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O parasita do cérebro

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Pesquisa FAPESP - Ed. 111

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Page 1: O parasita do cérebro

Ciência e Tecnologia e no Brasil

Maio 2005 • N° 111 FAPESP

FOLHAS BRASILEIRASNO CHANEL N° 5

Page 2: O parasita do cérebro

..~' ~ TroplNet.org .:"'" A conexão

entre as dolnçastropicais e seuspesquisadores.Se você faz parte da comunidade médica ecientífica e tem interesse em compartilharexperiências e informações sobre as doençastropicais. já existe um espaço virtual que podetransformar esta conexão em mais um passopara solucionar o problema. TropiNet™é umarede que pode conectar pesquisadores de todoBrasil envolvidos com o tema. Uma proposta deresponsabilidade social da Novartis que valorizao trabalho de profissionais como você.Acesse o site www.tropinet.org

(l) NOVARTIS

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A IMAGEM DO MÊS

BERÇÁRIO DE ESTRELAS

Uma imagem da nebulosa Águia,a 7 mil anos-luz da Terra, foi divulgadapela Nasa no dia 25 de abril paracomemorar os 15 anos de órbitado telescópio espacial Hubble. A fotomostra uma gigantesca torre de poeirae gás, comum em áreas de intensaformação este lar. Desde que começoua operar, o Hubble já tiroumais de 750 mil fotos do espaço.

PESQUISA FAPESP 111 • MAIO DE 2005 • 3

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PeiqeTe~iiisaFAPESP

36 CAPAA neurocisticercose, moléstiaescamoteada pelo descasoe pela falta de diagnóstico, começaa mostrar a sua real dimensão

REPORTAGENS

POLíTICA CIENTíFICAE TECNOLÓGICA

27 TELECOMUNICAÇÕES

Projeto KyaTera integra pormeio de fibras ópticasdezenas de laboratórios

30 INCLUSÃORede de Tecnologia Socialdifunde soluções inovadorasem comunidades carentes

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www.revistapesquisa.fapesp.br

50 GEOLOGIA

42 EPIDEMIOLOGIA 50MIL

12 ENTREVISTACarlos Augusto Monteirofala do fenômenoda transição nutricionale mostra como a obesidadedestronou a fome no roldos grandes problemasde saúde do país

CIÊNCIA

Como a cultura machistacontribui para disseminara Aids na América Latina

46 QUíMICAFormulações com rutêniopodem servir de basepara futuros medicamentos

24 INVESTIMENTOSNova edição dosIndicadores da FAPESPregistra aumento nosgastos públicoscom ciência e tecnologia

-75MILEstudos em cavernas revelamo clima do hemisfério Sul demilhares de anos atrás

55 FíSICAEquações simples explicama localização de objetos queparecem surgir do nada

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64 ENGENHARIA QUíMICAExploração das folhasdo pau-rosa, em vez de cortaro tronco, garante produçãode perfume francês e preservaa floresta

TECNOLOGIA

68 ENGENHARIA FLORESTALManejo não impedea redução no estoque decertas espécies de árvore

74 BIOTECNOLOGIAFungos e bactérias são a basede detergentes para a limpezade aparelhos hospitalares

ENGENHARIA ELÉTRICAEmpresa desenvolveequipamentos de precisãopara uso na agricultura

NOVOS MATERIAISGrafite desenvolvida porbrasileiros e uruguaiostem propriedades magnéticas

72 PECUÁRIATécnicas de exploraçãodo rebanho leiteiroe de gestão ajudam pequenosprodutores a ter mais renda

HUMANIDADES

86 ECONOMIAEstudos mostram as relaçõesdos poderes Executivo eLegislativo com os lobistas

90 MÚSICA,--------------------.~~o

i"'"

Academia tenta entender comoe por que o samba ganhouimportância no século 20

82 ANTROPOLOGIAProjeto resgata complexidadedas relações entremissionários e indígenas

SEÇÕES

A IMAGEM DO MÊS 3CARTAS .......•......•......•..... 6CARTA DO EDITOR ......•.......•.... 9MEMÓRIA ...........•.......•.... 10

ESTRATÉGIAS .......•.......•..... 18LABORATÓRIO ........•......•.... 32SCIELO NOTíCIAS ...•......••...... 58LINHA DE PRODUÇÃO 60LlVROS··························94

FICÇÃO··························96

Capa e ilustração: Hélio de Almeida

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[email protected]

Células-tronco

Acabo de receber e ler a revistaPesquisa FAPESP (edição 110). Gos-tei muito! Parabéns a Claudia lziquee ao Marcos Pivetta pelas reportagensde capa sobre a Lei de Biossegurança.Ficaram 1O!

ALUIZIO BOREM

Universidade Federal de ViçosaViçosa,MG

Parabéns pelas reportagens refe-rentes à biossegurança (edição 110).Esta revista vem apoiando a biotec-nologia brasileira de forma séria, res-peitando os cientistas. Parabenizo-ostambém pela excelente entrevista comMayana Zatz, um exemplo de cientis-ta, uma lição de vida e um orgulhopara as mulheres

LUCIANA DI ClERO

Departamento de Ciências FlorestaisEsalq/USP

Piracicaba, SP

Mayana Zatz

Parabenizo Pesquisa FAPESP pelainteressante entrevista com MayanaZatz (edição 110). Como geneticistaclínico da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp), acompanhei deperto a evolução da genética médicadurante os últimos 30 anos em nossopaís e posso testemunhar a grandecontribuição científica e assistencialda Mayana, incluindo o seu empe-nho entusiasmado, porém prudente,em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias. Gostaria tam-bém de mencionar outras doençasgenéticas freqüentes no Brasil, alémdas citadas na entrevista. As hemo-globinopatias (síndromes falcifor-mes, talassemias etc.) são atualmenteas doenças hereditárias monogênicasmais freqüentes. Pela sua importân-cia em saúde pública, as hemoglobi-nopatias foram as primeiras doençasgenéticas a contar com programasbrasileiros de triagem populacional,

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diagnóstico, tratamento e aconselha-mento genético, implantados no iní-cio da década de 1970.

ANTONIO SÉRGIO RAMALHO

Faculdade de CiênciasMédicas/Unicamp

Campinas, SP

EMPRESA QUE APóiAA PESQUISA BRASILEIRA

{') N O VAR TIS

TroplNet.org

Colesterol

Por muito tempo, durante a horado almoço, acompanhei esta revista,tirando uma "casquinha" do exem-plar de uma pesquisadora. Assim foi,até que, no início deste ano, ganheiuma assinatura de presente. E qualnão foi minha surpresa ao ver que, lo-go no segundo número que recebi (naverdade, o nO109), a matéria de capaera totalmente "dédicada" a mim. Ex-plico. Há alguns anos que venho bri-gando ferozmente com os níveis decolesterol, que, "voluntariosamente",insistem em se manter em desacordocom os preceitos da medicina. Abri arevista e fui lá, na matéria sobre o co-lesterol, "Além do bom e do mau". Acada linha, a esperança de encontraraquela novidade fantástica, que mepermitiria apreciar todos os encantosde uma bela mesa sem que depois ti-vesse que enfrentar a "fatura" do co-

lesterol! E, enquanto esta novidadenão chegava, eu ia me surpreenden-do com a clareza com que o assuntoia sendo explicado para leitores leigoscomo eu. Ao final, contudo, a terrívelconstatação: não havia a tão desejadanovidade! Confesso que fiquei até um

tanto mais frustrada, pois vique nenhuma menção era feitaaos efeitos do lazer na elevaçãodo nível do bom colesterol("fortalecendo-o': portanto, pa-ra enfrentar o "mau"). Ou pelomenos, se houve esta menção,não foi suficiente para ficar re-gistrada. No entanto, vocês fo-ram sábios, ou a reunião emque vocês definiram a pautadeste número foi guiada por"forças superiores". Duas maté-rias adiante, lá estava a respos-ta: "Pé na estrada: idosos paramde sentir dores e reavivam a me-mória quando viajam". É isso,gente! Aí está a ligação que fal-tou ao artigo do colesterol, eque acho importante que sejaexplicitado para as pessoas por-

tadoras do mau colesterol: dosesmaiores de lazer em nossas vidas, pormais que os políticos deste país ten-tem complicá-Ias, por mais que a in-segurança das cidades grandes ten-tem restringir nossas saídas, pormais ... Fora isso, meus parabéns,principalmente pela constância comque vocês vêm mantendo a qualida-de, o que é tão difícil em se tratandode um meio de divulgação acadêmica.

REGINA L. MOREIRA

Pesquisadora em históriaRio de Janeiro, RJ

Na edição 109 de Pesquisa FA-PESP há a excelente reportagem"Além do bom e do mau", a respeitode doenças cardiovasculares relacio-nadas com entupimento dos vasossangüíneos e colesterol. Porém, oque nos preocupou foram as ilustra-ções. Na maior parte das duas pri-meiras páginas aparecem fotos com

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uma legenda "condenando" o consu-mo de produtos de origem animal.Para leigos, ou para pessoas que sim-plesmente não leram a matéria naíntegra, dá-se a impressão de que apesquisa descrita na reportagem tra-ta dos malefícios da ingestão de pro-dutos de origem animal para a saúdecardiovascular. Contudo a matérianão diz nada a respeito da relação dadieta com colesterol e suas implica-ções para a saúde, e sim discute ex-clusivamente a respeito da incidên-cia de doenças cardiovasculares ecomplicações verificadas associadasa baixos níveis de HDL (colesterolbom) e altos de homocisteína (arni-noácido, e não uma proteína). Fo-ram apresentados na reportagem ali-mentos de origem vegetal, como auva, que possuem fitoquímicos (fla-vonóides) que, assim como a niaci-na, podem corrigir a disfunção doendotélio. Vale a pena destacar queapenas alimentos de origem animalsão fontes naturais de vitamina docomplexo B, principalmente a B12.Uma porção de 100 gramas de carnebovina magra supre 20% do valordiário de riboflavina, 33% de niaci-na (o que representa 5,3 mg) e 80%de vitamina B12. Outro ponto favo-rável em relação a produtos de ori-gem animal, principalmente a carnebovina, é que cada 100 gramas dessealimento contêm aproximadamente53 mg de colesterol. Depois do pre-paro, o mesmo peso de carne forne-ce aproximadamente 80 a 90 mg. Re-comenda-se que a ingestão diária decolesterol por um adulto seja próxi-ma a 250 ou 300 mg, portanto o con-sumo de quantidades moderadas decarne vermelha magra não seria ogrande vilão da história.

EDUARDO FRANSCISQUINE DELGADO,

Enrc FRANCHI LEONARDO,

CAROLINA DE CASTRO SANTOS E

IVAN Luts STELLA

Laboratório de Anatomia e FisiologiaAnimal- Esalq/USP

Piracicaba, SP

Nussenzweig

Excelente a entrevista com os pes-quisadores Ruth e Victor Nussenzweig(edição nv 106). Espero que algumasponderações dos pesquisadores sobrea participação dos milionários nosEstados Unidos possam contribuirpara o processo de discussão e maiorparticipação dos empresários brasi-leiros no financiamento de pesquisasno Brasil. Embora ao longo dos anosvenha crescendo a responsabilidadesocial dos empresários brasileiros, asiniciativas para financiar pesquisasainda são tímidas. Também são aca-nhadas as ações para identificar e tra-zer de volta os cientistas que vivemem outros países onde têm melhorescondições de trabalho. Parabéns aMarcos Pivetta pela entrevista.

MARIA EUGENIA LEMOS FERNANDES

São Paulo, SP

Programa de rádio

A todos que puseram o programaPesquisa Brasil no ar - de quem teve aidéia a quem aprovou e pôs no ar -,parabéns. Não sabia deste programaem parceria com a Rádio Eldorado,mas estou ouvindo neste instante eprendeu minha atenção do começoao fim. Muito interessante, amigávelpara cabeça leiga da gente, dinâmicoe apresentado por dois jornalistas.

CONNIE HARRISON

Correção

Ao contrário do que foi escrito naresenha "Gigantes da gravitação"(edição 109), o texto de Kepler daedição brasileira do livro Os gênios daciência não apresenta cortes em rela-ção à edição em inglês.

Cartas para esta revista devem ser enviadas parao e-mail [email protected], pelo fax (1~ 3838-4181ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidaspor motivo de espaço e clareza.

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As entrevistasde Pesquisa FAPESP

ORGANIZAOO POR

MARILUCE MOURA

-::::FAPEsP üN'iEMP

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Pesquisa CARLOS VOGT

PRESIDENTE

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN,

JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOSCIENTÍFICO),

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM ]. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO,

PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WALTER COLU

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOU N

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DEARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACM), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CAROL LEFÈVRE,

DANIELA MACIEL PINTO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), ELY BUENO, FRANCISCO BICUDO, GONÇALO JÚNIOR,

MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, PATRÍCIA LIMA, RODRIGO PETRONIO, THIAGO ROMERO (ON-LINE),

VICTOR HUGO DURÁN E YURI VASCONCELOS

REPÓRTER DO SITE SIMONE MATEOS

ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11} 3038-1418 e-mail: [email protected]

APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA

[email protected]

PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008

e-mail: [email protected] (PAULA ILIADIS)

PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN

IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃO

CIRCULAÇÃO £ ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO)

TEL: (11) 3865-4949 [email protected]. br

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

RUA PIO XI, N? 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br

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NÚMEROS ATRASADOS

TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

CARTA DO EDITOR

Um trânsito entre dor, prazer e ética

Sabe-se pouco sobre a neurocisti- cercose no Brasil. Do ponto de vis- ta da saúde pública, trata-se de

uma doença grave que, supõe-se, afeta neste momento em torno de 140 mil pessoas no país e que poderia certamen- te ser evitada com algumas medidas pro- filáticas simples. E tanto é assim que, epi- dêmica em vastas regiões da América Latina, da Ásia e da África - o que suge- re sua associação com subdesenvolvimen- to e pobreza -, a doença praticamente inexiste nos países desenvolvidos. Olha- da mais de perto e no singular, a doença, parasitária do sistema nervoso central, mostra em muitos casos uma face dra- mática, marcada por crises de epilepsia, uma série de tristes padecimentos neu- ropsiquiátricos e até a morte para um número entre 15% e 25% de suas víti- mas. A reportagem de capa desta edição, elaborada pelo editor especial Fabrício Marques, apresenta um amplo diagnós- tico da doença no país e ainda revela uma boa novidade em meio a seu pano- rama sombrio: um teste barato, desen- volvido por uma equipe de pesquisado- res paulistas, capaz de detectar vestígios de DNA do parasita que provoca a neu- rocisticercose no líquido cefalorraquiano do paciente. Com isso, os diagnósticos por imagem deixam de ser a alternativa única para decidir se alguém é ou não uma vítima de neurocisticercose e come- çar a tratá-la adequadamente.

A pesquisa científica e tecnológica, ainda bem, tem uma plasticidade quase infinita, o que de uma certa maneira nos permite, ao acompanhá-la, percorrer em paralelo praticamente todo o amplo es- pectro dos sentimentos e das emoções humanas. Assim, a reportagem que dis- putou com a neurocisticercose a capa desta edição, muito longe das associa- ções com dor e tristeza, nos traz ao olfa- to um certo toque glamouroso e sensual, um delicioso hálito festivo, eu diria. É que um processo inovador de extração da essência de pau-rosa a partir das fo- lhas, e não mais do tronco dessa árvore nativa da Amazônia ameaçada de extin- ção, garante, a par de sua preservação, a continuidade da produção do Chanel n° 5, perfume que Marilyn Monroe ajudou a transformar num dos maiores ícones

da indústria cosmética francesa. Quem faz esse relato é a editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, a partir da página 64. A preocupação com a preser- vação de espécies nativas da Amazônia, aliás, recebe um reforço considerável na reportagem apresentada a partir da pági- na 68, em que o editor especial Marcos Pivetta relata como simulações feitas por computador indicam que a extração co- mercial de certas árvores nobres da Ama- zônia pode não ser uma atividade sus- tentável a longo prazo. De acordo com os dados virtualmente produzidos, duas es- pécies de árvore testadas, a tatajuba e a maçaranduba, demorariam mais de um século para crescer e repor a quantidade de madeira cortada.

Enquanto a tecnologia lança projeções para o futuro que recomendam cautela no manejo dos recursos naturais do país, algumas visitas ao passado propiciadas pelas pesquisas no campo das humani- dades podem revelar que nem sempre as coisas foram tão dramáticas quanto pen- samos nos processos de formação da na- ção brasileira. Por exemplo, a interven- ção missionária cristã junto aos povos indígenas, em vez de apenas um choque cultural entre vencedores e vencidos, com a destruição da cultura dos últimos, talvez possa ser compreendida de forma mais sutil e complexa como um estabe- lecimento de relações entre culturas, onde as formas culturais aparentemente condenadas ao desaparecimento são re- criadas e reinventadas para produzir no- vas significações. É o que relata o editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 82, tomando como objeto de reportagem uma ampla pesquisa sobre missionários na Amazônia brasileira. Cu- riosamente, essa pesquisa antropológica torna-se neste momento de uma atuali- dade espantosa, quando sai de cena um papa claramente missionário, que aco- lhia ritualmente os diferentes em suas in- cursões pelo mundo, e assume o trono de São Pedro um outro que, concedendo embora importância ao trabalho missio- nário, o submete às questões da doutri- na e da fé cristã como o grande universal ético. Boa leitura!

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

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Uma longa jornada Há 130 anos começava a trajetória das primeiras médicas brasileiras

NELDSON MARCOLIN

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o mais famoso

e produtivo centro de atendimento de saúde, ensino e pesquisa do Brasil, ganhou sua primeira professora titular no final do século 20, em 1996, com a patologista Maria Irmã Seixas Duarte. Em entrevista dada à Revista da Folha à época, Maria Irmã contava: "Sempre lembro de um amigo do tempo de residência que me dizia: 'Se eu, como homem, vou precisar de um esforço x para fazer alguma coisa, pode estar certa que você precisará de 2x. Incorporei isso e resolvi não olhar

Maria Augusta abriu caminho para outras médicas

mais para essa história de machismo. Penso: vou me esforçar o dobro e pronto". Há 130 anos a condição da mulher no cenário brasileiro era bem diferente - a elas nem era permitido fazer os mesmos cursos superiores dos homens. Cada conquista exigia grande esforço, e apenas a determinação e a coragem as levavam a obter vitórias. Foi assim em 1875 com a carioca Maria Augusta Generoso Estrela, que aos 15 anos embarcou para os Estados Unidos para estudar medicina. Quatro anos depois, a pernambucana Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira seguiu o mesmo caminho, com a mesma idade de Maria Augusta. A primeira vislumbrou seu futuro ao ler sobre a formatura de uma médica

10 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

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a. THESES

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Rita Lobato e a tese de conclusão de curso, de 1887: primeira formada no Brasil

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norte-americana. Maria Augusta venceu a resistência do pai, que a enviou para Nova York onde, no final de 1876, conseguiu ser aceita no New York Medicai College and Hospital for Women, faculdade de medicina voltada para mulheres, criada em 1863. Desde o início seus passos foram acompanhados pela imprensa brasileira, que publicava relatos periódicos de sua vida acadêmica e pessoal no exterior. Seu prestígio era tanto que o imperador d. Pedro II destinou uma bolsa de estudos para ela quando os recursos da família minguaram. Foi no Medicai College que Maria Augusta encontrou Josefa, que também havia conseguido

dobrar seu pai. Josefa e Maria Augusta desenvolveram grande amizade e publicaram juntas o jornal literário A Mulher, produzido em Nova York e distribuído nas capitais brasileiras. Ambas se formaram em 1881. Josefa voltou para Recife e pouco se sabe de sua trajetória posterior. Maria Augusta ficou mais um ano no exterior e depois voltou ao Rio de Janeiro, onde se casou e clinicou por muitos anos. O ineditismo de sua luta para estudar e a constante presença na mídia ajudaram na aceitação, autorizada por uma reforma no ensino, de mulheres em cursos superiores em 1879, meses depois de Josefa ir para Nova York. Com a nova legislação, Rita Lobato Velho Lopes, gaúcha de São Pedro do Rio Grande, conseguiu matricular-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884, mas transferiu-se para a Faculdade de Medicina da Bahia, de onde saiu como a primeira médica brasileira formada no país. Em São Paulo, a Faculdade de Medicina e Cirurgia, atual FMUSP, já tinha em sua primeira turma, de 1913, duas mulheres: Odette Nora de Azevedo Antunes e Delia Ferraz Fávero. As conquistas das mulheres médicas continuaram pelo século 20. Em 1998, Angelita Gama tornou-se professora titular em cirurgia no Departamento de Gastroenterologia da FMUSP. Além de superar dois obstáculos - o acadêmico e o da especialidade -, quebrou o tabu com relação à cirurgia, tradicionalmente considerada uma atividade masculina.

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ENTREVISTA: CARLOS AUGUSTO MONTEIRO

Da privação ao excesso de comida FABRíCIO MARQUES

sociedade brasileira vi- veu transformações rá- pidas e radicais no campo da nutrição nas últimas déca- das. Da fome que

tangia retirantes até a década de 1970, o país tam- bém passou a conviver com o espectro da obesi- dade que ameaça até mesmo os estratos mais pobres da população. O médico epidemiologis- ta Carlos Augusto Monteiro, de 57 anos, há três décadas vem se dedicando a estudar o chamado fenômeno da transição nutricional no Brasil. Busca compreender causas e identificar impli- cações para o aperfeiçoamento de políticas pú- blicas na área da alimentação, nutrição e saúde. Em grande parte por conta das pesquisas e pu- blicações deste pesquisador, o Brasil desfruta da condição, reconhecida pela Organização Mun- dial da Saúde (OMS), de ser um dos países do mundo que melhor vem documentando e ana- lisando o fenômeno da transição nutricional.

Professor titular do Departamento de Nutri- ção da Faculdade de Saúde Pública da USP e coor- denador científico do Núcleo de Estudos Epi- demiológicos em Nutrição e Saúde (Nupens),

Monteiro liderou nos anos 1990 um projeto te- mático da FAPESP executado por uma equipe de epidemiologistas, demógrafos, economistas, sociólogos e especialistas de várias áreas da saú- de pública sobre as características e a natureza das mudanças no perfil das condições de saúde e nutrição da população brasileira na segunda me- tade do século 20. O projeto redundou no livro Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolu- ção do país e de suas doenças, que alcançou o Prê- mio Jabuti em 1995. Desde 1997, Monteiro co- dirige a força-tarefa da International Union of Nutritional Sciences sobre transição nutricional e, nesta função, dedica-se em particular a desven- dar as relações existentes entre pobreza e obesi- dade nos países em desenvolvimento.

Recentemente, o pesquisador esteve no epi- centro de uma polêmica com o governo fede- ral por conta de uma publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual a obesidade se tornou um pro- blema de saúde pública muito mais sério no país do que a fome, flagelo restrito a alguns poucos rincões do semi-árido nordestino. A publica- ção, que teve grande divulgação, foi produzida por uma equipe de pesquisadores e de técnicos

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Monteiro: o desafio de propor políticas em meio a uma veloz transição nos hábitos alimentares

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do IBGE e do Ministério da Saúde co- ordenada por Monteiro. O trabalho foi criticado pelo próprio presidente da República, que viu na pesquisa um de- safio à prioridade de seu governo no combate à fome. Monteiro manteve- se sereno, mas não evitou a polêmica. "Reza o senso comum que o Brasil é um país que sofre de doenças devidas à es- cassez, à miséria absoluta. Mas quando você examina objetivamente os dados, vê que não é bem assim. A opinião pú- blica, infelizmente, nem sempre repou- sa no conhecimento científico", afirma.

Casado, pai de duas filhas, avô de dois netos, Monteiro não é daqueles médicos que pregam uma coisa e fa- zem outra na vida pessoal. Cuida da alimentação, procura se exercitar com freqüência e prega a importância de os professores darem bom exemplo aos alunos. Tempos atrás, quando chefiou o Departamento de Nutrição pela pri- meira vez, resolveu criar um ambiente livre de cigarro, no que logo foi segui- do pelos chefes dos demais departa- mentos. "Parece uma coisa sem impor- tância, mas não é. O professor exerce uma influência importante e é preciso ser coerente. Não é aceitável que um professor de saúde pública fume nos corredores ou engula sanduíches com refrigerantes no meio da aula", afirma.

■ Qual é o espectro da fome no Brasil? — A OMS considera que a deficiência crônica de energia em uma população adquire conotação de problema de saúde pública quando a proporção de pessoas adultas magras, ou seja, com índice de massa corporal abaixo de 18,5 quilos por metro ao quadrado, é superior a 5%. Proporções de indiví- duos magros entre 5% e 10% devem ser vistas como sinal de alerta e justi- ficam um monitoramento, enquanto proporções até 5% são normais e cor- respondem à fração de pessoas magras que normalmente existe em qualquer população. A proporção média de in- divíduos magros na população adulta brasileira, segundo estimativas do in- quérito antropométrico nacional rea- lizado pelo IBGE em 2003, é de 4%, o que não situaria a deficiência crônica de energia como um problema de saúde pública no país como um todo. Situa- ções que justificariam um monitora- mento do problema (6 a 7% de indiví-

duos magros) foram encontradas pelo IBGE nas áreas rurais da Região Nor- deste e, de modo geral, entre famílias com renda inferior a um quarto de sa- lário mínimo per capita. Felizmente, em nenhuma região ou estrato de renda foram encontradas situações em que a deficiência crônica de energia repre- sentaria um inquestionável problema de saúde pública. A comparação do in- quérito de 2003 com inquéritos ante- riores do IBGE realizados nas décadas de 1970 e 80 indica tendência de queda da deficiência crônica de energia e per- mite projetar para um futuro próximo a virtual eliminação do problema em todo território nacional. Embora o pro- blema ainda subsista no semi-árido nordestino e entre famílias muito po- bres, a situação brasileira hoje nada tem a ver com aquela encontrada, por exem- plo, no Haiti, na Etiópia ou na índia, onde 20%, 30% e 50% dos indivíduos adultos apresentam sinais claros da de- ficiência crônica de energia.

■ Deficiência crônica áe energia e fome querem dizer a mesma coisa? — A deficiência crônica de energia é a modalidade de distúrbio nutricional que mais se aproxima do significado que a palavra fome tem para a maioria das pessoas, com a vantagem de que temos indicadores objetivos para o seu diagnóstico na população. Por vezes se utiliza o termo fome como sinônimo de pobreza, do não acesso das pessoas a necessidades básicas. Antes de ajudar, creio que este uso livre da palavra fome só confunde as coisas e iguala o proble- ma daqueles que não têm o que comer, que, felizmente, são poucos no Brasil dos nossos dias, com aqueles que não dispõem de moradia adequada, sanea- mento, assistência à saúde e educação de qualidade. Infelizmente, esses ainda são muitos.

■ E qual é o espectro da obesidade no Brasil? — Entre os homens, a trajetória da obesidade é explosiva em todo o país, com aumentos de 50% a cada 15 anos. Entre as mulheres, o aumento maior aconteceu nas décadas de 1970 e 1980, observando-se certa estabilidade nos anos 1990, exceto na Região Nordeste e entre as famílias de baixa renda, em que a obesidade feminina continua au-

mentando. De qualquer forma, em ambos os sexos, quatro em cada dez adultos sofrem de excesso de peso no país. A obesidade já é o segundo fator que mais mata e causa doenças no Bra- sil, atrás apenas do consumo do ál- cool. O mesmo inquérito do IBGE de 2003 revelou um aumento substancial do teor de gorduras em geral e de gor- duras saturadas na alimentação do brasileiro, a manutenção de níveis ab- surdamente elevados de consumo de açúcar e aumentos geométricos no consumo de alimentos processados ri- cos em gordura, sal e açúcar, incluindo biscoitos, embutidos, refrigerantes e re- feições prontas. Esses fatores são con- sistentes com o papel destacado da obe- sidade, da hipertensão e de colesterol alto no perfil das doenças e de mortali- dade do país.

■ O estudo do IBGE do qual o senhor participou, mostrando que a obesidade no Brasil é um problema de saúde públi- ca bem maior do que o da fome, foi cri- ticado pelo presidente da República. Qual sua avaliação do incidente? — Muitas vozes se levantaram contra ou a favor deste estudo. Em toda mi- nha experiência de pesquisador, não lembro de outro estudo que tenha cau- sado maior repercussão. Uma parte da polêmica eu atribuo ao fato de que muitas declarações e opiniões sobre o estudo foram feitas por pessoas que aparentemente não consultaram a pu- blicação, mas sim reagiram a declara- ções e opiniões de outros que também não leram a publicação. A outra parte da polêmica eu atribuo ao fato de que os resultados revelados pelo estudo contrariaram uma visão, digamos, su- perficial da realidade sanitária do país. Segundo essa visão, os maiores proble- mas de saúde da população brasileira decorreriam de doenças associadas à escassez, à miséria absoluta, enquanto os problemas relativos ao excesso de consumo, como a obesidade, seriam exclusivos das classes sociais mais abas- tadas. De qualquer modo, acho que o estudo do IBGE alimentou de forma saudável o debate em torno da realida- de brasileira.

■ A reação não foi da opinião pública. Foi do governo, que tem como bandeira o combate àfome...

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— A reação do governo não foi homo- gênea. Houve, sim, comentários que procuraram desqualificar o estudo do IBGE ou pelo menos as implicações óbvias que ele trouxe, mas houve tam- bém reações ponderadas e imbuídas de espírito construtivo. É preciso con- siderar que o atual governo do país foi eleito tendo o combate à fome e à po- breza como uma de suas maiores senão sua maior bandeira e também é preciso levar em conta que o partido que lide- ra o governo tem uma longa e reco- nhecida tradição de lutar pelas ques- tões sociais. Tudo isso produz a idéia de uma certa infalibilidade do governo em tudo que se refira à área social. Só que políticas sociais não são feitas ape- nas com boas intenções, precisam de diagnósticos corretos e de análises sem vícios dos problemas que pretendem corrigir.

■ Qual sua avaliação sobre o Programa Fome Zero? — O começo, centrado nas campanhas de doação de alimentos, no desfile de celebridades e em idéias de difícil ad- jetivação, como a exigência de notas fiscais para comprovar o gasto das fa- mílias beneficiadas com a compra de alimentos, foi de fato sofrível. Mas a direção que o programa tomou poste- riormente, enfatizando a transferência de renda para famílias abaixo da linha de pobreza e incentivando a freqüência das crianças nas escolas e os acompa- nhamentos de saúde nas unidades bá- sicas de saúde, foi sem dúvida positiva. Claro que essas ações se destinam basi- camente a combater a pobreza, e não a fome. Mas a pobreza no país é sufi- cientemente importante para relevar- mos a impropriedade semântica.

■ O combate à fome não passa pela dis- tribuição de alimentos? — Como já disse, ainda há regiões com sinais de deficiência crônica de energia, principalmente o semi-árido do Nordeste. Lá, a oferta de alimentos é instável, devido à questão da seca e a uma estrutura econômica arcaica, bas- tante diferente do resto do país. Há também a difícil e complexa situação das comunidades indígenas do país. Eventualmente, em situações de emer- gência cíclica, você tem que pensar re- almente em socorro, em distribuir ali-

mentos, e de maneira eficaz, rápida. O país precisaria ter nessas regiões siste- mas de monitoramento ágeis sobre a disponibilidade e consumo de alimen- tos - o que ainda não tem - pois a fome quando ocorre é devastadora e não es- pera. Mas é claro que a solução defi- nitiva para essas regiões não é distri- buir alimentos. É remover as causas que determinam o problema, basica- mente com instrumentos de desenvol- vimento local.

■ Autoridades do governo referiram-se a uma suposta fome gorda, que contempla uma associação da obesidade com a des- nutrição. Isso existe? — Além novamente da impropriedade semântica, este argumento não se sus- tenta. No Brasil, pelo menos por en- quanto, o alimento típico da popula- ção mais pobre ainda é o arroz, o feijão, uma verdura, um pouco de car- ne. O feijão, por exemplo, é um exce- lente alimento, relativamente barato, fonte de proteínas, micronutrientes e fibras, e que nada tem de obesogênico, ao contrário. Do ponto de vista do ris- co da obesidade, os pobres no Brasil, no geral, tendem a se alimentar melhor do que os ricos, pois consomem menos gorduras e menos alimentos processa- dos, que habitualmente têm alta densi- dade energética. Mas este quadro é di- ferente nos países desenvolvidos, onde a industrialização intensa da produção de alimentos barateou o custo da ali- mentação e tornou os alimentos pro- cessados mais acessíveis do que os ali- mentos in natura. Devemos estar atentos, pois essa mesma situação po- derá ocorrer no futuro no Brasil.

■ Por que se supervaloriza o problema da fome? — Acredito que um cientista político poderia responder melhor esta pergun- ta, mas me arrisco a dizer que a drama- ticidade da fome e o fato de ela mobi- lizar mais a sociedade do que a pobreza são elementos que mecerem ser consi- derados.

■ Há políticas sociais que podem ser sa- crificadas com a supervalorização do problema da fome? — Recentemente foram alocados re- cursos expressivos do orçamento do Ministério da Saúde para o programa do governo de transferência de renda. A argumentação usada foi que, com- batendo-se a pobreza, combateríamos a fome e assim estaríamos melhorando a saúde das pessoas. Mas a realidade bra- sileira não autoriza este raciocínio sim- plista e, de fato, é bastante provável que investimentos diretos na rede básica de saúde e em saneamento ambiental ofe- reçam retornos para a saúde da popu- lação muito maiores do que aqueles as- sociados à transferência de renda.

■ Qual o risco de só ter olhos para a fome num país em que a obesidade avança? — Quando você cria um programa de transferência de renda, ou quando a economia cresce, as pessoas ampliam sua capacidade de consumo. O que elas irão consumir a mais? Estudos que fi- zemos sobre a relação entre renda e consumo alimentar indicam que é bas- tante provável que famílias de muito baixa renda comprem mais alimentos e que melhorem a qualidade nutricio- nal de sua alimentação, diversificando

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a dieta e sobretudo aumentando o con- sumo exíguo de produtos de origem animal como carnes e laticínios. Essas mudanças poderão melhorar as condi- ções de nutrição e de saúde das pessoas, em particular de crianças de peque- na idade. Mas não se pode assegurar o mesmo para famílias com rendas ainda baixas a ponto de serem parte da clien- tela de programas de transferência de renda, mas não tão baixas.

■ Por quê? — Entre essas famílias o aumento no consumo de produtos de origem ani- mal pode facilmente levar ao excesso de consumo de gorduras, em particu- lar de gorduras mais prejudiciais à saúde, as gorduras saturadas. Também é bastante provável que cresça entre es- sas famílias o consumo de alimentos processados, em geral altamente caló- ricos, ricos em gordura, açúcar e sal e pobres em fibras e micronutrientes. Ainda é provável que se observe au- mento no consumo de bebidas alcoó- licas e na quantidade de cigarros con- sumidos pelos fumantes. O hábito de fumar no país cada vez se vê mais con- centrado nos segmentos mais pobres da população. Em resumo, não há nenhu- ma segurança de que o efeito final do aumento do poder aquisitivo de seg- mentos relevantes da população brasi- leira resulte em melhoria de suas con- dições de nutrição e de saúde. Claro que o aumento do poder aquisitivo da população de baixa renda poderia pro- duzir resultados mais positivos para suas condições de nutrição e saúde, mas precisaríamos contar com mais ações na área de informação e educação nu- tricional da população e com medidas fiscais e regulatórias que tornassem mais acessíveis alimentos saudáveis como frutas e hortaliças, por exemplo, e menos atraentes os alimentos pouco saudáveis.

■ Que tipo de política pública teria for- ça para combater o problema da obesi- dade? — Em primeiro lugar é preciso reco- nhecer que o controle do avanço da obesidade é bastante complexo e ne- cessita de ações que envolvam desde modificações na agricultura, que possi- bilitem maior oferta de alimentos sau- dáveis, até mudanças no planejamento

urbano, capazes de estimular a prática regular de atividade física nas cidades. Medidas fiscais que tornem mais acessí- veis os alimentos saudáveis e menos acessíveis os alimentos não saudáveis são indispensáveis, assim como medi- das regulatórias que disciplinem os li- mites para a propaganda de alimentos, proibindo completamente a propagan- da dirigida a crianças. O esforço perma- nente e sistemático para educar e cons- cientizar as pessoas sobre a importância da alimentação saudável e da luta con- tra o sedentarismo é obviamente essen- cial. Em síntese, controla-se a obesidade apoiando, protegendo e promovendo práticas de vida saudáveis.

■ Que países conseguiram resolver essa equação? — Há exemplos bem-sucedidos de paí- ses desenvolvidos que têm conseguido reverter o crescimento da obesidade ou mesmo de prevenir o seu surgimento como problema de saúde pública. No primeiro caso temos o exemplo da Fin- lândia e no segundo caso os exemplos do Japão e da Coréia do Sul. O parale- lo com a redução do tabagismo con- quistada a partir de políticas públicas

corajosas por vários países, inclusive o Brasil, é inevitável. Nos anos 1960, mais da metade da população masculi- na brasileira fumava, no final dos anos 1980, quando o Brasil iniciou esforços sistemáticos para controlar o tabagis- mo no país, os fumantes ainda eram cerca de 40%, mas agora sabemos que apenas um em cada quatro ou cinco adultos segue fumando. Alega-se mui- tas vezes que o poder econômico da in- dústria de alimentos é muito grande, mas o da indústria de cigarros também não é? De qualquer forma, desde o ano passado, temos um grande aliado na luta para o controle da obesidade e das demais doenças crônicas associadas à alimentação não saudável e ao seden- tarismo. Trata-se da Estratégia Global para Alimentação, Atividade Física e Saúde formulada pela OMS, discuti- da por vários anos com a comunidade cientifica e com os governos nacionais e, finalmente, aprovada pela Assem- bléia Mundial de Saúde em maio de 2004. O avanço maior dessa estratégia, que foi duramente combatida pelos Es- tados Unidos e por setores contraria- dos da indústria de alimentos, em par- ticular os produtores de açúcar, está em admitir que informações sobre es- colhas mais saudáveis quanto à ali- mentação devem ser acompanhadas de ações governamentais sobre o ambien- te que tornem essas escolhas factíveis e mais fáceis, incluindo medidas fiscais e de regulação, que poderão não ser apreciadas pelos setores econômicos que lucram com o consumo de alimen- tos não saudáveis.

