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PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Maria Nazareth Soares Fonseca 1 Terezinha Taborda Moreira Resumo O texto constrói-se como uma visão panorâmica das literaturas africanas de língua portuguesa e procura ressaltar alguns momentos significativos dos projetos literários de cada país bem como características marcantes de alguns de seus notáveis escritores. Palavras-chave: Literaturas africanas de língua portuguesa; Projetos literários; Literatura e identidade nacional. O aparecimento das literaturas de língua portuguesa na África resultou, por um lado, de um longo processo histórico de quase quinhentos anos de assimilação de parte a parte e, por outro, de um processo de conscientização que se iniciou nos anos 40 e 50 do século XIX, relacionado com o grau de desenvolvimento cultural nas ex-colônias e com o surgimento de um jornalismo por vezes ativo e polêmico que, destoando do cenário geral, se pautava numa crítica severa à máquina colonial. Parte das manifestações literárias desse período pode ser rastreada em algumas publicações, como nos volumes do Almanach de lembranças e nos vários números do Almanach de lembranças luso-brasileiro, livrinhos “cheios de informações úteis” que continham, também, “bons versos e prosas, firmados por autores conceituados” (MOSER, 1993, p. 17). Gerald Moser pesquisou esses livrinhos, na biblioteca da Pennsylvania State University, EUA, e publicou, em 1993, o Almanach de lembranças (1854-1932). Em sua publicação, o estudioso ressalta características do material pesquisado, que constava de uma produção literária que se inspirava em modelos europeus mas também continha preciosas amostras dos costumes tradicionais de vários países africanos de língua portuguesa. Como bem acentua Moser (1993, p. 27), “os livrinhos do velho Almanach de lembranças luso- brasileiro contêm, sob capa modesta, um arquivo único [...] como referência à vida literária da África de expressão portuguesa, de 1854 para diante”. Em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, o escritor africano vivia, até a data da independência, no meio de duas realidades às quais não podia ficar alheio: a sociedade colonial e a sociedade africana. A escrita literária expressava a tensão existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar 1 - Este texto foi elaborado a partir de pesquisas desenvolvidas pela autora, com financiamento do CNPq.

PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

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Text of PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

PANORAMA DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LNGUA PORTUGUESA Maria Nazareth Soares Fonseca1 Terezinha Taborda Moreira

Resumo O texto constri-se como uma viso panormica das literaturas africanas de lngua portuguesa e procura ressaltar alguns momentos significativos dos projetos literrios de cada pas bem como caractersticas marcantes de alguns de seus notveis escritores. Palavras-chave: Literaturas africanas de lngua portuguesa; Projetos literrios; Literatura e identidade nacional.

O aparecimento das literaturas de lngua portuguesa na frica resultou, por um lado, de um longo processo histrico de quase quinhentos anos de assimilao de parte a parte e, por outro, de um processo de conscientizao que se iniciou nos anos 40 e 50 do sculo XIX, relacionado com o grau de desenvolvimento cultural nas ex-colnias e com o surgimento de um jornalismo por vezes ativo e polmico que, destoando do cenrio geral, se pautava numa crtica severa mquina colonial. Parte das manifestaes literrias desse perodo pode ser rastreada em algumas publicaes, como nos volumes do Almanach de lembranas e nos vrios nmeros do Almanach de lembranas luso-brasileiro, livrinhos cheios de informaes teis que continham, tambm, bons versos e prosas, firmados por autores conceituados (MOSER, 1993, p. 17). Gerald Moser pesquisou esses livrinhos, na biblioteca da Pennsylvania State University, EUA, e publicou, em 1993, o Almanach de lembranas (1854-1932). Em sua publicao, o estudioso ressalta caractersticas do material pesquisado, que constava de uma produo literria que se inspirava em modelos europeus mas tambm continha preciosas amostras dos costumes tradicionais de vrios pases africanos de lngua portuguesa. Como bem acentua Moser (1993, p. 27), os livrinhos do velho Almanach de lembranas lusobrasileiro contm, sob capa modesta, um arquivo nico [...] como referncia vida literria da frica de expresso portuguesa, de 1854 para diante. Em Angola, Cabo Verde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom e Prncipe, o escritor africano vivia, at a data da independncia, no meio de duas realidades s quais no podia ficar alheio: a sociedade colonial e a sociedade africana. A escrita literria expressava a tenso existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar1

- Este texto foi elaborado a partir de pesquisas desenvolvidas pela autora, com financiamento do CNPq.

uma lngua europia, era um homem-de-dois-mundos, e a sua escrita, de forma mais intensa ou no, registrava a tenso nascida da utilizao da lngua portuguesa em realidades bastante complexas. Ao produzir literatura, os escritores forosamente transitavam pelos dois espaos, pois assumiam as heranas oriundas de movimentos e correntes literrias da Europa e das Amricas e as manifestaes advindas do contato com as lnguas locais. Esse embate que se realizou no campo da linguagem literria foi o impulso gerador de projetos literrios caractersticos dos cinco pases africanos que assumiram o portugus como lngua oficial. Manuel Ferreira (1989b) discute a emergncia da literatura (sobretudo da poesia) nos espaos africanos colonizados pelos portugueses, propondo a observao de quatro momentos. No primeiro, destaca o terico que o escritor est em estado quase absoluto de alienao. Os seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte do mundo: o momento da alienao cultural. Ao segundo momento corresponde a fase em que o escritor manifesta a percepo da realidade. O seu discurso revela influncia do meio, bem como os primeiros sinais de sentimento nacional: a dor de ser negro, o negrismo e o indigenismo. O terceiro momento aquele em que o escritor adquire a conscincia de colonizado. A prtica literria enraza-se no meio sociocultural e geogrfico: o momento da desalienao e do discurso da revolta. O quarto momento corresponde fase histrica da independncia nacional, quando se d a reconstituio da individualidade plena do escritor africano: o momento da produo do texto em liberdade, da criatividade e do aparecimento de outros temas, como o do mestio, o da identificao com frica, o do orgulho conquistado. Segundo Manuel Ferreira (1989b), o entendimento da literatura africana passa pela compreenso da perspectiva dinmica que orienta a produo literria, que faz com que esses momentos no sejam rgidos nem inflexveis e permite que um escritor, muitas vezes, atravesse dois ou trs deles: no espao ontolgico e de criatividade potica do escritor movem-se valores do colonizador que so dados adquiridos, funcionam valores culturais de origem e h sempre a conscincia de valores que se perderam e que necessrio ressuscitar. Numa perspectiva mais historicista, Patrick Chabal (1994) refere-se ao relacionamento do escritor africano com a oralidade e prope quatro fases abrangentes das literaturas africanas de lngua portuguesa. A primeira denominada assimilao, e nela se incluem os escritores africanos que produzem textos literrios imitando, sobretudo, modelos de escrita europeus. A segunda fase a da resistncia. Nessa fase o escritor africano assume a responsabilidade de construtor, arauto e defensor da cultura africana. a fase do rompimento com os moldes europeus e da conscientizao definitiva do valor do homem africano. Essa fase coincide com a conscientizao da africanidade, sob a influncia da negritude de Aim

Csaire, Lon Damas e Lopold Senghor. A terceira fase das literaturas africanas de lngua portuguesa coincide com o tempo da afirmao do escritor africano como tal e, segundo o terico, verifica-se depois da independncia. Nela o escritor procura marcar o seu lugar na sociedade e definir a sua posio nas sociedades ps-coloniais em que vive. A quarta fase, da atualidade, a da consolidao do trabalho que se fez em termos literrios, momento em que os escritores procuram traar os novos rumos para o futuro da literatura dentro das coordenadas de cada pas, ao mesmo tempo em que se esforam por garantir, para essas literaturas nacionais, o lugar que lhes compete no corpus literrio universal. Se quisermos ter uma viso de conjunto das literaturas africanas de lngua portuguesa, torna-se necessrio considerar essas fases da produo do texto mas tambm os grandes momentos de ruptura com os cdigos estabelecidos. A crtica e os historiadores concordam que os fundamentos desses momentos caracterizam-se pelo surgimento de movimentos literrios significativos ou de obras importantes para o desenvolvimento das literaturas, entre os quais podem ser citados: a) em Cabo Verde, a publicao da revista Claridade (1936-1960); b) em So Tom e Prncipe, a publicao do livro de poemas Ilha de nome santo (1942), de Francisco Jos Tenreiro; c) em Angola, o movimento Vamos descobrir Angola (1948) e a publicao da revista Mensagem (1951-1952); d) em Moambique, a publicao da revista Msaho (1952); e) na Guin-Bissau, a publicao da antologia Mantenhas para quem luta! (1977), pelo Conselho Nacional de Cultura. A esses momentos importante acrescentar outros que abarquem, tambm, a narrativa e a produo mais recente dos diferentes pases, em prosa e poesia. o que pretende fazer este estudo panormico, assumindo os aspectos mais importantes das diferentes literaturas africanas escritas em portugus. Para isso, considera-se que o estudo da produo potica dos escritores africanos pode ser feito mediante uma abordagem diacrnica das literaturas a que pertencem, o qual observe: as dificuldades do sujeito potico de se encontrar com seu universo africano; o fato de que grande parte da produo literria reflete a busca da identidade cultural e a tomada progressiva de uma conscincia nacional; o fato de que sempre possvel detectar, nos autores, o momento potico da luta, que se configura num discurso de resistncia e de reivindicao por mudanas; as mudanas que encaminham para um processo de releitura constante que liga o presente e o passado na construo de uma frica que se renova continuamente.

Cabo Verde

O impacto do colonialismo no foi to drstico, impulsivo e dramtico em Cabo Verde como o foi nas outras regies africanas que passaram pelo processo de colonizao portuguesa. Essa situao acabou por criar algumas condies necessrias para o aparecimento da literatura cabo-verdiana. Amlcar Cabral (1976, p. 25) informa-nos que desde muito cedo a terra, bem como os centros de controle e administrao, passaram para as mos de uma burguesia nascida em Cabo Verde, formada, majoritariamente, por mestios. Em seus apontamentos sobre a literatura cabo-verdiana, Cabral (1976) afirma que a poesia que se escrevia em Cabo Verde caracterizava-se por um desprendimento quase total do ambiente, sublimando-se numa expresso potica que nada tinha em comum com a terra e o povo do arquiplago. Para Cabral, possuidores de uma cultura clssica, adquirida principalmente no Seminrio de S. Nicolau, os poetas da gerao em referncia esqueceram-se da terra e do povo. De olhos fixos nos clssicos europeus, os escritores produziam uma poesia em que o amor, o sofrimento pessoal, a exaltao patritica e o saudosismo eram traos comuns. Em raras excees, como nas composies de P. Cardoso, ao traduzir, do crioulo, quadras populares do Fogo, encontrava-se algo do que, mais tarde, se tornaria realidade nos poetas da nova gerao: uma comunho ntima entre o poeta e o seu mundo. Porm, era ainda a influncia da cultura clssica que caracterizava o aspecto formal da poesia em referncia: o respeito sagrado mtrica e a submisso rima. Essa submisso ao modelo de escrita europeu devia-se condio econmica em que vivia a elite cabo-verdiana, alheia realidade do pas. Segundo Cabral (1976, p. 27), para essa elite, a terra e o povo estavam distantes: Este, nas letras da Morna, canta os seus sofrimentos e amores, enquanto os poetas compem sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer (...), as belezas da Grcia ou uma data clebre da Histria. Entre 1920 e 1930 j existia uma elite muito consciente dos problemas que afetavam as ilhas. Essa elite concentrava-se em So Nicolau, Santo Anto e So Vicente, e muitos eram comerciantes, professores, estudantes e jornalistas que estavam em contato com as correntes e os movimentos literrios de Portugal, como o modernismo e o neo-realismo. Mas foi sobretudo o modernismo brasileiro que influenciou essa gerao de escritores, que comeava a tomar uma conscincia cada vez mais ntida da realidade das ilhas. A ateno era focada cada vez mais na terra, no ambiente socioeconmico e no povo das ilhas.

