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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA EDIMAR GONÇALVES FERREIRA VOLTAIRE E A TOLERÂNCIA MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PÓS ......Ferreira, Edimar Gonçalves Voltaire e a tolerância / Edimar Gonçalves Ferreira; orientadora Maria Constança Peres Pissarra –

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

EDIMAR GONÇALVES FERREIRA

VOLTAIRE E A TOLERÂNCIA

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2011

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EDIMAR GONÇALVES FERREIRA

VOLTAIRE E A TOLERÂNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Filosofia, da Pontifícia

Universidade de São Paulo, PUC, como parte

dos requisitos para obtenção do título de

mestre em Filosofia Moderna, sob orientação

da Professora Dra. Maria Constança Peres

Pissarra.

SÃO PAULO

2011

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Ferreira, Edimar Gonçalves

Voltaire e a tolerância / Edimar Gonçalves Ferreira; orientadora Maria

Constança Peres Pissarra – 2011.

98 fls.

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

Paulo, 2011

Inclui bibliografia

1. Filosofia. 2. Filosofia moderna. I. Pissarra, Maria Constança Peres. II.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em

Filosofia. III. Título.

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EDIMAR GONÇALVES FERREIRA

VOLTAIRE E A TOLERÂNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Pontifícia

Universidade de São Paulo, PUC, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre

em Filosofia Moderna, sob orientação da Professora Dra. Maria Constança Peres Pissarra.

COMISSÃO EXAMINADORA

Prof. Dra. Maria Constança Peres Pissarra.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

______________________________

______________________________

______________________________

São Paulo, ______ de 2011

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais

Amigos fiéis de todas as horas.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Professora Maria Constança que me auxiliou em todas as etapas deste

trabalho.

Aos meus colegas de sala, que colaboram com este estudo.

Aos professores, pelas sugestões e paciência.

Aos meus familiares pelo apoio e carinho.

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FERREIRA, Edimar Gonçalves. Voltaire E A Tolerância. 2011, 98f. (Dissertação em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO

Este estudo procurou dissertar sobre a ideia de tolerância na ótica de Voltaire,

pensador e escritor francês do século XVIII. No referido século, a tolerância e seu projeto

filosófico foram arquitetados por Voltaire com a pretensão de combater os erros do inicio da

modernidade que eram o fanatismo e a intolerância religiosa.

Antes de Voltaire outros pensadores e teóricos investiram igualmente ao bem da

nação, no que diz respeito à tolerância, como Bayle e Locke, porém em se tratando desse

curto período que representa o século da luzes, percebe-se que foi ele quem mais dedicou

esforços para eliminar o fanatismo religioso. O Tratado Sobre a Tolerância é apenas uma

obra a mais na produção literária de Voltaire quando se trata desse combate contra o

fanatismo religioso.

A história sobre a família Calas assunto tratado no Capitulo segundo dessa

dissertação, nos informa sobre a violência contra a alteridade; o outro em questão, Jean Calas,

protestante,é o alvo perfeito dos católicos intolerantes.

A tolerância para que fosse estabelecida e vivida pelas pessoas era necessário em

primeiro lugar o uso amadurecido da razão; somente essa seria capaz de reformar os costumes

insanos de um povo vivendo a deriva das superstições. No terceiro capitulo desse estudo a

razão é expressa como um penhor desse combate que avança contra o fanatismo religioso.

Cabe ,portanto, perceber que não era a religião em si mesma, o mostro funesto a ser

combatido. Essa como dizia Voltaire é um excelente freio moral aos homens que não eram

capazes de, sem a religião, terem a autonomia em suas vidas. O que, porém precisava ser

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obtido acima de tudo era o bem supremo da nação. As leis deviam ser respeitadas, a igreja

precisava submeter-se ao poder do Estado a fim de que uma tolerância social pudesse existir.

Voltaire, no entanto compreende que uma nova moral devia conduzir a sociedade; uma

moral que fosse iluminada não pela religião, mas pela razão. É ,essa, acima de tudo que devia

produzir no espírito dos homens a preservação do bem físico e moral da sociedade.

Palavras-chave: Tolerância; Iluminismo e Século XVIII

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SUMMARY

This study discusses the idea of tolerance from the perspective of the eighteenth

century French writer and philosopher Voltaire. In that century, tolerance and its

philosophical grounds were developed by Voltaire in order to combat errors at the beginning

of the modern era – specifically, fanaticism and religious intolerance.

Philosophers and theoreticians before Voltaire, such as Bayle and Locke, equally

invested in tolerance for the good of the nation. But as regards this short period, which

represents the “century of lights,” we realize that it was he who made the greatest effort to

eradicate religious fanaticism. A Treatise on Tolerance is just one more work of Voltaire’s

literary productions that deals with the fight against religious fanaticism.

The Calas family history, a subject dealt with in the second chapter of this

dissertation, tells of violence against alterity; the other in question is French Protestant Jean

Calas, the perfect target for bigoted Catholics.

First of all, for tolerance to be induced and experienced by people, it was necessary to

use reason in a mature way, which would be the only way to change the insane customs of

people living under the spell of superstitions. In the third chapter of this study, reason is seen

as an assurance in the advancing fight against religious fanaticism.

We realize, however, that it is not religion itself that is the manifestation that must be

combatted. According to Voltaire, religion serves as an excellent moral brake for humans

who are not able to control their own lives without religion. However, the supreme good of

the nation was the most important thing to attain. The laws were to be respected and the

church needed to submit to the state in order to enable social tolerance.

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Voltaire, however, claims that new morals should guide society; morals that were

enlightened not by religion, but by reason. Above all, it is these morals that should take the

human spirit toward the preservation of the physical and moral well-being of society.

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SUMÁRIO

 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9 1 AS BASES DA FILOSOFIA DA TOLERÂNCIA DE VOLTAIRE ............................... 19 

1.1 LOCKE E A TOLERÂNCIA RELIGIOSA ................................................................................ 21 

1.2 LOCKE E A DISTINÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA ......................................................... 24 

1.3 A TOLERÂNCIA COMO LEI EM LOCKE .............................................................................. 28 

1.4 BAYLE E OS DIREITOS INALIENÁVEIS DA CONSCIÊNCIA ........................................... 29 

1.5 VOLTAIRE E SEU PENSAMENTO SOBRE A TOLERÂNCIA ............................................. 32 

2 A INTOLERÂNCIA DO PENSAMENTO RELIGIOSO EM VOLTAIRE .................. 40 2.1 O AFFAIRE CALAS .................................................................................................................. 40

2.2 A MORTE DE MARC ANTOINE: CRIME PREMEDITADO? ............................................... 43 

2.3 OS MAGISTRADOS DE TOULOUSE ...................................................................................... 47 

2.4 A IDEIA DE TOLERÂNCIA EM VOLTAIRE ......................................................................... 49 

2.5 SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA ............................................................................... 51 

2.6 O PENSAMENTO RELIGIOSO EQUIVOCADO .................................................................... 55 

2.7 A CAMPANHA PANFLETÁRIA DE VOLTAIRE ................................................................... 59 

3 A RELIGIÃO DE VOLTAIRE .......................................................................................... 65 3.1 RAZÃO: UM GUIA AUTÔNOMO DO HOMEM .................................................................... 65 

3.2 A INFÂMIA E O DEÍSMO EM VOLTAIRE ............................................................................ 72 

3.3 UMA PRECE A DEUS ............................................................................................................... 75 

3.4 POR UMA LIBERDADE DE PENSAMENTO ......................................................................... 82 

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 86 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 96 

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INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por finalidade investigar o pensamento de François Marie

Arouet, dito Voltaire, a respeito da idéia de tolerância. Observaremos que, o contrário dessa,

ou seja, a intolerância justifica-se por meio de uma má compreensão que se tinha da religião.

Voltaire fora um escritor tanto crítico quanto sarcástico com as questões sociais; os

problemas de seu tempo, que verdadeiramente se apresentavam como desafios, eram os

conflitos gerados pelas perseguições religiosas. Voltaire discute e tenta resolver uma

problemática que antes já havia sido enfrentada por John Locke e Pierre Bayle. Por isso,

notaremos que o difícil trabalho levado a cabo por uma tolerância passará pelas mais terríveis

barreiras, pois, como Voltaire mesmo afirma no capítulo I do Tratado Sobre a Tolerância

[Traité Sur La Toleránce, de 1763],1 “o fanatismo não se conforma nunca com os êxitos da

razão”.

Se a campanha de Voltaire, no Tratado, foi em tudo uma maneira de combater os erros

do pensamento religioso para que assim mais tarde pudesse erguer o mastro da tolerância,

então é preciso como nunca aceitar que o monstro a ser combatido era a intolerância. Desta

maneira, veremos que ele não pretendia apresentar provas da existência de Deus, uma vez que

as questões metafísicas eram impossíveis de ser conhecidas ou provadas; por isso mantinha-se

com hostilidade em relação a elas.

O primeiro capítulo dessa pesquisa pretende investigar as origens do pensamento de

Voltaire em relação a sua ideia de tolerância. Em Voltaire, o tema da tolerância é base de sua 1 Para enfrentar a mentalidade ortodoxa e inflexível dos fanáticos e também dos ateus, Voltaire se vale de muitas estratégias, porém quase todas elas são baseadas em seus escritos. O Tratado Sobre a Tolerância foi um trabalho de estrutura panfletária, simples, direto e objetivo que constituiu entre as obras de Voltaire a maior de todas as estratégias no combate ao fanatismo.

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reflexão constante. Estando imerso na sociedade burguesa de seu tempo e conhecendo o

cotidiano das relações humanas conflituosas por disputas de religião, ele inevitavelmente

parte da necessidade da tolerância religiosa. Sanar as perseguições religiosas de católicos e

hunguenotes não foi um mastro levantado unicamente por Voltaire, pois se verifica o

seguinte:

Antes de Voltaire, Pierre Bayle já havia discutido assuntos ligados aos conflitos de

religião. Bayle como homem de fé defendeu a ideia de uma “teologia da consciência”,2 na

qual afirmava que essa consciência deveria ser seguida acima de tudo, independentemente dos

erros que pudesse aparentar.

O segundo capítulo deste estudo apresenta ao leitor como tema principal o alvo

combatido por Voltaire: a intolerância. A história na qual se apóia para realizar sua

argumentação de protesto e de crítica é a morte de Jean Calas, comerciante em Toulouse,3

que fora condenado à morte após o suplício da roda. O que se deseja expressar nesta reflexão

não é o relato que levou a esta morte em si mesma, a pretensão aqui ocupa um plano mais

critico do que apenas informativo, pois, acima de tudo, é necessário conscientizar a população

a respeito do crime que se cometera e não simplesmente lembrá-lo. Por isso, ao apresentar o

relato que ocasionou a morte de Jean Calas, é preciso ao mesmo tempo perceber nas

entrelinhas desse acontecimento a força destrutiva do pensamento religioso que sempre esteve

na direção das críticas de Voltaire.

No que diz respeito ao Tratado Sobre a Tolerância, encontra-se nos dois primeiros

capítulos do relato o acontecimento e também as razões que levaram a esta pena de morte. Na

primeira parte, o desenrolar de cenas que inevitavelmente levaram um pai de família a ser

2 VOLTAIRE. Tratado Sobre a Tolerância – A Propósito da Morte de Jean Calas. Introdução, notas e bibliografia René Pomeau. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. XXIV-XXV. 3 Esta era a cidade provinciana da França que fora cenário do desfecho do Affaire Calas. Voltaire no capítulo I do Tratado afirma que em Paris a razão prevalece contra o fanatismo, ao passo que, na província, o fanatismo quase sempre prevalece sobre a razão. Toulouse é lembrada como a cidade dos fanáticos, das festas insanas comemoradas pelos católicos por terem massacrado no passado seus irmãos calvinistas.

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condenado por um crime sem provas, com base em vagas e extraviadas suposições; na

segunda parte, Voltaire lança um crítico julgamento a respeito dos verdadeiros culpados desse

crime.

O ambiente da antiga França ainda era constituído e dominado pela ortodoxia religiosa

que, em nada, expressava indulgência por pessoas de outras religiões. Voltaire, ao julgar os

Penitentes Brancos (uma das quatro confrarias católicas radicais de Toulouse) como os

principais causadores da morte de Jean Calas, está se referindo aos horrores da arbitrariedade

de um pensar religioso incapaz de agir segundo as bases da tolerância.

É preciso ainda observar que do inicio ao fim do Tratado se desenvolve uma reflexão

contemplando o longo enfrentamento entre católicos e calvinistas da cidade provinciana de

Toulouse. Por longos séculos reis e soberanos aliados ao poder religioso lutaram por uma

France toute catolique. A política do Rei Sol, Luís XIV, veio ainda mais para justificar esta

maneira de pensar, ou seja, manter a ideia de que os calvinistas deveriam todos ser

convertidos ao catolicismo. A respeito dessa convenção de poderes temporal e espiritual,

René Pomeau, na Introdução do Tratado, fala que Luís XIV obtivera da Corte romana a bula

Unigenitus4, ou seja, mais um apoio incondicional provindo do poder religioso na recusa à

religião protestante.

Na opinião de Voltaire, a religião, se existir, deve ser útil ao ser humano e à sociedade.

