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Observador On-line Dossiê Paraguai | v.7, n.06, jun. 2012 |

Observador v 7_n_06_2012

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Observador On-line

Dossiê Paraguai

| v.7, n.06, jun. 2012 |

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Observador On-line | v.7, n. 06 | jun. 2012

Observatório Político Sul-Americano Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESP/UERJ http://www.opsa.com.br

Dossiê Paraguai Observador On-Line (v.7, n.06, jun. 2012)

ISSN 1809-7588

Neste número

Precedente Perigoso

Maria Regina Soares de Lima ........................................................ 01

A destituição de Lugo: atores e eventos

Gabrieli Gaio .............................................................................. 04

A queda de Lugo e a instabilidade política paraguaia

Andre Luiz Coelho ....................................................................... 12

Acervo OPSA – Paraguai ........................................................... 26

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Apresentação

Em 22 de junho de 2012, o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi destituído

de seu cargo mediante julgamento político promovido pelo Congresso do país. O

processo havia sido iniciado um dia antes pela Câmara dos Deputados, que

aprovara, por ampla maioria, a instalação do julgamento para o impeachment de

Lugo. No Senado – casa legislativa responsável pela decisão final quanto ao caso –

registrou-se maioria absoluta de votos favoráveis à condenação final do presidente:

39 votos a 04. Tudo levou menos de 48 horas. Considerado por grande parcela dos

analistas políticos uma destituição sumária e um golpe de Estado, o evento tornou

redivivos os debates acerca da estabilidade institucional latino americana, bem

como sobre os efeitos perversos de uma ruptura democrática para as relações

políticas regionais. Os artigos que compõem esse Dossiê buscam oferecer

elementos para a compreensão da crise política instalada no Paraguai, além de

enriquecer o debate público sobre o tema. Maria Regina Soares de Lima analisa o

processo do ponto de vista da política na região, a recepção dos fatos pelos

vizinhos e a mobilização das organizações internacionais. Gabrieli Gaio reconstitui

passo a passo os fatos eles mesmos. A autora esclarece, assim, os nexos causais

aparentes que teriam levado ao golpe. Por fim, Andre Luiz Coelho investiga a

democracia paraguaia, revelando a sua dinâmica recente – e persistente – de

instabilidade.

Rio de Janeiro, 27 de junho de 2012.

Maria Regina Soares de Lima

Tatiana Oliveira

Regina Kfuri

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Precedente Perigoso

Maria Regina Soares de Lima Coordenadora OPSA

A destituição sumária do Presidente Fernando Lugo do Paraguai coloca alguns

interrogantes sobre a solidez dos processos em curso de institucionalização da

democracia na América do Sul. Para alguns especialistas estaríamos vivendo um

novo tipo de golpe de Estado, o “neo golpismo”, cujas características seriam:

menor uso da violência que no passado; liderança civil, podendo contar com

participação indireta dos militares; manutenção de alguma aparência institucional;

ausência da participação ostensiva de uma potência (EUA); e o objetivo de resolver

de forma rápida algum tipo de impasse social ou político grave.1 Foi esta “aparência

institucional” que levou alguns analistas brasileiros a considerarem o evento como

legal do ponto de vista da constituição paraguaia, passando ao largo do

sumaríssimo processo de sua execução que impediu o direito legítimo de defesa,

configurando uma ruptura do processo democrático naquele país.2 Por que esta

modalidade de golpe na região volta a se manifestar, ainda que com nova

roupagem, mas com o mesmo objetivo de afastar lideranças políticas

democraticamente eleitas pelo voto popular?

Uma primeira resposta tem a ver com uma de suas características: a ausência de

uma potência extra-regional em um contexto em que as mudança em curso na

América do Sul ainda não desalojaram do poder uma oligarquia predatória e um

Estado patrimonial, cujo funcionamento pode ser ameaçado pela escolha eleitoral

de um presidente comprometido com mudanças estruturais em seu país, mudanças

que estariam se processando dentro dos parâmetros das instituições existentes. Ai

exatamente reside o maior incentivo ao neo-golpismo. Uma das principais

características dos processos de mudança nos países andinos, em especial Bolívia,

Equador e Venezuela é que a transformação estrutural do status quo normativo e

institucional está ocorrendo de forma pacífica e democrática. Ademais esta

revolução nas estruturas anacrônicas de poder ocorre em um contexto geopolítico

de afastamento dos EUA da região que vem acontecendo desde o governo Bush,

quando as prioridades estratégicas dos EUA foram redefinidas após os atentados de

11 de setembro. Especialmente após das eleições de Hugo Chávez, Evo Morales e

1 Ver Juan Gabriel Tokatlian, “El auge del neogolpismo”, La Nacion, 24 de junho de 2012. 2 Alguns analistas, críticos dos governos PT, tem afirmado que o processo paraguaio foi legal, e criticam a posição do governo Dilma, acusando-o de não apenas colocar “os interesses políticos de um grupo da região à frente dos interesses econômicos do país”, como estando “ a reboque de uma ação política de Chávez”, ver Merval Pereira, “Democracia Representativa”, O Globo, 26 de junho de 2014, p. 4.

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Rafael Correia o governo estadunidense tem, velada, mas insistentemente,

sugerido que o Brasil assuma o papel do “xerife” regional no sentido de garantir a

estabilidade da América do Sul.3 Também, como é sabido, desde o governo Lula o

Brasil tem se recusado a desempenhar este papel. Sem apoio direto de governos

aliados da região ou de fora, as forças reacionárias tem que se valer de seus

recursos internos, o apoio da mídia conservadora e alianças transnacionais para a

manipulação de modo ilegítimo das instituições vigentes. Para Tokatlian há um DNA

comum nas seis tentativas golpistas recentes na América do Sul, Central e Caribe:

a remoção “legal” de Jamil Mahuad no Equador em 2000; a tentativa de golpe

institucional contra Hugo Chávez em 2002; a “saída” forçada de Jean-Bertrand

Aristide no Haiti em 2004; a substituição “constitucional” do Presidente hondurenho

Zelaya em 2009; e o golpe policial contra Rafael Correa no Equador em 2010.

A novidade no episódio paraguaio foi a condenação dos países sul-americanos. Com

algumas variações significativas, todos, com exceção do Paraguai, foram unânimes

em condenar o impeachment sumário do presidente Lugo: Colômbia, Chile, Peru e

Uruguai chamaram seus respectivos embaixadores para consultas e afirmaram que

a destituição não respeitou o devido processo. Argentina, Bolívia, Equador e

Venezuela retiraram seus embaixadores do país por tempo indeterminado. O Brasil

coordenou a ida da missão da Unasul ao Paraguai durante o julgamento de Lugo,

chamou seu embaixador para consultas e, juntamente, com os demais países da

região, decidiu suspender temporariamente o Paraguai das atividades do Mercosul e

da Unasul.

Em vista de ser o país com o maior volume de interesses econômicos, energéticos e

geopolíticos no país, que passam pela usina de Itaipu, pelo comércio bilateral

superavitário e pela presença de uma comunidade de tamanho expressiva no país,

os “brasiguaios”, o Brasil terá que desempenhar um papel de relevo no

encaminhamento político do processo paraguaio. Tradicionalmente, o país contou

com o apoio paraguaio no contexto do Mercosul e Unasul e sua influência sobre

aquele país também é ponderável. Matéria para especulação é por que os políticos

paraguaios não acataram as ponderações da missão da Unasul e decidiram levar

adiante o processo sumário.4 Uma possível resposta podem ser as expectativas,

que se viram frustradas, das elites paraguaias que acreditavam que a reação

brasileira seria leve em vista da expressiva interdependência dos dois países.

3 A expressão inglesa utilizada é a de “stake holder” regional que ameniza mas não elimina o sentido pretendido. 4 Ver Monica Hirst, “Los riegos del Aislamento paraguayo, La Nacion, 24 de junho de 2012.