■ A pesquisa do IBGE mostrou uma ou- tra realidade: a obesidade avança, mas há fatias da população, como as mulhe- res de classe média, que estão menos gor- das do que estavam nos anos 1980, num raro exemplo de inversão da tendência. A que o senhor atribui isso? — O Brasil é um país incrivelmente permeável a mudanças. Ao mesmo tempo que incorporamos determina- dos hábitos inadequados, estilos de vida não saudáveis, a gente também in- corpora mensagens positivas. Isso pa- rece ter acontecido com mulheres bra- sileiras que possuem nível médio ou superior de escolaridade. O inquérito de 2003 evidenciou que em todo o país, com exceção da Região Nordeste, a

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obesidade entre mulheres de classe mé- dia parou de subir ou mesmo estaria declinando. Os dados disponíveis não possibilitam conhecer os determinan- tes desta tendência, que ainda não foi descrita em nenhum outro país em de- senvolvimento. De qualquer forma, na população masculina brasileira não há qualquer sinal de arrefecimento do crescimento da obesidade em nenhum estrato social.

■ Dizer que a garota de Ipanema está fi- cando gorda, como sugeriu a polêmica reportagem do jornal The New York Ti- mes, é uma injustiça... — Um absurdo completo, talvez a ga- rota de Bangu, mas certamente não a de Ipanema.

■ Se a fome sofreu uma redução drástica no Brasil nos anos 1970, a desnutrição infantil só foi ceder mais recentemente, nos anos 1980 e 1990. Por quê? — A desnutrição do adulto é de modo geral um problema de escassez, de fal- ta absoluta de alimentos. Você só tem fome quando a miséria é extrema. Se o adulto tiver comida, mesmo vivendo em um meio desfavorável, dificilmente apresentará sinais clínicos de desnutri- ção. O aumento da renda familiar pro- porcionado pelo crescimento da econo- mia brasüeira nos anos 1970 foi decisivo para reduzir a exposição da população adulta à desnutrição. Já a desnutrição infantil tem outros determinantes além da renda familiar. Destaca-se, em par- ticular, a exposição seguida da criança a episódios de doenças infecciosas que acabam por minar o seu estado nutri- cional. E os principais fatores de pre- venção dessas doenças - o saneamento ambiental, a assistência básica de saúde e a escolaridade das mães - só recente- mente chegaram aos estratos mais po- bres da população brasileira.

■ O brasileiro é sedentário? — Em um estudo que fizemos a partir de outro inquérito do IBGE realizado no país em 1997 mostramos que ape- nas 3% dos adultos seguiam a reco- mendação de fazer pelo menos 30 mi- nutos diários de exercícios físicos na maior parte dos dias da semana. Em- bora em outros países, sobretudo de- senvolvidos, haja mais pessoas se exer- citando, não dá para dizer que o país é

um campeão em sedentarismo porque uma parte da população tem ocupa- ções que demandam gasto energético regular e intenso. A partir de um siste- ma de monitoramento por entrevistas telefônicas, que estamos no momento testando em várias capitais do país, es- timamos que na cidade de São Paulo a proporção de pessoas completamente sedentárias, ou seja, que não fazem com mínima regularidade qualquer tipo de atividade física moderada ou intensa, passa de 50%. E, no caso das mulheres, há uma relação inversa do sedentaris- mo com a escolaridade, ou seja, quan- to menor a escolaridade, mais freqüen- te o sedentarismo. Essa relação inversa oferece uma pista interessante para se compreender por que a prevalência de obesidade em mulheres mais pobres suplanta em duas a três vezes a mesma prevalência em mulheres mais ricas. O estudo dos padrões e determinantes da atividade física na população é uma das grandes prioridades para a pesqui- sa em saúde pública no país.

■ E o que pode ser feito? — Bem, o tamanho e a complexidade dos problemas nutricionais em uma sociedade como a brasileira são tão grandes que às vezes fica difícil conven- cer os formuladores de políticas públi- cas e os tomadores de decisão de que vale a pena investir nesta área. Como já disse antes, as ações consistentes na área da promoção da alimentação sau- dável são essencialmente aquelas que combinam informação e motivação com mudanças no ambiente que per- mitam a escolha de opções saudáveis. No final de 2004 fizemos um experi- mento relativamente simples em uma comunidade muito carente do bairro do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo. Primeiramente fizemos um estudo de campo que documentou a carência dessa comunidade com relação à co- mercialização de alimentos saudáveis. As opções para compra de alimentos que encontramos praticamente se res- tringiam a pequenos negócios que vendiam alimentos processados, como arroz, macarrão, sardinha em lata e sal- sicha. Produtos frescos como frutas e hortaliças eram raros e quando existen- tes tinham péssima qualidade e preços altos. A seguir estudamos durante um mês o padrão de compra e de consumo

de alimentos de uma amostra das famí- lias. A primeira parte da intervenção que implementamos na comunidade consistiu em oferecer à metade das fa- mílias selecionadas informações sobre alimentação, nutrição e saúde e oficinas de culinária que ensinavam a preparar refeições saudáveis utilizando com mais freqüência frutas, verduras e legu- mes. Na segunda parte da intervenção, estendida a todas as famílias, criamos um "armazém volante" que passou a percorrer as ruas da comunidade três vezes por semana durante quatro se- manas comercializando frutas e hor- taliças frescas e de boa qualidade com- pradas no Ceagesp. A avaliação do impacto da intervenção, ainda em an- damento, indica um aumento de cerca de 20% no consumo de frutas e horta- liças apenas com as atividades educati- vas e de motivação e um aumento de 50% com a intervenção completa. Esta- mos realizando este estudo com finan- ciamento do CNPq sobre pesquisas em segurança alimentar.

■ O senhor vê o futuro com otimismo? — Pergunta difícil. No caso, por exem- plo, de deficiências na oferta de alimen- tos saudáveis e no grau de informação da população, creio que a solução não é tão difícil e dependerá sobretudo da clarividência de governos municipais e da alocação de investimentos públicos. Há outras medidas igualmente factíveis que estão em andamento em vários mu- nicípios brasileiros, como a melhoria da qualidade nutricional da alimentação escolar e a restrição da venda de alimen- tos não saudáveis nas cantinas escolares. Mas há outras medidas de política pú- blica, igualmente necessárias, que en- contram mais resistência na sociedade e sobre as quais avançamos muito pouco. Por exemplo, medidas que restrinjam a publicidade de alimentos não saudá- veis e proíbam totalmente a propagan- da na televisão dirigida especificamen- te a crianças, na linha do que já se fez em vários países desenvolvidos. Há um projeto tramitando há muito tempo no Senado Federal, de autoria do senador Tião Viana, do PT do Acre, cuja aprova- ção poderia ser um importante sinali- zador da preocupação dos parlamen- tares brasileiros e do governo com o processo de transição nutricional por que passa nosso país. •

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POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

■ As ambições da Líbia

O ditador da Líbia Muam- mar Qadhafi quer transfor- mar o país numa referência científica da África. A cons- trução de um complexo de pesquisas em medicina é um primeiro passo. Ao custo de US$ 100 milhões, o Centro para o Controle de Doenças Infecciosas quer atrair uma centena de pesquisadores es- trangeiros para trabalhar com malária, tuberculose e Aids. Resta saber se Qadhafi con- seguirá atrair cérebros depois das recentes condenações à morte de médicos e enfer- meiros búlgaros em ativida- de na Líbia, cuja suposta ne- gligência teria contaminado crianças com o vírus HIV. (Science, 8 de abril) •

A pedido dos habitantes do Ártico, mais ursos serão abatidos

Os ursos da discórdia No afã de evitar o aumento da caça aos ursos-polares, ambientalistas do hemisfé- rio Norte compraram briga com um velho aliado: o po- vo inuíte, etnia aborígene que habita o Ártico. Até re- centemente eram parceiros, tanto que os inuítes fizeram uma acusação formal con- tra os Estados Unidos por violação de direitos huma- nos, com a alegação de que a poluição industrial seria a causa das mudanças climá- ticas que derretem o gelo e comprometem seu ances- tral estilo de vida. Agora os aborígenes viraram vilões. Isso porque eles pediram ao governo do Canadá pa- ra ampliar o número de li-

cenças de caça de ursos, sob o argumento de que a população dos animais cresce a olhos vistos. As au- toridades concordaram e ampliaram a cota de 403 ursos abatidos para 518 em Nunayut, região do Ártico canadense. Desde então, ecologistas insinuam que os inuítes renderam-se aos in- teresses dos caçadores em troca de dinheiro - uma li- cença para matar um urso, fonte de renda local, custa US$ 28 mil. "Suspeito que os inuítes são movidos por interesses econômicos, sem levar em conta a sustentabi- lidade da caça", diz Naomi Rose, da entidade norte- americana Humane Socie-

ty. Outros dizem que a ale- gada proliferação de ursos é uma miragem. "É possível que os animais apenas es- tejam se agrupando nessa região do Canadá devido ao degelo, que deixou mui- tos ursos sem território", diz Oystein Wiig, zoólogo da Universidade de Oslo e da União de Conservação Mun- dial. Autoridades canaden- ses garantem que estudos científicos foram conside- rados. "E os conhecimentos tradicionais dos inuítes são dignos de confiança", diz o biólogo Mitch Taylor. Esti- ma-se a existência de 25 mil ursos no Ártico. Não estão na lista dos ameaça- dos de extinção. •

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■ Sem água não há desenvolvimento

Foi lançada na Etiópia uma rede de jornalistas com a mis- são de melhorar e ampliar a cobertura sobre os problemas da água nos países africanos. Reúne mais de mil profissio- nais que irão compartilhar informações e idéias através de um site da internet. A rede busca encorajar a imprensa africana a monitorar as polí- ticas públicas relacionadas ao abastecimento para fortalecer o compromisso dos políticos locais com o problema e res-

saltar a importância da água e do saneamento nos esforços para a redução da pobreza. Cursos de treinamento para repórteres africanos deverão ser oferecidos. Ainda neste ano o grupo começará a pro- duzir e distribuir uma news letter. James Dorsey, do jornal norte-americano Wall Street Journal, e Rupert Wright, do britânico Sunday Times, se- rão os editores. James Dorsey lembra que sem acesso a água limpa e saneamento básico não há desenvolvimento pos- sível na África. (SciDev.Net, 4 de abril) •

■ 0 entulho que paira no céu

Devem endurecer as regras de controle do lixo espacial, pedaços de foguetes e de sa- télites e outros resíduos que pairam em órbitas próximas à Terra. Estima-se a existência de 13 mil objetos com mais de 10 centímetros na vizinhan- ça do planeta. A maioria não tem mais nenhuma função, mas ameaça danificar os mais de 600 satélites e equi- pamentos em operação. Um congresso que reuniu repre- sentantes de diversas agências espaciais, realizado em abril em Darmstadt, Alemanha, começou a discutir novos pa- râmetros de controle para

abastecimento de água e a pesca, entre outros - registram elevado grau de degradação ou são usados de forma in- sustentável, num processo que colocará em risco a so- brevivência das futuras gera- ções. Os cientistas alertam no relatório que "qualquer pro- gresso conseguido em relação aos objetivos da erradicação da pobreza e da fome, da me- lhoria da saúde e proteção ambiental provavelmente não será sustentável se a maior parte dos serviços dos ecos- sistemas nos quais se assenta a humanidade continua a de- teriorar-se". Entre as conse- qüências, apontam a eclosão de novas doenças, perda da qualidade da água, destruição

Pedaços de foguete que caíram no Texas em 1997

Erosão em rio de Madagascar: desenvolvimento insustentável

lançamentos espaciais, a fim de evitar a produção desne- cessária de lixo, e a remoção de objetos que ameaçam co- lidir com satélites ou despen- car sobre áreas populosas. •

■ As veias abertas do planeta

O relatório do Programa Avaliação Ecossistêmica do Milênio, encomendado pela ONU a 1.300 cientistas de 95 países, mostrou que 60% dos serviços extraídos de ecossis- temas do planeta - como o

da biodiversidade em exten- sas zonas marinhas e o colap- so da pesca. Teme-se que o documento, bem embasado mas bastante pessimista e abrangente, não consiga sen- sibilizar de forma clara a opi- nião pública do planeta para mudanças de comportamen- to. "A estratégia de semear o pânico pode acabar segregan- do setores cujo engajamen- to seria vital para reverter as atuais tendências", observa- ram David Dickson e Ehsan Masood, editores do site Sci- Dev.Net. .

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ESTRATéGIAS MUNDO

Telescópios em solo sagrado

Representação das antenas que serão erguidas no Atacama

Comunidades indígenas que povoam o deserto chileno de Atacama, no altiplano andi- no, vão beneficiar-se de um programa de estímulo à insta- lação de observatórios astro- nômicos. O governo chileno acaba de autorizar a criação de um parque internacional de astronomia em pleno de- serto. A atmosfera límpida, os até 5 mil metros de altitude e a escassez crônica de chuvas fazem do Atacama um local privilegiado para a constru- ção de radioobservatórios, que registram imagens a par- tir das ondas de rádio emiti- das por estrelas, planetas e outros corpos celestes. Segun- do protocolo estabelecido pelo governo em fevereiro, os projetos instalados na área te- rão de patrocinar programas de saúde e educação para 13 comunidades locais, a maio- ria delas pertencente ao gru- po étnico atacamenho. "Essa é uma terra ancestral para nós", diz Wilfredo Cruz, líder indí- gena atacamenho. "Nossas fa- mílias instalaram-se aqui mui- to tempo atrás e nós ainda preservamos lugares cerimo-

niais e resquícios do nosso passado." Nos próximos anos, a Comissão Nacional de Pes- quisa Científica e Tecnológica do Chile (Conicyt) vai convi- dar instituições internacio- nais para construir observa- tórios na área. Representantes das comunidades locais esta- rão envolvidos nas negociações para assegurar que os proje- tos respeitem seus territórios. Duas instituições já erguem instalações no deserto. Em 2003, o European Southern Observatory e a Fundação Nacional da Ciência dos Esta- dos Unidos acertaram a cons- trução do maior e mais sensí- vel rádiotelescópio do mundo numa área de 18 mil hectares do total de 45 mil hectares que deverão constituir o par- que. O Atacama Large Milli- meter Array (Alma) vai cap- tar ondas de rádio do espaço usando 64 antenas gigantes. Desde 2004, o European Sou- thern Observatory destina US$ 124 mil por ano para patrocinar a astronomia chi- lena e estimular o desenvolvi- mento local e regional. (Sei- Dev.Net, 5 de abril) •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico

para [email protected]

http://www.labvirt.futuro.usp.br/ 0 site da Escola do Futuro da USP traz material didático de física e química, incluindo animações produzidas a partir de roteiros feitos por alunos da rede pública.

Dennis Kunkel Microscopy, Inc. - Education Web Site

1ÈÈÈ JÁ*

Science and Photography Through the Microscope A web site devoted to microscopy science education

Stock Photography Clients, click here.

http://education.denniskunkel.com/ Mantida pelo fotógrafo Dennis Kunkel, oferece um acervo de 1.500 imagens microscópicas mostrando, em detalhes extraordinários, insetos, células e bactérias.

http://web.utk.edu/%7Egrissin0/default.html A página traz informações, novidades e fotos no campo da dendrocronologia, a determinação da idade baseada na contagem dos círculos dos troncos das árvores.

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ESTRATéGIAS BRASIL

Brito assume Diretoria Científica

Carlos Henrique de Brito Cruz assumiu a Diretoria Científica da FAPESP no dia 26 de abril em substituição ao físico José Fernando Pe- rez. O governador Geraldo Alckmin manifestou a in- tenção de participar da pos- se, mas, como tinha com- promisso agendado para a data, a cerimônia foi adiada por alguns dias. Brito Cruz, 48 anos, engenheiro eletrô- nico e físico, já havia sido presidente da Fundação de 1996 até 2002, ano em que se tornou reitor da Univer- sidade Estadual de Campi- nas (Unicamp). Especialista em fenômenos ultra-rápi- dos, laser e semicondutores, é um dos coordenadores do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), da Unicamp, e um profun- do conhecedor de políticas de desenvolvimento cientí-

Brito Cruz e Perez: sucessão

fico e tecnológico. Perez, 60 anos, também engenheiro e físico, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, sai da FAPESP para montar sua própria empresa, a PP&D Tecno- logia, depois de 11 anos à frente da Diretoria Cientí- fica. Em sua última parti- cipação no Conselho Supe- rior da Fundação, ele falou dos quatro pontos que con- sidera marcantes em sua gestão. O primeiro deles foi a criação dos programas voltados para a inovação tecnológica, que envolvem empresas como parceiras

ou como atores principais. "Até hoje, 348 pequenas empresas já participaram dos programas", disse Perez aos conselheiros. O segun- do ponto foi o papel da FAPESP como indutora da criação de novos programas articulados às iniciativas da comunidade científica do Estado de São Paulo. Graças a essa ação conjunta foram criados o Biota, o Genoma, o Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvi- mento da Internet Avança- da (Tidia) e a Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cére-

bro (CInAPCe), entre ou- tros. "Todos os programas foram implantados sem ne- nhum prejuízo do financia- mento da pesquisa básica", ressaltou. O terceiro ponto refere-se ao empenho dado à divulgação científica. Du- rante sua gestão foi criada e consolidada a revista Pes- quisa FAPESP e a SciELO, novo modelo de publicação eletrônica dos periódicos científicos e tecnológicos brasileiros. O último item considerado marcante por Perez refere-se à criação de paradigmas que se genera- lizaram, como o genoma paulista, que inspirou o grande projeto genoma na- cional, e os Centros de Pes- quisa, Inovação e Difusão (Cepid), que viraram, na esfera federal, os Institutos do Milênio, entre outros exemplos. •

■ O primeiro módulo doSAGe

Com o início da operação do módulo de despacho eletrô- nico do diretor científico às solicitações encaminhadas pe- lo Sistema de Apoio a Gestão (SAGe), a FAPESP completa a implantação do módulo de análise e julgamento eletrôni- co das propostas, que inclui as etapas de apresentação das

solicitações; habilitação de propostas; definição, pelos coordenadores de área, de as- sessores ad hoc para análise das solicitações; análise dos assessores; parecer e reco- mendação dos coordenado- res adjuntos e de áreas; e des- pacho do diretor científico. Superados os problemas ocor- ridos no começo da implan- tação do SAGe, em fevereiro passado, o sistema permite

uma maior agilidade e ope- racionalidade no processo de tramitação dos processos ele- trônicos em relação ao pro- cesso tradicional. Até o dia 27 de abril o SAGe já havia atingido a marca de mil pro- cessos encaminhados eletro- nicamente e contava com 16 mil pesquisadores cadastra- dos. A sistemática de encami- nhamento e análise eletrôni- ca garante operacionalidade,

segurança e mais agilidade para o pesquisador, para a instituição e para os gestores. Eventuais problemas serão sempre contornados, seja por soluções técnicas imediatas dentro do SAGe, seja pela possibilidade de uso do mé- todo tradicional, nessa fase de transição, como já ocor- reu anteriormente, sempre tendo em mente o atendi- mento à comunidade. •

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 21

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ESTRATéGIAS BRASIL

Depois do sinal verde, o dinheiro Os ministérios da Ciência e Tecnologia e da Saúde lança- ram edital no valor de R$ 11 milhões direcionado para pesquisas com células-tron- co. Pela primeira vez serão contemplados projetos com células extraídas de em- briões humanos, cuja pes- quisa só foi liberada a partir da aprovação da nova Lei de Biossegurança. Metade des- ses recursos é proveniente do Fundo Setorial de Biotec- nologia, gerido pela Finan- ciadora de Estudos e Proje- tos (Finep), e outra metade da Secretaria da Ciência, Tec- nologia e Insumos Estra- tégicos do Ministério da Saú- de. As verbas financiarão projetos de pesquisa clínica para desenvolvimento de te- rapias inovadoras utilizan- do células-tronco derivadas da medula óssea, do cordão umbilical e também as em- brionárias. O anúncio foi

Células-tronco no laboratório: R$ 11 milhões para pesquisa brasileira

feito em reunião da Frente Plurissetorial da Câmara dos Deputados. "O debate feito nesta Casa aproximou a sociedade, comunidade científica, portadores de ne- cessidades especiais e aju- dou o país a conquistar um

marco regulatório de qua- lidade para que a inteli- gência científica brasileira continue trabalhando", des- tacou o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Cam- pos. O ministro da Saúde, Humberto Costa, ressaltou

que não é prudente esperar milagres ou resultados ime- diatos das pesquisas. "Te- mos ainda um grande ca- minho a ser trilhado e, se não começássemos agora, ficaríamos muito atrasa- dos", afirmou.

■ Contribuições para o debate

O primeiro número da revis- ta Inovação Uniemp foi lança- do no dia 26 de abril com o propósito de contribuir, tri- mestralmente, para o debate dos temas científicos e tecno- lógicos articulados com o pro- cesso de inovação. Voltada pa- ra empresários, pesquisadores e estudantes, traz em sua edi- ção inaugural uma reporta- gem de capa sobre os investi- mentos do setor da construção civil em novas tecnologias. Há ainda entrevistas com Sérgio

Rezende, presidente da Fi- nanciadora de Estudos e Pro- jetos (Finep), e com o em- presário José Ricardo Roriz Coelho, diretor de competi- tividade e tecnologia da Fede- ração das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que respon- dem questão sobre o mesmo assunto polêmico: os rumos dos fundos setoriais. Além de artigos, notas e informações, a revista divulgará o índice Bra- sil de Inovação, elaborado a

Inovação Uniemp: reflexões sobre

ciência e tecnologia

partir de pesquisa desenvol- vida pela Universidade Esta- dual de Campinas (Unicamp) com o apoio da FAPESP, que tem como objetivo permitir

wmnamoGustammiíÂMmumuKsm

ENIRÍViSTA

^£m debate os rumos dos Fundos Setoriais

uma melhor compreensão do papel do conhecimento e da inovação tecnológica na dinâ- mica da geração da riqueza econômica e social no país. •

■ Um novo conselheiro

O bioquímico Hugo Aguirre Armelin, professor do Insti- tuto de Química da Universi- dade de São Paulo (USP), é o mais novo conselheiro da FA- PESP. Seu nome foi confir- mado em abril pelo governa- dor Geraldo Alckmin. Ele vai completar o mandato de Ri-

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cardo Brentani, que deixou o conselho para ser diretor-pre- sidente da Fundação. Profes- sor titular, Armelin é doutor em bioquímica, com pós- doutoramento em Berkeley, na Universidade da Califór- nia, Estados Unidos. Foi dire- tor do Instituto de Química entre 1990 e 1994 e pró-rei- tor de pesquisa da USP entre 1994 e 1997. •

■ Destaques na ciência e na cultura

O presidente da Fundação Instituto Butantan, Isaias Raw, foi o vencedor do Prêmio Fun- dação Conrado Wessel (FCW) de Ciência e Cultura, edição 2004, na categoria Ciência Ge- ral. Na categoria Ciência Apli- cada à Água, o vencedor foi o almirante Alberto dos Santos Franco, do Rio de Janeiro, es- tudioso do fenômeno das ma- rés. O Instituto Agronômico de Campinas (IAC) ganhou o prêmio de Ciência Aplicada ao Campo; o Museu Paraense Emílio Goeldi, o de Ciência Aplicada ao Meio Ambiente; e o poeta Ferreira Gullar, na categoria Literatura. César Vic- tora, professor de Epidemio- logia da Universidade Federal de Pelotas (RS), foi laureado na categoria Medicina. O prê- mio será entregue no dia 30 de maio. Cada um dos laurea- dos receberá R$ 100 mil. Na mesma cerimônia será entre- gue o Prêmio FCW de Foto- grafia, que homenageia os melhores trabalhos de foto- grafia publicitária. A funda- ção é uma instituição criada por Ubaldo Conrado Wessel, fotógrafo e químico, inventor na década de 1920 do primei- ro papel fotográfico brasilei- ro. O prêmio, criado por ele, já é considerado um dos mais importantes do Brasil na área de ciência e cultura. •

Escultura que os vencedores do Prêmio FCW vão ganhar

■ Aventuras da nanociência

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o La- boratório Nacional Luz Sín- croton (LNLS), com o apoio da FAPESP e da Fundação Vi- tae, desenvolveram um proje- to para difundir, de forma lú-

dica, a nanociência e a nano- tecnologia entre jovens de 9 a 13 anos. Batizado de nanoa- ventura, o projeto utiliza jo- gos eletrônicos, cinema em três dimensões, teatro, músi- ca e animação, para simular atividades dos cientistas em laboratórios. Os participantes podem realizar, por exemplo, um passeio virtual por la- boratórios da Unicamp e do LNLS e fazer experiências com o manuseio de átomos. Em outro jogo é possível apli- car fármacos em uma célula danificada para tentar a cura. As atividades incluem ainda a montagem de um nanocir- cuito eletrônico e manipula- ção de átomos sobre uma su- perfície coberta de impurezas que poderá ser limpa por meio do uso de um microscópio de força atômica. "Quisemos mos- trar como os cientistas fazem no mundo real", diz Marcelo Knobel, coordenador da equi- pe responsável pela nanoa- ventura e professor do Insti- tuto de Física da Unicamp. A nanoaventura se desenrola dentro de uma espécie de ten- da - uma estrutura de lona sustentada por aço, com 9 me- tros de altura e 19 metros de

diâmetro - montada no Par- que Taquaral, em Campinas, com capacidade para até 48 pessoas. A tenda pode ser des- montada e transportada para outras cidades do país. O pro- jeto teve início no dia 4 de abril, em Campinas, e seguiu para o Rio de Janeiro, onde foi apresentado no 4o Con- gresso Internacional de Cen- tros e Museus de Ciência. •

■ Homenagem em Brasília

Carlos Vogt, presidente da FA- PESP, foi admitido no dia 26 de abril na Ordem Nacional do Mérito Científico, classe Co- mendador. O professor Fran- cisco Romeu Landi (1933- 2004), que foi integrante do Conselho Superior, presiden- te e diretor-presidente do Con- selho Técnico Administrativo da FAPESP, foi admitido post mortem também na classe Comendador. A solenidade ocorreu no Palácio do Planal- to e foi presidida pelo pre- sidente Luiz Inácio Lula da Silva. Instituída em 1993, a or- dem premia personalidades de destaque nos campos da ciência e da tecnologia. •

0 projeto utiliza jogos e animação para simular atividades dos cientistas

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POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLóGICA

INVESTIMENTOS

Radiografia da inovação Terceira edição dos Indicadores da FAPESP registra aumento nos gastos públicos com C&T entre 1998 e 2002

CLAUDIA IZIQUE

A FAPESP lança, no dia 10 de maio, a terceira edi- ção dos Indicadores de ciência, tecnologia e

. inovação em São Pau- lo - 2004, uma radio-

grafia detalhada do avanço da pesquisa e desen- volvimento (P&D) no Estado de São Paulo entre 1998 e 2002. A exemplo das duas edi- ções anteriores (1995 e 2001), a publicação tem como objetivo subsidiar a formulação da política de ciência e tecnologia em São Paulo e no país.

A terceira edição, elaborada por cerca de 40 especialistas, organiza-se em torno de três gran- des blocos de indicadores - de insumo, de re- sultados e de impacto econômico e social. Ao longo de 12 capítulos temáticos, a ciência e tec- nologia desenvolvidas em São Paulo são inter- pretadas tendo como pano de fundo o contexto nacional e internacional. O volume integra ain- da as séries estatísticas a partir das quais os indi- cadores foram construídos e a descrição das me- todologias adotadas na coleta e tratamento

Page 25: O parasita do cérebro

dos dados apresentados, conforme ressalva Re- gina Gusmão, coordenadora da terceira edição.

Gastos em P&D - No que se refere aos gastos em P&D, os Indicadores adotam nova metodologia de identificação e coleta de dados distintas das utilizadas nas demais edições (1995 e 2001). Para delimitar o campo das atividades no Es- tado de São Paulo, os autores enfatizaram a comparabilidade dos números agregados, com base nas recomendações do Manual Frascati, elaborado pela Organização para a Coopera- ção e Desenvolvimento Econômico (OCDE), já adotado pelo Ministério da Ciência e Tecnolo- gia em 2001. Os gastos públicos em P&D foram calculados a partir de dados da execução orça- mentária.

Com base nesse critério, os autores registram aumento nos dispêndios públicos no Estado de São Paulo, entre 1998 e 2002. Essas despesas mantiveram-se acima dos R$ 2,3 bilhões du- rante o período. Os dispêndios do governo es- tadual - que responderam por cerca de 60% do

total - mostraram-se mais dinâmicos que os do governo federal em São Paulo.

Em São Paulo, esse incremento foi determi- nado, principalmente, pelos gastos das institui- ções de fomento. A FAPESP manteve posição de destaque, sendo responsável por mais de 56% do total de recursos destinados ao fomento no estado. Os gastos anuais com pós-graduação também contribuíram para o aumento dos dis- pêndios públicos. Somaram R$ 863 milhões, na média, sendo 84% realizados pelas três univer- sidades estaduais, sob a liderança da Universi- dade de São Paulo (USP), seguida pela Universi- dade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No cálculo dos investimentos privados, a ter- ceira edição dos Indicadores incorporou a base de dados da Pesquisa Industrial Inovação Tecnoló- gica 2000 (Pintec), do Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE), realizada com 10 mil empresas, além de tabulações especiais da Pin- tec 2003 que o instituto deverá divulgar no se- gundo semestre deste ano, de acordo com San-

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dra Hollanda, coordenadora do capí- tulo sobre os dispêndios em P&D. Nas outras edições de Indicadores esse cál- culo era feito com informações coleta- das pela Associação Nacional de Pes- quisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei) com um painel de 400 a 600 empresas.

Por esse novo critério, a participa- ção das empresas no total dos gastos em P&D em São Paulo, em 2000, foi de 54%. No plano nacional, no mesmo ano, ainda prevaleciam os investimen- tos públicos que, no conjunto dos gas- tos de P&D, representavam 58% diante dos 42% do setor privado. Esses resul- tados, no entanto, devem ser relativi- zados, como observa Sandra, já que a Pintec é realizada por amostragem probabilística com uma margem de erro de 30%. A nova metodologia deverá ainda ser aperfeiçoada.

Registro de patentes - Apesar das sinalizações positivas no capítulo sobre gastos em P&D, os Indica- dores mostram acentuado distanciamento do padrão brasileiro de investimento em ciência e tecnologia em relação aos países industrializados, o que mantém aberto o desafio de bus- car soluções para o avanço tecnológi- co. Prova disso está no capítulo dedi- cado a indicadores de propriedade intelectual. O número de patentes con- cedidas pela United States Patent and Trademark Office (Uspto) a brasilei- ros teve um crescimento modesto, ain- da que persistente, entre 1999 e 2001, até fechar o período com 0,07% do to- tal de registros. A contribuição de São Paulo representou a metade do esforço nacional no período, similar à sua par- ticipação nos pedidos de patente depo- sitados no Instituto Nacional de Pro- priedade Industrial (INPI) entre 1990 e 2001. Os dados revelam, no entanto, que das 20 entidades brasileiras líderes em depósito de patente, entre 1990 e 2001, sete localizavam-se em São Pau- lo, sendo duas universidades e três insti- tutos de pesquisa.

Os autores destacam, ainda, o peso extremamente elevado, superior a 70%, dos pedidos de patente no sistema INPI depositados por indivíduos em relação

aos das pessoas jurídicas, tanto no caso de São Paulo como no do Brasil. Esse quadro, de acordo com a literatura es- pecializada, está associado a uma reali- dade de atraso e subdesenvolvimento, lembram os autores da pesquisa. Inver- samente, projetados num plano inter- nacional, os dados revelam a preponde- rância de patentes concedidas a pessoas jurídicas, a grande maioria representa- da por empresas transnacionais.

O capítulo sobre o balanço de paga- mentos tecnológicos deixa claro o pre- ço que o país paga pelo atraso tecnoló- gico. Entre 1998 e 2002, a participação dos produtos de alta tecnologia nas ex- portações do Estado de São Paulo re- presentou entre 25% e 30%, enquanto a do Brasil situava-se entre 15% e 20%.

aíses avançados tecnologi- camente têm cerca de meta- de de suas exportações con- centrada em bens de alta tecnologia e apresentam va- lores médios das exporta-

ções superiores aos das importações. Essa relação se inverte nos países onde a sofisticação tecnológica da indústria é baixa. É o caso do Brasil e de São Pau- lo, classificados entre as regiões e países de grau médio de desenvolvimento tec- nológico que se caracterizam por défi- cits no comércio exterior de bens de alta tecnologia e no balanço de paga- mentos de serviços tecnológicos. Isso evidencia a alta dependência do Brasil e de São Paulo em relação à tecnologia estrangeira. No caso de São Paulo, esse problema aparece de forma mais visí- vel: no que se refere às vendas externas, o estado se enquadra no nível inter- mediário de integração internacional, similar ao da Itália. Mas, pelo lado das compras, tem desempenho semelhan- te ao dos países mais avançados, co- mo Alemanha ou França.

Os indicadores relativos aos recur- sos humanos disponíveis em ciência e tecnologia também não são animado- res. Em 2001, o número de pessoas ocu- padas em ciência e tecnologia no país era de 11,2 milhões e, em São Paulo, 3,6 mi-

lhões, patamar comparável ao da Fran- ça e Reino Unido, de acordo com parâ- metros da OCDE. Entretanto, quando relacionados à população economica- mente ativa (PEA), os resultados são desfavoráveis: o pessoal ocupado em todo o país representa 12% da PEA e, em São Paulo, 17%, diante do patamar de 40% observado naqueles países.

Ensino superior - Os Indicadores apon- tam ainda uma aceleração do ritmo de crescimento da matrícula de ensino su- perior no país em relação ao período 1995 a 1998, com um ingresso de mais de 1,3 milhão de alunos no sistema. A demanda cresceu em razão da dupli- cação do número de formandos no ensino médio, junto com a progressiva interiorização e diversificação das uni- versidades em todo o país.

Entre 1998 e 2002, São Paulo regis- trou aumento de 46% no número de matrículas, 89% no de cursos e de 40% no total das instituições de ensino. No Brasil, esse crescimento da graduação foi ainda mais acentuado, com um crescimento de 64% nas matrículas, 107% no número de cursos e de 68% das instituições.

A rede privada foi a principal res- ponsável pela expansão da graduação, com um aumento de 50% no número de matrículas, no caso de São Paulo, e de 84% no conjunto do país. Os auto- res identificaram, no entanto, um "es- gotamento da expansão do setor priva- do", ao constatar queda significativa na relação candidatos/vaga nos processos seletivos.

As matrículas nos cursos de pós-gra- duação, ao contrário da graduação, con- centram-se majoritariamente na rede pública, que, entre 1998 e 2002, mante- ve o ritmo de crescimento já registrado na segunda edição dos Indicadores.

O número de matrículas no Estado de São Paulo, em 2002, ainda represen- tava 37% das vagas em todo o país. A grande maioria dos cursos eram ofere- cidos pelas três grandes universidades estaduais. Os cursos da rede privada não ultrapassavam 17% do total das vagas de mestrado e de 7%, no doutorado. A pós-graduação, no entanto, continua em franca expansão no resto do país, ainda que em ritmo menor, sem comprome- ter o padrão de qualidade acadêmica e a excelência dos cursos oferecidos. •

26 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Page 27: O parasita do cérebro

POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

Os parceiros da luz Projeto KyaTera integra por meio de fibras ópticas dezenas de laboratórios

m projeto que vai interligar dezenas de la- boratórios do Estado de São Paulo por meio

de fibras ópticas começou a operar no dia 14 de abril. Financiado pela FA- PESP, o Projeto KyaTera (Plataforma Óptica de Pesquisa para o Desenvolvi- mento da Internet Avançada) reúne fer- ramentas inéditas, capazes de suplantar fronteiras institucionais e geográficas que separam pesquisadores. Por meio de sua plataforma, um indivíduo insta- lado num laboratório da Universidade de São Paulo (USP) poderá controlar, através de programas desenvolvidos pa- ra a rede, instrumentos de um labora- tório, por exemplo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Não será somente uma plataforma, mas tam- bém o palco de pesquisas sobre aplica- ções da internet avançada. Os primei- ros ensaios foram realizados com uma velocidade de 320 gigabits por segun- do, mas sua capacidade não tem limi- tes, daí a alusão ao terabit, que corres- ponde a 1.000 gigabits. Kya quer dizer rede de pesca em tupi-guarani. Terá,

em grego, mede a grandeza de 1 trilhão. "Mais do que pesquisar aplicações via internet, a plataforma permite pes- quisar a própria rede, como a quanti- dade de terabits que se pode transmi- tir numa fibra", diz o coordenador do projeto, Hugo Fragnito, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp.

Projetos selecionados - Na primeira fase foram interligadas instituições da capital paulista, como a USP, o Institu- to do Coração e a Universidade Mac- kenzie, e de Campinas, Unicamp, Pon- tifícia Universidade Católica e CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimen- to em Telecomunicações). Em breve haverá conexão com São Carlos (USP e universidade federal) e, num outro mo- mento, com laboratórios das cidades de Rio Claro, Santos, Bauru, Ribeirão Pre- to e São José dos Campos. A FAPESP já selecionou projetos para o KyaTera que envolvem 600 professores e alunos liga- dos a grupos de excelência em áreas como física, engenharias mecânica e elétrica, computação, mecatrônica, ro- bótica, biologia e medicina. O KyaTera está integrado ao Programa Tidia (Tec-

nologia da Informação no Desenvolvi- mento da Internet Avançada) da FA- PESP. A base de operação será utilizada por outros projetos vinculados ao Ti- dia, como no desenvolvimento de ferra- mentas para ensino e aprendizado via internet.

Uma solenidade realizada no dia 14 de abril na Unicamp marcou o início das operações do KyaTera. José Fernan- do Perez, num de seus últimos com- promissos como diretor científico da FAPESP, relacionou o Projeto KyaTera aos desafios que a Fundação e a pesqui- sa brasileira vêm enfrentando. Citan- do o livro O Sol, o genoma e a internet, no qual o autor, Freeman Dyson, apon- ta os três quesitos fundamentais para o futuro da humanidade, Perez disse: "Quanto ao Sol, nosso país tropical tem de sobra. Em relação ao genoma, o Bra- sil entrou no mapa dos países que fazem pesquisa relevante. Sobre a internet, o Projeto KyaTera mostra que também estamos dedicando nossos melhores es- forços", disse Perez, saudado pelo suces- sor, Carlos Henrique de Brito Cruz, que também cumpriu na solenidade um de seus últimos compromissos como rei- tor da Unicamp. •

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 27

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Rádio Eldorado AMSintonize 700 kHz

Toda semana,em meia hora,você terá:

• Novidades deciência e tecnologia

• Entrevistas com pesquisadores

• Profissão Pesquisa

• Memória dos grandes momentos. da ciência

E o que não poderia faltar:sua participação nas seções

• Pesquisa Responde

• Promoção da Semana

Apresentação Tatiana FerrazComentários Mariluce Moura

Diretora de redaçãode Pesquisa FAPESP

Sábados, às 12h30Reprise aos sábados às 19h30e aos domingos às 2oh30

PesqeTeooüisãFAPESP

www.revistapesquisa.fapesp.br www.radioeldoradoam.com.br

Page 29: O parasita do cérebro

tífica brasileira. Aos 75 anos,é dono de um vigor incomum,como você, ouvinte, poderáperceber pela voz dele. É di-retor do instituto de Pesquisaem Patologias Tropicais emRondônia. Está lá em PortoVelho há pouco mais de seteanos, depois de ter vivido 32

anos na França, onde desen-volveu uma carreira brilhanteem parasitologia. Você sabeo que levou o professor HiI-debrando por tanto tempopara a Europa? A ditadurabrasileira que, em vez de vernele o cientista inteligente eprodutivo que era, preferiuenxergá-lo como perigoso co-munista e o afastou da USP,onde ele trabalhava. Mas va-mos ouvi-lo.

