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,.., OS PARADIGMAS DA ADMINISTRAÇAO PÚBLICA NO BRASIL (1900-92) * Tania Margarete Mezzomo Keinert Análise da evolução do campo de conhecimento em Administração Pública através dos paradigmas dominantes nos diversos períodos entre 1900-92. Public Administration as a developing theoretical field and its paradigms between 1900-92. , Professora do Departamento de Administração Geral e Re- cursos Humanos e Pesquisado- ra do Centro de Estudos de Ad- ministração Pública e Governo (CEAPG), Mestre e Doutoranda na EAESP/FGV. "O campo da Administração Pública foi caracterizado como um campo deriva', enfrentando uma 'crise intelec- tual', necessitando de uma 'nova perspectiva', um campo que vinha tornando-se 'isolado' e em um período de 'tensão e mudança'. Ainda, as alternativas oFerecidas como soluções para os problema» in- telectuais e paradigmáiicoe do cam- po mostraram-se, em sua maioria. tão estranhas às suas tradições ou tão enraizadas em outras discipli- nas, que optar por elas destruiria sua integridade com um foco se- parado de investigação." . PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública. campo de conhecimento, evolução histórica, ensino e pesquisa, Brasil. KEYWORDS: Public Administration, theoreti- cal field evolution, research, education, Brazil. LEVINE, C. H. et alli. Organizationa 1design: a post minnowbrook pcrspcctive for lhe new public administration, PA R, n. 35, [ulv, 1977, p. 42-". Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 34, n. 3, p. 41-48 Mai./Jun. 1994 41

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OS PARADIGMAS DA ADMINISTRAÇAOPÚBLICA NO BRASIL (1900-92)

* Tania Margarete Mezzomo Keinert

Análise da evolução do campo de conhecimento em Administração Públicaatravés dos paradigmas dominantes nos diversos períodos entre 1900-92.

Public Administration as a developing theoretical field and its paradigms between1900-92.

, Professora do Departamentode Administração Geral e Re-cursos Humanos e Pesquisado-ra do Centro de Estudos de Ad-ministração Pública e Governo(CEAPG), Mestre e Doutorandana EAESP/FGV.

"O campo da Administração Pública já foi caracterizadocomo um campo 'à deriva', enfrentando uma 'crise intelec-tual', necessitando de uma 'nova perspectiva', um campo

que vinha tornando-se 'isolado' e emum período de 'tensão e mudança'.Ainda, as alternativas oFerecidascomo soluções para os problema» in-telectuais e paradigmáiicoe do cam-po mostraram-se, em sua maioria.tão estranhas às suas tradições outão enraizadas em outras discipli-nas, que optar por elas destruiriasua integridade com um foco se-parado de investigação." .

PALAVRAS-CHAVE:Administração Pública. campode conhecimento, evoluçãohistórica, ensino e pesquisa,Brasil.

KEYWORDS:Public Administration, theoreti-cal field evolution, research,education, Brazil.

LEVINE, C. H. et alli.Organizationa 1design:

a post minnowbrookpcrspcctive for lhe new public

administration, PA R, n. 35,[ulv, 1977, p. 42-".

Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 34, n. 3, p. 41-48 Mai./Jun. 1994 41

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ARTIGO

1. Projeto de Pesquisa desen-volvido junto ao Centro de Estu-dos de Administração Pública eGoverno (CEAPG/EAESP/FGV)intitulado "A Evolução do cam-po de Administração Pública noBrasil (1889-1992)".

2. Neste artigo não se fará men-ção direta aos dados empíricoslevantados na Revista de Admi-nistração Pública (RAP) e Re-vista do Serviço Público (RSP),fazendo-se apenas referênciaaos periódicos. Os referidos da-dos, acompanhados de umaanálise preliminar, podem serencontrados em MEZZOMOKEINERT, T. M., LAPORTA, C.B. A RAP e a evolução do cam-po de Administração Pública noBrasil (1967-92). Revista de Ad-ministração Pública, Rio de Ja-neiro, v. 28, n. 1, p. 5-17, 1994;e em MEZZOMO KEINERT, T.M., VAZ, J. C. A Revista do Ser-viço Público no PensamentoAdministrativo Brasileiro (1937-89). Revista do Serviço Público,Brasília, v. 118, n. 1, p. 9-41,1994.