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O que não contavam é que a postura do Brasil refletiria diretamente a posição de

Dilma Rousseff e sua avaliação de que se tratava de um “precedente perigoso”.5 A

reação brasileira foi assim imediata, articulando, no âmbito da Rio+20, a ida da

missão da Unasul ao Paraguai. A pronta resposta brasileira também sublinha a

importância da “diplomacia presidencial” em episódios críticos como este em que a

autoridade presidencial é crucial para uma ação sem protelação e de acordo com as

orientações políticas e as convicções democráticas do governo. Como evoluirá o

processo ainda é incerto, uma vez que, apesar do movimento regional de isolar

politicamente o Paraguai, as forças conservadoras não retrocederam. Muito pelo

contrário, algumas declarações dos novos governantes paraguaios contem uma

ameaça explícita às possíveis perdas brasileiras face aos ponderáveis interesses no

país, inclusive com a utilização da pressão dos “brasiguaios” para que o Brasil

reconheça o novo governo.

Também digno de nota é o papel que as instituições regionais como o Mercosul e a

Unasul estão desempenhando no episódio. Pode-se especular que o consenso entre

os países sul-americanos observado na condução da crise paraguaia é resultado de

serem as últimas instituições sem a participação de países externos à região,

envolvendo somente os principais interessados em uma solução sem custos

desnecessários à população paraguaia. Ao contrário do passado, o Brasil e os

demais países sul-americanos não consultaram Washington para saber qual a

posição a tomar. As consultas foram posteriores, para persuadir os EUA a

acompanharem o movimento regional. Uma demonstração do esgotamento e do

anacronismo das instituições interamericanas que ainda operam à sombra das

expectativas norte-americanas.

Para Brasil e Argentina, os dois países com maior ascendência sobre o Paraguai,

esta é uma oportunidade ímpar para desempenharem um papel construtivo no

encaminhamento de eventuais soluções da crise no Cone Sul. Ao agirem sob o

respaldo das instituições multilaterais regionais, evitando o bilateralismo típico dos

comportamentos imperiais, estarão inaugurando um novo tipo de liderança regional

e, simultaneamente, impedindo que o exemplo prospere, preservando assim a

democracia na América do Sul.

5 Para uma avaliação bem informada da reação medida do governo brasileiro e a preocupação da Presidente Dilma com as implicações, para a consolidação da democracia na região, do “precedente perigoso”, nas palavras da Presidente, ver Sergio Leo e Fernando Exman, “Unasul e Mercosul suspenderão o Paraguai para forçar eleições”, Valor, 25 de junho de 2012, p. A13; e Sergio Leo, “Brasil quer ação política e descarta sanção econômica ao Paraguai”, Valor, 26 de junho de 2012, p. A14.

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A destituição de Lugo: atores e eventos

Gabrieli Gaio Pesquisadora OPSA

Em 22 de junho de 2012, o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi destituído

de seu cargo mediante julgamento político promovido pelo Congresso paraguaio. A

Câmara dos Deputados abriu o processo de juízo político contra Lugo em 21/06,

com base em ampla maioria: 76 votos a favor do afastamento do presidente e

apenas um voto contra. O Senado, por sua vez, corroborou a acusação dos

deputados e, em 22/06, destituiu Lugo da presidência paraguaia também com base

em grande maioria: 39 votos a favor da condenação e somente quatro favoráveis à

absolvição do ex-presidente. Ainda no mesmo dia, 22/06, assumiu a presidência do

Paraguai o vice-presidente, Frederico Franco, do Partido Liberal Radical Autêntico

(PLRA).

Embora tendo acatado o desfecho do julgamento, o ex-presidente Lugo e sua

defesa manifestaram sua insatisfação mediante a inusitada rapidez do processo,

sobretudo no que concerne ao pouco tempo disponível para a preparação dos

argumentos contra o afastamento do ex-presidente, que qualificou o ocorrido como

um “golpe de estado expresso”. Países vizinhos, como Argentina, Equador,

Venezuela, entre outros, também não se mostraram satisfeitos com a condução do

julgamento e não reconheceram o novo governo, caracterizando a destituição de

Lugo como um golpe de estado. Desse modo, surgiram especulações acerca do

futuro do Paraguai em organizações regionais, como Unasul e Mercosul, tendo em

vista a chamada “cláusula democrática”, que prevê sanções em caso de rupturas da

ordem democrática.

O povo paraguaio, por sua vez, manifestou sua aversão ao juízo político de Lugo, e

diversas manifestações contra seu afastamento foram observadas em diferentes

regiões do país durante o processo de julgamento. Após o desfecho contrário ao ex-

presidente, manifestantes que aguardavam em frente à sede do Congresso e

clamavam pela ilegitimidade das ações conduzidas pelo Legislativo paraguaio

entraram em choque com a Polícia, demonstrando a instabilidade política produzida

pelo afastamento de Lugo.

Este informe apresenta os principais acontecimentos e atores que marcaram o

impeachment de Fernando Lugo, afastando-o da presidência paraguaia a menos de

um ano do fim de seu mandato presidencial.

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1. Frágil coalizão

Lugo ocupava a presidência desde 2008, quando foi eleito com 41% dos votos sob

uma plataforma política calcada na condução de uma reforma agrária no Paraguai.

Seu governo seguiu-se aos mais de sessenta anos de liderança política da

Associação Nacional Republicana (ANR), também conhecida como Partido Colorado,

que faz parte da direita paraguaia. A candidatura de Lugo fora apresentada pelo

Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) e corroborada por uma ampla e

diversificada coalizão de partidos políticos e organizações sociais.

A coalizão de situação, entretanto, mostrou-se tão diversificada quanto

fragmentada ao longo do governo luguista, que passou a encontrar em ambas as

casas do Legislativo paraguaio, Câmara dos Deputados e dos Senadores, uma forte

oposição que contribuiu para debilitar cada vez mais o mandato presidencial.

Alguns movimentos sociais, por sua vez, também relativizaram o apoio a Lugo

durante seu governo, dadas as inúmeras dificuldades enfrentadas pelo mesmo no

que se refere à implementação da reforma agrária.

A saída do PLRA da base de apoio luguista durante a crise política que vem

ocorrendo no país constituiu fator determinante para o colapso da coligação que o

elegera em 2008 e para o desfecho do juízo político ocorrido em 22/06. Isso porque

o PLRA representa uma das maiores forças políticas do Paraguai e, por conseguinte,

a maior fonte de apoio político na aliança que elegera Lugo. Assim, o apoio do PLRA

ao projeto de afastamento de Lugo do poder, chefiado pela ANR, pode ser

considerado como fundamental para o resultado desfavorável ao presidente.

2. A destituição de Lugo

Em 21 de junho de 2012, a Câmara dos Deputados do Paraguai decidiu submeter

Lugo a um julgamento político, alegando que o mesmo não estava administrando o

país de maneira adequada. A decisão deu-se sob a égide do artigo nº 225 da

Constituição paraguaia, o qual estabelece que o juízo político para cargos do Poder

Executivo pode ocorrer mediante a constatação de que há “mal desempenho de

funções”. O artigo sustenta, ainda, que a Câmara dos Deputados necessita de

maioria de dois terços para formalizar sua acusação. Satisfeita tal condição, o

processo deve ser encaminhado ao Senado, que, por sua vez, pode corroborar a

acusação mediante uma maioria de dois terços dos votos.

Na Câmara dos Deputados, a campanha a favor do julgamento foi, em grande

medida, liderada pelo Partido Colorado, mas contou também com o apoio de outros

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partidos, incluindo o PLRA. Nesse sentido, entre os 77 deputados presentes na

votação, apenas a deputada Aída Robles, do Partido Participação Cidadã,

manifestou-se contra o juízo político de Lugo. Os demais deputados apoiaram a

abertura do processo que levaria ao afastamento do presidente paraguaio. Desse

modo, foi alcançada a necessária maioria de dois terços para o juízo político.