Da mesma maneira que a lei civil pune os crimes conhecidos de cada pessoa, a religião pune,

nesses, os crimes secretos. As críticas de Voltaire a respeito da religião não possuem caráter

de modificação da doutrina ou da teologia do pensar religioso, pois ele chega mesmo a

questionar se o interesse da religião deve ser a prática da barbárie ou da caridade. Ele ataca

incansavelmente a maneira de viver dos cristãos, que quase sempre estão disputando sobre

4 Esta bula papal provinda de Roma determinava que a única religião que deveria existir seria o catolicismo; René Pomeau lembra na Introdução do Tratado que a muitos fiéis eram negados os últimos sacramentos; alguns padres que também não acatavam tal bula administravam invalidamente tais sacramentos. Em 8 de setembro de 1713, Luis XIV obtinha do papa Clemente XI a bula ou Constituição Unigenitus que condenava o jansenismo.

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seus dogmas e produzindo com isso perseguições intermináveis5 a ponto de comprometerem

com isso o bem da sociedade.

Se existe um perigo que deve ser combatido, quando se fala no bem do conjunto

social, esse é o pensamento religioso, autor de ameaças e perseguições contra as pessoas. Por

isso, iremos notar que, acima de tudo, o que Voltaire privilegia não é um partidarismo por

essa ou aquela religião, por esse ou aquele projeto político e social, quase tudo é relativo para

ele. O que, porém, ele advoga sem cessar é a causa do “bem físico e moral da sociedade”.6

Voltaire desejou revolucionar as idéias de sua época. De acordo com René Pomeau, a

ação de Voltaire causou um agito em todo século XVIII, pois ele mostrou o poder da escrita.7

É preciso, no entanto, perceber que a maior de todas as revoluções pretendidas por ele era a de

modificar o pensamento de sua época, uma vez que, aderindo cada vez mais às práticas

supersticiosas e fanáticas, as pessoas tenderiam a uma regressão inevitável do espírito

humano. A ideia do progresso social, o bem da nação, arquitetada em pleno Século das Luzes

visava uma sociedade estruturada em suas bases políticas, administrativas e éticas. Para que

esse novo tempo se concretizasse na história da França era preciso enfrentar o espírito

intolerante do fanatismo tão arraigado na mente de uma população tradicional e ortodoxa em

matéria de religião. Deve-se ainda compreender que essa varredura de um modelo social

ultrapassado não significava mais mortes ou perseguições, pois a morte de reis8 por fanáticos,

a Noite de São Bartolomeu9, não servem de inspiração ou proposta na confecção do novo

modelo social sugerido por Voltaire. Era necessário, no projeto de Voltaire, que cada pessoa

5 No Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire se refere a tais lutas por disputas dogmáticas dos cristãos: “Sabe-se bem quanto isso custou desde que os cristãos disputam sobre o dogma: o sangue correu, seja nos cadafalsos, seja nas batalhas, do século IV aos nossos dias”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. II. 6 Id., ibid., cap. IV. 7 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P.360. 8 No capítulo I do Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire se refere à morte do rei Henrique IV, morto pelos fanáticos da religião. E no capítulo II, Voltaire fala dos Penitentes Brancos como controversistas da ordem pública, prontos a todo o momento a instarem uma guerra civil contra pessoas de outra religião. 9 A Noite de São Bartolomeu se refere a um terrível massacre contra protestantes calvinistas ocorrido em 24 de agosto de 1572. O rei Carlos IX ordenara em Paris e nas províncias que os chefes protestantes fossem mortos, desencadeando assassinatos em massa.

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fosse despertada em seu agir e tivesse o desejo de superar o peso de uma vida medíocre

dedicada à servilidade do poder religioso.10 Voltaire afirma que o homem foi criado para agir

e essa ação deve, no mínimo, justificar a existência humana neste mundo, valendo-se da razão

como luz para guiar os passos de cada um, rumo à felicidade.

John Gray afirma11 que o iluminismo de Voltaire só pode ser compreendido no

contexto do credo que desejava anular, pois este era contrário à fé cristã. Nessas duas

ideologias, a de Voltaire e a do cristianismo, se observam caminhos de vida que pretendem

oferecer uma ética de comportamento ao ser humano. Enquanto na vida cristã é proposta aos

fiéis uma felicidade sem fim numa vida futura, no iluminismo se percebe algo de muito

semelhante. No movimento ideológico das Luzes, o ser humano possui um penhor de

esclarecimento quando se deixa guiar por suas luzes, que são a razão, pois somente por meio

delas é que se torna digno desse mérito.

Perante essa nova ótica12 de vida, que é apresentada como a base de uma nova

civilização, deve-se concluir o seguinte: não é a fé do indivíduo em Deus, não são as orações

a ele direcionadas que, de fato, promovem a remissão do homem; é o agir racional do ser

humano no mundo que o torna dono de si.

No estudo das reflexões13 de Voltaire, deve-se perceber que suas críticas e ironias

possuíam uma razão fundamental. Ele queria destronar o poderio estabelecido daqueles que se

passavam como donos da verdade, pois, como se sabe, toda e qualquer característica de

10 Por esse poder deve-se considerar a força do pensamento religioso que dominava as pessoas. 11 GRAY, John. Voltaire e o Iluminismo. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Unesp, 1999. 12 O iluminismo apresenta ao homem uma nova proposta de vida: a dimensão teocêntrica do pensamento religioso deve dar espaço a uma nova maneira de viver onde o ser humano busque sentido para sua vida não mais por meio da fé em Deus, porém em sua própria capacidade intelectual. A razão no período das Luzes pretendia dar resposta a todos os anseios da vida humana. 13 Em Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, ele ironiza o tempo todo a arrogância do filósofo Pangloss que apresentava a teoria do melhor dos mundos possíveis; tese defendida por Leibniz. Se todo mal particular concorria para um bem universal, ou, se cada ruína na vida humana era sinal de um grande benefício no futuro, então por que Cândido caiu em desgraças incontáveis?

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hierarquias14 lhe eram abomináveis. Se por poder, no contexto de Voltaire, entendemos a

presença de uma estrutura esmagadora contra o ser humano, então devemos afirmar que este

monstro era a superstição, o fanatismo e a intolerância do pensamento religioso. Assim, a

força dominante desse pensamento se orientava no terreno infértil da intolerância religiosa.

O espírito destruidor tão mencionado por Voltaire era o protagonista essencial das

perseguições religiosas. A Noite de São Bartolomeu, já mencionada, é lembrada no Tratado

Sobre a Tolerância como um massacre que envergonha o gênero humano. A celebração da

festa dos católicos em Toulouse, província da França, onde comemoravam a morte de

centenas de calvinistas é igualmente lembrada com indignação por Voltaire.

Tais acontecimentos, que não honram o ser humano, devem ser confrontados com a

seguinte questão: “Por que, pois estamos nos matando desde os primeiros concílios da

Igreja?”.15 Essa pergunta faz a posteridade16 de Voltaire perceber que sempre as ações

fanáticas de alguém ou de grupos redundarão nos mesmos crimes e sofrimentos que os

tempos anárquicos experimentaram.

Ainda no segundo capítulo desse estudo, Voltaire, ao criticar os erros de seu tempo

afirma que um fanático é tão perigoso quanto um ateu. Desse modo, para que haja um bom

funcionamento do Estado se faz necessária a ausência desses dois empecilhos que

naturalmente destruiriam qualquer possibilidade do progresso social. O ateísmo e o fanatismo

não honram as leis, não respeitam e não toleram as diferenças de crenças, mas se posicionam

de maneira autoritária e intolerante diante dos fatos da existência humana.

No decorrer do desenvolvimento deste capítulo observaremos, inclusive, que Voltaire

não advoga contra a religião. O que nunca deixa de ser objeto de criticas e ódio implacável é a 14 Voltaire em primeiro lugar se coloca como critico dos poderes da religião e da monarquia; não se cansa de alfinetar a arrogância dos poderosos. Ao mesmo tempo em que critica os representantes da religião fere também príncipes e reis, apesar de se colocar em defesa do sistema político monárquico para o povo. 15 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Atena, 1956, p. 317. 16 A intolerância de tempos passados em matéria de religião desde os mais primórdios tempos do cristianismo deve inspirar as gerações futuras a serem mais tolerantes, inclusive em matéria de religião. Percebe-se que, quando se trata de ideologias políticas ou mesmo filosóficas, a possibilidade de consenso é sempre possível, porém em se tratando de religião o consenso se faz uma utopia.

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ignorância à qual estavam submetidas as pessoas. É contra o obscurantismo irracional, que

impedia o pleno desenvolvimento do homem pensante como um cidadão livre em suas ideias

e racional em seu agir, que Voltaire se opõe. Na opinião dele, por culpa dos padres

representantes da Igreja e partidários de uma instituição dominante, esses não favoreciam uma

digna formação aos seus fiéis, ao contrário; como pastores, deveriam ser os primeiros a guiar

seu povo para longe das superstições religiosas. Enquanto os fiéis, o povo pobre, sofria a

imposição de um sistema religioso intolerante, a razão nada podia esclarecê-los, pois tais

pessoas ainda não eram capazes de compreender a importância de uma tão clara luz para guiá-

los.

Voltaire não é a única, porém é uma das figuras principais do iluminismo francês. O

século da filosofia ilustrada apresenta como característica essencial a razão como “deusa” do

destino dos homens. Por isso, Voltaire irá apresentá-la como um recurso infalível e necessário

no processo de libertação dos homens. Se a razão é difícil de ser aceita pelas mentes tomadas

pela ignorância, mesmo assim ela se apresenta como um recurso único que “esclarece lenta,

mas infalivelmente os homens”.17

Por esclarecimento dos homens devemos compreender alguém em posse de suas

ideias, livre em seu pensar e em seu agir. No século XVIII, a razão tem primazia, por isso, ela

deve auxiliar o pensamento filosófico do individuo levando-o a combater as superstições que

por vezes obscurecem suas atitudes racionais.

As críticas de Voltaire contra a miséria a que o populacho estava submetido, ao

mesmo tempo em que possuem caráter demolidor de uma situação desumana, apresentam

também possibilidades infinitas de construção de um novo indivíduo diante da sociedade. O

homem deve se orientar segundo o ditame de sua razão esclarecida que em tudo deve orientá-

17 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 30.

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lo em sua vida, uma vez que as superstições e crendices somente corroboram para a formação

de um povo iletrado, dominado e ignorante.

O contrário de tudo aquilo que produz trevas na vida humana como a ignorância e a

violência religiosa é o que Voltaire propõe. Com o auxílio da razão, força máxima desse

projeto, ele pretende sensibilizar o espírito do povo, das autoridades, dos letrados e iletrados

de seu tempo por meio de um encantamento do homem pelo progresso social, das ciências e

pelo refinamento do espírito humano. A ciência deve auxiliar o homem a ter uma vida melhor.

O progresso social também diz respeito ao enriquecimento material desse homem, por uma

vida mais confortável. Por isso, nada mais contrário ao pensar de Voltaire do que desejar

encontrar em sua maneira de refletir alguém que pretendesse nivelar em pé de igualdade,

nobres e pobres. Voltaire defendia a propriedade privada, o que, para Rousseau, por exemplo,

era a origem da desigualdade entre os homens.18 Voltaire defendia a civilização como um

meio fundamental de elevar o espírito dos homens.

A clássica e famosa expressão de Voltaire, écrasez l’infâme [esmagai a infâmia],

sintetiza em si mesma as duras criticas que ele fazia contra o pensamento religioso da época,

pois se a intolerância era o principal problema a ser superado, esse pensar era a origem dessa

intolerância.

O terceiro capítulo dessa reflexão visa apresentar que, de fato, a razão constitui o agir

moral do ser humano, pois, sem essa, as trevas do erro dominariam sempre cada indivíduo,

fazendo com que cada pessoa vivesse inundada pelas superstições mais funestas.

Um dos conceitos clássicos de razão proveniente do período da Grécia antiga mostra-

nos que a razão é guia autônomo do ser humano. O período iluminista, século XVIII, retoma

o espírito dessa ideia mostrando que o homem deve ser livre em seu pensar, pois, além disso,

18 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005. Id. O Contrato Social: Princípios do Direito Político. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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ele é o centro do universo. O teocentrismo medieval, assim, é superado, abrindo novo espaço

para uma ética humanista na qual o indivíduo se torna senhor de si mesmo.

O que com bastante empenho vamos encontrar na campanha realizada por Voltaire é

uma luta constante em favor de uma racionalidade presente e atuante na vida dos homens. Se

a religião, como orientadora de seus fiéis, não era capaz de esclarecer o povo a respeito da

violência que praticavam, era necessário qualificar a religião como hipócrita, e, além disso,

propor um novo caminho de conscientização para os homens. O que em tudo isso se passava

por abominável e insuportável eram as perseguições religiosas, que comprometiam, a todo o

momento, o bem da nação.

Voltaire coloca-se como crítico de seu tempo atacando os conflitos religiosos. Diante

disso, deve-se vê-lo não como um reformador da religião, pois como já se disse, ele não era

partidário do cristianismo, embora, por outro lado, também não negasse a existência de Deus;

Voltaire é deísta, ou seja, acredita na revelação natural de Deus à razão humana, por isso não

defendia dogmas religiosos ou se colocava favorável a essa ou aquela seita.

Além de deísta, Voltaire é um eterno defensor da liberdade de pensamento e, por

liberdade, no contexto voltariano, deve-se entender o poder do ser humano em fazer o que

quiser desde que isso esteja ao seu alcance. Ele também se refere à liberdade religiosa. Em

suas viagens pela Inglaterra, admira a liberdade religiosa daquela nação, porém não deseja,

com isso, implantar tal modelo na França, pois está perfeitamente consciente de que “cada

lugar é constituído de costumes próprios, e o que seria aceitável em um país, talvez, não seria

em outro”.