3. O enfoque (focus) dominanteserá utilizado para a caracteriza-ção do período, embora os ou-tros enfoques continuem pre-sentes, com peso menor.

4. KUHN, T. A Estrutura das Re-votuções Científicas. São Paulo:Perspectiva, 1975.

5. MUNOZ AMATO, P Introdu-ção à Administração Pública.São Paulo: FGV,1958, p. 19.

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Este artigo tem por objetivo reconstituira evolução do campo de conhecimento emAdministração Pública no Brasil. Ele estáinserido em um trabalho de pesquisa maisamplo 1 e baseia-se em trabalho empírico eem análises anteriormente efetuadas. 2

A questão fundamental que se procuraresponder é a seguinte: o que é Adminis-tração Pública? É possível se falar em dis-ciplina? Quais são seus paradigmas?Qual a sua evolução histórica? O que ecomo se escreveu a respeito? Quais assuas tendências?

As etapas da pesquisa já desenvolvi-das (ver quadro 1) revelam uma tendên-cia ao fortalecimento e delimitação maisclara do campo de conhecimento em Ad-ministração Pública.

Uma análise preliminar identifica al-gumas formas de raciocínio que têm mar-cado a evolução do campo - enquantocorrentes principais de pensamento- -, asquais iremos chamar de paradigmas.

Segundo Thomas Kuhn, os paradig-mas compartilhados são a unidade fun-damental para o estudo de um campopor uma comunidade de estudiosos, sen-do que eles darão a este campo o nível dedisciplina. 4

Aliando-se o comportamento do ins-trumental teórico dominante (/ocus) naprodução de conhecimento em Adminis-tração Pública ao contexto institucional,foi possível delimitar preliminarmentequatro grandes períodos paradigmáticos(ver quadro 2).

o paradigma da Administração Públicacomo Ciência Jurídica (1900-29)

Os primórdios do estudo de Adminis-tração Pública no Brasil a identificam"com as regras jurídicas, limitando seu pro-blema à elaboração de leis e regulamentos deaplicação, com todos os pormenores necessá-rios para o seu cumprimento". Nesse co-mentário de Mufioz Amaro." verifica-seque Direito Administrativo e Adminis-tração Pública parecem ser equivalentes,ou melhor, que esta última resulta de-pendente do primeiro. Diferenciar as

Dados sobre a PesquisaProdução brasileira em AP expressa em periódicos,anais de congressos, obras e programasdos cursos de Administração Pública.

Objeto empírico{instrumental where)

instruméntal teórico(speeiaJiZed wha~

1. Objeto empírico

loeus

2. Metodologia (*)(OCUS

3. fases da Pesquisa3.1. Concluídas Análise dos 721 artigos constantes da Revista de

Administração Pública (RAP} no período (1967-92).Análise dos 3898 artigos constantes da Revista doServíço Púb{/co (RSP) no períOdO(1937-89),

ai de Programas de Pós-AO) no período (1976-93).

.Análise da prOdução em AP constante da Revista deAdministração de Empresas (RAE) e da Revista de Administração(flA) nos períodOS1961-92 e 1947-92, respectivamente,An~lise das obras naCionais significativas na área e da influênciade eventuais obras estra[)geiras (traduzidas ou não),Ánalise doS programas dos cursos de AP.

© 1994, Revista de Administração de Empresas / EAESP/ FGV, São Paulo, Brasil.

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duas disciplinas e caracterizar cada urnadelas constitui, pois, a preocupação dosestudiosos da época.

Anos depois, esta questão foi conside-rada superada, especialmente a partir daemergência do estudo sistemático da Ad-ministração, que passou a ser entendidacorno ciência. Este comentário de Agus-tin A. Gordillo pode ilustrar o fato: "Oenorme avanço dos estudos da ciência da Ad-ministração nos Estados Unidos, Inglaterraetc., e sua crescente difusão em nosso meio,está despertando a consciência de que a solu-ção jurídica não é 'a' solução do problema ad-ministrativo, senão apenas uma de suas face-tas, e talvez, não a mais importante". 6

Esta postura legalista, fortemente en-raizada na América Latina, pode ser ex-plicada, segundo Beatriz Warhlich, pelofato destes países terem sido colônias dePortugal e Espanha que, por sua vez,carregavam doze séculos de legislaçãoromana. Comparando, posteriormente, acultura latina à anglo-saxônica, a autorarefere-se de maneira especial ao sistemado Common Laso - o qual prioriza os pre-cedentes jurisprudenciais: "A justiça nor-te-americana equiparou os atos jurídicos daAdministração Pública aos atos privados,fato que fez com que o Direito Administrati-vo não tenha a elaboração e a profundidadeque teve nos países latinos. Cabe acrescentarque alguns aspectos da organização adminis-trativa, considerados nos países de tradiçãoromanisiica matéria do Direito Administra-

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tivo, nos Estados Unidos são consideradoscomo estranhos ao juridico",?

