metafísico,

ou seja: as palavras, antes de servirem à elucidação da essência ou da substância de objetos,

servem para estabelecer um nexo de compreensão para que as pessoas possam se relacionar

cotidianamente a partir do compartilhamento intersubjetivo do sentido que expressam. Essa

constatação levou Andréa Alves de Almeida a afirmar que Wittgenstein "não fez o giro

linguístico, pois a linguagem em sua teoria é meio de sobrevivência, se volta para a mera

utilidade, decorre de seu próprio uso e está, portanto, no tempo histórico do aqui e agora"752

.

Com isso, a filosofia da linguagem apenas radicaliza a pragmática como sendo a

“mãe eterna da semântica”, e seus “jogos de linguagem” são apenas expressão da “rede

historicista”, decorrente de um culturalismo reprodutor de dominação social753

. Com amparo

em Greimas, pode-se afirmar que um método científico que se concentre na discursividade do

Direito deve, sim, compreender a linguagem como universo semântico e não descartar que

este se compõe do universo da imanência e da manifestação e que ambos se articulam de

modo a permitir que a análise já ocorra desde a verificação do sema, isolado ou em conjunção

749

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. p. 30. 750

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. p. 65. 751

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova

Cultural, 1999. p. 66. 752

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012. p. 132. 753

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 276.

Page 187: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

195

com outros754

, numa reciprocidade enunciativa755

. Sem dúvida, trata-se de uma abertura à

complexidade e à contingência como possibilidades que constituem o mundo além ou diverso

das expectativas estabelecidas pela via sensorial na experiência756

. O Direito, nessa

perspectiva, deve reconhecer sua "estrutura mutante" inserida em uma realidade que se

apresenta "pluri-discursiva e polissêmica"757

.

O que parece evidente é que o Direito, enquanto linguagem, para se submeter à

crítica científica ou mesmo à uma testificação reconstrutiva, recriativa ou reformulativa, deve

ser encarado como linguagem objeto e analisado sob a perspectiva de uma metalinguagem758

.

Contudo, há uma diversidade de propostas sobre qual seria o método metalinguístico mais

apropriado ao direito. Para Eduardo Bittar, esse papel cabe à Semiótica759

. Enquanto que para

Lourival Vilanova, a lógica formal exerceria essa função760

, observa-se pelas conclusões da

ciência processual pós-moderna que o Processo institucionalizado constitucionalmente é que

reúne os contornos teórico-metodológicos para atuar como metalinguagem, pois fornece as

bases epistemológicas de aferição dos conteúdos linguísticos761

.

Com isso, o que se busca, é a redução da carga de subjetividade das decisões,

problema que levaria à insegurança jurídica e à imprevisibilidade. Assim, se estabelece uma

crítica ao positivismo jurídico, que seria campo fértil para a discricionariedade, sobretudo

jurisdicional, na medida em que ao juiz não seria dado abster-se de decidir alegando lacunas

no ordenamento, que seria, por sua vez, dotado de completude lógico-jurídica, imune a

contradições, tendo sempre uma proposição normativa capaz de abarcar qualquer conduta

humana762

. No positivismo, a busca pela segurança jurídica se torna apenas uma justificativa

retórica que, paradoxalmente, abre as portas ao mais evidente decisionismo, legitimando

assim o protagonismo judicial que, por vezes, resulta em criticável ativismo, quando

desconsidera a processualidade na busca da estabilização do sentido normativo.

754

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e

Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 138. 755

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008a. p. 94. 756

LUHMANN, Nicklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1983. p. 45. 757

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 44. 758

Pelo teorema de Gödel não é possível provar a não contradição de um sistema simbólico dentro deste mesmo

sistema, criando assim, a metamatemática. No mesmo sentido fala-se em metalinguagem quando o objeto sobre

o qual se debruça é um símbolo ou fato linguístico. (ABBAGNANO, 2007, p. 667) 759

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 49. 760

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997.

p. 197. 761

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178 762

VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,

1997.p. 242.

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196

A pesquisa buscou até aqui estabelecer os contornos do Devido Processo Legal,

tendo como base epistemológica a proposta pós-moderna da Teoria Neoinstitucionalista. A

abordagem desenvolvida ressaltou a insuficiência teórica da acusatoriedade e da

inquisitoriedade frente à configuração do Processo Penal no paradigma democrático. Nos

capítulos finais serão abordadas algumas propostas que se apresentam como alternativas ao

embate dogmático que tanto vem travando a evolucionariedade desse segmento normativo.

Da crítica às propostas, que levam à desprocessualização, ao apontamento da

interenunciatividade pela fixação dos conteúdos pós-modernos da teoria da prova, a pretensão

é concluir a tese, demonstrando pela teoria democrática do sistema que acusatoriedade e

inquisitoriedade devem ser estudados como princípios e não como sistemas processuais,

posição em que se configuram como obstáculos epistemológicos ao Processo Penal

democrático.

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197

7 AS DOUTRINAS DE UM DIREITO JUSTO E A DESPROCESSUALIZAÇÃO DA

PROCEDIMENTALIDADE PENAL

O percurso investigativo até aqui desenvolvido permitiu observar a existência de uma

inegável crise de contornos dogmáticos no Processo Penal em razão das oscilações entre

acusatoriedade e inquisitoriedade no curso histórico. A pesquisa buscou demonstrar as

insuficiências teóricas do idealismo e da filosofia da consciência na busca pela estabilização

do sentido normativo no paradigma democrático. As vertentes apresentadas pela filosofia da

linguagem podem significar um ganho neste sentido, desde que se adote uma concepção

hermenêutica voltada para a articulação teórica entre os direitos fundamentais de vida,

liberdade e dignidade com os princípios constitucionais que instituem o Processo, ou seja,

contraditório, ampla defesa e isonomia. Neste tópico, a abordagem da pesquisa se concentra

no escrutínio de algumas propostas que se apresentam como portadoras de democraticidade,

na tentativa de superar a crise dogmática do Processo Penal, tanto no plano teórico quanto

prático.

Algumas concepções teóricas, de notável heterodoxia, se restringem ao campo das

ideias como, por exemplo, a transposição da hermenêutica filosófica para o Direito,

empreendida por Lênio Luiz Streck e o esforço de Antônio Alberto Machado para estabelecer

uma ligação entre o marxista radical Antônio Gramsci e o Processo Penal. Outra postura

digna de nota no plano teórico é a proposta jurídico-sociológica de Eligio Resta, que investe

na concepção de "Direito Fraterno" como alternativa epistemológica.

No plano da praxis, podemos apontar as alternativas que apostam em conceitos como

"Justiça Restaurativa", "Justiça Terapêutica" e "Justiça Instantânea", apresentadas como

verdadeiras revoluções paradigmáticas para o Processo Penal. Mas o que se observa é que tais

propostas constituem excentricidades, pois sequer podem ser identificadas como isotopias de

um mesmo discurso763

, uma vez que se encontram no exterior do discurso processual, pois

não primam pela observância de sua principiologia institutiva.

7.1 A proposta da Hermenêutica Filosófica e suas insuficiências no plano democrático

Lenio Luiz Streck entende que a superação do esquema sujeito-objeto se dá através

do chamado giro hermenêutico e da diferença ontológica, com fundamento em Heidegger e

763

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural: pesquisa de método. Tradução de Haquira Osakabe e

Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1976 . p. 94.

Page 190: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

198

Gadamer, preconizando o que denomina hermenêutica filosófica, em contraposição às

insuficiências da hermenêutica jurídica, que mesmo diante das diversas teorias da

argumentação, não atenderia às demandas democráticas.

No pensamento de Lenio Streck percebe-se a desconsideração do papel

metalinguístico exercido pelo Direito Processual na estabilização do sentido normativo,

proporcionando um direito igual de interpretação (hermenêutica isomênica), que não se rende

ao dogma da completude do sistema764

, superando assim, o solipsismo decisório, próprio das

teorias interpretativas que se fundamentam na filosofia da consciência. A hermenêutica

jurídica é apontada por Lenio Streck como portadora de uma tensão entre texto e o sentido por

ele alcançado na aplicação concreta, tensão que também se verificaria na hermenêutica

teológica765

. Tal fato se deve à tradição consolidada pela prevalência da filosofia da

consciência, que fatalmente resulta em discricionariedade judicial.

Com amparo em Gadamer, Lenio Streck sustenta que o processo interpretativo

clássico, que se dá por etapas, e pelo qual o sujeito primeiro compreende, depois interpreta e

por último aplica, expressa uma cisão inadmissível do processo interpretativo, na medida em

que um intérprete não extrai um sentido que o texto possui em si mesmo, mas sim atribui

sentido ao texto. Daí, que a grande revolução copernicana no campo da interpretação se daria

a partir de dois teoremas fundamentais: O círculo hermenêutico e a diferença ontológica766

.

O chamado linguistic turn, já abordado no capítulo anterior, seria uma tentativa de

superar tal esquema, na medida em que o conhecimento estaria na linguagem e não na

consciência: “O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir do que se pode dizer

que o que morre é a subjetividade “assujeitadora”, e não o sujeito da relação de objetos”767

.

Sobre o círculo hermenêutico afirma que este “atravessa a relação sujeito objeto, a partir da

antecipação de sentido, impedindo o objetivismo e o subjetivismo, próprios do pensamento

metafísico”768

. Quanto à diferença ontológica, sustenta com base em Heidegger que o “ser é

sempre o ser de um ente”, o que faz com que sejam superados os dualismos metafísicos, tais

764

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 58. 765

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008. p. 128. 766

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008. p. 131. 767

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2010.p. 14-15. 768

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008. p. 131.

Page 191: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

199

como: essência e aparência, questão de fato e de direito, texto e norma, casos fáceis e casos

difíceis769

.

Desse modo, é por intermédio de Heidegger que a hermenêutica deixa de ser

normativa e passa a ser filosófica, “onde a compreensão é entendida como estrutura

ontológica do Dasein (ser-aí ou pre-sença)”770

. Como o único ente que compreende o ser é o

homem, somente este homem-no-mundo é que poderia, mediante a compreensão, alcançar um

horizonte de sentido, pois “compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o

homem se constitui”771

. Com isso, o autor sustenta que compreender não é um modo de

conhecer, mas um modo de ser, razão pela qual, em sua perspectiva, a epistemologia deve ser

substituída por uma ontologia da compreensão772

.

O paradoxo reside no fato de que a proposta de Lenio Streck, ao difundir sua

hemenêutica filosófica, preconiza um intérprete que, não obstante sofrer a influência da

linguagem em sua compreensão, ainda assim chega a uma decisão pretensamente correta, mas

carregada de subjetividade, numa demonstração de que o dualismo metafísico ainda

permanece, mesmo afirmando que “o processo unitário de compreensão, pelo qual interpretar

é aplicar (applicatio), desmitifica a tese de que primeiro conheço, depois interpreto e só

depois aplico”773

.

Em certo ponto de sua produção científica Lenio Streck procura sair do paradoxo em

que se envolveu, com recomendações do tipo:

A compreensão só alcança suas verdadeiras possibilidades quando as opiniões

prévias com as que inicia não são arbitrárias. Em razão desta circunstância, é

importante que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, desde as opiniões

prévias que lhe subjazem, senão que examine tais opiniões enquanto a sua

legitimação, isto é, enquanto a sua origem e validade.774

769

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008.p. 132. 770

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p. 170 771

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008.p. 134. 772

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008. p. 139-140. 773

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e possibilidades críticas do direito: ensaio sobre a cegueira positivista.

Revista da Faculdade de Direito: Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.52 , p. 127-162,

jun. 2008. p. 143. 774

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.p.

179.

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200

Sustenta com base em Gadamer, que frente ao texto não cabe ao intérprete introduzir

acriticamente aquilo que chama hábitos linguísticos, sendo sua tarefa na busca da

compreensão, adotar uma perspectiva que leve em conta os hábitos linguísticos do tempo em

que o texto foi produzido e de seu autor775

. No entanto, ainda que o intérprete seguisse tal

recomendação, o resultado de sua atividade se daria em um recinto indevassável, interditando

assim qualquer possibilidade de explicitação dos argumentos que conduzem à compreensão.

Tal postura de abandono do método e crítica radical às teorias da argumentação

jurídica pode resultar em condenável solipsismo decisório, de viés discricionário. Como

demonstra Manuel Atienza, a argumentação e o método possuem a tríplice função de

contribuir para a construção de sistemas jurídicos hábeis, contribuir para um ensino jurídico

de bases racionais e permitir que sejam identificadas as ideologias políticas e morais que

subjazem a determinada argumentação, o que não é possível através da hermenêutica

filosófica776

, pois esta não leva em consideração os conteúdos isegóricos e isomênicos que,

conforme a Teoria Neointitucionalista do Proceso, são operacionalizados pelos princípios

institutivos da processualidade democrática777

.

7.2 Gramsci e processo: uma evidente incompatibilidade

A abordagem de Antônio Alberto Machado sobre os rumos que o Processo Penal

deve tomar no Estado Democrático de Direito é das mais curiosas. O autor propõe o

acolhimento das concepções de Antonio Gramsci, marxista italiano, expoente tardio do

socialismo utópico. Partindo do conceito gramsciano de hegemonia, o autor defende que um

Processo Penalverdadeiramente democrático deveria ser dirigido pelos chamados “aparelhos

privados de hegemonia”, que seriam os conselhos populares de polícia, de justiça,

penitenciários e até de instrução criminal. Assim, a sociedade civil assumiria a direção

política e ideológica no lugar dos aparelhos repressivos do Estado e da sociedade tradicional,

fazendo emergir uma sociedade regulada por um Estado ético, através do consenso e do

diálogo778

.

Ora, uma análise, ainda que superficial, do pensamento gramsciano nos permite

constatar que se trata de um pensador, cuja concepção de democracia reflete o debate de uma

775

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 776

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina

Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003. p. 225. 777

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. 778

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 49-55.

Page 193: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

201

época entre-guerras e apresenta tendência autoritária. Era daqueles socialistas que já

propugnavam a superação do proletariado pelo "partido" como força política hegemônica e

totalitária. Ele concebe o "partido" como o "moderno príncipe", que, ao contrário do príncipe

de Maquiavel, não era uma pessoa física, mas um ente que “desenvolvendo-se subverte todo o

sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que cada ato é concebido como útil

ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como referência o

próprio "moderno príncipe" e serve para acentuar o seu poder ou contrastá-lo"779

.

O "moderno príncipe" toma o lugar nas consciências da divindade e do imperativo

categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a

vida e de todas as relações de costume780

. Como se nota, não há uma preocupação em superar

a dominação do Estado por uma processualidade jurídica, mas apenas em substituí-la por

outra espécie de dominação personificada na estrutura do partido. Semelhante pensamento

não se abriga sob o paradigma democrático. Por consequência, a tentativa de aproveitar tais

concepções, justamente no Processo Penal, não guarda compatibilidade com a

constitucionalidade democrática e, no limite, restauraria as mais primitivas formas de justiça

popular781

, que teria como base de sustentação um indesejável panoptismo social, desde a

base até o vértice do sistema de poder782

.

7.3 O Direito fraterno e sua ambivalência

Outra vertente que tem adquirido projeção é desenvolvida pelo autor italiano Eligio

Resta. Trata-se do Direito Fraterno. Uma sedutora construção fundada no terceiro elemento

do lema revolucionário francês, a fraternidade:

O código fraterno, código do nascimento, de fato vincula um dever de obediência

em troca da cidadania: Dessa forma, em caso de transgressão ou dissenso, podem ser

no máximo "criminosos", mas não "inimigos". A comunidade política e o Estado-

nação acrescentou a si o pressuposto da amizade política ao interno e exportou a

inimizade ao externo. Ao fazê-lo, tenta superar o paradoxo bíblico de irmãos

inimigos que transborda frequentemente nos mitos de fundação a culpa do assasino,

que acompanha como uma sombra a vida de uma comunidade política. Se tornará

mito moderno pela face do tiranicídio, mas continuará a falar da própria violência

779

GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1978. p. 9. 780

GRAMSCI, Atonio. O moderno príncipe In: MAQUIAVEL. A política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1978. 781

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 20. ed. São Paulo: Graal,

2004.p. 39. 782

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. p. 107.

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mesmo na democracia. Do tyrannum licet dicipere do antigo direito de resistência ao

direito fraterno das modernas Constituições o passo não é intransponível (Miglio,

1992).

É nesse mundo oculto dos símbolos de violência que a fraternidade, agora

transformada em amizade política, retorna à história das instituições modernas.

(tradução nossa)783

Demarcada a condição territorial e ética para o estabelecimento de um código, que

vai acolher a todos os cidadãos sob o manto de uma fraternidade jurídico-política, importa

indagar os fundamentos pelos quais essa fraternidade vai se articular, permitindo que não nos

tornemos dependentes de uma expectativa de comportamento para que se inaugure uma nova

etapa do Direito e que esta possa vir acompanhada de predicados como humanidade,

altruísmo, solidariedade, fraternidade, superando assim as categorias positivistas do direito

objetivo ou subjetivo784

. É por essa vertente que se afirma o advento de um

constitucionalismo fraternal capaz de incorporar “às franquias liberais e sociais de cada povo

soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas”785

,

pelo reconhecimento de que existem “segmentos sociais historicamente desfavorecidos”786

,

como negros, mulheres, deficientes físicos, que são merecedores de medidas assecuratórias

interventivas que vão além da proibição do preconceito. Direitos coletivos como o equilíbrio

ecológico e a democracia também são reconhecidos e protegidos nessa etapa fraternal de

desenvolvimento da ciência jurídica.

É temerário crer na fraternidade como algo intrinsecamente civilizatório, capaz de

assegurar a convivência pacífica. É na fraternidade (ou no rompimento dela) que reside o

crime fundamental que está na raiz mitológica da existência dos povos (Rômulo matou Remo,

Caim matou Abel)787

. O romance de George Orwell, 1984, demonstra como uma fraternidade

ou irmandade pode também adquirir contornos sombrios de dominação autoritária. A

narrativa é ambientada em um sistema político engendrado por uma complexa estrutura

783

"Il codice fraterno, codice della nascita, appunto, vincola a un'obbedienza in cambio di cittadinanza: per

questa via si può essere, in caso di trangressione o di dissenso, al massimo criminali, ma non "nemici". La

comunità politica, e lo Stato-nazione ha aggiunto del suo, presuppone l'amicizia politica all'interno ed esporta

I'inimicizia all'esterno. Così facendo tenta di superare il paradosso biblico dei frateli nemici che trasfonde spesso

nei miti di fondazione la colpa di un assassinio, che accompagna, come un'ombra, La vita della comunità

politica. Diventerà mito moderno acquistando il volto del tirannicidio, ma continuerà a far parlare della propria

violenza persino ogni democrazia. Dal tyrannum licet decipere dell'antico diritto di resistenza al diritto fraterno

delle moderne Costituzioni il paso non è insormontabile (Miglio, 1992). È in questo mondo nascosto di simboli

della violenza che La fraternità, volto trasformato dell'amicizia politica, ritorna nella storia delle istituzioni

moderne." (RESTA, 2008, p. 15). 784

CUNHA, Paulo Ferreira da. Do direito natural ao direito fraterno. Revista de Estudos Constitucionais,

Hermenêutica e Teoria do Direito, Unisinos, v.1, n.1, jan./jun., p.78-86, 2009. p. 85. 785

BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216. 786

BRITTO. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 216. 787

ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,

2011.p. 68.

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linguística de dominação que consistia em fazer com que as pessoas se sentissem observadas

o tempo todo, pelo Big Brother, o Grande Irmão. Uma figura que ninguém sabia ao certo se

existia de fato, pois qualquer indagação sobre isso era vista como um ato de rebeldia,

severamente punido. Assim, romper com o pater, incorporando o frater788

, consistia apenas

em submeter a todos a um novo tipo de dominação, difusa e por isso, mais perversa.

Cartazes do Big Brother mostravam um homem que observava o observador por

onde ele se deslocasse. O tal cartaz tinha uma inscrição: The Big Brother is WachtingYou, que

na tradução para o português virou: “O Grande Irmão Zela Por Ti”. Escrito na década de 40, o

livro mostra uma impressionante e assustadora caricatura do totalitarismo socialista e suas

redes perversas de dominação. O grande mecanismo de dominação nesse sistema, no entanto,

era linguístico. Consistia na atuação constante e soberana de certo “Ministério da Verdade”,

cuja missão era por em prática o lema: Quem controla o passado, controla o futuro. Quem

controla o presente, controla o passado.