PESQUISA RESPONDE

• Bradal Lacerda- Sou engenheiro e a minhapergunta é: quando temos ní-veis normais de gordura e triog/icérides altíssimos, quais osproblemas que podem ocor-rer?

• Dr. Protásio Lemos da Luz- Quando existem trlgllcê-rides aumentados, bastanteaumentados, mesmo com co-lesterol normal, dois tipos deproblemas principais podemacontecer. Primeiro: existe orisco de doença cardiovascu-lar, ou seja, infarto, angina, oumesmo acidente cerebral. Ouseja, existe o risco de desen-volvimento de aterosclerose,que compromete os vasos. Ea outra coisa é que pode ha-ver o comprometimento dopâncreas, com níveis muitoelevados de triglicérides, cau-sando até pancreatite. Entãoníveis muito elevados de tri-glicérides precisam ser trata-dos também. Eles são riscode doença cardiovascular im-portante.

PROMOÇÃODA SEMANA

02.04.2005

• Produção- Que efeitos você sente emseu organismo depois de umanoite maldormida?

• Elizabeth Monteiro(ouvinte de Santos;SP)

- O relógio freneticamentetoca, seis horas. Ainda me sin-to em nuvens de fumaça, umbarulho de trem da balada, e,atordoada, me pergunto:- Mas o que é isto tocando?Viro para o outro lado. Tenta-tiva vã de prolongar o que

não pode ser prolongado o ra-diorrelógio dispara:"E o termômetro já marca 22

graus podendo hoje chegaraos 30 ... as ruas já começama apresentar um trânsito quecertamente se tornará daqui apouco um congestionamento.O ouvinte da Eldorado ...A voz do radialista soa como acorneta da tropa do exército.Levanta!De pé, pisoteio o tapetinho,na tentativa frustrada de en-contrar os meus chinelos. im-possível, alguém saiu comeles. Coloco os meus pés ain-da quentes sobre as frias pe-dras mineiras. Nem mesmo ochoque térmico é capaz deme tirar do estado de torpor.Um verdadeiro zumbi, fruto deuma noite maldormida:

- os sons mais familia-res tornam-se verdadeiratempestade sonora aosouvidos; baixos reflexos;lentidão em formular oudar respostas sobre o queestá acontecendo.Parodiando a linguagemda informática, passo odia trabalhando em mo-do de segurança. Torcen-do o tempo todo para nãotravar, um boot no meio-dia seria muito perigoso,sob pena de danificar aplaca-mãe, que a essa al-

tura é madrasta. As operaçõessão lentas e apenas as essen-ciais, tudo que for sofisticadofica para depois, não consigoprocessar. Olho fixo no reló-gio, horas e minutos passan-do devagar para enfim poderser desligado: seis horas. Fe-cho as janelas, ativo a funçãosleep. E não adianta tentarcontrol + alt + dei, só depoisde uma boa noite de sono con-sigo me recuperar. Tente umenter amanhã!

PROFISSÃO PESQUISA

• Comentarista:- Luis Hildebrando, paulistade Santos, é uma das figurasmais fascinantes da cena cien-

Quais os efeitos da insônia?

• Luis HildebrandoPereira da Silva:

- Vim para Rondônia depoisde aposentado, porque consi-dero que na Amazônia aindatem grandes problemas a es-clarecer em todas as áreas eparticularmente na área debiociências, isto é, de ciênciasdos seres vivos, relacionadosnão apenas com a saúde hu-mana, mas com a saúde ani-mal e com a saúde vegetal. Aspatologias existentes aqui naAmazônia são ainda muitopouco conhecidas e, se nósquisermos ter uma coloniza-ção equilibrada, com a pre-sença do homem compatívelcom o equilíbrio com a natu-reza, há muita pesquisa, mui-ta ciência a ser desenvolvida,e nós temos, de certo modo, apretensão de poder colaborarcom esses objetivos. Somosatualmente uns 50 cientistase técnicos trabalhando nasáreas de patologias humanase animais e pretendemos es-tender isso para patologiasvegetais. isso nós considera-mos essencial para o futuroda Amazônia.

Page 30: O parasita do cérebro

I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INCLUSÃO

Multiplicação de idéias Rede quer difundir tecnologias úteis para comunidades carentes

CLAUDIA IZIQUE

ma solução simples e ino- vadora garan- te o sustento de centenas de fa- mílias no se-

mi-árido brasileiro. Ao redor de um tanque de água em formato circular elas plantam verduras, legumes e frutas irrigados por mangueiras ou garrafas PET. Nesses tanques criam peixes e aves que se alimentam de insetos noturnos - estrategicamente atraídos por uma lâmpada - e enriquecem a água com os nutrientes necessários para o desenvol- vimento dessas culturas.

Batizado de Mandalla, esse siste- ma de irrigação - concebido por Willy Pessoa Rodrigues, um administrador de empresas ligado a uma organização não-governamental da região - está ampliando a oferta de alimentos e a renda de comunidades carentes.

Exemplos como este estimularam 13 entidades do setor público, organi- zações não-governamentais e universi- dades - representadas pelo Fórum Na- cional de Pró-Reitores de Extensão - a criarem a Rede de Tecnologia Social para difundir o uso de soluções ino-

vadoras como a Mandalla para outras regiões.

O projeto começou a ser arquiteta- do em 2004, com o apoio estusiasma- do da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presi- dência da República (Secom). "As tec- nologias sociais precisam romper o isolamento e viabilizar-se enquanto projetos nacionais de larga escala. Para inverter esse quadro, somente com a ar- ticulação e coesão entre todos os agen- tes organizados", argumentava na épo- ca o ministro da Secom, Luiz Gushiken. Depois de um longo período de gesta- ção, a rede foi ativada no dia 14 de abril, com o objetivo de difundir expe- riências bem-sucedidas, estimular o desenvolvimento de novas tecnologias sociais e garantir escala às diversas apli- cações, devidamente adaptada à reali- dade regional.

As tecnologias sociais, na concepção do governo, são técnicas ou metodolo- gias reaplicáveis, desenvolvidas em in- teração com a comunidade. Ganharam projeção a partir de 2001, quando a Fun- dação Banco do Brasil criou um prê- mio para selecionar experiências de su- cesso e patrocinar a sua implantação em

outras regiões do país. O sistema Man- dalla, por exemplo, um dos premiados em 2003, será reaplicado 1.100 vezes neste ano, numa parceria da fundação com o Ministério da Integração Nacio- nal e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Banco de dados - A rede pode ser aces- sada por meio do portal www.redetec- nologiasocial.net, desenvolvido pela Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica (Abipti), que também dá acesso a um banco de dados com experiências nas áreas de emprego e renda, acesso a água, saneamento, ener- gias alternativas, saúde, educação, ha- bitação, entre outros. No dia do lança- mento, 130 entidades públicas, privadas e organizações não-governamentais já tinham aderido ao projeto.

A rede tem como mantenedores os ministérios da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Fundação Banco do Brasil, a Petrobras, a Caixa Econômica Federal e o Sebrae. "As tecnologias so- ciais são geradoras de emprego e renda nas regiões mais pobres do país", justi-

30 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

Page 31: O parasita do cérebro

Prêmio para bons projetos

A Fundação Banco do Brasil abriu inscrições para a terceira edição do Prêmio Fundação Ban- co do Brasil de Tecnologia Social. As oito melhores experiências de tecnologias implementadas com sucesso em comunidades carentes receberão premiação no valor to- tal de R$ 400 mil.

Estão aptas a participar do concurso as entidades sem fins lu- crativos como universidades, or- ganizações não-governamentais, prefeituras e empresas, entre ou- tras. Os interessados poderão ins- crever seus projetos até o dia 30 de junho no site www.fundacaoban- codobrasil.org.br

Todos os projetos inscritos que se enquadrarem no conceito de tec- nologia social receberão uma certi- ficação e passarão a integrar o Ban- co de Tecnologias Sociais acessível a gestores públicos, empreendedo-

res sociais e lideranças comunitá- rias. "Atualmente temos reaplica- do uma série de tecnologias sociais finalistas e vencedoras", diz Jacques Pena, presidente da Fundação Ban- co do Brasil.

Entre essas tecnologias, Pena cita as 14 minifábricas para o be- neficiamento de castanha-de-caju, em funcionamento desde 2003 com o apoio da Empresa Brasilei- ra de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa), Sebrae e Telemar. A expec- tativa é de que o projeto crie 5,8 mil empregos nos estados do Cea- rá, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia e Maranhão até 2006.

Neste ano, o prêmio conta com duas categorias especiais - tecno- logia social voltada à Gestão de Recursos Hídricos e aos Direitos da Criança e do Adolescente - em função de parceria firmada com a Petrobras.

fica o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos.

Cada um dos seis patrocinadores contribuirá com, no mínimo, R$ 2 mi- lhões anuais para a reaplicação de tec- nologias previamente selecionadas. Além disso, há disposição entre os par- ceiros de articular os objetivos da rede com outros programas sociais já em andamento. A Petrobras, por exemplo, além dos R$ 5 milhões que destinará à rede, abrirá à comunidade os poços em que teve frustrada a prospecção de petróleo, mas que deram acesso a len- çóis de água e que, a partir de agora, poderão ser utilizados para projetos de irrigação ou até para a reaplicação de Mandallas. "Muitos desses poços, que estavam fechados, serão reabertos", diz Luiz Fernando Nery, gerente de comu- nicação da empresa.

Aprender com o povo - A expectativa do governo é incorporar as tecnologias sociais às políticas públicas. A Secreta- ria de Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, já lançou editais para o financiamento de projetos de tecnologia social no valor de R$ 34,5 milhões, com o objetivo de estimular o desenvolvimento de novas tecnologias para as regiões Norte e do semi-árido. Além das instituições de pesquisa, entidades do terceiro setor também poderão apresentar propos- tas. "Queremos apoiar os cientistas que trabalham com tecnologia de ponta e, ao mesmo tempo, lembrar do Brasil es- quecido", afirma Eduardo Campos. "Os cientistas e pesquisadores vão aprender com o povo."

A Finep também já conta com uma área específica para o apoio às tecnolo- gias sociais, de acordo com Eliane Bah- ruth, diretora de Inovação para o De- senvolvimento Econômico e Social da Finep. Em parceria com a Caixa Econô- mica Federal e o Ministério do Desen- volvimento Social e Combate à Fome, anunciou uma chamada pública para o financiamento de incubação de em- preendimentos solidários.

A rede conta com uma secretaria executiva e terá suas atividades acom- panhadas de perto por um comitê ges- tor, formado por representantes das 13 entidades, que se reunirá a cada 15 dias. Anualmente um fórum nacional ava- liará as metas estabelecidas. •

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CIÊNCIA

■ As leis da física no Inferno

No Inferno de Dante, bem en- tendido. Três séculos antes de Galileu Galilei, Dante Alighie- ri descreveu uma lei do movi- mento, a invariância, que expli- ca por que as pessoas sentem como se ainda estivessem pa- radas em um carro ou em um avião em movimento. O físi- co Leonardo Ricci, da Univer-

sidade de Trento, na Itália, en- controu a notável intuição do poeta no canto 17 do poema "Inferno", que integra a Divina comédia (Nature, 7 de abril). Dante faz ali a primeira des- crição da sensação de voar ao descer para o oitavo círculo do Inferno nas costas do monstro alado Gerion, ao lado de seu guia, Virgílio. Galileu se ba- seou em uma viagem de bar- co ao descrever esse efeito. •

0 diálogo dos mares As mudanças climáticas nos hemisférios Norte e Sul es- tão ligadas por fenômenos pelos quais os oceanos rea- gem a mudanças no lado oposto do planeta. De acor- do com um estudo da Uni- versidade Autônoma de Bar- celona, na Espanha, e da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, quando o cli- ma esquentava no norte, o

sul entrava em uma fase de resfriamento que reduzia o transporte de águas profun- das do Atlântico. Se o nor- te esfriava, o sul vivia uma temporada mais quente, que estimulava o fluxo de água rumo ao norte (Science, 18 de março). Atualmente o clima da Europa e da Amé- rica do Norte é bastante in- fluenciado pela corrente do

Preconceitos femininos

Gerion, Dante e Virgílio: a primeira sensação de voar

Tudo indica que as meninas normalmente fogem das car- reiras em matemática, ciên- cias exatas e engenharia por- que não as vêem como uma ocupação social, mas, ao con- trário, solitária. Numa con- ferência realizada em abril, Jacquelynne Eccles, da Uni- versidade de Michigan, Esta- dos Unidos, falou para pais e professores de um estudo que acompanhou 1.200 meninos e meninas de 1983 a 2002, quando os participantes com- pletaram 30 anos. Segundo

esse estudo, os pais fornecem mensagens que corroem a confiança das filhas em suas habilidades científicas e ma- temáticas. Mesmo que as me- ninas tirem notas melhores em matemática que os garo- tos, pais de meninas contaram que a matemática era mais difícil para a filha deles que os pais de meninos. Para Jac- quelynne, pais e professores deveriam aumentar a confi- ança das meninas nas ciências e mostrar que os pesquisa- dores trabalham em equipe.

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Ora mais quente, ora mais frio: oceanos se ajustam às mudanças climáticas (vermelho e amarelo indicam temperaturas mais altas, verde intermediária e azul e violeta, as mais baixas)

Golfo, que carrega água quente das regiões tropicais ao longo do litoral da Flóri- da, cruza o Atlântico e ba- nha a costa oeste da Europa, tornando o clima mais ame- no. Acredita-se que o aque- cimento global poderia fa- zer o gelo da Groenlândia derreter e aumentar o volu- me de água doce do oceano Atlântico - e então a corren-

te do Golfo enfraqueceria e o clima da Europa e da América do Norte seria mais frio e seco. Hoje se sabe que a força dessa corrente de- pende da salinidade da água que chega do sul: se a sali- nidade diminui, ela enfra- quece. As águas do hemis- fério Sul, menos salgadas, afundam e se distribuem por todo o oceano, diminuindo

a salinidade do Atlântico no hemisfério Norte e debili- tando a corrente do Golfo. Um indício de que os ocea- nos estariam se adaptando às mudanças climáticas, como já ocorreu no passado, é que nos últimos dez anos tem havido uma redução do vo- lume de água doce do he- misfério Sul que segue para o fundo do Atlântico. •

Segundo ela, as crianças têm uma imagem falsa dos cien- tistas, vistos como homens, com cabelos despenteados, sempre concentrados e soli- tários. "Temos de mudar essa imagem", diz Jacquelynne, "e dar às crianças uma imagem mais rica e sutil de como os cientistas são e trabalham". •

■ Felicidade refletida no organismo

Não é só o coração. Todo o organismo das pessoas felizes funciona melhor que o das in- felizes, de acordo com um es- tudo coordenado por Andrew

Steptoe, da University Colle- ge de Londres, que acompa- nhou as emoções e a saúde de 200 londrinos. Aqueles mais felizes tinham taxas menores de cortisol, hormônio ligado ao estresse e a doenças como diabetes tipo 2 e hipertensão. Também respondiam ao es- tresse com uma quantidade menor de fibrinogênio, uma proteína encontrada no sangue que, em altas concentrações, pode prejudicar o coração. Estudos anteriores já haviam mostrado que pessoas depri- midas têm mais problemas de saúde, mas faltava encon- trar as razões biológicas. •

■ 0 perigo das supererupções

Durou alguns anos o efeito das erupções dos vulcões Tambora em 1815, do Kra- katoa em 1883 e do Pinatu- bo em 1991. Ficou no ar uma nuvem de gotas de ácido sul- fúrico, que refletia e absorvia a radiação solar, além de reter o calor da Terra, alterando o clima global. Supererupções como essas representam uma ameaça à civilização humana, já que poderiam afetar a pro- dução de alimentos, as via- gens aéreas e as telecomuni- cações, alertou um grupo de trabalho da Sociedade Geo- lógica de Londres. De acordo com o relatório assinado por Steve Sparks, da Universida- de de Bristol, e por Stephen Self, da Open University, am- bas da Inglaterra, o impacto desses megaeventos é compa- rável à colisão com o planeta de um asteróide de 1 km de diâmetro - e a probabilidade de eles ocorrerem são de cin- co a dez vezes maior. Estima- se que possa haver erupções intensas o bastante para cau- sar um desastre global a cada 100 mil anos. •

Monte Mayon em 1928: o vulcão mais ativo das Filipinas

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Etnia explica mutação Pesquisadores da Universida- de de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Mi- nas Gerais (UFMG) desco- briram que às vezes é essen- cial levar em conta a etnia das pessoas para evitar falsas as- sociações entre alterações ge- néticas e doenças. Chegaram a essa conclusão após analisa- rem uma alteração - a se- qüência CAA (citosina-ade- nina-adenina) - no gene Nogo, responsável pelo con- trole do crescimento das cé- lulas nervosas. A modificação na estrutura desse gene varia segundo a etnia e não está ne- cessariamente ligada à esqui- zofrenia, como havia sugerido Philip Seeman, da Universi- dade de Toronto, no Canadá, em 2002. Em uma pesquisa a ser publicada na Schizophre- nia Research, Sheila Gregório, da USP, analisou essa modifi- cação genética em 725 pes- soas de etnias diferentes (181

com esquizofrenia e 98 com transtorno bipolar). Ela con- firmou: a intromissão da se- qüência CAA não se mostrou associada a essas doenças, mas diretamente ligada à et- nia. É duas vezes mais comum na população branca (atinge 40%) do que na negra (20%) - e sua proporção é de 30% entre os pardos. "A etnia pode às vezes ser um fator impor- tante que permite dizer se uma alteração genética está ou não associada a uma doença", diz Sheila. •

■ O rei dos rios do Sudeste

Não deveria ser assim tão fácil pescar tucunarés na re- presa próxima a Miguelópo- lis, cidade no extremo norte do Estado de São Paulo. Esse peixe de até 9 quilogramas não é natural dessa região, mas sim da Amazônia. Cria-

dos em pesqueiros particu- lares, alcançaram o rio nas cheias mais intensas da déca- da de 1980. Suspeita-se ainda que pescadores imprudentes tenham soltado alevinos des- se peixe no reservatório - um crime ambiental. A conse- qüência mais evidente da in- trodução dessas duas espécies de tucunaré - o azul (Cichla cf. ocellaris), nativo do rio So- limões, e o amarelo {Cichla monoculus), do Araguaia - é a alteração de hábitos alimen- tares e da velocidade de de- senvolvimento e reprodução

desses peixes. Em estudos pu- blicados no Brazilian Journal ofBiology, os zoólogos Lean- dro Gomiero e Francisco Bra- ga, ambos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, interior de São Paulo, constataram que os tu- cunarés de Volta Grande atin- gem a idade reprodutiva em apenas um ano, enquanto nos rios amazônicos levam o dobro do tempo para atingir a maturidade sexual. Além de procriar mais rápido, os tucunarés da represa do rio Grande apresentaram uma

Tucunaré-amarelo nos rios do Sudeste: canibalismo

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dieta menos variada: tilápias, corvinas e mesmo filhotes de tucunarés. Incomum na Amazônia, o canibalismo confirma o empobrecimento da fauna de peixes no Sudes- te, onde antes havia doura- dos, pintados e jaús. "O da- no maior para os peixes foi a construção da barragem", afirma Gomiero. •

■ Pais obesos e filhos desnutridos

Um estudo feito em sete paí- ses revela que o Brasil está em fase de transição nutricional, com número crescente de obesos, assim como outros países em desenvolvimento, a exemplo da Rússia e da Chi- na. Uma das marcas dessa situação é que às vezes se encontram pessoas com peso acima e abaixo do normal, na mesma casa. Há alguém com sobrepeso (em geral, um adulto) e outra pessoa, quase sempre uma criança, com peso inferior ao normal, em uma em cada dez famílias brasileiras, revela estudo pu- blicado no International Jour- nal of Obesity. Essa situação complexa atinge em especial as famílias de baixa renda das áreas urbanas, que em geral só têm acesso aos alimentos mais baratos, ricos em ener- gia e pobres em nutrientes como os lanches, explica Benjamin Caballero, da Uni- versidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em comen- tário publicado no New En- gland Journal of Medicine. •

■ Em busca da máquina ideal

Um gerador que beira os li- mites da idealidade, quase sem perda alguma de energia e que dispensa a aplicação de uma corrente elétrica para

funcionar. Assim seria o osci- lador elétrico-mecânico pro- posto pelo físico Osvaldo Schilling, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), num artigo publica- do na revista Superconductor Science and Technology. "Pra- ticamente não haveria atrito e as formas de energia seriam ciclicamente convertidas e conservadas", diz. Seu dispo- sitivo tem uma bobina super- condutora submetida a uma força constante e a campos magnéticos uniformes. Em relação a outras máquinas su- percondutoras, a peculiarida- de seria o movimento lento e linear da bobina (em vez de rotatório), sem recorrer a al- tas velocidades para operar. As oscilações seriam capazes de gerar uma corrente de al- gumas centenas de amperes. "Em termos práticos", diz ele, "o oscilador poderia ser usa- do para gerar e armazenar energia eletromagnética". •

Animais raros fora das áreas preservadas As 700 unidades de conservação da Ma- ta Atlântica estão longe de ser suficien- tes para evitar o desaparecimento de espécies de animais e plantas muitas ve- zes exclusivas (endêmicas). Biólogos da Universidade Federal de Minas Gerais e da Conservação Internacional exa- minaram quão protegidas estão 105 das 110 espécies de mamíferos, aves, anfíbios e répteis endêmicos da Mata Atlântica que integram a Lista Vermelha de Espé- cies Ameaçadas. Compararam as áreas de distribuição das espécies com a lo- calização das unidades de conservação e concluíram: 54 espécies estão total-

mente desprotegidas. Há 14 com 50% de risco de desaparecer em dez anos, como o macaco-prego-do-peito-amare- lo {Cebus xanthosternos) e o muriqui- do-norte (Brachyteles hypoxanthus); 39 estão sob proteção parcial, como o pa- pagaio-de-cara-roxa (Amazona brasi- liensis) e o mico-leão-da-cara-preta (Leonthopitecus caissara); e só 12 estão protegidas. A sobrevivência dessas es- pécies depende da preservação de áreas como a serra do Mar fluminense, as serras do Espírito Santo, o sul da Bahia e os remanescentes florestais entre Ala- goas e Pernambuco. •

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I CAPA

MEDICINA

Parasita dissimulado A neurocisticercose, doença escamoteada pelo descaso e a dificuldade de diagnóstico, começa a mostrar sua real dimensão

FABRíCIO MARQUES

diagnóstico da neurocisticercose, a mais importante doença parasitária

do sistema nervoso central. A mo- léstia se caracteriza pela instalação no cérebro de uma larva adquiri-

da pela ingestão de alimentos contaminados com ovos da Taenia solium e é praticamente inexistente nos países desenvolvidos. Mas emerge como um grande problema de saúde pública em amplas re- giões da América Latina, da Ásia e da África, produzindo males neuropsiquiátricos e matando entre 15% e 25% de suas vítimas. No Brasil é endêmica em várias regiões e atinge presumíveis 140 mil pessoas. Não se conhece ao certo o espectro da doença, em boa medida, por dificuldades de diagnóstico. Em geral, só se pesquisa a neurocisticercose em pacientes que procuram ambulatórios de neurologia com sintomas como crises de epilepsia e distúrbios psi- quiátricos. Mas estudos recentes indicam que a incidência é eleva- da até mesmo em estados supostamente livres da moléstia. Há tes- tes capazes de detectar anticorpos produzidos contra o invasor, mas nenhum deles é específico a ponto de atestar ou excluir a doen- ça. O diagnóstico somente é conclusivo com a ajuda de imagens de ressonância magnética ou de tomografia computadorizada, que apontam um ou vários cistos, às vezes muitos, a povoar regiões do cérebro do paciente. A boa novidade é que a pesquisa genética ace- na com um teste barato capaz de detectar vestígios do DNA do verme em amostras do líquido cefalorraquiano, também conheci- do como líquor, aquele que envolve e protege o cérebro.

Uma equipe liderada pelo especialista em genética molecular Emmanuel Dias Neto, do Laboratório de Neurociências da Facul- dade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), de- monstrou pela primeira vez que o DNA do invasor está presente

0 cérebro visto em exame

de diagnóstico por imagem:

o parasita se revela

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no líquor. E desenvolveu um exame de detecção molecular da presença do pa- rasita baseado na amplificação do DNA pelo método PCR (reação de polime- rase em cadeia). O teste foi criado em parceria com pesquisadores do Depar- tamento de Neurologia da FMUSP, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, num projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Asso ciação Beneficente Alzira Denise Hertzog Silva (Abadhs). Ao avaliar 30 pacientes com a neurocisti- cercose, o novo método exibiu uma sensibilidade de 96,7% na detecção do parasita - deu positivo para 29 deles. Um grupo de controle, de dez pacientes sem a do- ença, atestou sua eficiên- cia. A equipe está submetendo o acha- do à publicação numa revista científica e saiu em busca da patente. "Já temos uma empresa interessada", diz Emma- nuel. A pesquisa será apresentada na dissertação de mestrado de Carolina Rodrigues Almeida, orientada por Em- manuel no Departamento de Psiquia- tria da FMUSP. O advento do teste promete expandir o diagnóstico da neu- rocisticercose, oferecendo exames pre- cisos e mais baratos que o diagnóstico por imagem.

Os acenos da genômica atingem ou- tros flancos da doença. A equipe de Emmanuel lidera ainda um trabalho pioneiro na identificação de genes funcionais do cisticerco, a forma larval que causa a neurocisticercose. Já foram identificados 2.880 ESTs - fragmentos de genes ativos que, em inglês, são de- nominados Expressed Sequence Tags, segundo uma técnica concebida pelo pesquisador Andrew Simpson e pelo próprio Emmanuel, quando trabalha- vam no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. A metodologia brasi- leira recebeu o nome de Orestes (Open Reading Expressed Sequence Tags), que, em português, significa algo como etiquetas da fase aberta de leitura de se- qüências expressas. Essa técnica já foi usada no Projeto Genoma do Câncer e também no estudo do genoma do Schistosoma mansoni, causador da es- quistossomose. "Fiquei surpreso quan-

do descobri que não havia nenhuma seqüência do tipo EST do parasita que causa a neurocisticercose", diz Emma- nuel, que se debruçou sobre o tema quando foi trabalhar no Departamen- to de Psiquiatria da FMUSP. "Já en- contramos grande quantidade de no- vos genes do parasita, que incluem candidatos para desenvolvimento de terapias e testes", diz Carolina Almeida.

possibilidade de ampliar o diag- nóstico da neurocisticercose é essencial para o combate à moléstia. "A doença é gra- víssima e enfrenta muitos problemas no campo da

prevenção, a começar pelo fato de que não é obrigatório notificar os casos", diz Vicente Amato Neto, professor titular do Departamento de Doenças Infeccio- sas e Parasitárias da FMUSP. "Aparece com muita freqüência em ambulatórios neurológicos que tratam dos principais sintomas, mas é difícil saber a real ocor- rência na população, porque não se bus- ca detectá-la." Estudos recentes mos- tram que o espectro é mesmo maior do que se imaginava. Um exemplo é a si- tuação do Piauí, estado que não inte- grava o mapa de incidência da molés- tia no Brasil. Na verdade, parecia livre da moléstia apenas porque ninguém se dera ao trabalho de procurar a neuro- cisticercose ali. Entre 1999 e 2001, uma equipe de pesquisadores de três estados liderada por Alberto Novaes Ramos Júnior, do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará, fez uma ampla investiga- ção sobre doenças parasitárias em João Costa, um paupérrimo município de 3 mil habitantes nas cercanias do Parque Nacional Serra da Capivara. Foram identificadas 169 pessoas com sintomas compatíveis com a neurocisticercose humana, como cefaléias e crises epilé- ticas. Exames imunológicos detectaram anticorpos contra o cisticerco em 27 de- las. A grande lição da pesquisa no Piauí é que a realidade epidemiológica da doença no Brasil permanece desconhe- cida, por ser pouco investigada.

Santa Catarina também começa a desvendar a real dimensão da neurocis- ticercose. A análise de 143 mil exames de tomografia computadorizada realizados na década de 1990 em diferentes regiões do estado revelou uma incidência de 1,2% de neurocisticercose. Num uni- verso mais específico, de 1.849 pacien- tes atendidos com sintomas neurológi- cos, a porcentagem de exames positivos chegou à ordem de 30%. Duas regiões despontaram no ranking dos casos, as dos municípios de Lages e de Chapecó. "São regiões onde a criação suína é tra- dicional. Mas os casos costumam envol- ver pessoas de municípios pobres das redondezas, onde a criação é feita de mo- do rudimentar", diz Mario Steindel, pro- fessor do Departamento de Microbio- logia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisadora Maria Márcia Imenes Is- hida, também da UFSC, estuda o en- torno do município de Lages. Já foram coletadas 400 amostras de sangue, que estão sendo avaliadas em busca de anti- corpos. O objetivo é realizar um levan- tamento epidemiológico no local para determinar a prevalência e identificar os fatores de risco associados à parasi- tose, tanto na população rural quanto na urbana de Lages.

Hermafrodita - A ignorância sobre as formas de contágio conspira a favor da proliferação. Em geral associa-se a neu- rocisticercose à carne suína e se ima- gina que basta evitar o consumo de re- ceitas à base de porco, além de seus derivados, para ficar a salvo. Não é bem assim. Quando um indivíduo come carne de porco contaminada pelos cis- ticercos, as larvas do parasita, existe o risco de pegar outra doença, a teníase. Uma vez ingeridos, os cistos incrusta- dos na musculatura suína transfor- mam-se, dentro do intestino humano, na Taenia solium, a forma adulta do pa- rasita, conhecida como tênia ou solitá- ria. Trata-se de um verme com o corpo alongado, em forma de fita. A tênia é hermafrodita e fabrica ovos aos milha- res, que são liberados nas fezes huma- nas. A cada dia, o hóspede indesejável do intestino despeja entre 50 mil e 60 mil microscópicos ovos. O ciclo da te- níase se fecha quando o porco ingere água ou alimentos que tiveram contato com as fezes contaminadas do homem.

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O teste por PCR (acima) e uma imagem do cérebro que mostra cisticercos (pontos mais claros): ferramentas de diagnóstico preciso

No organismo suíno, esses ovos irão converter-se em novas larvas que vão povoar sua carne e, por fim, infectar o homem que se alimentar dela. A tenía- se pode causar retardo no crescimen- to das crianças e provocar prejuízos a adultos, como perda de capacidade de trabalho. Mas tem tratamento relativa- mente simples: a administração de ver- mífugos específicos é capaz de eliminá- la do organismo. Um outro verme, a Taenia saginata, parasita de bovinos, também pode causar a teníase em seres humanos. Mas apenas a Taenia solium, a tênia do porco, participa do ciclo evo- lutivo da neurocisticercose.

A neurocisticercose é uma doença associada à teníase, mas tem manifesta-

ções muito diferentes. Ela eclode quan- do o homem ingere diretamente os ovos produzidos em seu intestino pelo parasita. No passado, estava mais vin- culada a regiões desprovidas de sanea- mento básico, onde os porcos têm con- tato direto com fezes humanas. Não por acaso, ainda hoje, a incidência de neurocisticercose em aldeias indígenas é 18 vezes maior do que no resto do Brasil. Mas, com o êxodo rural, a doen- ça tornou-se urbana, transmitida em qualquer ambiente onde falte higiene. Pessoas infectadas que não lavam as mãos depois de ir ao banheiro podem contaminar os alimentos na hora de prepará-los. Assim, a doença é transmi- tida a todas as pessoas que os comerem.

Há outra forma de contágio, conside- rada mais rara, na qual, por força dos movimentos da digestão, o estômago humano é contaminado por ovos libe- rados no intestino. Os ovos, diga-se, são ultra-resistentes. Liberados na água, no solo ou na vegetação, permanecem viá- veis para o contágio por até sete anos. Mas são destruídos por altas tempera- turas, daí a importância de comer os alimentos bem cozidos. Por isso, o prin- cipal foco de contaminação são os ali- mentos ingeridos crus, como as verdu- ras. E não adianta mergulhar a salada em soluções que matam germes, como vinagre ou hipoclorito. Os ovos resis- tem. Apenas a remoção mecânica, com água corrente e limpeza manual de ca- da folha, é capaz de afastar o perigo.

Cozinheira - Todo cuidado é pouco. Um caso clássico na literatura médica foi publicado em 1992 na revista científi- ca The New England Journal of Medi- cine, na qual quatro judeus ortodoxos de uma mesma família nova-iorquina receberam o diagnóstico de neurocis- ticercose. Por razões religiosas, eles ja- mais comiam carne de porco. E, nos Es- tados Unidos, a doença chegou a ser considerada erradicada. Uma pesquisa capitaneada pelo parasitologista Peter Schantz, do Centro de Prevenção e Con- trole de Doenças (CDC) de Atlanta, vin- culado ao governo norte-americano, in- vestigou todas as pessoas ao redor das vítimas e desvendou o mistério. Uma cozinheira, imigrante recém-chegada do México, sofria de teníase e tinha hábi- tos precários de higiene. Foi ela a res- ponsável pela contaminação da família para quem trabalhava.

No porco, os cistos costumam ins- talar-se nos músculos e não represen- tam um perigo à vida do animal. Já no homem, a larva pode integrar-se aos músculos ou crescer bem embaixo da pele, onde não causa grandes prejuí- zos, exceto os estéticos. Há casos em que uma multidão de cistos se agrupa na região subcutânea da face, causando deformações. Em outras situações, bem mais graves, o cisto invade o globo ocular, podendo levar à deficiência vi- sual. "Antigamente, clínicas oftalmo- lógicas apresentavam uma grande ca- suística, porque é relativamente fácil para um oftalmologista identificar o cisto dentro do olho", diz Vicente Ama-

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to. Mas o verme tem preferência por lo- calizar-se no sistema nervoso central, endereço de 90% dos invasores. Por isso a doença é chamada neurocisticer- cose. Trata-se da principal causa de epi- lepsia nos países em desenvolvimento. No Brasil é responsável por cerca de 3% dos atendimentos em serviços de neu- ropsiquiatria.

epois que che- gam ao apare- lho digestivo, os ovos atra- vessam a pa- rede do intes-

tino e penetram na corrente sangüínea. Quando migram para o sistema nervo- so central, atingem primeiro pequenos vasos sangüíneos entre o tecido nervo- so. A neurocisticercose pode apresen- tar-se sob duas formas: a cística, co- nhecida como Cysticercus cellulosae, e, em cachos com numerosas vesículas, denominada Cysticercus racemosus. Diz-se que a infecção é ativa quando os cistos ainda estão vivos, o que dura em média seis anos, e inativa quando os vermes já morreram e encontram-se calcificados. A doença produz danos específicos, a depender do lugar onde se instala, do tamanho alcançado por cada lesão (de 2 a 43 milímetros) e da resposta imunológica do organismo humano. É comum que o crescimento do verme pressione regiões do cérebro e bloqueie a passagem do líquido cefa- lorraquiano. Esse líquido é produzido continuamente e qualquer problema que atrapalhe sua absorção e reposi- ção altera a pressão intracraniana, com sérias conseqüências neurológicas. Po- de causar seqüelas gravíssimas e até mes- mo a morte.

A reação inflamatória produzida pe- lo organismo também produz malefícios. Os primeiros sintomas podem ser pou- co específicos, como dores de cabeça, convulsões, perda de visão ou da capa- cidade motora. Já as seqüelas cerebrais podem levar a quadros como crises epi- léticas, hipertensão craniana, hidroce- falia, meningite crônica e distúrbios psi-

quiátricos. Estima-se que apenas 10% dos casos são assintomáticos. Segundo levantamento de pesquisas sobre a doen- ça no Brasil feito pela médica Svetlana Agapejev, do Departamento de Neuro- logia e Psiquiatria da Faculdade de Me- dicina de Botucatu (Unesp), a maioria das vítimas no Brasil são homens, com idade entre 31 e 50 anos. Os exemplos mais graves, contudo, concentram-se em mulheres entre 21 e 40 anos, habitantes de áreas urbanas, em geral com hiper- tensão intracraniana. Não se sabe a ra- zão da diferença. Especula-se que exis- ta algum fator hormonal a interferir na evolução da moléstia.

As larvas sobrevivem no organismo humano por um período de três a seis anos. Antigamente era relativamente co- mum tentar debelar a doença cirurgi- camente. Comum e pouco eficaz. Hoje as operações são indicadas apenas em casos muito específicos, em que a lesão é isolada e se encontra em regiões aces- síveis do cérebro. Mas, sobretudo, re- corre-se a cirurgias para amenizar os sintomas, como fazer drenagem em ca- sos de hidrocefalia. Da mesma forma, há tratamentos ministrados de acordo com a doença desenvolvida, como cor- ticóides, no caso de meningite, ou anti- convulsivos, se ocorrer epilepsia, além de antiinflamatórios e analgésicos. Al- guns casos são tratados com dois me- dicamentos, o albendazol e o prazi- quantel, capazes de matar cisticercos instalados em determinadas áreas aces- síveis do sistema nervoso central. A te- rapia, porém, é controversa. Ocorre que o cisticerco, mais cedo ou mais tar- de, morreria mesmo - sem o poder de deixar herdeiros - e o seu extermínio produzido por medicamentos pode de- sencadear um complicado processo in- flamatório. "Um estudo mostrou que pacientes tratados com o albendazol de- senvolveram sintomas mais amenos que os que não receberam o remédio", diz Osvaldo Takayanagui, professor de Neu- rologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP.