Ao falar de religião, Voltaire baseia-se em John Locke, pois, como se sabe, os

conflitos de religião combatidos por Voltaire também o eram por Locke. Em Carta Sobre a

Tolerância (em latim Epistola de Tolerantia), Locke afirma que a verdadeira religião depende

de um culto agradável a Deus. Logo se percebe que Locke é partidário da religião cristã, e a

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defende como um homem de fé, ao contrário de Voltaire, que a critica sem compromisso

nenhum em desejar aderir a ela.

Após 1719, Voltaire freqüenta em Paris a colônia inglesa, e lá conhece Milorde

Bolingbroke. Segundo René Pomeau esse Bolingbroke foi quem iniciou Voltaire nos estudos

filosóficos na Inglaterra lhe recomendando a leitura de Jonh Locke.19Ao partir para a

Inglaterra alguém escreve que Voltaire “fora para lá como um poeta e voltara como filósofo”.

Na apresentação das Cartas Filosóficas de Voltaire, Will Durant escreve: “É

admirável a rapidez com que Voltaire absorveu quase tudo o que a Inglaterra tinha para lhe

ensinar. Sua literatura, sua ciência e sua filosofia. Ele colheu todos esses vários elementos,

passou-os pelo fogo da cultura e do espírito francês e transformou-os no ouro da eloqüência

e da finura gaulesas”.

19 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1995. P. 93.

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1 AS BASES DA FILOSOFIA DA TOLERÂNCIA DE VOLTAIRE

O primeiro capítulo visa refletir as diferentes concepções de tolerância de John Locke

e Pierre Bayle, percebendo assim suas significativas contribuições para a formação de um

novo conceito de tolerância em Voltaire. Sabe-se que Voltaire se apóia nestes dois pensadores

para falar em favor da tolerância, porém estabelece em relação a eles uma nova perspectiva.20

Desta maneira, podemos afirmar que há uma herança e, ao mesmo tempo, uma dívida de

Voltaire para com John Locke e Pierre Bayle na formação de seu conceito sobre a tolerância.

O Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire, pela sua aparente simplicidade, é uma

magnífica obra de defesa engenhosamente arquitetada em honra da inocência de Jean Calas.

Cabe, pois, neste relato da ocasião da morte de Jean Calas, perceber que a luta em favor da

liberdade religiosa visualiza sempre um fim que proclame o real estabelecimento da tolerância

em sociedade. Voltaire, como cidadão do mundo e não como religioso de seu tempo, advoga

incansavelmente em favor do interesse das nações,21 e para que este interesse aconteça se faz

necessária a reforma do pensamento religioso por uma tolerância entre as divergentes

opiniões religiosas.

Para compreendermos melhor e com mais profundidade o que Voltaire pensava sobre

a tolerância é preciso recorrer às suas fontes, e estas se apóiam em Locke e Bayle. Estes,

ainda no século XVI e XVII, já estavam preocupados com a questão da tolerância em

sociedade. Sabe-se que é devido à intolerância do pensamento religioso, e consequentemente

das querelas religiosas, que se estabelece uma preocupação mais localizada em favor da

20 No comentário inicial do Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire, René Pomeau afirma que abordando a questão da tolerância, Voltaire alia-se a textos clássicos: Locke, Bayle. Retoma-lhes as ideias, mas se estabelece, com relação a eles, numa perspectiva nova. VOLTAIRE, op. cit., 2000, pp. XXII. 21 Id., ibid., cap. IV, p. 27.

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tolerância social. Antes de Voltaire a intolerância religiosa já era um assunto que agitava o

meio social, e como superá-la era um plano que fora empreendido por Bayle e também Locke.

A Carta Sobre a Tolerância de John Locke foi uma das iniciativas estratégicas deste

político liberal em contribuir para que as guerras religiosas, assim como o fanatismo provindo

das religiões, fossem eliminadas. Esta Carta é direcionada a um público de homens doutos. É

para a alta classe social que Locke direciona suas opiniões contra o fanatismo religioso.

O interesse de Locke em se tratando de tolerância não é diferente do de Voltaire, pois

ambos primam pelo bom funcionamento da sociedade política, onde as leis devem ser

respeitadas, uma vez que elas fundamentam o interesse público.22 Enquanto Locke escreve

sua Carta aos letrados da sociedade, Voltaire escreve seu Tratado tendo como alvo

sensibilizar a opinião do povo, dos nobres e dos ricos. Este alvo diz respeito também às

autoridades majoritárias da sociedade, porém acima de tudo ele deseja mobilizar o imaginário

coletivo das pessoas,23 para que estas percebessem o erro das ações fanáticas que o

pensamento religioso da época era capaz de realizar. Se Voltaire é contra a violência causada

22 No capítulo XI do Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire afirma que todo cidadão deve respeitar os costumes de sua pátria e, no entanto, deve igualmente zelar pela paz e a ordem social. Isto expressa também da parte de Voltaire seu real interesse pelo bem físico e moral da sociedade. Em Locke encontramos uma reflexão semelhante: “O que de per si é prejudicial à cidade na vida comum, é proibido pelas leis feitas em vista do bem comum, também não pode ser permitido na Igreja para um uso sagrado, nem merecer a impunidade”. LOCKE. John. Carta Sobre a Tolerância. Tradução de João da Silva Gama revista por Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1965, p. 109. Se em Voltaire a tolerância é fundamental porque concretiza o interesse da sociedade, bem como o desenvolvimento da ciência, a liberdade religiosa, o uso esclarecido da razão em face do fanatismo e das superstições religiosas, em Locke ela também é obrigatória porque além de eliminar as guerras religiosas, implanta a liberdade de pensamento e o respeito pelas leis e pelo soberano; para que isso aconteça se faz necessário a real separação entre Estado e Igreja. É isso que Locke desenvolve dentro de um amplo panorama histórico na sua Carta Sobre a Tolerância. 23 Maria das Graças de Souza em seu artigo “Voltaire, leitor de Bayle: a questão da tolerância”, apresentado no XV Congresso Interamericano de Filosofia / II Congresso Ibero-americano de Filosofia (Lima, Peru, 2004), afirma: “O que é novo no Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire, para além do legado de Bayle, é a constatação da força da opinião pública. A condenação da família Calas havia sido o desfecho de um longo processo de pressão da opinião dos católicos sobre os juízes de Toulouse no sentido de entender a morte do rapaz como represália de pais protestantes para punir o filho que teria se convertido ao catolicismo. Contra a força da opinião, a melhor arma é a opinião. O que faz Voltaire? Primeiramente, é preciso estar bem informado. Voltaire recorre a seus correspondentes, confronta versões, ouve membros da família. Em seguida, começou a escrever cartas, memoriais públicos, recriações de peças do processo, às centenas, narrando o erro judiciário do Parlamento de Toulouse. A quem chega este material? É uma enxurrada que chega às mãos de toda a Europa culta: escritores, homens políticos, representantes do clero, da magistratura, e até reis. O povo de Paris começa a se manifestar. O assunto se torna objeto de polêmica nas ruas. Finalmente, a situação criada por Voltaire é tal que o Parlamento de Paris cassa a decisão de Toulouse. No ano seguinte, o caso é levado a novo julgamento e a família é reabilitada”.

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pela intolerância religiosa de católicos e calvinistas, Locke igualmente se coloca contra toda

forma de pensar que seja intolerante com a opinião alheia. Cabe lembrar que, muitas vezes, se

justificou o princípio de perseguir alguém por opiniões religiosas como um ato que agradava a

Deus.

1.1 LOCKE E A TOLERÂNCIA RELIGIOSA

Na visão de Locke, assim como na de Voltaire, é absurdo e contrário à natureza

humana querer forçar alguém a fazer o que sua consciência se recusa a realizar. Por outro

lado, encontra-se no pensamento de Locke algo que aparentemente poderia parecer curioso

em se tratando de renegar todas as práticas de intolerância contra outros. Locke afirma que

uma atitude intolerante só pode ser justificada quando se trata de perseguir alguém por seu

ateísmo: “Os que negam a existência de um poder divino não devem, de modo algum, ser

tolerados; porque os ateus destroem necessariamente a base da permanência da sociedade

humana”.24

É visto, portanto, que, quando se trata de comprometer o bem da sociedade civil e

política e seu desenvolvimento, tudo neste sentido deve ser evitado em favor de um bem

maior que é comum a todos, a felicidade coletiva.

A reflexão de Locke na Carta Sobre a Tolerância inicia-se questionando a

organização institucional da Igreja que parece estar mais preocupada com sua pompa exterior

e seu poder em dominar as consciências do que com a prática da caridade que deveria ser seu

24 LOCKE, John, op. cit., 1965, p. 23-24.

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único fim. Sua opinião é firme e clara em relação aos cristãos: eles devem tolerar-se uns aos

outros, pois este é o critério da verdadeira Igreja.25

Voltaire, em seu Tratado, retoma esta ideia afirmando também que, pelo fato de os

cristãos serem filhos de um mesmo Pai, devem viver a tolerância, uma vez que os atos de

Jesus Cristo só inspiram a doçura e a bondade. A afirmação de Locke de que “cada Igreja é

ortodoxa para si mesma”26 encontra junto à reflexão de Voltaire seu mais alto cume, pois se

percebe que, entre católicos e calvinistas, o espírito que os animava era o da intolerância

religiosa e não o do Evangelho de Cristo.

Segundo Locke, o próprio Evangelho é a favor de um espírito tolerante em relação a

opiniões religiosas diferentes e, em sua Carta, afirma: “A tolerância a respeito dos que têm

opiniões religiosas diferentes é tão conforme com o Evangelho e com a razão que parece

monstruoso haver homens afetados de cegueira numa tão clara luz”.27 Assim como Locke,

Voltaire pretendia reformar o pensamento religioso da época. Se Voltaire advoga tal caso

valendo-se apenas do interesse “físico e moral da sociedade” e, portanto, não reconhece assim

a Igreja, católica ou protestante, como substancial neste processo de mudança, Locke tenta

reformar o mesmo que Voltaire pretendia, porém levando em conta a importância da Igreja

como uma sociedade livre de homens reunidos para louvar a Deus, por meio de um culto que

lhe seja agradável.28 Seja como for, as opiniões que em Voltaire e em Locke possam ser

divergentes não distanciam em momento algum esses dois pensadores a realizar um mesmo

ideal em comum: a luta pela tolerância.

Para compreendermos o pensamento de Locke é fundamental que iniciemos nossa

investigação pelo estudo de sua Carta Sobre a Tolerância. Nela, nota-se o interesse político

deste autor em sensibilizar os intelectuais de seu tempo sobre a necessidade da tolerância

25 Id., ibid. 26 Id., ibid. 27 Id., ibid., pp. 557-58. 28 Id., ibid., p. 94.

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diante dos conflitos entre as religiões. Nisto observa-se, como já afirmamos, que o problema

da tolerância e sua discussão é anterior a Voltaire, uma vez que este tema já havia sido

tratado por Pierre Bayle, em seu Commentaire Philosophique Sur ces Paroles de Jésus

Christ: “Contrain-les d'entrer” [Comentário filosófico sobre essas palavras de Jesus:

“Obriga-os a entrar”, de 1688]. Do mesmo modo que Bayle, Locke dialogou com a sociedade

de seu tempo para fazer da tolerância uma realidade no combate aos conflitos de religião.

A Carta Sobre a Tolerância mostra que a discussão contra os conflitos religiosos já se

fazia ouvir, pois o fanatismo fomentado pelas religiões era o grande monstro funesto que

precisava ser vencido pelo poder da razão e da tolerância. Artur Morão, em comentário inicial

à Carta de Locke, afirma: “Esta Carta de Locke surgiu como resposta às aspirações de muitos

espíritos europeus que, de vários pontos de vista, sentiam a necessidade da conciliação prática

e social das pessoas, não obstante a divergência das suas opções doutrinais”.29

Se a tolerância consequentemente não deixa de ser um fim proposto por Locke, pois

sua Carta demonstra tal interesse, ele vai buscar realizar este projeto começando por propor a

exata separação entre a Igreja e o Estado. Deve-se, contudo, nesta proposta, saber com clareza

e precisão o que diz respeito ao Estado e o que se relaciona unicamente à Igreja. Em Voltaire

encontramos o absoluto interesse em demolir o fanatismo e a intolerância religiosa da época.

Da mesma forma, verificamos em Locke que a garantia de uma tolerância na sociedade só

será possível se os dois poderes, o religioso e o civil, agirem distintamente.

Voltaire, ao trabalhar para mudar o pensamento de sua época, de fanático para um

pensar mais indulgente e racional, faz isso não como homem de fé ou alguém ligado ao

universo religioso; ao contrário, defende a substituição do fanatismo e das superstições por

atitudes humanas guiadas pela luz da razão e não da fé. A religião, o culto, a dimensão da fé

religiosa nunca foram interesses primários em Voltaire. Na verdade, pode se observar que, na

29 Id., ibid., p. 90.

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maioria das vezes, ao falar da Igreja, dos padres, do povo intolerante e religioso, ele não mede

palavras e críticas para expressar sua indignação contra as perseguições religiosas do povo

cristão. Pensava em relação à Igreja que esta era para os fracos e dependentes. No capítulo

XX do Tratado Sobre a Tolerância, mostra, em forma de crítica, como o gênero humano é

constituído de fraqueza e debilidade, que é preferível ao homem entregar-se às superstições

mais terríveis do que viver sem religião.30 Ao mesmo tempo, percebe-se em Voltaire que é

preferível um homem entregar-se à religião, mesmo sendo esta para os fracos e dependentes,

do que ser um ateu, pois o ateu se torna tão perigoso à sociedade quanto um fanático, uma vez

que ambos seriam intolerantes e inclinados aos crimes mais terríveis.