Esse mecanismo produzia, então, um eterno presente em que todas as informações

indesejáveis sobre o passado eram sistematicamente apagadas, as pessoas relacionadas

àqueles fatos simplesmente consumidas, e todos os registros sobre elas igualmente

suprimidos. Todos os documentos indesejáveis sobre o passado eram inseridos num tubo

pneumático onde eram sugados e destruídos para sempre. Havia no “Ministério da

Verdade”uma contínua supressão do passado e um incessante controle do presente para com

isso controlar o futuro. E para sustentar todo esse sistema criou-se não só uma linguagem,

mas uma língua própria chamada novilíngua.

Essa estranha novidade se baseava numa verdadeira perversão da linguagem

subvertendo os significados. O mantra governamental era: guerra é paz, liberdade é

escravidão, ignorância é força. Isso dá uma ideia da força estratégica da novilíngua que, para

ser compreendida, exigia dos falantes e receptores o emprego de um tipo de raciocínio

esquizofrênico denominado duplipensar. Para exemplificar segue um trecho em que o

personagem principal, Winston, recorre ao duplipensar: p. 26/27 – “Seu espírito mergulhou

no mundo labiríntico do duplipensar. Saber é não saber, ter consciência de completa

veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas

opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica

contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da

democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse

788

VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec.

n. 012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 127.

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204

necessário esquecer; e acima de tudo aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a

sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente

do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar”

era necessário usar o dupliensar”789

.

A menção à distopia orwelliana tem aqui o sentido de mostrar os contornos

totalitários que a fraternidade pode apresentar. Quando Eligio Resta propõe que o Direito

convirja para os moldes de uma verdadeira confraria cosmopolita790

, sendo elaborado e

aplicado segundo o código fraterno, o faz certamente por bons propósitos. Na concepção de

Resta, a fraternidade vai romper com a paternidade (a autoridade do pater, senhor da guerra).

Isso implica romper com a ideia de Estado-nação e, consequentemente, com a contraposição

amigo/inimigo que lhe é inerente.

Enquanto o amigo se define por ser a própria expressão da alteridade, heteros, que se

relaciona com o autos de forma que o indivíduo se sente confortável a condividir com este

outros aspectos relevantes da própria existência791

, o inimigo é a antítese, porém, não portador

de um mal intrínseco, mas por estar dissociado, enquanto o amigo está associado. É o outro, o

estrangeiro com quem os conflitos não podem ser resolvidos normativamente ou através de

um terceiro imparcial, mas somente através da hostilidade da guerra792

. A inimizade, contudo,

nem sempre fica restrita aos que estão ou provém d'além fronteiras. O criminoso é também

considerado um inimigo, um inimigo social, interno, que com sua conduta perturba a

sociedade ao romper com o pacto social, devendo não só ser punido por seus atos, mas

também contido por suas "virtualidades" como bem demonstra Foucault793

. O conceito de

inimizade também permitirá construções como a de Günther Jakobs, que defende a

legitimidade e a necessidade de um Direito Penal do inimigo para aqueles que se dedicam a

destruir o próprio ordenamento jurídico com suas condutas altamente lesivas e

imprevisíveis794

. Tais indivíduos, os inimigos, não devem usufruir das mesmas salvaguardas

jurídicas dos cidadãos.

Eligio Resta atribui ao Direito Fraterno propriedades que permitirão romper com o

que chama de "egoísmo míope", expresso por leis de imigração e outras que se fundam em 789

A síntese acima resultou da leitura da seguinte tradução da obra: ORWELL, George. 1984. Tradução de

Wilson Velloso. 10. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. 790

RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 132. 791

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.

Chapecó: Argos, 2009. p. 89. 792

SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes,1992. p. 52. 793

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Moraes. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.p. 81; 85. 794

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Tradução de André

Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 42.

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um ethnos excludente. Além de inclusivo e cosmopolita, o Direito Fraterno se propõe à não-

violência, reconhecendo que o modelo monopolista de jurisdição, como mecanismo de

resolução de conflitos, padece atualmente da ambivalência do pharmakon: ao mesmo tempo

remédio e doença, antídoto e veneno:

Ou seja, condena-se salvando e se salva condenando; cura-se adoecendo e adoece-se

curando. A técnica é o lugar do aumento da complexidade e, portanto, do aumento

das possibilidades. Assim, a fraternidade não considera a técnica como algo que se

"abre" ou se "fecha", mas como algo que alcança a philia das contradições e da

ambivalência. Por exemplo, o corpo humano: a técnica pode reduzir (e reduz) o

corpo humano em mercadoria, mas pode também, ao mesmo tempo, desvelar novas

dimensões de solidariedade.795

Como forma de mitigar os efeitos paradoxais da técnica jurídica, o Direito Fraterno

vai investir na mediação e na conciliação visando minimizar os aspectos violentos da

atividade jurisdicional, monopolizada pelo Estado e a consequente "tribunalização da

história". A construção jusfilosófica de Eligio Resta pretende ainda se sustentar sobre a

inderrogabilidade universal dos direitos humanos e não sobre os postulados

mercadológicos796

.

Mas os esforços de Resta não são suficientes para que se esqueça que a fraternidade

como lema revolucionário é, antes de tudo, um conceito atrelado à concepção icônica de

povo, não à totalidade da população, pois só serão considerados citoyens (cidadãos) aqueles

comprometidos com o bem comum e a virtude política, ou seja, conforme os preconceitos que

emergiram, somente os integrantes do terceiro estado e a nova burguesia, excluindo-se a

nobreza eclesiástica e o lumpemproletariado797

. Ao se voltar contra a atividade jurisdicional,

Resta demonstra não ter alcançado a concepção de processualidade democrática, tanto que

confia a defesa e preservação dos direitos humanos à mediação e à conciliação, pois considera

que a jurisdição estatal não tem assegurado o necessário pluralismo e a consequente

proximidade das partes com a solução da controvérsia798

.

Com isso, percebe-se que em sua concepção, o "povo" apresenta contornos icônicos

além de não ostentar a qualidade emancipatória que lhe permitiria operacionalizar de forma

autocrítica as próprias estruturas jurídicas da democracia, ou seja, povo, como sendo a

totalidade dos cidadãos legitimados ao processo. Devido processo instituído pelo próprio

795

VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.

012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 130. 796

RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 131-134. 797

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. 3. ed. Tradução de Peter

Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 72. 798

RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed. Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 87.

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povo, o que dispensa a inserção em qualquer tipo de confraria para que se possa criar, recriar,

aplicar e interpretar direitos fundamentais799

. Declarar o declínio do Estado-nação e pregar a

não violência, apostando em uma "Constituição sem inimigos, uma Constituição sem

povo"800

, são esforços insuficientes para assegurar democraticidade, pois beiram a

mistificação801

.

7.4 Justiça restaurativa, justiça terapêutica e justiça instantânea

O Direito Processual, no Estado Democrático de Direito, é indispensável à resolução

dos conflitos jurídicos, sejam estes de que espécie for802

, sendo temerário invocar conceitos

marcados por forte ambiguidade, como Direito Fraterno, Justiça Restaurativa, Justiça

Terapêutica e Justiça Instantânea, para que apontem uma nova aurora para a crise dogmática

esquadrinhada ao longo deste trabalho. A superação do debate arcaico, contudo, não parece

ser possível através de formulações ainda insuficientemente esclarecidas, como é o caso das

vertentes que apontam como saída para a crise do Processo Penal, as instigantes concepções

encontradas no trabalho coletivo coordenado por Salo de Carvalho e Rodrigo de Azevedo, no

âmbito de produção científica da Pós-graduação em Ciências Penais da PUC do Rio Grande

do Sul803

.

O mesmo ambiente científico já havia produzido outro trabalho de grande

repercussão e com o mesmo propósito intitulado "Diálogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e

Antíteses sobre os Processos de Informalização e Privatização da Justiça Penal", organizado

também por Salo de Carvalho, desta feita em parceria com Alexandre Wunderlich804

. Há uma

escola processual relevante se desenvolvendo em torno desses temas, com autores se

posicionando criticamente de modo a expor aporias e fragilidades, mas também as

possibilidades evolucionárias por eles indicadas.

799

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 50. 800

VIAL, Sandra Regina Martini. Direito fraterno na sociedade cosmopolita: contribuiciones desde Coatepec. n.

012. Toluca: Universidade Autónoma del Estado de México, 2007. p. 137. 801

O Estado-nação, que surgiu e se consolidou após a Revolução Francesa como a mais forte expressão do Estado

na modernidade, teve seu período de maior declínio na Europa após a Primeira Guerra Mundial, o que acabou

por produzir um cenário de desintegração, que se notabilizou por uma guerra de todos contra todos em que as

primeiras vítimas foram as minorias e os Direitos Humanos, até então considerados inalienáveis. (ARENDT,

1998, p. 301). 802

BENABENTOS, Omar Abel. Teoria general del proceso. Rosario: Editorial Juris, 2002. v.1. p. 89. 803

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas

formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006. 804

CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses

sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

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207

O conceito de Justiça Restaurativa é reconhecidamente indeterminado, o que

dificulta identificar quais são realmente seus contornos teóricos e normativos. Seus objetivos,

contudo, podem ser definidos como "direcionados à conciliação e reconciliação entre as

partes, à resolução do conflito, à reconstrução dos laços rompidos pelo delito, à prevenção da

reincidência e à responsabilização"805

. Há, assim, uma nova privatização do delito, sendo

reconhecido que o sistema penal teria também um compromisso com a reparação dos danos às

vítimas, superando a dicotomia entre os que defendem um Direito Penal clássico, de

característica tutelar, e um Direito Penal mais autoritário, com o aumento das prerrogativas do

poder Executivo em termos de iniciativas nesse segmento jurídico806

.

No Direito Processual Penal brasileiro foram inseridos, desde a promulgação da

Constituição de 88, diversos institutos jurídicos que apontam num sentido de privatização dos

conflitos penais, permitindo soluções negociadas e dialogadas, a sinalizar que a superação da

crise dogmática do Processo Penal passa pela sumarização de procedimentos, encurtando

caminhos e eliminando entraves à atuação estatal, como é próprio da acusatoriedade inglesa,

em que a Corte da Coroa chega a oferecer "descontos" da ordem de 30% no montante das

penas, incentivando as assunções de culpa, tendo como norte a celeridade, a efetividade e a

redução dos custos807

. No Brasil, há certo acanhamento em se falar do aspecto utilitarista

desses institutos negociais ou restaurativos, que resultaram no paradoxo do aumento da

judicialização dos conflitos, havendo mesmo uma explosão no número de casos que antes

eram resolvidos pelos próprios envolvidos e passaram a ser absorvidos pelo Sistema Penal,

como foi o caso das condutas abarcadas pelos Juizados Especiais Criminais que, em

contraponto com a Lei dos Crimes Hediondos, faz com que os chamados delitos da

normalidade, sejam de fato, exceção808

.

Em meio a esse paradoxo, a Justiça Restaurativa pretende fazer frente ao crescimento

da violência e às constantes violações dos direitos humanos, como deixa claro Raffaella da

Porciuncula Pallamolla:

Frente a este quadro de crescimento da violência, desrespeito aos direitos civis e

805

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,

2009. p. 53. 806

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringelli Conciliar ou punir? dilemas do controle penal na época contemporânea. In:

CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses

sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

.p. 130. p. 65. 807

SPENCER, Herbert. O sistema inglês. In: DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa.

Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen

Juris. 2005. p. 292. 808

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 132-133.

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incapacidade do sistema de justiça criminal para administrar a conflitualidade social,

impõe-se o desafio de reestruturar este sistema e buscar alternativas capazes de

reduzir a violência e os danos causados pelo sistema criminal. Nesse passo, pode-se

afirmar que o projeto da justiça restaurativa vincula-se ao processo de reformulação

judicial que vem sendo desenvolvido no Brasil com o objetivo de adequar tanto a

legislação quanto as estruturas judiciais ao contexto democrático.809

Na esteira dessas afirmações é possível identificar como iniciativas restaurativas e

conciliatórias a composição civil dos danos e a transação penal (arts. 72 e 76 da lei 9.099/95),

o atendimento multidisciplinar envolvendo vítima e agressor no caso de violência doméstica

contra a mulher (art. 30 da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha) e mesmo em outros casos (§

5º, do art. 201 do Código de Processo Penal), a remissão prevista no Estatuto da Criança e do

Adolescente (art. 126 da lei 8.069/90), o acordo de leniência no caso de infrações contra a

ordem econômica (art. 35-B da lei 8.884/96) e a delação ou colaboração premiada prevista

nos mais diversos diplomas legislativos como Lei dos Crimes Hediondos (art. 8º, parágrafo

único da lei 8.072/92), Lei de Proteção a Testemunhas (art. 14 da lei 9.807/99), Lei de Drogas

(art. 41 da lei 11.343/06) e Lei de Combate às Organizações Criminosas (arts. 4º, 5º, 6º e 7º da

lei 12.850/2013). Tais dispositivos instauram no Brasil o chamado Direito Penal Premial, em

que o inimigo é restaurado à condição de amigo, na medida em que se dispõe a colaborar com

o sistema repressivo penal, permitindo às partes envolvidas adotarem uma postura

utilitarista810

.

O cálculo utilitarista instrumentalizado no âmbito de resolução dos conflitos

penais811

recebe alentadas críticas calcadas na tradição romano-germânica, sempre resistente a

tudo que possa significar redução da presença estatal no Processo Penal, o que fatalmente

pode significar supressão de garantias aos acusados e a revitimização do ofendido como, aliás,

aponta Salo de Carvalho:

Lógico que, ao não vermos o processo penal como instrumento adequado para

satisfazer a vítima e buscar a reparação do dano, não propugnamos uma abstenção

estatal na sua tutela. Todavia, a ação não pode ocorrer no interior do necessário

processo penal, que diz respeito fundamentalmente à tutela do réu. Ressalte-se: o

processo penal é revestido de uma instrumentalidade garantista, direcionada à

defesa do imputado/réu contra os poderes públicos e/ou privados desregulados, e

não da vítima.

Aliás, desde o plano empírico-sociológico, tão presente nos argumentos

abolicionistas, poderíamos afirmar que trazer a vítima ao processo é deflagrar

processo de revitimização, potencializando novamente os efeitos da lesão sofrida

anteriormente, pois se o escopo do processo é a reconstrução de um fato pretérito

809

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,

2009. p. 138. 810

RESTA, Eligio. Il diritto fraterno.4. ed., Roma-Bari: Laterza, 2008. p. 111-112. 811

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 12.

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não mais passível de experimentação para solucionar o caso penal, ao proporcionar

tal experiência à vítima, estaríamos fazendo com que ela revivesse aquele momento

de dor e angústia.812

De fato, a Justiça Restaurativa para concretizar suas pretensões, depende de uma

predisposição psíquica dos envolvidos à superação do trauma. Do ponto de vista do agente da

infração, a superação de suas angústias para que possa, pelo apaziguamento de seu super-ego,

romper o círculo vicioso de ódio e sadismo que lhe acarreta tendências destrutivas. Por outro

lado, a vítima deve ser capaz "de perdoar o ataque sádico, agressivo e destruidor"813

. Há desse

modo, uma aposta na predisposição dos envolvidos no conflito penal e na observância dos

valores restaurativos por todos os agentes, o que faz com que, se de um lado os procedimentos

restaurativos não podem ser acusados de violadores de direitos fundamentais814

, de outro

podem constituir apenas uma expectativa inócua e ineficaz para os casos em que a alternativa

negocial, ou não tem previsão legal, ou resta frustrada.

Há, dentre os chamados "valores restaurativos", a própria ideia de "cicatrização" ou

"cura" dos males provocados pelo delito: "A restauração pode ser do bem danificado,

emocional, da dignidade, da compaixão ou do suporte social"815

. Esse aspecto terapêutico

aparece no Brasil como alternativa legal à prisão e consiste no encaminhamento do imputado

a tratamentos e cursos, como dispõem o Código Penal (art. 48, parágrafo único), a Lei de

Execução Penal (art. 1º), Estatuto da Criança e do Adolescente (com as Medidas Sócio-

educativas) e mais recentemente a Lei de Drogas que passou a estabelecer a admoestação, a

prestação de serviços comunitários e tratamento, como sanções aos usuários de drogas ilícitas

(art. 28 da lei 11.343/06).

A chamada Justiça Terapêutica se insere no contexto penal como forma de trazer ao

controle dos órgãos jurisdicionais questões que são da alçada dos órgãos de saúde pública,

como as chamadas políticas de redução de danos. No caso do tratamento de dependentes

químicos, por exemplo, encaminhar qualquer tratamento, tendo como critério o fato de ter se

envolvido em ocorrência policial, é algo temerário, de contornos autoritários e de difícil

812

CARVALHO, Salo de .Considerações sobre as incongruências da justiça penal consensual: retórica

garantista, prática abolicionista. In: CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.).Diálogos sobre a

justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informalização e privatização da justiça penal. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 150. 813

CINTRA, Ana Carolina Chagas N. Svirski; CINTRA, Mirela de. Amor, culpa e reparação nas práticas

restaurativas da justiça juvenil: considerações preliminares. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO,

Salo de (Org.). A crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto

Alegre: Notadez, 2006. p. 167-168. 814

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,

2009. p. 173. 815

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,

2009. p. 64.

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adequação teórica ao sistema de processualidade democrática:

Nota-se, ao avaliar a estrutura ideológica e as funções não declaradas do programa,

que o projeto de Justiça Terapêutica não apenas retoma os modelos defensivistas que

substituem penas por medidas, como reedita perspectiva sanitarista na qual o usuário

de drogas é visto invariavelmente como doente crônico, reincidente e incurável. Não

obstante, ao vincular na mesma categoria usuários e dependentes, não estabelecendo

as necessárias distinções, o programa estabelece pautas moralizadoras e

normalizadoras próprias de modelos autoritários fundados no periculosismo. Em

realidade, sob o declarado fim de auxiliar, via tratamento, o indivíduo envolvido

com drogas, o projeto lhe retira a qualidade de sujeito, negando-lhe possibilidades

de fala e escuta.816

A Justiça Terapêutica seguiria assim a mesma lógica da internação, do tratamento e

da segregação, denunciada por Foucault:

É evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um

mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado

que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês

de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. Daí a

supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que

permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há

apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos "a-

sociais"; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura

quanto cega— aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as

prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas.817

Ainda que se apontem como "valores restaurativos" conceitos como

"empoderamento" e "accountability, appeability", que resultariam em autonomia dos

envolvidos para encaminhar seus argumentos e versões, bem como o "poder" de não se

submeterem ao "processo restaurativo", o fundo ideológico e a falta de demarcação jurídica

podem produzir resultados bizarros em decorrência de outro "valor" acolhido por esse

sistema, a "reintegrativeshaming (vergonha reintegrativa)", que investe numa "estigmatização

não destrutiva" e que pode levar a humilhações, como o caso de um jovem que foi

constrangido a usar uma camiseta com a inscrição "I am a thief" (eu sou um ladrão)818

. A

aposta na estigmatização remete aos tribunais inquisitoriais819

e ainda hoje é perceptível no

816

CARVALHO, Salo de et al. Considerações preliminares sobre as políticas de redução de danos na Espanha e

o projeto de justiça terapêutica no Brasil. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A

crise do processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez,

2006.p. 219. 817

FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto.

São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 90. 818

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM,

2009. p. 62-63. 819

Os condenados pelos tribunais do Santo Ofício eram submetidos ao uso de hábitos penitenciais denominados

"sambenitos". Esses trajes eram confeccionados com linho cru e variavam conforme o tipo de condenado e o tipo

de penitência. Os "reconciliados" usavam um hábito com a cruz de Santo André, os condenados que se

confessaram nos últimos dias do processo usavam um hábito com chamas pintadas para baixo e os "relaxados",

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211

sistema penal, que nem sempre vai primar pela racionalidade de suas medidas.

A estigmatização ocorre de modo instantâneo, por exemplo, no caso das denúncias

de violência doméstica, em razão da busca por utilidade e efetividade da legislação, que

pretende ainda dar respostas imediatas e simplistas a problemas bem mais complexos. As

"medidas protetivas de urgência", que podem ser deferidas "de imediato" (art. 18 da lei

11.340/06 - Lei Maria da Penha), consistem numa série de restrições ao "agressor", pela

simples constatação da agressão, sem qualquer contraditório prévio. Tais medidas vão desde o

afastamento do lar até a proibição de frequentar determinados lugares e manter distância da

ofendida, em limites a serem fixados pelo juiz, dentre outras, sempre com objetivo de

"preservar a integridade física e psicológica da ofendida" (art. 22, inciso III, alínea "c" da lei

11.340/06 - Lei Maria da Penha).

Essa lei é pautada por um dualismo generalizante entre o homem-macho-agressor e a

mulher-vítima-ofendida, estabelecendo o empoderamento das mulheres no âmbito do

Processo Penal, na medida em que excluiu tais fatos da competência dos Juizados Especiais

Criminais, para fazer frente ao "arquivamento massivo dos processos, através da renúncia das

vítimas"820

, criando até mesmo uma jurisdição específica de competência híbrida (cível e

criminal), com os denominados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

(art. 1º c/c art. 13 da lei 11.340/06 - Lei Maria da Penha).