Explica-se, assim, a grande influênciaexercida no Brasil pelo enfoque jurídico,que, apesar de não ser mais o paradigmadominante, continua bastante forte e in-fluente, especialmente nas concepções li-gadas à prática da Administração Pública,atuando, em grande parte dos casos, comoum limitante às inovações gerenciais.

o paradigma da Administração Públicacomo Ciência Administrativa (1930-79)

Este período paradigmático é marca-do pela grande influência dos chamados"princípios da Administração" que tra-ziam em si a idéia de neutralidade eaplicabilidade a qualquer contexto, per-mitindo que se equiparasse a Adminis-tração Pública à Administração de Em-presas.

Dada a vigência deste paradigma porum longo período de tempo, pode-se di-vidi-lo em três fases distintas (ver qua-dro 2).

Primeira Fase: o Estado Administrativo(1930-45)

Este período inicia-se com a Revolu-ção de 30, que lança as bases do EstadoAdministrativo no Brasil," dando inícioà estruturação e expansão estatal. Istocriou uma demanda por capacidade degestão que, aliada ao grande fascínioexercido pela emergente ciência da Ad-

6. GOROILLO.A. A. Tratado dederecho administrativo. Tomo1, Macchi, Buenos Aires, 1974,p. VI-18 a VI-20.

7. WARHLlCH, B. Evolución delas ciências administrativas emAmérica Latina. Revista Interna-cional de Ciências Administrati-vas, n. 12, p. 70-92, 1978.

8. NASCIMENTO, K. Reflexõessobre a estratégia de reformaadministrativa: a experiência fe-deral brasileira. Revista de Ad-ministração Pública, Rio de Ja-neiro, v. 1, p. 11-50, 1978.

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9. Revista do Serviço Público.Editorial. RSP, ano I, v. 3, n. 2,agosto 1938.

10. A Revista do Serviço Públi-co foi editada, a partir de 1937,pelo Conselho Federal do Servi-ço Público Civil (CFSPC), pre-cursor do DASP; por este, apartir de sua criação, em 1938.e pela FUNCEP (Fundação Cen-tro de Formação do ServidorPúblico) a partir da constituiçãodesta, em 1981. A publicação,que fora interrompida em 1989,foi relançada neste ano pelaENAP (Escola Nacional de Ad-ministração Pública), órgão quesubstituiu a FUNCEP.

11. Aula inaugural do curso degraduação em AdministraçãoPública da EAESP/FGV, proferi-da pelo então secretário da Fa-zenda do Estado de São Paulo,L A. Martins. Ver Administra-ção Pública e Administração deEmpresas, Revista de Adminis-tração Pública, Rio de Janeiro.v. 2, n. 3, p. 127 e 129.

12. Para aprofundar este pontover CAIDEN, G., CARAVANTES,G. Reconsideração do Conceitode Desenvolvimento, Revista deAdministraçâo Pública, Rio deJaneiro, v. 16, n. 1, p. 4-16,1982.

13. Um dos acordos mais im-portantes, nesta área, foi o Pro-grama de Ensino em Adminis-tração Pública e de Empresas(PBA-1), firmado em 1959, eque se destinava a "prover sufi-ciente número de técnicos com-petentes para as repartições pú-blicas e privadas". No âmbitodeste programa, foram envia-dos professores e técnícos paraa realização de cursos de mes-trado e doutorado nos EUA, oque resultou na criação de cur-sos de Administração em nívelde graduação (UFRGS e UFBA)e no aperfeiçoamento dos vi-gentes (EBAP e EAESP, ambasda FGV). Estes convênios, so-mados aos anteriores, como oque deu origem à FGV(1943/1944) tornaram a influên-cia americana decisiva, direcio-nando, ideológica e metodologi-camente o ensino de Adminis-tração Pública e as proposiçõesde reforma administrativa noBrasil.