Os poetas dessa fase eram homens comuns que caminhavam de mos dadas com o povo e tinham os ps fincados na terra. Cabo Verde passou a ser o espao e o ambiente onde as rvores morrem de sede, os homens, de fome, e a esperana nunca morre. O mar passou a ser a estrada da libertao e da saudade, e o marulhar das vagas, a tentao constante, a lembrana permanente do desespero de querer partir e de ter de ficar. A terra, a terra mrtir, tornou-se a Mam que alimenta os filhos; que no morreu, mas jaz adormecida numa migalha de terra no meio do mar. A voz do poeta, agora, a voz da prpria terra, do prprio povo, da prpria realidade cabo-verdiana. O grande passo para a virada da temtica da literatura produzida em Cabo Verde foi dado em 1936, na Ilha de S. Vicente, por um grupo de intelectuais, que lanou a revista Claridade. Os intelectuais que possibilitaram a publicao da revista foram, principalmente, Baltasar Lopes (autor do romance Chiquinho 1947), Manuel Lopes (autor do romance Os flagelados do vento leste 1960) e Jorge Barbosa (poeta renomado, autor de Arquiplago 1935, Ambiente 1941, Caderno de um ilhu 1956, e Poesia indita e dispersa edio pstuma, 1993). Podem ser indicadas como presenas literrias fortes no movimento dos claridosos, principalmente nos primeiros anos, a revista portuguesa Presena, de Coimbra, que publicou vrios poemas de Jorge Barbosa e tinha uma boa recepo entre os intelectuais caboverdianos, e a literatura brasileira, principalmente os romances neo-realistas da segunda fase do modernismo: Menino do engenho e Bang, de Jos Lins do Rego, Jubiab e Mar morto, de Jorge Amado, e romances de Graciliano Ramos, de Raquel de Queiroz e de Marques Rebelo. A poesia de Manuel Bandeira foi um alumbramento para os intelectuais caboverdianos, que tambm destacaram Jorge de Lima e Ribeiro Couto como descobertas instigantes. Vejam-se os versos do poema Palavra profundamente, de Jorge Barbosa (1926, p. 26), dedicado ao poema de mesmo nome de Manuel Bandeira:[...] Enquanto isso Manuel Bandeira vai passando por ns no tempo na sua alegria melanclica na sua alegria de corao apertado vai passando na sua poesia profundamente.

Nos anos de 1936 e 1937 saram os trs primeiros nmeros da revista; os outros seis foram publicados no perodo de 1947 a 1960.

As linhas mestras dos movimentos dos claridosos esto praticamente condensadas na obra de Jorge Barbosa. A preocupao fundamental da sua poesia revelar as situaes com que diariamente se defronta o cabo-verdiano: a fome, a misria, a falta de esperana no dia de amanh, as secas e os seus efeitos devastadores. Os grandes tpicos so o lugar, o ambiente socioeconmico e o povo; e todos em relao constante com o mar, elemento gerador de outros dois temas tratados na potica de Jorge Barbosa: a viagem e o sonho de encontrar uma terra prometida. A ilha, o mar, a viagem e o sonho so os signos de maior densidade na poesia de Jorge Barbosa. Toda essa temtica distribui-se pelas suas trs obras: Arquiplago (1935), Ambiente (1941) e Caderno de um ilhu (1956). Mas em Ambiente que Jorge Barbosa se define como poeta inovador, ao dar sua poesia uma tonalidade dramtica, traduzida pela intimidade, pela denncia, pela epopia do homem cabo-verdiano vivendo o drama da migrao. Um poema revelador da dualidade que marca a escrita de Jorge Barbosa, de um eu em constante tenso com um ambiente exterior, Priso (BARBOSA, 1989, p. 113):

Pobre do que ficou na cadeia de olhar resignado, a ver das grades quem passa na rua! pobre de mim que fiquei detido tambm na Ilha to desolada rodeada de Mar!... ... as grades tambm da minha priso!

Esse poema paradigmtico quando se procura organizar uma amostragem comparativa da poesia de Cabo Verde. que a poesia dos claridosos, se por um lado rompeu com as normas temticas do colonialismo, no se libertou completamente de uma viso que vitimiza o homem, herdada do neo-realismo portugus. Essa poesia retrata o homem cabo-verdiano e o mundo que o rodeia, sem, no entanto, apontar grandes solues. De lirismo intimista, no apresenta outra soluo ao homem cabo-verdiano que no seja a evaso do mundo a que pertence. Tal postura gera crticas ao carter escapista e evasionista da poesia dos claridodos e de Jorge Barbosa. A gerao da Claridade lanou porm os alicerces da nova poesia, posteriormente continuada pelos escritores que participaram de outras duas publicaes: Certeza (1944) e Suplemento Cultural (1958). Nessas duas revistas colaboraram poetas como Antnio Nunes, Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Onsimo Silveira (um dos primeiros a utilizar o crioulo em parceria com o portugus, em seu livro Hora grande, de 1962) e Ovdio Martins (que combateu abertamente o evasionismo dos claridosos). Apesar das crticas, a gerao da

Claridade influenciou e continua a influenciar grande parte da produo potica e ficcional de Cabo Verde. O salto qualitativo e a ruptura com a influncia dos claridosos deveram-se a dois escritores que chegaram a participar na revista Claridade: Joo Varela (ou Joo Vrio, ou Timtio Tio Tiofe), que publicou, em 1975, O primeiro livro de Notcha, e Corsino Fortes, autor de dois importantes trabalhos poticos, Po & fonema (1975) e rvore & tambor (1985). Foi sobretudo Corsino Fortes quem provocou o maior desvio de contedo temtico e formal na escrita cabo-verdiana. Em Po & fonema percebe-se a inteno do autor em reescrever a histria do povo em uma epopia. O livro abre-se com uma Proposio que constitui, por si s, uma demarcao da poesia de tipo esttico dos claridosos. Repare-se em sua primeira estrofe (FORTES, 1975, p. 30):

Ano a ano crnio a crnio Rostos contornam o olho da ilha com poos de pedra abertos no olho da cabra

Essa cadncia ritmada do esforo humano marca o compasso da epopia que se pretende escrever, inteno que o autor condensa na epgrafe, de autoria de Pablo Neruda: Aqui nadie se queda inmvel. / Mi pueblo es movimiento. / Mi ptria es um camino (FORTES, 1975, p. 7). Esse livro de Corsino Fortes (1975) assinala o desenvolvimento e a expanso de uma metfora, que se inicia com o ttulo. O povo tomou conta da sua terra o Po e do seu destino a fala que d nome s coisas, que indica posse. A utilizao do crioulo em muitos poemas intencional, uma vez que a fala, anterior escrita, o grande sinal da liberdade que se tornou patrimnio, tal como a terra. Por isso o subttulo do canto primeiro: Tchon de pove tchon de pedra; por isso tambm os subttulos de outros dois cantos: Mar & matrimnio e Po & matrimnio. A problemtica da identidade cabo-verdiana est presente na obra de Corsino Fortes. Porm, ao contrrio dos claridosos, a nova poesia uma expresso artstica cuja formulao sugere e reflete a dinmica do real e nela intervm. A grande diferena, no entanto, reside no fato de que esse autor, para alm de criar uma nova dinmica das relaes entre o sujeito e o objeto potico, coloca toda a problemtica da identidade cabo-verdiana num contexto muito mais vasto, que o da identidade da frica. Cabo Verde, com sua especificidade o

isolamento de arquiplago , participa na viagem de construo da frica de rosto e corpo renovados:

Dos seios da ilha ao corpo da frica O mar ventre e umbigo maduro E o arquiplago cresce. (FORTES, 1975, p. 40).

O tema do isolamento provocado pela insularidade constri contrapontos com o da migrao, com a expresso da necessidade de deixar as ilhas seja por causa do clima inspito em muitas delas, seja porque no exterior que o futuro pode ser conquistado, s vezes ilusoriamente. Nessa vertente da produo literria que explora os diferentes matizes da temtica da insularidade, a escritora Orlanda Amarilis nome significativo, assumindo as variantes de um mesmo tema o do exlio, da dispora, da solido , mas tambm observando, com olhos muito ternos, o dia-a-dia das mulheres e das ilhas. Orlanda Amarilis nasceu em Assomada, Santa Catarina, Cabo Verde, em 1924. Fez os estudos primrios na cidade de Mindelo, na ilha de So Vicente, e ali iniciou, no Liceu Gil Eanes, os estudos secundrios. Completou-os depois em Goa, na cidade de Panguim, capital do chamado Estado da ndia Portuguesa, onde viveu cerca de seis anos. Mais tarde, freqentou o curso de Cincias Pedaggicas na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi no trnsito entre as ex-colnias da frica Cabo Verde e da ndia Goa e a prpria metrpole portuguesa que se deu a formao da escritora. Formao que se completou nas intervenes pblicas que marcaram a inscrio de seu nome entre os ficcionistas caboverdianos, feitas em seus percursos pela Nigria, Canad, Estados Unidos da Amrica, ndia, Moambique, Angola, Holanda, Espanha e Hungria, dentre outros pases, como tambm nas tradues de sua obra. A partir do trnsito entre espaos distintos as colnias, com suas tradies, seu perfil socioeconmico e grandes metrpoles mundiais com seus modelos hegemnicos de cultura e economia propagadores da modernidade , a obra de Orlanda Amarilis resulta de uma tica privilegiada para se pensar a vida contempornea. Reflete a posio da autora de equilibrar-se entre mundos que parecem distantes entre si, no tempo e no espao, lanando sobre cada um deles um olhar enviezado que procura visualizar detalhes que a visada convencional deixa escapar. Seus contos evidenciam-se como jogo de espelhos, emblema da duplicidade que a marca da prpria vida da autora. Cada mundo descrito traa uma geografia imaginria em que os espaos se interpenetram, ora se confundindo, ora se expandindo. Com esse procedimento,