A tecnologia821

(técnica e ciência como ideologia) da Justiça Instantânea, implantada

inicialmente em 1995, com os Juizados Especiais Criminais e incrementada com a Lei Maria

da Penha, acabou resultando em generalizada sumarização do Processo Penal brasileiro,

sobretudo após a reforma ocorrida em 2008, pelas leis 11.689, 11.690, 11.719 e 11.900, que, a

pretexto de modernização das normas técnicas de procedimento, consolidou um sistema

caracterizado pela concentração dos atos instrutórios em audiência una, o princípio da

oralidade e a utilização de meios tecnológicos, tais como registro de atos por vídeo ou áudio,

além da possibilidade de interrogatório e oitiva de testemunhas por vídeo-conferência.

ou excomungados,tinham o próprio retrato pintado entre chamas e grifos com a inscrição de suas culpas. Alguns

condenados também deveriam usar na cabeça uma mitra de papel o que era sempre objeto de escárnio e infâmia.

O uso dos "sambenitos" impunha ao indivíduo uma estigmatização social duradoura. (BETHENCOURT, 2000,

Interstício ilustrativo entre as p. 190-191). 820

CELMER, Elisa Girotti. Violência conjugal contra a mulher: refletindo sobre o gênero, consenso e conflito

nos juizados especiais criminais. In: AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; CARVALHO, Salo de (Org.). A crise do

processo penal e as novas formas de administração da justiça criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.p. 255 821

Cabe aqui a constatação de Habermas de que a cientificação da técnica (tecnologia) exerce um papel de

ideologia, não havendo mais técnica ou ciência desprovidos de um conteúdo subjacente. O fato é que há sempre

uma razão política ou de Estado, além de razões econômicas por trás de qualquer evolução técnico-científica.

Fazemos essa mesma correlação com as constantes medidas de sumarização do procedimentos penais. Cf.

(HABERMAS, 1968, p. 72-73).

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212

A sumarização implementada, mesmo preservando-se a nomenclatura de "processo

ordinário", instaura um paradoxo na medida em que aposta na celeridade, reduzindo prazos e

tempo de fala, além de concentrar atos processuais de modo a não guardar qualquer

compatibilidade com o que se possa entender como ordinariedade e tudo aquilo que ela

representa em termos de possibilidades epistemológicas. Não dialogal, nem dialética, mas

dialógica ou dialítica822

.

7.5 Modelo constitucional de processo, instrumentalidade garantista e a noção de

"Giusto Processo"

A procedimentalidade penal, qualquer que seja a sua morfologia, parece guardar

sempre certa margem de permissividade para que aflorem discursos autoritários,

incompatíveis com o paradigma democrático. Como o crime em larga escala, o procedimento

penal pode ser considerado elemento de uma sociedade de risco que vai sempre clamar por

resolutividade, mesmo que para isto, tenha que engolfar indivíduos em suas práticas

perniciosas, mas indispensáveis, em razão do caráter ilusório do abolicionismo penal. Resta

aos afetados pela decisão penal, o Processo como instituição, instaurando a metodologia que

permitirá arguir se os fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito estão sendo

observados cada vez que um procedimento penal é realizado.

A perspectiva deste trabalho aponta para o sentido de que propostas de resolução dos

conflitos penais, como as abordadas, constituem alternativas parciais e pragmáticas. E, como

tal, não representam qualquer evolução epistemológica para o Direito Processual Penal, pois o

reduzem a mero procedimento quando, no paradigma da processualidade democrática, há que

se compreender sua dimensão enquanto instituição constitucional, de modo a assegurar a

plena dialogicidade em torno das questões que se contrapõem nos autos, como autêntico

método autocrítico de aplicação e testificação do Direito, pelo qual se torna possível a

incessante e progressiva eliminação dos erros, concretizando assim os direitos fundamentais

atribuídos a todos os afetados pela decisão jurisdicional.

O que se percebe é que na contemporaneidade dos estudos jurídicos é possível

conceber um Direito Processual Penal que não se filie radicalmente a nenhuma das correntes,

822

"A diálise entre suas formas constitutivas (conteúdos informativos) e suas correlações negativas (conteúdos

lógicos), aponta enunciados que se exprimem numa rivalidade interna à própria enunciação teórica entre

afirmações e negações a postularem asserções de aumento de clareza e precisão das resoluções ad-hoc de

problemas em concorrência também com outras teorias". (LEAL, 2010, p.173).

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213

nem acusatoriedade plena, nem inquisitoriedade, como, aliás, defendem Jacinto Coutinho823

,

Leonardo Augusto Marinho Marques824

e Antônio Alberto Machado. Este último chega a

traçar o perfil do juiz contemporâneo, com fortes tendências instrumentalistas e ativistas,

pautado por conceitos indeterminados e potencialmente equívocos como eficácia e justiça

social:

[...] o conceito de jurisdição ganhou contornos mais dinâmicos, já que a busca de

seus escopos sociais, políticos e jurídicos, bem como o objetivo de garantir a

efetividade do processo e os fins do Estado, supõem um órgão jurisdicional mais

atuante, com poderes de iniciativa ao longo da marcha processual, portanto, não tão

inerte como aquele juiz pretendido pela teoria processual clássica. Na visão

contemporânea de processo, o juiz tem poderes de impulsionar a causa porque tem o

dever de entregar a prestação jurisdicional com presteza e justiça, ou seja, de forma

eficaz e socialmente justa.825

Outros autores contemporâneos também enfrentam esse debate. Alguns apontam

como saída uma concepção de modelo constitucional do processo na trilha desbravada por

Andolina e Vignera826

. Filiam-se a esta corrente Flaviane de Magalhães Barros827

e André

Faria, que em pesquisa especializada rechaça veementemente qualquer possibilidade de

ativismo judicial no Processo Penal:

De maneira geral, os poderes investigatórios do juiz não podem ser aceitos, pois

dessa forma ele estaria ocupando papel reservado à acusação, o que significaria, em

tese, ofensa aos princípios da igualdade, do contraditório, da paridade de armas,

ampla defesa e imparcialidade, pois esses poderes investigatórios, após a

Constituição de 1988, não pertencem ao juiz, não sendo possível sustentar a ideia de

verdade real e consequentemente de ativismo judicial.

Na realidade, o ativismo judicial demonstra estar em total descompasso com o

modelo constitucional de processo, ofendendo os princípios do contraditório,

terceiro imparcial, presunção de inocência e in dubio pro reo cumprindo ressaltar

que basta a ofensa a um desses princípios para que todo o modelo esteja

comprometido.828

Outra vertente, defendida por Aury Lopes Júnior, como se viu, preconiza uma

instrumentalidade constitucional ou garantista que consistiria na admissão do ativismo

judicial para assegurar o projeto constitucional:

823

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Curitiba, n. 30, p.163-198, 1998b. 824

MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória. Belo

Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. 825

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009. p. 140. 826

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. 827

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo

Horizonte: Del Rey, 2011. 828

FARIA, André. Os poderes instrutórios do juiz no processo penal: uma análise a partir do modelo

constitucional de processo. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011. p. 102.

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214

[...] a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas

com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e

garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se

manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao

Direito Penal e à pena, mas, principalmente, um instrumento a serviço da máxima

eficácia das garantias constitucionais. Está legitimado enquanto instrumento a

serviço do projeto constitucional.

Trata-se de limitação do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evidente),

cuja debilidade é estrutural (e estruturante do seu lugar). Essa debilidade sempre

existirá e não tem absolutamente nenhuma relação com as condições econômicas ou

sociopolíticas do imputado, senão que decorre do lugar em que ele é chamado a

ocupar nas relações de poder estabelecidas no ritual judiciário (pois é ele o sujeito

passivo, ou seja, aquele sobre quem recaem os diferentes constrangimentos e

limitações impostos pelo poder estatal). Essa é a instrumentalidade constitucional

que a nosso juízo funda sua existência.829

Humberto Theodoro Júnior e Dierle Nunes, amparados principalmente nas lições dos

autores italianos Luigi Paolo Comoglio e Nicola Picardi, afirmam que a superação desse

embate se dá mediante o acolhimento do conceito de "processo justo", conforme o disposto no

art. 111 da Constituição italiana, que expressamente, desde 1999, passou a prever o princípio

do “Giusto Processo”, o qual se realizaria através de um contraditório compartilhado ou

dinâmico, consistente em bilateralidade de audiência, garantia de não ser surpreendido e ter

seus argumentos aproveitados na decisão:

Cria-se, assim, uma tendência e uma nova leitura paritária entre os sujeitos

processuais, sem confundir seus papéis, mas, de modo a se implementar uma

participação real com a assunção da co-responsabilidade endoprocessual por todos.

Insta, desse modo, registrar que o papel do julgador de garantidor de direitos

fundamentais, diretor técnico do processo, impõe a este dialogar com as partes para

encontrar e melhor aplicação (normativa) da tutela mediante o debate processual e,

não, através de um exercício solitário de poder.

A comparticipação advinda da leitura dinâmica do contraditório (e de outra garantias

processuais constitucionais) importa uma democratização do sistema de aplicação de

tutela.

Assim, chegaremos a uma aplicação de tutela com resultados úteis e de acordo com

as perspectivas de um Estado Democrático de Direito.830

A concepção de "Giusto Processo" está calcada, sobretudo na perspectiva de que não

basta que a decisão final seja "justa", mas também todo o desenrolar processual. Há uma

tendência na doutrina italiana no sentido de afirmar que as partes se dariam por satisfeitas se

pudessem se certificar de que foram tratadas com o devido respeito e imparcialidade, seus

argumentos foram apreciados e suas razões consideradas. O processo exerceria uma função

829

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 28-29. 830

NUNES, Dierle José Coelho; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao

contraditório no direito brasileiro: Sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de

aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, São Paulo, ano 34 - nº 168. fev. p. 107-141. 2009,

p. 140.

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215

heurística, não apenas erística (tradução nossa)831

, num primeiro momento, pela possibilidade

de verificação da adequação do procedimento ao resultado pretendido e depois pela

possibilidade de aferir se a "instituição" ou "autoridade" se portaram com o devido respeito

frente ao litigante, o que vai permitir o controle da atividade jurisdicional832

.

A expressão de democraticidade se daria pela instauração de um policentrismo

processual que, como se observa, vai se pautar exclusivamente sobre uma expectativa acerca

do comportamento do juiz: se esteé pessoa ideologicamente orientada, estrategicamente

pautada ou simplesmente alguém de índole autoritária ou democrática833

. Tal concepção

rechaça o ativismo judicial visto como pernicioso e aponta, como meio de se obter maior

aprimoramento técnico, a comparticipação mitigando assim a importância do papel diretivo

do juiz:

Uma verdadeira democracia processual será obtida mediante a assunção da co-

responsabilidade social e política de todos os envolvidos (juízes, partes, advogados,

órgãos de execução do Ministério Público e serventuários da Justiça) segundo

balizamentos técnicos e constitucionais adequados, de modo a se estruturar um

procedimento que atenda às exigências tanto de legitimidade quanto de eficiência

técnica.

Impõe-se superar a dicotomia de posições doutrinárias que ora acredita e defende

como protagonistas do processo as partes e advogados, visualizando-o como mero

instrumento de que os particulares se valem para resolver pacificamente as suas

controvérsias (liberalismo processual), e ora analisa o processo como instrumento de

bem-estar social que interessa a toda coletividade e que, por isso, deve ter como

figura central o juiz (socialização do processo).834

Mas o modelo de processo ainda prevalente é o civil, dogmaticamente estruturado

numa concepção materialista em que o devido se apresenta como sanção legislativamente

imposta aos despossuídos (potus), por juízos de conveniência e equidade, como se lê na

surpreendente crítica feita por Rosemiro Pereira Leal à concepção de "Giusto Processo":

A tradição da law of the land no socialismo científico sai do privatismo para o

coletivismo como a permutar o devido, como DEVER-SER do indeterminismo, pelo

JUSTO do determinismo hegeliano-marxista. A expressão processo justo tem raízes

no substantive due process da law of the land do idealismo alemão a conceber uma

substância primal (property como corpo-vida-liberdade) que se mostra pelo agir

como um ser tendo o direito fundante (fundamental) de ser ator-destinatário de uma

justiça social pela land (o ter produtivo desde sempre). Este justo sinalizador de um

bem-estar-geral é posto por uma falange de benfeitores que, inatos a uma estrutura

831

Enquanto a "erística" constitui a mera arte de vencer um debate pelo manejo habilidoso das palavras, a

"heurística" se define como a "arte da pesquisa" em que o objetivo maior é aprofundar o conhecimento sobre os

variados aspectos de uma questão. (ABBAGNANO, 2007, p. 340;499). 832

BERTOLINO, Giulia. Giusto processo civile e giusta decizione: riflessioni sul concetto di giustizia

procedurale in relazione al valore della accuratezza delle decizioni guidiziarie nel processo civile. XIX

Ciclo.2008. 165f. Tesi (Dottorato in Diritto Processuale Civile) - Università di Bologna, Bologna. p. 61. 833

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012.p. 190-195. 834

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2012. p. 198.

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216

atemporal do justo agir (jurisdictio), arbitram os conflitos em juízos de vida ou de

morte (conveniência ou equidade).835

Michelle Taruffo836

e Mireille Delmas-Marty837

reconhecem que tal modelo leva ao

maniqueísmo entre os princípios inquisitório e acusatório, postura esta que deve ser superada

mediante o controle da atividade judicial pelas partes, através do princípio do contraditório.

Ressalte-se que no sistema de common law, a prevalência do princípio acusatório é por vezes

mitigada por um pragmatismo contingencial, sem maiores preocupações teóricas. Tanto na

Inglaterra como nos Estados Unidos, a prevalência do plea barganing e do adversarial system

contribuem para a solução pragmática, insuficiente para que seja superada a crise dogmática

do Processo Penal. No capítulo final, a interenunciatividade, extraída da concepção

Neoinstitucionalista da Teoria da Prova, se desenvolve como princípio capaz de atribuir

contornos autocríticos ao Processo Penal, o que lhe confere democraticidade.

835

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.

(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:

Fórum, 2011. p. 588. 836

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. 837

DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a

colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005.

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217

8 O DEVIR PROCESSUAL DEMOCRÁTICO E A SUPERAÇÃO DO EMBATE

ENTRE ACUSATORIEDADE E INQUISITORIEDADE

As abordagens em torno da legitimação do Direito no paradigma da democracia, em

que os destinatários normativos devem se reconhecer como autores da ordem jurídica, se

estruturam na interligação entre o princípio do discurso e a forma jurídica institucionalizada

que vai permitir que a auto-legislação dos cidadãos não se deduza da moral ou da vontade de

pessoas singulares. Essa é a proposta habermaseana para desatar o paradoxo da legitimidade

do Direito decorrer da própria legalidade: Reconhecer a co-originariedade entre a produção do

Direito e o princípio da democracia838

.

Essa concepção se apresenta como um bom começo para as cogitações em torno da

legitimação das decisões no Processo Penal. A decisão jurídica só se legitima na

processualidade, não mais pelo senso comum de justiça dos positivistas e jusnaturalistas

sempre sustentados por um cálculo utilitário produzido arbitrariamente na busca de resultados

como a manutenção da ordem pública e da paz social, da segurança jurídica e da estabilização

de expectativas morais ou éticas, bastando ao juiz tornar compreensível a sua decisão839

. Isso

nos permite concluir pela insuficiência teórica de se afirmar a legitimação pelo procedimento

em que se busca a redução das complexidades por uma predisposição dos interessados em

aceitar a decisão840

.

8.1 Prova, verdade e complexidade interna do processo penal

Em Luhmann, o procedimento é um sistema social de ação e, como tal, deve ser

destacada a forma como se relaciona com a complexidade do mundo:

Os sistemas constituem uma diferença entre interior e exterior, no sentido de uma

diferenciação em complexidade ou ordem. O seu ambiente é sempre excessivamente

complexo, impossível de abarcar com a vista e incontrolável; em contrapartida, a sua

ordem própria é extremamente valiosa na medida em que reduz a complexidade; e

como ação inerente ao sistema só admite, comparativamente, algumas

possibilidades.841

838

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. . v. 1. p. 158. 839

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 107 840

CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos. In:

LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de

doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 104. 841

LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 39.

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218

Essa redução de complexidade é que vai permitir uma "orientação inteligente da

ação" em face do ambiente no qual o sistema se insere. Deve ser anotado que Luhmann

reconhece a existência de uma complexidade no próprio sistema que permite a abertura à

crítica e às alternativas contraditórias de comunicação842

sendo, no entanto, necessário que

cada participante cumpra adequadamente o papel que o procedimento lhe impõe como

condição prévia e isso inclui a aceitação dócil da decisão desfavorável pela parte843

, ou como

diz Terezinha Ribeiro Chaves:

o procedimento da teoria luhmanniana não garante a participação das partes em

termos de argumentação racional para fundamentação dos provimentos. Ele, ao

contrário, é um conceito sociológico e cria uma ilusão que mascara a existência de

uma espécie de "autoritarismo", manifestante no seu isolamento. Esse fechamento

arrogante é necessário à manutenção da congruência do sistema, na medida em que a

participação dos interessados no procedimento só se justifica pela necessidade de

evitar a rebeldia.844

Outra questão é que Luhmann não distingue processo de procedimento. Ele equipara

os processos judiciais às eleições e outras modalidades de tomada de decisões obrigatórias,

todos funcionando de forma a extrair sua legitimidade autopoieticamente845

, pois são

expressões do poder político que "aceita ou que até institui o seu próprio processo de

legitimação", como forma de rechaçar a legitimação proveniente de justificações morais de

conteúdo jusnaturalista846

.

Parece evidente que há mesmo uma complexidade interna do sistema processual, e o

que vai distinguir a processualidade democrática da mera procedimentalidade é a forma como

as estruturas e elementos internos vão se relacionar com a complexidade do mundo da vida,

842

LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 45. 843

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 49. 844

CHAVES, Terezinha Ribeiro. A insuficiência discursiva da autopoiesis na fundamentação dos provimentos.

In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso

de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4.p. 106. 845

"O conceito de autopoiese tem sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela. Etimologicamente, a

palavra deriva do grego autós ("por si próprio") poiesis ("criação", "produção"). Significa inicialmente que o

respectivo sistema é construído pelos próprios componentes que ele constrói. Definem-se então os sistemas vivos

como máquinas autopoiéticas: uma rede de processos de produção, transformação e destruição dos componentes

que através de suas interações e transformações, regeneram e realizam continuamente essa mesma rede de

processos, constituindo-a como uma unidade concreta no espaço em que se encontram, ao especificarem-lhe o

domínio topológico de realização. Trata-se, portanto, de sistemas homeostáticos, caracterizados pelo fechamento

na produção e reprodução dos elementos. Dessa maneira, busca-se romper com a tradição segundo a qual a

conservação e evolução da espécie seriam condicionadas basicamente por fatores ambientais. Ao contrário,

sustenta-se que a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica vinculada à sua capacidade de reprodução

autopoiética, que os diferencia em um espaço determinado." (NEVES, 2006, p. 60-61). 846

LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 31.

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219

que é circundante e sempre maior que o universo jurídico-processual847

. Isso diz respeito a

como e quando devem se realizar as interações input/outputque possibilitam as influências

causais recíprocas entre sistema e ambiente848

.

Fazzalari aponta a complexidade interna dos processos jurisdicionais afirmando que

as atividades preparatórias do provimento são aquelas que mais ocupam tempo e meios para

que os elementos necessários à tomada de decisão possam ser obtidos "no contraditório dos

interessados", mediante a dedução e o recolhimento de provas849

. Com efeito, é pela fixação

ou determinação formal dos fatos no processo, por um procedimento de busca regulado por

normas jurídicas, portanto, deformado em sua pureza lógica850

, é que se dá a interação entre o

sistema de processo e mundo circundante (input/output). Isso implica em teorizar o instituto

da prova processual de modo a apontar com mais contundência o arcaísmo do embate

dogmático entre acusatoriedade e inquisitoriedade no Processo Penal, reconhecendo que os

modos de enunciação e apreensão da prova (certeza legal, livre convencimento ou persuasão

racional)851

possuem íntima relação com os respectivos modos de manifestação dos referidos

princípios.