Como previsto pela Constituição paraguaia, o pedido de julgamento do presidente

foi, então, encaminhado ao Senado paraguaio. Os senadores, por sua vez,

determinaram sua realização para o dia 22 de junho, conferindo à defesa do

presidente cerca de doze horas para elaborar seus argumentos.

Durante o julgamento, os seguintes deputados foram responsáveis por expor as

acusações ao presidente: Óscar Tumas (ANR), Justo Cárdenas (ANR), Clemente

Barrios (ANR), Carlos Liseras (ANR), Jorge Ávalos Mariño (PLRA) e José López

Chávez (Unace). Os deputados buscaram corroborar a acusação formal de “mal

desempenho de funções” contra Lugo, e, para tal, basearam-se em cinco pontos:

• Caso do Comando de Engenharia das Forças Armadas (2009)

No ano de 2009, um grupo de movimentos sociais de esquerda organizou uma

manifestação em frente ao Comando de Engenharia das Forças Armadas do

Paraguai. O movimento buscou protestar contra setores da sociedade paraguaia

que qualificaram como “oligárquicos”. O presidente Lugo teria, segundo a acusação,

autorizado o movimento, seria financiado, ainda, pela Entidade Binacional Yacyretá.

Na época, de acordo com os deputados, foram destituídos de seus cargos diversos

comandantes que não estavam envolvidos na autorização do movimento. Vale

mencionar que as Forças Aramadas do Paraguai manifestaram imediato apoio ao

afastamento de Lugo. A relação do ex-presidente com os militares não foi muito

harmônica ao longo de seu governo. Ainda no ano de 2009, Lugo optou por

descontinuar um projeto de cooperação militar com os EUA. Pouco tempo após tal

decisão, o então presidente decidiu trocar a cúpula militar do país mediante ameaça

de golpe a seu governo. No ano de 2011, Lugo deparou-se, ainda, com interesses

de militares norte-americanos e da União Nacional de Cidadãos Éticos (Unace) –

partido da direita paraguaia, que pleiteavam a instalação de uma base militar

norte-americana no país. O ex-presidente, entretanto, negou o pedido6.

6 Ver: MARTINS, Carlos Eduardo. O golpe de estado no Paraguai e a América do Sul. 2012. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=7&id_noticia=186717. Acesso em: 24 jul. 2012.

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• O caso Ñacunday

Os deputados acusaram Lugo de ser complacente com as diversas invasões a

propriedades de terra que estão ocorrendo no distrito de Ñacunday, no leste do

país. De acordo com a acusação, o presidente não pune os sem-terra da região com

eficácia, o que estaria colaborando para o desrespeito à propriedade privada no

local.

• Crescente insegurança

A acusação afirmou que Lugo não tem promovido a segurança dos cidadãos

paraguaios de maneira satisfatória. Ainda de acordo com os deputados, apesar do

grande montante de recursos que o Congresso paraguaio tem dirigido para essa

questão, o presidente não estaria adotando políticas eficazes e não seria possível

observar melhorias na vida cotidiana da população. Durante este tópico, a acusação

citou, ainda, a “falta de vontade” de Lugo para combater o Exército do Povo

Paraguaio (EPP) – grupo de guerrilheiros acusado de manter relações com as

Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.

• Protocolo de Ushuaia II

A Câmara dos Deputados do Paraguai condena o Protocolo de Ushuaia II, assinado

pelo presidente Lugo. Segundo os deputados, esse protocolo, que prevê a chamada

“cláusula democrática” no âmbito da integração regional sul-americana, constitui

um “atentado” à soberania do Paraguai.

• Conflito em Curuguaty

Em 15 de junho de 2012, forças policiais e camponeses sem-terra paraguaios

(“carperos”) entraram em um violento confronto armado no distrito de Curuguaty,

após uma tentativa policial de reintegração de propriedade ocupada ilegalmente

pelos “carperos”. O conflito deixou cerca de dezessete mortos, entre policiais e

membros do movimento sem-terra. Desde então, o governo de Fernando Lugo

vinha sofrendo diversas pressões, sobretudo por parte da ANR, com o objetivo de

destituir membros do governo ligados ao evento. No mesmo dia do ocorrido, Lugo

já havia destituído o Ministro do Interior, Carlos Filizzola, e também o Comandante

da Polícia Nacional, Paulino Rojas. A acusação imputou a responsabilidade pelas

mortes em Curuguaty ao presidente, uma vez que o mesmo, de acordo com os

deputados, vem agindo de forma “negligente” com relação ao conflito de terras no

país. É importante ressaltar, entretanto, que Lugo estava dando continuidade às

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investigações acerca desse caso, contando, ainda, com o apoio de uma comissão

enviada pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

Lugo optou por não comparecer ao juízo político, deixando sua defesa a cargo de

seus advogados. Na advocacia do ex-presidente estavam presentes nomes como

Emilio Camacho (ex-assessor jurídico de Lugo) e Enrique García (ex-procurador da

República), entre outros. A defesa ressaltou o pouco tempo disponível para a

elaboração de seus argumentos, já que a decisão de realizar o julgamento ocorreu

entre os dias 21 e 22 de junho, deixando cerca de doze horas para a preparação

dos advogados. Tentou-se, ainda que em vão, pedir a prorrogação do julgamento a

fim de articular uma defesa mais adequada. Além da questão da rapidez excessiva

do processo, foi também ressaltado pelos advogados do ex-presidente o caráter

vago e subjetivo do juízo político, que careceria de acusações sólidas que

justificassem o afastamento de Lugo. Vale mencionar, ainda, que Lugo, antes do

início do julgamento, entrara com uma ação de inconstitucionalidade na Corte

Suprema de Justiça paraguaia, alegando pouco tempo para preparação de sua

defesa. Entretanto, em 25/06, a referida Corte rejeitou, sem analisar, a ação

movida pelo ex-presidente. A Justiça paraguaia afirmou reconhecer a legalidade do

processo de impeachment conduzido pelo Congresso.

De acordo com Lugo, interesses políticos estariam manipulando e ferindo a

democracia paraguaia, o que nos remeteria, segundo ele, ao engajamento da ANR

(Partido Colorado) no processo de impeachment. O ex-presidente convocou, ainda,

manifestações populares contra o juízo político. O partido político Frente Guasu, da

esquerda paraguaia, corroborou o posicionamento de Lugo e qualificou o

julgamento como golpe de estado. Para os grupos políticos de esquerda, embora os

procedimentos do juízo estivessem previstos em termos constitucionais, o mesmo

teria ocorrido de maneira ilegítima, com a manipulação dos mecanismos legais por

interesses particulares.

O Senado, entretanto, optou por corroborar a acusação da Câmara dos Deputados

e destituiu Fernando Lugo da presidência paraguaia. O afastamento de Lugo

recebeu 39 votos favoráveis e 4 votos contrários. Assim, o ex-presidente paraguaio

foi destituído mediante uma massiva aliança composta pelos partidos mais

tradicionais do Paraguai: Partido Colorado, PLRA, Unace e Pátria Querida. Os quatro

votos favoráveis à permanência de Lugo na presidência foram dos senadores Sixto

Pereira (Partido Popular Tekojoja), Carlos Filizzola (Partido País Solidário) e Alberto

Grillón (Partido País Solidário) e do Luis Wagner Lezcano (PLRA).

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Logo após a destituição de Lugo, o Congresso convocou a posse do vice-presidente

Frederico Franco7, do PLRA. Franco, que assumiu a partir de então a presidência

paraguaia, pediu apoio dos diversos setores da sociedade paraguaia e garantiu que

entregará o governo em 2013, quando acontecerão novas eleições presidenciais no

país.