a obra de Orlanda Amarilis lana luzes sobre algumas questes frente s quais se coloca o escritor contemporneo, como a necessidade de construir, com sua literatura, um mundo novo, moderno, sobre as culturas que ele carrega dentro de si, ou, ainda, ao escrever, no se fechar em guetos, esquecendo-se de que h um mundo alm da comunidade qual pertence originariamente. Embora tenha uma publicao literria reduzida Ilhu dos pssaros (1983), A casa dos mastros (1989) e Cais-do-Sodr te Salamansa (1991) , Orlanda Amarilis importante referncia na construo de narrativas curtas que procuram explorar questes significativas da cultura cabo-verdiana, com destaque para as tenses que podem se resumir na temtica da insularidade, vista como priso e, ao mesmo tempo, como liberdade, particularmente com relao aos lugares por onde transitam as mulheres. Em seu conjunto, a obra de Orlanda Amarilis aborda a questo do deslocamento entre espaos diferentes, numa perspectiva tanto fsica quanto psicolgica. O conto Thonon-lesBains, que abre as narrativas que compem a coletnea Ilhu dos pssaros (AMARILIS, 1983), transcorre a partir do cruzamento de dois espaos distintos: o Ilhu dos Pssaros, situado prximo Ilha de So Vicente, em Cabo Verde, e a cidade Thonon-les-Bains, localizada ao sul da Frana, na fronteira com a Sua. O nome da cidade francesa d ttulo ao conto. No entanto, a percepo da vida e o modo de ser do homem cabo-verdiano que so retratados na narrativa. Assim, o sentido do conto deve ser depreendido da percepo que o homem cabo-verdiano tem do significado de viver fora de seu pas sem abrir mo de suas razes. Pelo olhar atento do narrador (AMARILIS, 1983) conhecemos a intimidade de NhAna, a mulher-me cujas relaes so delimitadas pelo comadrio e pela vizinhana, em Cabo Verde, e pelas cartas de Gabriel e Piedade, que vm da Frana. NhAna uma das mulheres-ss de Orlanda Amarilis, de que nos fala Maria Aparecida Santilli. Segundo a autora, as personagens femininas de Orlanda Amarilis so aparas sociais que giram no espao de suas Ilhas, recortadas dos homens pais, maridos ou parceiros cuja ausncia (ou eventual presena) , no entanto, o eixo em torno de que se descreve a rbita de suas vidas (SANTILLI, 1985, p. 107). De fato, em torno da expectativa do sucesso do enteado Gabriel, na Frana, que giram as perspectivas de vida de NhAna. Enrodilhada em sonhos, NhAna exila-se dos sete anos sem chuva, da falta de aposentadoria, da renda parca advinda das encomendas dos rendeiros, da venda dos cachos de banana, todos eles signos da carncia que governa sua existncia nas ilhas de Cabo Verde.

O exlio no sonho de NhAna ilustra o ser mulher-me que espera dentro de uma tradio, cujos pontos de referncia delimitam a ao da mulher entre as panelas e os santos. A espera de NhAna decorre entre as idas e vindas de Antoninho Coxinho para entrega das cartas da Frana, as xicrinhas de caf tomadas com a comadre e as rezas na cantoneira do outro lado da cama, onde uma Santa Terezinha e uma Nossa Senhora do Rosrio circundam uma imagem dentro de um nicho feito de uma caixa de sapatos com um friso de floritas de cera em volta, [que] mostrava uma face descada com dois vincos sobre os cantos dos lbios (AMARILIS, 1983, p. 12). De maneira semelhante, Piedade outra mulher-s cuja existncia gira em torno de dois homens: o meio-irmo Gabriel e o namorado francs Jean. Exilada do espao de referncia tradicional de NhAna, Piedade chamada ao mercado de trabalho da sociedade francesa moderna. Porm no consegue exilar-se de uma outra tradio: a da represso machista do homem que no lhe faculta a independncia emocional e a expresso de sua individualidade. Seja na relao com Gabriel ou com Jean, pesa sobre Piedade a ideologia da interveno do homem protetor, que lhe delimita as aes:

Jean era um bocado ciumento, tinha quarenta e dois anos, era separado de uma outra mulher, mas era muito seu amigo. Trazia-lhe chocolates quando vinha namorar com ela, tudo vista de Gabriel e dos seus amigos. Nunca ficava s com ele porque Gabriel no deixava, sempre a espiar, at os dois amigos eram capazes de lhe ir contar qualquer coisa mal feita ela viesse a fazer. (AMARILIS, 1983, p. 19).

Nessa tradio, o lugar subalterno que Piedade ocupa na sociedade no somente realado como, no que se refere a sua relao com Jean, determina a deciso sobre sua prpria vida. O assassinato de que vtima revela sua dupla condio de minoria: Piedade mulher e estrangeira, ou seja, emigrada, marginalizada e submetida a uma sociedade onde representa apenas a fora do trabalho. Sobre seu assassinato recai a injustia do silncio, j que o protesto domstico fica circunscrito ao espao daqueles que, como ela, no tm direito voz (AMARILIS, 1983). A mesma preocupao em invocar o universo feminino tm Vera Duarte, que publicou, alm de vrios poemas em antologias, Amanh a madrugada (1993) e O arquiplago da paixo (2001), e Dina Salstio, autora de Mornas eram as noites (1994) e A louca do Serrano (1998), primeiro romance de autoria feminina publicado em Cabo Verde. Em entrevista concedida, em 1994, a Simone Caputo (2006, p. 26), Salstio explica a presena da figura feminina em seus escritos:

[...] a necessidade de publicar as inmeras histrias de mulheres, histrias de vida que passam por mim [...] c um encontro que verdade, um momento s [...] para querer mostrar o meu reconhecimento a estas mulheres cabo-verdianas que trabalham duro, que fazem o trabalho da pedra, que carregam gua, que trabalham a terra, que tm a obrigao de cuidar dos filhos, de acender o lume. Quis prestar uma homenagem a esta mulher [...]. As histrias acontecem ao sabor do vo. Falo das mulheres intelectuais, daquelas que no so intelectuais, daquelas que no tm nenhum meio de vida escrito, falo da prostituta, falo de todas as mulheres que me do alguma coisa, e que eu tenho alguma coisa delas [...] Em Cabo Verde, quando nasce uma menina, ela j uma mulher.

Na poca atual, Germano Almeida , sem dvida, o escritor cabo-verdiano mais conhecido fora das ilhas. Com um estilo muito prprio, marcado por um irreverente humor, ele traz para os seus livros a sociedade cabo-verdiana do ps-independncia, abordando fatos concretos da realidade do pas numa prosa fluida que se vale de magistrais pinceladas pitorescas e coloridas. Germando Almeida autor de uma vasta coletnea de ttulos: O testamento do Senhor Napumoceno da Silva Arajo (1989), O meu poeta (1992), A ilha fantstica (1994), Estrias de dentro de casa (1996), A famlia Trago (1998), Estrias contadas (1998), O dia das calas roladas (1999), Dona Pura e os camaradas de abril (1999), As memrias de um esprito (2001), O mar na Lajinha (2004) e, mais recentemente, Eva (2006). Dentre os inmeros ttulos j publicados pelo escritor, destaca-se o romance O testamento do Senhor Napumoceno da Silva Arajo (1989), sem dvida o mais conhecido dos leitores cabo-verdianos e estrangeiros. O romance foi levado ao cinema por Francisco Manso, numa produo cabo-verdiana, portuguesa e brasileira que tem o ator Nelson Xavier como protagonista.

So Tom e Prncipe

A literatura de So Tom e Prncipe ainda pouco representativa no contexto das literaturas africanas de lngua portuguesa. No entanto, So Tom e Prncipe tem sua presena assegurada na histria da literatura africana com escritores como Francisco da Costa Alegre e Francisco Jos Tenreiro. Francisco Jos Tenreiro, nascido em So Tom, em 1921, autor de Ilha de nome santo (1942), considerado um dos marcos da poesia santomense e das literaturas africanas de lngua portuguesa. Muitos crticos apontam Tenreiro como o primeiro poeta a imprimir a negritude na poesia africana de lngua portuguesa, inspirando-se nos poetas americanos Langston Hughes e Counteen Cullen e em Nicolas Guilln. Na obra de Tenreiro, o iderio da negritude motiva uma produo potica mais voltada para as realidades da vida do homem

africano, esteja ele no continente ou perambulando pela Europa com o corao em frica. Essa motivao perpassa o longo poema Corao em frica, de que faz parte a seguinte estrofe:

Caminhos trilhados na Europa de corao em frica Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas tons fortes da paleta cubista que o Sol sensual pintou na paisagem; saudade sentida de corao em frica ao atravessar estes campos de trigo sem bocas das ruas sem alegrias com casas cariadas pela metralha mope da Europa e da Amrica da Europa trilhada por mim Negro de corao em frica. De corao em frica na simples leitura dominical dos peridicos cantando na voz ainda escaldante da tinta e com as dedadas de misria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa trilhada por mim Negro e por ti ardina cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do oramento que no equilibra do Benfica venceu o Sporting ou no (...). (TENREIRO, 1982, p. 124).

Francisco Jos Tenreiro, em parceria com o angolano Mrio Pinto de Andrade, organizou o clebre Caderno de poesia negra de expresso portuguesa, lanado em Lisboa, em 1953. A publicao, uma pequena antologia de poetas de Angola, Moambique e So Tom e Prncipe, conta com um poema do cubano Nicolas Guilln, a quem o caderno dedicado, e tem como objetivo fundamental propor uma reflexo sobre o que se deveria entender por negritude na frica sob dominao portuguesa. O texto introdutrio, de autoria de Mrio Pinto de Andrade (1982), bem explcito com relao ao objetivo da publicao: seguir a tendncia da poesia negro-africana produzida na Europa no intervalo entre as duas guerras mundiais. A obra potica de Tenreiro foi, desde sempre, uma leitura obrigatria para todos quantos participaram dos movimentos sociais, polticos e literrios que geraram, em Lisboa, sobretudo a partir da dcada de 50, organizaes como a Casa dos Estudantes do Imprio e o Centro de Estudos Africanos, de que Tenreiro foi um dos fundadores, em 1951. Em tais organizaes militou a maioria dos intelectuais cujas obras passaram a integrar o que de mais representativo existe na poesia e na fico dos pases africanos de lngua portuguesa. E sobretudo a poesia desses autores que absorveu, com maior grau de profundidade, a expresso da negritude existente na obra de Francisco Jos Tenreiro, a qual contribuiu para modelar uma literatura africana que, embora no tenha constitudo uma ruptura essencial com a cultura

dominante de cinco sculos, se desenvolveu num movimento que comeou na assimilao e estendeu-se at a luta pela libertao. Francisco da Costa Alegre, nascido em 1864, teve a obra Versos editada postumamente, em 1916. Conforme Jos Francisco Costa (2006), um dos primeiros poetas africanos a se exprimir em lngua portuguesa e a ter conscincia da sua cor, Costa Alegre articulou uma resposta injustia social por meio da exposio da situao do homem africano negro:

a minha cor negra, Indica luto e pena; [...] Todo eu sou um defeito, Sucumbo sem esperanas, [...]. (COSTA, 2006).

Em sua poesia encontra-se um despertar para a cor, um dos passos importantes para a conscincia nacional que a poesia africana tomou em determinada altura. Alda do Esprito Santo tambm figura em todas as antologias de poesia africana. Sua poesia tem a diferena racial e a explorao colonial como pano de fundo. Seu livro nosso o solo sagrado da terra: poesia de protesto e luta (1978) caracteriza-se por uma grande dose de combatividade e por uma grande profundidade lrica e descreve, com traos sensveis, a vida dos habitantes de So Tom. Outros poetas, como Tomaz Medeiros, Maria Manuela Margarido, Marcelo da Veiga e Carlos do Esprito Santo, mantm uma linha de continuidade em que a temtica de fundo a luta contra o colonialismo, a explorao dos negros nas plantaes, a conscincia da diferena que a cor provoca e a alienao. Na poca atual, destaca-se Conceio Lima, que tem poemas dispersos em vrias revistas e antologias e publica poesia h quase duas dcadas. Seu livro tero da casa (2005) apresenta uma produo potica de cunho mais reflexivo.