A parêmia ex autis, ex mundis está na raiz do embate entre verífilos e verífobos852

no

Direito Processual Penal, ou seja, entre aqueles que se aferram ao princípio da verdade real ou

material, como sendo de plena observância no Processo Penal e aqueles que rechaçam tal

princípio, como sendo um mito que não possui acolhida no paradigma democrático, não

passando de triste legado, inquisitorial e autoritário853

. O cerne do debate diz respeito à

possibilidade do juiz exercer um papel mais ativo na produção da prova, havendo quem

considere essa possibilidade desde que contribua para preservar a liberdade do acusado ou

qualquer outro direito inviolável ou indisponível854

, rechaçando a possibilidade contrária, pois

na perspectiva do processo constitucional não se poderia admitir uma atividade probatória de

iniciativa do juiz que resultasse em reforço da acusação855

.

847

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 48. 848

LUHMANN, Nicklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Côrte-Real.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 62. 849

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 103. 850

CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 48 851

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012.p. 187. 852

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 279 853

TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do direito processual penal. São Paulo: RT, 2003. p. 177; LOPES JÚNIOR,

Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011a.

v.1.p. 550. 854

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 125. 855

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 562.

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220

Os verífilos, portanto, não admitem a busca da verdade real pro societate, mas

somente pro reo.Já os verífobos se dividem entre aqueles que, como Ferrajoli, defendem não

ser possível falar em verdade processual, nem mesmo num sentido aproximativo856

, e aqueles

que buscam substituir no Direito Processual a ideia de verdade pela ideia de determinação

formal dos fatos, como Carnelutti, ou de certeza, como Malatesta. Para Carnelutti basta um

limite mínimo que seja à liberdade de busca da verdade pelo juiz, para que esse processo se

degenere em mero processo de determinação:

A verdade é como a água: ou é pura ou não é verdade. Quando a busca da verdade

material está limitada de tal maneira que esta não possa ser conhecida,em todo caso

com qualquer meio, o resultado, seja mais ou menos rigoroso o limite, é sempre o de

que já não se trata de uma busca da verdade material, senão de um processo de

determinação formal dos fatos. De fato, sempre é possível que em determinados

casos o limite atue no sentido de impedir o conhecimento da verdade material e de

substituir esta com uma verdade jurídica ou judicial; sendo assim: esta eventualidade

é suficiente para que não se possa atribuir o conhecimento da realidade dos fatos

como resultado do processo de determinação.857

Em sentido semelhante, Michele Taruffo diz que é inútil tentar empreender uma

distinção entre verdade relativa (formal, processual ou objetiva) e verdade absoluta (material

ou subjetiva), pois no processo a única verdade possível é aquela decorrente do acertamento

do fato derivada dos dados cognoscitivos resultantes da atividade probatória858

. Isto é, a

verdade produzida nos limites do processo não constitui uma verdade diversa daquela que se

pode descobrir sem as limitações preclusivas ou decorrentes das normas sobre ilicitude das

provas. A verdade produzida no processo pode ser limitada ou incompleta, podendo mesmo a

atividade processual se esgotar sem produzir nenhuma verdade859

. De todo modo, a verdade

processual é uma verdade lógica, seja material (adequação entre um pensamento e um objeto

anterior) ou formal (que se dá abstratamente na relação do pensamento consigo mesmo),

difere-se, portanto, da verdade ontológica que é sempre apreciada pelo ângulo do objeto em

relação consigo mesmo860

.

Já Malatesta, em sua clássica obra, na qual se dedica a estabelecer a taxonomia dos

meios de prova admitidos no Processo Penal, realiza uma reflexão teórica sobre duas

856

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 43. 857

CARNELUTTI, Francesco. A prova civil. Tradução de Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2001. p. 52. 858

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

83. 859

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

84. 860

SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento (gnoseologia e criteriologia). 3. ed. São Paulo: Logos,

1958.p. 236-237.

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221

categorias orientadoras do juízo: certeza e probabilidade861

. Ambas dotadas de credibilidade,

sendo a probabilidade um estágio prévio da certeza e sujeito a gradações, o que não ocorre

com a certeza em que se tem ou não. A clássica distinção entre verdade e certeza preconiza a

verdade como o resultado objetivo da correspondência entre um enunciado e a realidade,

enquanto a certeza tem caráter objetivo dependendo da credibilidade daquele que profere o

enunciado e da crença do destinatário862

.

A certeza, na construção de Malatesta, por mais que o autor se esforce para

demonstrar sua objetividade, se instaura como crença na subjetividade do julgador que só de

posse dela pode proferir uma sentença condenatória. O magistrado, contudo, deve submeter a

certeza que possui no âmago de sua racionalidade a um hipotético crivo segundo o senso

comum da sociedade:

[...] compreende-se que a certeza moral do juiz, a certeza da criminalidade, como

fundamento legítimo de condenação, deve encontrar apoio na consciência social. A

contradição entre a consciência social e a do juiz deve levar sempre à absolvição e

jamais à condenação. Se o juiz, embora sentindo-se pessoalmente convicto da

culpabilidade do acusado, sente que suas razões não são tais que possam gerar igual

convicção em qualquer outro cidadão desinteressado, deve absolver. Assim como,

quando o juiz, pela natureza dos motivos convergentes à afirmação da culpabilidade,

crê que, por eles, a condenação do acusado seria legítima, mesmo em face da

consciência social, embora o juiz acredite nisso, deve absolver o acusado, se este,

perante sua consciência de juiz, não se apresenta racionalmente e, com certeza,

culpado.863

Como é evidente, trata-se de uma construção bem aos moldes do positivismo do final

do século XIX, radicalmente fundada nos postulados da filosofia da consciência, expressada

por um indisfarçável solipsismo atrelado, por sua vez, a uma inesclarecida e mitológica

instância denominada consciência social.

8.1.1 A verdade como correspondência e o ceticismo de Popper

As concepções acima parecem suficientes para exemplificar os encontros e

desencontros em torno do papel que a verdade exerce ou deveria exercer na processualidade

democrática. Verdade é um daqueles conceitos metafísicos, como os são os conceitos de bom,

belo e justo, contra os quais não há como se pronunciar (ninguém é, por princípio, contra o

861

MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo

Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 59. 862

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

85. 863

MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo

Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 55.

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222

bem, a beleza e a justiça), mas, no entanto, tentar desvendar-lhes a natureza pode ser um

exercício infrutífero e sem sentido864

. Por essa razão, Ferrajoli se posiciona estrategicamente

no meio termo. Não acolhe uma concepção substancialista da verdade, pois a identifica com

autoritarismo, decisionismo, voluntarismo, axiologismo, inquisição e potestade. Mas ao

mesmo tempo não a descarta totalmente: "Se uma justiça penal integralmente "com verdade"

constitui uma utopia, uma justiça penal completamente "sem verdade" equivale a um sistema

de arbitrariedade"865

. De grande valia a seguinte assertiva de Rosemiro Pereira Leal sobre o

tema:

Desservem ao Direito, na contemporaneidade, os estudos da prova, se concebida,

como assinalado, em moldes judiciaristas, mediante avaliação de sua eficácia

probante pelo "poder" da sensibilidade e talento da apreensibilidade jurisdicional. A

afirmação de que a "prova tem por objetivo a verdade" demanda cogitações sobre a

controvertida acepção de "verdade", porque a busca obsessiva da certeza há de se

conter, em Direito, nos limites dos meios de obtenção da prova legalmente

permitidos.866

Como já se deixou evidenciar em linhas volvidas, a presente pesquisa acolhe as

conjecturas do racionalismo crítico de Karl Popper, seguindo a trilha inaugurada pela teoria

Neoinstitucionalista do Processo. Na medida em que se adota uma epistemologia quadripartite

(técnica, ciência, teoria e crítica)867

na abordagem deste objeto, é possível reconhecer o

Processo Penal como ramo científico, não como mera técnica. Com o status de ciência é que

vai se submeter à crítica por teorias concorrentes. Para tanto, uma abordagem metafísica do

conceito de verdade se mostra inadequada quando se pretende identificar a teleologia ou

mesmo o conteúdo da atividade probatória.

Popper reconhece a si mesmo como um cético na medida em que se nega a admitir a

existência de um critério universal de verdade868

. Não é um ceticismo aos moldes de Pirro de

Elis (360 a 270 a.C.) que, na impossibilidade de conhecer plenamente as coisas, simplesmente

desiste da busca, que de antemão já é encarada como infrutífera. Na concepção do ceticismo

pirrônico, para alcançarmos a paz de espírito devemos abrir mão de julgar o que é verdadeiro

864

SEARLE, JOHN R.. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).

Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 5. 865

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 38. 866

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 189; LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p.

188. 867

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 33. 868

POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Tradução de Tereza Curvelo. Lisboa: Editorial

Fragmentos, 2006. p. 9.

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223

,ou falso, certo ou errado869

. O ceticismo de Popper é com relação à possibilidade de uma

verdade absoluta, pois esta se alcança pela instauração da crença, o que não é apropriado em

termos de discurso científico. Nesse sentido, afirma:

Nossa principal preocupação em filosofia e em ciência deve ser a procura da

verdade. A justificação não é um alvo; e o brilhantismo e a habilidade, como tais,

são tediosas.Devemos procurar ver ou descobrir os problemas mais urgentes e

devemos tentar resolvê-los propondo teorias verdadeiras (ou asserções verdadeiras,

ou proposições verdadeiras; não é preciso, aqui, distinguir entre elas); ou, de

qualquer modo, propondo teorias que cheguem um pouco mais perto da verdade do

que as de nossos predecessores.870

Trata-se de "ceticismo esperançoso"871

, nas palavras do próprio Popper, pela adoção

de um "realismo científico"872

que o leva a trabalhar com a concepção de verdade como

correspondência desenvolvida por Alfred Tarski, segundo a qual um enunciado é verdadeiro

somente na medida em que corresponde à realidade. Assim, uma assertiva como "a neve é

branca" pode ser considerada verdadeira, se e somente se, a neve for branca873

. Segundo essa

concepção, para conhecer o significado de uma sentença se faz necessário conhecer as

condições sob as quais é possível afirmar se uma sentença é verdadeira ou falsa. Essa teoria

da verdade é classificada por Suzan Haack como uma teoria semântica, pois tal conjectura

somente se estabelece como linguagem objeto, que reclama uma metalinguagem, em que os

significados de cada um de seus componentes são submetidos à verificação de sua adequação

material e correção formal874

. A verificação entre teorias concorrentes vai ocorrer pelo

confronto de seus conteúdos de verdade, donde se concluirá pela sobrevivência daquela que

apresentar maior verossimilhança ou verossimilitude. Quanto maior for o conteúdo de

verdade em suas asserções, maior será a verossimilhança ou verossimilitude de uma teoria875

.

No discurso do Processo Penal, a verdade lógica deve ser buscada, mas

reconhecendo de antemão que se trata de uma estrutura dotada de especial complexidade. A

869

GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 48. 870

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 51. 871

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 102. 872

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 103. 873

SEARLE, John R. Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).

Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 18. 874

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002.p. 148. 875

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 58.

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224

própria estrutura é regulada normativamente: Art. 5º, inciso LVI da CB/88 - são

inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Os fatos, objetos de apuração,

devem ser confrontados com normas jurídicas das mais diversas tipologias, não raramente

polissêmicas, o que vem sendo sempre útil aos positivistas876

, razão pela qual a atividade

interpretativa ganha especial relevância, sendo, contudo, altamente influenciável pelas razões

ideológicas, que condicionam o sistema877

. Ferrajoli, ao abordar a teoria da "verdade como

correspondência", reconhece essa dificuldade e afirma que a linguagem jurídica deve ser

"tendencialmente isenta de termos vagos e valorativos" o que seria assegurado pelo "sistema

das garantias de estrita legalidade e estrita jurisdicionalidade"878

. De todo modo, para evitar as

tendências autoritárias, devemos acolher a sentença popperiana segundo a qual “somos

buscadores da verdade, mas não somos seus possuidores”879

.

8.1.2 A prova como elemento relevante no embate entre acusatoriedade e inquisitoriedade

O Processo Penal, sendo uma estrutura complexa, é também polifônica880

. São várias

vozes intervindo no decurso do discurso (narrativa) e por essa razão a perspectiva democrática

só seria possível com a instauração de um nível heterodiscursivo por uma teoria do

interpretante capaz de afastar o monopólio do sentido exercido pelo sujeito da enunciação,

como demonstra Rosemiro Pereira Leal:

[...] a linguística contemporânea é que promoveu uma autovirada, [...], ao preconizar

a decodificação do sentido do discurso a partir de um código que se presta à própria

definição do discurso e não mais a partir das "multissignificações" de sentidos

advindas da mente do locador e sublocador do discurso. Portanto, a "decodificação"

do discurso, com essa auto-reviravolta linguística, migra do âmbito também

enigmático do texto dos decisores para o recinto intradiscursivo - e diríamos - pelo

"código" (interpretante) instituinte e constituinte do DISCURSO

CONSTITUCIONAL (CO-INSTITUCIONAL) CONSTITUÍDO, que é, em minha

teoria neoinstitucionalista, o "devido processo" o qual, a seu turno, assume atributos

de um neoparadigma com "função metalinguística" a demarcar um "meta sentido"

como fundamento do sistema jurídico-democrático para a criação de uma sociedade

aberta derivada de uma comunidade de legitimados ao processo (povo) aptos a

exercerem uma simétrica paridade interpretativa dos direitos legislados

(hermenêutica isomênica).881

876

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 272. 877

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.

2009. p. 107. 878

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 42. 879

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 53. 880

SOUSA, Humberto Leandro de Melo. Fundamentação, contraditório e polifonia: a sentença penal no estado

democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a

pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 265. 881

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 274

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225

Essa singular concepção sobre o discurso jurídico-processual vai proporcionar uma

abordagem sobre a enunciação da prova mais articulada com o paradigma democrático. Como

já foi dito, esse é o ponto fulcral da pesquisa, pois diz respeito ao modo como o sistema

processual, enquanto sistema científico, vai interagir com o seu ambiente (input/output)882

, o

que se mostra de tal sorte fundamental para superar a dicotomia entre sistema acusatório

(dispositivo) e inquisitivo, ainda entendidos como duas modalidades de gestão da prova que

se excluem mutuamente883

.Mas, por mais paradoxal que possa parecer, as duas concepções

são jurisdicêntricas, pois, seguindo a cartilha instrumentalista, decorrem da compreensão de

jurisdição como poder estatal exercido pela atividade dos juízes que cumprem a função de

dizer o direito no caso concreto884

.

Têm-se afirmado que o princípio inquisitivo levaria o juiz a um quadro mental

paranóico885

que se caracteriza pela tomada do "imaginário" como "real" possível886

. Se de

um lado as funções entre acusador e julgador já não se confundem há muito no

constitucionalismo democrático e tampouco o acusado é objeto do processo e meio de prova,

de outro ainda subsiste, sobretudo no Processo Penal brasileiro, a possibilidade do primado da

hipótese sobre os fatos, uma vez que o juiz ainda detém, em grande parte, a gestão da prova.

Como demonstra Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, filiar-se à pós-inquisitoriedade

napoleônica, adotando o sistema misto, com uma fase inquisitorial e outra plenamente

acusatória, não assegura democraticidade, pois o "nó górdio" da inquisitoriedade permanece a

possibilidade do juiz se valer, quando da tomada de decisão, dos elementos de investigação

colhidos na primeira fase887

.

Esse sistema permaneceu intacto com a reforma processual, introduzida pela Lei

882

Neste ponto, cabe anotar que é acolhida na presente pesquisa a definição popperiana de sistema científico: "[...]

só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência.

Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a

falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser

dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua fórmula lógica seja tal

que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível,

refutar pela experiência, um sistema científico empírico." (POPPER, 1974a, p. 42). 883

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 521. 884

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. São Paulo: Atlas, 2009.p. 137 885

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 55. 886

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal

inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).

Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226. 887

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A contribuição da constituição democrática ao processo penal

inquisitório brasileiro. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Org.).

Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 226.

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226

11.690 de 9/06/2008, que, a despeito de alterar o art. 155 do Código de Processo Penal,

manteve a possibilidade do julgador fundamentar sua decisão em elementos de informação

produzidos sem submissão ao contraditório. O problema está no advérbio "exclusivamente"

inserido no dispositivo: "o juiz formulará sua convicção pela livre apreciação da prova

produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente

nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não

repetíveis e antecipadas". Este ponto não preserva o juiz da carga alucinatória das primeiras

impressões e por essa razão foi objeto de severa crítica de Rui Cunha Martins:

É certo que não se autoriza, com este expediente, a busca obsessiva da verdade e a

sua obtenção a todo custo; diretamente, não; mas o carácter de brecha tomado pelo

advérbio e a auto-estrada de excepcionalidade por ele introduzida empurra

inevitavelmente o articulado para a zona do que chamei a estratégia da mera

adequação formal, leia-se de mera cosmética, na consagração da democraticidade do

processo.

[...]

Seguiremos assistindo a sentenças que, negando a garantia de ser julgado a partir de

actos de prova (realizados em pleno contraditório, por elementar), buscarão no

inquérito policial (meros actos de investigação e sem legitimidade para tanto) os

elementos (inquisitórios) necessários para a condenação.888

A doutrina processual penal vai sustentar,assim, que o sistema acusatório traz em si o

gene da isenção (terzietà ou estraneità)889

, em que o juiz se posta em completo alheamento

"em relação à arena das verdades onde as partes travam sua luta", não exercendo nenhuma

iniciativa probatória e devendo formar "sua convicção através dos elementos probatórios

trazidos ao processo pelas partes (e não das quais ele foi atrás)". Assim: "O grande valor do

processo acusatório está na justiça, o que equivale dizer, no jogo limpo"890

.

As abordagens em torno da prevalência de um ou outro princípio

(acusatório/inquisitório) deixam transparecer que o dogmatismo permeia as duas concepções

e, por tal razão, devem ser colocadas sob suspeição continuada, o que certamente vai

demandar um enfoque da teoria da prova que seja mais adequado ao paradigma democrático e

que possa contribuir para um maior esclarecimento da posição institucional do Processo Penal

na constitucionalidade democrática. Pelo que se apurou até o presente momento é possível

dizer (de lavra própria) que de fato o procedimento constrange a liberdade, a vida e a

dignidade do indivíduo. Em grande parte dos casos de modo devidamente autorizado pelo

888

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. p. 31. 889

ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. Il modello costituzionale del processo civile Italiano. Torino: G.

Giappichelli Editore, 1990. p. 41. 890

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1.p. 523.

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227

sistema constitucional, e, segundo este mesmo sistema, só o processo é que pode constranger

juridicamente o procedimento. Isso se dá pela principiologia institutiva constitucionalizada.

8.1.3 A prova penal na Teoria Neoinstitucionalista

Mas para que tal sistema, caracterizado pela abertura autocrítica, consolide a

superação do dogmatismo no Processo Penal, há que se fazer uma releitura da teoria da

prova891

, o que tem se mostrado possível pela Teoria Neoinstitucionalista do Processo.

Conceber os contornos teóricos da prova no Estado Democrático de Direito é de fundamental

importância, notadamente para testificar se os diversos atos praticados na procedimentalidade

estão em consonância com o devido processo institucionalizado constitucionalmente.

É possível notar, nos mais diversos ordenamentos, o princípio geral de que não se

admitem provas ilícitas ou ilegítimas, cuja diferença normalmente é atribuída ao fato das

primeiras serem obtidas mediante violação a um direito material do investigado e as segundas

em violação de normas processuais892

. Denilson Feitoza Pacheco informa que esse princípio

geral tem origem na jurisprudência norte-americana, sendo definido conforme uma

terminologia geral como exclusionary rules (regras de exclusão) e do qual resulta que as

provas ilícitas ou ilegítimas devem ser excluídas do processo, seja para preservar a

inviolabilidade privada (caso Mapp v. Ohio, 1961), preservar a confiança popular no Estado

(caso U.S. v. Calandra, 1974) ou prevenir abusos policiais (caso U.S. v. Janis, 1976)893

.

Desse princípio geral decorrem os seguintes subprincípios: a) good faithe exception,

pelo qual excepcionalmente, uma prova ilícita pode ser mantida quando obtida de boa fé; b)

fruits of the poisonous tree doctrine (teoria dos frutos da árvore envenenada), que resulta

também na exclusão das provas derivadas das ilícitas, conforme o caso Silverthorne Lumber

Co. v. U.S., 1920; c) independente source limitation, segundo o qual a prova deve ser mantida

quando a descoberta se mostra inevitável por outra fonte independente da ilícita, como se viu

no caso Bynum v. U.S., 1960, em que a polícia usou impressões digitais obtidas num processo

anterior que havia sido anulado; d) Inevitable discovery limitation, também se mantém a

prova quando por outro modo fatalmente se chegaria à descoberta, tendo a prova ilícita apenas

a antecipado; e) por fim a chamada purged taint limited, em que a prova derivada da ilícita é

891

Tradicionalmente a doutrina se preocupa em informar que "o vocábulo prova vem do latim - probatio -, que

significa prova, ensaio, verificação, e deriva do verbo probare (probo, as, are). Vem de probus, que quer dizer

bom, reto, honrado. O que resulta provado é, portanto, aquilo que é bom, é correto." (BADARÓ, 2003, p. 156). 892

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 544 893

Direito Processual Penal. Teoria, Crítica e Práxis. p. 546.