Em 1993, a Força-Tarefa Internacio- nal para Erradicação de Doenças, liga- da à Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou a neurocisticercose como um raro exemplo de moléstia que poderia ser eliminada no planeta, entre 93 males infecciosos e parasitá- rios estudados. A doença foi erradicada

de países como o Japão, Canadá e na maior parte da Europa Ocidental. Nos Estados Unidos registram-se hoje mais de mil casos por ano. O problema res- surgiu graças a fluxos migratórios da América Latina, onde a moléstia atinge 350 mil pessoas em 18 países. No Méxi- co, a neurocisticercose é o diagnóstico final de 10% das autópsias realizadas em hospitais neurológicos. Permanece um problema grave de saúde pública na África, onde são escassos os estudos epidemiológicos, e na Ásia, sobretudo na China e na índia, mas também na Tailândia, nas Filipinas e na Coréia do Sul. Estima-se que 50 milhões de indi- víduos estejam infectados pelo comple- xo teníase/cisticercose no mundo. Cin- qüenta mil morrem a cada ano.

Predileção - Um programa eficiente de controle da doença inclui, em primeiro lugar, o monitoramento da qualidade da carne suína. Hoje, a inspeção sanitá- ria feita no Brasil procura vestígios das larvas em órgãos como o coração, a lín- gua, o diafragma e músculos, locais onde os cisticercos têm predileção em se instalar. Mas o verme também pode estar em outros órgãos, daí a importân- cia de sempre cozinhar bem a carne de

Cuidados que os médicos

recomendam i Comer carne de porco e seus derivados bem cozidos e adquiridos em estabelecimentos sujeitos à fiscalização sanitária.

f As verduras devem ser muito bem lavadas antes de consumidas.

Beber somente água filtrada ou fervida.

Lavar as mãos antes das refeições, de preparar alimentos e após o uso do sanitário.

Fazer exames periódicos de fezes, procurando tratamento se necessário.

Dar destinação adequada às fezes humanas, através de fossas sépticas e rede de esgoto.

I

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A face da Taenia solium: duas doenças em uma

Pedaço do verme adulto: carregado de ovos

0 ovo microscópico: viagem até o cérebro

porco. O ideal seria submeter os por- cos abatidos a exames imunológicos, que são capazes de encontrar vestígios de anticorpos contra o cisticerco. Se- gundo diretrizes da Organização Pan- americana da Saúde (Opas), além de monitorar a carne, é importante criar um sistema de notificação compulsó- ria dos casos de teníase, inclusive com visitas a familiares das vítimas, para deter o contágio no ambiente domésti- co. Também é vital fiscalizar a qualida- de de verduras e exigir a apresentação

de exame parasitológico de fezes na re- novação da carteira de saúde de qual- quer profissional que manipule alimen- tos, além, obviamente, de melhorar as condições sanitárias da população. A Opas também sugere, como medida extrema, administrar vermífugo em to- das as pessoas de uma comunidade bas- tante atingida pela doença.

Poucos estados brasileiros, como Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, dispõem de algum tipo de pro- grama de prevenção. O município de

Ribeirão Preto, no interior paulista, tem um dos mais bem articulados esquemas de combate à doença no país, deflagra- do pela elevada incidência da doença naquela região nas últimas décadas. Além da notificação compulsória dos casos, até mesmo a qualidade das ver- duras vendidas em feiras e mercados foi avaliada. Revelou-se uma elevada contaminação por coliformes fecais, si- nal de falta de higiene, mas nenhum vestígio de ovos da Taenia solium. Des- se programa saiu uma rara estatística epidemiológica confiável sobre a doen- ça no Brasil. Há 74,1 casos de neurocis- ticercose em Ribeirão Preto para cada grupo de 100 mil habitantes. "Não dá para dizer se é muito ou é pouco, pela falta de parâmetros de outras localida- des para comparar", diz o médico Os- valdo Takayanagui. A doença, apesar da eficiência do programa, mostra fôlego. Cerca de 25% das vítimas apresenta- ram cisticercos ainda vivos, num sinal de que a doença fora contraída num passado bem recente.

Peptídeos - Uma promessa ainda dis- tante é o desenvolvimento de uma vaci- na capaz de bloquear o ciclo da teníase e da neurocisticercose nos hospedeiros. Há estudos no México de uma vacina baseada em três peptídeos sintéticos compartilhados pela Taenia solium e a Taenia crassiceps, parasita de raposas. O grande entrave, nesse caso, é econômi- co: o custo de sintetizar esses peptídeos é elevado. No ano passado, pesquisado- res chineses concluíram que o antígeno cCl, obtido da Taenia crassiceps, é um bom candidato ao desenvolvimento de uma vacina contra a Taenia solium. Em 1999, um pesquisador australiano con- seguiu desenvolver uma vacina, com o uso combinado de três diferentes antí- genos, que atingiu um nível de prote- ção de 93% em porcos propositada- mente infectados. Essa vacina talvez não seja eficiente no Brasil, dada a va- riabilidade genética da Taenia solium ao redor do planeta. "É preciso con- centrar esforços em se conhecer outros genes e proteínas do parasita para ex- pandir o potencial de antígenos a se- rem testados", diz Emmanuel Dias Ne- to. O Brasil, com a experiência que vem acumulando na ciência genômica, tem uma importante contribuição a dar nes- se campo. •

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CIÊNCIA

EPIDEMIOLOGIA

Gradas a Ia vida

Mulheres na América Latina aprendem a conviver com o vírus da Aids disseminado por uma cultura machista

POR PATRíCIA LIMA E VíCTOR HUGO DURáN*

ILUSTRAçõES ELY BUENO

noite sua. O calor não se desprende dos lençóis. O inútil ventilador de te- to repete uma vez mais seu chiado sufocado. Na escuridão os meni- nos dormem. Ana, não. Não con- segue matar todos os mosquitos

do quarto. Sempre sobra um, escondido. E se se descuida e o mesmo inseto que antes a picou pica seu filho? E se o peque- no fica doente? O medo a apavora. Não consegue matar to- dos os mosquitos do mundo. Não consegue matar a raiva.

Em novembro de 1999 o mundo de Ana desabou. Às dez e meia da manhã, um jovem com avental branco lhe informa que seu exame é positivo: está infectada pelo HIV, o vírus da Aids. "Por que eu?, foi a primeira coisa que pensei." Era casa- da havia 15 anos com um bem-sucedido empresário, dona- de-casa, mãe de três filhos, dois pequenos e uma adolescente. "Por que comigo?"

A história de Ana não é singular. Centenas de casos simi- lares ocorrem a cada ano no Paraguai. No país, como na América Latina inteira, a Aids é cada vez mais feminina, mais jovem e mais pobre. A síndrome afeta cada vez mais mulhe- res que adquirem o vírus em suas próprias casas através dos maridos. Os números do Paraguai causam impacto. No co- meço da epidemia havia 20 homens infectados para cada mu-

*PATRICIA LIMA é jornalista do diário paraguaio Última Hora e Victor Hugo Durán, do El Mercúrio, do Chile. Esta reportagem foi originalmen- te publicada na Revista Acción, do Centro de Estudos Paraguaios Antô- nio Guasch, e reproduzida com autorização. Tradução: Mariluce Moura.

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lher. Quase duas décadas depois, em sinha, mas também na vida sexual co- 2002, a proporção registrada é pratica- mente de um homem para cada mulher.

A feminização da doença é um fe- nômeno relativamente novo no Cone Sul. Inicialmente o HIV afetava homos- sexuais e dependentes de drogas que compartilhavam seringas. Mas com o passar dos anos a transmissão começou a ser um problema comum em mulhe- res jovens e segmentos pobres. A Aids deixou de ser assunto de homens que praticam sexo com homens e tornou-se parte do cotidia- no também de bissexuais e heterossexuais. Muitos ho- mens casados relacionam- se sexualmente com outros homens ou mulheres e che- gam à noite em casa para dormir com suas esposas — promiscuidade de dia, fide- lidade à noite. Assim, sem se dar conta, muitas mulheres partilham a cama não apenas com seu par, mas também com os aman- tes ocasionais dele, e todos os amantes de cada um desses amantes, e assim su- cessivamente.

Paloma Cuchi, médica, assessora regional da agência das Nações Unidas para Aids, falando por telefone de seu escritório em Washington, reconhece essa tendência. Diz que as populações suscetíveis - homossexuais e dependen- tes de drogas - chegaram a um ponto tal de saturação que agora empurram a doença para mulheres e populações de baixa renda. Mais grave ainda é que a pressão social sobre as mulheres freia sua liberdade de exigir a preservativo pa- ra manter relações sexuais. Ao machis- mo que ainda impera na região soma-se a falta de educação. "Continua existin- do uma desigualdade sexual entre ho- mens e mulheres para propor o uso da camisinha. Porque ou se considera que neste caso ela traiu o marido, ou porque simplesmente ele se nega a usá-la. Há inclusive trabalhadoras sexuais a quem se continua a pedir para não usar a pre- servativo. Continua esse desequilíbrio entre homens e mulheres que obedece a um desequilíbrio econômico. Quan- do as mulheres têm um nível maior de educação, têm maiores possibilidades econômicas e são também mais capa- zes de exigir igualdade nas relações se- xuais, e não só quanto ao uso da cami-

mo um todo", adverte. As famílias, no entanto, continuam

a educar as mulheres para se tornarem donas-de-casa. Os homenzinhos vão a colégios e universidades. As mulher- zinhas cuidam de seus irmãos. Os ho- menzinhos vão a festas e se divertem. As mulherzinhas preparam a comida. Os homenzinhos sabem como cuidar-se no sexo e como convencer uma mulher não educada a fazer sexo desprotegida.

sse fenômeno pode ser confirmado pelos núme- ros da América Latina. No Chile, por exemplo, em poucos anos a ten- dência passou de uma

mulher infectada pelo HIV para cada 20 homens a uma mulher para cada cinco homens, no presente. No Brasil a situação é ainda mais grave. Os dados de 2002 estabelecem que entre os ado- lescentes de 13 a 19 anos as mulheres contaminadas já representam o dobro dos homens contaminados. Tanto na fai- xa de 19 a 30 anos quanto na faixa aci- ma dessa idade a proporção é de apro- ximadamente uma mulher para cada homem. Na Costa Rica, em apenas qua- tro anos, a tendência passou de uma mulher para 12 homens a uma mulher para sete homens. E no Paraguai, como dito, a proporção é de uma a um.

Vida roubada - Desde aquela manhã de novembro de 1999 a vida para Ana mu- dou. Ela não entendia o que se passava. "Minha vida sempre girou exclusiva- mente em torno de minha família, de meus filhos, para mim o resto não era nada." Da noite para o dia estava infec- tada por uma doença mortal da qual não sabia nada. E ninguém lhe dava in- formação. "O primeiro ano foi terrível", lembra.

"No começo eu não dormia à noite, caçando os mosquitos que tinha que matar para que não picassem meus fi- lhos, já que podiam ter picado primei- ro a mim. Não queria levar meus filhos ao dentista. Não queria nem ir ao ba-

nheiro, para não contaminá-los." Cho- rava e comia o dia inteiro. Em oito me- ses engordou 40 quilos.

Ainda que esteja cientificamente comprovado que o vírus da Aids não é transmitido pelo ar, por insetos nem pela saliva, os preconceitos continuam vigentes, inclusive entre os próprios profissionais da saúde. Ana os sofreu em sua própria carne. "Os médicos não me examinavam, não me tocavam." Até 1999 os pacientes que morriam de Aids nos hospitais públicos paraguaios eram enfiados diretamente em um saco de plástico e daí eram colocados em cai- xões selados, sem dar oportunidade aos familiares de banhá-los e lhes dar um último beijo.

A discriminação ainda hoje se impõe como um entrave ao acesso à saúde. "Não atendemos pessoas com Aids", ou- ve-se pelos corredores dos hospitais ou consultórios médicos. Maus-tratos, me- nosprezo, olhares por cima dos ombros persistem ainda, e com muita força, nos serviços de saúde. Por medo de perder o direito aos medicamentos ou por me- do de que se saiba que são soropositivas, muitas mulheres sofrem em silêncio. Choram de impotência ao chegar em ca- sa, mas tratam de ser fortes diante de um serviço assistencial que não honra esse nome. Cuchi confirma que "a mulher em geral é discriminada no acesso aos ser- viços de saúde. Existem algumas doen- ças, como o câncer de colo do útero, que não estão incluídas na cobertura em ca- so de Aids. No Paraguai, um diagnóstico positivo de Aids representa a diferença entre ser atendido e ser excluído dos ser- viços de medicina privada. E a mulher, dada a forma como foi educada, busca menos o atendimento médico. Procu- ram-no quando os filhos estão doentes ou quando elas estão muito mal, mas isso lhes custa muito, porque não têm tempo, estão sempre ocupadas, ou por- que devem desempenhar o papel de pila- res das famílias. Ainda se vê um estigma muito grande em muitos setores, inclu- sive o da saúde. Mas esse é um tema que tem a ver com desenvolvimento".

Quando Ana tomou consciência de que estava infectada deixou-se invadir por uma raiva imensa. Culpou seu ma- rido, que a havia enganado, culpou a si mesma, por não se cuidar. Culpou os amigos, porque continuavam saudáveis. "No começo, por raiva, por desespero,

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queria contar a todo mundo que estava infectada", lembra. "Por sorte não o fiz", pensa agora. "Porque depois você já não pode apagar o que fez e todos lhe dão as costas, é aí que dói."

Ruiva, gordinha, alegre, Ana chegou para a entrevista suada e carregada de sacolas com as roupas que vende para sustentar seus três filhos. Não tem car- ro, anda de ônibus. Desde que seu ma- rido morreu em conseqüência da Aids, ela tomou as rédeas da casa. Trabalha em qualquer coisa: "Às vezes trabalho de cabeleireira, outras vendo calças, vendo cosméticos, se tiver que lavar roupa alheia, lavo, se tenho que limpar a casa dos outros, limpo. O trabalho para mim não é degradante", diz, para em seguida ajuntar, "ago- ra". Antes, sim, era.

Ela garante que voltou a nascer há dois anos. Sua vida mudou desde que aprendeu a conviver com a Aids. Desde que come- çou a participar das reu- niões de auto-ajuda da Fundação Vencer, criada por pessoas que vivem com o vírus.

Ainda não se notam nela os sintomas da infec- ção. Não tem manchas no rosto, não emagreceu, em- bora suas defesas tenham baixado já há um ano e a carga viral tenha subido até o ponto de precisar co- meçar a tomar os medica- mentos anti-retrovirais. Ninguém, à exceção de um seleto gru- po de familiares e seus amigos da Fun- dação Vencer, sabe que ela carrega o HIV em seu corpo. "Meus pais e meus irmãos? Dizem que me apoiam, mas sumiram todos da minha casa", comen- ta. Por isso é melhor manter o segredo.

Desatenção estatal - Outro dos dramas que os infectados pelo HIV devem en- frentar no Paraguai é a escassez de me- dicamentos. O orçamento anual de US$ 500 mil destinado ao Programa de Luta contra a Aids não chega sequer a garantir a medicação anual aos 450 pa- cientes sob tratamento. Existem outros 700 doentes que deveriam receber essa

medicação, mas eles nem a começaram porque sabem que não poderão dar con- tinuidade ao tratamento.

É diferente no Chile, onde o Estado tem um orçamento de US$ 15 milhões anuais e dá cobertura a 90% dos pa- cientes que requerem terapia. No Bra- sil, um dos países mais avançados em tratamento de Aids, entre 2000 e 2002 o governo gastou US$ 180 milhões e dá cobertura a 140 mil infectados em tratamento.

Como a maioria dos portadores do vírus no Paraguai e no resto do Cone

Sul, Ana é muito pobre. Desde que seu marido faleceu, apenas sobrevive. Por isso quando chega ao escritório do pro- grama e lhe dizem que este mês não te- rá medicação se sente mal. Sabe que lhe estão roubando dias de vida. Cada in- terrupção no tratamento tem conse- qüências clínicas irreversíveis. O vírus se fortalece e é cada vez mais difícil controlá-lo.

"E o que você faz quando não lhe dão os remédios?", perguntamos. "Na- da", ela ri nervosa como ao longo da en- trevista, "me cuido com remédios po- pulares, com olho-de-gato, que dizem que faz subir as defesas, tomo qualquer coisa". Os doentes de Aids não têm ou-

tra opção nesse caso, porque não con- seguem localmente os medicamentos e no exterior seu preço é inacessível para a maioria. Graças a negociações com laboratórios farmacêuticos, o cus- to mensal do tratamento baixou de US$ 1.300 em 1996 para US$ 180 hoje. Ainda assim o governo paraguaio não garante sua provisão.

Agradecer à vida - Atualmente já não se fala em "grupos de risco", e sim que to- dos nós, homens e mulheres, estamos expostos a adquirir o vírus. Segundo

estimativas do Programa de Luta contra a Aids no Paraguai, cerca de 12 mil pessoas estão infectadas. Sabe-se que sete de cada dez infecções ocorrem por via sexual e a maioria dos casos são de heterosse- xuais. Do restante, 13,2% correspondem a usuários de drogas intravenosas e a alguns casos de acidentes em transfusões notifica- dos no começo da epide- mia. A transmissão de mãe a filho recém-nasci- do contribui com 3,5% dos casos e se desconhece a via de infecção em cerca de 11% dos casos.

Agora, depois de dois anos de conversas e edu- cação, Ana já não teme que um mosquito infecte seus filhos com o HIV Já não tem medo de preju- dicá-los. "Cada vez que me deito dou graças a

Deus por mais um dia de vida e por to- das as coisas a que antes não dava im- portância." Ela não sabe por quantos anos mais viverá, assim como ninguém sabe. Só espera manter-se medicada e o mais sadia possível, à espera de que sur- ja um tratamento capaz de curá-la. É a mesma esperança que têm 42 milhões de pessoas que vivem atualmente como portadoras do HIV ou doentes de Aids em todo o mundo. "Enquanto a pessoa não aceita que traz em seu corpo o HIV sofre muito, mas, a partir do momento em que aceita conviver com esse vírus, tudo é mais fácil." São palavras de uma mãe. De uma lutadora. De uma mu- lher como tantas outras. •

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CIÊNCIA

QUÍMICA

Corpo com mais gás Formulações com rutênio que liberam ou captam oxido nítrico podem servir de base para futuros medicamentos

CARLOS FIORAVANTI

a oderíamos nos apresentar como projetistas de compostos quími- cos produzidos sob medida que doam ou captam oxido nítrico."

_^H__ Ao imaginar essa possibilidade, Elia Tfouni não pretende abrir

mão da modéstia, mas resumir os resultados de dez anos de trabalho com Douglas Franco - am- bos são químicos e professores da Universidade de São Paulo (USP). Em conjunto com pesqui- sadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Tfouni, Franco e as respectivas equi- pes desenvolveram cerca de 50 compostos que nos estudos iniciais feitos em laboratório se mos- traram capazes de absorver ou liberar oxido nítri- co, gás incolor essencial ao organismo que apare- ce e desaparece a todo momento: sua meia-vida, quando metade do total de moléculas se desfaz, é de apenas cinco segundos.

Produzido, consumido e reposto a todo mo- mento, o oxido nítrico facilita a circulação do sangue, o funcionamento do rim, a destruição de microorganismos nocivos, a ereção peniana e a contração do útero na hora do parto, além de servir como mensageiro químico entre os neurô- nios do cérebro. Poucas moléculas são tão versá- teis e onipresentes, embora essa combinação de um átomo de nitrogênio com outro de oxigênio tenha sido vista durante décadas principalmente como um resíduo liberado pelo escapamento dos carros - até que três farmacologistas norte- americanos demonstraram sua importância para

os seres vivos e ganharam o Prêmio Nobel de Medicina de 1998.

Às vezes pode ser bom reduzir a quantidade de oxido nítrico em circulação no organismo; outras vezes, o melhor é aumentar a oferta dessa molécula ligada à vida e à morte, ao prazer e à dor. No choque séptico, como é chamada a bru- tal queda da pressão arterial que decorre de uma infecção bacteriana, há uma produção excessiva de oxido nítrico - associada também à esquizo- frenia, ao mal de Alzheimer, ao diabetes e à asma. Nesses casos sua abundância não é desejada e se- riam bem-vindos medicamentos que reduzissem sua concentração no organismo. Outras vezes o que se quer é o efeito contrário e manter a maior quantidade possível de oxido nítrico em circula- ção, valendo-se de sua propriedade de promover a dilatação das veias e artérias: medicamentos como o Viagra baseiam-se justamente nesse efeito, por meio do qual o sangue circula mais generosa- mente pelo pênis. Na situação inversa, a escassez de oxido nítrico faz os vasos sangüíneos se con- traírem e torna mais iminente a possibilidade de um infarto.

Franco e Tfouni gostariam imensamente de dizer que já têm em mãos algo novo para evitar o infarto ou mesmo um Viagra nacional. Mas não. Seus estudos são puramente químicos e apenas começaram os testes em animais, primeira etapa de uma longa jornada rumo a aplicações seguras em seres humanos. O composto que se encontra em estágio mais avançado de pesquisa é chama-

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do coloquialmente de PRuNO, abreviação de um nome quase impro- nunciável, o hexafluorofos- fato de írans-nitrosiltetra- mintrietilfosfitorrutênio(II). Em laboratório, o PRuNO mos- trou-se eficaz para reduzir a pres- são arterial de ratos hipertensos, de acordo com um estudo feito em conjunto com Marta Krieger, da Universidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp), e publicado em 2002 na revista Nitric Oxide: Biology and Chemistry.

Alessander Acácio Ferro, ex-aluno de doutorado de Tfouni, desenvolveu outro composto aparentemente promissor. Chama-se hexafluorofosfato de frans-nitrosylcloro (1,4,8,11- tetraazaciclotetradecano) rutênio (II) - para sim- plificar, cyclam - e exibiu uma ação 20 vezes mais lenta quando comparado com o nitroprus- siato de sódio, um composto usado para tratar ataques cardíacos, já que repõe rapidamente o oxido nítrico. Ainda que o trabalho tenha apenas começado, segundo Franco esse resultado sugere que o cyclam poderia ser utilizado para manter a pressão arterial estável, mais do que para resolver situações de emergência, como fazem o nitro- prussiato ou a nitroglicerina, que também é um liberador de oxido nítrico, além de ser um explo- sivo poderoso.

Nova coletânea de osteologia e de miologia, de Jacques Gamelin, 1779

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Em estágio menos avançado estão os estudos de Jean Jerley Nogueira da Silva, um dos alunos de Franco, sobre o uso potencial desses compostos no combate a infecções. Em colaboração com João Santana, da Faculdade de Me- dicina da USP de Ribeirão Preto, Silva verificou que o oxido nítrico bloqueia a reprodução do protozoário Trypanoso- ma cruzi, causador da doença de Chagas, contra a qual há décadas não surgem medicamentos novos. Silva selecionou três compostos com alto poder de des- truição: em uma hora, cada um dos três matou de 60% a 92% dos parasitas man- tidos em meio de cultura.

Primeiros testes - Esse grupo de pesqui- sadores chegou a esses resultados va- lendo-se das propriedades dos íons - partículas carregadas eletricamente - de um elemento químico chamado rutê- nio. Em sua forma eletricamente neu- tra, o rutênio é um metal branco usado na produção de ligas resistentes à cor- rosão e em joalheria como substituto da platina. Com dois elétrons a menos, torna-se Ru2+ e um modelo experimen- tal para o desenvolvimento de novos medicamentos, por se combinar facil- mente com o oxido nítrico e formar compostos pouco reativos. "Essa é a via de síntese química mais simples que en- contramos", diz Franco, cuja equipe in- tegra o Instituto de Química de São Car- los, enquanto Tfouni e seus alunos trabalham nos la- boratórios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

Os compostos com ru- tênio ainda são tratados com cuidado, por causa de sua toxicidade. Mesmo as- sim, em doses controla- das, têm sido testados no mundo inteiro contra al- gumas doenças, constituin- do-se uma alternativa para as estraté- gias hoje adotadas, que controlam o estoque desse gás agindo sobre as enzi- mas que produzem oxido nítrico ou o desfazem depois de ter cumprido sua tarefa. Em um artigo de revisão publi- cado no ano passado na Current Topics in Medicinal Chemistry, Celine Mar- mion e sua equipe do Royal College of Surgeons, na Irlanda, em conjunto com pesquisadores da empresa cana-

dense AnorMED, desenham um rico futuro para os doadores e captadores de oxido nítrico à base de rutênio ao descrever os resultados das novas for- mulações testadas em ratos, porcos, cães e coelhos contra problemas de amplo alcance, como hipertensão, cân- cer, infarto e inflamação.

Já foram feitos os primeiros testes também em seres humanos. Em um es- tudo publicado também no ano pas- sado na Clinicai Câncer Research, pes- quisadores do Instituto de Câncer da Holanda relatam a descoberta da me- lhor dose de um composto à base de rutênio apta a evitar o espalhamento de tumores, após tratarem 34 pacientes com dosagens diferentes. Em paralelo, especialistas da Universidade de Tries- te, na Itália, sob a coordenação de Enzo Alessio, encontraram uma formação designada como NAMI-A, que foi tes- tada em 24 pessoas e impediu a prolife- ração das células cancerígenas. "O com- posto de rutênio que desenvolvemos e testamos é muito menos tóxico que os antitumorais com platina, mas é claro que nem todos os derivados de rutênio têm baixa toxicidade", comenta Enzo Alessio, o coordenador desse estudo, relatado em 2004 na Current Topics in Medicinal Chemistry. Na Bulgária, um grupo encontrou um derivado de rutê- nio que combateu a leucemia em célu- las humanas.

ada grupo de pesquisa adota uma estrutura quí- mica básica, da qual deri- vam todos os compostos, do mesmo modo que a partir de um único chassi

são feitos modelos de carros mais sim- ples ou mais luxuosos. Nos compostos formulados pela equipe da USP, cujas propriedades foram descritas em cerca de 40 artigos publicados nos últimos dez anos, o rutênio ocupa o centro de um sólido imaginário de oito faces, em for- ma de duas pirâmides unidas pela base quadrada. Foi dessa plataforma atômi- ca que se originou o PRuNO, até agora o exemplo mais generoso de doador de

Compostos à base de sílica {acima): liberadore captador de oxido nítrico {ao centro e abaixo)

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oxido nítrico, que age 10 mil vez mais rápido que outro, por enquanto o mais parcimonioso dos entregadores de oxi- do, o cyclamNO (é o mesmo cyclam com aquele nome imenso, mas agora sem o oxido nítrico ou NO).

"Podemos criar compostos inter- mediários que retardam ou aceleram a liberação de oxido nítrico, variando os ligantes", diz Tfouni. Ligantes são as mo- léculas que formam o esqueleto externo desse sólido de oito faces. Os quatro vér- tices da base comum das duas pirâmides são formados por moléculas relativa- mente complexas, com grupos de dez a 40 átomos, como as multipi- ridinas, tetraminas, aminpo- licarboxilatos ou salen, de acordo com a classe química a que pertencem. Já no alto de uma das pirâmides há li- gantes mais simples - sulfito, fosfito, cloreto ou, simples- mente, água -, decisivos no controle da liberação de oxi- do nítrico, situado no outro extremo dessa estrutura.

Elétron fujão - Em colaboração com pesquisadores da Universidade do Ari- zona, da Universidade da Califórnia e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, os quími- cos da USP construíram suas substân- cias de modo que o oxido nítrico, em laboratório, seja liberado quando rece- be um feixe de luz com a energia ade- quada ou quando encontra um elétron solitário, a partícula elementar de carga elétrica negativa que orbita o núcleo atômico. Em seguida, segundo Tfouni, a posição que o oxido nítrico ocupava fica vazia e é tomada por outra molécu- la - geralmente água. Essa mesma es- trutura, agora com uma molécula de água ocupando a vaga do oxido nítrico, mas com um elétron a menos, cumpre a função inversa e se torna um captador de oxido nítrico.

É uma união perfeita entre uma es- trutura atômica com um elétron a me- nos e um gás constituído por um elé- tron que escapa facilmente. Por perder um elétron é que o oxido nítrico se tor- na muito reativo - com fome de elé- tron, digamos - e adere rapidamente a outras moléculas do organismo, a exemplo do ferro da hemoglobina, a proteína que distribui oxigênio às célu-

las do corpo. Franco e Tfouni aprovei- taram justamente essa instabilidade do oxido nítrico para sintetizar seus com- postos que funcionam como ímãs de maior ou menor intensidade: o oxido nítrico se aproxima, deixa escapar o elétron fujão e prende-se, ora de modo mais intenso, ora de modo mais tênue, ao íon de rutênio dessa estrutura, que está justamente à espera de um elétron - e assim esse oxido nítrico sai de cir- culação, ao menos temporariamente. "O oxido nítrico pode escapar de algu- mas estruturas e de outras não", co- menta Tfouni.

ara chegar a esses resulta- dos, essa equipe de quími- cos da USP trabalha em média durante uma sema- na, preparando e acompa- nhando as reações entre os

compostos iniciais, que são vermelhos, azuis, verdes ou amarelos, mas desbo- tam à medida que se combinam com o oxigênio e o nitrogênio do oxido nítrico. Só no final é que surgem os pós geral- mente amarelo-claros ou marrom-aver- melhados que liberam ou seqüestram oxido nítrico em poucos segundos. Mas calma, não terminou. Corre mais uma semana em testes e análises até se chegar à certeza de que os resultados das reações eram exatamente os espe- rados. "Se descobrirmos que o com- posto ficou impuro", diz Tfouni, "te- mos de voltar tudo e recomeçar". Se se

O PROJETO

Reatividade térmica e fotoquímica de nitrosilo complexos de rutênio, conhecimento e controle da reatividade do oxido nítrico coordenado

MODALIDADE

Projeto Temático

COORDENADOR

DOUGLAS WAGNER FRANCO - IQSC/USP

INVESTIMENTO

R$ 1.787.508,80 (FAPESP)

trata de formulações novas, o trabalho é ainda maior.

Mas quais as chances reais desses compostos seguirem adiante, cumpri- rem todas as etapas e se tornarem, efe- tivamente, medicamentos? Franco, aos 60 anos, e Tfouni, aos 61, sabem que se trata de uma longa jornada, em vista da dificuldade de repassar os resultados da pesquisa acadêmica para as indústrias brasileiras do setor químico-farmacêuti- co, que não primam pela familiaridade com a pesquisa científica, que poderia ajudar a depender menos das importa- ções. Em 2004, de acordo com um le- vantamento divulgado no início de março, acentuou-se o desequilíbrio da balança comercial da indústria farma- cêutica, com exportações de US$ 351 milhões (25% mais que no ano ante- rior) e importações de U$ 1,8 bilhão (17% mais). A própria Federação Bra- sileira da Indústria Farmacêutica (Fe- brafarma), responsável por esse levan- tamento, reconhece que essa diferença só vai amenizar à medida que se amplia- rem os investimentos em pesquisa e de- senvolvimento.

Mesmo assim, o trabalho continua. No final do ano passado, Patrícia Zani- chelli, da equipe de Franco, obteve as primeiras amostras de macromoléculas chamadas dendrímeros, com 27 estru- turas de rutênio, ligantes e oxido nítrico repetidas, e de sílicas - ou areias - em- bebidas nos doadores e nos captadores de oxido nítrico, cuja distribuição no or- ganismo seria assim mais controlada e dirigida apenas a alguns órgãos do cor- po humano. Com essas areias especiais, desenvolvidas por Fábio Gorzoni Doro e Kleber Queiroz Ferreira, dois alunos de doutorado de Tfouni, pretende-se recobrir superfícies de aço inoxidável e assim aumentar a eficiência dos dispo- sitivos conhecidos como stents, uma es- pécie de mola que mantém as artérias abertas e ajuda a evitar o infarto - cada um custa cerca de US$ 2 mil. Já existem stents recobertos com antibióticos, libe- rados durante uma ou duas semanas, mas não doadores de oxido nítrico de longa duração, como os químicos da USP desejam. "Queremos que esses compostos durem tanto quanto o pró- prio aço dos stents", diz Tfouni. "É mui- to difícil, mas chegando perto já está bom." Ele sabe que um bom aço inoxi- dável dura pelo menos 20 anos. •

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 49

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CIÊNCIA

GEOLOGIA

Guardiãs do

tempo Cavernas revelam como era o clima no hemisfério Sul há 100 mil anos

CARLOS FIORAVANTI

Ivo Karmann entrou no curso de geo- logia da Universidade de São Paulo (USP), em 1977, para estudar em profundidade as cavernas que ado- rava explorar desde os tempos de garoto. Mas naquela época as caver-

nas ainda eram vistas apenas como uma alternativa para o turismo de aventura - e no Brasil pouco in- teressavam do ponto de vista geológico. Karmann insistiu, conquistou a atenção de uns raros professo- res que se dispuseram a orientar suas pesquisas, tor- nou-se ele também professor da USP, formou uma equipe e, quase 30 anos depois, provou que as caver- nas abrigam uma formidável matéria-prima para a geologia, capaz de registrar as mudanças no clima e na vegetação ao longo de milhares de anos.

Após associar uma série de dados colhidos dentro e fora de uma caverna de Santa Catarina e outra de São Paulo, Karmann e seu grupo de alunos, quase todos caverneiros, como também são chamados, concluíram que ao longo dos últimos 116 mil anos houve uma intensa variação no regime de chuvas das regiões Sul e Sudeste do Brasil: os aguaceiros do pas- sado ou, na situação inversa, a maior escassez de chuva se devem principalmente à maior ou menor intensidade da radiação solar - a insolação -, que varia de acordo com a inclinação do eixo de rotação da Terra, em ciclos de cerca de 23 mil anos. Depen- dendo da inclinação do eixo da Terra pode haver mais sombra no hemisfério Norte e maior cobertu- ra solar no hemisfério Sul - ou o contrário.

Essas descobertas sobre o comportamento do clima no passado ajudam a refinar os modelos de si- mulação climática, que vão fornecer previsões mais confiáveis à medida que refletirem o passado com mais precisão. "A insolação de verão está aumen- tando nos últimos 4 mil anos na região Sul, fazen- do com que os verões no litoral de Santa Catarina se tornem gradativamente mais chuvosos", diz Fran- cisco William da Cruz Jr., ex-aluno de mestrado e de doutorado de Karmann e primeiro autor de um es- tudo publicado em março na Nature com esses acha- dos. "É uma tendência natural que deve se manter nos próximos mil anos, sem considerar as interven- ções humanas sobre o clima."

A maior insolação, como esse grupo da USP ve- rificou, intensifica a circulação dos ventos úmidos que chegam do Atlântico, a leste, e alimentam a Flo- resta Amazônica. Chamados de alísios, esses ventos circulam na baixa atmosfera, próximos à superfí- cie, se desviam para o sul ao entrarem na Amazônia e trazem a umidade para as regiões Sudeste e Sul do Brasil. Chegam também ao norte da Argentina e do

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Paraguai, favorecendo a formação de nuvens e de chuva. Em tempos de menor insolação, os alísios se aquietam e a umidade que origina a chuva nas regiões Sul e Sudeste provém principalmente do Atlântico Sul.

Floresta e sertão - O deslocamento da umidade das proximidades do equador fez chover mais também no semi-árido nordestino. "No Nordeste as mudan- ças climáticas e ambientais foram radicais", diz Au- gusto Auler, geólogo do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), co- autor de um artigo sobre o antigo clima do Nordes- te, publicado em dezembro na revista Nature, e pri- meiro autor de outro, divulgado também no final do ano na Journal of Quaternary Science. Esses tra- balhos mostram que a chamada Zona de Conver- gência Intertropical (ZCIT), uma região da atmos- fera carregada de umidade que se desloca no sentido norte-sul sobre o oceano, próximo ao equador, já esteve mais para o sul - mais próxima do Nordeste brasileiro - e trouxe a água que nutriu uma floresta tropical. Depois, quando a ZCIT se continha a nor- te, sem se aproximar tanto do continente, voltava a imperar uma paisagem semelhante à atual. Estudos de outros grupos já haviam levantado os resquícios de antigas matas úmidas no Nordeste, mas faltava mostrar exatamente em que épocas do passado o sertão havia virado floresta.

A última vez que houve por ali uma mata alta, verde e viçosa, tão vasta a ponto de provavelmente unir a Amazônia à Mata Atlântica, foi há cerca de 15 mil anos. Mas antes no interior do Nordeste já ha- viam reinado a seca e a vegetação esparsa, semelhan- te à atual. A floresta, alimentada pelos ventos úmi- dos, vicejou por breves períodos de poucos milhares de anos - há cerca de 39 mil, 48 mil e 60 mil anos, para citar apenas os intervalos mais próximos - que correspondem às fases de chuvas mais intensas e constantes. O período mais longo em que uma flo- resta semidecídua - que perde as folhas por alguns meses do ano - povoou a terra hoje seca do Nordeste durou quase 5 mil anos, de 68 mil a 63 mil atrás, de acordo com os estudos realizados por Auler em con- junto com pesquisadores das universidades de Min- nesota, nos Estados Unidos, de Bristol, na Inglaterra, e de Taiwan, na China. No Brasil, contou com a co- laboração da bióloga Patrícia Cristalli, da Univer- sidade de Mogi das Cruzes e da USP.

Essa equipe percorreu o interior e os arredores de duas cavernas do interior da Bahia, a Toca da Barriguda e a Toca da Boa Vista, a maior do hemis- fério Sul, com 108 quilômetros de extensão. Auler e sua equipe colheram e analisaram as estalagmites das cavernas, como o grupo da USP, mas foram além e estudaram também fósseis de folhas encon- trados em depósitos de calcita - mineral composto de carbonato de cálcio - acumulados a céu aberto. Foi possível assim reconstituir, além das formações

Gota a gota HA 5 ANOS 2.500

Esta estalagmite crescia à medida que recebia água do teto da caverna de Botuverá

(medidas aproximadas em corte da base ao topo)

100 MIL

116 MIL

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 51

Page 52: O parasita do cérebro

vegetais de até 210 mil anos atrás, os animais que vi- viam por ali. Não faltavam exemplares de grande porte, como preguiças e tatus gigantes. Havia tam- bém um macaco, o Caipora bambuiorum, com cerca de 40 quilogramas e o dobro do tamanho do maior macaco brasileiro, o muriqui. A equipe da UFMG que o descreveu em um artigo publicado em 1996 no Proceedings of the National Academy of Science sabia que se tratava de um animal arbóreo, mas não tinha idéia de quando poderia ter vivido. Agora se pode afirmar que o Caipora bambuiorum viveu pro- vavelmente há 15 mil anos, em meio à floresta que mais tarde cederia espaço ao corredor seco de quase 3 mil quilômetros de extensão que separa a Flores- ta Amazônica da Mata Atlântica.

m conjunto, os dois gru- pos de pesquisa confe- rem uma dimensão con- tinental ao estudo de paleoclimas no Brasil, mostrando que as chu-

vas intensas que caíram - e ainda caem - nas regiões Sul e Sudeste podem originar-se da umidade da ba- cia amazônica, transportada por milhares de quilô- metros. Também sugerem que a redução da umida- de na Floresta Amazônica, atualmente causada pelo desmatamento, pode alterar o regime de chuvas na região Sul. Foi o que aconteceu este ano, lembra Pe- dro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, que participou do trabalho conduzido por Kar- mann e Cruz, com pesquisadores da Universidade de Massachusetts e do Centro de Geocronologia de Berkeley, ambos dos Estados Unidos, e do Instituto Geológico, de São Paulo. Neste verão, os ventos úmi- dos da Amazônia não se deslocaram tanto para o sul do equador. Chegaram apenas até Minas Gerais e Bahia, causando chuvas intensas. O Rio Grande do Sul, sem a umidade que normalmente vem da Ama- zônia, padeceu com a seca.