Angola

Como acontece com os outros pases, a literatura de Angola tambm reflete a influncia de antecedentes e precursores de carter social, cultural e esttico. Alm disso, um fator de grande influncia a tradio da oralidade na frica, que marca, inclusive, uma identidade cultural expressa na literatura. Alguns nomes de escritores, ainda no sculo XIX,

esto relacionados com algumas obras que delineiam as primeiras manifestaes significativas do cenrio literrio angolano. Nesse sentido, devem ser destacados, em primeiro lugar, Jos da Silva Maia Ferreira (Luanda, Angola, 1827 Rio de Janeiro, Brasil, 1881) e seu livro Espontaneidades da minha alma: s senhoras africanas (1849), considerado por alguns tericos como a primeira obra da literatura angolana. H, no entanto, divergncias a esse respeito. O livro, uma coletnea de poemas dedicados s senhoras africanas, foi realmente o primeiro a ser impresso em Angola, logo aps a implantao da prensa no pas, mas seu autor, Maia Ferreira, no poderia ser apontado como um precursor, j que a sua obra no teve repercusso em outras. A se observar o que diz Carlos Ervedosa (1974, p. 21), Maia Ferreira um dos casos tpicos da assimilao cultural que se registrava nos primrdios do sculo XIX. Talvez por isso possa ser considerado, como querem alguns crticos, antecessor dos precursores. Ressalte-se, na dcada de 80 do sculo XIX, a importncia da gerao do jornalismo literrio. Os escritores-jornalistas dessa gerao pertenciam elite crioula, que detinha muito poder entre os naturais da terra e os reinis, antes da fratura criada pelo colonialismo. O escritor Alfredo Troni, portugus nascido em Coimbra, publicou, em 1882, no Dirio da Manh, de Portugal, o folhetim Nga Mutri. A novela foi publicada em partes, no perodo de junho a agosto de 1882, em Portugal e em Angola, mas sua primeira edio em forma de livro s saiu em 1973. O romance Nga Mutri (Senhora Viva) uma narrativa de cunho etnogrfico. Embora seja de fato considerado a primeira narrativa de motivao angolana, pois retrata a ascenso de uma africana negra sociedade de Angola, no pode ser visto como um texto precursor, pois no criou uma tendncia literria. So considerados os precursores da moderna literatura angolana os escritores Antnio de Assis Jnior, Castro Soromenho e Oscar Ribas. Antnio de Assis Jnior (Luanda, 1887 Lisboa, 1960) autor do romance O segredo da morta (1935), apontado pelo crtico angolano Luiz Kandjimbo (1997) como o marco inicial da literatura angolana. A estudiosa brasileira Rita Chaves (1999, p. 65) observa que o romance incorpora marcas do momento em que o desenvolvimento socioeconmico provoca fortes mudanas culturais, mexendo no cotidiano daquelas populaes fixadas em torno de Luanda e das localidades prximas, situadas nas atuais provncias de Icolo e Bengo, Malange e Kuanza Norte. A temtica de O segredo da morta foi, de certa forma, retomada por Castro Soromenho (Chinde, Zambzia, Moambique, 1919 So Paulo, Brasil, 1968), autor de Terra morta (1949), Viragem (1957) e A chaga (publicado, postumamente, em 1970). Os livros de Soromenho so importantes pela descrio de aspectos da vida angolana, regulada, na poca de sua produo, pela presena da

administrao colonial e pelos cdigos com que a Metrpole pensava eternizar o colonialismo na frica. Conforme observa Inocncia Mata (2001, p. 53), os romances do escritor, por sua temtica, podem ser considerados romances da colonizao, j que tm uma abrangncia que ultrapassa o contexto angolano. Oscar Ribas (Luanda, 1909 Lisboa, 2004) foi ficcionista e poeta e, embora no tenha tido formao etnogrfica formal, fez recolhas etnogrficas ou etnografias que contriburam para o cunho documental do seu romance Uanga (Feitio), publicado em Lisboa em 1950 ou 1951, e enriqueceram a obra Missosso, literatura tradicional angolana, editada em trs volumes, em Luanda, nos anos de 1961, 1962 e 1964. Por essa razo sua obra situa-se entre a pesquisa etnogrfica e a criao literria. No romance Uanga, as contradies vividas pelo escritor como intelectual e pesquisador mostram-se de forma bastante evidente tanto na fabulao romanesca quanto no modo como o autor interfere na trama, permitindo ao leitor perceber a presena do pesquisador nas informaes de cunho etnogrfico que costuram a histria. O escritor, embora tenha participado da revista Mensagem, a Voz dos Naturais de Angola, porta-voz do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, no assumiu inteiramente a proposta revolucionria do movimento. Em 1948, estudantes e intelectuais angolanos negros, brancos e mestios lanaram, em Luanda, o brado Vamos descobrir Angola, que tinha como objetivos romper com o tradicionalismo cultural imposto pelo colonialismo; debruar-se sobre Angola e sua cultura, suas gentes e seus problemas; atentar para as aspiraes populares, fortalecendo as relaes entre literatura e sociedade; conhecer profundamente o mundo angolano de que eles faziam parte mas que no figurara nos contedos escolares aos quais tiveram acesso. Tal propsito fica claro nas palavras de Carlos Ervedosa (1974, p. 107), quando diz que o vermelho revolucionrio das papoilas dos trigais europeus encontraram-no, os poetas angolanos, nas ptalas de fogo das accias, e a cantada singeleza das violetas, na humildade dos beijos-demulata que crescem pelos baldios ao acaso. Alm da insatisfao natural com as aes e o controle impostos pela censura, a inspirao maior do movimento era dada pelo modernismo brasileiro, que estimulava os poetas a buscar uma poesia genuinamente nacional, como sugere o poema de Maurcio Gomes (1988, p. 85):

Ribeiro Couto e Manuel Bandeira poetas do Brasil, do Brasil, nosso irmo, disseram: preciso criar a poesia brasileira, de versos quentes, fortes como o Brasil, sem macaquear a literatura lusada [...]

Angola grita pela minha voz pedindo a seus filhos a nova poesia de Angola.

O poema de Maurcio Gomes confirma tendncias da modernidade literria angolana, defendidas pelos Naturais de Angola, tais como a busca do prprio, do nacional; o reforo de uma potica da ruptura; a busca do universal a partir das particularidades nacionais. O brado de 1948, reiterado pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA), de 1950, foi responsvel pela publicao da Antologia dos novos poetas de Angola (1950) e das revistas Mensagem, a Voz dos Naturais de Angola (1951-1952) e Cultura (19571961), que consolidaram o sistema literrio angolano. Sobre a presena da literatura brasileira nesses movimentos, observa o escritor Costa Andrade (1982, p. 26):

Entre a nossa literatura e a vossa, amigos brasileiros, os elos so muito fortes. Experincias semelhantes e influncias simultneas se verificam. fcil ao observador corrente encontrar Jorge Amado e os seus Capites de Areia nos nossos escritores. Drummond de Andrade, Graciliano, Jorge de Lima, Cruz e Souza, Mrio de Andrade, Solano Trindade e Guimares Rosa tm uma presena grata e amiga, uma presena de mestres das jovens geraes de escritores angolanos.

As revistas Mensagem e Cultura marcaram o incio da poesia moderna de Angola. Uma pliade de escritores participaram de Mensagem e foram os responsveis pela construo da literatura do novo pas, nascido em 1975. No primeiro nmero de Mensagem colaboraram, entre outros, Mrio Antnio, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, Antnio Jacinto e Mrio Pinto de Andrade. A publicao da revista foi o resultado concreto da ambio dessa nova gerao de intelectuais de Angola de amplificar o movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da Cruz (CHABAL, 1996, p. 143, traduo nossa). A revista Cultura teve 13 nmeros nos quatro anos de sua durao, e dela participaram escritores de renome, como Agostinho Neto, Costa Andrade, Carlos Ervedosa, Ermelinda Pereira Cavier, Luandino Vieira e Oscar Ribas. Nas edies desse peridico foram delineados aspectos da arte e da literatura angolanas e consolidou-se o lugar a ser ocupado pela poesia e pela fico. A produo potica angolana abrange trs grandes perodos: de 1950 a 1970, marcado pela conscientizao; a dcada de 1970, marcada pelas inovaes estticas; e a gerao de 1980. As dcadas de 1950 e 1960 marcaram a fase da viragem para a conscientizao da problemtica angolana, sobretudo em trs grandes vertentes a terra, a gente e as suas origens. A temtica dos escritores da Mensagem girava volta de tpicos que viriam a caracterizar a potica que existe at os nossos dias, como o da valorizao do homem negro

africano e de sua cultura, o de sua capacidade de autodeterminao, o da nao africana que se antevia como Estado com autoridade e existncia prprias. A poesia era marcada pelo protesto anticolonial, sem deixar de ser humanista e social. Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mrio Antnio concentraram muito da sua produo nessa temtica. O protesto anticolonial tomou uma feio muito mais direta com a publicao da revista Cultura, em 1957. Essa revista, publicada at 1961, revelou a existncia de novos poetas, entre eles Antnio Cardoso e Costa Andrade. Para alm da contestao contra o colonialismo, desenvolve-se, progressivamente, uma temtica que tem a ver com a evocao e a invocao da me-ptria, da terra grande da frica. Quase todos esses poetas tratam dos temas da identidade, da fraternidade, da terra angolana como ptria de todos negros, brancos e mestios. De grande importncia tambm o tpico da alienao, sobretudo a que respeita ao estado de esprito do branco nascido e criado em Angola. Muita da poesia revela-se tambm de carter intimista, como o caso de poemas de Mrio Antnio. Toda essa gerao, utilizando recursos lricos e dramticos, consegue criar uma poesia de fundo emocional. Atravs da poesia, descobre-se Angola, conhecem-se as suas origens, as suas tradies e os seus mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedaggica e didtica: com ela tenta-se recriar frica e Angola, os valores ancestrais do homem africano e da sua terra, bem como ensinar esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Essa poesia pe em prtica a reposio da tradio oral, onde as prprias lnguas nacionais ocupam um espao importante. , numa palavra, a poesia da angolanidade. Um dos autores que representam essa problemtica Agostinho Neto. A sua obra principal, Sagrada esperana (1979), uma amostra valiosa no s da poesia de combate e contestao mas tambm da poesia lrica e intimista. Agostinho Neto revela um grande humanismo, em que so evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer humano, que amide obriga o poeta utilizao de um realismo feroz nos seus versos. Leiamse, como exemplos, os poemas Velho negro (NETO, 1979, p. 64) e Civilizao ocidental (NETO, 1979, p. 69). Se dizemos que h poemas intimistas, tal no significa que o poeta se isole do contexto social e perca a referncia fundamental da sua poesia. constante a relao estabelecida por Agostinho Neto entre o eu potico e o outro: um eu que povoado pela humanidade e colocado no contexto da vida do seu povo, como se pode ver, por exemplo, no poema Confiana (NETO, 1979, p. 79):

O oceano separou-se de mim enquanto me fui esquecendo nos sculos e eis-me presente

reunindo em mim o espao condensando o tempo. Na minha histria existe o paradoxo do homem disperso Enquanto o sorriso brilhava no canto de dor e as mos construam mundos maravilhosos john foi linchado o irmo chicoteado nas costas nuas a mulher amordaada e o filho continuou ignorante E do drama intenso duma vida imensa e til resultou a certeza As minhas mos colocaram pedras nos alicerces do mundo mereo o meu pedao de cho.