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mantida quando em certos casos se considera que tenha sido "descontaminada", por exemplo,

em razão de uma confissão espontânea, como no caso Wong Sun v. U.S., 1963894

.

No Processo Penal brasileiro, talvez por déficit constitucional, a jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal historicamente relutou a acolher plenamente as exclusionary rules,

optando por adotar o princípio da proporcionalidade, deixando a decisão para o juiz no caso

concreto. No entanto, a nova redação do art. 157 do CPP, trazida pela Lei 11.690/2008, acolhe

respectivamente a regra de exclusão, a teoria dos frutos da árvore envenenada e a teoria da

fonte independente. Desse modo a prova ilícita895

deve ser desentranhada, bem como aquelas

que delas derivem, podendo ser mantida a que não tenha nexo causal com a primeira, ou a que

pudesse ser produzida por fonte independente.

Os princípios e regras acima expostos impõem ao Estado o ônus absoluto de

assegurar o cumprimento das regas do jogo, ou fair play conforme a sporting theory of

justice, em que o juiz deve se portar como um fiscal do procedimento que se desenvolve entre

os adversários (adversarial system), sancionando as condutas praticadas em desacordo com as

normas sem, contudo, influir no resultado final896

. Rosemiro Pereira Leal, no entanto, vai

afirmar que a supressão de licitude no ato de produção da prova acarreta a consideração de

sua inexistência. Não se trata de nulidade ou anulabilidade, pois uma prova ilícita "ressentiria

de aspecto teórico de sua configuração legal"897

, caracterizando assim, na perspectiva

popperiana, um "resultado negativo" por se tratar de produção assistemática, vez que

desprovida de objetividade e, por conseguinte, de cientificidade. Sendo ela, no máximo, capaz

de gerar uma hipótese psicológica ou sentimento subjetivo de convicção que, por sua vez, são

irrelevantes do ponto de vista epistemológico898

. No entanto, há que se ressaltar que no

Direito mesmo um vício de tal gravidade precisa ser declarado pelo órgão competente

legitimado juridicamente para tanto, pois tal declaração se define como sanção, sendo também

em si um ato jurídico sujeito à fiscalidade de todos os sujeitos processuais899

.

O fato é que a busca da objetividade seria a única garantia contra os arroubos

arbitrários e personalistas, permitindo por meio de uma intersubjetividade empírica apontar

eventuais alterações axiológicas de conceitos pré-estabelecidos por parte do julgador, livrando 894

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p.

545-551. 895

A redação do dispositivo não faz qualquer distinção entre prova ilícita e ilegítima. 896

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. 1. ed. Roma-Bari: Laterza.

2009. p. 108. 897

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2012.p. 191. 898

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 48-49. 899

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 2000. p. 81.

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229

os destinatários do direito legislado dos riscos de uma intersubjetividade transcendental, como

demonstra Carlos Cossio900

. Essa intersubjetividade empírica pode auxiliar no desvelamento

das intenções daquele que profere um determinado discurso, o que se mostra de fundamental

relevância, pois podemos afirmar com Derrida que a mentira, em si, não existe. Mentir é um

ato intencional que não se realiza sem o outro, aquele a quem é dirigido um enunciado ou

série de enunciados (performativos ou constativos) sabidamente falsos, com o firme propósito

de enganá-lo901

.

De todo modo, um desafio se coloca a partir do momento em que se reconhece que a

atividade probatória se desenvolve em meio à complexidade de um paradoxo temporal e que,

diante de toda a carga de subjetivismo pelo entrelaçamento de vozes intervenientes902

, surge a

necessidade de uma fiscalidade recíproca, evitando conclusões bizarras assim entendidas

como aquelas desprovidas de lógica903

. O paradoxo temporal do processo foi assim exposto

por Aury Lopes Júnior:

[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado

distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e

projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será

real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em

julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu

presente, no futuro, será um constante reviver o passado.904

Esse dado intrigante da realidade processual só reforça a necessidade de uma

abordagem pancrônica de todos os atos e acontecimentos que compõe a complexidade interna

do Processo Penal. Essa abordagem vai se valer dos métodos indutivo/dedutivo, sem se

dedicar a "elucubrações metafísicas ou indemonstráveis"905

. Como demonstra Ferrajoli, no

Processo Penal são objeto de perquirição tanto questões fáticas (quaestio facti) quanto

questões jurídicas (quaestio juris). Aquelas são resolúveis por via indutiva e as estas por via

dedutiva906

.

Esses são componentes inafastáveis do silogismo judicial, mas o que se pode 900

COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1954.p. 246 901

DERRIDA, Jacques. A história da mentira: prolegômenos. Tradução de Jean Briant. Estudos Avançados, São

Paulo, v.10, n. 27, 1996. p. 9. 902

SOUSA, Humberto Leandro de Melo. Fundamentação, contraditório e polifonia: a sentença penal no estado

democrático de direito. In: LEAL, Rosemiro Pereira (Coord.).Estudos continuados de teoria do processo: a

pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. v. 4. p. 245;268 903

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 145. 904

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 517. 905

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 63. 906

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002.p. 40.

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230

considerar, pelas conjecturas de Rosemiro Pereira Leal, é que o verdadeiro objeto do instituto

da prova não é o fato articulado pela acusação ou pela defesa, mas "a produção da estrutura do

procedimento".Isto demonstra sua importância na formalização espácio-temporal dos autos

que são os "limites físico-hermenêuticos de ordenação cronológica", uma vez que o fato é tão

somente elemento de prova que se materializará nos autos pela articulação dos meios e

instrumentos de prova, por sua vez, disciplinados por lei e submetidos à irrestrita fiscalidade

dos sujeitos processuais, nenhum deles passivo, pois não podem ser privados de liberdade

procedimental907

.

Do ponto de vista do protagonismo jurisdicêntrico908

, o procedimento probatório se

desenvolve em quatro estágios: a busca, a admissão, o compartilhamento e a valoração da

prova, conforme se percebe, por exemplo, na doutrina de Paolo Tonini909

. Rosemiro Pereira

Leal, contudo, faz uma distinção entre valoração e valorização da prova, que merece

apontamento:

A valoração da prova é, num primeiro ato, perceber a existência do elemento de

prova nos autos do procedimento. Num segundo ato, pela valorização, é mostrar o

conteúdo de importância do elemento de prova para a formação do convencimento e

o teor significativo de seus aspectos lógico-jurídicos de inequivocidade material e

formal. Assim, a sensorialização ou percepção dos elementos de prova não é

suficiente para o julgador decidir. É necessário que o observador se encaminhe para

a valorização da prova, comparando os diversos elementos de prova da estrutura

procedimental, numa escala gradativa de relevância, fixando sua convicção nos

pontos do texto probatício que a lei indicar como preferenciais a quaisquer outros

argumentos ou articulações produzidos pelas partes.

Essas questões, no entanto, dizem respeito à prova já buscada, admitida e

compartilhada. Há, desse modo, um encadeamento lógico e cronológico dessas atividades.

Com isso,uma primeira e importante questão se impõe, qual seja: quem pode e quem deve

buscar a prova.

Qualquer esforço teórico para se compreender o ônus da prova e suas implicações

deve, na atualidade, reconhecer de antemão que a prova, antes de constituir um encargo, é

direito fundamental decorrente da cláusula due process of law, na qual institui complexas

garantias processuais que visam assegurar plenamente tanto a verificação quanto a

refutação910

, reconhecendo que não só o juiz, mas também as próprias partes, são destinatárias

907

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 189;192-193 908

As Ordenações Filipinas definiam a prova como o "farol do juiz". também a definem como: Instrumento pelo

qual se forma a convicção do juiz. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2002, p. 348; LEAL, 2012, p. 190). 909

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010.p. 123 910

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan

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231

da prova911

.

Mas a terminologia, normalmente associada à questão da introdução da prova nos

autos, se refere a esta atividade como ônus912

. É a incumbência atribuída àquele que

encaminhar a alegação. No entanto, na Teoria Geral do Processo o conceito de ônus nunca foi

dos mais pacificados. A incumbência legal à prática de determinado ato ou ao preenchimento

de determinada expectativa processual é vista por determinados autores como uma posição

passiva, enquanto outros a concebem como posição ativa:

Posições ativas ou favoráveis são aquelas preordenadas a realizar um interesse do

titular, enquanto as negativas ou desfavoráveis são aquelas que realizam o interesse

de outrem, em face do titular da posição jurídica. No primeiro caso, situam-se os

direitos, os poderes, e as faculdades. Entre as passivas: as obrigações, os deveres e

as sujeições.

Neste ponto, já se inicia a divergência quanto à natureza do ônus. Para Carnelutti, o

ônus é uma posição jurídica passiva e não uma posição ativa. Porém, o ônus seria

uma manifestação de liberdade, razão pela qual não há qualquer espécie de coerção

para sua observância ou realização. É justamente a presença deste lado ativo da

noção de ônus, consistente na faculdade do sujeito de executar o ato para obtenção

do resultado favorável, que mostra a contradição da classificação do ônus como

posição negativa.913

Logo se vê que na tentativa de apresentar um conceito de ônus da prova que supere a

concepção tradicional, Gustavo Henrique R. I. Badaró se enreda num paradoxo semântico que

é próprio de autores da escola instrumentalista. A partir do momento em que se concebe o

processo como relação jurídica entre sujeito ativo, sujeito passivo e juiz, o instrumentalismo

não consegue se desvencilhar da ideia de ônus como uma obrigação imposta à parte, mesmo

reconhecendo que não há um mecanismo de coerção direta sobre o seu comportamento no

processo. Não é possível afirmar de uma coisa algo e ao mesmo tempo o contrário.

Ontologicamente um instituto jurídico não pode ser concomitantemente um ônus e um

exercício de liberdade.

Na Teoria Geral do Processo aparecem algumas tentativas de ressemantização.

Goldschmidt rechaça a ideia de obrigações processuais. Afirma que a parte possui apenas

cargas:

A "obrigação" do demandado de cooperar com a litis contestatio, tem sido

substituída por "carga" de comparecer e contestar a demanda, a qual se impõe ao

demandado em seu próprio interesse. Muito menos incumbem obrigações ao

demandante, mas somente cargas, especialmente a de afirmar fatos e apresentar

provas. Por último, as partes não têm, tampouco, deveres de omissão. O dever de

Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 105. 911

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 912

Conforme se lê no art. 156 do CPP, "a prova da alegação incumbirá a que a fizer.". 913

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 169-

171.

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232

não proferir afirmações sabidamente falsas é moral, mas não jurídico. (tradução

nossa)914

Em sentido parecido, Fazzalari também descarta a existência de obrigações de ordem

processual, mas reconhece que ao lado dos poderes e faculdades, à parte são atribuídos certos

deveres. O mais evidente deles é o de provar suas alegações. A parte pode ou não cumprir

com esse dever, mas fatalmente terá que experimentar uma situação prejudicial. A essa

consequência desfavorável, o autor denomina "ônus"915

. A teoria fazzalariana é apontada por

Leonardo Augusto Marinho Marques como responsável por uma verdadeira revisão do

conceito de ônus processual:

O ônus processual deixa de ser, portanto, a faculdade que expressa a necessidade de

se praticar determinado ato para obter um resultado favorável ou para evitar uma

situação desvantajosa, e se transforma na conseqüência desfavorável a ser suportada,

pela parte, diante de uma omissão consciente e voluntária na realização de um ato

processual específico.

O importante é compreender que, no processo, nada mais se resolverá por

imposição. As partes exercem livremente suas opções e assumem conscientemente

as conseqüências de seus atos ou de suas omissões.916

É evidente o rompimento com Bülow também nesse particular aspecto da teoria do

processo, conforme conclui Aroldo Plínio Gonçalves:

Não há relação jurídica entre o juiz e a parte, ou ambas as partes, porque ele não

pode exigir delas qualquer conduta, ou a prática de qualquer ato, podendo, qualquer

das partes resolver suas faculdades, poderes e deveres em ônus, ao suportar as

conseqüências desfavoráveis que possam advir de sua omissão.917

Mas, a par de toda essa discussão de ordem conceitual subsiste uma preocupação

que, sobretudo no Processo Penal, tem reflexos imediatos e concretos sobre direitos

fundamentais. Diz respeito à distribuição dessas cargas, ônus ou deveres entre as partes. O

preceito básico de que o "ônus da prova cabe a quem alega" apresenta insuficiências que

precisam ser enfrentadas para que o instituto da prova seja submetido a uma releitura

democrática.

914

"La "obligación" de demandado de cooperar a la litis contestatio ha sido sustituída por la "carga" de

comparecer y contestar a la demanda, lacual se impone al demandado en su proprio interés. Mucho menos

incumbem obligaciones al demandante, sino solamente cargas, especialmente la de afirmar hechos y aportar

pruebas. Por último, las partes no tienen, tampoco, deberes de omisión. El deber de no proferir a sabien das

afirmaciones falsas es moral, pero no jurídico" (GOLDSCHMIDT, 1936b, p. 22). 915

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller,

2006. p. 499-500. 916

MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.

Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 47-48. 917

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 98-99.

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233

Fala-se que, de início, cabe às partes cuidarem de exercer a atividade probatória do

modo mais eficiente possível para provar aquilo que for de seu interesse, até mesmo algo que

não tenha alegado. Este é o chamado ônus subjetivo. Havendo inércia, seria possível o juiz

agir de ofício para esclarecer dúvida relevante (clara opção inquisitória do art. 156 do CPP

brasileiro)918

. Permanecendo dúvida relevante no momento da decisão, na impossibilidade

dogmática de pronunciar o non liquet, caberia ao juiz decidir qual das partes deve suportar de

modo mais intenso a consequência desfavorável. Essa derradeira distribuição de cargas vem

sendo chamada, de forma pouco técnica, de ônus objetivo. Para Gustavo Henrique R. I.

Badaró, o mais adequado seria chamá-la regra de julgamento, pois é atribuída ao juiz no

momento da decisão, sendo este o momento em que o critério de distribuição do ônus deve ser

explicitado. Um grande exemplo é a aplicação da regra in dubio pro reo919

.

Nesse particular, chama atenção a legge nº 46 de 2006 que alterou o art. 533, comma

1, do CPP italiano920

. A expressão acrescentada, apesar de sua imprecisão semântica, pois

fundada no princípio da razoabilidade, tenta estabelecer um standard probatório, um quantum

a partir do qual se considere a prova suficiente para a condenação, na medida em que o

acusado só restaria culpado quando a prova se consolidasse "além de uma dúvida

razoável"921

. A prova razoavelmente dúbia é considerada prova falha, devendo o juiz aplicar

essa regra de julgamento e absolver o imputado. Paolo Tonini ressalta que esta "dúvida

razoável" deve ser uma dúvida lógica e não psicológica, pois deve se fundar em argumentos

lógicos de refutação922

, conforme será demonstrado adiante.

De todo modo, essa atribuição de deveres probatórios vai depender do conteúdo da

alegação. Há certas alegações que sequer precisam ser provadas, tais como os fatos

axiomáticos ou intuitivos (que embriaguez ao volante é perigoso), fatos notórios (que 7 de

setembro é feriado), fatos inúteis (o que o réu comeu no almoço) e as presunções legais (nos

crimes sexuais, a vítima menor de 14 anos é considerada vulnerável)923

. Também não é

possível atribuir ônus a quem alega um fato negativo. Já quem alega um fato extraordinário,

atrai para si a obrigação de provar, pois tal afirmação afastaria a presunção de verdade,

918

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 178-

185. 919

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 240 920

Na redação original: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Se l’imputato risulta colpevole del reato

contestatogli, il giudice pronuncia sentenza di condanna applicando la pena e l’eventuale misura di sicurezza. 921

Na redação atual: Art. 533 (Condanna dell’imputato) - 1. Il giudice pronuncia sentenza di condanna se

l'imputato risulta colpevole del reato contestatogli al di là di ogni ragionevole dubbio. Con la sentenza il giudice

applica la pena e le eventuali misure di sicurezza. 922

TONINI, Paolo. Lineamenti di diritto processuale penale. 8. ed. Milano: Giuffrè, 2010. p. 132. 923

PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2006.p. 568

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presunção esta que poderia ser atribuída à afirmação de um fato ordinário924

.

No Processo Penal, a regra geral é que o ônus da prova com relação aos fatos

afirmados na denúncia ou na queixa deve ser atribuído ao Ministério Público ou ao

Querelante. Ao réu bastaria refutar argumentativamente as provas apresentadas, apontando

suas fragilidades e inconsistências925

. Na processualidade democrática, desde a modernidade,

são inadmissíveis o non liquet romano e a absolvição de instância. No primeiro sistema, à

ausência de prova se aplicava uma pena leve, colhendo um juramento do acusado sobre a

obscuridade do fato, com o juiz abstendo-se de julgar. No segundo caso, característico da

inquisitoriedade medieval, o processo era suspenso até que o acusado provasse a sua

inocência ou surgissem provas suficientes para sua condenação926

.

Nem mesmo em casos extremamente excepcionais parece ser possível atribuir ao

acusado o dever da prova. Um exemplo é quando se alega um alibi (expressão latina que

significa "em outro lugar"). Nesse caso, mesmo que se tratasse de uma alegação genérica, sem

especificar detalhes e apresentar provas robustas, sendo suficiente para lançar dúvidas sobre o

fato constitutivo do direito alegado pelo acusador927

, caberia sempre a este o dever de provar

de forma incontestável a autoria, sob pena de ter que suportar o ônus da absolvição do

924

MALATESTA, Nicola Flamarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. 6. ed. Tradução de Paolo

Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005. p. 132. 925

Não é o que se tem observado na práxis dos tribunais. Lamentavelmente, têm-se julgados envolvendo tráfico de

drogas, quando há alegação de que a droga portada pelo acusado se destinava ao uso pessoal, que acabam por

inverter o ônus da prova ao afirmar que, neste caso, caberia ao acusado produzir a prova de sua alegação. O

Ministério Público nestes casos ficaria isento de provar a destinação da droga. Somente a título de exemplo,

transcrevemos parecer da Procuradoria Geral de Justiça na Apelação Criminal nº 0099962-28.2012.8.13.0134

julgada em 19/03/2013 pela 6ª Câmara Criminal do TJMG, acolhido pelo Relator em seu voto, que foi seguido

pelos demais neste particular: "[...] Na oportunidade, cumpre ressaltar que um erro recorrente que vem sendo

cometido por alguns defensores e advogados é exigir a prova da finalidade mercantil da droga para a

configuração do tráfico. Segundo essa ótica, se houver dúvida se era para o comércio ou para uso próprio, os

magistrados deveriam optar pelo crime menos grave, que é o uso, valendo-se do in dubio pro reo.Ocorre que,

quanto à destinação da droga, é a defesa quem tem de provar o uso próprio e não o Ministério Público

demonstrar o fim de comércio. Isso porque dentre as condutas dos artigos 28 e 33 da Lei de Entorpecentes,

apenas a primeira, que diz respeito ao uso, contém um especial fim de agir.

[...]

Saliente-se que a nova lei de tóxicos manteve exatamente a mesma estrutura da anterior, no que diz respeito às

modalidades de dolo quanto aos crimes de uso e tráfico específico no primeiro e genérico no segundo caso.

[...]

Exigir a comprovação de uma modalidade de dolo específico inexistente no artigo 33 da nova Lei de Drogas

(destinação comercial da droga) é distinguir onde a lei não distingue e isso não é permitido. Dessa forma, ou a

Defesa prova que toda a droga seria destinada exclusivamente ao uso próprio dos acusados ou automaticamente

configurado estará o tráfico , não se podendo falar em aplicação do brocardo in dubio pro reo para permitir a

desclassificação para o delito de uso (artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006).Não se pode perder de vista que a prova

da mercancia faz-se não apenas de maneira direta, mas também por meio de indícios e presunções, os quais

devem ser analisados como todo e qualquer elemento de convicção. Isso porque, na maioria das vezes, a cautela

do infrator impede a obtenção da prova direta. 926

MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Do julgamento do fato incerto na ação penal condenatória.

Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 2006. p. 272-273. 927

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003.p. 339

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imputado.

Diante da abertura normativa do art. 156 do CPP, outra questão de grande relevância

diz respeito à iniciativa probatória do juiz. A atuação de ofício e a discricionariedade do

magistrado são vistas com reserva em várias outras questões no Processo Penal (como no caso

das medidas cautelares)928

, mas assume especial relevância no âmbito da gestão da prova, pois

um maior ativismo judicial neste ponto estratégico do Direito Processual Penal pode

comprometer toda a democraticidade do sistema. É o suficiente para, segundo Aury Lopes

Júnior, caracterizar o sistema brasileiro de neoinquisitorial929

.