Evidenciou-se também a versatilidade de um dos métodos empregados para chegar a essas con- clusões: a análise da proporção entre os isótopos 180 e lóO, que correspondem às formas mais pesada e mais leve do oxigênio, nos minerais que compõem as estalagmites - as colunas de calcita que crescem a partir do piso em direção ao teto das cavernas. A ra- zão é que a proporção entre as duas formas de oxi- gênio nas estalagmites depende principalmente da composição da água de chuva e pode refletir as mu- danças atmosféricas de até 500 mil anos atrás, como os pesquisadores da USP atestaram em um artigo

recém-aceito na Chemical Geology. A bióloga Marie- Pierre Ledru, especialista em pólens da Universida- de de Montpellier II, da França, usou as informa- ções obtidas pela equipe da USP na caverna de Santana para completar as que ela própria conse- guiu analisando pólens, cujo método de datação pode chegar a no máximo 40 mil anos. Seu objetivo era datar e recompor a antiga vegetação de Colônia, uma depressão circular de quase 4 quilômetros de diâmetro no extremo sul da cidade de São Paulo, re- sultante possivelmente do impacto de um meteori- to ou de um fragmento de cometa. Os resultados do estudo de Marie-Pierre em conjunto com a equipe da USP, publicados neste mês na revista Quaternary Research, indicam que os períodos de expansão de florestas nessa área que lembra a cratera de um vul- cão coincidem aproximadamente com as variações na circulação atmosférica dos últimos 110 mil anos.

Quando a teoria não é suficiente - Mas houve mui- tas pedras no caminho dessas descobertas que con- seguiram relacionar a proporção entre os isótopos de oxigênio nas estalagmites ao longo de milhares de anos com as mudanças na circulação atmosférica global. Karmann, Cruz e Oduvaldo Viana Jr., estu- dante de mestrado de Karmann, começaram em 1999 a visitar uma vez por mês as cavernas de San- tana, no Vale do Ribeira, sudeste do Estado de São Paulo, e de Botuverá, a leste de Santa Catarina. Não iam apenas como apreciadores de cavernas, mas como pesquisadores, equipados para colher a água que goteja do teto e com o passar do tempo forma as estalagmites. Trouxeram também amostras das próprias estalagmites para análise em laboratório.

Após dois anos de trabalho, a equipe formada também pelo geógrafo José Ferrari, do Instituto Geo- lógico de São Paulo, já havia descoberto a idade de duas estalagmites. Uma delas tinha 1,6 metro de comprimento e havia sido retirada de um ponto a 300 metros abaixo da superfície e a 1.500 metros da entrada da caverna de Santana, ao qual se chega per- correndo um rio subterrâneo. A outra, de 70 centí- metros, fora coletada a 110 metros de profundidade e a 300 metros da boca da caverna de Botuverá. Cruz e Warren Sharp, do Centro de Geocronologia de Berkeley (BGC), Estados Unidos, fizeram a datação das estalagmites e concluíram que ambas tinham entre 111 e 116 mil anos. Era um ótimo começo, já que se tratava provavelmente dos registros mais an- tigos obtidos do final do último período de glacia- ção na América do Sul, quando as massas de gelo nos pólos Norte e Sul se expandiram e a linha da costa recuou, como se a maré baixasse bastante - em torno de 100 metros em média.

Feita a datação das estalagmites, o grupo da USP começou a preparar um gráfico sobre a variação, ao longo do tempo, da proporção entre as duas formas de oxigênio acumuladas ao longo do eixo de cres- cimento das estalagmites. Nas regiões tropicais do

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Page 53: O parasita do cérebro

Os animais que saem das cavernas

É possível descobrir as épocas em que choveu mais ou menos intensamente examinando a espessura e a transparência das camadas de calcita de estalagmites como esta, de Botuverá. A análise da composição dos minerais, a datação das estalagmites e o estudo de fósseis vegetais e animais permitem reconstituir o clima, a flora e a fauna de uma região no passado. Preguiças-gigantes como esta ao lado viveram em meio às florestas que há milhares de anos cobriram o atual sertão do Nordeste.

s

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 53

Page 54: O parasita do cérebro

planeta a variação entre elas costuma indicar as épo- cas em que choveu mais ou menos, porque a forma mais pesada, lsO, se perde com as primeiras chuvas, deixando a água cada vez com mais '"O. A curva da proporção entre as duas formas de oxigênio acom- panhava a variação da insolação, mas a única teoria então à mão - segundo a qual a proporção entre "O e "O deveria responder diretamente ao volume de chuva - não explicava os resultados.

ií ^\ icamos no escuro", conta

■ Karmann, lembrando-se das vezes em que esteve nas cavernas e de repente

__^A__ acabava a carga de carbu- reto que gerava a luz para

iluminar o caminho. Cogitaram que poderia haver mais de uma origem da água da chuva - o problema é que não tinham como provar. Mas estavam certos. "O maior mérito desse trabalho é justamente mos- trar que a umidade do Sul e Sudeste pode ter origens bastante diferentes", comenta Pedro Dias, professor do IAG da USP a quem os geólogos pediram ajuda após sofrerem um ano em silêncio. E era relativamente simples. De acordo com Dias e sua equipe do IAG, as intensas chuvas do passado - e as de hoje também - nas regiões Sul e Sudeste resultam da umidade que chega da Amazônia ou do Atlântico Sul. Atiçados pela insolação, os ventos alísios provenientes da Amazônia ajudam a adensar com mais umidade a região da atmosfera conhecida como Zo- na de Convergência do Atlânti- co Sul (ZCAS ou SACZ na sigla em inglês). Alimentada também pela umidade que recebe do próprio oceano ao sul do equador, a ZCAS é um vasto conjunto de nuvens, às vezes com até 5 mil quilômetros de extensão, orientado no sentido noroeste-sudeste, que cruza o litoral brasileiro entre 18 e 25 graus de latitude sul.

Quando a insolação é maior, há mais calor e umidade dos trópicos. A ZCAS se intensifica e se desloca mais em direção ao sul, fazendo chover mais nessa região. É quando predo- mina a forma mais leve de oxi- gênio, o 160 - a mais pesada fi- cou para trás com a chuva que

OS PROJETOS

Registros paleoambientais do Quaternário em sistemas cársticos

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADOR Ivo KARMANN - IG/USP

INVESTIMENTO R$ 103.316,08 (FAPESP)

0 Quaternário tardio em áreas continentais

MODALIDADE Bolsa de Pós-doutorado

COORDENADOR AUGUSTO AULER - IGC/UFMG

INVESTIMENTO R$45.000,00 (CNPq)

caiu no caminho. Na situação inversa, quando a in- solação é menor no hemisfério Sul (e maior no hemisfério Norte), diminuem o calor e os ventos alísios - e quase não chega umidade da Amazônia. "Quando chove menos no verão", comenta Andréa Cardoso, da equipe do IAG, "a ZCAS se enfraquece ou permanece mais ao norte". A umidade que che- ga à região Sul e Sudeste provém então de uma fonte mais próxima, o Atlântico Sul. Trazida pelos ventos que sopram do oceano para o continente e pelas massas de ar polares, essa umidade resulta em um clima mais seco que o observado nos invernos atuais na região Sul. É quando predomina o oxigê- nio mais pesado, l80, que não teve tempo de preci- pitar, já que a distância até o continente é relativa- mente curta.

Ilhas de verde - Esse vaivém do ar úmido da atmos- fera para o sul do equador explica também como cresceram as florestas úmidas no território hoje ocupado pela Caatinga, de acordo com os estudos coordenados por Auler. No semi-árido nordestino a intensificação da umidade promove a expansão das matas que habitam os terrenos mais altos e das flo- restas do Cerrado, um ambiente acostumado a va- riações climáticas intensas. Quando a umidade se vai, o solo seca e a floresta se retrai. Atualmente ainda existem algumas ilhas de vegetação verde e densa - os chamados brejos - em meio à tórrida Caatinga. Crescem ao pé de serras, como nas cha- padas de Borborema, Araripe e Ibiapaba, em alti- tudes que variam de 500 a mil metros, favorecidas pelo clima atual.

"Esses trabalhos me abriram os olhos para o va- lor das informações retiradas das cavernas", reconhece

Pedro Dias, um matemático de formação que enveredou pelo estudo do clima há três décadas - esteve poucas vezes em ca- vernas e, diz ele, não gostou muito. Certamente ainda sai- rão mais coisas. Meses atrás, en- quanto Franscisco Cruz exami- nava estalagmites de outras cavernas do Brasil na Universi- dade de Massachusetts, em Am- herst, cidade próxima a Nova York, Ivo Karmann suava a ca- misa no laboratório trabalhan- do com uma estalagmite de um metro e meio de comprimen- to. "Acho que esta vai chegar nos 150 mil anos", comentou, preparando-se para serrar, abrir e furar mais uma fatia da colu- na de rocha extraída da caver- na de Santana, que ainda não foi estudada tanto quanto a de Santa Catarina. •

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CIÊNCIA

FÍSICA

Golpe de vista Equações simples explicam a localização de objetos que parecem surgir do nada

FRANCISCO BICUDO

ítimas preferenciais dos xingamentos de

torcedores de futebol, principalmente ao mar-

carem os impedimentos, quando o atacante fica

cara a cara com o goleiro, os bandeiri- nhas ficariam agradecidos caso uma ilusão visual chamada flash-lag fosse mais conhecida. Esse fenômeno, que po- deria ser traduzido como aquilo que é visto com atraso, manifesta-se em situa- ções na qual um objeto em movimento é surpreendido em sua trajetória por um segundo elemento, que surge mui- to próximo e de modo repentino. A cena que se forma dá a impressão de existir uma distância, ainda que peque- na, entre os dois. O que aparece de sur- presa parece estar atrás do primeiro, mas na realidade os dois estão empa- relhados, lado a lado.

Esse poderia ser um argumento a ser usado pelos bandeirinhas para jus- tificar alguns de seus erros. Em campo, lutando para acompanhar os lances em geral muito rápidos, o auxiliar do juiz identifica a presença do último zagueiro adversário só depois de olhar fixamente para o deslocamento do atacante e de se preocupar com o momento do passe fi- nal. Fica com a impressão de que o ata- cante estaria avançado, à frente do de- fensor, e levanta a bandeira, marcando o impedimento. Mas a jogada deveria

ter prosseguido, porque os dois jogado- res estavam na mesma linha - não ha- via irregularidade no lance. "O bandei- rinha pode ser facilmente traído pela ilusão visual", assegura o neurofísio- logista Marcus Vinícius Chrysóstomo Baldo, formado em física e em medici- na, pesquisador do Instituto de Ciên- cias Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP).

Baldo e Nestor Felipe Caticha Alfon- so, do Instituto de Física da USP, partin-

A bandeirinha Ana Paula da Silva Oliveira em um Corinthians x São Paulo: flash-lag sempre em campo

do do que já se sabia sobre o funciona- mento dos neurônios, criaram um mo- delo matemático que ajuda a explicar esse atraso na percepção de objetos. Os dois físicos aplicam às situações em que o flash-lag aparece uma abordagem matemática clássica, já usada para estu- dar a memória e o aprendizado, conhe- cida como redes neurais artificiais. De acordo com esse enfoque, as regiões do sistema nervoso responsáveis pela visão são divididas em camadas formadas por filas de neurônios que se comunicam si- multaneamente com outros neurônios da camada seguinte, mas não apenas de uma maneira direta: cada célula ner- vosa pode interagir com as outras tam- bém de modo divergente e convergen- te, usando, portanto, rotas diagonais. Essa é a razão pela qual as informações levam mais tempo para fluir pela rede e, em conseqüência, demora a se for- mar a imagem do objeto que aparece de repente - eis o flash-lag. "Até agora, a maioria das explicações eram concei- tuais; não existiam modelos matemáti- cos com esse realismo biológico", diz Caticha. "Temos agora um instrumen- to mais preciso e realista, que pode ser testado experimentalmente."

O modelo que criaram incorpora explicações físicas e fisiológicas, colo- cando em linguagem numérica as co- nexões entre os neurônios, os estímulos elétricos que permitem essa comunica-

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Page 56: O parasita do cérebro

ção e a própria estrutura de circuitos neuronais. Não há fórmulas enigmáti- cas, mas essencialmente apenas somas e multiplicações: o detalhe é que são de- zenas ou mesmo centenas de equações resolvidas ao mesmo tempo por um programa de computador. Cada equa- ção expressa duas variáveis ma- temáticas: a atividade elétrica de cada neurônio e a soma das in- fluências que cada um deles re- cebe dos outros com quem se relaciona.

O conhecimento consolida- do sobre o funcionamento da visão foi o ponto de partida. En- xergamos porque a luz, ao pe- netrar nos olhos, estimula cé- lulas fotossensíveis, localizadas na retina, que recobre a parede posterior interna do globo ocular e é composta por um complexo conjunto de camadas neuronais. É na retina que luzes e sombras transformam-se em im- pulsos nervosos, seguindo agora para um segundo conjunto de circuitos neu- rais, o tálamo, uma espécie de filtro do sistema nervoso que direciona a infor- mação para uma terceira estação de processamento, o córtex cerebral. E é ali que se dá o fascinante processo de cons- trução da percepção visual, que nos permite reconhecer um jogador em mo- vimento próximo ao gol, uma silenciosa e colorida serpente na floresta ou um rosto familiar em meio à multidão. O modelo dos físicos incorpora justamen- te essa arquitetura em camadas que ca- racteriza o sistema nervoso, embora, em seu estágio atual, não haja um com- promisso em se identificarem as ca- madas do modelo como sendo as com- plexas camadas de células corticais ou mesmo as camadas neuronais já pre- sentes na retina.

Como em um teatro - Baldo compara cada camada a uma platéia de um tea- tro onde os lugares são numerados de acordo com as fileiras, representadas por letras, e as colunas, identificadas por números. Dessa forma, um neurô- nio localizado na primeira camada, lu- gar A5, interage com parceiros que ocupam, por exemplo, os assentos B4, B5 e B6 na segunda camada, que po- dem, por sua vez, dialogar com os com- panheiros C3 a C7, na terceira camada. Além disso, os impulsos elétricos troca-

dos entre eles - por meio de sinapses, também simuladas pelo computador - podem ser de ativação, quando o neu- rônio recebe uma ordem para fazer algo, ou de inibição, que corresponde a uma ordem para não fazer nada - como se fossem sinais positivos e negativos.

e um neurônio recebe sinais provenientes de cinco outros neurônios, por exemplo, três desses sinais poderiam ser de ativação e dois de inibi-

ção. Se o resultado dos sinais for maior que um valor previamente estabelecido pelo programa, o neurônio receptor dis- para um novo impulso, que será trans- mitido à camada seguinte. Se a soma for inferior a esse valor, conhecido como li- miar, uma propriedade fisiológica real, o neurônio permanecerá inativo, sem pas- sar a informação adiante. É essa comu- nicação baseada em convergências e di- vergências, somada ao tempo que leva para se completar, que explica o fenô- meno conhecido como flash-lag.

Baldo e Caticha acreditam que o modelo aplicado ao flash-lag poderá au- xiliar na compreensão de outras ilusões visuais, como o efeito Frõhlich, quando um objeto em movimento aparece por detrás de outro, estático, e impede a for- mação dos detalhes do início da trajetó- ria. Imagine uma onça surgindo detrás de uma árvore: muito provavelmente não será possível identificar sua boca e

0 PROJETO

Dinâmica temporal da percepção visual e sua modulação sensorial, atencional e comportamental

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

COORDENADOR

MARCUS VINíCIUS CHRYSóSTOMO BALDO

INVESTIMENTO

R$ 76.597,50 (FAPESP)

focinho, que despontam primeiro de- trás da árvore, e a imagem da onça será construída a partir da metade direita ou esquerda do rosto dela. A melhor com- preensão sobre as diferentes ilusões vi- suais representa também a possibilidade de conhecer com mais detalhes o fun- cionamento geral da própria visão. Bal- do não descarta a hipótese de qualquer imagem formada, mesmo as chamadas normais, que em tese não sofreriam in- terferências, poder ser considerada uma ilusão, pois jamais será a exata repre- sentação da realidade. "Creio que todos nós enxergamos a mesma pessoa ou o mesmo cenário com diferenças de de- talhes, nem sempre sutis", diz ele. "A vi- são é sempre uma leitura interpretativa do mundo e não há precisão absoluta."

Imagens com atraso -O flash-lag come- çou a chamar a atenção em 1958, com um artigo do físico Donald MacKay, da Universidade de Keele, Inglaterra, pu- blicado na Nature. Nesse trabalho, Mac- Kay descrevia um fenômeno que per- maneceria muitos anos sem explicação: quando ele chacoalhava uma lâmpada e a iluminava com uma outra fonte de luz estroboscópica - que acende e apaga em intervalos regulares, em flashes seguidos -, tinha a impressão de ver o filamento à frente, como se estivesse fora da lâmpa- da. Só em 1994 o psicólogo indiano Romi Nijhawan, atualmente na Univer- sidade de Sussex, também na Inglater- ra, ofereceu a primeira explicação sobre o fenômeno, ao afirmar que todos os objetos são vistos com atraso.

Assim, um carro que vem pela ave- nida pode já estar um metro adiante quando o cérebro consegue processar a imagem. Segundo Nijhawan, a evolu- ção do cérebro humano teria desenvol- vido um mecanismo de eliminar auto- maticamente a defasagem de espaço e o atraso na percepção da imagem, mas somente quando a trajetória já é co- nhecida. Se houver uma surpresa o cé- rebro não será capaz de fazer esses ajus- tes - e o flash-lag se manifestará. Por isso é que o risco de atropelamento é maior quando somos surpreendidos por um automóvel que parece ter sur- gido repentinamente na esquina.

Em 1995, Baldo e o físico norte- americano Stanley Klein, da Universi- dade da Califórnia, Estados Unidos, publicaram também na Nature outro

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Page 57: O parasita do cérebro

Risco de atropelamento: o cérebro demora a formar a imagem do carro que pode já estar muito próximo

estudo sobre oflash-lag, mostrando que esse tipo de ilusão visual poderia decor- rer de desvios da atenção. A idéia era simples: como a atenção é dedicada ao objeto em movimento, leva-se um tem- po maior para perceber e determinar a posição de qualquer novo elemento que apareça no cenário como um flash e chame a atenção para si.

Neurônios em ponto morto - Argumen- tos bastante semelhantes foram utiliza- dos três anos mais tarde, em 1998, por dois grupos independentes de pesqui- sadores: um chefiado pelo professor de optometria norte-americano Harold Bedell, hoje na Universidade de Hous- ton, Estados Unidos; o outro coorde- nado por dois psicólogos, David Whit- ney, atualmente na Universidade de Western Ontário, no Canadá, e Ikuya Murakami, do NTT Communication Science Laboratories, no Japão. As duas equipes trabalhavam com a perspectiva

de tempos diferentes de percepção dos objetos - ou latências. Afirmavam que o cérebro, já acostumado com a cena previamente identificada, precisava passar por uma espécie de aquecimen- to para retomar sua atividade neural e registrar um novo objeto. É como se os neurônios já estivessem em posição de descanso, em ponto morto, e, graças ao estímulo repentino, se vissem obrigados a passar novamente pela primeira, se- gunda e terceira marchas até recuperar a velocidade normal. O modelo dos dois físicos unifica essas teorias, mostrando que as propostas antes discrepantes ou mesmo contraditórias são, na verdade, facetas de um mesmo fenômeno olha- do por diferentes ângulos.

Agora, um aviso. Antes de apresenta- rem o modelo matemático que criaram e será publicado em breve na revista Vi- sion Research, Baldo e Caticha costu- mam convidar para um teste quem os visita pela primeira vez. Pedem que o vi-

sitante se sente diante de um computa- dor ligado e apagam a luz da sala, cheia de arquivos e de papéis espalhados so- bre a mesa. Basta um clique no mouse e uma pequena barra aparece na tela, movendo-se sempre na horizontal, em linha reta. Quando atinge um ponto fixo, predeterminado e assinalado, um flash luminoso - uma segunda barra - pisca na tela. A tarefa é dizer aonde esse segundo ponto havia aparecido. Na maior parte das vezes, a resposta deste repórter foi: "Antes da outra". Os pes- quisadores sorriem satisfeitos, diante de mais uma vítima do efeito flash- lag. na verdade, as duas barras estavam sempre alinhadas. As explicações que os dois físicos oferecem em seguida es- clarecem por que muitas vezes somos traídos pela visão e permitem encarar com mais solidariedade as dificulda- des enfrentadas pelos bandeirinhas num campo de futebol, sob o olhar de milhares de torcedores. •

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 -57

Page 58: O parasita do cérebro

Biblioteca de

Revistas Científicas

disponível na internet

www.scielo.org

Iniciada com a publicação eletrônica de dez títulos, atualmente a coleção SciELO Brasil é constituída por 134 títulos de periódicos científicos e recebeu mais de 1,6 milhão de acessos em março de 2005. Os periódicos indexados encontram-se distribuídos da seguinte maneira: 16% são da área de ciências agrárias, 8% de biológicas, 29% de ciências da saúde, 9% de ciências exatas e da terra, 23% de humanas, 7% de ciências sociais aplicadas e 8% de engenharia.

■ Educação

Depressão escolar

Avaliar a relação entre sintomas de depressão, rendi- mento escolar e es- tratégias de apren- dizagem entre alunos do ensi- no fundamental é o objetivo do ar- tigo "Sintomas depressivos, es- tratégias de apren- dizagem e rendi- mento escolar de alunos do ensino fundamental", de Miriam Cruvinel e Evely Boruchovitch, da Faculdade de Educação da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp). As autoras decidiram aprofundar o tema em razão do grande aumento da incidência de sintomas depressivos e dos aspectos negativos do pro- blema na aprendizagem. "Durante muito tempo, pensou-se que a depressão em crianças não existia ou seria muito rara", dizem as pesquisadoras. "A partir da década de 1960, es- tudos foram realizados e atualmente não há dúvida quanto à ocorrência de depressão na in- fância." Participaram da pesquisa 169 alunos de 3a, 4a e 5a séries de uma escola pública de Cam- pinas. Os estudantes eram não-repetentes, com idade variando de 8 a 15 anos. As informações adquiridas foram analisadas quantitativamente, utilizando-se os procedimentos da estatística descritiva e inferencial. Fatores motivacionais e emocionais como auto-estima, ansiedade e sin- tomas depressivos podem interferir na apren- dizagem. O levantamento detectou uma cor- relação negativa entre a presença de sintomas de depressão e o uso de estratégias de aprendi- zagem. "Quanto maior o número de sintomas de depressão, menor o relato de uso de estraté- gias de aprendizagem pelos alunos."

PSICOLOGIA EM ESTUDO - VOL. 9 - GÁ - SET./DEZ. 2004

N° 3 - MARIN-

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si4i3-

73722004000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Política

Autonomia autoritária

O estudo "Superior Tribunal Militar (STM): entre o autoritarismo e a democracia" procurou mostrar como, decorridos quase 20 anos do fim do regime autoritário, os militares conseguem exercer autonomia política no aparelho de Es- tado. "A manutenção de graus de autonomia política pelos militares, variando de intensida- de de acordo com cada país, é o preço pago pe- los democratas para assegurar a concordância castrense em devolver o governo aos civis", afir- mam os autores do estudo Jorge Zaverucha e Hugo Cavalcanti Melo Filho, pesquisadores do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Porém essa autonomia deve ser temporária caso se almeje avançar rumo a uma democracia plena. O artigo defende que, quan- to mais autoritário ou menos democrático for o país, maior a abrangência da jurisdição militar. "A Justiça Militar, nesses casos, é usada como ins- trumento autoritário de controle social da popu- lação civil." O STM costuma extrapolar os limi- tes de ação de um órgão do Judiciário, restritos à resolução de conflitos, para ser um instrumento de controle da vida social. "Em matéria criminal o STM constitui-se em braço jurídico dos inte- resses institucionais das Forças Armadas." No artigo também se defende a idéia de que o Bra- sil se situa em uma zona política cinzenta em que não se avança no sentido de uma democra- cia sólida nem se faz um retorno à ditadura. "O STM é um típico exemplo desse hibridismo ins- titucional por possuir tanto características de- mocráticas como autoritárias", ressaltam.

DADOS - VOL. 47 - N° 4 - Rio DE JANEIRO - 2004

www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=Soon-

525820040oo40ooo5&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Toxicologia

Orla contaminada

O artigo "Contaminação de canteiros da orla marítima do Município de Praia Grande (SP) por ovos de Ancylostoma e Toxocara em fezes de

58 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP111

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cães" avaliou o nível de infecção de algumas regiões do litoral paulista. O estudo, assinado por João Manoel de Castro, da Universidade Paulista, Sérgio Vieira dos San- tos e Nabor Alves Monteiro, ambos da Universidade Guarulhos, procura enfocar um importante problema de saúde pública. A larva migrans visceral e a larva mi- gram cutânea, causadas por Toxocara e Ancylostoma, podem transmitir zoonoses. "Os turistas costumam via- jar com seus cães e levá-los para passear no calçadão da orla marítima, onde os animais utilizam os canteiros para defecar e urinar, sem que os proprietários reco- lham as fezes", relatam os autores. "Adultos e crianças costumam utilizar os canteiros do calçadão para lim- par os pés de areia ou mesmo sentar ou deitar para descansar", alerta. O estudo analisou 257 amostras de fezes de cães provenientes do calçadão da orla maríti- ma de Praia Grande, no litoral paulista. Do total das amostras analisadas, independentemente do local de coleta e da estação do ano, 45,9% estavam contaminadas por ovos de Ancylostoma e 1,2% com ovos de Toxocara. "Nos últimos anos, contamos no Brasil com alguns le- vantamentos isolados sobre o grau de contaminação com ovos de Ancylostoma e Toxocara em áreas públicas. Todos demonstram potencial de transmissão de doenças à população", afirmam os pesquisadores. A alta freqüên- cia de ocorrência de amostras de fezes positivas para Ancylostoma vai ao encontro de outros estudos sobre a prevalência de parasitas em fezes de cães em diversas re- giões do país.

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA TROPICAL

- VOL. 38 - N° 2 - UBERABA - MAR./ABR. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soo37-

8682200500020ooi7&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Alimentos

Processamento em excesso

Quatro marcas de goiaba em calda foram submeti- das a análises físico-químicas, de cor e textura instru- mentais, além de teste sensorial de preferência. Todas essas análises tinham como objetivo avaliar diferenças de qualidade entre os produtos. Os resultados dos tes- tes estão no artigo "Avaliação das propriedades físicas, químicas e sensorial de preferência de goiabas em calda industrializadas", escrito por A. C. K. Sato, E. J. Sanjinez- Argandona e R. L. Cunha, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Análises semelhantes foram realizadas em uma goiaba in natura madura, a fim de avaliar os possíveis efeitos do processamento na quali- dade do produto. "De maneira geral, observaram-se grandes diferenças entre os produtos, e muitas vezes entre os frutos de um mesmo fabricante", dizem os autores. As análises químicas mostraram que o teor de açúcares da maior parte dos produtos está entre 22% e 30%, com exceção de uma amostra que revelou um va- lor ao redor de 40%. De acordo com a análise senso- rial, a amostra com maior teor de açúcares foi a mais pre- ferida em relação à doçura. A luminosidade das goiabas

em calda também é maior que da fruta in natura. Em al- guns casos foi visível o efeito de processamentos mais drásticos que levaram à perda da estrutura celular. "As propriedades mecânicas que estão associadas com a tex- tura da fruta mostraram um comportamento diferente. Em geral, as frutas processadas eram mais duras, elásti- cas e firmes que a fruta in natura, o que pode estar asso- ciado a alterações na estrutura celular da goiaba."

CIêNCIA E TECNOLOGIA DE ALIMENTOS - VOL. 24 - N° 4 - CAMPINAS - OUT./DEZ. - 2004

www.scielo.br/scie Io. php?scri pt=sci_arttext&pid=Soioi- 2o6i20040004000i2&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Bioquímica

Transfusões seguras

O trabalho "Caracteriza- ção, produção e indicação clínica dos principais hemo- componentes" se concen- trou em fazer uma revisão dos procedimentos de cole- ta, produção, armazenamen- to e indicação clínica dos principais fatores que envol- vem uma transfusão de sangue. A farmacêutica bio- química Fernanda Razouk, do Laboratório Oscar Pe- reira, em Ponta Grossa (PR), e Edna Reiche, professora de imunologia clínica da Universidade Estadual de Londrina, acreditam que a prática da transfusão de sangue é uma ciência que cresce rapidamente, modifi- ca-se continuamente e apresenta uma grande perspecti- va de desenvolvimento futuro. "Recentes avanços na se- gurança e qualidade do sangue e o aumento dos custos associados com a terapia transfusional têm levado a uma reavaliação da prática desta área da medicina", di- zem. Os pesquisadores defendem o aperfeiçoamento das técnicas nos serviços de hemoterapia, "pois o fra- cionamento do sangue coletado se faz necessário, uma vez que cada unidade doada pode beneficiar diversos pacientes e permitir que sejam transfundidas grandes quantidades de um determinado componente que o paciente necessite". De acordo com as pesquisadoras, há perspectivas de mudanças na terapia transfusional nos próximos anos. "O maior foco será no aperfeiçoa- mento da segurança, havendo aumento de produtos manufaturados, desenvolvimento de produtos acelula- res, atenuação microbiana e proteínas recombinantes do plasma, que poderão substituir produtos derivados plasmáticos em poucas décadas."

REVISTA BRASILEIRA DE HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA - VOL. 26 - N° 2 - SãO JOSé DO RIO PRETO - 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si5i6-

848420040002000ii&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 59

Page 60: O parasita do cérebro

I TECNOLOGIA

■ Motor trabalha com gotas de metal

Um pequeníssimo motor elé- trico que leva o nome de os- cilador nanoeletromecânico foi desenvolvido por pesqui- sadores da Universidade da Califórnia e do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, sob a coordenação de Alex Zettl. Ele pode funcionar com até 20 microwatts de potência. O aparelho baseia-se no mo- vimento de gotas de metal lí- quido (índio e rádio), uma grande e outra pequena, que ficam sobre um nanotubo de carbono. Uma corrente elé- trica transmitida através do nanotubo permite a movi- mentação da gota grande pa-

Sensor mais eficiente

Um novo método de produ- ção de películas de políme- ros condutores de energia desenvolvido por pesquisa- dores do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na sigla em inglês) dos Estados Unidos vai ser- vir para a produção de sen- sores de gases mais precisos e baratos. Na forma de uma

esponja, esse polímero cap- tura de forma mais eficiente as moléculas de gases. Cha- mado de polianilina, ele é uma promessa para aplica- ções em microeletrônica de- vido à sua capacidade de ser um bom condutor, além de flexível e fácil de ser sinte- tizado. Os testes com o no- vo sensor já demonstraram

sua capacidade de detectar diferenças entre metanol e vapor d'água. Outros expe- rimentos serão necessários antes de o polímero ser usa- do para detectar gases tóxi- cos. Um dos testes é feito com microaquecedores que possuem resistência elétrica e são também usados para detectar gases.

ra a pequena. Eventualmente, a gota pequena cresce tanto que ela pode tocar a grande. A energia gerada é estocada na gota pequena em forma de tensão superficial. Em artigo

publicado na revista Applied Physics Letters, em 18 de mar- ço, os autores informam que a aplicação do novo oscilador é a locomoção de objetos em microescala, chamados de sis-

Representação do movimento das gotas que geram energia para mover objetos em microescala

tema microeletromecânico (Mems), usados na indústria eletroeletrônica, com a com- binação de boa velocidade, simplicidade e operando em baixa voltagem. •

■ Nanotubos extraem hidrogênio da água

Utilizar a luz do sol para que- brar moléculas de água com o objetivo de produzir hidro- gênio, usando equipamentos em âmbito nanométrico, é a meta de um grupo de pesqui-

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sadores dos Laboratórios Sandia, dos Estados Unidos. A chave para construir nano- dispositivos que quebram moléculas de água está na descoberta de Zhongchun Wang, um dos membros da equipe de pesquisa. Ele de- senvolveu nanotubos com- postos inteiramente de porfi- rina, moléculas relacionadas à clorofila, a parte ativa das proteínas fotossintéticas. Ati- vados pela luz, esses nano- tubos podem ser moldados para terem minúsculos depó- sitos de platina e de outros metais, tanto do lado de fora como dentro do tubo. Com essas características, esses na-

Nanotubo de porfirina: cobertura de platina

notubos se transformam no coração do dispositivo, que pode quebrar a água em oxi- gênio e hidrogênio. •

■ Plástico inteligente muda forma com a luz

Imagine uma flor que se abre quando recebe a luz do sol. Em um trabalho que imita es- sa sensibilidade, engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos

Estados Unidos, e pesquisa- dores do Instituto de Tecno- logia e Desenvolvimento de Equipamentos Médicos, da Alemanha, criaram o primei- ro plástico que pode ser de- formado e fixado tempora- riamente em uma forma por meio de um foco luminoso. Esses materiais programáveis trocam de forma quando atingidos por certa luz, em determinado comprimento de onda, e voltam à forma original quando atingidos pela luz em outro compri- mento de onda. A descoberta, relatada pela Nature, na edi- ção de 14 de abril, poderá ter potencial de aplicação em vá- rios campos, incluindo cirur- gias minimamente invasivas. Nesse caso, por exemplo, um médico poderá colocar um fio de plástico dentro do cor- po através de uma pequena incisão. Quando ativado por meio de uma sonda de fibra óptica, este fino fio poderá se transformar em um disposi- tivo com formato de saca-ro- lha para manter as veias aber- tas. Plásticos com "memória de forma" - aqueles que mu- dam a forma em resposta a um aumento na temperatura - são bem conhecidos. Em 2001, Robert Langer, profes- sor do MIT, e Andreas Len- dlein, ex-pesquisador visitan- te do MIT, apresentaram uma primeira versão desse material biodegradável na Proceedings of the National Academy of Sciences. Eles também são autores do presente estudo em parceria com os alemães. "Agora, em vez do calor, nós podemos induzir o efeito me- mória de forma em políme- ros com luz", disse Lendlein. A chave do trabalho é o inter- ruptor molecular, ou um gru- po molecular fotossensível que é enxertado dentro de uma rede polimérica. •

BRASIL

Linha de montagem em sintonia com a arte

Instalação interage com o movimento e a voz do visitante

Fundir arte e tecnologia. Essa é a proposta do projeto Op_Era Sonic Dimension, criado pelas artistas plásticas brasileiras Daniela Kutschat e Rejane Cantoni e exposto desde o final de abril no Beall Center for Art Technology, uma mostra de tecnologia di- gital apresentada pela Uni- versidade da Califórnia, em Irvine, nos Estados Unidos. O Sonic Dimension é uma ins- talação interativa concebida como um instrumento musi- cal. Ele tem a forma de um cu- bo preto e aberto, preenchido por centenas de linhas bran- cas em cada parede, parecidas com as cordas de um violino. Cada linha funciona como uma corda afinada em deter- minada freqüência. Ao entrar na sala, o visitante é examina- do em detalhes por sensíveis microfones e 72 sensores ele- trônicos ligados a um Con- trolador Lógico Programável (CLP), da empresa Atos Auto-

mação, e por meio dele a com- putadores. Nas linhas de mon- tagem de fábricas, o CLP é utilizado para controlar má- quinas. Na instalação, ele mo- nitora tudo o que ocorre na sala. "Quando o visitante in- terage com as linhas da pro- jeção, necessariamente ele interrompe uma ou mais fo- tocélulas. Ao interromper uma fotocélula, esta informação é levada ao microcomputador, que produz as saídas sonoras e visuais do projeto", relata Luciano de Oliveira, diretor de Tecnologia e Marketing da Atos Automação. Qualquer som ou movimento feito pelo visitante é "entendido" pela sa- la. A sala responde, em tem- po real, a qualquer solicita- ção, fazendo oscilar as linhas correspondentes à freqüência de voz ou de ruído, ou ainda à posição do visitante. Na prá- tica, a sala responde com mú- sica à presença humana em seu interior. •

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sadores dos Laboratórios Sandia, dos Estados Unidos. A chave para construir nano- dispositivos que quebram moléculas de água está na descoberta de Zhongchun Wang, um dos membros da equipe de pesquisa. Ele de- senvolveu nanotubos com- postos inteiramente de porfi- rina, moléculas relacionadas à clorofila, a parte ativa das proteínas fotossintéticas. Ati- vados pela luz, esses nano- tubos podem ser moldados para terem minúsculos depó- sitos de platina e de outros metais, tanto do lado de fora como dentro do tubo. Com essas características, esses na-

Nanotubo de porfirina: cobertura de platina

notubos se transformam no coração do dispositivo, que pode quebrar a água em oxi- gênio e hidrogênio. •

■ Plástico inteligente muda forma com a luz

Imagine uma flor que se abre quando recebe a luz do sol. Em um trabalho que imita es- sa sensibilidade, engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos

Estados Unidos, e pesquisa- dores do Instituto de Tecno- logia e Desenvolvimento de Equipamentos Médicos, da Alemanha, criaram o primei- ro plástico que pode ser de- formado e fixado tempora- riamente em uma forma por meio de um foco luminoso. Esses materiais programáveis trocam de forma quando atingidos por certa luz, em determinado comprimento de onda, e voltam à forma original quando atingidos pela luz em outro compri- mento de onda. A descoberta, relatada pela Nature, na edi- ção de 14 de abril, poderá ter potencial de aplicação em vá- rios campos, incluindo cirur- gias minimamente invasivas. Nesse caso, por exemplo, um médico poderá colocar um fio de plástico dentro do cor- po através de uma pequena incisão. Quando ativado por meio de uma sonda de fibra óptica, este fino fio poderá se transformar em um disposi- tivo com formato de saca-ro- lha para manter as veias aber- tas. Plásticos com "memória de forma" - aqueles que mu- dam a forma em resposta a um aumento na temperatura - são bem conhecidos. Em 2001, Robert Langer, profes- sor do MIT, e Andreas Len- dlein, ex-pesquisador visitan- te do MIT, apresentaram uma primeira versão desse material biodegradável na Proceedings of the National Academy of Sciences. Eles também são autores do presente estudo em parceria com os alemães. "Agora, em vez do calor, nós podemos induzir o efeito me- mória de forma em políme- ros com luz", disse Lendlein. A chave do trabalho é o inter- ruptor molecular, ou um gru- po molecular fotossensível que é enxertado dentro de uma rede polimérica. •