3. Manifestações populares: “Juicio al parlamento!”8

Durante e após o julgamento de Lugo, o Paraguai observou diversas manifestações

populares favoráveis ao ex-presidente em diferentes regiões do país. Os

movimentos tinham como denominador comum a aversão ao juízo político de Lugo

e aos partidos políticos que o promoveram, como ANR e PLRA.

A manifestação que mais chamou atenção, contudo, foi a ocorrida em frente à sede

do Congresso paraguaio. Cerca de 3 mil cidadãos paraguaios reuniram-se no local

ainda durante o julgamento de Lugo, com o objetivo de pressionar o Senado a

absolver o ex-presidente. Manifestantes seguravam placas e faixas que diziam

“Juicio al parlamento!” e gritavam frases como “Paraguay no es Honduras!”,

indignados com a maneira abrupta por meio da qual o julgamento vinha sendo

conduzido.

Com a aprovação do impeachment de Lugo por parte do Senado, houve confusão e

confronto entre os manifestantes e a Polícia paraguaia, que buscou dispersá-los

com balas de borracha e gás lacrimogênio.

4. Repercussão regional: os vizinhos sul-americanos

Os países da União de Nações Sul-americanas (Unasul) enviaram seus respectivos

ministros das Relações Exteriores ao Paraguai, para que os mesmos pudessem

acompanhar o julgamento de Lugo, então presidente pro tempore da organização.

Foi possível verificar certa homogeneidade nas posições dos países sul-americanos

acerca do caso, que se manifestaram de forma contrária à condução do juízo

político de Lugo.

Alguns países como Argentina, Equador, Venezuela, Bolívia, entre outros, já

afirmaram não reconhecer o novo governo paraguaio, caracterizando o ocorrido 7 É importante mencionar que Frederico Franco já almejava a presidência do Paraguai há algum tempo. Em abril de 2012, Franco havia participado das eleições presidenciais internas do PLRA, que foram feitas mediante processo de consulta pública. Contudo, o então vice-presidente paraguaio não ganhou a disputa, que foi liderada pelo senador liberal Blas Llano, atual candidato do partido às eleições presidenciais de 2013. 8 Esta expressão constituiu slogan de manifestações populares a favor do presidente e contra o Congresso paraguaio durante o dia 22 de junho de 2012.

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como um golpe de estado. Durante o julgamento de Lugo, a presidente do Brasil,

Dilma Roussef, já havia declarado aversão ao impeachment, uma vez que o ex-

presidente paraguaio tinha menos de um ano restante em seu mandato. Em 23/06,

o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antônio Patriota, afirmou que o Brasil

seguirá o posicionamento da Unasul acerca da questão. Patriota indicou, ainda, que

condena o impeachment, caracterizado pelo Brasil como “rito sumário”, e que tal

episódio representou um retrocesso na história paraguaia.

De acordo com comunicado da Unasul, emitido no Paraguai em 22/06, a

organização considerou o juízo político do ex-presidente Lugo como uma ruptura na

ordem democrática do país e afirmou que os parlamentares paraguaios devem

observar o cumprimento da “cláusula democrática” constante no estatuto da

referida instituição e também no Mercosul. Ainda não há, contudo, um

posicionamento oficial acerca do futuro do Paraguai em tais organizações regionais

ou das possíveis consequências que o país poderá sofrer, em âmbito regional,

mediante o impeachment de Lugo. Mas vale mencionar, entretanto, que a situação

diplomática do Paraguai mediante os parceiros do Mercosul não é agradável:

enquanto a Argentina retirou sua representação diplomática do país, Brasil e

Uruguai convocaram seus respectivos embaixadores para consultas, indicando um

sinal de “desconforto” diplomático. No âmbito do Mercosul, a situação do Paraguai

está prevista para ser melhor discutida durante a XLIII Reunião do Conselho do

Mercado Comum e Cúpula de Presidentes do Mercosul, que ocorrerá na Argentina,

em 29/06. É importante lembrar, entretanto, que o governo de Frederico Franco foi

suspenso de tal reunião pelos demais membros do bloco, que afirmaram não

reconhecer sua administração como “legítima”. De acordo com o comunicado

emitido pela organização, a suspensão constitui uma forma de expressar a

“enérgica condenação” à “ruptura da ordem democrática” que ocorrera no país. A

expectativa é de que, durante a referida cúpula de presidentes do Mercosul, na

Argentina, seja anunciada a suspensão do Paraguai da organização regional até as

eleições gerais de 2013.

Deve-se ressaltar, ainda, que o afastamento de Lugo teve repercussões também

hemisféricas, além das reações verificadas na América do Sul. A Corte

Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA manifestou, em 23/06, seu

posicionamento acerca do que qualificou como “um juízo político altamente

questionável”. A instituição afirmou, ainda, que a condução do impeachment

colocou em risco o estado de direito paraguaio e afetou negativamente a

credibilidade do Congresso.

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Em 23/06, um dia após o término de sua destituição, Lugo afirmou que ocorrera

um “golpe contra a democracia” no Paraguai. O ex-presidente manifestou apoio à

presença de organizações regionais, como a Unasul, na condução do cenário

político do país. Lugo também indicou que estuda a possibilidade de uma

candidatura ao Senado paraguaio, provavelmente por meio do partido de esquerda

Frente Guasu. O ex-presidente demonstrou esperanças com relação às eleições

presidenciais de 2013, afirmando que o desejo da maioria poderá prevalecer

novamente no país. Em 25/06, Lugo reuniu o que chamou de “gabinete de

restauração”, um grupo formado por seus ex-ministros e aliados, visando discutir

possibilidades de ação dentro do cenário político do Paraguai, bem como para

monitorar a administração de Frederico Franco. Desse modo, é possível notar

indícios de que o ex-presidente paraguaio não pretende abandonar o cenário

político do país.

Fontes:

Observatório Político Sul Americano. Banco de eventos. Disponível em: www.opsa.com.br

La Nación, 08/04/2012, 16/06/2012, 21/06/2012 a 26/06/2012;

ABC Color, 08/04/2012, 16/06/2012, 20/06/2012 a 26/06/2012;

Fontes complementares:

El Universo, 24/06/2012;

Estadão (O Estado de São Paulo), 22/06/2012;

G1 (Globo), 22/06/2012 a 26/06/2012;

Missiones Online, 22/06/2012;

O Globo, 22/06/2012 a 23/06/2012, 25/06/2012;

Valor Econômico, 25/06/2012;

Site da Câmara dos Senadores do Paraguai: http://www.senado.gov.py/

Site da Câmara dos Deputados do Paraguai: http://www.diputados.gov.py/ww2/

Site da Unasul: http://www.unasursg.org/

Site do Ministério das Relações Exteriores da República Argentina: http://www.mrecic.gov.ar/

MARTINS, Carlos Eduardo. O golpe de estado no Paraguai e a América do Sul. 2012. Disponível em:

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=7&id_noticia=186717. Acesso em: 24 jul. 2012.

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12

A queda de Lugo e a instabilidade política paraguaia9

André Luiz Coelho Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)

e do Instituto Superior La Salle RJ.

O objetivo desse artigo é discutir a instabilidade política paraguaia recente e os

eventos que levaram ao processo de juízo político do então presidente Fernando

Lugo, refletindo sobre suas especificidades, tramitação e possíveis perspectivas

futuras.

A recente queda de mais um presidente na região não constitui fenômeno novo ou

pouco estudado e está inscrita na nova tradição de instabilidade política e

presidencial contemporânea na América Latina. Um dos aspectos mais relevantes

dessa nova realidade consiste no fato de que todos os presidentes que deixaram o

poder desde 1989 - incluindo aqueles que caíram antes do tempo previsto - foram

substituídos por novos presidentes civis.10 Essa observação demonstra que, apesar

de todos os problemas enfrentados pela democracia no período, não ocorreu o

retorno às soluções autoritárias das décadas anteriores. As mudanças do chefe do

Executivo foram mudanças no interior dos regimes, e não rupturas dos mesmos.