De todo modo, há uma tendência muito enraizada na doutrina de que o juiz é quem

deve ser convencido pela prova, significando que se trata do destinatário por excelência, razão

pela qual haveria para as partes um verdadeiro ônus de convencer o juiz. Conforme anota

Paolo Tonini, com as partes deixando de se desincumbir do dever de provar, seria atribuído ao

juiz o poder residual de até mesmo introduzir novos meios de prova no procedimento930

.

Feita essa abordagem sobre aspectos gerais da Teoria da Prova, por mais que se

esforcem os doutrinadores, ainda persiste a concepção potestativa de jurisdição, na qual a

atividade jurisdicional, no fim das contas, é sempre vista como um poder, e não como dever

estatal. Essa perspectiva se reflete, sobretudo no âmbito da prova, como ela se define e como

se articula na procedimentalidade. Para Rosemiro Pereira Leal, essa articulação deve levar em

conta que a enunciação da prova se dá pelos princípios lógicos da (a) indiciariedade, que se

constata pelos “elementos integrativos da realidade objetiva no espaço”; (b) ideação, que se

define pela “apreensão dos elementos pelos meios de pensar no tempo” e (c) formalização,

que “significa a instrumentação da realidade pensada pela forma legal”931

. Assim:

A existência do elemento de prova, ainda que de certeza inegável, não autoriza, por

si mesma, a coleta da prova contra legem. A liberdade de apreensão do elemento de

prova no espaço real há de sofrer controle dos meios legais indicados na lei para se

lavrar o instrumento de prova. Provar em direito é representar e demonstrar,

928

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo

Horizonte: Del Rey, 2011. p. 4. 929

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2011a. v.1. p. 523. 930

“Come si è accennato, al giudice spetta il potere residuale di sollecitare le parti o, anche, di introdurre d'ufficio

mezzi di prova in determinate ipotesi previste dalla legge. In particolare, nel corso del dibattimento, terminata

l'acquisizione delle prove, il giudice “se risulta assolutamente necessario” può disporre anche d'ufficio

l'assunzione di nuovi mezzi di prova (art. 507)."“Como já salientado, o juiz tem o poder residual para instar as

partes ou, ainda, a apresentar provas de ofício, em certos casos previstos em lei. Em particular, durante a

instrução, concluída a aquisição de provas, o juiz “se resulta absolutamente necessário” pode dispor também de

ofício sobre a admissão de novos meios de prova (art. 507).” (TONINI, 2010, p. 131). 931

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 188.

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236

instrumentando os elementos de prova pelos meios de prova.932

Com o desenvolvimento desses temas, fica exposto o reducionismo do embate

dogmático entre as concepções arcaicas da acusatoriedade (ordálias) e inquisitoriedade

(provas tarifadas). Na pós-modernidade, o Processo Penal se depara com o desafio teórico de

lidar com conceitos de alta complexidade e que são fundamentais para a processualidade

democrática, tais como: evidência, ostensão, crença, presunção, expectativa, verdade, sistema

e a conectividade possível entre eles, o que foi empreendido magistralmente e com notável

êxito por Rui Cunha Martins933

. Toda essa complexidade diz respeito à enunciação da prova e

qual a função que esta desempenha na perspectiva da processualidade democrática.

8.2 Acusatoriedade e inquisitoriedade como obstáculos epistemológicos

Quando se afirma o caráter dogmático do embate entre acusatoriedade e

inquisitoriedade, expresso por uma Teoria da Prova ainda aprisionada ao positivismo jurídico,

é necessário esclarecer que não se trata de negar estatuto científico à dogmática jurídica, pois,

como se constata do trabalho de Vera Regina Pereira de Andrade, há que se reconhecer a sua

"forma paradigmática de materialização", uma vez que, a despeito de suas especificidades,

pode ser concebida como "um paradigma científico peculiar que definido e compartilhado

pela comunidade jurídica configura, há mais de um século, o modelo "normal" de fazer

Ciência"934

. Ocorre que a ciência jurídica, no âmbito democrático, não se configura pela

substituição de um dogma por outro, pois descabe aqui a dicotomia kuhneana entre "ciência

normal" (de caráter cumulativo) e "ciência extraordinária" (de caráter revolucionário). No

primeiro caso, tem-se o cientista voltado para a resolução de problemas imediatos (quebra-

cabeças), condicionado e constrangido por paradigmas que ele próprio estabeleceu, ao passo

que no segundo, pelo desgaste de um determinado paradigma, há um repúdio deste, que passa

a ser encarado como expressão de uma facção derrotada935

.

Com tais considerações, o que se pretende é rechaçar os saltos irrefletidos em

matéria de ciência jurídica, pois o paradigma estabelecido pela e para a própria ciência

932

Nesta perspectiva pode-se exemplificar da seguinte forma: A lesão corporal é o elemento de prova, ao passo

que a perícia é o meio, que se formaliza pelo laudo que é instrumento de prova. (LEAL, 2012, p. 189). 933

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011. 934

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 1996.p. 111. 935

KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson

Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 210-211.

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237

jurídica é o democrático, que, como tal, vai permitir que se faça a distinção entre ciência e

dogmática jurídica, possibilitando assim "esclarecer os conteúdos normativos do direito em

suas diversas acepções teóricas no curso da história da humanidade"936

. Não parece ser o caso

de se instaurar uma "metadogmática", pois ainda assim não se trataria necessariamente de um

enquadramento epistemológico, como o que se pretende neste trabalho, mas possibilitaria

sempre conclusões em outros prismas como o técnico e o tecnológico, resultando em

ambiguidades teóricas que devem ser evitadas937

.

Paradigma não adquire, aqui, o sentido de padrões ideologizados de comportamento

científico, ancorado em forte polissemia como ocorre na perspectiva de Thomas Kuhn938

.

Neste trabalho, acolhe-se a expressão nos contornos traçados pela teoria Neoinsitucionalista

do Processo, como teoria crítica, conforme o teorométodo de Popper:

É importante o método empírico de demarcação em Popper, que é diacrônico

(historista como reflexivo das fases da história) e não, como em Kuhn, historicista

(submisso a cortes sincrônicos de momentos referencializantes e diretivos para os

homens). Em Kuhn não há interesse por uma reconstrutividade de um sistema social

pelo refutacionismo científico-evolucionário permanente gradual como se colhe em

Popper. A falseabilidade contra o senso comum e o senso comum do conhecimento

é, em Popper, condição edificativa de uma sociedade aberta pelo método crítico

(teorias falseabilizáveis) cujo critério de demarcação científica implica na exclusão

de medir conclusivamente (sincronicamente) os resultados da pesquisa científica e

ofertá-los de modo eventual (normal) ao poder intelectual e institucional quando

ditos imprescindíveis à ordem social dogmaticamente implantada e

operacionalizada.939

A epistemologia processual penal, diante de tudo o que foi desenvolvido até este

ponto, adquire características de rompimento com o conhecimento comum, em que o

dogmatismo aparece como "ciência morta" que serve de contraponto a uma "ciência nova" na

qual se torna possível romper com o positivismo, conforme demonstra Gaston Bachelard:

O simples facto do caracter indirecto das determinações do real científico já nos

coloca num reino epistemológico novo. Por exemplo, enquanto se tratava, num

espírito positivista, de determinar os pesos atómicos, a técnica - sem dúvida muito

precisa - da balança bastava. Mas, quando no século XX se separam e pesam os

isótopos, é necessária uma técnica indirecta. O espectroscópio de massa,

indispensável para esta técnica, fundamenta-se na ação dos campos eléctricos e

magnéticos. É um instrumento que podemos perfeitamente qualificar de indirecto se

o compararmos à balança. A ciência de Lavoisier que funda o positivismo da

balança, está em ligação contínua com os aspectos imediatos da experiência usual.

936

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002. p. 67. 937

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 105-106. 938

SILVA FILHO, Alberico Alves da O discurso processual da ciência jurídica. In: LEAL, Rosemiro Pereira

(Coord.). Estudos continuados de teoria do processo: a pesquisa jurídica no curso de doutorado em direito

processual. Porto Alegre: Síntese. 2004. p. 30. 939

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 184.

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238

Já não acontece o mesmo quando acrescentamos um electricismo ao materialismo.

Os fenómenos elétricos dos átomos estão escondidos. É preciso instrumentá-los

numa aparelhagem que não tem significação directa na vida comum.940

A atividade epistemológica, assim compreendida, instaura o primado da reflexão

discursiva sobre a percepção, sempre imediatista e por vezes enganosa, pois busca o conforto

do princípio da identidade, abstendo-se de novos questionamentos, conformando-se com o

senso comum do conhecimento (positivismo/ciência dogmática). A epistemologia vai

interrogar tanto os saberes racionalistas quanto empiristas. Assim, razão e experiência são

submetidas a questionamentos céticos, sobretudo pelo fato de que a percepção humana é

sempre impregnada de relatividade e o conhecimento sobre as qualidades dos objetos vai

sempre variar "de acordo com a condição daquele que as percebe ou com as condições sob as

quais elas são percebidas"941

. Trata-se de um novo racionalismo que estabelece "uma estreita

união da experiência com a razão"942

, pela qual teoria e aplicação se submetem a teste através

da verificação das condições em que se manifestam uma e outra.

Por essa perspectiva, há que ser superada a concepção de que o reconhecimento de

atribuições instrutórias ao juiz, por si só, afeta os direitos das partes. Antes, traduz uma

necessidade epistêmica do processo com vistas à realização do escopo de acertamento da

verdade, conforme afirmou Michele Taruffo943

. A epistemologia processual penal, conforme

se pretende neste trabalho, não atua no reforço desta ou daquela posição dogmática, mas

radicaliza no sentido de que eventuais atividades instrutórias desenvolvidas pelo juiz são,

antes de tudo, expressão de sua competência legal, devendo assim ser compreendidas e

submetidas a arguições que só são possíveis pela metodologia do Devido Processo Legal,no

qual estão definidos "os atributos legalmente exigidos ou conferidos pela lei para legitimar a

atividade jurisdicional"944

.

Uma epistemologia processual penal na pós-modernidade incorpora um aspecto

evolucionário, no qual as concepções teóricas e as construções técnicas mais arraigadas não

são simplesmente descartadas por incompatibilidade lógica, conforme preconizado por Kuhn,

940

BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino

Oliveira. Lisboa: Edições 70, 2006. p. 18-19. 941

GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p. 51. 942

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005. p. 76. 943

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

179. 944

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 114.

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239

como condição indispensável para o surgimento de novas teorias945

, numa perspectiva em que

os conteúdos que decorrem de paradigmas anteriores não podem ser reconhecidos como

inovadores e somente as revoluções científicas contribuem para a inovação. Já Popper não

descarta e esclarece o papel da dogmática na evolução do conhecimento:

Partindo do realismo científico é bem claro que, se nossas ações e reações fossem

mal ajustadas a nosso meio ambiente, não sobreviveríamos. Sendo a "crença"

estreitamente ligada à expectativa e à presteza em agir, podemos dizer que muitas de

nossas crenças mais práticas são provavelmente verdadeiras, enquanto

sobrevivermos. Tornam-se elas a parte mais dogmática do senso comum, que,

embora não seja de modo algum fidedigno, verdadeiro, ou certo, é sempre um bom

ponto de partida.946

É possível identificar o conhecimento geral, ou conhecimento de senso comum,

como obstáculo epistemológico e, desse modo, possibilitar que a cultura científica esteja "em

estado de mobilização permanente", possa "substituir o saber fechado e estático por um

conhecimento aberto e dinâmico" e, mediante a confrontação das diversas "variáveis

experimentais, dar, por último, à razão, razões para evoluir"947

. A evolução, aqui, é resultante

do método crítico (científico), tem caráter gradual e se baseia na identificação e eliminação de

erros, tendo como base a constatação de que a mente humana não se constitui uma tabula rasa,

pois cada conhecimento mais evoluído se baseia em um conhecimento prévio. É possível

afirmar ainda que a principal meta evolutiva consiste em buscar o aumento da verossimilitude

dos enunciados científicos948

.

No âmbito do Direito Processual Penal, uma epistemologia evolucionária

possibilitará demonstrar que certas tentativas de superação dos "obstáculos epistemológicos"

constituem, na verdade, tentativas de enquadramento das possíveis soluções dos impasses

dogmáticos em esquemas igualmente dependentes de uma forma espácio-temporal

pressuposta, de antemão conferida pela natureza das coisas, como tentativa de apresentar aos

céticos, respostas definitivas sobre a crise identificada pelo embate entre acusatoriedade e

inquisitoriedade. Por influência do kantismo, há uma busca constante por categorizações, o

que provoca novas imobilizações do pensamento científico. Como demonstra A. C. Grayling:

945

KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson

Boeira. 9. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. p. 131. 946

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 73. 947

BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira.

Lisboa: Edições 70, 2006.p. 169 948

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 73.

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240

Sobre os dados espácio-temporais que se apresentam a nossas mentes impomos as

categorias, isto é, os conceitos que tornam a experiência possível, conferindo a ela

seu caráter determinado. E aqui está o argumento de Kant: se o cético nos pede que

justifiquemos nossas pretensões de conhecimento, nós o fazemos traçando esses

fatos sobre o modo como a experiência se constitui.949

As categorias (qualidade, quantidade, modalidade e relação) são extraídas de um

princípio comum que se expressa pelas faculdades de julgar e pensar e se constituem como

conceitos do entendimento puro, cuja matéria é fornecida pela lógica transcendental, que, no

dizer do próprio Kant, será estruturada em conceitos que "têm de ser reconhecidos como

condições a priori da possibilidade da experiência (quer seja da intuição que nela se encontra,

quer do pensamento)"950

. Todo o conhecimento científico se encontra de antemão inserido

arbitrariamente numa dessas categorias, o mesmo ocorrendo com todas as "intuições

sensíveis"951

.

Se os entraves provocados pela categorização podem contribuir para a estagnação do

conhecimento científico, o empirismo imediato também pode levar a equívocos igualmente

nefastos. Bachelard distingue o empirismo imediato do mero sensualismo e afirma que o

primeiro já constitui um sistema de conhecimento, que serve para tirar o pensamento da

inércia, mas que se manifesta por uma "oscilação cheia de tropeços e de conflitos que acaba

em desarticulação"952

. O embate dogmático do Processo Penal pode ser enquadrado como

exemplo dessa oscilação que, muitas vezes se apresenta como expressão, ainda no plano da

opinião (pré-científico), ou quase teológico953

, contra o qual deve insurgir-se a atividade

científica:

A ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se

absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por

motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de

direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em

conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los.

Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la.954

949

GRAYLING, Anthony Clifford. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.). Compêndio de filosofia.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 55. 950

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 151. 951

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique

Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkien, 2001.p. 168 952

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005. p. 21. 953

DELMAS-MARTY, Mireille (Org.). Processos penais da Europa. Tradução de Fauzi Hassan Choukr, com a

colaboração e Ana Cláudia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005. p.xlii. 954

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005. p. 14.

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241

Essa contundente afirmação de Bachelard demarca o plano científico e o distingue do

proselitismo procedimentalista, em que a "opinião pública" é encarada não como obstáculo

epistemológico a ser superado, mas como resultado da filtragem e da síntese de opiniões

particulares por filtros comunicacionais. Isso resultaria em uma "compreensibilidade geral"

das práticas cotidianas do mundo da vida, tudo mediante o emprego de uma linguagem

natural, renunciando-se à "linguagem de especialistas ou a códigos especiais". Nessa "esfera

pública", as tomadas de posição, pró ou contra determinado tema, adquirem status de "opinião

pública" quando passam a contar com o "amplo assentimento", como se lê em Habermas955

.

Nada mais aparentemente democrático. Nada mais carente de demarcação científica.

Contudo, é possível conceber um Processo Penal demarcado cientificamente, o que

implicará em abandono das concepções arcaicas que exigem filiação irrestrita à

acusatoriedade (idealismo) ou à inquisitoriedade (realismo), pelo acolhimento da constatação

de Bachelard, de que uma ciência objetiva pressupõe a renúncia de posições intelectuais

arraigadas ora ao "sujeito" ora ao "objeto":

Sem essa renúncia explícita, sem esse despojamento da intuição, sem esse abandono

das imagens preferidas, a pesquisa objetiva não tarda a perder não só sua

fecundidade, mas o próprio vetor da descoberta, o ímpeto indutivo. Viver e reviver o

momento de objetividade, estar sempre no estado nascente de objetivação, é coisa

que exige um esforço constante de dessubjetivação. Alegria suprema de oscilar entre

a extroversão e a introversão, na mente liberada psicanaliticamente das duas

escravidões - a do sujeito e a do objeto! Uma descoberta objetiva é logo uma

retificação subjetiva. Se o objeto me instrui, ele me modifica. Do objeto, como

principal lucro, exijo uma modificação espiritual. Quando é bem realizada a

psicanálise do pragmatismo, quero saber para poder saber, nunca para utilizar.956

O eixo epistemológico, que permitirá essa dessubjetivação no plano do Direito

Processual Penal, por consequência de todo o desenvolvimento até aqui obtido, é o Devido

Processo Legal no paradigma da processualidade democrática pelos contornos da teoria

Neoinstitucionalista.

8.3 A epistemologia evolucionária e o enfrentamento dos dualismos dogmáticos

O que precisa ser esclarecido é que a superação dos dualismos paralisantes do

Direito, em especial aquele expressado pelo confronto e oscilação entre acusatoriedade e

inquisitoriedade, no curso histórico e nas mais diversas legislações, deve ocorrer no plano do

955

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92-94 v.2. 956

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005. p. 305.

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242

conhecimento objetivo, que não se confunde, de modo algum, com o substancialismo ou o

realismo. Bachelard estabelece primorosa distinção entre estes conceitos:

A nosso ver, é preciso aceitar, para a epistemologia, o seguinte postulado: o objeto

não pode ser designado como um "objetivo" imediato; em outros termos, a marcha

para o objeto não é inicialmente objetiva. É preciso, pois, aceitar uma verdadeira

ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico. Achamos ter

demonstrado, ao longo de nossas críticas, que as tendências normais do

conhecimento sensível, cheias como estão de pragmatismo e de realismo

imediatos,só determinam um falso ponto de partida, uma direção errônea. Em

especial, a adesão imediata a um objeto concreto,considerado como um bem,

utilizado como valor, envolve com muita força o ser sensível; é a satisfação íntima;

não é a evidência racional.957

A busca de um conceito de conhecimento objetivo é uma constante e pode ser

identificada em trabalhos tão díspares, de Locke a Pontes de Miranda. O primeiro desenvolve

todo um sistema de pensamento partindo da premissa de que nossas ideias são provenientes

das sensações e da reflexão produzidas pela experiência. As ideias são fruto da percepção dos

objetos pelos sentidos: "Recebemos, assim, as idéias de amarelo, branco, quente, frio, mole,

duro, amargo, doce e todas as ideias que denominamos qualidades sensíveis"958

. Já o segundo,

em trabalho de grande importância epistemológica, se dedica a uma singular abordagem sobre

a teoria dos jetos, que decorre da eliminação dos prefixos nos termos sujeito e objeto:

Chamamos jeto a tudo que se apresenta, seja de ordem estritamente física, seja de

ordem psíquica, desde que considerado sem ser do lado de quem vê ou do outro

lado, isto é, eliminados os elementos que representam oposição entre eles, operação

que exprimimos pelo "por entre parênteses os prefixos de (su)jeito e de (ob)jeto".

(Empregamos após a eliminação dos prefixos o termo jeto, sem hífen, para exprimir

o que seria o fato após a eliminação dos prefixos; a operação de extração é humana,

sem o homem não haveria jetos e.g., se os homens, como os mamutes,

desaparecessem da face da Terra.)959

Temos que a busca do epistemólogo é o rompimento com o dualismo ou binarismo,

como deixa claro Popper ao desenvolver a teoria dos três mundos, superando a perspectiva de

interação cartesiana entre "corpo" e "alma", passando a investigar a interação sob um aspecto

mais amplo, ou seja, pluralista.

Em Popper o pluralismo decorre da interação mútua e recíproca entre o "Mundo 1",

que reúne os estados ou processos físicos, e o "Mundo 2", que reúne os estados ou processos

mentais. Dessa interação surge o "Mundo 3", composto pelos produtos da mente humana, que

957

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2005. . p. 293-294. 958

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Nova

Cultural, 2001a. p.58. 959

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. O problema fundamental do conhecimento. 2. ed. Campinas:

Bookseller, 2005. p. 115-116.