BRASIL

Linha de montagem em sintonia com a arte

Instalação interage com o movimento e a voz do visitante

Fundir arte e tecnologia. Essa é a proposta do projeto Op_Era Sonic Dimension, criado pelas artistas plásticas brasileiras Daniela Kutschat e Rejane Cantoni e exposto desde o final de abril no Beall Center for Art Technology, uma mostra de tecnologia di- gital apresentada pela Uni- versidade da Califórnia, em Irvine, nos Estados Unidos. O Sonic Dimension é uma ins- talação interativa concebida como um instrumento musi- cal. Ele tem a forma de um cu- bo preto e aberto, preenchido por centenas de linhas bran- cas em cada parede, parecidas com as cordas de um violino. Cada linha funciona como uma corda afinada em deter- minada freqüência. Ao entrar na sala, o visitante é examina- do em detalhes por sensíveis microfones e 72 sensores ele- trônicos ligados a um Con- trolador Lógico Programável (CLP), da empresa Atos Auto-

mação, e por meio dele a com- putadores. Nas linhas de mon- tagem de fábricas, o CLP é utilizado para controlar má- quinas. Na instalação, ele mo- nitora tudo o que ocorre na sala. "Quando o visitante in- terage com as linhas da pro- jeção, necessariamente ele interrompe uma ou mais fo- tocélulas. Ao interromper uma fotocélula, esta informação é levada ao microcomputador, que produz as saídas sonoras e visuais do projeto", relata Luciano de Oliveira, diretor de Tecnologia e Marketing da Atos Automação. Qualquer som ou movimento feito pelo visitante é "entendido" pela sa- la. A sala responde, em tem- po real, a qualquer solicita- ção, fazendo oscilar as linhas correspondentes à freqüência de voz ou de ruído, ou ainda à posição do visitante. Na prá- tica, a sala responde com mú- sica à presença humana em seu interior. •

PESQUISA FAPESP111 ■ MAIO DE 2005 ■ 61

Page 63: O parasita do cérebro

LINHA DE PRODUçãO BRASIL

Cadeira para medir a pressão Uma cadeira desenvolvida especialmente para que o próprio paciente meça sua pressão arterial foi paten- teada pelo nefrologista Dé- cio Mion Júnior, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em hi- pertensão arterial, o médico aceitou o desafio proposto em 2001 a ele pelo então se- cretário de Saúde do Estado de São Paulo, José da Silva Guedes, de criar um "detec- tor de hipertensão" para ser instalado nas unidades bá- sicas de saúde. "A principal causa de óbito no nosso país é a doença cardiovas- cular representada por der- rame e infarto, que tem co- mo origem a hipertensão

arterial", diz Mion. Enge- nheiros do Hospital das Clí- nicas de São Paulo partici-

param do desenvolvimento de um protótipo da cadeira. Ela cumpriu todos os requi-

sitos técnicos para uma boa medição e incorporou uma pequena impressora para que o resultado pudesse ser encaminhado ao médico. A cadeira foi aprimorada pelo designer Fábio D'Elia, que passou a fabricá-la na sua empresa, a Dafs Design. Ela começou a ser utilizada em campanhas públicas de com- bate à hipertensão arterial e há um ano um laboratório farmacêutico de São Paulo comprou 50 cadeiras e dis- tribuiu para clínicas locali- zadas em vários estados bra- sileiros. A próxima etapa será a instalação de cadeiras, já encomendadas pela Secre- taria da Saúde, em unidades básicas de saúde do Estado de São Paulo. •

■ Embalagem livre do óleo lubrificante

As embalagens plásticas de óleo lubrificante usadas em motores automotivos ganha- ram um novo método de re- ciclagem que vai tornar essa processo mais limpo e produ- tivo. Produzidas em polietile- no de alta densidade (Pead), elas se tornaram um problema para os recicladores. É que a dificuldade em extrair o óleo remanescente das embalagens plásticas impede o reaprovei- tamento dos recipientes. Um problema que recebeu a solu- ção do químico industrial Fá- bio Bonneau Ribeiro, proprie- tário da FBR Reciclagem de Plásticos, empresa da cidade de Montenegro, no Rio Gran-

62 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

de do Sul. Ribeiro patenteou a utilização do solvente or- gânico hexano para separar o óleo das embalagens plásti- cas. "Atualmente usam-se de- tergente e água para extrair o óleo, e o efluente não pode

ser despejado em esgotos e rios sem passar por um tra- tamento, que eleva muito o custo do processo", diz Ribei- ro. Já o hexano, embora um derivado do petróleo, é usado também para extrair óleo da

Solvente separa óleo do plástico sem dano ambiental

semente de soja e pode ser reaproveitado nas indústrias de tintas, sem dano ao am- biente. Assim, as embalagens de óleo podem ser transfor- madas em grânulos que vol- tam a ser usados em recipien- tes para óleo ou servir para a fabricação de cabides, caixas de ferramenta e conduítes. •

■ Argila para construir estradas

A dificuldade em encontrar pedras na região amazônica para uso na construção de es- tradas motivou os engenhei- ros do Instituto Militar de Engenharia (IME) a desen- volver um novo material, a argila calcinada, que poderá substituir a brita. O projeto,

Page 64: O parasita do cérebro

A brita da Amazônia

que teve início em 1997, re- sultou no final do ano passa- do em um pedido de patente do novo material. Na primei- ra fase, a pesquisa, coordena- da pelo coronel Álvaro Vieira, destinou-se a estabelecer cri- térios para a seleção das me- lhores matérias-primas, todas retiradas de jazidas naturais da Amazônia. "Existem vários tipos de argila que servem pa- ra essa finalidade", diz Vieira. Elas podem ser usadas sozi- nhas ou misturadas. "Para que endureça e ganhe resis- tência, a argila precisa ser aquecida a temperaturas ele- vadas, em torno de 900 a 1.000°C." O material po- de ser usado tanto na fabricação de concreto como de misturas asfál- ticas para revestimento de estradas. Experimen- tos feitos com a argila calcinada mostraram que ela suporta todas as solicitações do tráfego normal. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, há escassez de pedreiras e, conseqüen- temente, de brita, o que^J a torna escassa e cara. Na Amazônia, o metro

cúbico de brita custa em tor- no de R$ 100, enquanto no Sudeste é encontrado por cerca de R$ 30. Já o metro cúbico da argila calcinada custará R$ 40. Algumas in- dústrias cerâmicas da região amazônica já procuraram o IME, interessadas em pro- duzir a argila calcinada. •

■ Caminhos da biotecnologia

Os fundamentos teóricos e os

aspectos práticos das diferen- tes técnicas de purificação de biomoléculas em escala labo- ratorial e industrial estão no livro recém-lançado Purifica-

ção de produtos biotecnológi- cos. Ele foi coordenado por dois professores da Univer- sidade de São Paulo (USP), Adalberto Pessoa Júnior, da Faculdade de Ciências Far- macêuticas, e Beatriz Vahan Klikian, da Escola Politécni- ca. Publicado pela editora Manole, o livro, nos seus 22 capítulos, possui informações sobre vários processos biotec- nológicos. Além de alunos de várias áreas da graduação e da pós-graduação, profissio- nais de laboratórios e indús- trias também vão se benefi- ciar, inclusive com a ampla bibliografia no final de cada capítulo. •

Patentes

Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Um milhão de furos por milímetro quadrado

Pequenos furos de uma peneira Um novo processo de ob- tenção de peneiras com furos extremamente pe- quenos que podem che- gar à ordem de dezenas de nanômetros (1 milí- metro dividido por 1 mi- lhão) foi patenteado por um grupo de pesquisa- dores do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenado pela professora Lucila Cescato. A técnica utiliza um processo semelhan- te à produção de CDs e DVDs em que uma ma- triz em resina, gravada com laser em relevo, ser- ve como molde para de- posição de níquel. A membrana metálica re- sultante é vazada com cerca de 1 milhão de fu- ros regulares por milíme- tro quadrado e pode bar- rar as menores bactérias. Essa regularidade torna essas peneiras superiores em qualidade aos filtros

porosos que possuem furos irregulares. A pe- neira poderá ser usada em sistemas de microfil- tração e separação de materiais nas indústrias farmacêutica e alimentí- cia. Outros usos estão na filtragem de água em equipamentos de hemo- diálise e na separação de fragmentos de DNA. Além disso, como as ma- trizes são produzidas em relevo, é possível fabricar um molde com relevo in- vertido e estampar as pe- neiras em materiais bio- compatíveis, ampliando as aplicações.

Título: Processo de fabricação de peneiras submicrométricas Inventores: Edson José de Carvalho, Luís Enrique Gutierrez Rivera e Lucila Helena Deliesposte Cescato Titularidade: FAPESP/Unicamp

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 63

Page 65: O parasita do cérebro

I TECNOLOGIA

ENGENHARIA QUÍMICA

64 ■ MAIO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 111

Page 66: O parasita do cérebro

DlNORAH ERENO

A lendária frase dita pela atriz Marilyn Monroe de que dormia vestida apenas com algumas gotas de Chanel n° 5 guarda, quem diria, um toque

bem brasileiro. O principal ingrediente do famoso perfume francês lançado pela empresa de made- moiselle Coco Chanel em 1921 é o óleo essencial extraído da madeira do pau-rosa, uma árvore nati- va da Amazônia. Estimativas indicam que cerca de 500 mil árvores dessa espécie já foram abatidas des- de o início da exploração do pau-rosa, o que levou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re- cursos Naturais Renováveis (Ibama) a incluí-lo na lista das espécies em perigo de extinção em abril de 1992. Para preservar a preciosa madeira, e garantir o fornecimento da matéria-prima para a indústria perfumista, o professor Lauro Barata, do Laborató- rio de Química de Produtos Naturais da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp), começou a desenvolver em 1998 um projeto de extração do óleo essencial das folhas que resultou em rendi- mento e qualidade semelhantes aos obtidos da ma- deira. "Aprendi que o óleo poderia ser tirado das fo- lhas em trabalhos publicados pelo professor Otto Gottlieb", diz Barata. Ele se refere a um estudo pu- blicado no final da década de 1960 pelo químico que nasceu na República Checa e se naturalizou brasileiro, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e lembrado até pela comunidade científica brasileira para concorrer ao Prêmio No- bel. "Aprendi também com a experiência de Raul Alencar, um ribeirinho de 80 anos que sempre vi- veu dos produtos da floresta e é produtor tradicio- nal de óleo de pau-rosa", diz Barata. Essas duas re- ferências serviram de base para o seu projeto, financiado pelo Banco da Amazônia (Basa), no va- lor de R$ 25 mil.

O interesse do professor da Unicamp em es- tudar a árvore amazônica surgiu em 1997, quando ecologistas franceses iniciaram uma campanha para boicotar os produtos da Chanel por conta da extração do pau-rosa, que tem como nome cientí- fico Aniba rosaeodora, e a conseqüente devastação da floresta. Em resposta, a empresa francesa contra- tou a ONG Pro-Natura, de origem franco-brasi- leira, que trabalha em parceria com empresas para desenvolver programas de desenvolvimento sus- tentável. O objetivo era encontrar uma solução que

Folhas de árvore da Amazônia garantem a continuidade da produção do perfume Chanel

acalmasse o ânimo dos grupos ambientalistas. Ba- rata foi então chamado pela ONG para fazer um diagnóstico da situação da extração do óleo da ár- vore amazônica. No relatório final, ele ensinava como trabalhar com a produção sustentável do pau- rosa, que começava com o cultivo e o manejo e pas- sava pela extração das folhas. "Fizemos um levan- tamento inventariando a situação e a empresa se comprometeu a adotar o desenvolvimento susten- tável proposto no nosso relatório", diz Barata. "A so- lução apontada conseguiu barrar as manifestações programadas." Mas até hoje eles continuam a com- prar o extrato obtido das árvores cortadas inteiras no meio da floresta. A pressão internacional provo- cou uma retomada das possibilidades de manejo sustentável do pau-rosa e, após uma série de dis- cussões com a participação dos produtores, o Iba- ma lançou em 1998 uma portaria com diretrizes que regulamentam a extração da árvore.

Extração experimental - A partir do estudo enco- mendado pela Chanel e com o projeto financiado pelo Basa, Barata fez várias viagens à região amazô- nica, que resultaram em um trabalho de cultivo do pau-rosa em parceria com o produtor Raul Alen- car. Uma área de capoeira - mata que surge depois do desmatamento da floresta original - no municí- pio de Nova Aripuanã, no Estado do Amazonas, foi escolhida para abrigar as mudas da planta. Hoje a área tem 10 mil árvores com três anos e meio que já estão no ponto de serem podadas para dar início à extração experimental do óleo. Para a exploração comercial, as podas podem ser iniciadas aos cinco anos para a extração do linalol e no 25° ano a árvo- re pode ser cortada e extraído o óleo da madeira, desta vez de modo sustentável.

O óleo puro da madeira tem um tom amarelo- dourado. No início possui um aroma forte, meio cítrico, que se sobrepõe aos outros aromas. Com o passar do tempo, outros cheiros agregam-se ao pri- meiro, compondo uma mescla harmônica, doce e amadeirada. Já o óleo obtido das folhas é de um amarelo quase transparente, com um cheiro bas- tante suave, sem muitas gradações. Para testar a qualidade do óleo, folhas de diferentes idades, entre cinco e 35 anos, foram coletadas tanto na floresta como em campos de cultivo durante seis meses. A primeira plantação experimental avaliada foi esta- belecida em 1990 por pesquisadores da Universida- de Federal Rural da Amazônia (Ufra), no municí-

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pio de Benfica, a 27 quilômetros de Be- lém, no Pará, em colaboração com as pesquisadoras Selma Ohashi e Leonilde Rosa. Outra plantação estudada fica em Curuá Una, no Pará, onde existem 300 árvores plantadas desde 1973. O óleo extraído das folhas apresentou rendi- mento e qualidade similares aos da madeira. No item quantidade de óleo obtido das folhas, a variação foi de 0,9% a 1,1%, em média, ou seja, cerca de 10 quilos de óleo por tonelada de folhas, um rendimento semelhante ao extraído da madeira. Em relação ao aroma, o óleo das folhas perde o toque amadeirado. Isso pode ser corrigido em laboratório. "Basta um tratamento físico-químico para que não se note a diferença entre eles", diz Barata.

Q ^^^^^^ em revelar o con- ^B teúdo do trata-

I ■ mento feito em ^L t laboratório, e que '^^-n j^ pode ser repro-

duzido industrial- mente, ele enviou amostras dos óleos das folhas e da madeira para serem ava- liadas por dois representantes no Brasü de casas perfumistas internacionais. Eles disseram que as diferenças entre as duas amostras eram mínimas, e um de- les assegurou que a fragrância do óleo das folhas era superior à da madeira.

Hoje a extração é feita apenas das árvores que se encontram na floresta, não em campos de cultivo, que são poucos e experimentais. Para a árvore na floresta chegar ao ponto de corte demora em média de 30 a 35 anos. E para se obter uma tonelada do linalol é necessário derrubar de 25 a 50 árvores. Se o manejo e cultivo forem bem fei- tos, com a escolha de melhores matri- zes, esse prazo cai para 25 anos. Atual- mente, a produção anual do óleo de pau-rosa fica em torno de 40 tonela- das, o que representa uma pequena fra- ção das 450 toneladas produzidas nos anos de 1950. O declínio na demanda deve-se principalmente à introdução do linalol sintético no mercado nos anos de 1980. Mas mesmo que isso não

tivesse ocorrido os produtores, hoje re- duzidos a apenas seis, não teriam como dar conta da demanda porque a árvore, que antes se encontrava distribuída por toda a Amazônia, agora se concen- tra nos municípios de Parintins, Maués, Presidente Figueiredo e Nova Aripua- nã, todos no Estado do Amazonas, em um círculo de 500 quilômetros. A espé- cie já foi extinta na Guiana Francesa, onde começou a ser retirada no início da década de 1920, e logo depois no Amapá e no Pará.

O linalol sintético não substitui o natural, porque a fragrância é de qua- lidade inferior. Mas serve como base para sabonetes e outros produtos de hi- giene e beleza. A facilidade em produzir o óleo essencial era tanta que quando o sabonete Phebo foi lançado, em 1930, no Brasil, levava em sua fórmula o óleo de pau-rosa, algo impensável nos dias de hoje pelo preço elevado da matéria- prima. "O linalol também é encontra- do em outras fontes vegetais, como o manjericão, mas nenhuma fonte apre- senta a qualidade superior do pau-rosa. Enquanto no pau-rosa o linalol repre- senta 80% da composição do óleo es- sencial, no manjericão essa porcenta- gem fica em 30%", explica Barata.

Para extrair o óleo essencial é neces- sário andar bastante dentro da mata por-

que as árvores acham-se espalhadas na natureza. Em cada 6 hectares, encon- tra-se apenas uma. Para localizá-las, ca- da mateiro embrenha-se solitariamen- te nas florestas. Quando eles avistam o pau-rosa, a árvore é marcada com um facão com as iniciais do produtor. As que não devem ser derrubadas também são identificadas, uma exigência do Ibama para preservar as matrizes que estão produzindo sementes.

Medida do corte - No verão, outra equi- pe adentra novamente a floresta para cortar as árvores marcadas. "Só são der- rubadas árvores que medem acima de quatro palmos de roda", conta Barata. A medida de um palmo de roda é feita esticando as mãos abertas, unidas pelos polegares. Os quatro palmos corres- pondem a cerca de 30 centímetros de diâmetro. Depois que a árvore é derru- bada, as toras são cortadas com serrote e carregadas nas costas, amarradas a uma mochila de cipó, até a beira do rio. Lá, elas permanecem até que estejam em quantidade suficiente para serem transportadas de barco até a usina de extração do óleo, o que só ocorre no in- verno, quando os igarapés se tornam navegáveis. A extração é feita pelo mé- todo de arraste a vapor, com um equi- pamento semelhante a uma panela de

Um clássico dos perfumes

Lançado no dia 5 de maio de 1921, o Chanel n° 5 faz sucesso até hoje. Símbolo de requinte e elegância, o perfume foi criado por Ernest Beaux, reconhecido como um dos maiores perfumis- tas de todos os tempos, a pedido de Gabrielle Chanel, mais conhe- cida como Coco. A estilista queria um perfume de mulher, mas dife- rente de todos os outros vendidos na época baseados em aromas florais. A fórmula, além do óleo essencial do pau-rosa, leva jas- mim de Grasse - uma cidade na região de Provença, na França -, ilangue-ilangue, néroli (óleo ex- traído das flores de laranjeira), sândalo e vetiver. A composição

foi a primeira do gênero que mes- clou essências de flores com al- deídos, substâncias obtidas por síntese química. Oito décadas após seu lançamento, o n° 5 con- tinua sendo um perfume clássico e ao mesmo tempo contemporâ- neo. Há controvérsias sobre a es- colha do número 5 para a fra- grância. Alguns dizem que esse era o número de sorte de maãe moiselle Chanel, outros que quinta fórmula apresentada pelo perfumista foi a escolhida por ela. Em 1959, o design do frasco, cria- do pela fábrica de vidros Brosse, entrou para o Museu de Arte Mo- derna de Nova York como símbo- lo de vanguarda.

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Óleo extraído da folha do pau-rosa {no detalhe) tem

cheiro bastante suave e apresenta rendimento

e qualidade semelhantes ao obtido da casca da árvore

pressão gigantesca de 1.500 litros de ca- pacidade. Por esse processo, o vapor d'água passa pela planta aromática ex- traindo, condensando e separando suas essências.

Todo o processo, que tem início com a marcação da árvore e termina com a madeira dentro da usina, leva em média um ano. E tem um alto cus- to, que os donos das usinas, na verdade ribeirinhos que sempre viveram por lá, não têm dinheiro para bancar. Por isso eles vendem a produção antecipada- mente para os intermediários, que a re- vendem para a Europa e os Estados Unidos. Cerca de 90% da produção é exportada. Eles vendem o extrato em tambores de 200 litros para as casas perfumistas ao preço de US$ 300 o li- tro. Aqui o produtor vende seu produ- to para o intermediário por US$ 20 o litro. Poucos conseguem exportar dire-

to para as indústrias, sem intermediá- rios. Quando isso acontece, o produtor recebe US$ 60 por litro do óleo. As ca- sas perfumistas do Brasil compram di- retamente da matriz, porque as com- pras são centralizadas. "É uma cadeia enorme e complexa, e quem sai per- dendo é o produtor", diz Barata.

A parceria do pesquisador com os produtores resultou num plano de ma- nejo e extração do óleo das folhas que começa com o cultivo do pau-rosa con- sorciado com outras culturas. Como a planta precisa ser protegida do sol no início do seu ciclo de vida, uma das so- luções é cultivar uma árvore a cada 5 metros, intercaladas com bananeiras. Quando as bananeiras estão no ponto de corte, aos dois anos, o pau-rosa está na fase em que precisa receber sol dire- to. As bananas já podem ser vendidas e outra leva de bananeiras pode ser plan-

tada e retirada dali a dois anos. E no quinto ano o pau-rosa já começa a dar lucro, com a extração do óleo das fo- lhas. O projeto também testa o plantio consorciado do pau-rosa com plantas aromáticas da Amazônia, como a raiz do vetiver, o cumaru, a copaíba e outras como a andiroba. No início, antes de as mudas do pau-rosa serem transplanta- das para o solo, elas são aclimatadas em viveiros protegidas por uma cobertura de folhas de palmeiras de açaí. Quando a palha dessa árvore se decompõe, as plantas estão mais estruturadas e pre- paradas para receber a luz solar.

Novos caminhos - Para que o projeto dê retorno financeiro, é necessário plantar pelo menos 10 mil mudas de pau-rosa em 30 hectares. O mesmo número de mudas que foi plantado na área culti- vada no município de Nova Aripuanã. Outras 10 mil mudas estão no viveiro, esperando o momento de serem trans- feridas para o campo. Essa quantidade é quase 30 vezes mais do que seria ne- cessário plantar segundo a portaria do Ibama. Para cada tambor de 200 litros exportado o produtor é obrigado a plantar 80 unidades de pau-rosa. Co- mo Raul Alencar exporta, em média, dez tambores por ano, ele teria de plan- tar apenas 800 mudas.

O projeto de desenvolvimento sus- tentável do pau-rosa já foi apresentado em vários congressos internacionais e despertou o interesse de empresários brasileiros que não querem, por en- quanto, a divulgação de seus nomes. Muitos daqueles que plantam outras culturas também poderiam lucrar com a produção do óleo do pau-rosa. E, se as árvores forem extintas, o próprio mer- cado consumidor será afetado. Antes que isso aconteça, produtores que sem- pre viveram dos recursos da floresta procuram novas maneiras de extrair o que dela precisam. O desenvolvimento sustentável foi o caminho escolhido por comunidades amazônicas que vivem dos recursos da extração da andiroba e do açaí, por exemplo, que antes corriam o risco de serem extintos. Hoje o açaí é importante pelo fruto, e não pelo palmi- to. E o óleo de andiroba é a base de ve- las repelentes de insetos e de muitos pro- dutos cosméticos. O mesmo caminho que pode ser seguido para a produção do óleo das folhas do pau-rosa. •

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■ TECNOLOGIA

ENGENHARIA FLORESTAL

rLstoque finito A

na Amazônia Duas espécies de árvore demoram mais de um século para crescer e repor a quantidade de madeira cortada

MARCOS PIVETTA

^^^^^ imulações feitas por computador in- I ^Ê dicam que a extração comercial de 1 W certas árvores nobres da Amazônia ■^^ M pode não ser uma atividade sustentá- ' "^^ ^ vel a longo prazo. Nem a adoção das

técnicas hoje recomendadas pelo manejo florestal, um conjunto de medidas que, em tese, deveria reduzir os efeitos da atividade madeireira sobre a floresta a níveis aceitáveis, é capaz de suavizar as mar- cas deixadas pela mão humana: rápida e eficaz, a motos- serra vence sempre, e com folga, a corrida contra a natu- reza. Num dos cenários virtuais, criado nos micros dos pesquisadores do projeto Dendrogene - Conservação Genética em Florestas Manejadas na Amazônia, popu- lações de duas espécies arbóreas, a tatajuba e a maça- randuba, foram submetidas a um único ciclo de corte, efetuado de acordo com os preceitos considerados racio- nais da atual sustentabilidade. Essa situação foi repre- sentada com o auxílio de um programa de modelagem ecológica e genética, o Eco-Gene, que calculou quanto tempo seria necessário para que as árvores remanescen- tes de cada espécie crescessem, se multiplicassem e a ma- ta voltasse a ter a sua quantidade original de tatajubas e maçarandubas. Os resultados acenderam uma luz ama- rela: um século de descanso não foi suficiente para dotar novamente a floresta com o mesmo estoque de madeira das duas espécies que havia antes.

A situação da Bagassa guianensis, nome científico da escassa tatajuba, que dá uma madeira amarelada, apre- ciada na construção de barcos e assoalhos, é particular- mente preocupante. Na simulação, a floresta precisou de 200 anos para recuperar 80% de sua quantidade original de madeira. O processo de regeneração foi tão demora- do que a espécie não conseguiu reaver todo o seu esto- que inicial. Mais abundante, a Manilkara huberi, a popu- lar maçaranduba, dona de uma madeira muito dura e

resistente, em tom vermelho-escuro, teve um desempe- nho melhor, mas não muito animador: necessitou de 130 anos para exibir de novo a quantidade original de madeira. "Precisamos rever algumas idéias sobre a ex- ploração madeireira", diz Milton Kanashiro, engenheiro florestal da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)-Amazônia Oriental, de Belém, que coor- dena, há cinco anos, os trabalhos de aproximadamente 50 pesquisadores e colaboradores do Dendrogene. "Te- mos indícios de que, mesmo com a adoção do manejo, nos moldes hoje praticados pelas empresas, há uma grande redução no estoque comercial de árvores de algumas espécies exploradas economicamente."

Sol e sombra - A tatajuba e a maçaranduba são árvores de alto valor comercial da Amazônia, encontradas às ve- zes uma ao lado da outra em áreas de terra firme, como são chamados os trechos de floresta que nunca ficam alagados. Em sua plenitude, atingem 40 ou até 50 metros de altura, podendo ultrapassar o dossel da floresta. Têm troncos grossos, com diâmetro variando de 1,4 metro a 2 metros em exemplares adultos, e seus frutos são co- mestíveis, em especial o da maçaranduba. Apesar dos pontos em comum, as duas espécies primam pelas dife- renças em sua dinâmica de reprodução e crescimento. "Uma é o contrário da outra", afirma a bióloga Mariva- na Borges Silva, aluna de doutorado da Universidade Federal do Pará (UFPA), que trabalhou nas simulações. Em florestas adultas, a tatajuba é rara, adora sol e cresce rapidamente. A maçaranduba é abundante, tolera bem a sombra e se desenvolve lentamente. Numa área de 500 hectares da Floresta Nacional do Tapajós, perto de San- tarém, no Pará, onde se concentram os trabalhos de campo do Dendrogene, entre as árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro, o número de exemplares da primeira espécie é dez vezes menor do que o da segunda.

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Tatajuba: 200 anos para recuperar a quantidade original de madeira

Nesse trecho de floresta, cerca de 50 pesquisadores e colaboradores do projeto, daqui e do exterior, estudam a fundo, há cinco anos, os mais variados aspectos da bio- logia e da genética de sete espécies arbóreas, todas explo- radas pelas madeireiras. Além da tatajuba e da maçaran- duba, cujos trabalhos estão numa fase mais adiantada, são alvo das pesquisas o jatobá, o cumaru, o anani, a an- diroba e o parapará. Cada árvore tem ocorrência e dinâ- mica reprodutiva distintas das demais, formando, se- gundo os cientistas, um painel representativo de boa parte da diversidade de espécies arbóreas da Amazônia. O objetivo central do Dendrogene, empreitada científi- ca de R$ 6 milhões tocada basicamente com recursos da própria Embrapa e do Departamento para Desenvolvi- mento Internacional do governo britânico, é entender o maior número possível de variáveis que influem no pro- cesso de nascimento, crescimento, morte e regeneração das árvores de interesse comercial. E, dessa forma, dese- nhar planos de manejo específicos para os grupos de árvores que se mostrarem aptos a serem explorados a longo prazo. "Um dos problemas do manejo atual é ver a floresta como algo homogêneo, sem levar em conta as particularidades de cada espécie", opina Kanashiro. "Nossos dados, embora preliminares, mostram que o ma- nejo florestal pode ser viável se seguir dois caminhos: re- duzir a intensidade da extração, diminuindo a quanti- dade de madeira retirada ou alongando o ciclo de corte, e promover uma rotação entre as espécies que serão co- mercialmente exploradas no futuro, concentrando suas atividades nas de rápido crescimento."

O problema é que ainda não se sabe com certeza quais espécies podem ser manejadas de maneira susten- tável. Daí a importância de haver projetos científicos que tentam responder a essa difícil questão. Por ora, ainda não está claro que tipo de manejo será possivel- mente recomendado para a exploração da tatajuba e da

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maçaranduba. A análise de uma outra série de simulações feitas no projeto Dendrogene indica que ambos os casos são delicados. Com a ajuda do programa Eco-Gene, que foi abaste- cido com dados biológicos e molecu- lares das duas espécies, os pesquisa- dores compararam o impacto da adoção de nove cenários distintos de exploração ao longo de um período de 300 anos. O objetivo era ver se al- guma mudança de conduta produzi- ria reduções significativas nos efeitos da atividade madeireira sobre as po- pulações de tatajuba e maçarandu- ba. Mais uma vez, no final das simu- lações, não houve o que comemorar: em todos os cenários testados, até nos aparentemente menos agressivos, não restavam mais árvores em quantidade suficiente para a exploração comer- cial após o terceiro ciclo de corte. "Os resultados não mudavam muito em função do cenário adotado", comenta Vânia Azevedo, aluna de mestrado da Universidade de Brasília (UnB), que participou das simulações. "Depois do terceiro ciclo de corte, já não dava para tirar quase nada da floresta."

m cada simu- lação, pelo me- nos um dos três principais parâ- metros do pla- no de manejo

florestal foi alterado. Essas diretrizes centrais definem o intervalo de tempo entre cada extração de madeira, o diâ- metro mínimo do tronco das árvores que podem ser retiradas e a porcenta- gem de árvores passíveis de corte que serão preservadas (deixadas como re- serva). Entre as poucas empresas que adotam planos de manejo na Amazô- nia, onde 70% da extração de madeira é irregular, segundo algumas estimati- vas, o padrão é fazer o que a lei manda: adotar um ciclo de corte de 30 anos, considerar candidata à extração toda árvore com pelo menos 45 centímetros do chamado diâmetro na altura do pei- to (Dap) e manter como reserva apenas

uma de cada dez árvores que atingiram o ponto de corte. O primeiro cenário testado serviu de controle. Nesse caso, o Eco-Gene calculou o que aconteceria com populações de 500 tatajubas e de 500 maçarandubas que permaneces- sem intocáveis durante três séculos. Nos outros cenários, do segundo ao nono, foram testados distintos planos de ma- nejo, mais ou menos restritivos à ativi- dade madeireira. O de número dois si- mulou exatamente os parâmetros hoje empregados no manejo. Nos demais, o ciclo de extração variou entre 30, 60 e 90 anos, o diâmetro mínimo de corte oscilou entre 45,55 e 65 centímetros e a cota de árvores deixadas como reser- va flutuou entre 10%, 30% e 50% dos exemplares adultos.

Depois de 300 anos de exploração virtual das árvores, o quadro geral pin- tado pelo Eco-Gene não era animador. Em relação ao cenário um, em que não houve corte algum de madeira, a tata- juba e, em menor escala, a maçarandu- ba apresentaram, nas demais simula- ções, reduções significativas no estoque de madeira e no número de árvores que

compunham suas respectivas popu- lações. A quantidade de madeira da B. guianensis disponível na floresta enco- lheu entre 82% e 90% e o número de árvores, entre 63% e 78%. O estoque de madeira da M. huberi retrocedeu de 58% a 80% e o número de árvores de- cresceu no máximo 12%. Parece haver um paradoxo - ou um erro - rondan- do os dois índices calculados pelo pro- grama de modelagem para a maçaran- duba. Como, depois de três séculos de exploração, o número de árvores da es- pécie quase não diminuiu enquanto o estoque de madeira minguou a olhos vistos? Resposta: é verdade que, no fi- nal das simulações, havia quase tantas maçarandubas como no passado, só que elas eram bem menores que antes.

Se o manejo florestal tal como hoje praticado altera radicalmente o estoque de madeira da floresta, seu impacto so- bre a diversidade genética da tatajuba e da maçaranduba não parece ser da mesma magnitude. Em ambas as espé- cies, a perda de informação molecular foi de no máximo 15% das chamadas combinações genotípicas que haviam

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nas árvores antes do início da atividade madeireira. Uma combinação genotípi- ca é a forma particular de um gene en- contrado em um indivíduo. Em outros parâmetros, como a consagüinidade, não houve mudanças estatisticamente significativas. "As simulações indicam que não há fortes ameaças à conserva- ção genética dessas árvores", pondera Kanashiro. "Mas ainda não podemos afirmar isso com toda a certeza."

Realidade complexa - É preciso colocar em perspectiva os resultados das si- mulações. A realidade, todos sabem, sobretudo os pesquisadores do Den- drogene, é mais complexa do que os ce- nários construídos por um programa de computador que tenta prever os efeitos da extração controlada de ma- deira. O programa Eco-Gene foi abas- tecido com dados sobre as característi- cas genéticas e biológicas da tatajuba e da maçaranduba estudadas numa área de floresta natural. O ideal é que o soft- ware seja alimentado com informações de árvores provenientes de áreas ma- nejadas, que devem apresentar uma di-

nâmica reprodutiva distinta. Em breve, isso deve ser possível. No final de 2003, os pesquisadores acompanharam o corte de 90% das árvores adultas das sete espécies estudadas pelo projeto que existiam nos 500 hectares de flo- resta em que o projeto concentra sua parte de campo. "Ainda este ano, ou em 2006, devo voltar à área para ver o impacto da extração de madeira sobre os insetos e animais responsáveis pe- la polinização das árvores", diz a biólo- ga Márcia Motta Maués, da Embrapa- Amazônia Oriental.

Pode parecer um contra-senso para o leigo, mas a extração de madeira esti- mula a germinação de sementes no solo da Amazônia e, num primeiro momen- to, favorece o crescimento de mudas de árvores no trecho de floresta explorada. O corte de uma maçaranduba ou de uma tatajuba de grande porte abre uma clareira na mata serrada e os raios sola- res atingem mais facilmente a terra. O engenheiro florestal José do Carmo Al- ves Lopes, também da Embrapa, mediu no Tapajós os níveis de regeneração das sete espécies estudadas em detalhe pelo

Dendrogene, antes e depois de ter ha- vido o corte de árvores ali. Dez meses após a motosserra ter feito o seu traba- lho, todas as variedades aumentaram suas taxas de regeneração. A tatajuba, que adora sol, apresentou o maior índi- ce de aparecimento e crescimento de plântulas, como os técnicos chamam as mudas. Havia 62 vezes mais plântulas da espécie do que antes (o número de mudas por hectare passou de 0,3 para 19). A andiroba, a espécie que teve a menor taxa de regeneração, aumentou em meros 5% o seu número de plântu- las (pulou de 106 mudas por hectare para 112). "Agora precisamos ver como essas taxas de crescimento vão cair ao longo do tempo. Elas vão cair, só não sabemos quanto", afirma Carmo. A me- dida que a copa da floresta volta a se adensar, espécies que não toleram a sombra passam a apresentar taxas alar- mantes de mortalidade. Apenas os pou- cos exemplares mais altos, que consegui- ram literalmente um lugar permanente ao sol, sobrevivem. Essa é a sina da ta- tajuba, ao contrário da maçaranduba, que gosta de sombra. •

PESQUISA FAPESP 111 ■ MAIO DE 2005 ■ 71

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[TECNOLOGIA

Projeto reabilita pequenos produtores rurais

Melhor manejo, mais lucro

CLAUDIA IZIQUE

Manejo adequado do rebanho aumenta a produção de leite e a renda familiar

T7 m 2002, Carlos Santim, proprie-

. tário de uma área pouco maior 1 que 30 hectares, no município de

^M Uirapuru, no Estado de São Pau- ^^^^^~^^^^^^ Io, decidiu substituir o cultivo do

café por um rebanho de 70 vacas holandesas e mestiças que produzem 430 litros de leite por dia. Hoje, a produtividade do sítio, bem acima da

média da região, garante a Santim uma renda em torno de dez salários mínimos e alimenta sonhos de

expansão. Ele acabou de comprar oito novilhas com recursos do Programa Nacional de Forta-

lecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do Banco do Brasil, e busca reduzir os gas-

tos com ração animal. Faz contas e ga- rante: em 2006 atingirá uma produção

de 7 mil litros de leite por dia. Aos que suspeitam que a meta pode ser

inatingível ele lembra que, em apenas dois anos, a produção

cresceu quase sete vezes. Mantida a progressão, os planos de Santim po- dem até ser conservado-

W res. "Aprendi a manejar o rebanho e a administrar a

propriedade", explica. As técnicas de manejo do

rebanho e de gestão do negócio ele aprendeu com um dos 240 técni-

cos da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), que, por sua vez, foram treinados por especia- listas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa)-Pecuária Sudeste, no âmbito do projeto Agricultura Familiar - Leite.

Criado em 1999 e instalado há dois anos e meio, o proje- to tem como objetivo transferir conhecimentos sobre a pro-

*

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dução intensiva e rentável do leite aos pequenos proprietários e aos técnicos de extensão rural. As "salas de aula" são pequenas propriedades familiares, co- mo a de Santim, em que especialistas da Embrapa discutem, analisam e ava- liam práticas agrícolas e zootécnicas junto com produtores rurais e técnicos da Cati. "Nas propriedades rurais o que mais falta é a informação para pro- duzir leite de uma maneira simples, porém rentável, e com conceitos alta- mente técnicos e ambientalmente sus- tentáveis", afirma Artur Chinelato de Camargo, pesquisador da Embrapa- Pecuária Sudeste, um dos mentores do projeto.

Desinformados, os pequenos pro- dutores não utilizam práticas básicas, como análise do solo, controle leiteiro, plantio em nível ou exames para iden- tificar doenças nos animais. Mal ali- mentado, o rebanho não tem potencial produtivo e não garante renda aos pro- dutores, que acabam por descuidar da propriedade, antes de abandonar a ati- vidade, e, muitas vezes, vender a terra e mudar-se para a cidade.