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ministração, criou condições para que seigualassem as necessidades da Adminis-tração Pública àquelas da AdministraçãoEmpresariaL

Esta primeira fase é marcada forte-mente pela idéia de racionalização, ba-seada especialmente nos teóricos da cha-mada Escola Clássica - Taylor, Fayol,Willoughby e Gulick. Artigos e edito-riais da Revista do Serviço Público faziamreferência constante a esses autores, nes-te período. O próprio DASP (Departa-mento Administrativo do Serviço Públi-

••••o conceito de governo

predominante na época era o

de que "governar é

administrar", ignorando o

componente político e

reforçando a idéia de

identidade de interesses.também influência da

Escola Clássica.

co) - criado em 1938 para ser" o braçoadministrativo" do governo GetúlioVargas - tinha na racionalização e notreinamento técnico sua grande orienta-ção. Para cumprir esta tarefa, o DASPiniciou um movimento de profissionali-zação do funcionalismo público, implan-tando um sistema de ingresso competiti-vo e critérios de promoção por mereci-mento. Centralizou, ainda, as atividadesrelacionadas a pessoal, materiais, orça-mento, organização e métodos.

O conceito de governo predominantena época era o de que "governar é admi-nistrar", 'l ignorando o componente polí-tico e reforçando a idéia de identidadede interesses, também influência da Es-cola Clássica. A aplicação desses concei-tos na Administração Pública era facili-tada, ainda, pelo caráter prescritivo doemergente campo de Administração.

Cabe salientar, por fim, um fato curio-so. Nesta primeira fase, foi o DASP - umórgão público - o laboratório da produ-

ção e divulgação do conhecimento admi-nistrativo. A Revista do Serviço Público,editada a partir de 1937, foi, pelo menospor um decênio, a única publicação espe-cializada em Administração no Brasil."Foi somente a partir de 1944, com a cria-ção da Fundação Getúlio Vargas (FGV) -formada a partir do ideário e da absor-ção de técnicos do DASP - que uma or-ganização de direito privado começa adedicar-se ao estudo da Administração.

Segunda Fase: a Administração para odesenvolvimento (1946-64)

Este período é marcado pela ideologiadesenvolvimentista, reforçando, aindamais, a idéia de que" dificilmente se pode-rá planejar o desenvolvimento enquanto opaís não tiver estabelecido uma administra-ção pública capaz de implementar (o grifomIO consta do original) os planos ".11

A idéia desenvolvimentista funda-mentou-se, por um lado, no desejo dospaíses ricos criarem, nos países pobres,pré-condições para investimentos; e, deoutro, nas evidentes necessidades dosnovos Estados transformarem suas bu-rocracias de tipo colonial em instrumen-tos de mudança social. 12

A denominada" Administração parao Desenvolvimento", implementada ba-sicamente através dos projetos de coope-ração internacional, influenciou de ma-neira decisiva as linhas norteadoras dosestudos de Administração Pública, umavez que a própria criação das escolas deAdministração no Brasil é fruto dessesacordos. Cabe salientar, ainda, l}Ue éatravés desses convênios que se inicia otreinamento dos futuros professoresdesses cursos nos Estados Unídos.l''

Como conseqüência, a Administraçãocomeça a adquirir contornos de campo deconhecimento: ocorre um aumento naprodução de textos de caráter teórico-con-ceitual e uma presença marcante de tra-duções, importações destinadas a auxiliarsua estruturação. O país já dispõe de umcorpo de técnicos e estudiosos capazes degerar uma sofisticação na produção de co-nhecimento em Administração.

Terceira Fase: o IntervcncionismoEstatal (1965-79)

Nesta época, o Estado começa a gerirgrandes organizações, ocorrendo um

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crescimento da máquina governamentalcom vistas a aumentar sua capacidade deintervenção, centralização e controle. 14

O Decreto-Lei 200, de 1967, estatutobásico da reforma administrativa do go-verno militar, reafirmou a importânciado planejamento (entendido sob umaótica tecnicista), garantiu a expansãodas empresas estatais e centralizou ocontrole na Secretaria de Planejamento(SEPLAN).