Pode-se dizer que a esperana o tpico fundamental da poesia de Agostinho Neto, o ncleo volta do qual se constroem unidades poticas de relao dialtica, como a dor e o otimismo, o sonho do poeta e o despertar do povo, a escravido e a f de transcender a opresso. No poema O choro de frica (NETO, 1979, p. 139), por exemplo, o poeta fala do sintoma de frica, que uma combinatria dialtica do sofrimento e da alegria que temperam, durante sculos, o homem africano. Na dcada de 70 surgem trs nomes que vo ser os principais responsveis por uma mudana profunda na esttica e na temtica angolanas: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. Por um lado, procura-se maior rigor literrio; por outro, e como conseqncia do anterior, evita-se propositadamente o panfletarismo. Entra-se igualmente numa fase de maior experimentalismo, na qual os escritores tentam tambm reconciliar os temas polticos do passado com a procura de uma linguagem potica mais universal. Por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho autor de uma poesia que, ao lado de uma grande ambincia de oralidade e de um apontar para as conseqncias da guerra, constitui tambm uma reflexo sobre o prprio discurso potico. , no entanto, Arlindo Barbeitos a voz potica que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradio da Mensagem. Arlindo Barbeitos tem publicados Angola angol angolema (1977), Nzoji (1979), O rio: estrias do regresso (1985), Fiapos de sonho (1992) e Na leveza do luar crescente (1998). Numa nota de introduo a Angola angol angolema, Barbeitos (1977) traa as linhas mestras de sua potica, que tenta ser uma reconciliao do homem com a sua condio, um testemunho e um instrumento de libertao. A poesia tem como funo primordial sugerir. Ela um compromisso entre a palavra e o silncio. Uma outra sua funo a de relatar as formas culturais africanas e a vivncia do autor. Arlindo Barbeitos (1977, p. 4) afirma, a propsito,

que s poesia se sugere, s tem expresso, s tem fora, s arte em forma de palavra, se simultaneamente retm e transcende a palavra. Em sua poesia encontramos a experincia do ser humano que procura sempre a perfeio e o desejo de retorno imanncia, a vontade de construir a irmandade universal. , tambm, uma poesia que reflete a dor, a guerra, a situao colonial. Em relao lngua, Arlindo Barbeitos tenta, e consegue, africanizar a lngua colonial, num esforo continuado de repossuir todos os valores e tradies culturais do pas. A poesia de Arlindo Barbeitos, como a de outros autores angolanos, desponta no cenrio literrio do pas no perodo da guerra colonial e alimenta-se da experincia libertria. um movimento de sonhos desfeitos pela angstia e pela represso que silencia as estrias que brotavam naturalmente em volta das fogueiras, pois a palavra foi cerceada e com ela a magia, a energia que alimentava a chama da tradio temporariamente adormecida. A obra Angola angol angolema (BARBEITOS, 1977) retrata a violncia social que assola a sociedade angolana durante a luta armada. Os poemas expressam, pelo esgaramento semntico e sonoro dos versos, o dilaceramento de Angola, pas mutilado pela misria e pela guerra (SECCO, 2003, p. 168). A poesia de Barbeitos traz os ecos da guerra:

borboletas de luz esvoaando de cadver em cadver colhem o fedor dos mortos em vo. (BARBEITOS, 1977, p. 38).

Numa leitura ampliada da idia de liberdade, as borboletas, metfora de homens livres, esto circulando em vo, j que aps a independncia Angola experimenta, por mais de duas dcadas, os pesadelos gerados pela guerra civil. Durante o perodo da luta armada, a palavra potica precisou ser direcionada, tornando-se veculo de contestao. Dessa forma, os trabalhos poticos textualizaram temas especficos, atualizaram sentires e saberes diferentes, segundo a imagem da nao a construir, a partir de signos, smbolos, motivos e formas (MATA, 2001, p. 18), idealizaram as individualidades nacionais. Cabe ressaltar que, mesmo guardando suas naturais especificidades, os cinco pases africanos de lngua portuguesa vivenciaram a luta pela libertao colonial. A partir dos anos 80 surge uma nova gerao de escritores, cujo ecletismo a caracterstica mais marcante. Digna de nota uma pequena antologia publicada em 1988, intitulada No caminho doloroso das coisas. Na introduo, o organizador da antologia deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova poesia angolana vai tomando:

So jovens, mas dentre eles h poetas que so artistas nos seus versos como carpinteiros nas tbuas. Tiveram que por (sic) verso sobre verso como quem constri um muro. Analisaram se estava bem e tiraram, sempre que no estivesse, sentados na esteira do Pessoa, [...] Jovens subscritores de uma auto-explicao metalingustica em que a ruptura formal no tudo (FEIJO, 1988, p. 13).

As vozes que despontam no cenrio literrio africano na contemporaneidade consolidam uma luta travada nos primrdios das guerras pela descolonizao nos pases africanos de lngua portuguesa. Desvincular a lngua portuguesa da tradio europia foi o primeiro passo dado por autores que ansiavam encontrar a palavra precisa, transgressora e fundadora de um novo lirismo com marcas prprias. Os escritores dessa nova potica inserem em suas poesias aspectos caractersticos dos falares do povo. A lngua portuguesa distanciada da matriz, aclimatada em solo africano, sofre a distenso necessria para viabilizar a escrita potica em vrios sentidos. Esse mecanismo propicia os desvios que consolidam a produo de uma literatura que transgride os modelos europeus para se afirmar intensamente africana. Nesse contexto, a poesia faz circular os saberes. Desloca do espao do poder a lngua que regula a histria humana, dando-lhe uma nova roupagem, para imprimir os vrios sentidos buscados. O poeta trabalha e vislumbra sadas na encenao dos enunciados, livre das amarras do poder regulador que delimita os atos e as aes do homem na vida diria. Num jogo teatral, os significados efetivam-se no desvio, na reordenao do cdigo lingstico que permite ouvir a lngua fora do poder. O discurso literrio ultrapassa os obstculos tpicos da lngua, como cdigo regulador do discurso coerente que sustenta o corpo social, e funciona como o logro, o lugar que dialoga com o dentro e o fora, com o interior e o exterior da linguagem literria, quando o discurso potico tem carter testemunhal, como neste poema de Ruy Duarte de Carvalho (2003, p. 90):

Sou testemunho da noo geogrfica que identifica as quatro direces do sol s muitas mais que o homem tem. Sou mensageiro das identidades de que se forja a fala do silncio

Poetas como Jos Lus Mendona, Ruy Duarte de Carvalho, Joo Maimona e Ana Paula Tavares, dentre outros, buscam na escrita literria a abertura para um tempo de memrias construdas a partir de alguma fenda original (CARVALHO, 2003, p. 45). Apesar do esfacelamento do projeto social coletivo, a nova tica lrica precisa encontrar, nas guas do

passado, os elementos essenciais para exorcizar a morte e a dor (CARVALHO, 2003, p. 45). Ruy Duarte de Carvalho autor de uma produo expressiva e bastante acurada no cenrio literrio contemporneo angolano. Entre suas obras figuram Cho de oferta (1972), A deciso da idade (1976), Como se o mundo no tivesse leste (1977), Exerccios de crueldade (1978), Hbito da terra (1988) e Vou l visitar pastores (1999). O discurso interlocutrio de Ruy Duarte de Carvalho transita entre a militncia pela terra, em especial no sul de Angola, e um pacto de solidariedade firmado com o pas como um todo. Em sua potica o autor efetiva a comunho de muitas outras vozes. Nos versos a seguir (CARVALHO, 2003, p. 91), percebe-se a estratgia discursiva de quem busca contemplar as origens, os hbitos da terra.

Um cho propcio para erguer o encontro entre o destino e o corpo. Se as minhas mos se tingem de vermelho, ao norte e eu todavia me reservo ao sul porque da terra quero a superfcie plana.

Num dilogo com outros campos da arte, Ruy Duarte de Carvalho imprime determinadas marcas no discurso potico, confere-lhe feio particular. O contexto histricosocial, destoante e desconcertante no plano real, torna-se objeto singular no plano potico e precisa ser redimensionado, via representao na poesia, espao significante e de jogos de sentidos, para o funcionamento da discursividade de vozes no autorizadas e marginalizadas na sociedade. Diante de tal fato, a voz autorizada precisa apresentar e representar a vida com toda a fora que emana das palavras. A presentificao dos fatos caracteriza-se como o detalhe especfico da arte literria. Os elementos recuperados do contexto so modelados, transformados ou reforados no mbito potico. A arte tece a rede dos significados que podem emanar da superfcie ou da profundidade do contexto, ou melhor, de um cho propcio para erguer o encontro entre o destino e o corpo (CARVALHO, 2003, p. 91). Distanciando-se do discurso emblemtico de exaltar a luta de libertao, a poesia contempornea opta por operar uma revoluo no mago da linguagem [e leva] s ltimas conseqncias a meta-conscincia potica j praticada, desde os anos 70, por alguns poetas de Angola (SECCO, 2003, p. 168). Com um discurso crtico que busca a memria de um tempo distante anterior quele da opresso e das desiluses , os poetas da contemporaneidade mergulham nos subterrneos do sonho e encontram as imagens que sero metaforizadas por meio de recursos lingsticos,

como as repeties frasais e de termos que remetem s suas origens lingsticas e, concomitantemente, s caractersticas nacionais e regionais angolanas. Esses elementos constituem dados necessrios para compor um cenrio potico capaz de exprimir simultaneamente uma viso de mundo e uma forma de estar nele. Nesse percurso situa-se a poesia de Jos Lus Mendona, autor de Chuva novembrina (1981), Gria de cacimbo (1987), Respirar as mos na pedra (1989), Quero acordar a alva (1997) e Poemas de aMar (1998). Seu discurso transita entre a subjetividade do eu que se nutre num sentimento evasivo para o interior de si mesmo e o desejo de depreender o momento presente, os homens presentes: O instante do fascnio que a beleza das palavras provoca, o momento de fruio do verbo, do que sugere e da vertigem que a confunde, no raramente, com o momento do encanto (MATA, 2001, p. 253). Sua palavra potica constri imagens sensoriais na convergncia de um prazer que emana da feitura de versos com uma crtica social contundente, repleta de lirismo e pautada nos reflexos das aes de homens subalimentados que povoam o universo africano, mais precisamente uma Angola frgil, de sonhos desfeitos, representados no poema Subpoesia (MENDONA, 2002, p. 34):

Subsarianos somos sujeitos subentendidos subespcies do submundo subalimentados somos surtos de subepidemias sumariamente submortos do subdlar somos subdesenvolvidos assuntos de um sul subserviente.