Obras recentes como a de André Luiz Coelho (2007), Pérez Liñán (2008, 2009),

Llanos e Marsteintredet (2010), Samuels e Hochstetler (2011), entre outros,

chamam a atenção para o paradoxo das quedas presidenciais sucessivas nos países

da América Latina sem prejuízo para o regime, ou, para a emergência de

democracias estáveis com governos instáveis.

A destituição de Fernando Lugo repete esse histórico recente de quedas

presidenciais latino-americanas e algumas de suas características paradigmáticas,

como a alta polarização das forças políticas, o conflito entre poderes e a utilização

do processo de juízo político como principal instrumento para retirar presidentes.

No entanto, apresenta também algumas diferenças em relação a esse modelo pelas

seguintes características: ausência total de protestos populares contra o presidente

destituído e um processo de impedimento que tinha como principal atributo a

avaliação subjetiva do desempenho do mandatário (não havia nenhuma evidência

9 O autor agradece a Maria Regina Soares de Lima, Tatiana Oliveira, Guilherme Simões Reis e Marcelo Quintarelli pelo debate que acabou originando a motivação para a redação do artigo. Esclareço, entretanto, que o resultado final desse texto é de minha inteira responsabilidade. 10 Desde 1990 nada menos do que 14 presidentes eleitos democraticamente na América Latina terminaram seus mandatos antes do tempo constitucional previsto. São eles: Collor - Brasil (1992); Serrano – Guatemala/Pérez - Venezuela (1993); Wasmosy – Paraguai/Balaguer – República Dominicana (1996), Bucaram – Equador (1997); Cubas – Paraguai/Mahuad – Equador (2000); Fujimori – Peru/De La Rua – Argentina (2001); Lozada – Bolívia (2003); Gutiérrez – Equador (2005); Zelaya – Honduras (2009); Lugo – Paraguai (2012) – Fonte: Elaboração do autor.

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13

substantiva de desrespeito às leis paraguaias), consagrada em um rito sumário

cuja tramitação do processo de juízo político transcorreu em menos de 48 horas e

levantando sérios questionamentos em relação à sua legitimidade e à garantia de

ampla defesa do presidente deposto.

Como veremos a seguir, a política paraguaia é marcada por um extenso histórico

de autoritarismo e uma recente experiência democrática. Uma das conclusões

desse texto aponta para a permanência de práticas políticas predatórias pelas elites

e por alguns dos principais grupos partidários do país, tornando a democracia

paraguaia uma das mais frágeis da região.

Redemocratização e instabilidade política

Para a análise do cenário político paraguaio contemporâneo e a necessária

identificação das suas principais forças políticas, torna-se obrigatória a apreciação

da trajetória do país nos últimos 20 anos ou, mais especificamente, a partir do

golpe de Estado de fevereiro de 1989, que encerrou os quase 35 anos de ditadura

de Alfredo Stroessner e foi perpetrado por membros do próprio regime. O golpe,

liderado pelo também general Andrés Rodriguez, iniciou um processo de

democratização caracterizado pela instabilidade política e por novas tentativas de

ruptura (Lemgruber, 2007).

A instabilidade da transição para a democracia contrasta, no entanto, com a

manutenção do Partido Colorado, oficialmente chamado Associação Nacional

Republicana (ANR), no poder. Com a queda de Stroessner, que servia como

elemento aglutinador, várias facções do partido passaram a disputar o controle

sobre o aparelho do Estado. A oposição ao longo de todo esse período foi

representada pelo antigo Partido Liberal, hoje denominado Partido Liberal Radical

Autêntico (PLRA). Com o passar do tempo, no entanto, novos atores políticos foram

surgindo no cenário político paraguaio, como o nascimento da União Nacional de

Cidadãos Éticos (Unace), fundado pelo general Lino Oviedo em 2002. Esses três

partidos formaram o “núcleo duro” do processo legislativo que resultou na

destituição de Fernando Lugo no poder.

Em 1993, Andrés Rodríguez foi substituído por Juan Carlos Wasmosy (o primeiro

presidente eleito democraticamente na história do país desde a independência em

1811), que acabou sofrendo uma tentativa de golpe em 1996 comandada por

Oviedo. Na ocasião, Wasmosy recebeu apoio unânime da comunidade internacional,

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14

principalmente dos países do Mercosul, o que acabou sendo fundamental para sua

manutenção no poder naquele momento.11

Em 1998, Raul Cubas assumiu o poder, apoiado por Oviedo, que estava

impossibilitado de concorrer às eleições presidenciais por ter sido sentenciado por

um tribunal militar a dez anos de prisão pela tentativa de golpe em 1996. Como

esperado por Oviedo, a primeira providência do governo de Cubas, três dias após

sua posse, foi ordenar sua libertação. No entanto, a Suprema Corte paraguaia

determinou seu retorno à prisão, sentença que foi desafiada por Cubas. Diante da

desobediência do então presidente, o Congresso paraguaio deu início a um

processo de impedimento contra Cubas.

Contudo, o ápice da referida crise política paraguaia teria ocorrido antes mesmo da

conclusão do processo de impedimento, quando o vice-presidente Argaña foi

assassinado a tiros em uma das principais ruas do centro de Assunção. A reação

imediata foi o protesto de praticamente todos os setores da sociedade, sendo os

principais atores os sindicatos, as organizações camponesas e os milhares de

jovens que ocuparam a praça em frente ao Congresso Nacional. Cubas foi forçado a

renunciar e, assim como Oviedo, acabou fugindo do país. O que sobrou do seu

mandato foi cumprido pelo presidente do Senado, Luiz González Macchi, cujo

governo foi permeado por denúncias de corrupção (Lemgruber, 2007) e por uma

nova tentativa de golpe capitaneada por oficiais ligados a Lino Oviedo em março de

2000. Essa nova tentativa de golpe acabou fracassando pela recusa da Marinha e

da Força Aérea paraguaia em participar do movimento.

A posterior erosão da coalizão parlamentar que sustentava o governo Macchi

resultou em sucessivas tentativas de instauração de um processo de juízo político

do então presidente organizadas em sua maioria pelo PLRA e pela Unace12 (Pérez

Liñán, 2009). Finalmente em 05 de dezembro de 2002, durante uma visita do

então presidente ao Brasil, o pedido para iniciar um processo de juízo político de

Macchi foi aceito, quatro meses antes das eleições presidenciais que ocorreriam em

abril de 2003. As principais acusações eram de corrupção, malversação de dinheiro

público e o uso de um carro roubado no Brasil. O procedimento para o juízo político

11 A atuação conjunta dos países do Mercosul na crise paraguaia de 1996 demonstra que o empenho do Mercosul e da Unasul na recente crise política que derrubou Fernando Lugo (através do envio de seus chanceleres ao Paraguai assim que o juízo político de Lugo foi iniciado e também no não reconhecimento do novo governo capitaneado pelo ex-vice-presidente Federico Franco) não constitui nenhuma novidade na política doméstica paraguaia. Pelo contrário, explicita um padrão de atuação reconhecido anteriormente pelo próprio Paraguai, legitimado pela chamada “cláusula democrática” presente em ambos os organismos. 12 As sucessivas tentativas de iniciar um processo de juízo político contra Macchi foram repetidas de maneira muito semelhante ao longo de praticamente todo o mandato de Fernando Lugo.