1.2 LOCKE E A DISTINÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA

Enquanto para Voltaire a religião não passa de um instrumento utilitário, podendo

ajudar os homens a cumprirem suas funções sociais, para Locke, a religião já representa outra

finalidade na sociedade, pois ela existe para salvar os homens, desde que estes, inseridos

numa religião qualquer, pratiquem um culto agradável a Deus com sinceridade de coração.

Afirma Locke: “O fim da sociedade religiosa, como se disse, é o culto público de Deus e, por

30 Voltaire era hostil em relação a religião. Acreditava em uma revelação divina que se manifestasse unicamente à luz natural do ser humano, ou seja, à razão. Sua época trazia marcas profundas de uma religião dividida e intolerante. No verbete “Tolerância”, ele questiona e tenta levar a sociedade religiosa de sua época a perceber que os cristãos estão se matando em guerras intermináveis desde o Concílio de Niceia. Ou seja, desde os primórdios do cristianismo, a religião já ousava competir e perseguir quem pensasse contrário aos seus dogmas. Voltaire fora formado intelectualmente pelos jesuítas no colégio parisiense Louis-Le-Grand (seu pai o queria formado magistrado), mas mesmo tendo formação religiosa não deixou de ser um crítico voraz da religião que o havia moldado em seus primeiros anos de vida. Nunca deixou de ser um critico audaz contra os exageros que a religião expressava; criticou em tudo a intolerância religiosa que provinha de dentro dos muros da Igreja e das casas dos mais piedosos em matéria de religião. Voltaire critica em primeiro lugar aqueles que estão dentro da Igreja, sejam padres ou fiéis, que fazem um mau uso da religião e uma interpretação fundamentalista do verdadeiro significado da Palavra de Deus. Esses exageros são na maioria das vezes causas de tantos males à sociedade como as guerras civis que acontecem.

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meio dele, a obtenção da vida eterna”.31 Como se vê, Locke coloca-se como defensor da

tolerância, mas procede nesta busca como homem religioso. Para ele, a Igreja não é quase

desnecessária como para Voltaire, ela é mais uma sociedade dentro do Estado, que precisa

reconhecer seus limites porque, acima dela, existe um poder superior que é o Estado.

A Igreja deve se preocupar com as coisas do mundo celeste e isto inclui a salvação das

almas dos homens, enquanto o Estado deve cuidar das coisas terrestres e isto diz respeito aos

bens civis. Para melhor compreendermos a distinção feita entre Estado e Igreja, pois isto é

fundamental na obtenção da tolerância, Locke afirma: “A Igreja parece-me ser uma sociedade

livre de homens voluntariamente reunidos para publicamente adorar a Deus da maneira que

julguem ser agradável à divindade em vista da salvação das almas”.32

Se em Voltaire encontramos uma das mais críticas posições33 em relação aos poderes

estabelecidos, Igreja e Estado, em Locke, estes poderes não devem necessariamente ser

demolidos, mas redefinidos e reorientados, a fim de que cada um destes se estabeleçam em

seus devidos lugares, ocupando suas funções para o bom funcionamento da sociedade. Para

Locke, a preocupação residia na necessidade de estabelecer uma separação entre tais poderes.

Ele não estava preocupado com a hierarquia que cada um deles deveria ocupar; se estivessem

dentro de seus limites de autoridade isso era o que devia bastar. Locke não era hostil para com

a hierarquia como Voltaire.

Com a finalidade de que a separação entre Igreja e Estado seja realmente eficaz na

obtenção da tolerância, Locke ainda afirma em sua Carta:

Julgo que é preciso, antes de mais nada, distinguir entre os assuntos da cidade e os

da religião e definir os limites exatos entre a Igreja e o Estado. Se não se fizer,

31 .LOCKE, John, op. cit., 1965, p. 96. 32 Id., ibid., p. 94. 33 Voltaire possuía uma repulsa em relação a qualquer hierarquia fosse esta religiosa ou civil. Não tinha é claro a intenção de ignorar a necessidade de uma autoridade que pudesse guiar o povo. Como reformador das ideias de seu tempo questionava com seus escritos, cartas, panfletos e peças teatrais, a arrogância dos poderosos, fossem esses reis, papas ou clérigos. Ao mesmo tempo em que criticava o poder estabelecido dos reis, defendia a ideia de que o povo deveria ser governado por um déspota esclarecido, imagem esta, que ele diz ter encontrado em Frederico II, rei da Prússia, com quem teve estreitas relações amigáveis.

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nenhuma solução se pode estabelecer para os conflitos levantados entre os que

sinceramente se empenham, ou os que fingem empenhar-se, na salvação das almas

ou do Estado.34

Nesse sentido, pode-se notar que, em se tratando de religião, Locke se aproxima e

muito do que Pierre Bayle compreende desse universo religioso.

Para Bayle, a religião deve levar o ser humano a se salvar. Assim, o culto que o

homem de fé expressa a Deus deve ser um ato de sinceridade e honestidade com sua

consciência. Por isso, o culto não vale por ele mesmo, mas porque está baseado na fé sincera

de quem o pratica. Bayle sempre insistirá nos direitos da consciência errante,35 mostrando

que esta é a luz natural presente na alma de cada homem e que em nada deve ser contrariada.

Enquanto isso, nessa mesma linha de raciocínio, John Locke, em sua Carta, afirma:

Mas, o que é fulcral e põe fim à discussão, ainda que a opinião do magistrado seja

mais importante e o caminho que me manda seguir seja o verdadeiro caminho

evangélico, se eu, no fundo do coração, não estiver persuadido, não será para mim

um caminho salutar; nenhum caminho que eu siga contra minha consciência me

conduzirá alguma vez à morada dos bem-aventurados. Posso enriquecer numa

profissão que detesto, posso curar-me graças a remédios em que não confio, mas não

posso salvar-me por uma religião de que duvido, por um culto que abomino.36

Para Locke, o fim a que se propõe a sociedade religiosa parece estar tão acima das

intempéries deste mundo que em nada a religião deve interferir nas funções do Estado e suas

leis. Falando de leis, as normas jurídicas, que devem produzir a sociedade religiosa, 34 LOCKE. John, op. cit., 1965. 35 A respeito dos direitos da consciência, Bayle em suas Nouvelles Lettres aprofunda sua doutrina. Nestas cartas sublinha que o critério da fé, longe de consistir na adequação a uma verdade objetiva, está determinado pelo ato soberano da consciência: “Em matéria de religião, a regra para julgar não está no entendimento, mas na consciência; isto é, é necessário aceitar os objetos não segundo as ideias claras e distintas, adquiridas por um rigoroso exame, mas segundo o que a consciência nos ditar, se ao aceitá-los fizermos o que é agradável a Deus”. Compreendendo que toda ação contra o ditame da consciência é um erro, importa, porém sempre desta maneira reivindicar os direitos da consciência errônea: “Ora, é um pecado incomparavelmente maior agir contra as luzes da sua consciência do que agir contra as leis que se ignoram. [...] Se não somos mais obrigados a agir segundo os instintos da consciência errônea do que segundo as leis da verdade absoluta, que não se conhecem, é evidente que o erro, disfarçado de verdade em nossa alma, adquire o direito de nos levar a fazer as mesmas ações como se a verdade nos orientasse”. BAYLE, Pierre. Nouvelles Lettres de L’auteur de La Critique Générale de L’Histoire du Calvinisme, apud SCHNEEWIND, Jerome B. The Invention of Autonomy: A History of Modern Moral Philosophy. Nova York: Cambridge University Press, 1998, p. 279. Bayle ainda se baseia no direito inalienável que temos de professar a fé ou a religião que quisermos por achar que é verdadeira segundo a pura verdade que julgamos. Em outras palavras devemos saber que é unicamente a consciência que deve orientar nossas ações, pois ela é a luz da verdade presente em nossa alma que nos guia. 36 LOCKE. John, op. cit., 1965, p. 105.

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necessitam ser criadas pelos membros dessa mesma sociedade, ou seja, por aqueles que

decidiram livremente fazer parte dessa organização, por estarem convencidos de que essa é

uma religião salutar. Se por acaso algum membro dessa religião vier, mais tarde, a descobrir

que esse não é o caminho salutar que acreditara ser, a mesma liberdade com que veio a fazer

parte dessa Igreja deve levá-lo a abandoná-la.

Afirmar isso é o mesmo, como já foi dito, que redefinir qual deve ser a atitude da

Igreja em relação ao Estado. Diz Locke:

Digo contudo isto, seja qual for a origem da sua autoridade, porque é eclesiástica,

deve exercer-se no interior das fronteiras da Igreja e não pode de modo algum

alargar-se às questões civis, uma vez que a própria Igreja é absolutamente distinta e

separada do Estado e dos assuntos civis; os respectivos limites estão fixos e

imutáveis.37

Certamente se a Igreja e o Estado se colocarem cada qual em seus devidos lugares,

admitindo com exatidão e assumindo corajosamente suas funções, sejam estas religiosas ou

civis, teríamos aquilo que tão eficazmente Locke pretende: a existência de uma tolerância

social e religiosa.

Esta tolerância depende, como já dissemos, do justo funcionamento, em seus devidos

lugares, dessas duas dimensões que compõem a sociedade, a religião e o Estado. Em se

tratando destes limites expostos que se circunscrevem o que é próprio do Estado e da Igreja,

vejamos agora qual é a finalidade do Estado e da sociedade civil. Para Locke:

“Parece-me que o Estado é uma sociedade de homens constituída unicamente com o

fim de conservar e promover seus bens civis. Chamo bens civis à vida, à liberdade, à

integridade do corpo e à sua proteção contra a dor, à propriedade dos bens externos

tais como as terras, o dinheiro, os móveis etc.38

De acordo com Locke, a natureza do poder civil tende a conservar as leis de um

Estado, a fim de que estas garantam o direito de posse dos cidadãos, assim como patrimônios

materiais como casa, terras, dinheiro, status, riqueza, enfim tudo o que for necessário e 37 Id., ibid., p. 100. 38 Id., ibid., p. 63.

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fundamental na manutenção da vida humana. Como cidadão membro de uma sociedade, cada

um deve ter a liberdade de expressar suas ideias e, sobretudo, suas atitudes religiosas, desde

que estas não venham, em momento algum, a perturbar a ordem pública estabelecida39 pelo

soberano e pelas leis. Em tudo o soberano deve ser respeitado, pois ele representa a vontade

do povo e, consequentemente, está armado com as leis e com a força coerciva, caso uma

reação exterior queira interferir e destruir a ordem do Estado. “O bem público é a regra e a

medida das leis”.40

A frase em questão afirma o que de fato justifica a existência do Estado, e o poder do

magistrado circunscreve-se aos limites das coisas terrenas, daquilo que pode e deve ser

evitado, para que cada um tenha seu direito de humanidade garantido, e para que as pessoas

religiosas não perturbem a paz social.41

1.3 A TOLERÂNCIA COMO LEI EM LOCKE

Além dos limites estabelecidos entre a Igreja e o Estado, Locke fala ainda de uma lei

da tolerância. Se como ele mesmo afirma que para o conflito dos homens há duas saídas, uma

39 No capítulo XI do Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire faz referência ao fato de que cada indivíduo na sociedade deve estar inclinado a obedecer às leis e suas orientações. Cada pessoa pode e com total liberdade seguir os ditames de sua consciência como Bayle afirmou, porém tais ações livres não devem em nada comprometer e perturbar a ordem estabelecida na sociedade. As leis e o soberano devem ser respeitados acima de tudo. Voltaire faz essa reflexão porque quer neste capítulo mostrar os abusos que a intolerância causou. O pensamento religioso por vezes cometeu crimes dos mais terríveis por achar que determinadas convicções religiosas justificavam perseguições de pessoas por sua maneira de pensar. Voltaire ainda atenta neste capítulo para o fato de que por ser a Igreja Católica de origem divina, assim como pretende os católicos, não deve ela reinar pelo ódio e pela intolerância. Se a religião é divina como acreditam estes religiosos, então Deus irá sustentá-la e guiá-la sem a ajuda dos homens. 40 LOCKE. John, op. cit., 1965, p. 106. 41 Locke na Carta Sobre a Tolerância discute longamente o fato de que sejam guiados pela paz e pela tolerância os espíritos daqueles que guiam os homens. A religião por mais ortodoxa que seja não pode guiar os homens pelo ódio e pela vingança. Aqueles que se propõem seguir Cristo e seus apóstolos devem ser guiados não por suas próprias ideias, mas pelo Evangelho. Voltaire no Tratado Sobre a Tolerância afirma: “Se quereis assemelhar-vos a Cristo, sede mártires e não carrascos”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 90.

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pela lei e outra pela força, deve-se compreender com isso que o essencial que está sendo

buscado é o estabelecimento por completo da tolerância. Nada melhor justificaria a separação

dos poderes divinos e humanos se não fosse para remediar tais conflitos.

Estas acusações imediatamente acabariam se se estabelecessem uma lei da tolerância

mediante a qual todas as Igrejas fossem obrigadas a ensinar e a pôr como

fundamento da sua própria liberdade que os outros, ainda que divirjam de si em

matéria de religião, devem tolerar-se, e que ninguém deveria ser constrangido pela

lei ou pela força no campo religioso; estabelecido isto eliminar-se-ia todo pretexto

de querelas e de tumultos em nome da consciência.42

A lei da tolerância proposta por Locke como medida contra os conflitos religiosos

provindos das assembleias privadas é uma ferramenta do Estado, pela qual o magistrado, por

sua autoridade, deve defender a existência da ordem social. O pensamento de Locke em

questão também se direciona não apenas para o problema da tolerância, o que é central, mas

inclusive para a liberdade de pensamento, o que também é fundamental. A sociedade é

composta por uma grande diversidade de pessoas que pensam diferente mesmo em matéria de

religião, não devendo elas ser constrangidas por sua maneira de pensar, mas, ao contrário,

devendo ser sinceras com sua consciência naquilo que diz respeito à religião.