Foi exatamente esse quadro que os técnicos da Cati encontraram na maio- ria das 109 propriedades paulistas nas quais já está implantado o projeto. "O primeiro passo é promover uma limpe- za na área e resgatar a auto-estima do produtor", diz Adalberto Estivar, técnico da Cati, responsável pelo sucesso do em- preendimento de Santim.

O segundo passo é tratar de mudar a alimentação dos animais, substituin- do, sempre que possível, o uso da ração - mais cara - pelo capim. "Para produ- zir leite não é preciso alimentar o gado exclusivamente com ração", adverte Es- tivar. Mas, antes, é preciso ensinar os produtores a formar, adubar e manejar pastos. O capim garante a alimentação de animais com produção de 12 litros de leite por dia. A ração só deve ser uti- lizada como suplemento alimentar pa- ra os animais mais produtivos. Os téc- nicos recomendam que, em vez de comprar a ração no mercado, os pro- dutores devem manipulá-la, utilizando produtos de época. O resultado é que, no lugar de pagar R$ 0,52 por quilo de ração convencional, ele só gasta R$ 0,30. A partir dessa etapa, os técnicos ini- ciam o trabalho com o rebanho, com a identificação dos animais produtivos e o descarte dos pouco eficientes. "O in- vestimento tem que reverter em leite."

Os proprietários são ainda conven- cidos a adotar uma planilha de custos, onde anotarão, religiosamente, as recei- tas e despesas diárias. "Num primeiro momento, para reorganizar a ativida- de, eles só têm despesas e ficam ator- doados. Quando começam a aparecer resultados positivos, eles fazem planos para crescer", conta Estivar.

O passo mais delicado é induzi-los a adotar a irrigação. "Isso assusta os produtores", justifica. Com irrigação, o período de seca do pasto fica reduzido

a três meses, quando então o capim po- de ser substituído por cana-de-açúcar corrigida, ou seja, rica em proteína e adicionada de uréia mineral.

Fórmula simples - As planilhas utiliza- das pelos produtores incluem fórmulas simples que permitem contabilizar a de- preciação de equipamentos, juros sobre o capital investido na terra, "salário" do produtor, entre outros, de tal forma que ele possa avaliar a rentabilidade do ne- gócio. "Aos poucos, os produtores des- cobrem que o leite cobre todos os seus investimentos." Feitas as contas, eles constatam que o custo de produção de cada litro de leite - vendido por R$ 0,52 - é de R$ 0,32. "O lucro líquido é de R$ 0,20 por litro de leite", diz Estivar. "O modelo é lógico, é economia de escala. Se a produção for de 50 litros por hec- tare/dia, é pouco e o- produtor perde. Tem que chegar a 200 litros."

Para integrar o projeto capitanea- do pela Embrapa, os produtores têm alguns deveres, explica Chinelato: dei- xar a propriedade "aberta" para a visi- ta de técnicos locais, fazer exames de brucelose e tuberculose nos animais a cada quatro meses e descartar os ani- mais doentes.

O projeto tem o apoio de coopera- tiva de produtores, prefeituras e, em al- gumas regiões, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). "É um projeto barato, com re- sultados positivos", diz Chinelato. •

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I TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

Turma da limpeza Fungos e bactérias são a base de detergentes usados em equipamentos hospitalares

nzimas produzidas por um fungo e uma bactéria são a base de novos de- tergentes desenvolvidos no Brasil destinados a higienizar instrumentos

cirúrgicos, desobstruir sondas com resíduos coagulados e digerir e dissolver restos orgânicos, como manchas de sangue e outras. O desenvolvi- mento dos produtos foi feito no Centro de Biotec- nologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CBiot/UFRGS), coordenado pela profes- sora Marilene Henning Vainstein. A utilização de detergentes que contêm enzimas - proteínas pro- duzidas por seres vivos capazes de estimular rea- ções químicas sem sofrer alterações em sua com- posição - não é novidade. Mas até hoje o Brasil não dominava o processo de produção industrial das enzimas para fabricação de detergentes e, por isso, importa a matéria-prima para formular o produto. "A principal vantagem da formulação de detergentes contendo enzimas é sua característi- ca biodegradável, ideal para substituir produtos cáusticos, ácidos e solventes, que agridem o am- biente e provocam o desgaste de materiais e ins- trumentos", diz Marilene.

A primeira etapa da pesquisa consistiu na es- colha dos microorganismos mais adequados para a formulação industrial, já que os pesquisadores estavam à procura de bactérias produtoras de protease, uma enzima com ampla aplicação na in- dústria de alimentos e na formulação de deter- gentes, e de amilase, responsável por degradar as moléculas de amido. Para chegar até elas, várias li- nhagens de espécies citadas na literatura científica com as características procuradas foram testadas. "Sabemos que algumas espécies do fungo Asper-

gillus são boas produtoras de amilase", diz Mari- lene. "Isso facilitou a nossa busca." A seleção do melhor microorganismo para produzir a protea- se também foi feita da mesma forma. "Foi testa- da uma coleção de bactérias do gênero Bacillus para a escolha de um excelente produtor de pro- teases, que era o que precisávamos."

Com a escolha do fungo e da bactéria, os pes- quisadores precisavam desenvolver um processo de produção que, ao mesmo tempo, apresentas- se um rendimento satisfatório e fosse de baixo custo, para poder ser aplicado na indústria. Foram testadas várias substâncias para compor o meio de cultura, que contém nitrogênio, carbono, além de sais minerais e complementos nutricionais que não podem ser revelados. Assim que essa etapa foi encerrada, o grupo de pesquisa gaúcho requereu a patente do processo de produção da protease e da amilase para aplicação industrial.

As proteases representam 60% do total do co- mércio de enzimas no mundo em um mercado estimado em US$ 1 bilhão. Além da indústria de detergentes e de alimentos, elas têm sido utiliza- das no tratamento do couro, em substituição aos compostos tóxicos e poluentes. A adoção de pro- cessos biológicos nos curtumes tem como princi- pal finalidade reduzir os custos com o tratamento dos efluentes resultantes dos processos químicos. Já as amilases são empregadas na indústria para quebrar as moléculas do amido, originando subs- tratos que são importantes na preparação de xa- ropes de glicose, maltose ou mistos, panificação, cervejaria e produção de etanol. Na formulação de detergentes, elas são utilizadas para remover resíduos. O uso diversificado das enzimas está re- lacionado às suas características de atuar como biocatalisadores especializados, que são substân-

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cias que modificam a velocidade de uma reação química.

O desenvolvimento na universida- de originou-se de um pedido feito por empresários de Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul. Newton Mário Battas- tini e Ivete Casagrande Battastini são sócios das empresas Tecfarm e Tecpon, que importam enzimas de uma empre- sa da Dinamarca para produzir deter- gentes para higienização hospitalar vendidos aqui no Brasil. A proposta para o estudo e a produção dessas enzi- mas foi feita para o veterinário Sydnei Mitidieri Silveira, que já havia publica- do trabalhos sobre o tema. Ele ia come- çar a fazer doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e Molecular do Centro de Biotecnologia da UFGRS e levou a idéia para a profes- sora Marilene. Na mesma época, no ano 2000, foi publicado um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs) apoiando in- terações entre universidades e empre- sas. A coincidência de interesses levou à apresentação de um projeto à fundação para o desenvolvimento das enzimas, que foi aprovado. As empresas entra- ram com parte dos recursos necessários para a pesquisa. "A idéia inicial era traba- lhar no desenvolvimento de mais uma enzima, a lipase, que degrada lipídios, mas ainda não conseguimos os resulta- dos esperados", diz Marilene.

Toda a parte de desenvolvimento das enzimas para aplicação industrial já está pronta. A Enzi-Far, braço da Tecfarm e Tecpon abrigada na Incubadora Em- presarial do CBiot da universidade, tra- balha agora na otimização da escala de produção. "A empresa está produzindo 400 litros semanais dessas enzimas que estão sendo usados para as formulações e os testes de estabilidade", diz Mari- lene. "Assim que acelerarmos a produ- ção, as empresas poderão começar a vender os detergentes biodegradáveis para os hospitais." No futuro, outras for- mulações poderão ser feitas utilizando as mesmas enzimas para tratamento de esgotos, de couros e na limpeza de resí- duos de padaria. Para que isso ocorra, precisam ser feitos apenas alguns ajus- tes no processo de formulação porque todo o processo de produção em escala já está dominado. •

DlNORAH ERENO

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■ TECNOLOGIA

ENGENHARIA ELÉTRICA

Lavoura digital Empresa desenvolve equipamentos de precisão para uso na agricultura

Um salto tecno- lógico e um au- mento de fatu- ramento. Esses foram os frutos colhidos pela

empresa DLG Automação, da cidade de Sertãozinho, que contou com a colabo- ração da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para desenvolver aparelhos de precisão voltados princi- palmente para o mercado agrícola. O primeiro a ficar pronto foi um equipa- mento que serve para determinar o ní- vel de compactação do solo das lavou- ras, medida útil para que as plantas cresçam fortes e produtivas. Além de- le, está em fase final de desenvolvimento um sistema para geração de sinal de cor- reção diferencial, em tempo real, para receptores do Sistema de Posicionamen- to Global, conhecido por GPS (Global Positioning System). O objetivo é redu- zir a imprecisão dos receptores desse sis- tema que indica, por meio de sinais de satélite, as coordenadas terrestres como latitude e longitude. Esse projeto se des- tacou no Prêmio Gerdau Melhores da Terra 2004, dedicado à indústria de má- quinas e equipamentos agrícolas, ven- cendo na categoria Pesquisa e Desenvol- vimento. "Com o trabalho de pesquisa para projetar e desenvolver esses apare- lhos passamos a dominar uma nova tec- nologia, a de aparelhos microprocessa- dos, e conseguimos diversificar nossa linha de produtos. Com isso, atingimos

novos mercados e nosso faturamento passou de R$ 200 mil em 1997, ano da criação da empresa, para R$ 1,4 milhão em 2004", afirma Glauco Guaitoli, dire- tor da DLG, que também fabrica siste- mas e equipamentos de automação para vários segmentos industriais.

Segundo o engenheiro agrícola Nel- son Luís Cappelli, da Faculdade de En- genharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, que coordenou dois projetos da empre- sa financiados pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, o desenvolvimento dos equipamentos ajudará a resolver certos gargalos tecnológicos para a uti- lização mais ampla da agricultura de

OS PROJETOS

í. Desenvolvimento de um penetrômetro eletrônico geo-referenciado de baixo custo 2. Desenvolvimento de um sistema de baixo custo para geração de sinal de correção diferencial, em tempo real, para GPS

MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR

NELSON Luís CAPPELLI - Unicamp/DLG

INVESTIMENTO 1. R$ 172.270,00 (FAPESP) 2. R$ 265.615,00 (FAPESP)

precisão do país. O analisador da com- pactação do solo, conhecido pelo nome de penetrômetro, é identificado como PNT-2000 e é o único modelo eletrôni- co, portátil e georreferenciado produzi- do no Brasil. "Os importados têm um custo muito mais alto, em torno de US$ 5 mil, enquanto o nosso sai por R$ 5 mil", diz o pesquisador. Além de mostrar o nível de compactação do solo, ele reve- la a profundidade das camadas compac- tadas e a localização espacial delas. "O solo compactado prejudica o cresci- mento das plantas porque impede o de- senvolvimento das raízes e a sua melhor fixação, além de diminuir a absorção de água e de nutrientes", diz Cappelli.

O PNT-2000 apresenta vantagens em relação aos aparelhos disponíveis no mercado, porque o processo de aquisição e armazenamento dos dados é todo automático. "Nos penetrômetros convencionais o usuário precisa fazer anotações a cada ponto, enquanto no nosso os dados ficam armazenados no próprio aparelho", afirma o engenhei- ro Cláudio Kiyoshi Umezu, que tam- bém participou da criação do produto. "Além disso, como nosso equipamento fornece as coordenadas geográficas, o usuário não precisa fazer um mapa to- pográfico para identificar a localização dos pontos amostrados", diz. O georre- ferenciamento (determinação da lati- tude e da longitude) depende do uso de um receptor de GPS acoplado ao equi- pamento.

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O funcionamento do penetrômetro é relativamente simples. Além de uma unidade para armazenamento das in- formações, o aparelho tem uma haste de metal de 60 centímetros de extensão que possui um pequeno cone metálico na extremidade. Para saber se o solo es- tá compactado, o usuário introduz a has- te na terra e um sensor de força mede a resistência à penetração da haste na terra. O dado colhido revela o nível de compactação do terreno. O aparelho também tem um sensor de distância por ultra-som que mede o quanto da haste foi introduzido no solo. Esse sensor, alia- do ao posicionamento obtido por meio do GPS, possibilita a elaboração de ma- pas tridimensionais da compactação do solo agrícola.

"É um aparelho de grande utilida- de em áreas de reflorestamento e de cul- turas com mecanização intensa e alto índice de compactação, como as plan- tações de cana-de-açúcar e de soja", afir- ma Guaitoli. Desde que começou a ser comercializado, em 2002, foram vendi- das oito unidades do aparelho para uni- versidades, instituições de pesquisa e uma empresa de reflorestamento, a Bahia Sul.

A outra inovação tecnológica sur- gida da parceria entre a DLG e a Uni- camp, por meio de um outro projeto do PIPE, também deve trazer benefí- cios para os produtores rurais. "Com o uso do sistema GPS com correção dife- rencial, também chamado DGPS (o D é de diferencial), os agricultores podem

Aparelho mede a compactação do solo, armazena os dados e possibilita a elaboração de mapas tridimensionais

elaborar mapas de produtividade, iden- tificar regiões com infestação de pragas e fazer mapas de aplicação de insumos com muito mais precisão", diz Cappel- li. Segundo o pesquisador, esse é o pri- meiro aparelho do gênero feito no país. "Decidimos criar esse sistema para ba- ratear o custo do equipamento e assim disponibilizar a tecnologia para grande número de usuários." O sistema impor- tado custa, no mínimo, US$ 8 mil, valor bem superior ao equipamento da DLG, que deverá ter o preço definido até o lan- çamento previsto para o final do ano.

Para entender a operação de uma estação DGPS é preciso primeiro saber como funciona o GPS. Esse sistema, criado nos anos 1970 pelo governo norte-americano, utiliza uma constela- ção de 24 satélites posicionados a cerca de 20 mil quilômetros de altitude. Du- rante muito tempo ele só foi usado para fins militares até que, em 1995, passou a ser aberto para uso civil, porém com um sinal de erro introduzido intencio- nalmente de 100 a 140 metros. A partir do ano 2000, as autoridades norte-ame- ricanas, com o objetivo de difundir seu uso comercial, decidiram desativar a de- terioração do sinal e deixar o sistema com sua imprecisão original, em torno de 15 metros. Para reduzir esse erro, é necessário recorrer ao DGPS, que con- siste numa base fixa localizada num ponto georreferenciado conhecido. As- sim, quem possuir um receptor GPS pode captar o sinal DGPS. O erro, en- tão, cai para 2 metros.

O aparelho da DLG possui um re- ceptor GPS base e um processador de correção responsável por identificar o tamanho do erro. A informação do erro é enviada por meio de um transmissor de rádio para os aparelhos de GPS mó- veis localizados, por exemplo, em trato- res e colhedeiras. Atualmente existem no Brasil poucas opções para correção do sinal, além de serem caras e muitas vezes possuírem receptores pouco pre- cisos. "Nosso DGPS vai reduzir o erro para algo como 2 metros e pode ser uti- lizado com quase todos os receptores GPS", diz Cappelli. •

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Page 79: O parasita do cérebro

I TECNOLOGIA

NOVOS MATERIAIS

(Um ímã diferente

Grafite desenvolvida por uma equipe de pesquisadores brasileiros e uruguaios tem propriedades magnéticas

YURI VASCONCELOS

esquisadores da Universi- dade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universida- de da República (Udelar), de Montevidéu, no Uruguai, conseguiram transformar

um composto puramente orgânico e não- metálico - o carbono grafite - em um ímã por meio de um tratamento químico barato. O novo material abre caminhos para a fabri- cação de dispositivos magnéticos como sen- sores e detectores usados em áreas que abran- gem da engenharia espacial até a medicina. Até agora pesquisadores europeus haviam conseguido tal feito, mas empregando técni- cas bem mais caras e complexas, como é o caso do método desenvolvido por uma equi- pe de pesquisadores da Alemanha que recor- reu ao bombardeio de um feixe de prótons, gerado por um reator nuclear, para produzir o magnetismo na grafite. "Além de ser um processo muito mais oneroso, complexo e ainda não totalmente explicado, o magnetis- mo obtido por eles é aproximadamente dez

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vezes menor do que o do nosso carbono", ex- plica um dos inventores, o engenheiro de ma- teriais Fernando Manuel Araújo-Moreira, pro- fessor do Departamento de Física da UFSCar, coordenador dos trabalhos no Brasil.

A importância do invento está no fato de que, por muito tempo, a comunidade cientí- fica acreditou que um material magnético de- veria obrigatoriamente conter átomos de ele- mentos metálicos como o ferro, o cobalto e o níquel. A pesquisa feita pelos cientistas das universidades brasileira e uruguaia demons- trou o contrário porque a grafite só possui átomos de carbono. "Conferimos ao arran- jo de átomos de carbono, que é o elemento base de todas as estruturas orgânicas, uma nova propriedade, o magnetismo", diz Araú- jo-Moreira. A patente do invento, denomina- da Processo de preparação áe materiais graftti- cos magnéticos e materiais assim preparados, foi depositada pela Fundação de Apoio Insti- tucional da UFSCar no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e tem co-titu- laridade das duas universidades. A lista de in-

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ventores inclui, além de Araújo-Morei- ra, a doutoranda Helena Pardo e o pro- fessor Álvaro Mombrú, coordenador dos trabalhos no Uruguai.

O novo material já repercutiu tam- bém no meio empresarial. Os pesquisa- dores da UFSCar estão em negociações com a empresa brasileira Nacional de Grafite, com sede na cidade de Itape- cerica, em Minas Gerais. Ela é a maior fabricante mundial de grafite natural cristalina com capacidade para pro- duzir 46 mil toneladas por ano, sendo que metade da produção é vendida para clientes no exterior. "O acordo prevê a alocação de cerca de R$ 300 mil para a continuidade de nossas pesquisas, agora em nível industrial, visando às aplicações tecnológicas", diz Araújo-Moreira.

As pesquisas para a ob- tenção de materiais orgâni- cos com propriedades mag- néticas são muito recentes e só foram iniciadas na década passada. Segundo o pesquisador da UFSCar, até hoje cientistas do mundo inteiro se perguntam se é possível produzir um material puramente orgânico com pro- priedades magnéticas. "Alguns grupos já haviam conseguido sintetizar com- postos orgânicos dotados de magnetis- mo, porém apenas em quantidade mi- croscópica e com sinais muito fracos, o que colocava em dúvida os resulta- dos", afirma Araújo-Moreira. "Nossa equipe conseguiu fabricar quantias ma- croscópicas da grafite magnética, que, embora muito pequenas, podem ser vistas a olho nu. Além disso, esse novo material é dotado de ferromagnetismo, uma propriedade que lhe garante uma magnetização permanente e a capaci- dade de atrair metais. Outra prova dis- so é que ele é fortemente atraído por um ímã a cerca de 10 centímetros de distância", diz ele.

O ferromagnetismo da grafite pro- duzida pelos pesquisadores da UFSCar e da Udelar tem também a vantagem de se manter estável à temperatura ambien- te. Isso é importante porque todos os magnetos obtidos a partir de carbono no passado só apresentam ferromag- netismo em baixíssimas temperaturas, próximas do zero absoluto (-273°C), o que limitava seu campo de aplicação.

O material descoberto pelas equipes dos professores Mombrú e Araújo-Mo- reira é estável ao longo do tempo por- que possui um sinal magnético que não sofre degradação com o passar dos meses. A amostra de 0,5 milímetro qua- drado produzida pelos pesquisadores em maio de 2004 continuava com seu magnetismo inalterado nos dez meses seguintes à sua sintetização. Essa pro- priedade é fundamental para a cons- trução de dispositivos e equipamentos com grande durabilidade.

e os resultados da pesquisa, feita em nível laboratorial, forem bem-sucedidos em escala industrial, a desco- berta de uma grafite com propriedades magnéticas de-

verá inaugurar uma nova fase na en- genharia de materiais. Como é um ma- terial recém-descoberto, ainda não se sabe exatamente em que ele poderá ser aplicado. Os pesquisadores acreditam que ele será empregado num grande número de dispositivos de alta tecno- logia, como sensores, atuadores (dis- positivos que se movimentam em uma linha de produção de semicondutores ou em bancadas de análises clínicas, por exemplo), detectores, além de equi- pamentos dos setores aeroespacial, químico, eletrônico, de telecomunica- ções e biotecnológico. Por ser, por en- quanto, o único material magnético 100% biocompatível, a grafite magné- tica tem chances de ser usada também na medicina. "Marcapassos e válvulas cardíacas são baseados em processos magnéticos e um material 100% orgâ- nico, que não causa rejeição no orga- nismo humano, e magnético permiti- rá novos avanços nesses aparelhos", diz Araújo-Moreira. "Além disso, pesqui- sadores canadenses estão começando a pesquisar o uso da grafite magnética para tratamento de câncer."

Aceito para publicação no mês de março na revista científica Physical Re- view B - Rapid Communications, o estu- do já atingiu uma boa repercussão. "Se ficar comprovado que os resultados são

reproduzíveis e que a amostra não con- tém impurezas de ferro, esta é uma grande descoberta na área de ciência de materiais", disse a pesquisadora rus- sa Tatiana Makarova, da Universidade Umea, na Suécia, considerada uma das maiores pesquisadoras na área de car- bono magnético. "As diferenças entre o carbono magnético produzido pela equipe liderada pelo professor Araú- jo-Moreira e outros materiais similares estão na amplitude do efeito magnético do primeiro e no fato de seu método de produção ser barato", diz ela.

O próximo desafio dos cientistas é demonstrar que é possível produzir carbono magnético com as mesmas ca- racterísticas - sinal forte em tempera- tura ambiente e estável ao longo do tempo - em grandes quantidades e de- senvolver um processo industrial. No âmbito das negociações com a empresa Nacional de Grafite está também pre- visto um trabalho conjunto a ser sub- metido às agências de fomento à pes- quisa com o objetivo de desenvolver suportes para catalisadores baseados em carbono magnético. Esses supor- tes seriam usados para acelerar rea- ções químicas geradoras de produtos químicos.

Simples e econômico - Para fabricar a grafite magnética, o professor Araújo- Moreira e seus colegas recorreram a um processo inédito, diferente de tudo que já havia sido feito até então. "Tra- ta-se de um método muito simples, ba- seado num processo químico contro- lado de oxidação-redução (redox) em fase vapor, que, por ser econômico ao utilizar reagentes comerciais de baixo custo, permitirá, no futuro, sua fabri- cação e comercialização por pequenas empresas."

A produção em laboratório é feita em um forno com atmosfera controla- da, onde são colocados dois cadinhos (recipientes cerâmicos que suportam altas temperaturas), um deles com gra- fite comercial em pó e outro com um oxido de um metal como, por exemplo, o de cobre (CuO). O forno é mantido aquecido a 1.200°C durante 12 a 16 ho- ras. Sob esta temperatura, o oxido de cobre se decompõe e é reduzido a cobre metálico. O oxigênio liberado por ele provoca a oxidação controlada da gra- fite e introduz em sua estrutura peque-

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Topografia do grafite magnético em microscopia de força atômica (acima). Imagem mostra trilhas ferromagnéticas [nas partes mais claras) típicas de materiais magnéticos

nos defeitos, em forma de cavidades, que, supõem os pesquisadores, são res- ponsáveis por conferir propriedade magnética ao mineral. "Na verdade, a origem do fenômeno de magnetismo nesses materiais ainda não foi total- mente elucidada", diz Araújo-Moreira. O pesquisador aponta que dados mais recentes obtidos por meio de simula- ções em computador indicam o apare- cimento de um forte ferromagnetismo como conseqüência da falta de átomos de carbono na estrutura atômica típica da grafite. A simulação retira um áto- mo do carbono e ele fica magnético. No

laboratório, provavelmente, essa ausên- cia de átomos de carbono na estrutura da grafite é alcançada por meio de um ataque químico.

A descoberta do novo material é re- sultado de três anos de intensas pesqui- sas. "Tudo começou em 2001, durante o pós-doutoramento do pesquisador uruguaio Álvaro Mombrú no Departa- mento de Física da UFSCar, sob minha supervisão. Foi aí que nasceu a idéia de estudarmos as propriedades físicas e químicas da grafite, da qual derivou a descoberta do processo químico que le- vou à obtenção da grafite magnética",

recorda Araújo-Moreira. Naquele ano, a revista de divulgação científica ameri- cana Nature publicou um artigo que mostrava a possibilidade de fabricação de uma variante de carbono puro mag- nético. A terceira integrante da equipe, a química uruguaia Helena Pardo, faz atualmente doutorado no Instituto de Física da Faculdade de Química da Universidade de Ia República de Mon- tevidéu, no Uruguai, sob a dupla orien- tação de Araújo-Moreira e Mombrú.

Caracterização detalhada - Para certifi- car-se de que o material produzido ti- nha realmente características únicas, a equipe submeteu a amostra a uma ex- tensa bateria de testes, realizados no Laboratório de Semicondutores do Departamento de Física da UFSCar, trabalho realizado pelo pesquisador Giovanni Zanelato, e no Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), com o professor Ed- son Leite, da UFSCar, além da colabo- ração do professor Oscar Ferreira de Lima, do Laboratório de Materiais e Baixas Temperaturas (LMBT) do Insti- tuto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O experimen- to realizado nesse último laboratório, feito com um magnetômetro Squid (Superconducting Quantum Interferen- ce Device ou Dispositivo Supercondu- tor de Interferência Quântica) mediu a variação da magnetização do material com a temperatura. Esse teste demons- trou que a grafite permanece magnéti- ca até 80°C.

Além dos exames laboratoriais que demonstraram a efetividade do méto- do químico, a amostra foi submetida a uma análise química com um espectro- fotômetro de absorção atômica que ve- rificou a pureza do material, constatan- do a ausência, em níveis indesejados, de qualquer impureza metálica ferromag- nética tais como ferro, cobalto e níquel. Um exame complementar de micros- copia eletrônica de varredura confir- mou a existência dessas cavidades na grafite, provocadas pelo ataque quími- co. Por fim, observações realizadas com um microscópio de força atômica e de força magnética mostraram, em ima- gens bi e tridimensionais, a existência de trilhas magnéticas na grafite, carac- terísticas dos metais ferromagnéticos, materiais que atraem metais. •

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ANTROPOLOGIA

Em nome de Deus Projeto resgata relação real entre missionários e indígenas

CARLOS HAAG

les sentam no trono de São Pedro, mas suas preocupações estão mesmo em Paulo, o primeiro "missionário" que

foi até os "pagãos" para levar a mensagem cris- tã. Assim, sintomaticamente, os missionários estiveram no foco final do último papa e no primeiro do novo. "Os missionários são o pão partido para a vida do mundo que fazem res- soar com sua ação as palavras do Redentor e não duvidam em dar vida ao Evangelho", escre- veu João Paulo II num documento póstumo re- cém-revelado pelo Vaticano. "Devemos ser mis- sionários, animados por uma santa inquietação: levar a todos o dom da fé. O amor de Deus nos foi dado para que chegue aos outros. Recebe- mos a fé para doá-la aos outros", anunciou Ben- to XVI em sua primeira homília aos cardeais, um dia após ser eleito pontífice. Longe das su- tilezas teológicas, os missionários influenciam até mesmo a sociedade laica: não foi sem razão que, por causa de questões de terra, uma freira norte-americana foi baleada na Amazônia.

A ação missionária é uma questão comple- xa-em especial a iniciada no século 16, pe- los jesuítas, na América portuguesa recém- descoberta, junto aos nativos - e continua ainda

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hoje a inquietar a Igreja. "João Paulo II esforçou-se em ser o grande missioná- rio", observa Paula Montero, coordena- dora do projeto temático Missionários cristãos na Amazônia brasileira: um es- tudo de mediação cultural, apoiado pela FAPESP. Mas apesar desse labor simbólico do Vaticano, desde os anos 1970, a intervenção missionária junto aos povos indígenas é vista de maneira maniqueísta, como um choque cultural de vencedores e vencidos (ou acultura- dos). "Esse encontro não foi apenas di- zimador, mas propiciou o estabeleci- mento de relações entre culturas", revela a pesquisadora. "Uma das grandes ques- tões que nos são colocadas hoje é com- preender o sutil processo pelo qual as diferenças, que supostamente estariam condenadas ao desaparecimento, ante a globalização, são recriadas e reinven- tadas. Em nossa pesquisa, interessa-nos sobretudo perceber esse processo dinâ- mico de reelaboração cultural, quando mediado por um ator social particular: o missionário cristão", diz Marco Rufi- no, da equipe do projeto, cujos resulta- dos serão lançados em livro pela Edito- ra Globo.

"Assim, o foco da reflexão se desloca, pois, do ponto de vista das sociedades indígenas para situar-se nos espaços de produção das relações de interação; trata-se de compreender como dois (ou mais) pontos de vista interagem para produzir significações compartilhadas em níveis cada vez mais generalizantes", explica a coordenadora. "Um motivo a mais para voltar à história das missões: como história emblemática da estrutu- ra pluricultural da modernidade, já que elas apresentam a primeira etnografia da alteridade, cujo valor histórico trans- cende a dimensão 'religiosa', e, por outro lado, constituem uma arqueologia de todas as ciências humanas que, por meio dos encontros-choques entre diversas civilizações, continuam narrando o ca- minho dos homens e o 'sentido' que eles se esforçam para dar às suas vidas", avalia outro membro da equipe, Nicola Gasbarro. "De direito e de fato, eles são os primeiros antropólogos da moder- nidade", completa o pesquisador.

Curiosamente, o movimento mis- sionário - que se modificou muito ao longo da história e, ao contrário do sen- so comum, não foi apenas um braço do

Estado colonizador (embora seus inte- resses possam, por vezes, se interligar), mas dotado de vontade própria - tem sua origem no desejo de universalidade do cristianismo ao se colocar como o "verdadeiro culto do verdadeiro Deus". Nesse movimento, a Igreja é estrutural- mente missionária, nota Gasbarro. "As missões são uma prática de evangeliza- ção que permite passar da universalida- de potencial para a universalidade atual e histórica." Na base desse edifício está o conceito de salvação, organizador de diferenças ao reunir, sob sua "grandeza espiritual", a pluralidade. Todos, até ín- dios, são homens e precisam ser salvos. "O grande projeto missionário da Con- tra-Reforma nasce de uma urgência cul- tural: o Ocidente tenta compreender as outras culturas em termos de 'civiliza- ção' e de 'religião', porque se trata das estruturas fundamentais da vida social", observa o pesquisador. A religião vira construtora do real.

A descoberta dos novos povos do Novo Mundo foi uma chance de ouro para a Igreja colocar em prática o novo conceito de "salvação" como amálgama universalizante. Da teoria à prática, po-

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rém, havia todo um oceano a separar jesuítas e nativos. O modelo cristão mo- noteísta existia em oposição ao antigo paganismo clássico: o Deus único pre- cisava de rivais para poder exibir seu poder maior. O problema é que a reli- giosidade dos índios não servia para isso: eles efetivamente não acreditavam em grandes forças superiores. Foi o iní- cio de uma longa e penosa "tradução" da religião (o que explica por que, an- tecedendo a catequese, houve a necessi- dade da escrita das gramáticas dos na- tivos) e da barganha entre as duas culturas. Ao mesmo tempo, foi preci- so fazer do índio um "civil" para que ele pudesse receber a dádiva espiritual. "No começo da catequese trata-se, por- tanto, da idéia de tornar os índios 'ho- mens' (= civis) para fazê-los, depois, cristãos, idéia esta que acompanha to- do o processo de evangelização no Bra- sil colonial", diz Cristina Pompa, tam- bém pesquisadora do projeto. Dessa forma, então, não se pode mais falar no encontro entre missionários e indíge- nas como "um choque entre dois blo- cos monolíticos, um impondo seus es- quemas culturais e religiosos e outro absorvendo-os, sendo destruído (ou aculturado) por eles ou, por outro lado, 'resistindo' em volta de sua imutável tradi- ção", continua a autora.

Significa a produção de um consenso negociado. "Há um cálculo do índio também no que diz respeito às relações com o missioná- rio e, simplesmente, não se pode falar em fusão de cul- turas, mas num conjunto de relações que se acordam em torno de alguns interesses comuns que acabam por produzir relações intercul- turais", explica Paula Montero. Tupã se torna o equivalente do Deus monoteís- ta cristão, Nossa Senhora se transforma em Tupansy e os pajés viram os diabos. "O imaginário europeu construiu a al- teridade indígena a partir de uma revi- são e de uma rearticulação de algumas categorias religiosas: a fé, a profecia, a esfera demoníaca. A partir daí, con- truiu-se o projeto missionário. Parale- lamente, o 'outro' indígena realizava a sua leitura da alteridade colonizadora e missionária, tentando absorvê-la e plas- má-la segundo suas categorias: o sim-

bolismo mítico-ritual", continua Cristi- na. Desde o início, então, não se obser- vam polaridades irredutíveis, mas um jogo, uma "tradução", na procura de um patamar comum, uma dimensão de trânsito simbólico que teve no "re- ligioso" a sua linguagem de mediação.

em negar a truculência com que os nativos foram tratados, o projeto revela que até mesmo "a adesão ao uso de símbolos cris- tãos traduz a dinâmica

histórica pela qual os indígenas busca- vam instrumentos de afirmação políti- ca no mundo colonial, construindo um universo simbólico compartilhado por outros atores sociais e resconstruindo com esses uma nova hierarquia das re- lações sociais e de poder". Mas novos tempos se seguiram e uma nova Igreja pedia um novo missionário. A partir do século 19, a indexação é invertida: a ci- vilização passa a ser o novo código ge- neralizador do mundo no lugar da "sal- vação". "Ao longo do século 20 vai se consolidando uma nova noção de cul- tura, reificada pelas lutas políticas dos séculos 19 e 20 como um conjunto de

traços específicos hereditários", con- ta Paula. Nos anos pós-1970, os mis- sionários viram agentes culturalistas. "O campo religioso foi relativamente neutralizado como campo legítimo da tradução, a cultura nativa compreendi- da como rito, cerimônia e tradições, já estava constituída como tal na percep- ção desses atores. O campo da tradução pôde assim deixar a gramática do reli- gioso e adotar o campo da 'cultura' (da identidade étnica ou etnicidade) como linguagem de negociação de sentidos", observa a coordenadora.

"Nos anos pós-1970, o código de sal- vação dos missionários se move do espi- ritual (a alma a ser convertida) ao cultu- ral (a tradição a ser salva), sem perder sua capacidade de organização de sen- tidos." Toda essa reversão se consolida, nos anos 1960, com o Concilio Vaticano II: na tentativa de incorporar a uma ins- tituição europeizante os muitos bispos não-europeus, a Igreja assume em seu vocabulário o conceito antropológico de cultura. Num primeiro momento, isso é levado ao extremo, em especial pelos ideólogos da chamada Teologia da Li- bertação, dos anos 1970, que "reúne sim- bolicamente", observa Rufino,"os grupos indígenas do continente aos operários da indústria, aos camponeses e agricul- tores desterrados, aos negros vitimados pelo preconceito, aos marginalizados dos centros urbanos e quem mais cou- besse no amplo conjunto de excluídos".

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NAM vi ^fe

Cai em declínio o modelo religioso de conversão. "A nova idéia de con- verter o índio é apoiá-lo em suas lutas políticas. O missionário é agora o con- vertido, só que nas questões de sobre- vivência do índio", nota Paula. O pon- tificado de João Paulo II marcou um ponto de inflexão nesse movimento "ortoprático" de reunião de fé e práxis. Um crítico severo (ao lado do então cardeal Ratzinger), João Paulo II defen- deu um novo ideal missionário sob a forma da "inculturação", um mergulho não nos problemas sociais, mas na al- teridade. O missionário é reinventado e a Igreja pretende ser absorvida nas muitas diversidades. "João Paulo colo- cou a questão cultural no centro do seu pontificado. Daí a importância de suas viagens, em que a Igreja imergia nas di- ferenças para tentar encontrar um de-

0 PROJETO

Missionários cristãos na Amazônia brasileira

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADORA PAULA MONTERO - Departamento de Antropologia da USP

INVESTIMENTO R$ 274.968,00

nominador comum. As peregrinações passam a ser elemento de unificação das diversidades", diz a pesquisadora. Dessa maneira, João Paulo II foi mes- mo o grande missionário.

Espiral - O dilema do religioso dos dias de hoje é reverter o passado, numa cu- riosa e inusitada espiral do tempo: pa- ra que o índio possa ser salvo é preciso que ele volte a recuperar os traços que tragam novamente a sua alteridade co- mo índio. Assim, os novos missionários caminham no sentido inverso de seus antecessores, que trouxeram a civiliza- ção aos nativos. Agora é preciso ensi- ná-los novamente o que é ser indígena. Esse é o novo discurso do novo mo- mento do movimento. Mas o refluxo do catolicismo trouxe à cena outras reli- giões (protestantes, universais, batistas, Assembléia de Deus etc.) que também resolveram "cuidar" do índio. São as chamadas "missões transculturais", que, nota Ronaldo de Almeida (também da equipe), "anunciam o Evangelho às cul- turas, remodelando o universo de valo- res, rituais e comportamentos segundo os parâmetros da religiosidade evangé- lico-fiindamentalista". Intervencionis- tas, elas acabam por se aproximar do modelo jesuíta colonial e, ao contrário da inculturação católica, não se inte- ressam em auxiliar na luta política dos indígenas, mas apenas no aspecto reli- gioso em si.