O cenrio exposto por Jos Lus Mendona traz tona uma aventura literria pautada amplamente na experincia da dor, que precisa encontrar o caminho profcuo para ser transformada em linguagem capaz de recuperar a crena na utopia. O poeta extrai da vida diria, real, as sensaes expostas em Como um saco de sal (MENDONA, 2002, p. 35), que funciona como metfora do tempo presente: O africano est a escorrer / como saco de sal. Outro poeta importante Joo Maimona, que, desde os poemas apresentados na antologia No caminho doloroso das coisas (FEIJO, 1988), insiste na experimentao de processos estticos que filtram a realidade sensvel para exp-la em cenrios (re)construdos por imagens. Sua poesia densa, profunda, porque privilegia a utilizao de alegorias, smbolos, imagens e construes que descartam a percepo de significaes imediatas,

instala tenses e dissonncias, busca expulsar do poema a segurana enganadora de sentidos ilusoriamente instalados. A poesia de Maimona percorre as trilhas do desassossego (FONSECA, 2006) e elabora-se como uma viso sofrida e amarga da realidade. Seus vrios livros publicados, dentre os quais se destacam Trajectria obliterada (1984), Les roses perdues de Cunene (1985), Trao de unio (1987), As abelhas do dia (1988), Quando se ouvir os sinos das sementes (1993), Idade das palavras (1997), No tero da noite (2001) e Festa da monarquia (2001), trabalham com a obscuridade, com a percepo de um mundo despedaado, com runas que impedem a esperana, ainda quando se procura ultrapassar a melancolia e a desesperana. A abundncia de imagens e os artifcios de linguagem que buscam alcanar o que se produz para alm do poema dizem muito do trabalho do poeta com a materialidade da palavra, com a produo de arranjos verbais que fazem a escrita repercutir o som e o gesto que ela mesma silencia. Dentre a produo literria de autoria feminina, destaca-se, neste breve panorama, a produo potica de Ana Paula Tavares, revelada aos leitores em 1985. Ana Paula Tavares, como Ruy Duarte de Carvalho, dedica-se a reverenciar, no espao da literatura, os rituais da tradio oral. Desde os poemas publicados em Ritos de passagem (1985) alguns retomados pela antologia dos jovens poetas angolanos No caminho doloroso das coisas (FEIJO, 1988) expe-se em seus versos o olhar atento sobre as tradies ainda preservadas em vrias regies do seu pas. A escrita literria busca apreender essas tradies e detm-se cuidadosa nas artes que a cultura delegou mulher africana, oleira, tecel, fazedora de tarefas que a tornam guardi das tradies do cuidar, do zelar pela vida, enquanto os homens se extinguem nas guerras ou desempenham outras funes. Nos poemas de Ana Paula Tavares que fazem parte da antologia organizada por Feijo (1988), algumas constantes discursivas identificam a sua potica: a atenta retomada, pelo vis da poesia, das cerimnias de passagem, a percepo da sensualidade que percorre os gestos, os atos e a natureza e transborda de forma graciosa em frutos que se metamorfoseiam em predicados prprios do corpo humano. Essas constantes que desabrocham em seu primeiro livro, Ritos de passagem (1985), percorrem O lago da lua (1999) e mantm-se em seus livros mais recentes, Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001) e Ex-votos (2003). As tradies da Hula, regio onde nasceu a escritora, esto em seus poemas, com seus cheiros, sons, corais e canes, como ela mesma confessa a Michel Laban (1991, p. 850). A sua formao em Histria e uma grande sensibilidade marcam o modo como a poetisa

observa os costumes das mulheres de sua etnia e transporta-os para os seus poemas, com grande respeito e delicado cuidado. O livro Ritos de passagem (TAVARES, 1985) revela o olhar da historiadora sobre o lugar da mulher em sociedades em que se celebram rituais de iniciao e de passagem de uma idade para outra e em que se elaboram tarefas em meio a cantos e sofrimentos. Como ela prpria afirma, os rituais, os costumes aparecem em sua poesia permeados de admirao e espanto, j que, pertencendo a uma dessas sociedades, no convive mais com ela, pois se distanciou de costumes e de vivncias que, ao mesmo tempo, so e no so dela (LABAN, 1991, p. 850). Os poemas de Ana Paula Tavares, desde os de Ritos de passagem (1985), apresentamse como grande diferena em relao aos produzidos pela gerao da poesia de combate, particularmente por aqueles poetas que acompanharam o processo de libertao de Angola do colonialismo portugus. Atenta s manifestaes de sua cultura, Paula Tavares no se sente, no entanto, porta-voz dela. Seu olhar observa os rituais, apreende os costumes, destaca, com rara sensibilidade, detalhes e impresses de culturas angolas ancestrais, mas deixa-se atravessar por outros saberes. No seu primeiro livro, a predileo pela descrio de frutos tpicos de sua regio recortada por um vis ertico, sempre presente em seus poemas. As cores e o sabor dos frutos o maboque, a anona, o mirangolo, a nocha, a nspera, o mamo so tambm imagens de um corpo que transcende em cheiros, em tessitura macia e em forte sensualidade. A descrio do mirangolo , nesse sentido, bastante interessante (TAVARES, 1985, p. 12):

Testculo adolescente purpurino corta os lbios vidos com sabor cido da vida encandesce de maduro e cai submetido s trezentas e oitenta e duas feitiarias do fogo transforma-se em gelia real: ILUMINA A GENTE.

J se mostra no livro Ritos de passagem (1985) uma feio que reaparece em O lago da lua, de 1999, em Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001, e em Ex-votos, de 2003: a escrita potica de Ana Paula Tavares deixa visvel sua inteno de povoar o texto com dados concretos da realidade, que nele pousam com seus sentidos expandidos ou apenas sugerem relaes que demandam um olhar mais cuidadoso sobre os costumes da terra

angolana. Talvez seja esse transbordar de sensaes e de toques suaves o que o leitor apreende, mesmo aquele que desconhece os dados concretos que habitam os versos de Paula Tavares. Encantam o leitor a explorao de recursos prprios da escrita potica, o trabalho cuidadoso com a plasticidade das cenas, as elaboraes sensuais que organizam os poemas, comedidos, sintticos, avessos ao excesso.

Ex-voto No meu altar de pedra arde um fogo antigo esto dispostas por ordem as oferendas neste altar sagrado o que disponho no vinho nem po nem flores raras do deserto neste altar o que est exposto meu corpo de rapariga tatuado neste altar de paus e de pedras que aqui vs vale como oferenda meu corpo de tacula meu melhor penteado de missangas. (TAVARES, 1999, p. 12).

Inocncia Mata (2001, p. 63) afirma, com relao literatura angolana, que a construo literria da nao se fez particularmente atravs da poesia, que assumiu a coletivizao da voz. Esse aspecto est presente, sobretudo, na produo potica do prindependncia, que cantou a construo de uma frica livre e exibiu ao mundo as mazelas da opresso colonialista. Essa vertente, muito forte na poesia, no esteve no entanto afastada da fico, que, ainda no sculo XIX, com escritores como Antnio de Assis Jnior e Castro Soromenho, procurou delinear os contornos da terra angolana. Tal inteno est presente mesmo na fico de tendncia etnogrfica de Oscar Ribas, mas ir tomar uma feio significativa em escritores como Jos Luandino Vieira, defensor de um projeto literrio marcado no apenas pelo engajamento e pela utopia mas por um expressivo trabalho com a linguagem, visvel em seus livros Luuanda (1974), Ns, os do Makulusu (1975) e Joo Vncio: os seus amores (1979). Sobre essa proposta literria, evidente tambm em vrios outros romances do escritor, diz Vima Martin (2006, p. 216): Seja atravs do exerccio da escritura do conto e do romance, a opo de Luandino Vieira foi por ficcionalizar os desafios vividos pelos marginalizados que habitam a periferia de Luanda e atestar o seu potencial de resistncia.

A obra mais recente do escritor, O livro dos rios (VIEIRA, 2006), segue outros percursos. Afasta-se dos musseques e da cidade de Luanda, temas presentes na maioria dos seus livros anteriores, sem abandonar um modo de contar caracterstico da discursividade oral. Ao contrrio, prope uma contao recortada por rememoraes sobre rios Isto , conheo rios. De uns dou relao, de outros, memria (p. 17) , mas no se furta s lembranas que as guas largas, lentas, dormidas permitem evocar. Acreditando ser a literatura um dos elementos formadores da identidade de um pas, Pepetela, nome artstico de Artur Carlos Maurcio Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, um dos maiores escritores angolanos, ligado a uma vertente ficcional que assume, por vezes deliberadamente, a funo social da literatura. Seus vrios romances registram a inteno de permanecer junto daqueles que ficaram do lado de fora na distribuio do mel, metfora com que o autor, implcito no romance Jayme Bunda, agente secreto (PEPETELA, 2001, p. 85), alude perversa diviso de renda e de direitos que o panorama do psindependncia angolano acentua. O escritor publicou trs romances no perodo anterior independncia: As aventuras de Ngunga (1977), Muana Pu (1978) e Mayombe (1980). Os demais livros foram publicados aps a independncia, e neles pode ser identificada uma reviso melanclica da utopia revolucionria, como em A gerao da utopia (1992), mas tambm se acentua a viso irnica sobre os desmandos da classe que assumiu os destinos da nova nao. O romance A gloriosa famlia (1997) faz uma incurso pela histria de Angola e retoma dados importantes relativos aos interesses de diferentes poderes, expondo as armaes necessrias sustentao dos negcios gerenciados por aventureiros de vrias nacionalidades durante o longo e lucrativo perodo do comrcio de escravos. Manuel Rui, poeta e ficcionista, teve vrios livros publicados antes da independncia. Seu livro de maior alcance entre os leitores angolanos e estrangeiros , sem dvida, Quem me dera ser onda, cuja primeira edio, em 1991, foi seguida de outras edies em lngua portuguesa e em vrios outros idiomas. Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a fico de Manuel Reis marcada por um realismo social que assegura ao escritor o manejo de instrumentos capazes de tornar risveis as situaes enfocadas. O riso e a ironia so as armas com que esse escritor angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de vida dos mais abastados. Em Quem me dera ser onda, um porco simboliza situaes tpicas de uma Angola que tem de conviver com a construo de um novo tempo e com a precariedade dos instrumentos de que dispe para faz-lo. Em alguns contos magistrais como A grade, do livro 1 morto & os vivos (1993), ou Rabo de peixe frito e rusga, do livro Saxofone e metfora (2001), a ironia costura situaes corriqueiras do universo urbano luandense,

permitindo que o leitor se aperceba de outras histrias que so contadas no burburinho da enunciao. Um outro escritor significativo na literatura angolana atual Boaventura Cardoso, cultor de uma vertente literria que explora a ironia, a stira e os recursos da carnavalizao, sem desprezar as possibilidades inventivas da linguagem. Os contos de seus livros O fogo da fala (1980), cujo ttulo indica a percepo da linguagem como o fogo que aquece ou destri, e Dizanga dia muenhu (1988), que reelabora formas de narrao muito adequadas aos temas abordados, intensificam um projeto de escrita que se elabora prxima s potencialidades da fala, do sopro da palavra viva, que sempre fogo tomado em sua polissemia. Seus livros mais recentes, Maio, ms de Maria (1997) e Me, materno mar (2001), traduzem a maestria do escritor tanto com relao ao trabalho sempre inovador no nvel da linguagem, quanto com relao perspiccia imaginativa utilizada para enfocar situaes tpicas dos novos enfrentamentos propostos literatura, que quer estar sempre atenta fala, ao fogo que anima as conversas e d firmeza ao que narrado.

Moambique

O processo de formao da literatura de Moambique no difere muito do dos demais pases africanos de lngua portuguesa, tendo assistido construo, nas zonas urbanas da Beira e Loureno Marques (agora, Maputo), de uma elite de alguns negros, mestios e brancos que se apoderou, aos poucos, dos canais e centros de administrao e poder. Suporte inicial foram os jornais, que, como em Angola, desempenharam um papel importante na divulgao das idias contrrias ao colonialismo. O jornal O Africano foi fundado pelos irmos Jos e Joo Albasini em 1909, com edio em portugus e ronga. Em 1918 os irmos Albasini fundaram O Brado Africano, rgo oficial do Grmio Africano Associao Africana. Em 1932 o jornal, tendo sido impedido de funcionar, foi substitudo pelo Clamor Africano, que teve 12 nmeros e foi criado por Jos Albasini. A partir de 1933, O Brado Africano voltou a circular, mas a partir de 1958, at a sua suspenso, em 1974, seu funcionamento esteve subordinado a muitas influncias oficializantes. No final da dcada de 40 e incio da dcada de 50 Moambique assistiu a um perodo de afirmao de um projeto literrio, que est registrado em textos publicados em livros e em jornais. Destaca-se a importncia, para a afirmao da literatura moambicana, de projetos como o da revista Msaho (fundado em 1952), cujo nome se relaciona com um canto do povo, em lngua chope, e o do jornal Paralelo 20 (1957 a 1961).