Sobre a liberdade de consciência e do direito inviolável que esta possui, escreve Bayle:

“O pretendido direito de perseguir em nome de uma religião é incompatível com a luz

primitiva e universal que Deus difunde na alma de todos os homens”.43

1.4 BAYLE E OS DIREITOS INALIENÁVEIS DA CONSCIÊNCIA

Em Bayle, encontra-se a defesa dos direitos inalienáveis da consciência errante.

42 LOCKE. John, op. cit., 1965, p. 118. 43 BAYLE, Pierre, apud SCHNEEWIND, Jerome B., 1998.

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Esta consciência certa ou errada deve dirigir os atos dos homens, pois, mesmo quando

aparentemente está errada, ela faz o papel de uma orientação verdadeira. O critério para julgar

o que é verdadeiro em matéria de religião não é a fé nesta ou naquela religião, mas a

consciência. Não são as ideias claras e evidentes que possuo a respeito das coisas exteriores

do mundo que me proporcionam a verdade. Esta depende de minha honestidade para com

minha consciência.

Bayle, em sua principal obra, Commentaire Philosophique, lança luzes e bases para

uma tolerância social segundo a qual cada homem deve apoiar-se em sua consciência como

princípio de ação. Nisso, devemos dizer que nunca a consciência inspirará os homens a

perseguirem-se e torturarem-se uns aos outros, pois isso seria contrário à luz primitiva e

natural que Deus inseriu na alma destes. Bayle, como homem religioso de seu tempo, faz suas

afirmações em matéria de religião considerando a profunda relação entre o divino e o

humano: “Certamente, é um atentado contra os direitos da divindade querer forçar a

consciência”. Além disso, Bayle conclui: “Concluo legitimamente de todos estes princípios

que a primeira e mais indispensável de todas as nossas obrigações é a de modo algum agir

contra a inspiração da consciência, e que toda a ação que é cometida contra as luzes da

consciência é essencialmente má”.44

Ainda no capítulo XI do Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire retoma tal ideia

defendida anteriormente por Bayle afirmando que é a razão então que deve orientar os

homens e fazê-los cumprir o dever de sua pátria. Se para Bayle a consciência é o critério a ser

seguido pela ação humana, para Voltaire é a razão humana como soberana que irá lançar luzes

nas trevas da ignorância humana. Vemos, porém, que tanto num jeito de pensar quanto no

outro, a tolerância é a grande herança que deve ser conquistada, pois dela depende o bom

funcionamento da sociedade.

44 BAYLE. Pierre. Commentaire Philosophique Sur ces Paroles de Jésus-Christ. Paris: Presses Pocket, 1992, p. 292.

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Isso é o que se percebe de interesse entre Voltaire, Bayle e Locke; todos a seu modo,

procuram resgatar valores humanísticos, sem os quais as perseguições religiosas continuariam

a dominar a sociedade civil, sendo os conflitos religiosos inevitáveis. Bayle, assim como

Voltaire, estava advogando contra o fim dos conflitos de religião, apesar de algumas ideias de

Bayle serem tão opostas às de Voltaire, como no caso sobre o que um e outro pensavam sobre

o ateísmo, mas não deixam de defender um mesmo ideal, no que diz respeito à tolerância.

Eram o estabelecimento da tolerância na sociedade e automaticamente o fim da

intolerância religiosa provocada pelo pensamento religioso da época que se propunham esses

grandes homens de letras. Porém, não se pode, é obvio, em muitos aspectos, comparar o

pensamento de Voltaire e o de Bayle.

Por outro viés de pensamento, deve-se sim afirmar que as ideias de Bayle foram

substanciais na formação do pensamento de Voltaire sobre a tolerância. Como já foi

lembrada, neste capítulo, a obra de Bayle, Commentaire Philosophique, é a principal reflexão

do autor que trata e muito dignamente da problemática da tolerância. Embora esta obra só

tenha aparecido poucos meses após a Carta Sobre a Tolerância de Locke, não nos é permitido

afirmar que ela também tenha influenciado o pensamento de Locke sobre a tolerância. Pode-

se afirmar, porém, que, quanto a Voltaire, a situação se torna diferente, pois a Carta de Locke

e as ideias de Bayle sobre a tolerância foram essenciais na formação do pensamento de

Voltaire sobre o assunto. Enfim, precisamos, ao localizar o pensamento de Voltaire, perceber

como ele estrutura sua reflexão a respeito da tolerância.

Se, como afirma Voltaire, a tolerância é um bem a se constituir em sociedade, pois

dela depende o bem da nação e a felicidade das pessoas, devemos afirmar que ele em tudo

busca realizar este projeto. Voltaire tinha interesses políticos pessoais45 e, influenciando o

imaginário social a seu modo, seria exaltado igualmente em consequência disso.

45 Voltaire era desejoso de glória; sempre procurou estar próximo daqueles que tinham influência na sociedade. Sua relação com Frederico, rei da Prússia e também com Catarina da Rússia mostra esse desejo pessoal de

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Deve-se afirmar também que o interesse de Voltaire no que tange ao bom

funcionamento da sociedade, longe das querelas religiosas, era igualmente o mesmo interesse

de Bayle e de Locke. Voltaire, ao defender uma tolerância social, faz isso buscando caminhos

e métodos diferentes de seus pensadores referenciais, porém intencionava contribuir com a

liberdade religiosa e a paz social.

1.5 VOLTAIRE E SEU PENSAMENTO SOBRE A TOLERÂNCIA

Para o maior representante do Século das Luzes, o fim da intolerância religiosa e do

fanatismo devia ser resultado de um pressuposto anterior, no qual cada pessoa devesse

reconhecer que sua natureza humana era sempre constituída por erros e debilidades. Na

concepção voltairiana o ser humano é sempre igual em natureza, em nossa constituição

material, ou seja, aquilo que somos, como pensamos e, sobretudo, como agimos prova nossa

debilidade.

Nossa fragilidade humana, que quase sempre é origem de tantos erros de nossa

conduta, deve, ao mesmo tempo, despertar em nós um coração indulgente por todos nossos

semelhantes que são iguais a nós em natureza, e que, portanto, erram como nós.

A tolerância não pode existir se a ortodoxia do pensamento religioso sobrepor-se à

ideia de que as opiniões de meu próximo são inferiores à minha. Esse pensamento induz não a

uma efetiva liberdade religiosa, ele não inspira a paz, mas é origem de querelas violentas e

dos piores massacres e extermínios por grupos fanáticos. Nesse aspecto, quando Voltaire

Voltaire em se tornar conhecido. Pode-se perceber que até mesmo sua estada na Bastilha, apesar de estar encarcerado, favoreceu o aumento de sua glória, pois até mesmo usou este tempo para realizar seus principais escritos.

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propõe a multiplicidade das seitas religiosas,46 mostrando que isso também é saída para o

estabelecimento de uma tolerância social, expressa igualmente outra ideia implícita, a do

enfraquecimento das religiões naquilo que diz respeito ao possível espírito de dominação de

uma única religião.

A ideia de uma religião como a dominante era simplesmente insuportável na visão de

Voltaire que, por vezes, mostra sua hostilidade pelo poder centralizado, principalmente em se

tratando do poder religioso.47

Voltaire, como já foi afirmado, nunca foi um dogmático no sentido de querer criar um

sistema filosófico fechado, rígido e sistemático. Sua filosofia se constitui a partir de bons

escritos, de boas peças teatrais e panfletos que tiveram por força maior levar as pessoas a

pensarem sobre o momento presente de sua existência.48 Praticamente todas suas obras e

escritos, principalmente as Cartas Filosóficas [Lettres Philosophiques, de 1734] e o Tratado

Sobre a Tolerância, levaram seu público a refletir sobre o mais terrível problema que assolava

as pessoas de seu tempo, isto é, as perseguições religiosas e, consequentemente, as chacinas

que eram realizadas em nome do pensamento religioso da época.

Por outro lado da questão proposta, Voltaire, mesmo não tendo criado um sistema

filosófico fechado no sentido rígido da palavra, não deixa de expressar uma certa ortodoxia

em seu pensamento, pois ele quer levar as pessoas a pensar a seu modo. Sua estratégia é

propor que a razão substitua com sua luz o abismo impenetrável das consciências dominadas

pela violência religiosa, pois não suportava a ideia de ver entre os cristãos tanta disputa em

nome da fé.

46 VOLTAIRE, op. cit., 1956, p. 320. 47 Voltaire não esconde seu ódio implacável pelos representantes da Igreja, o clero, pois segundo o que se percebia era que a maioria destes insistia em manter o povo nas superstições religiosas, não possibilitavam uma visão crítica da religião, mas uma visão unilateral e consequentemente ortodoxa; para um fanático isso era fundamentalmente um meio de odiar ainda mais pessoas de outra religião. 48 Voltaire teria afirmado que devemos sempre partir do ponto em que estamos e daquele que chegaram as nações. Isso mostra que sua filosofia parte sempre de problemas cotidianos, de temas espontâneos que surgem esporadicamente.

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Diante de tudo isso, se existe um dogma ou uma lei rígida defendida por Voltaire, ela é

a da indulgência, no sentido de que possa produzir a tolerância. No Dicionário Filosófico

[Dictionnaire Philosophique, de 1764], no verbete “Tolerância”, Voltaire afirma: “Estamos

todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a

primeira lei da natureza”.49 Ao afirmar a indulgência como lei, Voltaire não se coloca

conforme o espírito cristão, ele não comunga deste compromisso,50 que sem dúvida os

cristãos teriam a obrigação de praticar, pois a indulgência é lei evangélica.

Voltaire, ao lembrar a indulgência como norma51 a ser vivida por todos os homens em

geral, faz isso tendo como intenção enfraquecer os ânimos dos fanáticos religiosos. Ele se

vale de um discurso aparentemente religioso para conseguir tocar e sensibilizar as pessoas que

estavam dominadas pelo furor do fanatismo.

Ainda no verbete “Tolerância”, Voltaire, para mostrar que os cristãos devem em

primeiro lugar inspirar a indulgência por seus irmãos errantes, afirma: “Por que motivo, pois,

nos esganamos quase sem interrupção desde o primeiro Concílio de Niceia?”.52 Esta frase, na

qual Voltaire questiona o ódio interminável entre os cristãos, identifica igualmente a origem

exata da problemática geradora da intolerância religiosa. É exatamente do meio cristão que se

desenvolvia a prática e a força do pensamento fanático, pois estes se achavam cegos em sua

ortodoxia de fé.

Só para reforçar essa ideia, percebe-se que, no mesmo verbete, Voltaire caracteriza os

cristãos como perturbadores da ordem pública em pleno Império Romano, nos primeiros

49 VOLTAIRE, op. cit., 1956, p. 289. 50 Entre os compromissos dos cristãos se destaca o da indulgência. Este compromisso é a disponibilidade em perdoar. Jesus não apenas incentiva o perdão como o destaca como uma experiência ilimitada entre os cristãos, ou seja, eles devem estar dispostos a se perdoarem sempre. “‘Senhor, quantas vezes devo perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete vezes?’ Jesus respondeu-lhe: ‘Não te digo até sete, mas até setenta e sete vezes’”. Mt 18, 21-22. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. 51 No Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire faz referência à indulgência como uma prática que não pode ser simplesmente anunciada, mas vivida com atos concretos. “Nossas histórias, nossos discursos, nossos sermões, nossas publicações de moral, nossos catecismos, respiram todos, ensinam todos atualmente esse dever sagrado de indulgência. Por qual fatalidade, por qual inconsequência desmentiríamos na prática uma teoria que anunciamos todos os dias?”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. XV. 52 VOLTAIRE, op. cit., 1956, p. 277.

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séculos da Igreja primitiva.53 O discurso do perdão, em Voltaire, direciona-se a lembrar

constantemente que os cristãos devem ser os primeiros a viver essa lei, pois ela é uma norma

evangélica ensinada por Jesus.

No Capítulo XXII do Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire fala da obrigação que os

cristãos têm para com a tolerância. A ideia é a de que eles devem tolerar-se e também

perdoarem-se, pois este é um critério fundamental da vida cristã. John Locke, antes de

Voltaire, na Carta Sobre a Tolerância, já havia falado brilhantemente sobre a tolerância

mútua entre os cristãos, afirmando que este deveria ser o critério da verdadeira igreja de

Cristo.

Na visão de Voltaire, muitas religiões e seitas seriam uma das saídas e soluções para o

problema das querelas cristãs, pois a proposta da multiplicidade das seitas religiosas não era

obviamente para exaltar o valor desta ou daquela religião. Voltaire não é cristão e sua

intenção é advogar em favor da tolerância. Seu Tratado Sobre a Tolerância, dividido entre

partes curtas e objetivas, porém de grande habilidade na arte de questionar, se estrutura a

partir de um discurso cujo tema central é a religião.