O paradigma do campo de conheci-mento em Administração Pública conti-nua se baseando na gestão empresarial,uma vez que o Estado-Empresa, desen-volvimentista e interventor, vai deman-dar e absorver os quadros formados nes-tes moldes. Assim, a administração deempresas estatais no Brasil passou a serdirigida pelo lema da competência e ra-cionalidade técnicas, especialmente noperíodo 1967-78, que foi o de sua maiorexpansão. 15

Encerra-se, desta forma, um períodomarcado pelo tecnicismo, pela neutrali-dade dos chamados Princípios da Admi-nistração, e, como decorrência, pela se-paração dicotômica entre esta e a políti-ca. Expresso nas diversas fases como si-nônimo de racionalização, de desenvol-vimento ou de competência (ver quadro2), o paradigma da Administração Pú-blica como ciência administrativa come-ça a mostrar sinais de esgotamento.

o Paradigma da Administração Públicacomo Ciência Política (1980-89)

O país vivencia, neste período, inten-sa mobilização político-social c um pro-cesso de reorganização institucional. Omodelo desenvolvimentista-exportadordemonstra sua falência na crise econô-mica e, especialmente, na crise social.Um novo conceito de desenvolvimentocomeça a emergir, transformando-se,gradativamente, em matéria de ensino epesquisa em Administração Pública, tra-zendo, como conseqüência, uma rnudan-ça de paradigma (ver quadro 2).

A produção teórica em AdministraçãoPública recebe uma grande contribuiçãodas análises baseadas na Ciência Políti-ca, enfoque este que começa a ganhar es-paço em relação ao enfoque administra-tivo, até então hegemônico. Começa a sedelinear o novo paradigma, apontando

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OS PARADIGMAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLlCA.!O BRASIL

para uma nova configuração do campo:da existência enquanto Ciência Admi-nistrativa, a Administração Pública co-meça a utilizar-se de um instrumentalteórico predominantemente oriundo dasciências políticas.

Começam assim a pred ominar, nocampo de Administração Pública, estu-dos relacionados à questão do poder es-tatal, dando menos ênfase à eficiênciaque à eqüidade e à adequação social.Começa-se a identificar obstáculos polí-ticos à própria eficiência, estando esta

Coloca-se, desta forma,

a exigência de que o

paradigma emergente

consolide estas mudanças,adotando valores de uma cultura

democrática, e aperfeiçoe,

ao mesmo tempo. os instrumentosde gestão, inovando e criando

novas possibilidades.

última, na maior parte dos casos, condi-cionada aos primeiros. Em outras pala-vras, parece renascer a velha dicotomiapolítica-administração, agora travestidade administração-política.

O domínio do tecnicismo característi-co do paradigma anterior dá lugar agoraa um politicismo que reedita a velha ecriticada proposição taylorista da sepa-ração entre os que concebem e os queexecutam. A vigência deste paradigma,embora fundamentado unicamente emuma visão "militante" da AdministraçãoPública - que prega a supremacia da po-lítica às possibilidades legais e técnicasde gestão -, abriu caminho para que no-vamente o campo se transformasse.

o Paradigma Emergente: aAdministração Pública comoAdministração Pública (1989- ...)

A partir da mobilização social referi-da no período anterior, consolida-se oconceito de cidadania, a noção de direi-tos e ocorre, conseqüentemente, o forta-

14. Apesar de ter havido umaexpansão da administração indi-reta - o que pode dar a idéia dedescentralização -. neste perío-do, foram reforçados os siste-mas de controle destas. espe-cialmente a partir da Secretariado Planejamento, que tinha uni-dades em cada ministério e emcada unidade da administraçãodescentralizada. isto é, empre-sas estatais, fundações e autar-quias; realizando assim um du-plo controle: geral e setorial.

15. Ver FISCHER, T. Adminis-tração Pública como área de co-nhecimento e ensino: a trajetó-ria brasileira. Revista de Admi-nistração de Empresas, Rio deJaneiro. v. 24, n. 4. p. 278-88,1984.

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ARTIGO

16. Esta proposição está conti-da no conceito de "governo em-preendedor" desenvolvido porOSBORNE, David, GAEBLER,Ted. Reinventando o Governo,MP Comunicaçàes/ENAP, Brasí-lia, 1994.

17. Para esta discussão verCAIDEN. Gerald. Como hacerlefrente a la década de los noven-ta: retos para los gerentes deisector publico, XXV AsambleaAnual de Cladea, San Jose, Cos-ta Rica, 1990.

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lecimento da cultura democrática. A no-ção de cidadania contrapõe-se à idéia decorrupção, entendida como o favoreci-mento do interesse privado em detri-mento ao público.