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15

foi instaurado pelo Senado paraguaio somente em 30 de janeiro de 2003 e o

julgamento marcado para 11 de fevereiro, perfazendo duas semanas para a defesa

do presidente. A oposição, no entanto, não conseguiu reunir os votos suficientes

para retirá-lo do poder. Após mais de dez horas de debate, 25 senadores votaram

pelo afastamento, 18 se posicionaram contra e um se absteve. Para retirá-lo do

poder, seriam necessários ao menos os votos de 30 dos 44 senadores.

Em 2003, Nicanor Duarte foi eleito o novo presidente do Paraguai, garantindo mais

uma vez a permanência do partido colorado no poder, que só foi interrompida após

mais de 50 anos ininterruptos pela eleição em 2008 do ex-bispo católico Fernando

Lugo.

A Administração de Lugo: polarização partidária e erosão gradual da

coalizão de governo.

A campanha presidencial de Fernando Lugo esteve calcada no apoio da chamada

Aliança Patriótica para a Mudança (APC, na sigla em espanhol), coligação que

formou a base de sustentação do seu governo. A APC foi oficialmente formalizada

em 19 de setembro de 2007 e se constituía inicialmente por oito agrupações

políticas: Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), Partido País Solidário (PPS),

Partido Encontro Nacional (PEN), Partido Revolucionário Febrerista (PRF), Partido

Democrata Cristão (PDC), Partido do Movimento ao Socialismo (P-MAS), Partido

Frente Ampla (PFA) e Partido Democrata Progressista (PDP). Posteriormente o

Bloco Social e Popular (BSP), do qual faz parte o Partido Popular Tekojoja, se

incorporou a coalizão. Para as eleições municipais de 2010 a APC realizou um

aliança com o bloco Espaço Unitário – Congresso Popular e formou a chamada

Frente Guasú.

A coalizão de apoio parlamentar de Lugo nunca conseguiu ser majoritária no

Congresso paraguaio, o que obrigava o governo a negociar separadamente com os

partidos da oposição a aprovação de cada matéria específica. Com isso o programa

de governo de Lugo esteve longe de ser concretizado e suas principais promessas

de campanha foram prejudicadas. Seu mandato foi palco de diversas crises e

tentativas de juízo político (e até mesmo de golpe militar, que levou o presidente a

trocar toda a cúpula militar de seu governo em outubro de 2009).

Conseqüentemente, o presidente não conseguiu manter sua coalizão unida e optou

pela estratégia da alta rotatividade ministerial, procurando diminuir os eventuais

pontos de tensão com a demissão dos encarregados pelas pastas responsáveis por

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áreas em crise ao mesmo tempo em que buscava novas alianças com outros

setores da política paraguaia. Os críticos de seu governo afirmaram que o

presidente foi incapaz de construir uma coalizão verdadeiramente programática,

instituindo um emaranhado de partidos que tinha em comum somente o fato de se

oporem ao tradicional domínio histórico do Partido Colorado. As táticas de manejo

de crise empreendidas por Lugo, entretanto, não foram capazes de evitar a recente

escalada da oposição ao seu governo.

Em abril de 2011, a convenção anual do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) já

apontava o lançamento de uma candidatura própria para as eleições presidenciais

de 2013 e o rechaço a qualquer possibilidade de reeleição presidencial. Na época, o

principal nome do partido que despontou como possível candidato a mandatário foi

exatamente o do então vice-presidente Federico Franco, responsável por seguidos e

contundentes ataques à administração de Lugo.

Em reposta, integrantes da Frente Guasú buscaram iniciar a campanha intitulada

“Iniciativa por el sí”, que buscou viabilizar a reeleição do presidente Lugo nas

eleições gerais de 2013. Seu objetivo inicial seria reunir 60 mil assinaturas, o

equivalente a 2% dos inscritos no Registro Civil Permanente, e apresentar o projeto

de inclusão de uma emenda constitucional ao artigo 229 – que proíbe a reeleição –

permitindo a candidatura de Lugo. As conseqüências da iniciativa foram tão

desastrosas que iniciaram mais uma crise política no país, capitaneada pelos

partidos de oposição e até mesmo por membros da própria base de sustentação do

governo, especialmente o PLRA, que não aceitavam a reeleição de Lugo. Frente à

esse cenário, o presidente e seus aliados acabaram por desistir do intento e nova

reforma ministerial foi iniciada.

Em novembro de 2011, o presidente Lugo concedeu a primeira entrevista coletiva

após um hiato de dois anos e fez duras declarações sobre seu desacordo com a

atuação do vice-presidente Federico Franco, cuja relação afirmou ser irreconciliável.

Na ocasião, Lugo afirmou que Franco seria seu opositor e estaria em franca

campanha para assumir a presidência do país desde 15 de agosto de 2008, data da

posse de ambos.

A saída definitiva do PLRA da coalizão de governo no último dia 20 de junho de

2012 foi o evento definitivo a impulsionar o processo de juízo político do presidente.

Os liberais acusaram Lugo de ignorar suas críticas internas para se apoiar nos

setores de esquerda e até mesmo em figuras do Partido Colorado (O Globo,

24/05/2012). A cisão definitiva com a administração de Lugo foi anunciada por

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Salyn Buzarquis, vice-presidente do Partido Liberal: "Está decidido: nós, liberais,

estamos cansados de sustentar um governo ruim. O senhor presidente tem de ir

para casa"; bem como pelo líder do partido no Congresso, Blas Llano: "O Partido

Liberal se exime de qualquer responsabilidade política sobre o governo do

presidente Lugo".

Breve reflexão teórica

Amorim Neto (2006), ao avaliar os sistemas presidencialistas da América Latina,

observa uma grande variação institucional, como também atestam os trabalhos de

Shugart (1992), Sartori (1997), Jones (1995), Carey (2003) e Mainwaring (2003),

entre outros, o que – em interação com a inclinação ideológica do presidente, o

sistema partidário e as condições econômicas – refletiria uma diversidade de

padrões de governança13. Estes, por sua vez, poderiam ser associados ao

desempenho político e econômico dos países das Américas.

De acordo com Pachano (2006), uma das principais dificuldades dos presidentes da

região seria a formação de maiorias parlamentares para a sustentação de

governos. Nesse sentido, as negociações do Executivo junto ao Legislativo, em

especial aos partidos políticos, sempre constituem motivo de tensão e barganha

política. Freqüentemente os partidos capitalizam as insatisfações populares visando

o aumento de seu poder de negociação, eventualmente deflagrando o início de uma

crise ou um conflito aberto entre poderes.

O argumento seria o de que estando à frente do Executivo o partido tem sua

margem de manobra reduzida, uma vez que para aprovar os projetos e colocar em

prática as políticas precisa do apoio da maioria. Como geralmente apenas a base de

sustentação do governo não é suficiente para alcançar o apoio necessário, o

presidente precisa ceder em alguns pontos para avançar em outros (Silva e Vieira,

2006), principalmente quando está sob pressões externas para a implementação de

ajustes macroeconômicos precisa abrir mão de uma “agenda preferida” para

implementar uma “agenda possível”.

De acordo com Badillo (2007), os mecanismos para governar com estabilidade

política estão diretamente relacionados com a capacidade de ambos os poderes

13 Santos, Almeida e Vilarouca (2008) definem a governança como a capacidade de governar, ou, em termos gerais, como definir objetivos em primeiro lugar e em seguida tomar decisões e implementar ações com vistas a alcançá-los. Os autores distinguem em dois os principais fatores que afetam a governança na região: a distribuição dos poderes legislativos entre o presidente e o Congresso e o grau de divergência entre os atores políticos detentores de poder de veto (especialmente entre o presidente e a tendência majoritária no Legislativo).