O apelo que Voltaire faz nesse tratado, sobretudo nos dois primeiros capítulos,

intenciona questionar o povo religioso e intolerante a respeito de suas ideias cegas de

religião.54 Não era diretamente a religião que Voltaire desejava demolir, mesmo embora a

vendo como rival em seu projeto iluminista. Ele também não se colocava contra a fé das

pessoas nesta ou naquela religião; o que com urgência pretendia era substituir o pensamento

53 Os capítulos IX e XIII do Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire falam longamente desta extrema tolerância que povos antigos como os judeus e os romanos tinham pelos cristãos; os cristãos foram os mais intolerantes, pois desejavam que sua religião fosse a dominante. 54 Voltaire se limita no capítulo I do Tratado Sobre a Tolerância a tratar da questão da morte de Marc Antoine Calas. Resumidamente conta o drama desta morte aparentemente conspirada por inimigos desta família e a coloca como tema inicial de sua obra. Deseja mostrar que os direitos da intolerância religiosa são absurdos e bárbaros. No capítulo II tenta, a partir de uma reflexão que leva seus leitores a pensar, mostrar que a condenação de Jean Calas, o pai de Marc Antoine, foi injusta, pois mais uma vez o fanatismo religioso praticava mais um de seus crimes. Desta vez, porém a Justiça de Toulouse, os magistrados, era quem protegia os assassinos por serem da mesma religião.

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religioso de sua época por algo mais humanístico,55 e isso devia ser um projeto liderado pela

razão.

Os conflitos religiosos impediam que o bem físico da sociedade acontecesse. O poder

tirano da mentalidade religiosa conhecia apenas o direito da intolerância. No capítulo XVIII

do Tratado Sobre a Tolerância é lembrado por Voltaire que cumpre aos homens que

comecem por não serem fanáticos para merecerem a tolerância. “Para que um governo não

tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que estes erros não sejam crimes;

eles só são crimes quando perturbam a sociedade a partir do momento em que inspiram o

fanatismo.”56 É justamente o direito e a prática da tolerância que possibilitará à sociedade a

tranquilidade pública. Voltaire identificará essa paz social como sendo um tempo de razão,57

ou seja, é o uso esclarecido dessa razão que levará os homens a respeitarem-se e tolerarem-se

uns aos outros.

É preciso olhar esse tempo de razão, mencionado por Voltaire, como sinônimo de

progresso humanístico e social. É da riqueza humana, da propriedade privada e do aumento

dos bens materiais que ele se refere. Trata-se de uma educação que molde o espírito dos

homens para que possam ser mais livres em suas ideias que Voltaire clama. O verbete

“Tolerância”, de Voltaire, faz referência a esse tempo de progresso econômico no qual

pessoas das mais diversas raças e línguas trabalham com a única finalidade de enriquecerem-

se, a si mesmas, e ao Estado.

55 Com a pretensão de substituir o pensamento religioso da época, Voltaire automaticamente queria implantar seu projeto que era o da razão sobre a ignorância religiosa. Devemos perceber que, ao mesmo tempo em que Voltaire propõe a diversidade religiosa, ele também intenciona como isso enfraquecer o discurso religioso e a própria fé pelo uso único e esclarecido da razão. 56 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 105. 57 Voltaire afirma, no Tratado Sobre a Tolerância, o seguinte a respeito deste tempo de razão: “É, portanto, esse tempo de fastio, de saciedade, ou melhor de razão, que podemos perceber como uma época e uma garantia da tranquilidade pública. A controvérsia é uma doença epidêmica a ponto de extinguir-se, e essa peste, da qual nos curamos, não requer mais do que um regime suave. Enfim, o interesse do Estado é que filhos expatriados retornem com modéstia à casa de seu pai: a humanidade o exige, a razão o aconselha e a política não se pode assustar com isso”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. V, p. 32.

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Na Bolsa de Amsterdã ou de Londres verifica-se que há um relacionamento tolerante

entre as pessoas das mais diversas confissões religiosas: cristãos, islâmicos, judeus, guebros,

baneanos, entre outros. Seus interesses eram comuns: não desejavam pegar nas armas para

angariar prosélitos, mas traficavam unicamente ações, pois o interesse desses grupos era o

comércio e o dinheiro. Esse enriquecimento pessoal contribuiria também para o

desenvolvimento da nação. No que tange à vida social e consequentemente ao Estado,

verifica-se que esse era o interesse de Voltaire, isto é, o progresso de tudo permeava os

setores da vida humana. Nota-se que o contrário de tudo o que Voltaire afirma para o

progresso social está justamente nas práticas fanáticas dos religiosos.

O fanatismo, por sua vez, impedia tudo o que se relacionava com o progresso

humanístico. Ainda há de se perceber, no entanto, que a intolerância religiosa no pensamento

de Voltaire se destaca como um problema vindo unicamente do meio cristão. As mais

drásticas perseguições e mortes lembradas por Voltaire em seu Tratado Sobre a Tolerância

referem-se ao meio cristão. É no universo cristão e não fora dele que Voltaire dedica seu

tempo a falar da intolerância religiosa. As poucas vezes que ele se lembra da intolerância de

outros povos religiosos, como os judeus, por exemplo, é para comparar que a intolerância

destes não era tamanha como a dos cristãos, pois estes sempre desejavam que sua religião

fosse a dominante.

Voltaire descreve no Tratado que nem mesmo o imperador romano era contra a

religião de seus povos dominados, mesmo tendo o direito de sê-lo. Aceitava todos os cultos e

expressões religiosas, porém desejava que todos igualmente respeitassem o culto do Império.

A preocupação do imperador parecia estar voltada para a conquista de novas terras e povos e

também de riquezas materiais, desprezando por completo o proselitismo e a intolerância. Os

únicos casos em que vemos os cristãos serem censurados, conforme o relato de Voltaire é

quando estes conspiram em ser um partido religioso dentro do Estado visando a dominação e

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a imposição de seus dogmas. Sobre isso, Voltaire lembra, no Tratado, que Santo Tomás de

Aquino afirmou que os cristãos só não destronaram o imperador porque não puderam.

Na reflexão de Voltaire, testemunhos58 contra a intolerância dos cristãos é que não

faltam. No Tratado Sobre a Tolerância, Voltaire afirma que de fato os cristãos é que foram

intolerantes com seus irmãos:

Digo-o com horror, mas com verdade: Nós cristãos, é que fomos perseguidores,

carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades,

com o crucifixo na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras,

desde os tempos de Constantino até os furores dos canibais que habitavam as

cavernas, furores que, graças a Deus, não mais subsistem hoje.59

A religião não é o interesse de Voltaire, como já foi afirmado nos capítulos anteriores,

porém sua proposta de implantar a tolerância, para que possa ser aceita, é necessário que seja

sensibilizado o espírito dos homens moldados pelo pensamento religioso. Se isso não for

realizado como um penhor da paz entre os cristãos, então de nada adiantará os mais belos

discursos sobre uma filosofia da tolerância,60 pois, como mostra Voltaire, na maioria das

vezes os cristãos estão mais desejosos em dominar seu semelhante do que aceitar a diferença

de perspectiva religiosa que existe entre ambos.

Voltaire insiste em mostrar que os cristãos parecem não estar inspirados pelo espírito

de Cristo e pelos ensinamentos da Escritura: “A Escritura nos ensina, portanto, que Deus não

somente tolerava todos os outros povos, como tinha por eles um cuidado paterno. E nós

ousamos ser intolerantes?”.61 Ainda no Tratado, capítulo XXII, Voltaire afirma uma mesma

58 Ver o capítulo XV do Tratado Sobre a Tolerância. 59 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. X, p. 58. 60 Sobre esta filosofia da tolerância poderíamos pensar hoje: ela abrandaria os ânimos de todos fanáticos? Seria ela um projeto que mesmo tendo a intenção de ser universal abrangeria a consciência de todos os religiosos dominados pelo fanatismo intolerante? Sobre isso René Pomeau reflete na Introdução do Tratado Sobre a Tolerância: “Que pensar hoje dessa filosofia da tolerância? Dirão que Voltaire dava provas de demasiado otimismo. Diz Voltaire que os costumes se abrandaram, nestes cinquenta anos. Abrandaram-se, certamente, no seio de uma elite europeia, mas bastante estrita: muitos acontecimentos posteriores mostrarão que o movimento era menos extenso e menos profundo do que se julgava. Não se pode ler sem um aperto no coração a página em que ele anuncia que a Irlanda povoada e enriquecida não verá mais ‘católicos e protestantes matarem-se uns aos outros’ (cap. IV)”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. XXXII. 61 Id., ibid., p.77. Ver também LOCKE, John, op. cit., 1965, p. 89.

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ideia antes já explorada por John Locke, na Carta Sobre a Tolerância, ao dizer que todos os

cristãos devem tolerarem-se uns aos outros, pois são criaturas do mesmo Pai. O discurso de

Voltaire aqui é novamente apelativo, pois ele não se colocava em harmonia com esta fé cristã.

Sua fala, neste sentido, sempre apelando para o emocional de seus leitores, desejava mais uma

vez mostrar que os direitos da intolerância serão para todo sempre um absurdo. No capítulo

XIV do Tratado, Voltaire diz: “O espírito de intolerância deve estar apoiado em razões muito

más, já que por toda parte busca os menores pretextos”.62

Diante de tudo isso, do abuso que a intolerância religiosa produz no espírito das

pessoas necessitou concluir que ela se apóia nas piores razões desumanas para justificar-se.

Voltaire, no capítulo XIV do Tratado, ao refletir se Jesus Cristo ensinou a intolerância, afirma

que o espírito perseguidor abusa de tudo e se camufla diante de pretextos religiosos para

perseguir as pessoas. Após uma profunda reflexão sobre os direitos insanos da intolerância, no

referido capítulo, ele afirma: “Pergunto, agora, se é a tolerância ou a intolerância que é de

direito divino? Se quereis vos assemelhar a Jesus Cristo, sede mártires e não carrascos”.63

62 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. XIV, p. 86. 63 Id., ibid.

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2 A INTOLERÂNCIA DO PENSAMENTO RELIGIOSO EM VOLTAIRE

Pretende-se neste capítulo, a partir do relato da morte de Jean Calas, mostrar que este

atentado fora fruto do fanatismo e da intolerância religiosa. Não cabe nesta reflexão julgar ou

identificar qual partido religioso foi o autor do crime, católico ou protestante, embora isso já

pareça evidente no relato, mas deseja-se analisar essa morte como consequência de uma

intolerância produzida pelo pensamento religioso da época de Voltaire. Este estudo terá como

referencial o primeiro capítulo do Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire, uma vez que ele

trata aí mais detalhadamente deste assunto. As ideias aqui apresentadas sobre fanatismo,

tolerância e intolerância se limitam a serem conceitualizadas somente no contexto e universo

voltariano e não fora dele, considerando que muito se falou e ainda se fala o mesmo desse

assunto quase três séculos depois de Voltaire.

2.1 O AFFAIRE CALAS

Para uma melhor análise e compreensão do leitor a respeito do destino do assunto

atual faz-se necessário o relato do acontecimento sobre a morte de Jean Calas:

Jean Calas comerciante de tecidos jantava com sua família. Junto com ele, sua

esposa, seu filho, sua empregada e um amigo chamado Gaubert Lavaisse. Este

jovem viera de Toulouse e pertencia também a uma família de protestantes. Após a

refeição, o filho mais velho, Marc Antoine, deixa-os na sala de jantar e

provavelmente sai pela rua para dar uma volta como está habituado. Mais tarde, por

volta das 09h e 30 minutos da noite, o jovem Lavaisse se despede da família Calas

para ir embora, e o irmão mais novo de Marc Antoine, Pierre Calas, acompanha-o

descendo a escada de vela na mão. Chegaram à parte térrea do apartamento, dentro

da loja da família Calas, e foram surpreendidos pela mais triste cena: avistaram, na

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loja, Marc Antoine morto jogado ao chão. Sua morte possuía aspecto de

estrangulamento; no pescoço trazia marcas de corda. Diante da triste cena, sem

conter a emoção, a família toda se desespera aos prantos. Como não podiam deixar

de serem ouvidos, os vizinhos aparecem todos, para observar o motivo de tamanha

angústia. Quando as pessoas percebem o ocorrido, imediatamente surge, em meio à

multidão, um julgamento precipitado: crime calvinista, ou pior, se tratava de um

parricídio.