"Muitos missionários tendem a se transformar em assistentes sociais, em funcionários de organizações humani- tárias, talvez até apóstolos de revolu- ções políticas. Eles silenciam quanto ao anúncio do Evangelho como esperança de vida eterna, nada falam da necessi- dade do batismo para participar dessa promessa. Chegamos a desencorajar as conversões ao cristianismo, invertendo o papel do missionário": palavras do então cardeal Joseph Ratzinger. "Creio que a chegada de Bento XVI coincide com o fim do ciclo das potencialidades do Concilio Vaticano II. Ele é um teólo- go e já avisou que não pretende correr o mundo, como o antigo papa. O de- senvolvimento da questão cultural con- tinua central com o novo pontífice, mas ficará no plano da reflexão, da doutrina, e não no do ritual, como ocorreu com João Paulo II, que foi ao encontro de outras culturas", avalia Paula. Ele se mostra disposto a se abrir ao outro, diz, "mas buscando uma uni- versalidade ética da condição huma- na para além das diversidades cultu- rais". Nada leva a pensar o contrário do homem que, em Dominus Iesus, docu- mento escrito por ele em 2000 como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, negava que outras religiões do mundo, que não a cristã, pudessem oferecer a salvação aos povos. "Conver- ter os povos ao catolicismo é um dever urgente", conclamava então. •

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I HUMANIDADES

ECONOMIA

Estudos revelam a relação entre Legislativo, Executivo e os grupos de pressão de interesses

oi de um prosaico "chá- de-cadeira" do século 19 que nasceu o hoje tão mal-afamado "lobby": representantes de agri- cultores do Estado de

Virgínia, nos EUA, se plantavam nas ante-sa- las {"lobby", em inglês) do Congresso para, na pressão da conversa, influenciarem as decisões dos políticos. Por aqui, alguns entreviram sua presença ainda incipiente na tramitação de leis como a criação da Petrobras ("O Petróleo é nosso!") ou o Estatudo do Trabalhador Rural. Mas o lobbying cresceu mesmo em outra época. "O seu desenvolvimento ocorreu em meados dos anos 1970, quando o país estava sob o regi- me militar, que centralizou o processo de to- mada de decisões no Executivo, fragilizando o Legislativo", conta Andréa Cristina de Jesus Oliveira, autora da pesquisa Lobby e represen- tação de interesses, realizada na Unicamp.

Longe de mera espera para pressionar, o lobbying do Executivo nacional se baseava na compra de acessos e resultados, por meio de corrupção e tráfico de influência. Não se espe- raria nada melhor de uma ditadura e a prática se transformou num jargão popular para "ne- gociatas". O curioso é que o "mal" que crescera nos corredores do Planalto com os generais teve o seu o apogeu com a democratização do país. "A partir de 1985 houve o fortalecimento do Congresso Nacional como poder político e, logo, dos grupos de pressão, que retomaram

seu lugar no processo democrático", diz. Daí, uma inusitada verdade: "A atividade do lobby- ing, independentemente do formato que assu- ma, é essencial em sociedades democráticas, porque os tomadores de decisão são confronta- dos com uma complexa rede de interesses e a informação técnica que os lobistas levam a eles é fundamental, ao subsidiar sua análise sobre o melhor caminho a seguir. Ele se transforma em força social de aproximação entre a sociedade civil e o Estado", acredita a pesquisadora.

Andréa, no entanto, reconhece que não é fácil extrair o estigma da prática. "A corrupção, o lobbying não-legítimo, sempre existiu e con- tinuará existindo enquanto não houver um sé- rio debate envolvendo sociedade e governo sobre os limites da atuação dos lobistas no Bra- sil" avisa. Nos EUA, por exemplo, o lobby, ati- vidade prevista pelo exercício de liberdades previstas pela Primera Emenda, é regulamen- tado desde 1946. Aqui, em 1983, o então sena- dor Marco Maciel apresentou o projeto de lei 6.132, ainda não votado, que dispõe sobre o re- gistro de pessoas físicas ou jurídicas que exer- cem qualquer atividade que influencie o pro- cesso legislativo. "Ela não passa, porém, de uma tradução da lei americana de 1946.0 nos- so lobbying tem peculiaridades de que ela não dá conta", afirma. Entre essas, a concomitância do foco de atuação: a via do tráfico de influên- cia ou da informação.

"O caminho da corrupção é caro e sem ga- rantias. O grupo de pressão está sujeito, toda

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vez que o assunto voltar a apresentar riscos ou oportunidades, a ter que re- tomar relações espúrias e mais dinhei- ro será gasto. Além disso, no Brasil, o Executivo hoje compete em poder com o Legislativo: 85% dos 5 mil projetos são propostos por ele. Nada garante que uma conquista do lobbying de hoje caia por terra com a chegada de um medi- da provisória do governo", conta. Já, ava- lia a pesquisadora, a escolha pelo lobb- ying legítimo, que leva informações para o agente político, cria um canal positi- vo de comunicação com o governo e há grandes chances de ele ver sua pressão transformada em lei, de forma segura e duradoura. "A maioria dos lobistas que entrevistei é favorável à regulamenta- ção do lobbying ç. há mesmo iniciativas, em face do desinteresse dos parlamen- tares, em criar uma auto-regulamenta- ção da prática. Para eles, um debate so- bre a realidade do lobby porá fim ao estigma e esclarecerá o seu real signifi- cado junto à opinião pública", consi- dera. Os contrários a uma legislação são apenas mais pessimistas quanto aos resultados. "Eles argumentam que não há forma de garantir o fim da corrup- ção e que lei só traria menos liberdade à atuação legítima."

Executivo - A grande questão, então, é o desinteresse dos parlamentares. "Não há vontade política para a regulamenta- ção, tanto no Executivo como no Legis- lativo. Afinal, os próprios parlamenta- res, muitas vezes, cumprem o papel de lobistas ao intermediar a liberação de verbas para estados e municípios ou defender setores que representam ou de que fazem parte", diz Andréa. "Há, no Congresso, parlamentares que são donos de convênios médicos, universi- dades, agronegócios, indústrias etc. A lei do lobbying iria tirar a liberdade de ação que eles têm hoje", explica.

Foi a Assembléia Constituinte que trouxe os grupos de pressão de volta ao Legislativo. "Muitos dizem que, na épo- ca, havia mais lobistas do que congressis- tas durante os debates da Constituição. Havia 383 grupos de pressão creden- ciados, entre esses o 'lobby do batom', grupo que defendeu causas feministas e questões como licença-maternidade, aborto, pátrio-poder, entre outras, que foram encaminhadas, com a ajuda des- sa equipe, de forma decisiva", lembra.

Segundo a autora, outros projetos fo- ram aprovados com a participação de- cisiva de grupos de pressão, ao longo dos anos 1980, como o aumento da con- tribuição previdenciária, a reserva de mercado na informática, o estatuto da microempresa etc. O lobby nem sempre é "do mal".

Ainda que essa teoria funcione vá- rias vezes, nem sempre é perfeita. "Qualquer grupo de interesse pode se associar e montar uma estratégia de lobbying no Congresso. Porém uma ação dessas implica investimentos de porte e nem todos têm condições finan- ceiras e estrutura para a prática. Só isso já leva a um desequilíbrio na esfera da representação de interesses. Um bom exemplo é a disparidade entre o lobby- ing da Confederação Nacional da In- dústria (CNI), com vastos recursos, e o

do Departamento Intersindical de As- sessoria Parlamentar (Diap), que de- pende da mensalidade de seus associa- dos para se manter", observa Andréa. Essa diferença, aliás, é o tema de outra pesquisa, o Lobby da indústria no Con- gresso Nacional, de Wagner Pralon Man- cuso, da USP, que contou com o apoio da FAPESP.

Segundo dados apurados pelo pro- fessor, as classes produtoras, desde 1996, fizeram chegar à Câmara e ao Congresso 233 propostas de alterações legais, das quais 67,8% foram aceitas pelos parlamentares. Dentre as leis e emendas constitucionais aprovadas, 85% delas foram ao encontro do dese- jo dos grandes industriais brasileiros. Ao se analisar a estrutura das vitórias, percebe-se bem o poder de fogo do grupo de pressão empresarial: 79,3%

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delas foram em questões ligadas à in- fra-estrutura; 74% sobre legislação trabalhista; 62,5% no quesito finan- ciamento; 61,4% de sucessos sobre a regulamentação da economia; mesmo na questão tributária, em que têm me- nos influência, eles venceram em 56,4% das questões votadas. E fazem, pessoal- mente, um bom número: há 100 par- lamentares que se apresentam como empresários e, ao se juntar outros 150 políticos que se alinham com eles, a bancada empresarial consegue um lob- bying e tanto: 250 parlamentares ante 50 políticos da bancada de sindicalis- tas. "Minha tese vai de encontro aos que sustentam a posição da debilidade po- lítica da indústria no Brasil, que repre- sentam os empresários do setor como inábeis para a ação coletiva e que atri- buem isso à presença do sistema cor-

porativista de representação de interes- ses", avalia.

Sucesso - "A indústria não somente tem sido capaz de identificar projetos de lei referentes ao custo Brasil e de definir e defender seu ponto de vista em relação a eles, mas também tem obtido um ín- dice de sucesso elevado", observa. As vá- rias correntes históricas e sociológicas por décadas denunciaram a incapacida- de do setor industrial de liderar um pro- jeto de desenvolvimento econômico in- dependente para o país, já que viveriam cindidos por visões de mundo e interes- ses incompatíveis. A partir dos anos 1990, no entanto, com a inflexão liberal e a retração do Estado, analisa Mancuso, o empresariado nacional tomou a ban- deira da redução do custo Brasil (con- junto de fatores que prejudicam a com-

petitividade das empresas do país ante as estrangeiras: leis trabalhistas, falta de infra-estrutura, tributos elevados, entre outros fatores) como forma de se trans- formar num ator político eficiente.

A chegada de produtos importados ao mercado, com a nova onda liberal, acabou causando essa inusitada reu- nião de interesses do setor industrial, que passou a buscar com mais ênfase a competitividade por meio do lobbying junto ao Executivo e ao Legislativo. "As- sim, mesmo reconhecendo os limites estruturais da burguesia industrial bra- sileira, minha pesquisa sustenta que os produtores realizaram uma atividade política intensa, e muitas vezes bem- sucedida, ao longo de todas as fases do processo de industrialização e, hoje, continuam atuando e colhendo sucessos importantes", nota o autor. Por meio de uma CNI profissionalizada (na Consti- tuinte ela se saiu mal em seu lobbying) para a pressão, os industriais passaram a realizar um trabalho constante de identificação e monitoramento de pro- posições legislativas que teriam impac- to no custo Brasil.

"É importante compreender que o clamor dos industriais pela redução do custo Brasil não foi motivado apenas pelo anseio de enfrentar os concorren- tes estrangeiros. O interesse pelo merca- do interno também desempenhou o seu papel. Para os empresários industriais, a conquista dos novos mercados no ex- terior não pode prescindir dos desdo- bramentos benfazejos que a redução do custo Brasil exerceria sobre a com- petitividade das suas empresas."

A CNI, em sua Agenda Legislativa de 2000, assume "a prática de um lobby aberto e permanente", cujo alvo prio- ritário, nota Mancuso, é o Executivo. À proporção que as decisões empresariais determinam em grande medida o per- fil da economia, há, nota o autor, "nas decisões do Estado deferência e aten- ção especiais às necessidades do empre- sariado. Assim como os políticos, a po- pulação percebe que a própria sorte está ligada à sorte dos empresários", diz. "A lei de falências e a alteração da MP 232 são dois bons exemplos que pare- cem sugerir que o sucesso político do empresariado industrial se mantém sob o governo Lula", afirma Mancuso. •

CARLOS HAAG

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I HUMANIDADES

MUSICA

Esse danado do samba

Academia tenta entender como gênero transformou-se no mais importante da música brasileira no século 20

GONçALO JúNIOR

nunciaram e ga- rantiram que o samba ia se aca- bar. Assim diria Assis Valente (1911-1958),

numa paródia moderna à sua famosa composição sobre o fim do mundo, cantada por Carmen Miranda nos idos de 1930. Disseram até que o gênero fo- ra morto pela bossa nova e, mais adian- te, pelo tropicalismo. Décadas depois, nos anos 1990, o carrasco teria sido o pagode romântico de estúdio feito com sintetizadores. Embora tenha enfrenta- do a concorrência de vários modismos nos últimos vinte anos e apareça pouco na mídia hoje, o samba é o mais popu- lar e duradouro ritmo musical brasilei- ro do século 20, além de uma das mais

expressivas manifestações culturais do país - indissociável do Carnaval.

Assim como o ]azz e o blues na América, o samba atravessou um sécu- lo com mutações, fusões, adesões e ex- perimentos. Um ritmo que se reacende a cada ano na folia de momo e nos dis- cos de seus mais vigorosos representan- tes hoje: Paulinho da Viola, Zeca Pago- dinho, Dudu Nobre ou Luis Carlos da Vila, entre outros. Como explicar tan- tas mortes anunciadas e renascimentos e compreender tamanha popularidade que ainda desfruta? Ou por que o sam- ba se impôs nos primórdios da indús- tria fonográfica e radiofônica ou foi adotado por Getúlio Vargas para esta- belecer uma identidade cultural?

Esses e outros temas são discutidos em três teses de doutorado das mais

importantes porque ajudam a redi- mensionar os papéis histórico e cultu- ral do samba. O curioso é que os auto- res são todos paulistas, fato que parece ter ajudado a dar um útil distancia- mento para que fossem feitas leituras coincidentemente complementares e reveladoras de uma música tão mar- cante como sendo carioca, embora te- nha vindo da Bahia e se instalado tam- bém em São Paulo.

Em Abençoado e danado do samba, Ricardo José Duff Azevedo recorreu a um extenso acervo de 7 mil letras de samba para mostrar valores da tradi- ção oral brasileira. Ele explica por que canções do gênero fazem parte do ima- ginário popular. Apresentada ao Pro- grama de Pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do

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Samba elegante: cultura popular desprezada pela elite, mas fonte de criação erudita

Departamento de Teoria Literária e Li- teratura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a dissertação partiu do princípio de que as letras de samba representam um extraordinário acervo de algo que poderia ser chamado de "discurso popular".

Azevedo destaca que as culturas po- pulares e suas manifestações tendem a se processar por meio de "padrões de longa duração". O fenômeno seria con- trário ao das culturas moderna, de mas- sa e erudita, que seguiriam "padrões de curta duração" - quase mecanicamen- te em busca do "novo", da "nova forma" etc. Assim, nos sambas, por estarem vinculados aos processos de longa du- ração, os procedimentos com a lin- guagem e muitos temas seriam recor-

rentes no decorrer de todo o século 20 até hoje. Alguns deles: a família, o tra- balho, a festa, o envelhecimento, a morte, a religiosidade, o "nós", entre outros assuntos ligados à vida concreta e cotidiana.

Malandro - A tese de fôlego de Azevedo - ainda sem editor - reúne cerca de 500 letras de samba, recolhidas de um uni- verso de mais de 7 mil músicas, das quais fez uma pré-seleção de 4,8 mil. Em vez de recortar períodos históricos, ele procurou demonstrar recorrências num espectro amplo, o que permitiu uma outra compreensão da importân- cia do samba. O autor considera um equívoco, por exemplo, o fato de mui- tos estudos localizarem o "malandro" nas décadas de 1930 e 1940 e falarem de

seu "desaparecimento". O que pode ter desaparecido, explica, é uma certa ver- são do malandro. "O samba fala de ma- landragem e adota um 'tom malandro' desde o primeiro samba gravado até agora." Na verdade, o malandro nunca existiu, isso sim, num discurso mais culto, também presente nas letras da música popular brasileira.

Ao mesmo tempo que as culturas populares costumam ser solenemente desprezadas pelas elites culturais, têm marcado e sido fontes de parte signi- ficativa da cultura erudita brasileira através de todo tipo de apropriação. "Defendo a idéia de que as letras de samba só podem ser compreendidas e avaliadas quando vistas como expres- são de um determinado modelo de consciência. No âmbito da música po-

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pular brasileira vejo o tropicalismo co- mo a representação mais acabada e nítida de um modelo que chamei de oficiar." O au- tor utilizou várias letras tropicalistas de forma com- parativa para ressaltar as características das letras de samba.

Enquanto as composi- ções tropicalistas tendem a pressupor leitura, releitura e interpretação da realida- de vista por seus autores, as de samba costumam ser criadas para o compartilhamento, a co- municação imediata e a memorização, sempre por meio de temas amplos, ca- pazes de gerar grande identificação en- tre as pessoas. Daí sua popularidade e massificação. Dentro dessa lógica, tra- ta-se de uma produção para a qual a música convida a comunidade a parti- cipar, "uma vez que sua função como espectador não é aceitar passivamente sua obra, mas repeti-la novamente para si mesmo".

No caso do tropicalismo, por exem- plo, esses temas tendem a desaparecer do discurso escolarizado e oficial, que optou por temas mais específicos de uma forma muitas vezes distanciada, analítica e impessoal, como se propu- sesse uma "teoria". "Não pretendo cri- ticar o tropicalismo, dizer que o samba é melhor ou pior, mas, sim, ressaltar que as letras do tropicalismo foram criadas a partir de um modelo cons- trutivo e de padrões éticos e estéticos diferentes daqueles utilizados pela maioria dos sambistas, sejam eles alfa- betizados ou não."

Indústria - Cada vez mais o samba dei- xou de ser, nas primeiras décadas do sé- culo 20, uma música tradicional para se tornar um produto da assim chamada indústria de diversões. A possibilidade de profissionalização do músico popu- lar, a chegada do rádio comercial - em busca de novidades - e o projeto nacio- nalista do governo de Getúlio Vargas mostraram o envolvimento de boa par- te da sociedade brasileira na criação do "samba nacional", um misto de tradi- ção e modernidade. Essa é a síntese da tese de José Adriano Fenerick, Nem do morro, nem da cidade: as transforma- ções do samba e a indústria cultural -

1920-1945 - também defendida na FFLCH da USP.

enerick viu na moderniza- ção do Rio de Janeiro nos primórdios do século pas- sado, em sintonia com o surgimento de novos meios de comunicação, um cená-

rio propício para que o samba sofresse inúmeras transformações. Assim, a partir da década de 1920, com a difusão da indústria fonográfica, o ritmo come- çou a se transformar e a se modernizar. Deixou de ser apenas uma festa feita em casas de mães-de-santo para ganhar outros significados. Num primeiro momento tornou-se gênero musical, identificado com a população negra do Rio de Janeiro. Logo após passou a ser um misto de música e dança, identifi- cado com o Brasil. "O samba se acario- cava e tomava a frente pelo fato de o Rio ter sido pensado, na época, como uma espécie de cartão-postal' do país", explica o pesquisador.

A indústria do disco teve grande in- fluência no surgimento desse novo ti- po de música, que Fenerick denomina de "samba moderno". O samba de pa- gode, praticado como partido-alto, que era composto de improvisos a partir de um tema, podia durar um dia inteiro. Com sua gravação em disco não se pô- de mais improvisar, ao menos na letra, pois se estabeleceu uma versão definiti- va, registrada em acetato e que passou a ser difundida pela sociedade também através do rádio para todo país. Além disso, o sambista ganhou status de mú- sico profissional, principalmente os cantores, já que os compositores tive- ram inúmeros problemas para se esta- belecer.

Nesse aspecto, um dos tópicos tra- tados por Fenerick foi a ainda pouco investigada venda de sambas - quase sempre abordada como folclore por bió- grafos e historiadores de música popu- lar. "A necessidade de mostrar a música em um mercado tacanho gerou o 'jabá' ou, pior ainda, a famosa 'compra e ven- da' de samba." O aspecto sociológico do

samba foi investigado também. Se no imaginário popular ficou a lembrança de Francisco Alves e Carmen Miranda, entre outros, a do morro estava associa- da a algo ruim - representado como lu- gar de negro, de malandro, de vadiagem e de violência. Tudo de modo muito pejorativo. Essa imagem viria a se per- petuar desde, pelo menos, o fim da es- cravidão.

O rádio também foi visto pelo go- verno, e por boa parte dos intelectuais, como um meio "nobre" de "educar o povo". Segundo o pesquisador, o dis- curso era potencializado, enfatizando o perfil ideológico que intelectuais e mes- mo o governo Vargas queriam levar a cabo. Não por acaso, veio desse período a invenção do samba-exaltação, cujo maior símbolo foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964). Criou-se uma mitologia de que o "samba puro" vinha do morro, mas Fenerick concluiu que, tanto o samba do morro como o do asfalto (da cidade) estiveram, e ain- da estão, interligados. "O sambista de rádio ia até o morro para comprar um samba para gravar, do mesmo modo que o sambista da escola descia até a ci- dade para desfilar no Carnaval."

Varguismo - O aspecto político destaca- do por Fenerick aparece de modo mais aprofundado no estudo do músico e historiador Magno Bissoli, autor de Caixa preta: samba e identidade nacio- nal na era Vargas - impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945, outra tese sobre o tema defendida na FFLCH da USP. Bissoli afirma que Getúlio Vargas, en- quanto estava no poder, pegou uma ca- rona na aceitação popular desse gênero musical e deu um impulso considerável à sua difusão e afirmação como ícone do país. "O processo de popularização do samba era iminente, mas certamen- te a política de Vargas contribuiu para a sua consolidação no panorama nacio- nal", explica.

A exemplo das doutrinas fascistas da Europa, o governo pós-1930 sempre se caracterizou pela exaltação ao na- cionalismo. Mas como difundir, per- gunta o pesquisador, uma identidade nacional num Brasil com apenas quatro séculos de história e cuja maior parte da população era composta de descenden- tes de escravos e pessoas marginaliza-

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Sambando sob o olhar de Gegê: usando artifícios semelhantes a Mussolini

Emoção pura: música que convida a comunidade a participar ativamente

das, principalmente negros e mesti- ços? O varguismo então teria tentado forjá-la com bases na cultura, ao lançar mão de artifícios semelhantes aos usa- dos por Benito Mussolini na Itália. Seus métodos iam desde a projeção de fil- mes em paredes de casas e a instalação de autofalantes em praças interioranas e em favelas à estatização de veículos de comunicação e censura da imprensa.

O Estado Novo, deflagrado por um golpe em 1937, investiu nesse propó- sito por meio do controle cultural e midiático. Na verdade, já em 1931, o presidente Vargas criou o Departamen- to Oficial de Propaganda, que depois seria transformado no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, que se tornou responsável pela censura à imprensa e pela propaganda ufanista da ditadura. Com seu crescen- te e promissor poder de influência, o rádio se tornou fundamental nesse processo. Em 1940, a Nacional passou a ser controlada pelo Estado e a apresen- tar programas musicais de conteúdo popular.

Um destaque dessa onda ufanista que tomou conta do país foi o compo- sitor e radialista Henrique Foréis Do- mingues (1908-1980), o Almirante. Conhecido como "a maior patente do rádio brasileiro", ele se tornou "uma fi- gura importante para a propagação, pelo rádio, da idéia de uma naciona- lidade". No mesmo período foi criada a Orquestra Brasileira, com o maestro Radamés Gnattali (1906-1988), que, na onda nacionalista, interpretava a mú- sica brasileira com o mesmo trata- mento destinado à estrangeira. Nessa época, narra Bissoli, surgiram diver- sas composições, algumas de sambis- tas famosos, que apoiavam Vargas e o Estado Novo. Nomes como Ataulfo Al- ves, João de Barro (Braguinha) e Mo- reira da Silva compuseram e interpre- taram algumas dessas composições, num claro exemplo de que o samba es- tava, cada vez mais, atingindo a gran- de massa.

Outro ponto levantado pela pesqui- sa foi o de que para ser aceito pela socie- dade, principalmente pela elite, o samba devia "embranquecer" - ao ser adota- do por cantores e compositores bran- cos. Como Noel Rosa, cuja obra deixou a certeza de que o samba não morreria nunca. Mais que isso, seria eterno. •

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Page 95: O parasita do cérebro

LIVROS

A verdade da metrópole inventada Ele deixou de ser ca-

pital federal, mas ainda é capaz de

atuar como centro de "bra- silidade", de como seria o país e a nossa "realidade": em resumo, o Rio de Ja- neiro continua lindo e con- tinua a moldar o nosso imaginário. Em especial, por causa das telenovelas e do mundo criado pela Globo, ao mesmo tempo um êmulo e uma ilusão do que seria o Rio real do Brasil real. O estudo de Muniz Sodré e Raquel Paiva (dupla que foi bem-sucedida no estudo do grotesco na nossa telinha) é leitura obrigatória para quem quer entender o poder da televisão, capaz de construir uma cidade de fantasia, sem contradições

Os seus muitos críti- cos adoravam dizer que ele fora respon-

sável pelo surgimento do charlatanismo da arte mo- derna com seus ready-ma- de, seu urinóis e rodas de bicicleta que, ao avisarem que tudo podia ser arte, con- testavam a própria idéia de que ainda era possível fazer arte. Pintor mediano que odiava os chamados "pin- tores de retina", com seus quadros bem executados, Mareei Du- champ preferiu chacoalhar o mundo artístico com suas idéias, mais do que com virtuosismo. Duchamp mos- trou, nesse movimento, que o sig- nificado da arte não dependia apenas dos seus componentes específicos, mas também da sua utilização espe-

*Ft^*S^

Cidade dos artistas

Muniz Sodré

e Raquel Paiva

Editora Mauad

172 páginas / R$ 34,80

de classe, sem diferenças urbanísti- cas, onde toda uma comunidade é recriada de forma apaziguada e sem conflitos. A cidade vira, ao mesmo tempo, metáfora e cenário. Metá- fora, já que a TV transforma o Rio em símbolo de Brasil, e cenário, já que todos os problemas reais apare-

cem resolvidos nos peque- nos espaços e nas pequenas tramas que fazem o dis- curso noveleiro. "Os con- flitos econômicos, se os há, são resolvidos na imagi- nária conciliação urbanís- tica. A segregação espacial do Rio, a que a violência da delinqüência parece dar uma resposta simbólica, não se faz presente no dis- curso televisivo", observam os autores. A nova metró-

pole criada pelos autores de nove- la acaba, por ironia, em coincidir com o ideal moderno do "produto cultural à venda". Fim de cena e de novela. Um estudo que se lê com prazer.

Editora Mauad (21) 2533-7422 www.mauad.com.br

Um maroto genial

Duchamp: uma biografia

Calvin Tomkins

Editora Cosac Naify

588 páginas / R$ 59,1

ciai, do seu "mau uso" irônico ou até mesmo de sua completa inutilidade. Mesmo com toda essa carga polêmi- ca, muitos especialistas não hesitam em afirmar que, se a primeira parte da história da arte do século 20 per- tence a Picasso, a segunda parte, sem dúvida, é um patrimônio do irreve-

rente Duchamp. A bio- grafia de Tomkins é um clássico e chega ao Brasil numa edição caprichada, com projeto editorial e capa

3 de Waltercio Caldas. O livro inicia-se, de forma genial, com uma longa análise de O grande vidro, a obra mais famosa de Duchamp, moti- vo para o biógrafo desven-

dar para o leitor toda a ga- láxia de idéias contida nos painéis com formas enig-

máticas. Pode não ser o centro do livro, mas há ainda a revelação, algo charmosa, da paixão do artista pela mulher do embaixador brasileiro nos EUA, também uma artista. Mas não se espere uma biografia de fofocas.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

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Page 96: O parasita do cérebro

LIVROS

O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império Fraya Frehse Edusp 272 páginas / R$ 59,00

A antropóloga Fraya Frehse partiu de uma extensa pesquisa

em jornais, periódicos, crônicas, atas da Câmara, charges, fotos, entre outros documentos de época, para propor ao leitor uma visita imaginária pela São Paulo das décadas de 1870 e 1880, desvendando como se dava, nas ruas e esquinas, a chegada da modernidade. O problema é que com o novo ainda existia o passado e se dava, nesse movimento, o desencontro entre o que a cidade queria ser e o que era no real.

Edusp (11) 3091-4149 www.edusp.com.br

Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha

Tais Morais e Eumano Silva Geração Editorial 656 páginas / R$ 59,00

Não se sabia, mas havia um imenso manancial de documentos

sobre o movimento comandado pelo PCdoB no Araguaia, nos anos 1970, e este livro é fruto de uma minuciosa análise das mais de 1.160 páginas dos 112 documentos que contam a história do que houve em detalhes inéditos. Geração Editorial (11) 3872-0984 www.geracaobooks.com.br

rn A partilha do sensível

A partilha do sensível Jacques Rancière Editora 34 72 páginas / R$ 20,00

A política da estética repensa "^ ^£^\ a re'aÇão entre arte e política, ^JL-JLrr I . ' thando a primeira categoria

de seus limites estreitos para revelar a sua importância na experiência contemporânea. O professor da Universidade de Paris desenvolve aqui uma estética crítica que vai além dos paradigmas do moderno e da pós-modernidade. Editora 34 (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

EvakSo Cibui di Mello

A outra Independência

A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824

Evaldo Cabral de Mello Editora 34 264 páginas / R$ 42,00

Mais um livro do notável historiador pernambucano, que, nesta obra, revela o pouco conhecido esforço de seus conterrâneos em conseguir a independência do Brasil a partir do ideário americano de liberdade federalista, alternativa ao conservadorismo de Pedro I. Editora 34 (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Nietzsche: civilização e cultura Carlos A. R. de Moura Martins Fontes 290 páginas / R$ 39,00

Um dos filósofos mais conhecidos do público em geral é, ao mesmo tempo, um grande desconhecido.

De nazista anacrônico a libertário, ele já foi classificado de todas as formas. O que este livro nos mostra é a construção do real pensamento de Nietzsche e de como ele questionava o valor real da nossa civilização. Rejeitando a modernidade limitada pela moral cristã, "domesticada", ele queria um retorno grego.

Martins Fontes (11) 3241-3677 www.martinsfontes.com.br

Antologia do negro brasileiro Edison Carneiro Editora Agir 592 páginas / R$ 54,00

Um clássico de 1950 que volta às livrarias trazendo 157 textos sobre a presença dos negros

em todas as áreas do conhecimento e da história brasileiras. A organização é do folclorista Edison Carneiro e reúne artigos de Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Afonso Arinos, Mário de Andrade, Raul Bopp, Jorge Amado, entre outros. Editora Agir (21) 3882-8200 www.ediouro.com.br

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Page 97: O parasita do cérebro

Os Nuer

RODRIGO PETRONIO

Dissidentes de uma etnia semítica cujos fundadores estão perdidos há cerca de três mil anos, os Nuer, devido às estratégias que criaram para viver no deserto, não se asseme- lham em nada aos demais povos que já habitaram as margens do Nilo. Em termos de

tecnologia, são inigualáveis. Não porque a tenham fartamente e em evolução; mas simplesmen- te porque não a têm. À exceção do fogo e da roda, de alguns medicamentos e paliativos para a dor, tudo o que não seja indispensável à manutenção de sua vida simples é não só desprezado, mas perseguido. Partem do princípio de que cada criação do homem é uma tentativa artificial de imitar da natureza aquilo que não lhe foi dado por princípio, e há um ser que, segundo eles próprios, fulmina qualquer um que queira emulá-la, dando a sua devida conseqüência: um ho- mem que desenvolveu um sistema de asas que lhe possibilitasse voar foi visto cruzando os ares e desaparecendo.

Depois souberam que ele tinha se transformado em uma grande avestruz: tinha enfim as asas das aves e o andar do homem, concluíram em sua sabedoria, já que seria abuso e absurdo, para os Nuer, que um homem, já tendo uma série de benefícios em relação aos pássaros, quei- ra também ser pássaro. Esse pode parecer um lado moralista desse povo. Mas orna-o uma estra- nha inteligência: a vida no deserto os ensinou a respeitar cada qual os limites de que dispõem, e a ter sempre na consciência que estão nus no mundo e que um mísero adorno só pode ser con- quistado em questão de milênios. Não a técnica em si, no caso a arte de voar, mas o seu mere- cimento. Segundo os Nuer, os homens só voarão de fato dentro de milhares de anos, quando enfim terão asas. Cada vez que vêem um avião cruzar o céu azul límpido riem até às lágrimas e ao desfalecimento; sabem que o vôo daquelas pessoas é uma mentira, e acham graça que tantas pessoas juntas acreditem juntas em uma única mentira e compartilhem conjuntamente uma única ilusão.

Esse fato talvez tenha a ver com a concepção metafísica dos Nuer, que é muito interessante. Não crêem em Deus nem em deuses, não têm heróis nem mitos, não têm templos nem orações. Acreditam em algo bem mais complexo. Para eles, há o que podemos traduzir muito mal em nos- sas línguas por estado de graça. É uma espécie de transcendência ultra-radical. Descrêem da consciência individual; aquilo que nossos filósofos doutos chamam de imagem mental geraria náusea em um Nuer, ao passo que a simples hipótese de que o mundo seja a representação sen- sível de um mundo supra-sensível os faria corar de vergonha e tomar o autor dessa crença como um homem doente ou imbecil. O fato de cada um de nós apreender o mundo de uma maneira soa para eles como algo, em si, tedioso e sonífero. Eles desprezam o que nós chamamos de psi- cologia: crêem que as criaturas só são belas e vivas se as olhamos em seu abismo, ou seja, naqui- lo que elas têm de irredutível, de exclusivamente seu, e sempre que olham uma pessoa ou coisa, não procuram perceber essa pessoa ou essa coisa, mas olhá-la como se ela estivesse ausente. Se dois Nuer estão conversando, há um pacto segundo o qual cada um só perceberá o outro como uma encenação, um tipo de fantasma, imaginando todo o tempo que o verdadeiro interlocutor está, na verdade, naquele exato momento, sozinho andando em círculos no deserto sem lastro de ser vivo ou de gente.

Essa é a maneira que os Nuer encontraram de matar a consciência pessoal: vêem tudo como um grande teatro e uma animação, e, ao contrário do que se imagina, não o fazem porque des- confiam que a realidade não exista, e que talvez sejamos, nós e todo o universo, apenas a sombra

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Page 98: O parasita do cérebro

pálida de uma outra realidade verdadeira, mas sim para preservar todas as coisas ilesas em seu estado de graça, ou seja, na sua realidade intocável, intangível e intraduzível. Isso os Nuer cha- mam de Coisa: os objetos e os seres, quando em seu perpétuo estado de graça, encarnam a Coi- sa: uma pedra sob o sol em um banco de areia só pode ser aquela pedra, sob aquele sol daquela fase do dia e sobre aquela areia. Os Nuer imaginam o mundo, e evitam a sua carne: essa é sua es- tratégia e é assim que eles fazem as coisas pertencerem à grande Coisa. Para nós tudo isso se re- sumiria aos pobres conceitos de realidade, imaginação e representação. Quanto às artes, talvez possamos dizer que felizmente os Nuer não as tenham. Ou melhor, devido a essa concepção que narrei acima fica difícil querer que eles sequer suponham que exista alguém que leve a sério a idéia de imitação da natureza ou da realidade.

Um dos aspectos mais interessantes dos Nuer é sua concepção de tempo. Desconhecem o que entendemos por história, e uma das poucas ciências que possuem é a história natural: me- dem a vida a partir do que, para nós, eqüivaleria à eternidade, e para eles o nosso conceito de milênio se aproxima de algo que imaginam ser equivalente a um suspiro ou a uma flatulência. Não concebem o tempo como círculo, nem como espiral e muito menos como uma linha reta. Para eles o tempo simplesmente não existe. Afinal, só para quem concebe vários cacos de ins- tante como partes de uma unidade transcendente o tempo é possível, assim como o espaço e a extensão só existem para quem já está acostumado a ver o mundo em sua continuidade, que não deixa de ser uma bela invenção à qual nos acomodamos e nos dedicamos, em uma buro- cracia de milênios. Já o espaço é outro caso curioso: crêem que o espaço celeste onde a conste- lação se desloca e a terra onde movemos nossos corpos estão dentro de um grão de areia, uma espécie de pequeno ovo que repousa no vazio. Assim, nunca conseguirão experimentar as no- ções de distância e proximidade; o homem que está a quinze quilômetros está ao lado de quem está ao meu lado, e andam diariamente dentro desse universo compacto sem desconforto ou mal-estar. Apenas andam.

Quanto às curiosidades e hábitos, é comum os Nuer elegerem objetos a esmo para serem, du- rante tempo indeterminado, seus companheiros. Houve o caso de uma mulher que arrastou con- sigo um tronco de árvore durante duas semanas, e o de um homem que dormiu com a sua san- dália até o leito de morte. Uma criança casou-se com um tatu, se é que se pode chamar a essa aliança de casamento.

Há alguns anos o exército britânico passou pelo Egito e dizimou os últimos representantes dos Nuer. O general fez um discurso alegando como imperativo a urgência do progresso e da his- tória. Os Nuer não existem mais: arrojados definitivamente em direção ao supremo estado de graça e para fora da grande encenação da vida, habitam agora a flutuação indefinida da Coisa. O mais curioso de tudo, e o que, por sua vez, pode ser entendido como a mais inocente vingança possível, é que, onde quer que eles estejam e onde quer que se situe essa dimensão, com certe- za não estarão dando a mínima para isso.

RODRIGO PETRONIO é escritor e pesquisador. Faz pós-graduação em Literatura Espanhola na Faculdade de Letras da USR Autor de História natural (poesia) e Transversal do tempo (ensaios).

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Page 99: O parasita do cérebro

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A VIDA É BELA. 17/4O filme que deu Oscara Roberto

GtNIO INDOMÁVEL 24/4Oscar de Roteiroe Ator Ccadiuvente.para Robin Williams.

REGRAS DA VIDA, 8/5Oscar de Roteiro Adaptadoe Ator paraMichael Caine.

A ÚLTIMA CEIA, 1°/5Halle em sua melhorncrfnrrnanr-c no cinema.

O FABULOSO DESTINODE AMÉLlE POULAIN. 15/5Indicado a 5 Oscars. incluindoMelhor Filme Estrangeiro.13 ao César.

ENTRE QUATRO PAREDES. 22/5Indicado a 5 Oscars, incluindoo de Melhor Filme.

JACKIE BROWN. 5/6Vencedor do Urso de Prataem Berlim de Melhor Ator,para Samuel L. Jackson.

AS HORAS. 29/5Vencedor do Oscarde Melhor Atriz,para Nicole Kidman.

CHOCOLATE. 12/6Indicado a 5 Oscars, incluin-do o de Melhor Filme.

TERRA DE NINGUÉM. 19/6Oscar de Melhor Filme

POLLOCK. 3/7Vencedor do Oscar deMelhor Atriz Coadjuvante,para Marcia Gay Harden.

O TALENTOSO RIPLEY. 26/6Indicado a 5 Oscarse 5 Globos de Ouro.

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Page 101: O parasita do cérebro

Sabe o que tem no nosso DNA?

Vontade de fazer da Petrobras

a m e I h o r e m p r e s a que e x is t e.

Petrobras. Destaque em Gestão Empresarial na pesquisa realizada pelo Instituto Hay Group para o Valor Econômico.

Quando a Petrobras nasceu, o objetivo era explorar petróleo. Mas, sempre esteve dentro da gente, o sonho de

construir uma empresa exemplar, ágil, inovadora, com visão de futuro e tantas outras qualidades que fizeram da

Petrobras um destaque em gestão empresarial. A vontade de trazer desenvolvimento, de gerar empregos, energia

e de fazer do Brasil um País cada vez melhor também nasceu com a gente.

-liIiI PETROBRASMinistério de

Minas e Energia

o DESAFIO É A NOSSA ENERGIA