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(Legislativo e Executivo) formarem coalizões partidárias e sancionar as iniciativas

de lei que fazem parte da agenda do governo. A autora aponta a institucionalização

do sistema partidário como um dos fatores importantes para a formação de

coalizões legislativas. Sistemas partidários pouco institucionalizados – como é o

caso do Paraguai – teriam pouca disciplina e baixa coesão interna para formar

coalizões mais duradouras.14

Portanto, a lógica da negociação entre o Executivo e o Legislativo será fundamental

para determinar as crises políticas. Cheibub, Przworski e Saiegh (2004) afirmam

que um presidente pode gerir um governo minoritário sem crise em determinadas

situações desde que consiga formar coalizões majoritárias e estáveis. Caso não

obtenha seu objetivo, pode mudar o ministério e formar uma nova coalizão. Quanto

maior o poder de agenda e a capacidade de imprimir restrições à forma de votar do

legislativo, maior seria a capacidade de controlar o resultado.

Badillo (2007), no entanto, ao analisar os sistemas presidencialistas latino-

americanos, sustenta como seu principal argumento que quanto maior a distância

ideológica entre os partidos e o presidente, menores as possibilidades de se

formarem coalizões legislativas. Dessa maneira, se aproxima do argumento de

Chasquetti (2001) e Cheibub (2002) sobre a importância da polarização do sistema

político como um dos principais fatores para a instabilidade dos regimes

presidencialistas.

Caminhando no mesmo sentido, Hagopian e Mainwaring (2005) salientam que a

vulnerabilidade de um regime político estaria diretamente relacionada à criação de

instituições que regulassem o conflito distributivo dos países da América Latina: em

outras palavras, regimes democráticos são vulneráveis especialmente quando

falham em resolver as pressões oriundas das necessidades dos cidadãos e não

desenvolvem mecanismos de inclusão e representação para compensar as

ineficiências em seus desempenhos.

Independentemente do tipo de crise, Negretto (2003) afirma que parece claro na

maioria dos casos de queda de presidentes tanto o Congresso como os mandatários

percebiam a eliminação do outro como a solução para a crise. Sob essa

perspectiva, a renúncia forçada ou mesmo o impeachment dos presidentes, por um

lado, e a substituição ou dissolução do Congresso pelos mandatários, por outro,

14 Badillo utiliza a definição de Mainwaring e Scully (1997) para caracterizar quando um sistema de partidos é institucionalizado: 1) há concorrência regular entre partidos; 2) os partidos possuem raízes estáveis na sociedade; 3) os partidos e as eleições são os mecanismos que determinam quem governa; 4) as organizações partidárias são relativamente sólidas.

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podem ser percebidos como resultados simétricos não cooperativos. Nesses casos

extremos de alta polarização e radicalização dos principais atores, poderíamos

imaginar que o único resultado possível seria a queda dos presidentes, que

constituiria a única saída viável para o recomeço do sistema político em novas

bases, com o recrudescimento da polarização política e do conflito. Como vimos na

seção anterior, a alta polarização das forças políticas no governo Lugo parece ter

sido um dos principais motivos para sua queda.

O processo de juízo político e a suposta “parlamentarização” paraguaia.

Visando enriquecer o debate, recorro às palavras de Santiago Basabe sobre a

queda de Lugo:

Parece-me claro que não houve uma violação do procedimento constitucional e por isso não houve golpe de Estado. Em relação ao formal, ao estritamente normativo, não existiram violações que dêem conta de uma remoção distinta do que foi estabelecido constitucionalmente. Não obstante a política é mais complexa que o direito. A política exige que em cenários como o vivido pelo Paraguai as decisões dos atores estejam revestidas fundamentalmente de legitimidade. Nesse momento é que a decisão do Senado paraguaio se presta a uma interpretação mais profunda acerca da concepção que temos na América Latina da democracia e seus procedimentos que, novamente para além do formal, devem ser seguidos e respeitados. Ao final, o problema agora atravessado pelo Paraguai é o problema da maioria dos países da região: existe uma visão parcial e conjuntural do que constitui o regime democrático e do real poder dos votos. (Basabe, 2009).

A simples comparação entre o processo de juízo político enfrentado pelo ex-

presidente Luiz González Macchi em 2003 e por Fernando Lugo em 2012 nos

mostra algumas semelhanças em relação aos atores e ao tipo de instrumento

constitucional escolhido para a retirada do presidente. Concomitantemente, cabe

ressaltar ainda a discrepância em relação ao tempo total para a tramitação do

processo, que levou mais de três meses no caso de Macchi e menos de 48 horas

para Lugo. Questões importantes como o conhecimento das acusações e a devida

preparação da defesa foram desrespeitados, impedindo a garantia constitucional de

ampla defesa do réu. A partir do momento que tomou conhecimento do teor

completo das acusações, o presidente Lugo teve cerca de 12 horas para formular

sua defesa e apenas duas horas para se defender perante o julgamento no Senado.

O processo de juízo político está amparado no artigo 225 da Constituição paraguaia

de 1992, que reproduzo abaixo:

Artículo 225 - DEL PROCEDIMIENTO

El Presidente de la República, el Vicepresidente, los ministros del Poder Ejecutivo, los ministros de la Corte Suprema de Justicia, el Fiscal General del

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Estado, el Defensor del Pueblo, el Contralor General de la República, el Subcontralor y los integrantes del Tribunal Superior de Justicia Electoral, sólo podrán ser sometidos a juicio político por mal desempeño de sus funciones, por delitos cometidos en el ejercicio de sus cargos o por delitos comunes.

La acusación será formulada por la Cámara de Diputados, por mayoría de dos tercios. Corresponderá a la Cámara de Senadores, por mayoría absoluta de dos tercios, juzgar en juicio público a los acusados por la Cámara de Diputados y, en caso, declararlos culpables, al sólo efecto de separarlos de sus cargos, En los casos de supuesta comisión de delitos, se pasarán los antecedentes a la justicia ordinaria.

O caráter relativamente vago do artigo 225 permite uma série de interpretações

sobre o trâmite do processo, o que serve para aumentar ainda mais a polêmica.

Logo, os oposicionistas encontraram uma maneira questionável do ponto de vista

da legitimidade para resolver a questão. Coincidentemente, no mesmo dia em que

o processo de juízo político contra Lugo foi iniciado, o senador Hugo Esteban

Estigarribia Gutiérrez (Partido Colorado) apresentou o projeto de resolução de

número 553615 que “regulamenta o procedimento para o juízo político na honorável

Câmara dos Legisladores da Nação”, sendo aprovado imediatamente na mesma

sessão em que foi apresentado. O referido projeto estabeleceu as bases e o rito

para o julgamento de Lugo, que ocorreu logo em seguida.

Cabe ressaltar, no entanto, que o mesmo Parlamento paraguaio que processou e

julgou culpado o presidente Lugo em menos de 48 horas, até hoje não deu

prosseguimento ao projeto de número 550316 de iniciativa do deputado Victor

Alcides Bogado que propugnava em 31 de maio o juízo político contra os ministros

da Corte Suprema de Justiça (CSJ) do país. Ou seja, os mesmos ministros da Corte

Suprema de Justiça que estão sendo processados (mas não julgados) pelo

Parlamento paraguaio rejeitaram “in limine” (sem analisar) a ação de

inconstitucionalidade proposta pelo então presidente Fernando Lugo contra o

julgamento político que motivou seu impedimento (Lugo alegou que o Senado

paraguaio não lhe concedeu o devido tempo para a apresentação da sua defesa - O

Globo, 25/06/2012). Cabe, portanto, a relativização do julgamento de uma Corte

Suprema que também está ameaçada por um processo de juízo político nos

mesmos moldes e pelos mesmos atores que acabaram de derrubar o então

presidente.