Em meio ao desespero da família Calas, Pierre Calas e seu amigo Lavaisse

foram desesperados em busca de socorro médico e da Justiça. Com a chegada do

investigador de policia, David Beaudrigue, este parece contentar-se com a versão

que ouvia provinda da populaça, a de que Jean Calas e sua família haviam

assassinado seu filho Marc Antoine. Naquele momento de tumulto e desespero, a

multidão religiosa e fanática parece que já havia pronunciado a sentença de morte de

todos da família Calas, sem piedade. Todas as pessoas que estiveram na casa durante

a noite da morte de Marc Antoine foram levadas como suspeitas à prisão: Jean

Calas, sua esposa, sua empregada católica, Jeanne Vaguière e Pierre Calas, o filho

mais novo do casal.64

Eis o relato sobre o qual se deterá nossa análise e estudo. Percebe-se, logo de início,

que tal história refere-se a um crime de disputa religiosa, e muito mais que isso, de

perseguição e intolerância contra opiniões religiosas diferentes. Por se tratar de um caso

ligado à religião, é preciso analisar diretamente como Voltaire concebe a religião: “Mes

frères, La religion est La voix secrete de Dieu qui parle à tous les hommes ”65.Verificaremos

isso também na frase a seguir: “O abuso da religião mais sagrada produziu um grande crime, é

portanto do interesse do gênero humano examinar se a religião deve ser caridosa ou

bárbara”.66

A frase de Voltaire em questão impõe a todos aqueles que leem tal relato a

necessidade de uma verificação a respeito da natureza e do objetivo da religião, ou seja, qual

deve ser seu papel na sociedade. Seria o de salvar ou condenar as pessoas por suas convicções

religiosas? A religião, por sua natureza, está sempre inclinada a ser um instrumento de guia

64 Id., ibid., p. 3. 65VOLTAIRE. Sermon des Cinquante, XXIV, 438. 66 Id., ibid., p. 13.

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espiritual do homem religioso, tendo como finalidade a salvação de sua alma.67 Na medida

em que ela deixa de cumprir seu dever de cuidar da salvação das almas, distancia-se de seu

princípio e não tem mais autoridade no que faz. Na concepção de Voltaire, a religião é vista

como um instrumento que pode auxiliar o cidadão a cumprir seu dever social, não que com

isso ela seja necessária, mas se existir que seja útil ao Estado. A religião não pode se colocar

como a juíza dos destinos históricos dos homens, pois cada um deve se guiar pela razão. Se

existe uma autoridade suprema além da razão, então essa é o déspota esclarecido,68 pois, para

Voltaire, este seria a autoridade máxima do Estado e não a religião. No caso do cristianismo,

os cristãos devem seguir os passos de seu mestre Jesus Cristo, que bem pregou a caridade, a

tolerância e o amor entre todos os homens; devem seguir os valores que o Evangelho

apresenta, pois disso depende a salvação das almas. Verifica-se que os cristãos tendem para

uma vida na qual as pessoas estejam sempre a favor da paz e nunca da guerra ou das

perseguições, pois o princípio é a reconciliação e não divisão. Em concordância com esta

ideia cristã, Voltaire afirma: “Não é preciso uma grande arte, uma eloquência muito

rebuscada, para provar que os cristãos devem tolerar-se uns aos outros”.69 É, portanto, diante

do Caso Calas (Affaire Calas) que se deve confrontar o papel exercido pela religião, pois,

como se percebe, a morte de Jean Calas fez com que o povo de Toulouse, assim como alguns

dos magistrados, pensassem no crime que também haviam contribuído para que acontecesse.70

67 LOCKE. John, op. cit., 1965, p. 4. 68 O déspota esclarecido é a imagem do monarca que governa o povo com base na justiça concedendo sempre aos súditos a segurança, a tranquilidade e a paz. Voltaire mesmo desejando em seu tempo combater implacavelmente a monarquia, seja civil ou religiosa, defende por um outro lado um governo esclarecido. Em História de Carlos XII, ele faz referência ao czar Pedro, o Grande, de governo justo e dedicado para com o povo; um déspota que mesmo analfabeto não foi tirânico com seus subordinados, mas que lhes possibilitou a educação e os bons costumes. Voltaire afirma neste relato: “Civilizava seu povo, e era selvagem”. Pode-se perceber igualmente ao exemplo acima citado que Voltaire tem preferivelmente como modelo de déspota esclarecido o rei da Prússia, Frederico, e Catarina II, com quem cultivou grande amizade. VOLTAIRE. Seleções. Volume XXXII. Tradução de J. Brito Broca. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: M. W. Jackson, 1950. A respeito deste mesmo tema, despotismo esclarecido, para refleti-lo no contexto do século XVIII, ver NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Voltaire: A Razão Militante. Coleção Logos. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 41. 69 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 121. 70 Na época de Voltaire o fanatismo, a superstição e a intolerância religiosa eram situações e práticas comuns na sociedade. A luta empreendida por ele foi a resistência da razão contra tais infâmias sociais que cegavam os

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2.2 A MORTE DE MARC ANTOINE: CRIME PREMEDITADO?

Antes de tentarmos identificar quais foram as maiores causas do crime cometido

contra Jean Calas, faz-se necessário refletir sobre o crime anterior, a morte de seu filho Marc

Antoine.71 A morte deste jovem melancólico e taciturno, como o próprio relato de Voltaire

confirma, mostra ao leitor a possibilidade de um crime religioso, de fundo político. O

catolicismo ainda nesta ocasião ousava arrogar para si o poder de perseguir todos aqueles que

não estivessem de acordo com seus dogmas. É verdade também que, por muitas vezes, essa

mesma religião cristã perseguiu pessoas e justificava tais crimes em nome da fé.72 Percebe-se

que duas ao menos eram as intenções da religião: por um lado desejava salvar a alma dos

homens e, de outro lado, desejava continuar mantendo seu domínio de poder sobre as

consciências.

O jovem Marc Antoine se matou e sua morte deve ser analisada diante desse conflito

religioso em que católicos e protestantes digladiavam-se em nome de dogmas e opiniões

religiosas diferentes. O suicídio deste jovem, a causa de sua morte, está na intolerância

cometida contra sua liberdade de escolha religiosa. Sua intenção era a de ingressar na

magistratura, porém, como era protestante, isso se tornava um empecilho para ele. Se a causa

dessa morte tivera como origem a lei antiprotestante73 e tudo o que dela resultou, deve-se

concluir deste caso uma evidente perseguição unicamente religiosa. Esse crime, em primeira

homens e os impossibilitavam de serem livres, pois a religião os dominavam, fazendo católicos e protestantes digladiarem-se em querelas intermináveis. 71 Marc Antoine era o filho mais velho de Jeans Calas aquele que na noite de 13 de outubro de 1761 suicidou-se em Toulouse na França. Sua morte constituiu em um dos maiores motivos para que a população fanática pedisse a morte de seu pai, Jean Calas. 72 Este versículo se refere à Inquisição, tribunal da Igreja Católica responsável por investigar e condenar todos aqueles que cometiam crimes contra a fé católica. Os crimes aqui cometidos eram justificados, pois pensavam os inquisidores que estavam fazendo um grande bem às almas daqueles infelizes e heréticos, livrando-os da condenação eterna. 73 Com a revogação do Édito de Nantes em 18 de outubro de 1685, Luís XIV obriga que todos os protestantes se convertam. Após tais conversões os protestantes são tidos como católicos novos. Como todos deveriam ser católicos, pois este era o desejo político do rei, então se estabelece com isso leis antiprotestantes.

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instância, expressou uma curiosidade: a de que as acusações pareciam infundadas. O pai não

podia ser o autor do crime como a população e a Justiça parecem ter intuído. Jean Calas, pela

sua conduta de vida, sendo um homem que, como Voltaire atesta, tinha aceitado sem maiores

transtornos até mesmo a conversão de um de seus filhos ao catolicismo, mantinha como

empregada uma funcionária católica há anos e isso nunca pareceu um obstáculo para ele.

Estas são as intuições, pelo menos as suposições, que alguém podia fazer diante daqueles

fatos. Por outro lado, diante da morte de Marc Antoine, a população fanática parecia não

abandonar a ideia de que, de fato, o pai havia matado seu filho, o que, na opinião de Voltaire,

era antinatural.

O desfecho desse crime terá sua maior expressão não na justiça que deveria se fazer

em favor dos Calas, mas na convicção enganosa do povo religioso, violento e intolerante. A

morte de Marc Antoine provoca inevitavelmente outro crime: a condenação à pena de morte

de seu pai Jean Calas.

Sabe-se que a tolerância é um elemento fundante e essencial no empreendimento feito

por Voltaire em favor da defesa dos Calas, ou seja, esta causa é advogada com base na justiça

que precisava ser feita ao inocente pai acusado de assassinato. Por outro lado, também, em se

tratando dessa tolerância a que merecia Jean Calas, é possível que os fanáticos, em algum

momento, desejassem agir tolerantemente diante de um caso tão delicado, no qual a vida de

alguém não tinha a menor defesa em seu favor. Diante da suposta possibilidade do pai ter

assassinado seu filho, era necessário um julgamento, mas não por parte do povo fanático, e

sim do Tribunal de Justiça de Toulouse e da própria razão, que, naquele momento, deveriam

zelar pela humanidade.

Voltaire, no relato da morte de Jean Calas, arquiteta sua reflexão e usa de mais uma

estratégia, mostrando que esse crime é de origem religiosa. No capítulo II do Tratado, afirma:

“Se os Penitentes Brancos foram a causa do suplicio de um inocente, da ruína total de uma

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família, eles e os juízes devem chorar, mas não com uma longa túnica branca ou máscara que

ocultaria suas lágrimas”.74 Sabe-se que os crimes de origem religiosa, nessa época, eram

frequentes e normalmente a ignorância das consciências superava muito facilmente o êxito

que a razão pudesse apresentar. Por outro lado, considerando a gravidade dos crimes

cometidos em matéria de religião é preciso ainda notar se Voltaire, ao defender o Caso Calas,

não se utilizava de mais uma de suas estratégias geniais, para realizar seu plano pessoal, que

era o de relativizar e enfraquecer o papel da religião pelo culto à razão.75 Seja como for, era a

égide da lei, com base na razão e não na religião que, naquele caso, deveria esclarecer as

causas do crime, fazendo justiça em favor de uma família inocente.

O julgamento de Jean Calas fora, de início, realizado pela populaça fanática e

intolerante.76 Tais opiniões, por parecerem mais evidentes, uma vez que se tratava de um

público intolerante, apressara a condenação daquele inocente. É, portanto, à frente da opinião

pública,77 um público de supersticiosos e violentos em matéria de religião, que a sorte ou

condenação desse homem se coloca. Em meio à pressão de uma população odiosa de seus

irmãos de outra religião, o sucesso do fanatismo esgotou qualquer possibilidade de se exercer

a razão como caminho para uma possível tolerância. Assim, era tamanho o erro que cometiam

que nem mesmo alguns juízes puderam lutar em favor da verdade dos fatos, pois muitos 74 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. II. 75 O iluminismo francês ou ilustração do século XVIII foi um movimento ideológico que teve como expressão essencial o discurso racionalista, ou seja, desejava-se por meio da razão humana dar respostas a todas as dúvidas do gênero humano. Salinas Fortes em O Iluminismo e os Reis Filósofos fala desta época ilustrada onde a razão se colocava como deusa no processo de reger o desenvolvimento histórico dos homens. Essa ideia de legitimar a razão como a única capaz de instruir os homens no caminho da verdade faz surgir a noção e a prática do culto à razão (NASCIMENTO, Maria da Graças do, op. cit., 1996, p. 6). Voltaire no Tratado Sobre a Tolerância afirma que “a razão esclarece lenta, mas infalivelmente os homens”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 30. 76 O ambiente da antiga França, no século XVIII, era constituído por uma população religiosa supersticiosa, violenta e intolerante com pessoas de outra religião; sobretudo na província – como era o caso de Toulouse. Voltaire no Tratado Sobre a Tolerância se refere a isso dizendo que em Paris a razão prevalece sobre o fanatismo, enquanto que na província é o contrário que acontece (VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 12). Jean Calas foi vitima desse pensamento intolerante e sua condenação tornou-se inevitável por que fora julgado por pessoas tomadas pelo fanatismo religioso. 77 Esta opinião pública se baseava no pensamento religioso da época; ela provinha dos religiosos fanáticos que viam como monstros seus irmãos de outra religião. Pode-se destacar neste âmbito religioso político que a religião se arrogava no direito de atormentar os homens por suas crenças contrárias à religião dominante. No imaginário religioso dos habitantes da Toulouse do século XVIII, estava impressa a ideia de que os protestantes calvinistas deviam morrer, pois eram heréticos e todos estavam condenados à danação eterna. Ver na Introdução do Tratado Sobre a Tolerância, o comentário de René Pomeau sobre esta ideia de opinião pública.

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também estavam cegos com a política antiprotestante. Esses eram unânimes em pensar como

os fanáticos e julgavam que Jean Calas devia morrer.

É preciso destacar e reafirmar a ideia de que o fanatismo não atingira somente a

populaça iletrada, mas também os juízes e magistrados diretamente. A apuração da morte de

Marc Antoine levara não à verdade do ocorrido, mas à condenação, em princípio, de toda a

família Calas. Os magistrados de Toulouse se reuniam diariamente para solucionar a questão

de condenar ou não o acusado. Dos treze juízes que investigavam o caso, oito foram

favoráveis ao suplício da roda para o acusado, enquanto cinco foram contrários à condenação.

As leis e sua execução dependiam dos juízes, porém, no lugar da justiça e da verdade

era o julgamento religioso equivocado que sentenciava como devia ser a pena para Jean Calas.

A pergunta que se colocava diante do tribunal erigido para zelar pela justiça e a verdade era a

seguinte: esse inocente teve oportunidade de se defender como réu de uma acusação

infundada, ou seja, concederam a ele liberdade de expressão diante de uma acusação sem

provas? Vê-se que tal atitude dos magistrados em condenar alguém com base em uma mera

suposição demonstrava mais uma vez a fragilidade daqueles que executavam as leis, isto é,

suas atitudes se fundamentavam no terreno frágil do poder religioso político. Esse poder não

tinha a mínima intenção de prezar pela liberdade de consciência e muito menos pela liberdade

religiosa; sua imposição se assemelhava mais à intolerância em vez da justiça que deviam

realizar em favor de muitos inocentes.

Se tolerância diz respeito à ideia de privilégio da humanidade, como afirma Voltaire,

então, o que se poderia compreender daquelas atitudes dos juízes em não conceder a um

acusado o direito de se defender e torturá-lo até a morte? Tudo o que se pode compreender a

partir de atitudes como aquelas é que, mais uma vez, vidas humanas estavam entregues a mais

espessa barbárie de uma religião que espalhava o medo e a perseguição.

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Dois éditos78 não foram suficientes para implantar a paz religiosa justamente porque

eram opostos. A fatalidade da morte de pessoas inocentes pela crueldade e intolerância

deveria, no entanto, questionar cada vez mais a ortodoxia religiosa a respeito da necessidade

de uma tolerância.