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243

são os argumentos, as teorias e a crítica. Essa interação se estrutura do seguinte modo:

Não é possível compreender o mundo 2, isto é, o mundo povoado pelos nossos

próprios estados mentais, sem que se entenda que a sua principal função é produzir

os objetos do mundo 3 e ser influenciado pelos objectos deste último. Como efeito, o

mundo 2 interage não só com o mundo 1 como Descartes pensava, mas também com

o mundo 3; e os objetos deste exercem influência sobre o mundo 1 apenas através do

mundo 2, que actua como intermediário.960

Esses objetos do "Mundo 3" é que vão formar o conhecimento objetivo que

possibilitará à ciência adquirir evolucionariedade, pois há "um efeito de retrocarga muito

importante de nossas criações sobre nós mesmos"961

. O crescimento do conhecimento humano

vai ocorrer por meio de um processo de eliminação de erros, que se torna possível pela

"crítica racional sistemática", mediante um esquema estruturado, de modo que um primeiro

problema se submete a uma teoria experimental, que, por sua vez, é submetida ao processo de

eliminação de erros, resultando sempre em um segundo problema (P1 -> TT -> EE -> P2)962

.

No campo das ciências sociais, seria exatamente esse confronto crítico entre as mais diversas

ideias e políticas o que possibilita o pluralismo de uma "Sociedade Aberta"963

, em confronto

com o platonismo que, não obstante desenvolver uma concepção de "Mundo 3" o define como

algo divino, imutável e verdadeiro, apenas acessível à contemplação humana e não como

produto humano, conjectural, provisório, mutável e falseável por argumentos e teorias,

conforme descreve Popper964

.

Na perspectiva de uma epistemologia evolucionária, contudo, não se trata de acolher

o relativismo científico, mas de buscar o confronto entre conjecturas, que se mostra possível a

partir do momento em que distingue os conceitos de verdade e de certeza965

. Mas, como visto

960

POPPER, Karl Raimund. O conhecimento e o problema corpo-mente. Tradução de Joaquim Alberto

Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70. 1996. p. 19. 961

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 120. 962

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 122. 963

GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e

contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 204; POPPER, Karl

Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

v.1.2. 964

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 124. 965

"O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais. É uma traição à razão e à humanidade. Suponho que o

relativismo na concepção da verdade de certos filósofos é uma consequência da confusão à volta das ideias de

verdade e de certeza; porque em relação à certeza, pode dizer-se que existem graduações de certeza e logo uma

maior ou menor precisão. A certeza é igualmente relativa no sentido de que está sempre dependente do que se

encontra em jogo. Creio, por conseguinte, que tem lugar aqui uma troca entre a verdade e a certeza; e, em muitos

casos, é mesmo possível demonstrá-lo. Tudo isto se reveste da maior importância para a jurisprudência e a

prática jurídica, como o demonstra a fórmula "na dúvida pró réu" e a ideia do tribunal de jurados. O que é pedido

aos jurados é que julguem se o caso que lhes é apresentado é um caso duvidoso ou não. Quem já tiver sido

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244

no capítulo anterior, no Direito Processual Penal há uma evidente fuga para heterotopias

discursivas que pouco têm contribuído para que se compreenda a exata dimensão da

processualidade democrática e seus reflexos cotidianos. Tais posicionamentos, propostas ou

conjecturas resultam em diversionismo e perpetuam os entraves epistemológicos provocados

pela contraposição entre acusatoriedade e inquisitoriedade.

8.4 O devir processual penal como interenunciatividade democrática

A teoria Neoinstitucionalista do Processo se firma com o propósito de construir uma

sociedade democrática como contraponto a uma sociedade civil pressuposta,na qual o

referente hermenêutico é o Estado-juiz empenhado em eternizar a "dominação legítima (lex

íntima)" exercida por "detentores de poderes indesafiáveis (tríplice aliança: legislativo,

executivo e judiciário) por um pacto histórico (substratos ideológicos) de "puros" sentidos de

formas de vida"966

. O marco hermenêutico Neoinstitucionalista não é o dos modelos

liberalizante ou comunitarista, iguais em suas diferenças967

, pois ambos calcados na figura da

autorictas, e sim de uma hermenêutica auto-inclusiva dos destinatários normativos como

legitimados ao processo em todos os níveis de produção, atuação, aplicação e extinção de

direitos968

.

A teoria Neoinstitucionalista, ao definir o processo como instituição, apresenta certa

biunivocidade, uma vez que o termo instituição pode ser entendido como a atuação dos

conteúdos discursivos no plano instituinte da lei e da própria constituição, bem como a

conjunção de princípios e institutos jurídicos com afinidades conteudísticas. Mas sua grande

virtude é submeter a atividade jurisdicional ao crivo desta principiologia institutiva

fornecendo à pesquisa jurídica uma nova vertente que acaba por possibilitar o enfrentamento

dos dogmas e doxas, verificados no debate entre aqueles que defendem maior ou menor

ativismo judicial no processo penal.

jurado compreenderá que a verdade é algo de objectivo, e a certeza algo de subjectivo. Isto manifesta-se com

extrema clareza na situação do tribunal de jurados. Quando os jurados chegam a acordo - a uma "convenção" -,

esta é designada por "veredicto". A convenção está muito longe de ser arbitrária. É dever de todo o jurado

procurar descobrir a verdade objectiva em toda a consciência. Mas ao mesmo tempo, deve ter consciência da sua

falibilidade, da sua incerteza. E no caso de uma dúvida razoável no apuramento da verdade deverá pronunciar-se

a favor do réu. É uma tarefa difícil e de grande responsabilidade, e vemos aqui claramente que a passagem da

busca da verdade para um veredicto formulado verbalmente constitui o objecto de uma decisão, de uma

sentença. E o mesmo se passa com a ciência." (POPPER, 2006, p.8). 966

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 62. 967

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Cláudia Martinelli Gama e Mauro

Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 . p. 233. 968

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 59.

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245

Na atualidade dos estudos jurídicos, a superação do esquema sujeito-objeto tornou-se

uma busca que envolve juristas das mais variadas matizes, os quais enxergam em tal esquema

a fonte justificadora de práticas interpretativas de viés autoritário que não se coadunam com o

Estado Democrático de Direito, constituindo óbice à superação das concepções liberal e

social. A teoria Neoinstitucionalista erige o processo ao status de interpretante lingüístico, que

permite a testificação do discurso encaminhado pelas partes e pelo julgador, em plenas

condições de igualdade, por uma hermenêutica isomênica. Não é o discurso que legitima uma

decisão, mas sim a possibilidade de arguição plena dos fundamentos deste discurso, pois ele

sempre apresenta a possibilidade de encaminhar concepções autoritárias incompatíveis com o

Estado Democrático de Direito.

O simples fato de acolhermos na contemporaneidade a filosofia da linguagem não

assegura o atendimento e a observância dos direitos fundamentais. É preciso esclarecer que

linguagem é essa. Tal esclarecimento, segundo a compreensão extraída do presente trabalho,

passa pelo medium linguístico denominado Processo, pelo qual será possível a construção e

reconstrução do sistema jurídico, como na metáfora de Neurath (economista de forte

tendência marxista, integrante do círculo de Viena)969

: um barco que é continuamente

consertado e reconstruído à medida que se vai navegando, ainda que o barco esteja flutuando

aparentemente bem.

Nessa perspectiva, se instaura juridicamente, pelos princípios processuais fundantes,

a possibilidade do povo, em sua legitimação processual ampla, escapar do dilema posto pelo

dualismo dogmático acusatoriedade/inquisitoriedade, que vai decorrer de outros como:

idealismo/realismo, agir comunicativo/agir estratégico ou indeterminismo/determinismo.

Conforme Popper, superar essas dicotomias é a marca da liberdade e da criatividade humanas,

afinal, estamos entre "nuvens e relógios", as nuvens têm sempre algo de relógios e vice-versa:

[...] é insatisfatório encarar o mundo como um sistema físico fechado - seja um

sistema estritamente determinado ou um sistema em que tudo o que não é

determinado estritamente é simplesmente devido ao acaso: em tal concepção do

mundo, a criatividade humana e a liberdade humana só podem ser ilusões. A

tentativa de fazer uso da indeterminação teórica do quantum é insatisfatória, porque

leva ao acaso em vez de à liberdade e a decisões instantâneas.

Ofereci aqui, portanto, uma visão diferente do mundo - uma visão em que o mundo

físico é um sistema aberto. Isto é compatível com a visão da evolução da vida como

um processo de experiências e eliminação de erros; e permite que compreendamos

racionalmente, ainda que longe de plenamente, a emersão de novidades biológicas e

o crescimento do conhecimento humano e da liberdade humana.970

969

GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e

contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 190. 970

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia,

1999.p. 233.

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246

Com essa abertura, é possível superar as pretensões acusatórias ou inquisitórias de se

estabelecerem como sistemas legislativos ou teóricos, a buscar cada um o monopólio das

soluções para o Processo Penal. O que se conclui é que acusatoriedade e inquisitoriedade não

mais podem ser reconhecidos como sistemas. No entanto, como princípios informativos do

Processo não são descartáveis e devem ser expostos à testificação incessante, pelo devir

teórico de um Processo Penal democrático:

Portanto, o devir processual democrático (DEVIDO PROCESSO) não é um vir-a-

ser pelo já ser (o passado irreflexo), porém se enuncia como construtivo de um ser

(existência jurídica) teoricamente corroborado (constitucionalizado) e operativo de

direitos fundamentais líquidos, certos e exigíveis, desde o nível constituinte da

produção normativa.971

O Direito Processual Penal democrático,mais do que intersubjetividade, assegura a

interenunciatividade972

, em que todos os sujeitos jurídicos envolvidos, antes de serem

detentores de poderes no âmbito procedimental, se relacionam no plano da atribuição de

competências pela legislação (Código de Processo Penal e leis esparsas) que formam um

arcabouço amplamente criticável juntamente com as questões de fato. Essa crítica incessante é

possibilitada pelos conteúdos heurísticos decorrentes da principiologia constitucional,

cientificamente demarcada por uma epistemologia quadripartite e evolucionária (teoria

Neoinstitucionalista).

Em termos científicos, há uma especial relevância na relação entre o instituto jurídico

da prova, a concepção de enunciado e sua função sistemática. Tendo Popper como ponto de

partida, é possível conceber a atividade científica como a atividade de desenvolver

enunciados, ou sistemas de enunciados, que sob a forma de hipóteses973

podem ser

submetidos à testificação intersubjetiva, na medida em que permitem, diante de um problema,

separar seus aspectos lógicos e metodológicos dos aspectos estritamente psicológicos:

Precisamos distinguir de uma parte, nossas experiências subjetivas ou nosso

971

LEAL, Rosemiro Pereira. O due process e o devir processual democrático. In: ROSSI, Fernando et al.

(Coord.). O futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Belo Horizonte:

Fórum, 2011. p. 593. 972

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 164 973

Sobre o raciocínio hipotético, deve-se anotar que possui uma carga maior de incerteza, sendo a fórmula da

conjectura. O raciocínio lógico tem uma estrutura triádica composta por caso, regra e resultado, que conforme a

posição que ocupam caracterizam dedução, indução ou hipótese. Ex. Dedução: "os feijões desta sacola são

brancos" (regra); "estes feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado). Indução: "estes

feijões são desta sacola" (caso); "estes feijões são brancos" (resultado); "os feijões desta sacola são brancos"

(regra). Hipótese: "os feijões desta sacola são brancos" (regra); "estes feijões são brancos" (resultado); "estes

feijões são desta sacola" (caso). (PEIRCE, 2008, p. 172).

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247

sentimento de convicção, que jamais podem justificar qualquer enunciado (embora

possam tornar-se objeto de investigação psicológica), e, de outra parte, as relações

lógicas objetivas, que se manifestam entre os vários sistemas de enunciados

científicos e dentro de cada um deles.

[...]

Ora, eu sustento que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou

verificáveis, mas que, não obstante são suscetíveis de serem postas a prova. Direi,

conseqüentemente, que a objetividade dos enunciados científicos reside na

circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste.974

As conjecturas acima lançadas dizem respeito à lógica da pesquisa como um todo e,

por tal razão, não podem ser descartadas em um trabalho sobre Direito Processual Penal se a

intenção for o esclarecimento de seus contornos teóricos, não apenas a sua verificação ou

justificação. A aproximação entre lógica e processo é reconhecida por processualistas de

variadas matizes975

. O que se discute, contudo, é a tipologia da lógica processual.

Dessa afirmativa decorre uma necessária abordagem sobre como definir o enunciado

que, não obstante ser algo distinto da sentença e da proposição, está presente nas formas

lógicas que sustentam o conhecimento humano nos campos da sintática, da semântica e da

pragmática976

. Essa distinção também é estabelecida por Michel Foucault. Em sua concepção,

o enunciado é elemento componente do discurso e as frases (sentenças), proposições ou

speach acts, são apenas as plataformas em que o enunciado vai exercer sua função:

Não é preciso procurar no enunciado uma unidade longa ou breve, forte ou

debilmente estruturada, mas tomada como as outras em um nexo lógico, gramatical

ou locutório. Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável

em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce

verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de

uma série de signos, se elas estão aí presentes ou não. O enunciado não é, pois, uma

estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando

assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência

que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em

seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que

regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se

encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita).977

A função enunciativa se caracteriza por uma oferta dos conteúdos linguísticos à

testificação, pois o que vai lhes assegurar o status enunciativo é a possibilidade de serem

974

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 45-46. 975

CARNELUTTI. A Prova Civil. p. 17; MALATESTA. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. p. 30;

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 2001. p. 36 et

seq. 976

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 113-114. 977

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008a. p. 98.

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248

julgados conforme sua verdade ou falsidade978

. Isso implica ressaltar seu caráter relacional

com o referente do discurso e com outros enunciados, para que possa cumprir outra de suas

funções mais destacadas que é a persuasão de um auditório979

ou qualquer outro destinatário

de seu proferimento. "A noção de auditório é central na retórica. Pois um discurso só pode ser

eficaz se é adaptado ao auditório que se quer convencer ou persuadir", constata Perelman980

.

A enunciação do discurso seria considerada eficaz se cumprisse o seu papel que era o de

perpetuar a dominação.

Uma taxonomia dos enunciados é apresentada por Popper e contribui para que se

possa, no Direito, tentar identificar que espécie de enunciados vai constituir as proposições e

prescrições jurídicas, além dos proferimentos de outra ordem que vão influir na sequência

procedimental, bem como na tomada de decisão, e que se constituem instrumentos de prova

tais como uma confissão, um depoimento testemunhal ou um laudo técnico-pericial.

Popper distingue de início duas espécies de enunciados: (a) os enunciados universais

e (b) os enunciados singulares. Os primeiros descrevem as leis causais da natureza que se

aplicam em toda e qualquer circunstância. Os segundos descrevem eventos específicos e

decorrem da conjunção entre os primeiros e algumas condições verificadas no evento. O

princípio da causalidade, do qual decorrem os enunciados universais, para Popper, não possui

interesse científico, pois quando se faz sobre ele um juízo analítico, isto resulta em tautologia

(um determinado fenômeno sempre ocorre da mesma forma em qualquer circunstância.

Exemplo: um fio de determinada espessura que se rompe com um peso de um quilo sempre se

romperá quando um objeto com peso igual ou superior a um quilo nele for pendurado).

Quando o juízo for sintético (Exemplo: quando se afirma que um evento específico sempre

traduz uma regularidade universal) ele não é falseável o que, em Popper, é critério de

demarcação científica. O princípio da causalidade é então metafísico981

.

O interesse científico vai se ocupar, contudo, dos enunciados singulares. Popper

equipara a estes os enunciados "numericamente universais" que vão se distinguir dos

enunciados "estritamente universais", na medida em que apresentam conteúdos com

pretensões de verdade que podem ser falseáveis, pois se referem a uma classe específica de

978

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a.p. 41; MÁYNEZ, Eduardo García. Logica del juicio juridico. Mexico:

Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 58. 979

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 240. 980

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Rupi. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.p. 143. 981

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 62-63.

Page 241: O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E ... · Dário José Soares Júnior O DOGMATISMO DO BINÔMIO ACUSATORIEDADE-INQUISITORIEDADE E O PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

249

elementos no espaço e no tempo (os habitantes de uma cidade, os artigos de uma

Constituição, os depoimentos tomados em um procedimento judicial e tudo o mais que puder

ser numericamente definido)982

. Popper apresenta ainda outra categoria: os enunciados

existenciais.

Enquanto os enunciados universais são chamados de "enunciados-todos", pois

podem ser confirmados em todo tempo e lugar, os enunciados existenciais são chamados de

"enunciados-há", e assim, como os primeiros, sua verificação não se restringe a determinadas

circunstâncias espaço-temporais como, por exemplo, o enunciado "há corvos brancos",

negação do enunciado universal "todos os corvos são negros". Estes enunciados também não

podem ser falseáveis cientificamente, justamente porque "não se referem a uma região

individual, limitada, espaço-temporal"983

.

Com base nessas concepções sobre os enunciados, isolando como falseáveis,

portanto, científicos, os enunciados singulares, Popper vai esboçar uma teoria dos sistemas

teóricos os quais se distinguem entre duas espécies: os sistemas axiomáticos e os de equação.

Nos primeiros, os enunciados são apontados como axiomas (pressupostos, postulados ou

proposições primitivas) sobre os quais se estruturam os sistemas. Um sistema axiomatizado é

um sistema fechado (que permite identificar de forma evidente a mutação ou revisão pois um

novo pressuposto é logo notado em face da rigidez do sistema). O sistema de equação vai

admitir incógnitas ou variáveis e, por essa razão, admite combinações de valores, mas não

implica que seja admitida toda e qualquer combinação de toda e qualquer valência, apenas das

classes admitidas pelo sistema984

. Seja qual for o sistema, um enunciado universal jamais

poderá ser extraído conclusivamente de enunciados singulares, mas estes últimos terão

sempre a capacidade de contraditar e apontar os erros dos primeiros985

.

Assim, um enunciado do tipo: A Constituição da República Federativa do Brasil

dispõe em seu art. 5º, inciso LVI que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por

meios e ilícitos", é um enunciado singular, pois permite uma verificação cronotópica986

de

seus conteúdos de verdade e validade pelas possibilidades discursivas que se descortinam:

982

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 68. 983

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 73. 984

POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leônidas Hegenberg; Octany Silveira

da Motta. São Paulo: Ed. Cultrix, 1974a. p. 74 a 76. 985

GIDDENS, Anthony. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e

contemporâneo. Tradução de Cibele Saliba Rizek. São Paulo: Editora Unesp, 1988. p. 203. 986

SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da crise. 3. ed. São Paulo: Logos, 1959.p. 64.

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250

(a) Analiticamente, pode ser considerado um componente da Constituição, mas

também pode ser decomposto na medida em que em sua estrutura estão outros enunciados

como "processo", "provas", "ilícitos" e, assim, sucessivamente, até se atingir cada signo

linguístico empregado, como se procede no atomismo lógico987

.

(b) Sinteticamente, a verificação da verdade empírica de tal enunciado ocorrerá a

partir da relação que se estabelece com o referente, que, por sua vez, "forma o lugar, a

condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos,

dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado."988

.

A perspectiva analítica de um enunciado leva em conta os significados de seus

termos com pretensões de conduzir a juízos de verdade ou falsidade pelas próprias palavras

que contém, ou seja,a priori. Já a perspectiva sintética se distingue pelo fato de submeter o

enunciado a uma verificação empírica. Assim, sua verdade é sempre atestada a posteriori pelo

confronto com o referencial do mundo circundante989

. A verificação analítica ocorre por

dedução e a verificação sintética por indução ou hipótese990

. O enunciado jurídico acolhe esta

segunda configuração, mas o seu referencial será sempre um referencial jurídico, que, por sua

vez, também poderá ser verificado e depois submetido a teste (refutação), num processo

incessante de eliminação de erros que não oferece nenhuma resposta definitiva, pois sempre

surgem "novas pressões, novos problemas, novos desafios"991

.

Já se falou que a prova em Direito tem como objeto a estruturação do

procedimento992

. Importa também definir quem é o "sujeito" da prova numa perspectiva

democrática. A função dessubjetivante do enunciado, como abordado acima, vai contribuir

para a tentativa de superação da concepção positivista de que o Direito, em razão da natureza

coexistencial da experiência humana, se reduz a um sistema de interferências intersubjetivas

baseadas em impedimentos e permissões993

. Não há mais sujeito que detenha o monopólio do

sentido que se pode extrair da prova, pois o Processo é instituição que atua exatamente para

987

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 133. 988

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008a. p. 103. 989

SEARLE, John R... Filosofia contemporânea nos Estados Unidos. In: BUNNIN, Nicholas et al.(Org.).

Compêndio de filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 3. 990

PEIRCE, Charles Sanders. Ilustrações da lógica da ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.