15 O referido projeto pode ser encontrado em: http://www.congreso.gov.py/silpy/main.php?pagina=info_proyectos&&paginaResultado=info_tramitacion&idProyecto=5536 16 A tramitação do referido projeto pode ser encontrada em: http://www.congreso.gov.py/silpy/main.php?pagina=info_proyectos&&paginaResultado=info_tramitacion&idProyecto=5503

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Para além da discussão jurídica sobre a estrita validade legal do processo de juízo

político (que não constitui de maneira alguma a proposta desse artigo) que

derrubou um presidente legitimamente eleito pela vontade soberana do povo

paraguaio, os determinantes de cunho político aqui apresentados demonstram que

a destituição de Lugo não pode ser enxergada apenas pela ótica de sua validade

processual, mas sim da intensa pressão das forças políticas envolvidas no processo,

presentes na celeridade de sua tramitação que acabou por não permitir a ampla

defesa do réu, ainda mais quando levamos em consideração um julgamento de teor

tão subjetivo como o do “desempenho do presidente em suas funções”.

A discussão acerca da legitimidade do juízo político de Lugo acaba desembocando

em polêmica semelhante à queda do então presidente de Honduras, Manuel Zelaya,

em junho de 2009. Os perpetradores do processo de impedimento alegaram a

legalidade do fato baseados em uma interpretação doutrinária controversa de uma

Carta Constitucional pouco clara, alegando o respeito a todas as normas legais. Já

os apoiadores de Zelaya chamaram o evento de “golpe cívico-militar”, que teria

sido promovido por membros do próprio partido do ex-presidente, que em aliança

em as forças armadas e as elites econômicas teriam contado com a conivência da

oposição legislativa. O argumento a favor do golpe levava em consideração o fato

de Zelaya ter sido surpreendido de pijamas, detido e enviado no primeiro vôo para

fora do país em um rito de poucas horas.

Cabe ainda nesta seção a breve reflexão sobre a suposta “parlamentarização” do

sistema político paraguaio. Lembro que o Paraguai é uma República Presidencialista

e que uma das principais diferenças entre parlamentarismo e presidencialismo

consiste na inexistência do chamado “voto de desconfiança” do Parlamento ao

Chefe do Executivo. Os defensores do sistema parlamentarista argumentam que o

voto de desconfiança é um dos seus principais trunfos, por permitir a destituição

legal de um presidente que perdeu seu caráter majoritário. Por sua vez, os

entusiastas do presidencialismo afirmam que as exigências formais para um

processo de impedimento presidencial tornam o sistema mais estável, requisito

desejável e principalmente necessário em democracias recém saídas de longos

períodos autoritários, como no caso da América Latina. Sendo assim, podemos

afirmar que uma maneira de entendermos a queda de Fernando Lugo consiste em

imaginar que o então presidente paraguaio sofreu uma espécie de “voto de

desconfiança travestido em juízo político”. O problema é que o Paraguai ainda é um

país presidencialista.

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No ainda breve período de redemocratização latino-americana, podemos ainda

recordar outros processos recentes de impedimento na região que tiveram sua

legalidade contestada. Recorro a dois episódios ocorridos no Equador: a destituição

de Abdalá "El Loco" Bucaram em 1996 por incapacidade mental, ainda que

nenhuma junta médica tivesse chegado a examiná-lo de fato; e o processo de

impeachment de Lucio Gutíérrez em 2005, que foi retirado do poder pela acusação

de "abandono do cargo" ainda que estivesse no palácio presidencial (Coelho, 2007).

Tais questionamentos trazem a tona outra discussão imprescindível para

compreendermos melhor a democracia na região - a da representatividade política.

Afinal, quem é mais representativo: o presidente ou os parlamentares?

Considerações finais

Como dito anteriormente, a destituição de Fernando Lugo da presidência paraguaia

parece reviver de certa forma alguns modelos clássicos de outras quedas na região

ao passo que apresenta algumas particularidades. O modelo de destituição

presidencial praticado recentemente em Honduras parece ter inspirado os

parlamentares paraguaios em sua opção por um processo de juízo político

extremamente rápido e contra presidentes de orientação ideológica mais a

esquerda, ao contrário da maioria dos outros casos anteriores, em que os

presidentes ligados a direita foram depostos.

Diferentemente da teoria de Hochstetler (2007), que afirmava que todas as quedas

de mandatários na América Latina desde a redemocratização contaram

necessariamente com a presença da sociedade civil e dos movimentos sociais como

atores determinantes para a manutenção ou queda de presidentes, o caso

paraguaio parece ser o primeiro a se distanciar desse modelo. Nas semanas que

antecederam a instituição do processo de juízo político de Lugo não aconteceram

manifestações, protestos ou qualquer mobilização significativa por parte da

população.

O que salta aos olhos no caso paraguaio consiste na ferrenha oposição que Lugo

teve que enfrentar ao longo de seu governo, principalmente aquela efetuada pelos

Partidos Colorado e Unace, que tentaram de tudo para inviabilizar o governo. Com

o passar do tempo, seu apoio parlamentar foi desmoronando até que sua coalizão

de governo se tornou inexistente. Forças que anteriormente eram leais ao governo,

quando perceberam que a possibilidade de queda presidencial era grande,

deixaram os ministérios e passaram a fazer oposição ao presidente.

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Do mesmo modo, podemos perceber uma espécie de “dependência de trajetória”

do padrão histórico praticado no Paraguai. O processo de impedimento de Lugo

parece não ter respeitado todos os procedimentos legais ou mesmo a democracia

(aqui entendida como o desejo da maioria dos cidadãos expresso nas urnas,

legitimando a soberania popular dos mandatários). O que se percebe, pelo

contrário, é a constante disputa política travada pelas principais forças

conservadoras do país, que de maneira predatória buscam o poder mesmo que isso

signifique desrespeito às leis e a vontade popular expressa em mandatos fixos de

seus presidentes.

A queda de Lugo parece ter derrubado o “compromisso democrático de diálogo e

paz” firmado em maio de 2011 pelos ex-presidentes paraguaios Juan Carlos

Wasmosy, Raul Cubas e Luis Gonzáles Machhi, além de seus respectivos vice-

presidentes, no marco das comemorações do bicentenário da independência do

Paraguai. O “juízo político Express”, nas palavras do ex-mandatário, incidiu

frontalmente contra a já conturbada experiência democrática paraguaia.

A questão que se mostra interessante para o futuro consiste no fato de que essas

mesmas forças que hoje governam o país e que ao longo do mandato do ex-

presidente Lugo sempre se mostraram contrárias ao projeto integracionista

representado pelo Mercosul (o Parlamento paraguaio foi o único que não votou a

adesão da Venezuela ao bloco, alegando que o governo de Hugo Chávez constituía

grave ameaça à conhecida cláusula democrática) e pela Unasul (do modo análogo,

o Paraguai foi o último país a aderir oficialmente ao bloco em razão da recusa de

seu Parlamento em votar a adesão), hoje protestam contra a exclusão

momentânea do Paraguai de ambos os organismos. Definitivamente, os próximos

eventos da vida política paraguaia ainda fornecerão extenso material de estudo

para a Ciência Política e as Relações Internacionais.

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Observador On-line | v.7, n. 06 | jun. 2012

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Acervo OPSA – Paraguai

*A escolha dos artigos abaixo levou em consideração a relevância das publicações para a compreensão da crise paraguaia.

Análise de Conjuntura

Os brasiguaios e os conflitos sociais e nacionais na fronteira Paraguai-Brasil Análise de Conjuntura OPSA (n.2, fev. 2009) José Lindomar C. Albuquerque

Observador On-Line

El régimen democrático y su legitimidad en América del Sur: actualización del debate Observador On-Line (v.5, n.2, Fevereiro de 2010) Daniela Vairo

Os caminhos da autonomia: O Paraguai e as aporias de um modelo ‘progressista’ de governo Observador On-Line (v.3, n.11, Novembro de 2008) Mayra Goulart

Transição, Estabilidade e Alternância: A possibilidade de consolidação da democracia no Paraguai Observador On-Line (v.3, n.3, Março de 2008) Mayra Goulart da Silva

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