Emerge a proposta de parti-cipação da sociedade civil nagestão pública, especialmenteno sentido de se ampliar ocontrole da primeira sobrea segunda.

O papel desenvolvi-mcntista e interventordo Estado brasileirorevela-se esgotadoe sua participa-ção na economiadecresce cadavez mais. Inicia-se um movi-mento de redu-ção do tamanhodo Estado, espe-cialmente a par-tir das privatizações, embora proposiçõescomo descentralização, envolvimento dasassociações da sociedade civil, fortaleci-mento da instância local e de formas al-ternativas de gestão - como as parceriaspúblico-privado - estejam na ordem dodia. O novo papel do Estado parece ser ode catalisador de energias e potencialida-des governamentais e comunitárias. 16

Este novo contexto exige administrado-res públicos capazes de administrar de-mocraticamente e gerenciar a participaçãodas comunidades. A competência políticapara conciliar demandas sociais e convi-ver com as relações de poder entre Estadoe sociedade precisa ser aliada à capacida-de técnica para definir prioridades e me-

tas, formular estratégias e gerir recur-sos escassos. Entende-se as-

sim que, para garantira democratização

das relações go-verno-funcioná-rios públicos-sociedade,certas condi-ções operati-vas e organi-zacionaisprecisam serassegura-das."?

Coloca-se, desta forma, aexigência de que o paradigma emergenteconsolide estas mudanças, adotando va-lores de uma cultura democrática, eaperfeiçoe, ao mesmo tempo, os instru-mentos de gestão, inovando e criandonovas possibilidades, especialmente apartir de critérios éticos, da democratiza-ção da informação e do envolvimento dapopulação.

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OS PARADIGMASDAADMINISTRAÇÃ~!.2.8L1CA_~08R~;;

A produção do período reflete estastransformações apresentando um ree-quilíbrio nos enfoques de Ciência Admi-nistrativa e Ciência Política (ver gráfico1), consolidando a trajetória anterior emum novo paradigma.

Surge assim, um enfoque paradigmá-tico na formulação, execução e avaliaçãode planos governamentais e no manejode interesses (e pressões de organiza-ções políticas e sociais) que se encon-tram em conflito. O paradigma emer-gente parece apontar para a necessidadede se pensar em uma Teoria de Governoque, aliando a ciência política à adminis-trativa (com especial ênfase na AnáliseOrganizacional) corresponda às expecta-tivas sociais de um Estado democráticoe eficiente.

As rápidas mudanças que vêm sendoobservadas na sociedade atual colocam aexigência de se repensar o papel do Esta-do, especialmente a partir de um contex-to fortemente marcado pelos avanços datecnologia da informação, que colocamquestões como agilidade, rapidez, flexibi-lidade, competitividade e, especialmente,qualidade nos serviços e produtos na or-dem do dia. Isto demanda, sem dúvida,um novo Estado, novos valores, novosserviços e novos servidores públicos.

Para responder a estas demandas so-ciais, o campo de conhecimento em Ad-ministração Pública precisa consolidar

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os avanços do paradigma emergente,entendendo a gerência, enquanto pro-cesso político-administrativo, como re-curso estratégico para a busca de exce-lência nos serviços públicos.

Assim, o principal desafio colocadopelo paradigma emergente parece ser,efetivamente, a superação de velhas di-cotomias como política-administração,público-privado, concepção e execução,entre outras.

Como conseqüência, a AdministraçãoPública surge como uma disciplina hí-brida, com ligações orgânicas com aCiência Política e com a Análise Organi-zacional. Amplia, ainda, seu locus (obje-to empírico de análise) das distinçõestradicionais entre setores público e pri-vado para abranger todas as questõesque se refiram ao interesse coletivo.Esta visão supera as proposições queconsideravam ser o campo de Adminis-tração Pública aquele que realiza estu-dos "localizados" no setor público. Anova perspectiva enriquece e amplia oslimites do campo, à medida que supera,inclusive, a dicotomia público-privado,passando, de análises do setor públicopara o estudo das questões públicas. 18

O desafio consiste, assim, na constru-ção de modelos teóricos e práticos, quepossibilitem o surgimento de um EstadoInteligente, capaz de fazer frente à com-plexidade e à incerteza, melhorar a qua-lidade dos serviços aos cidadãos e pro-curar o desenvolvimento humano aomesmo tempo que o econômico. 19