Entre 1959 e 1975 o jornal Voz de Moambique foi o veculo mais importante para a publicao de textos literrios, em vrios dos quais se percebem tendncias que revelam o contato dos escritores com a Europa e o Brasil. Ceclia Meireles, Adalgisa Nery, rico Verssimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego e Castro Alves figuravam entre os escritores brasileiros que mais circulavam no meio literrio. Os principais escritores moambicanos so Nomia de Souza (que teve de se exilar do pas em 1951), Jos Craveirinha (o maior poeta de Moambique, morto em 2003), Lus Bernardo Honwana (autor do clebre Ns matamos o co tinhoso), Rui Knopfli, Virglio de Lemos e Rui Nogar, todos ligados a movimentos que traaram o panorama literrio de Moambique dos anos 40 e 50, cujos ecos podem ser percebidos na poesia do psindependncia. Distinguem-se pelo menos trs fases no processo de construo da literatura moambicana: a fase colonial, a fase nacional e a fase ps-colonial. Na fase colonial destacam-se, como precursores da literatura moambicana, autores como Rui de Noronha, Joo Dias, Augusto Conrado e Lus Bernardo Honwana. Entre eles merece realce Rui de Noronha, cujo livro Sonetos foi publicado em 1943, seis anos aps a sua morte. A sua poesia reveste-se de pioneirismo, no pela forma mas pelo contedo, uma vez que alguns dos sonetos mostram sensibilidade para a situao dos mestios e negros, o que constitui a primeira chamada de ateno para os problemas resultantes do domnio colonial. Rui de Noronha representa tambm uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos literrios, o legado da tradio oral africana. A coletnea de contos intitulada Godido e outros contos, de autoria de Joo Dias, publicada em 1952, considerada como a primeira obra de fico moambicana, por causa dos temas e motivos que explora. Joo Dias tenta desmascarar realidades sociais concretas, relacionadas com o estatuto do africano tanto no contexto colonial como no espao social portugus. Nesse caso, o que interessa a vertente nacional, consubstanciada no conto mais extenso e que d ttulo coletnea, que se destaca dos restantes em funo de determinados temas e modos de representao. O nome da personagem principal, Godido, remete figura histrica de mesmo nome, filho do Imperador de Gaza, cuja deportao ocorre com Gungunhana, outra figura elevada categoria de mito na memria coletiva. Desse modo, Godido conota a resistncia do povo moambicano ao invasor europeu, funcionando como smbolo das reivindicaes sociais no espao colonial portugus. A histria incide no quotidiano de um negro, destacando-se o seu inconformismo num espao rural marcado pela subservincia, humilhao e despersonalizao e as suas frustraes num espao urbano, lugar

de sonhos e aspiraes. O leitor confrontado com os temas da explorao do negro, do racismo nas suas diversas formas, da violncia fsica e psicolgica qual sujeito o moambicano, da duplicidade do mulato a negar as suas origens, do direito colonial a servio do opressor, da mulher transformada num simples objeto, da idealizao do Brasil em resultado da mestiagem social (DIAS, 1952). Ns matmos o co tinhoso, de Lus Bernardo Honwana (1980), trata de questes sociais como a explorao e a segregao. Na sua totalidade, as narrativas de Honwana denunciam as foras produtivas em jogo, o autoritarismo do Estado colonial, a opresso exercida pelas instituies de poder e pelo seu aparelho ideolgico. Alm disso, evidenciam certos aspectos de conscientizao social e de classe de determinadas personagens. No conto Dina, por exemplo, encontramos os temas da rudeza do trabalho rural, do sofrimento do trabalhador sujeito a uma disciplina desumana, da arrogncia do branco em relao ao negro, da impotncia perante o opressor, da prostituio como forma de sobrevivncia, da incompreenso e da alienao, os quais realam as configuraes mais salientes de um espao social violentado. Os demais contos mostram tambm situaes concretas de explorao, humilhao e racismo, comportando, assim, uma perspectiva crtica e desmistificadora, tpica da chamada literatura comprometida. No texto que d ttulo ao livro, o protagonista, incumbido de liquidar o enigmtico Co-Tinhoso, elucida-nos sobre a luta surda no seio de uma comunidade juvenil, representada por brancos, negros e mestios. J o curto relato de Inventrio de imveis e jacentes mostra, de modo documental e objetivo, a condio econmico-social de uma famlia, mediante a enumerao de objetos que conotam a vida difcil dos africanos, aspirando a um lugar na hierarquia preestabelecida pelo colonizador europeu. Semelhante problemtica ocupa a ateno do enunciador do conto Pap, cobra e eu, no qual est retratado o quotidiano de uma famlia africana, com destaque para as tenses latentes, como a relacionada lngua utilizada e humilhao qual os negros tm de se sujeitar perante o explorador branco. A humilhao baseada na cor da pele tematizada tambm em As mos dos pretos, cujo protagonista, de modo ingnuo e algo irnico, aborda a impotncia dos negros perante os argumentos aparentemente inabalveis dos colonos sobre a segregao racial. O ltimo conto, Nhinguitimo, evolui para a revolta, entendida como meio de romper com a colonizao, e faz uma crtica ao comodismo dos negros assimilados, em favor da esperana na construo de uma sociedade diferente. Uma parte significativa da produo literria moambicana deve-se a escritores que centram a sua temtica nos problemas de Moambique. Foram eles que contriburam decisivamente para a formao da identidade nacional moambicana. Merecem realce Alberto

de Lacerda, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glria SantAnna, Antnio Quadros, Sebastio Alba e Lus Carlos Patraquim. Alguns desses escritores produzem uma literatura de carter mais pessoal, enquanto outros retratam questes relativas ao aspecto social. Por exemplo, Rui Knopfli debrua-se fundamentalmente sobre a frica, a Me frica e o povo que vive e sofre as conseqncias do colonialismo. Por muita dessa poesia perpassa tambm a esperana da libertao. Esses autores contriburam, de um modo decisivo, para a emergncia da literatura da moambicanidade. Em muitos desses poetas podemos detectar a alienao em que se encontram perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo de Rui Knopfli (1997, p. 11):

Europeu me dizem. Eivam-me de literatura e doutrina Europias e europeu me chamam. No sei se o que escrevo tem raiz de algum pensamento europeu, provvel... No. certo, mas africano sou.

A fase nacionalista caracteriza-se pela produo de uma literatura poltica e de combate, que foi cultivada, sobretudo, por escritores que militavam na Frente de Libertao de Moambique (FRELIMO). Entre eles destacam-se Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes. Essa literatura preocupa-se especialmente com comunicar uma mensagem de cunho poltico e, algumas vezes, partidrio. Sobressaem-se, do ponto de vista esttico, as obras Portagem (1965), de Orlando Mendes, e Silncio escancarado (1982), de Rui Nogar. Publicado em 1965, Portagem, de Orlando Mendes, considerado o primeiro romance moambicano por causa da sua perspectiva crtica em relao s estruturas coloniais e da abordagem, sem subterfgios, do drama de um mulato em choque com a sociedade de brancos e de negros, minada pela presena do europeu. A ao decorre em vrios espaos, tanto rurais como urbanos, para mostrar a inadaptao do protagonista, o mulato Joo Xilim, que, oscilando entre os valores dos contextos europeu e moambicano, termina por reencontrar-se no seu destino de africano. Ao longo do seu percurso existencial, a personagem central confrontada com situaes que tematizam a marginalizao de Joo Xilim, tanto no plano profissional, como no plano afetivo. Da condio de emigrado nas minas da frica do Sul at de ajudante numa oficina grfica, o protagonista exerce empregos precrios (marinheiro, capataz, tipgrafo e pescador), passando pela atividade de contrabandista e pela situao de recluso devido a uma tentativa de homicdio. Todos os acontecimentos apontam para a

subalternidade dos negros e dos mulatos numa sociedade conotada pela explorao, pela assimilao e pelo racismo. O universo das personagens com as quais o protagonista convive ou que enfrenta outra marca da condio de inferioridade qual est condenado o africano. Trabalhadores miserveis, camponeses famintos, patres arrogantes, comerciantes desonestos e mulheres que se prostituem por necessidade so os interlocutores privilegiados de Joo Xilim. Todo esse universo enfatiza a idia da excluso social generalizada que o romance traduz, delineando uma sociedade cheia de tenses agudas, onde o dio, o crime e a violncia confluem para esboar um quadro de tragdias e desgraas (MENDES, 1965). Como nos outros pases, surge tambm em Moambique um nmero significativo de escritores cuja obra literria conscientemente produzida tendo em conta o fator da nacionalidade. So eles que forjam a conscincia do que ser moambicano no contexto, primeiro, da frica e, depois, do mundo. Entre os principais autores dessa literatura encontram-se Nomia de Souza, Jos Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastio Alba, Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto. A figura de maior destaque na poesia da moambicanidade e referncia obrigatria em toda a literatura africana Jos Craveirinha. A poesia de Craveirinha engloba todas as fases ou etapas da poesia moambicana, desde os anos 40 at praticamente os nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social, poltica, uma poesia de priso, uma poesia carregada de marcas da tradio oral, bem como muito poema com grande pendor lrico e intimista. Craveirinha publicou Cela 1 (1980), Xigubo (1980), Karingana Ua Karingana (1982) e Maria (1988). Uma leitura atenta leva-nos a perceber a diferena marcante entre cada uma dessas obras de Craveirinha. Xigubo um livro mais voltado para a narratividade, para a descrio de elementos exteriores ao poeta. Nesse livro, o poeta distancia-se do eu potico ou, ento, funciona como um narrador de estrias cuja voz eco de um drama que se desenrola num universo (frica) do qual ele prprio participante. Em Cela 1 e Maria, o eu potico identifica-se com o sujeito da narrativa. Essas ltimas duas obras so um corolrio da itinerncia do poeta num clima de epopia de que Xigubo e Karingana Ua Karingana so um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experincia coletivizante narrada em Xigubo, para uma escrita que individualiza a sua prpria vivncia mimada em Cela 1 e Maria. A literatura do perodo ps-independncia, ou ps-colonial, desvia-se do vis coletivo. Os autores assumem um tom individual e intimista para relatar a sua experincia ps-colonial.