Aparecida: Idéias e Letras, 2008. p. 172. 991

POPPER, Karl Raimund. A lógica das ciências sociais. Tradução de Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho;

Estevão de Rezende Martins e Vilma de Oliveira Moraes e Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004.

p. 53-54. 992

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

p. 189. 993

COSSIO, Carlos. Teoría de la verdad jurídica. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1954.p. 80.

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251

reduzir o grau de arbitrariedade no sistema jurídico, uma vez que "a discursividade no espaço

processual possibilita que o direito democrático no nível instituinte e instituído não fique na

esfera da subjetividade, da realidade nua (ideologizada) ou na "comunidade prévia de

sentido""994

. Instaura-se, desse modo, um primado do sistema (instituição) sobre o sujeito da

enunciação, como evidenciado por Dominique Maingueneau:

Esta instância de subjetividade enunciativa possui duas faces: por um lado ela

constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por outro, ela o assujeita. Se ela

submete o enunciador a suas regras, ela igualmente o legitima, atribuindo-lhe a

autoridade vinculada institucionalmente a este lugar. Uma tal concepção opõe-se a

qualquer concepção "retórica": aquela que coloca dois indivíduos face a face e lhes

propõe um repertório de "atitudes", de "estratégias" destinadas a atingir esta ou

aquela finalidade consciente.995

Não deixa de ser pertinente a preocupação com a possibilidade do juiz atuar de ofício

na aquisição e na admissão da prova, pois, nesse caso, se posiciona ao mesmo tempo como

enunciador e destinatário, exercendo atividade decisória sem constrangimento institucional.

Como observa Michele Taruffo, os "poderes" instrutórios do juiz devem mesmo ser limitados,

ao contrário do historiador ou do cientista, que em suas pesquisas não possuem quaisquer

amarras. É que o juiz não é o único interessado na prova, e as partes devem ser resguardadas

das interferências que podem advir de suas opções ideológicas996

, num plano discursivo em

que a linguagem é concebida como meio universal que resulta sempre em interpretações fixas

por uma semântica inefável e inacessível, ao passo que no processo o mais adequado seria

apostar numa linguagem como cálculo, que se expõe aos destinatários pela forma decifrável e

acessível da sintaxe997

.

Por essa razão, é temerário que o livre convencimento do juiz se desenvolva num

plano livre de controle normativo (juez-dictador)998

. Além da estrita observância às normas

processuais, esse livre convencimento há que ser motivado racionalmente conforme os

"cânones da lógica" e os elementos resultantes da atividade processual, estando sempre sujeito

à impugnação em caso de inconformismo de qualquer dos interessados (tradução nossa)999

.

994

ALMEIDA, Andréa Alves de. Espaço jurídico processual na discursividade metalinguística. Curitiba:

Editora CRV, 2012. p. 74. 995

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. 3.

ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. p. 33. 996

TARUFFO, Michele. La semplice verità: il giudice e la costruzione dei fatti. Roma-Bari: Laterza. 2009. p.

72. 997

CRUZ, Ronald Taveira. Frege e Chomsky: linguagem como cálculo ou linguagem como meio universal?

Revista Virtual de Estudos da Linguagem, v. 5, n. 8, mar., 2007. p. 6;15. 998

ALCALA-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Cuestiones de terminologia procesal. México: Universidad

Nacional Autónoma de México, 1972.p. 205 999

“Da tale griglia legale si desume che il convincimento del giudice deve consistere in una valutazione razionale

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252

É possível, então, concluir que o Processo estruturado em bases neoinstitucionalistas

vai proporcionar o primado do discurso sobre o sujeito da enunciação, instaurando a

possibilidade de uma hermenêutica isomênica por uma "metalinguagem auto-crítico jurídica

pela principiologia do contraditório, ampla defesa e isonomia para correlativamente

identificar e enunciar vida, liberdade, dignidade-igualdade"1000

. A lógica vai contribuir para a

dessubjetivar as decisões, pois já foi possível demonstrar que a lógica clássica pode apresentar

variantes ou alternativas à semântica bivalente e dicotômica, que se restringe a aferir a

verdade ou falsidade de um enunciado. São as chamadas lógicas polivalentes1001

que, em certo

sentido, vão possibilitar o percurso proposto por Rui Cunha Martins, para a obtenção da

convicção, como forma de curto-circuitar os "circuitos crentes":

ao invés de um processo linear estendendo-se ao longo de dois pólos, a convicção

corresponde a um processo de sucessivas tangências e sobreposições, complexo e

denso, no âmbito do qual os diferentes componentes do percurso se inter-relacionam

e se convocam mutuamente, contaminando a respectiva posição, o respectivo

sentido e os respectivos efeitos. À imagem de um trajecto operando em sucessivas

etapas, cada uma delas correspondendo a um estádio epistémico que, partindo da

crença e passando pela dúvida, alcançaria sucessivamente o assentimento, a

confiança, a aceitação e a própria convicção, para depois se prolongar na decisão e,

por fim, na justificação, ambas situadas nesta perspectiva, nos antípodas da crença

originária, convirá contrapor a imagem de um circuito em que cada um destes

estádios se disponibiliza a interagir e a contaminar os restantes - curto-circuitando,

justamente a demarcação ideal entre eles.1002

Com as conjecturas lançadas nesta pesquisa, parece ter sido possível apresentar uma

alternativa para o simplismo reducionista da estrutura lógica da prova em que a confirmação

se procede por modus ponens e a refutação por modus tollens1003

, mediante um raciocínio

indutivo, com base em generalizações e máximas de experiência a fim de obter a

confiabilidade subjetiva do juiz1004

, permitindo restrições de liberdade por "indício suficiente

delle prove e in una ricostruzione del fatto conforme ai canoni della logica ed aderente alle risultanze

processuali. Di fronte alla motivazione che sia carrente di tali requisiti le parti possono proporre impugnazione

(appello e ricorso per cassazione).” “Desta grade legal resulta que a convicção do juiz deve consistir em uma

avaliação racional das provas e em uma reconstrução do fato em conformidade com os cânones da lógica e

aderente aos resultados processuais. Confrontadas com a motivação que decorrem de ambos os requisitos as

partes podem recorrer (apelação e recurso para cassação)” (tradução nossa) (TONINI, 2010, p. 127). 1000

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 178 1001

HAACK, Suzan. Filosofia das lógicas.Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra.

São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 269. 1002

MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian Lessons. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2011.p. 25 1003

Sobre o modus ponens foi feita referência no primeiro capítulo. Trata-se da confirmação da verdade da

conclusão pela constatação da verdade das premissas. O modus tollens se caracteriza pelo falseamento das

premissas a partir do falseamento da conclusão. (POPPER, 1974a, p. 80). 1004

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi

Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 116.

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253

de autoria"1005

ou juízos construídos sobre as bases movediças da verossimilhança1006

.

O fato é que o sistema processual, como organon da refutação, vai operar na

testificação das afirmações da evidência, seja por indução na matéria de fato, seja por dedução

na matéria de direito ou por hipótese, cujo maior triunfo, segundo Peirce, é apontar os desvios

de uma afirmação1007

. De qualquer modo, no Estado Democrático de Direito qualquer espécie

de conclusão deverá se submeter a uma refutação gradual, evolucionária e

problematizante1008

, levando-se em consideração a solução de Popper, segundo a qual a base

empírica da ciência é formada por enunciados singulares (básicos) que servem "como

premissas de inferências falseadoras", que ao mesmo tempo leva a constatar que "enunciados

só podem ser logicamente justificados por enunciados"1009

. A partir dessa perspectiva, pode-

se afirmar que a relação interenunciativa é que permitirá a separação dos aspectos

psicológicos dos aspectos lógicos e metodológicos de uma decisão, proposição ou prescrição

jurídica, com inegável ganho de objetividade e democraticidade.

Esta base argumentativa contribui para o enfrentamento do debate dogmático que se

estabeleceu no curso histórico do Processo Penal e que, ainda hoje, constitui entrave a ser

superado pela ciência jurídica. Uma tarefa que, conforme demonstrado, parece ser possível

pela epistemologia evolucionária e pela interenunciativade processual possibilitada por uma

hermenêutica isomênica, conforme desenvolvido pela teoria Neoinstitucionalista do Processo.

1005

Ex. art. 312 do CPP brasileiro, que versa sobre a Prisão Preventiva e art. 273 do CPP italiano que dispõe sobre

a custodia cautelariin carcere, que autoriza a medida cautelar quando há grave indício de culpabilidade. 1006

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254

CONCLUSÃO

Após as incursões levadas a efeito no curso da presente pesquisa, é possível concluir

que o reconhecimento de uma dimensão científica para o Direito Processual Penalimplica em

afirmar a superação da crise dogmática provocada pela histórica contraposição entre os

princípios acusatório e inquisitório, que se constitui como considerável entrave para o

discurso jurídico no paradigma da processualidade democrática. Como visto, os mais diversos

contextos, em variados períodos históricos, foram influenciados por esse embate que resultou

em uma aplicação dicotômica e excludente da acusatoriedade ou da inquisitoriedade,

oscilando entre o autoritarismo estatal ou eclesiástico dos modelos inquisitoriais, para a

privatização dos conflitos penais nos ordenamentos de acusatoriedade plena.

No desenvolver da pesquisa, o esforço maior foi no sentido de explicitar os pontos

que permitem estabelecer uma relação epistemológica entre conteúdos díspares, mas que

contribuem para esclarecer a artificialidade da contraposição entre acusatoriedade e

inquisitoriedade. Não houve, contudo, qualquer esforço de conciliar ou compatibilizar essas

correntes que, conforme algumas abordagens, constituem-se como sistemas jurídicos. Neste

ponto, a expectativa é de que tenha ficado bem explicitado que tais conceitos são princípios

de Direito Processual Penal, que inspiram ou regem determinados ordenamentos, mas que não

apresentam os contornos definidores que poderiam alçá-los à condição de sistema. Como

princípios informativos, sua insuficiência teórica, para atender aos contornos do Processo

Penal democrático, fica explicitada.

Dessas conclusões primárias, espera-se ter sido possível estabelecer um novo tipo de

relação entre tais vertentes do Direito Processual Penal. Uma relação de inclusão ao

paradigma da processualidade democrática, por intermédio da teoria Neoinstitucionalista do

Processo de Rosemiro Pereira Leal, com sua epistemologia quadripartite e os aportes do

racionalismo crítico de Karl Popper. Por este marco teórico foi possível empreender uma

releitura de tais princípios, propugnando uma irrestrita fiscalidade dos conteúdos processuais,

por uma linguisticidade discursiva que permite a constante interrogação em torno das práticas

inquisitoriais ou acusatórias.

Talvez o principal mérito da pesquisa tenha sido a demonstração de que o próprio

princípio acusatório, isoladamente considerado, pode também assumir feições dogmáticas,

apresentando déficit de democraticidade, mesmo naqueles ordenamentos considerados como

de exemplar consolidação do princípio democrático por meio dos postulados do

constitucionalismo típico do segundo pós-guerra. Foram apontadas as fragilidades do

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princípio acusatório de modo que a mera garantia de separação entre órgãos acusadores e

julgadores não significa que esteja assegurada a plena processualidade democrática.

Como demonstrado, o total afastamento do julgador da atividade probatória não

significa, por si só, o alcance de um patamar indiscutivelmente democrático. Pode tão

somente mascarar um tipo de autoritarismo ainda mais perverso que se verifica no âmbito da

persecução penal extrajudicial. Contraditoriamente, a acusatoriedade radical pode favorecer a

inquisitoriedade em esferas que mais facilmente podem se subtrair a qualquer espécie de

controle processual. Desse modo, há que se indagar se seria admissível no plano da validade

constitucional o acolhimento de uma inquisitoriedade voltada para assegurar as garantias

individuais, ou seja, a admissão de um inquisidor pro reo.

O que se assenta, contudo, é que tal dicotomia contribuiu para reduzir a dimensão

epistêmica do Processo Penal, de modo a se estabelecer como campo fértil para o advento de

abordagens que acabam por privilegiar mais a ideologia do que a ciência, com nefastos

reflexos sobre as estruturas legislativas ao longo dos séculos e nos mais diversos contextos

políticos. Não sendo possível ao indivíduo escapar da autoridade estatal, que institui um

sistema repressivo que se auto-legitima sob o manto retórico do “poder que emana do povo e

em seu nome será exercido”, o que se apresentou evidenciado pela pesquisa foi a premente

demanda por esclarecimento científico em torno das instituições jurídicas, notadamente o

Processo Penal.

Por suas peculiaridades e pelas consequências drásticas que o sistema penal pode

impor ao indivíduo, a inserção do Processo Penal como objeto de estudo da Teoria Geral do

Processo, sobretudo pelas demarcações já consolidadas pela teoria Neoinstitucionalista do

processo, inaugura uma promissora vertente de investigação científica. As abordagens que

permitem ressemantizar princípios jurídicos de primordial observância, tais como ampla

defesa, contraditório e isonomia, constituem importante abertura epistemológica que a

pesquisa procurou aproveitar para chegar às conclusões que permearam cada um de seus

capítulos.

Essa tomada de posição, talvez tenha ajudado a desmistificar teorias que

contribuíram para obscurecer a compreensão sobre o processo, transformando-o em uma

abstração ou em um instrumento apropriado, autoritária e dogmaticamente, por segmentos

estatais que se querem intérpretes privilegiados do Direito e portadores de um saber

inacessível para os demais interessados. A hermenêutica não pode constituir uma atividade

quase mística, mas, antes, deve se apresentar como direito igual de interpretação que permita

a todos compreender o que ocorre pela formalização de enunciados ofertados à crítica,

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256

permitindo assim a testificação de seus conteúdos, intra ou extra-processualmente.

São os institutos e princípios jurídicos, articulados normativamente, por leis

instituídas democraticamente (devido processo legislativo), que asseguram o ganho

epistemológico proporcionado pela processualidade democrática. O dogmatismo decisionista

encontra, então, um forte oponente que o convoca para um embate não mais pautado pela

ideologia predominante em determinada quadra histórica (acusatoriedade versus

inquisitoriedade), mas pela admissão da falibilidade de todas as variáveis fáticas e jurídicas

que se apresentam, podendo cada qual das partes e julgadores envolvidos ter uma apreciação

do objeto congnoscível, livre de pré-compreensões e aberta aos conteúdos assentados pela

formalização dos autos, através da atuação de agentes públicos e privados no âmbito de

competências previamente demarcadas pela legislação processual.

O Processo Penal, compreendido como instituição constitucionalizada e

constitucionalizadora dos conteúdos que se apresentam como objeto de debate e

argumentação, também é estudado como medium linguístico, cuja função heurística se ergue

sobre as outras. Parafraseando Popper, o Processo Penal deixa de ser o organon da

confirmação de verdades pré-concebidas, para ser o organon da crítica recíproca aos

conteúdos fáticos e jurídicos invocados (ampla defesa). A pesquisa que se encerra veicula a

tese da interenunciatividade processual pela qual se supera a concepção da mera

intersubjetividade a estabelecer a crença pressuposta em um agir comunicativo de feições

ainda idealistas.

O Processo Penal, assim estudado, não é mais apenas judicium, o que permite

concluir pelo arcaísmo de um debate que só produza a prevalência ou declínio da

acusatoriedade ou da inquisitoriedade, pois não consegue se desvencilhar do dualismo

metafísico-transcendental que caracterizou tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo.

Mas isso não significa acolher sem reservas as tendências pós-positivistas que se manifestam

também sob o rótulo de neo-constitucionalismo, pautadas pela tópica e pela retórica

apresentadas sob a marca da argumentação jurídica, que, no entanto, não conseguem ocultar

seu dogmatismo que se expressa pela busca da integridade, da decisão correta, da

razoabilidade ou da proporcionalidade, mas não se preocupa em assegurar a interpretação a

todos indistintamente, uma vez que, como ficou demonstrado, ainda se prendem

excessivamente ao decisionismo de um sujeito cognoscente fechado em si mesmo (solipsismo

decisório).

Mas o enfrentamento do dualismo metafísico que tanto entrave trouxe ao

desenvolvimento do Direito Processual Penal, não produz qualquer ganho evolucionário se

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for feito pela adoção irrefletida de propostas que, além de heterodoxas sejam heterotópicas, ou

seja, dizem respeito a searas diversas como a antropologia, a sociologia e a ideologia. Tais

propostas aplicam arbitrariamente ao Direito Processual Penal conteúdos que não passam de

proselitismo, pois descuidam por completo dos contornos epistemológicos construídos pela

Teoria Geral do Processo no paradigma do constitucionalismo democrático, especialmente

aquele implantado no Brasil pela Constituição da República, promulgada em 1988.

A crítica encaminhada nesta pesquisa apresenta uma forte tendência ao ceticismo,

como forma de desestimular o estabelecimento de crenças e posturas que acabam por

reproduzir séculos de dogmatismo e ausência de preocupação com uma abertura

epistemológica que possa significar maior aderência do Direito Processual Penal à teoria da

democracia nos moldes apresentados por Popper: democracia como organização institucional

de incessante abertura à crítica científica que possa resultar em seu aprimoramento de modo a

evitar os danos causados pelas autocracias, tiranias ou autarquias.

A influência de tais concepções traz um alento para a pesquisa na medida em que o

leitor possa se decepcionar com a falta de uma solução definitiva para as fragilidades e

problemas que o Direito Processual Penal apresenta, tanto para aqueles que defendem uma

acusatoriedade radical quanto para os que clamam por mais inquisitoriedade, como forma de

assegurar maior efetividade, seja lá o que isso signifique. O acolhimento da Teoria

Neoinstitucionalista do Processo e do racionalismo crítico de Popper permite reduzir as

expectativas em torno de resultados que possam ser pretensiosamente apresentados como

portadores de verdades indiscutíveis, dogmaticamente estabelecidas.

A correlação entre concepção de interenunciatividade e a teoria da prova, com ênfase

na função heurística do Processo Penal, talvez contribua para que novas abordagens possam

surgir, talvez confrontando as linhas gerais desta argumentação com dispositivos específicos

que possam ser assim submetidos ao escrutínio epistemológico, de modo a evitar percepções

obscurecidas pela ideologia e pelo que Popper denomina psicologismo, ou seja, a tentativa de

reconstruir os caminhos pelos quais se chega a uma inspiração ou intuição. O Processo Penal

pode ser concebido, sim, como um método de prova que atua no sentido de testar as

inspirações e intuições que podem servir de embasamento a decisões, as quais, na maioria das

vezes, repercutem nas mais diversas interfaces do sistema jurídico.

Uma decisão qualquer no âmbito de qualquer Procedimento Penal, pelas graves

consequências que acarreta ao indivíduo e à estabilidade do sistema jurídico, deve ser sempre

entendida como um enunciado criticável que pode e deve ser submetido a testes severos que

envolvam aspectos linguísticos, lógicos e jurídicos de modo que os fatos objeto de apreciação

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258

possam ser explicitados, percebidos e interpretados por todos os envolvidos direta ou

indiretamente na controvérsia. No paradigma do Estado Democrático de Direito, essa abertura

é uma oferta possível.

Nestas linhas conclusivas, há que ser ressaltado o fato de que o instrumentalismo

jurisdicêntrico foi responsável, no que tange à atividade repressiva ou penalística do Estado,

pela irracionalidade com que se busca encontrar “o sistema” capaz de proporcionar resultados

que possam caracterizar um grau civilizatório mais avançado. O problema é que nem todos os

juristas vão concordar com o que venha ser esse grau civilizatório. Para uns pode significar

maior repressividade e menos leniência com a violência social e as perturbações dela

decorrentes. Para outros, significa assegurar garantias mais expressivas restringindo, ao

máximo possível, as hipóteses de intervenção do Estado na esfera de liberdade individual.

Essas perspectivas investem em abordagens pautadas sempre na maior ou menor abrangência

dos poderes judiciais, como se esse fosse o único aspecto a ser considerado. Pelas conjecturas

desenvolvidas nesta pesquisa, parece que a complexidade do Processo Penal transcende o

embate dogmático entre acusatoriedade e inquisitoriedade.

Diante de tudo o que foi até aqui desenvolvido, tem-se que os princípios da

acusatoriedade e da inquisitoriedade ficariam posicionados mais adequadamente num plano

epistemológico no qual deixassem de ser reconhecidos como sistemas, pois quando se insiste

em semelhante postura há o estabelecimento de certas interdições para a compreensão de

como tais princípios podem ser operacionalizados no paradigma da processualidade

democrática. O tema comportaria, talvez, trabalho mais extenso e, talvez, mais enciclopédico.

No entanto, respeitando os limites de forma e conteúdo de um trabalho acadêmico,

notadamente por se tratar de tese de doutoramento, foi feita uma opção pela concisão e pela

objetividade, o que se espera ter sido alcançado a contento.

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