18. Esta proposição pode seraprofundada em WAMSLEY, G.L., ZALD, M. The political eco-nomy ot public organizations,Publíc Administration Review,Washington, v. 33, n. 1. p, 62-73 e METCALFE, Les. Publicmanagement: from imitation toinnovation, Internacional Insti-tute of Administrative Sciences,Bruxelas, 1992. Sobre a evolu-ção do campo nos EUA verHENRY, Nicholas. Paradigms ofpublic administration, PublicAdministration Review, July/Aug. 35, 378-86, 1975 e GO-LEMBIEWSKI, Roberl. Publicadministration as a developingdiscipline. New York: Decker,1975. Sobre o Brasil, ver MA-CHADO, Clovis et alli. ProduçãoAcadêmica em AdministraçãoPública: período 1983/1988,Anais da ANPAD, 1988.

19. Ver KLlKSBERG, Bernardo.Uma gerência pública para osnovos tempos, Revista do Ser-viço Público, Brasília, v.18, n. 1,119-142,1994.

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Pesquisa Integrada em AP

,1~ '" CAPACITAÇÃO E DESENVOLVIMENTO GERENCIAL

1.1. Capacitação de Recursos Humanos na Administra-ção PúblicaGestão EstratégicaMudança Organizacional nas Organizações Públicas(Experiências e Propostas de Reforma Administrativa)Dualidade, Produtividade e Melhoria Continua na APLicitações, Contratos e Processo de Aquisição deBens e Serviços.Racionalização do Trabalho Administrativo (O&M)Privatização, Terceirização, Contratos de Gestão,Subcontratação, Parcerias, Concessões.Cultura Organizacional

1.9. Desenho e Estrutura Organizacional1.10. Informatização na Administração Pública1.11. Processo Decisório e Sistemas de Informação na AP1.12. Administração Financeira e Orçamentária

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMPARADA

4.1. Integração Latino-Americana: Mercosul4.2. Agências Internacionais e Políticas Públicas4.3. Experiências Inovadoras4.4. Relações Intergovernamentais e Interorganizacionais4.5. Articulação entre os Poderes

HISTÓRIA ADMINISTRATIVA NO BRASIL

2.1. Teorias da Administração Pública(consolidadas - Teoria Organizacional eAdministrativa - ou recentes - New PublicAdministration, Public Management,Governos Empreendedores etc.)Processos de Reforma Administrativano BrasilEstrutura e Funcionamento do EstadoBrasileiro: Evolução da Administração Pública(direta/indireta, fundações, associações,conselhos, colegiados etc.) e formas

alte rnativasPapel do Estado e Relação com a SociedadeCivil - padrões culturais, sociais e políticos

ESTADO E FUNÇÃO PÚBLICA

Papel do Estado, Globalização e DesenvolvimentoGovernabilidade e CidadaniaFunção Pública e SociedadeÉtica no Serviço PúblicoFormação e TreinamentoInteresse Público e Participação

o administrador público formado dentro do novo para-digma precisa ser um administrador "completo", capaz deanalisar as modalidades de funcionamento das institui-ções públicas, enquanto organizações que se encontramem contextos regidos por lógicas diferentes daquelas demercado. Para tanto, a educação em Administração Públi-ca precisa desenvolver algumas habilidades específicas(ver quadro 3) que distingam o administrador público en-quanto tal e que o capacitem a desenvolver tecnologiasapropriadas. O desenvolvimento destas habilidades contri-buirá para a adequação do ensino à evolução do campo deconhecimento em Administração Pública e às necessida-des atuais da sociedade brasileira.

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O novo paradigma requer, ainda, que a pesquisa emAdministração Pública forneça subsídios que embaseme façam avançar a produção de soluções teóricas e apli-cadas, adaptadas às novas demandas sociais. Assim,uma agenda de pesquisa deve procurar integrar uma vi-são gerencial (manageriaD, ao conhecimento da histó-ria, do papel e da função do Estado brasileiro, de umaperspectiva político-administrativa (ver quadro 4). Estaslinhas de pesquisa deverão ser acompanhadas por estu-dos comparativos que enriqueçam e ampliem o escopode análise, tendo em vista um contexto de globalizaçãoe integração, onde atuam organismos e agências inter-nacionais.

Artigo recebido pela Redação da RAE em abril/94, avaliado e aprovado para publicação em maio/94.