Entre os escritores destacam-se Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto, Lus Carlos Patraquim, Paulina Chiziane, Suleiman Cassamo e Llia Mompl. Llia Maria Clara Carrire Mompl nasceu em 1935, na Ilha de Moambique. Ningum matou Suhura, seu primeiro livro de contos, foi publicado em 1988 e narra fatos ocorridos durante o tempo colonial. A ele se seguiu o romance Neighbours, de 1995, que retrata fatos ocorridos durante a guerra civil. De maneira semelhante, o livro Os olhos da cobra verde (1997) tambm se inspira na vida quotidiana de Moambique, desde o tempo colonial at a poca atual. Alm desses livros, produziu o vdeo-drama Muipiti, que ganhou a distino de melhor vdeo moambicano produzido em 1998 e conta a histria de uma mulher da Ilha de Moambique. Ungulani Ba Ka Khosa publicou dois livros: o romance Ualalapi, em 1987, ganhador do Grande Prmio de Fico Moambicana em 1990, e a coletnea de pequenas histrias Orgia dos loucos, em 1990. Ualalapi (KHOSA, 1987) pode ser visto como uma espcie de relato tnico-histrico que recupera a tradio oral moambicana. Texto de difcil classificao quanto ao gnero, constitui-se como uma surpresa do ponto de vista formal: o livro parece mais uma coletnea de contos, mas sua ordenao no plano temporal permite catalog-lo como um romance. Uma personagem central polariza as situaes das intrigas das seis narrativas breves, aparentemente distintas entre si, mas marcadas por uma perspectiva de continuidade. Trata-se da figura mtica do Imperador Ngungunhane, o mesmo Gungunhana do livro de Joo Dias (1952), cuja ao, invocada direta ou indiretamente, faz com que as diferentes histrias isoladas funcionem como independentes e, ao mesmo tempo, dependentes. O que o romance tematiza o passado recente de Moambique, numa perspectiva tipicamente ps-moderna, porque surge reescrito, reinventado, reformulado, enfim, questionado luz do presente. Para tal, revisitam-se alguns fatos histricos do sculo XIX, esboando-se o retrato cruel de um Imprio em decadncia e degradao. Esses fatos remontam figura de Ngungunhane, personagem de origem nguni, que invade o sul de Moambique e coloniza os tsongas, tornando-se Imperador das terras de Gaza. O relato pico que exalta a bravura guerreira dos africanos cede lugar, em alguns momentos, a dvidas e incertezas que se depreendem de situaes de injustia e opresso, corroboradas por situaes de terror, barbrie, arbitrariedades e abusos de poder da parte do ltimo imperador moambicano. Mia Couto transfere todo o seu potencial potico para a fico. O moambicano Antnio Emlio Leite Couto, ou Mia Couto, um dos escritores mais conhecidos da frica e da lngua portuguesa. autor de vrios livros de narrativas curtas (contos e crnicas) Cronicando (1988), Cada homem uma raa (1990), Estrias abensonhadas (1994), Contos

do nascer da terra (1997), Na berma de nenhuma estrada (2001), O fio das missangas (2003), O pas do queixa andar (2005) e Pensatentos (2005) e de vrios romances Terra sonmbula (1994), A varanda do frangipani (1996), Vinte e zinco (1999), Mar me quer (2000), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) e O outro p da sereia (2006). O romance Terra sonmbula (1994) considerado um dos doze melhores livros africanos do sculo 20. Alm desses, escreveu um livro de poemas, Raiz de orvalho e outros poemas (1999), e livros infantis. Como se pode observar, o escritor transita entre vrios gneros literrios, o que, como afirmam Rita Chaves e Tnia Macedo (2007, p. 50), pode ser visto como uma caracterstica da literatura moambicana, uma vez que os escritores migram de um gnero a outro, optando, a cada momento, por aquele que consideram mais adequado ao que tm a dizer. Nas narrativas de Mia Couto chama a ateno o motivo comum que atravessa sua escrita: a profunda crise econmica e cultural que acompanha o quotidiano da sociedade moambicana, durante e depois da guerra civil, ou seja, aps a independncia nacional. Suas obras problematizam a instabilidade na qual est mergulhado o povo moambicano, a corrupo em todos os nveis do poder, as injustias como conseqncia de um racismo tnico, a subservincia perante o estrangeiro, a perplexidade face s rpidas mudanas sociais, o desrespeito pelos valores tradicionais, a despersonalizao, a misria. De maneira geral, nas narrativas de Mia Couto os motivos afloram de histrias algo inslitas. O inslito acompanhado por episdios satricos, que imprimem dimenses hilariantes s histrias. O leitor confrontado com situaes que interseccionam elementos da esfera do real e do onrico, do mundo dos vivos e dos mortos, dos feitios e do sobrenatural. Tema recorrente nas narrativas de Mia Couto a decadncia social, evidenciada pela interveno de algumas personagens, quando tecem crticas explcitas conjuntura hostil na qual imperam a ausncia de valores ticos e morais, a perda da memria e da dignidade humana e os desajustes econmicos e culturais vividos no pas. A linguagem de Mia Couto fortemente influenciada pela tradio oral africana. O autor viola padres da lngua portuguesa, numa manifesta postura de inveno de um novo registro discursivo. As transgresses de regras lingsticas estabelecidas manifestam a criatividade e a inventividade pessoal do autor, tanto no plano lexical quanto no plano da sintaxe narrativa. No primeiro caso, merecem referncia os neologismos resultantes da combinao aleatria de partes de palavras do portugus europeu com bases lexicais das lnguas locais moambicanas. Quanto sintaxe, o escritor consegue tornar as frases mais flexveis, remodelando as potencialidades da sua estrutura. Conforme o contexto em que a renovao lexical e sinttica utilizada, o leitor confrontado com

passagens obscuras, devido, principalmente, a constantes deslocaes de sentido, alteraes de significados, reformulaes de categorias habituais e introduo de expresses metafricas inditas que visam criao de uma forma oralizante de discurso, pautada em recursos estilsticos que permitem a criao de polissemias textuais que ilustram situaes mgicas, mticas e simblicas. A simbologia, relacionada com o fantstico de certos eventos, entrelaa registros de diversas culturas africanas. No plano ideolgico, tem-se a valorizao da cultura tradicional moambicana africana , postura existente em toda a sua obra ficcional. Suleiman Cassamo nasceu em 1962, em Marracuene, na provncia de Maputo, Moambique. Colaborou, como escritor, em jornais e revistas literrias Charrua, Gazeta de Artes e Letras, Notcias e Eco, entre outros e publicou O regresso do morto (1989), traduzido em vrias lnguas, Amor de Baob (1997) e Palestra para um morto (1999). Em 1994, a Radio France Internacionale (RFI) atribuiu-lhe o prmio Guimares Rosa pelo conto O caminho de Phati. A essncia das narrativas de Suleiman Cassamo encontra-se na representao da moambicanidade, no s por meio da retratao dos hbitos e dos comportamentos sociais dos moambicanos, mas tambm pela adoo de um discurso original que recria a linguagem oral ronga e aproxima a narrativa do discurso oral. Em O regresso do morto, Cassamo (1989) retrata sobretudo o mundo real do sul de Moambique, numa linguagem onde a lngua ronga irrompe pelo portugus, numa musicalidade nova. Com um estilo melodioso e gil, o autor d-nos um retrato simultaneamente real e fantstico da vida da gente comum do Moambique de hoje. Exemplo dessa particularidade do autor o conto Ngilina, tu vai morrer, que narra os infortnios de uma moa na condio de lobolada, sua vida infeliz ao lado do marido e da sogra, seu envolvimento total com os afazeres domsticos e a falta de perspectiva de mudanas que a leva ao suicdio. Num relato breve, desenha-nos o conto um retrato histricocultural da mulher moambicana, num espao cenogrfico que encena as contradies que caracterizam o pas. O conto narrado em terceira pessoa, mas atravessado por outras vozes que se integram voz do narrador pela reelaborao que ele opera na palavra, emprestandolhe uma dico particular que implica no somente o aspecto lingstico da verbalizao oral mas tambm a recorrncia a expresses figuradas de forte efeito imagtico, a repeties de carter enftico que acentuam e intensificam determinados efeitos semnticos, a modulaes tonais diferenciadas, como se pode ver no fragmento a seguir:

Ngilina nunca at ali dormiu com homem e nunca mais gostou desde aquele dia em que o marido a possuiu. Mas ele queria sempre, todos os dias. Como diria no se lhe pertencia? Acordava com dores na coluna, nas ancas, na cabea, todo o corpo. Como

diria qustou doente? L estava a sogra aquela velha maldita a dizer: tu, lenha; tu, gua; tu, balde de barro na cabea; tu, enxada; tu, panela de barro no lume; tu, pratos lavados... Mas l estava a sogra a cham-la preguiosa, preguiosa, preguiosa todo o dia do xicuembo. (CASSAMO, 1989, p. 14).

A leitura da narrativa guiada pela procura daquilo que o prprio autor chama, na abertura da coletnea de contos O regresso do morto (CASSAMO, 1989, p. 4), de sabor da terra moambicana, sabor esse que assume a feio de um modo singular de narrar, o qual se caracteriza por uma eloqncia particular, uma fluncia de dico e um poder de sugesto que parece querer inscrever, nos textos, a cultura e o modo de ser de Moambique. Nos anos 80, o escritor Eduardo White recupera, em sua poesia, os lugares e as marcas da moambicanidade e faz um pacto com o que o sustentculo da vida: os sentimentos de afetividade pela terra e pelos homens que povoam o pas dos sabores. Autor de Amar sobre o ndico (1984), Homone (1987), O pas de mim (1988), Poemas da cincia de voar e da engenharia de ser ave (1992), Os materiais do amor (1996), O desafio tristeza (1996) e Janela para oriente (1999), ele faz parte da gerao que viveu a experincia da guerra e suas adversidades. Eduardo White (2003, p. 242) encena, numa potica plural, a celebrao do corpo feliz:

teu corpo essa casa feliz onde se celebra a loucura e o frio dentro das falsias, teu corpo um amor de suplcios, amor que no sobra, e que nem mesmo de fadiga cessa

Com um discurso contido, cortante, que lembra o ofcio engendrado por outros poetas de sua gerao que experimentaram a guerra, Eduardo White redimensiona a sua voz potica, arrumando as aflies, as carncias individuais, para atingir o todo, a coletividade inserida num cenrio histrico envolvido num processo de transformao constante, como bem define o prprio poeta no momento em que levado a falar sobre a valorao do amor em Amar sobre o ndico (1984) e O pas de mim (1988), obras produzidas num tempo rduo, gerado pelos efeitos das guerras:

Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a temtica que usei nos dois livros acima de tudo uma temtica de protesto e tambm de relembrana. A minha gerao uma gerao de guerra: da guerra colonial, e, depois, da guerra de Smith e agora e sempre da guerra com a Renamo. O que eu procurei levar ao leitor uma relembrana do que afinal est em ns ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possvel, como sendo real, que o amor. (WHITE apud LABAN, 1998, p. 179).

A pulso transformadora e desveladora das horas tristes compartilhada. A experincia individual define o fazer potico, mas amplia-se e adquire uma projeo coletiva para deixar falar no mais um eu individualizado mas um eu que comunga com a coletividade, pois tudo se repete e os sonhos no morrem. Segundo Rita Chaves (2006, p. 135), a poesia tem deliberadamente reduzido o seu carter de produo autnoma e, embora apoiada no imprio da subjetividade, procura recuperar a funo humanizadora. Militante dessa causa muito especial, o poeta confronta-se com a sempre difcil tarefa de produzir os instrumentos de linguagem que possam exprimir a sua viso de mundo, a sua forma de estar nele. No cenrio potico moambicano desponta tambm a voz de Lus Carlos Patraquim, autor de A inadivel viagem (1985), Mono (1989), Vinte e tal novas formulaes e uma elegia carnvora (1991), Mariscando luas (1992) e Lindemburgo blues (1997). Segundo Carmen Lcia Tind Secco (2003, p. 259), Lus Carlos Patraquim, em suas obras, assume o exerccio da metapoesia e o jogo onrico da linguagem. Conhecedor de modernas tcnicas que do ao verso uma cadncia singular, o poeta, num jogo