2.3 OS MAGISTRADOS DE TOULOUSE

No tribunal de Toulouse, a sentença de morte contra Jean Calas aparentava estar

apoiada em razões de crime calvinista. É preciso destacar que esse suposto crime fazia parte

de um julgamento precipitado da parte do povo religioso e dos juízes de Toulouse. Aqui, as

vantagens de um pensamento religioso equivocado encontravam mais uma vez forças para

manipular e esconder a verdade. A esse respeito, Voltaire afirma: “Os juízes favoráveis ao

suplício de Jean Calas persuadiram os outros de que este velho fraco não poderia resistir a

tormentos e de que confessaria, sob golpes do carrasco, seu crime e seus cúmplices”.79 Neste

relato, fica claro mais uma vez o interesse dos juízes, pois queriam a maioria deles convencer

os demais a pressionar moral e psicologicamente Jean Calas a confessar um crime que não

havia cometido. O interesse era o de que mais uma vez a religião protestante fosse digna de

pena e perseguição. Alguns juízes que trabalhavam na investigação deste caso faziam parte do

grupo fanático de Toulouse. Voltaire afirma: “Alguns magistrados faziam parte do grupo dos

78 Em 13 de abril de 1598, Henrique IV põe fim às guerras de religião pelo Édito de Nantes. Aqui a liberdade de culto é garantida aos protestantes sob certas condições. Porém quase cem anos depois Luís XIV revoga esse édito, assinando o Édito de Fontainebleau; pensava ele que iria vencer as últimas resistências dos protestantes. René Pomeau se refere a este fato na Introdução do Tratado Sobre a Tolerância, falando do fracasso dessa revogação. 79 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 13.

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Penitentes Brancos”.80 É muito claro, nesse caso, como reflete o próprio Voltaire, no Tratado,

que aqueles juízes julgavam um caso e o sentenciavam com base em uma força que não era a

da justiça verdadeira, mas a da política religiosa contra os ainda não “católicos novos”. Jean

Calas era protestante e sua religião foi seu principal motivo de morte. Era notável que a força

das leis antiprotestantes81 se fazia sentir, desde as atitudes do povo supersticioso, passando

pelos púlpitos e altares, até os salões dos tribunais. Verifica-se, inclusive, ainda como

resquícios do Édito de Fontainebleu, que o julgamento contra aquele inocente suscitou ainda

mais a possibilidade de novas perseguições entre católicos e protestantes.

Voltaire advogou o Caso Calas tendo em vista a intenção de modificar a situação

daquela família. Além disso, essa luta desejava conferir um grau maior de autonomia às leis

civis que, por muito tempo, esteve influenciada pelo pensamento religioso. O resultado dessa

perseguição do poder civil e religioso contra a família Calas levou aquele pai a ser morto após

o suplício da roda, representando para o povo de Toulouse o maior ato de glória a Deus. Era

também mais um grande motivo para comemorarem a festa anual.82 Nesse ambiente da cidade

de Toulouse, morte e crimes contra protestantes eram cometidos como uma reação

absolutamente normal, ou seja, matar alguém, que estivesse contrário à religião dominante,

por sua convicção de fé, era um ato de honra a Deus, pois pensavam que purificariam por

meio da morte aqueles que já estavam condenados à danação eterna.

Cabe a nós, leitores e estudantes de um caso tão singular como este, questionar onde

se encaixa a tolerância. Qual deveria ser a atitude de um tolerante frente a tal caso? A

80 Id., ibid., p. 7. 81 A política antiprotestante esteve em alta na gestão política de Luís XIV, sobretudo após a revogação do Édito de Nantes, quando protestantes foram ainda mais perseguidos: eram convertidos à força, seus casamentos não tinham validade civil, seus filhos eram tidos como bastardos, não podiam ter acesso a determinados cargos públicos. Marc Antoine fora vítima dessa lei quando quis ingressar na carreira da magistratura como advogado. Esbarrou neste empecilho, pois não tinha certificado de catolicidade, sendo lhe vedada qualquer possibilidade. 82 Esta festa era comemorada anualmente em Toulouse onde católicos vangloriavam-se de terem assassinado mais de quatro mil protestantes, no passado. Naquele ano em que Jeans Calas foi levado ao suplício da roda, os religiosos de Toulouse iam comemorar o bicentenário desta festa e seria, diziam eles, uma ótima oportunidade de a ornamentarem com a imolação de Jean Calas.

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tolerância por sua vez salvaria a vida daquele infeliz, Jean Calas? E se salvasse resolveria o

problema das querelas religiosas83 e guerras civis entre tais facções religiosas?

Entende-se com isso que a tolerância é um desafio não somente para obtê-la como

prática de vida, como também compreendê-la como virtude moral entre nós humanos. Se

devemos viver entre valores éticos que nos ajudem a construir a paz social e preservar o bem

físico e moral desta sociedade, então a tolerância se apresenta a nós como uma prioridade

nesta escala de valores, pois ela justifica por sua própria natureza, o interesse das nações.84

2.4 A IDEIA DE TOLERÂNCIA EM VOLTAIRE

Sabe-se que tolerância se refere ao princípio de liberdade religiosa85em seu conceito

mais antigo, e também a de “privilégio ou apanágio da natureza no pensar de Voltaire”.86 No

verbete “Tolerância” Voltaire afirma que devemos ser indulgentes com nossos irmãos

errantes. Se somos de fato constituídos por acertos e erros, esses erros devem nos mostrar não

somente o desastre de nossas atitudes, mas um caminho para superá-los, sem perseguições ou

torturas.

Seja como for, quando ligamos essa noção de tolerância ao fato ocorrido contra Jean

Calas, não se percebe naquela ação violenta a menor intenção de respeitar alguém que

pensava diferente em matéria de religião. Nem mesmo o protesto contínuo em favor da

83 Lutas religiosas, brigas e disputas entre facções confissões religiosas diferentes; desde a reforma no século XVI, as querelas foram quase que frequentes entre católicos e protestantes; Na época de Voltaire essas ainda eram em grande número. A família Calas fora vítima dessas querelas que ainda persistiam no ambiente da antiga França. 84 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. IV, p. 27. 85 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1960, p. 924. 86 VOLTAIRE, op. cit., 1956, p. 317.

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inocência conseguiu sensibilizar as estruturas do poder religioso e civil de seu tempo. Mesmo

diante das torturas mais terríveis as quais foram submetidas, nota-se que a intolerância foi a

sentença final. Assim, a religião equivocada cometia mais uma vez um de seus maiores

crimes. Esse acontecimento, o Caso Calas, que marcou a época do iluminismo francês do

século XVIII, foi um verdadeiro testemunho contra a intolerância religiosa, cabendo a

percepção de que fora um desafio na época de Voltaire e que ainda subsiste como um

obstáculo a ser superado na sociedade do século XXI.

Não temos mais as torturas nas rodas; a Inquisição como instrumento de julgamento

contra os hereges também deixou de existir, porém na atual conjuntura, encontramos

inúmeras situações nas quais a religião esquece-se de sua função de “salvar os homens”, para

enganá-los por meio do proselitismo religioso e das propostas de curas milagrosas que mais

enganam do que oferecem saídas para possíveis problemas. Seja como for, o lendário Caso

Calas representa também para a sociedade atual um grito a favor da liberdade contra todas as

estruturas políticas e religiosas que tentam sufocar aquilo que é mais sagrado no ser humano,

sua liberdade de consciência.

É claro que a religião, em cada momento da sociedade, assume as mais diversas

características. Naquele tempo, a religião se arrogava, muito mais do que hoje, no poder de

dominar as consciências. Atualmente, percebe-se um grande relativismo religioso, o que

enfraquece um pouco as religiões, mas, mesmo assim, a intolerância se faz presente no cerne

do pensamento religioso. Se não temos mais mártires, mortos queimados em fogueiras,

torturas nas rodas e suplícios, temos a intolerância camuflada que se coloca como um monstro

tão funesto como nos tempos antigos.

Cada religião vê em seus dogmas, sua doutrina, o verdadeiro caminho para a salvação

das almas. Atualmente, neste ambiente secularizado, é impossível viver pacificamente entre

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as religiões sem a atitude do respeito, pois é por meio dele que também se pode obter um

pouco de tolerância.

Foram muitas as vítimas ocasionadas por conflito de religião; as convicções religiosas

eram motivos de aumentar ainda mais os crimes e perseguições. No capítulo IV do Tratado

Sobre a Tolerância, Voltaire afirma: “Não falo aqui senão do interesse das nações; e

respeitando a teologia como devo, considero neste artigo apenas o bem físico e moral da

sociedade”.87 É verdade que sua ideia de tolerância se inspira nos costumes ingleses no qual

todas as religiões viviam pacificamente. Ele chega a afirmar: “Na Inglaterra se vai para o céu

pelo caminho que bem desejar”.88 No verbete “Tolerância” também afirma a necessidade

desta, pois praticá-la é zelar pelo bem do Estado e pelo interesse comum de todos. O contrário

desta ideia é, como já vimos, a barbárie e a intolerância.

2.5 SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Diante da reflexão estudada a respeito da tolerância,89 que sempre tenta traduzir a

intolerância como um mal ao ser humano para sua vida em sociedade, deve-se notar ainda que

a religião, quando não submetida à prudência da razão, continua produzindo seus crimes

incontáveis como fizera no passado. As querelas religiosas sempre existirão se a tolerância

não for uma expressão universal dos homens no desejo de construírem juntos a paz neste

87 Id., ibid., 2000, cap. IV, p. 27. 88 VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 20. 89 A reflexão a que referimos se trata do interesse pessoal de Voltaire em submeter a ignorância humana ao regime esclarecedor da razão. Uma nova civilização se fazia necessária, mas para que isso pudesse acontecesse era necessário estabelecer como prioridade nesta luta pelo interesse da sociedade. Por interesse social daquele momento podemos pensar no fim das perseguições religiosas e no direcionamento da sociedade para um efetivo crescimento intelectual, moral e material. Era preciso enriquecer a nação, porém isto só seria possível se a liberdade religiosa e a tolerância existissem.

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mundo. A razão, segundo Voltaire, foi dada ao homem para que ele agisse e essa ação supõe

respeito e tolerância pelas opiniões diferentes, inclusive as religiosas. Voltaire acredita que o

homem não necessita de religião, pelo menos não o individuo virtuoso; os fracos sim

precisam dela: “ Aqueles que necessitam de socorro da religião para serem pessoas honestas

seriam lastimáveis, e monstros da sociedade, se não encontrassem em si próprios os

sentimentos necessários a essa sociedade, obrigados a buscar alhures o que deve ser

encontrado em nossa natureza”.90

Para Voltaire, o problema a ser resolvido não era o de eliminar por completo a

religião, embora esta para ele não fosse necessária, mas sua intenção seria sanar os crimes

provindos dela, substituindo-os por um pouco mais de luz em meio às trevas da ignorância

humana. O Caso Calas foi um acontecimento na história da França não muito diferente ou de

maior impacto do que muitos outros que também resultaram em mortes incontáveis.91 Nota-

se, porém, que esse caso tornou oportuna a ideia da campanha de uma tolerância universal,92

afinal é essa a intenção da campanha panfletária que Voltaire empreendeu, procurando

sensibilizar a opinião pública a respeito do crime cometido contra Jean Calas. Era preciso

urgentemente que, em uma época como aquela, ilustrada, a razão se fizesse valer sobre as

perseguições produzidas pelo domínio da religião.

90VOLTAIRE. Traité de métaphysique. Paris: Gallimard, 1961, p. 175. ( Bibliothéque de La plêiade). Pg.202. A esse respeito, da independência do homem em relação a Deus, conferir também em: POMEAU, René. La religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1995.Pg. 229. 91 Esses outros acontecimentos de ordem religiosa e violenta que a França conheceu podem ser notados, por exemplo, no episódio da chamada Noite de São Bartolomeu em 24 de agosto de 1572, quando o rei Carlos IX encorajado por sua mãe Catarina de Médici, desencadeia em Paris e nas províncias a morte de centenas de protestantes. Este acontecimento pode ser compreendido também como intolerância religiosa de ordem política. 92 Por tolerância universal na concepção de Voltaire pode-se perceber que ele não fala isso tendo a intenção de cristianizar o universo. No capítulo XXII do Tratado Sobre a Tolerância, ele afirma que os cristãos devem tolerar-se uns aos outros, pois são filhos de um mesmo Pai. Sabe-se que esta fala de Voltaire tinha como intenção sensibilizar a consciência dos fanáticos para que deixassem a ignorância de lado e aderissem definitivamente ao interesse da sociedade. Voltaire deseja implantar na mente das pessoas um interesse que vai além do discurso e das atitudes cegas da religião. Ele pretende que cada cidadão contribua para o bem de sua pátria e que cada um se mantenha longe dos conflitos religiosos, pois somente assim, sem violência e com mais liberdade pessoal, cada um pode ser feliz e fazer os demais felizes. Este processo de emancipação do ser humano pretende atingir toda sociedade e consequentemente o universo.

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O pessimismo de Voltaire em relação à estrutura da Igreja Católica de seu tempo era o

de que, segundo ele, suas autoridades insistiam em manter seus fiéis na ignorância,

significando uma subordinação que impedia a liberdade de pensar e produzia,

consequentemente, a violência contra vidas inocentes. Esses fatos a respeito da violência

produzida pela intolerância religiosa nos fazem entender sempre que a religião era a causa de

tantos males. Se de fato a religião não fosse criminosa e orientada pelo erro, a vida daquele

inocente pai acusado de matar seu filho poderia ter sido poupada, porém ainda era cedo para

que a razão sensibilizasse os corações intolerantes. A religião enganada mais uma vez tentava

salvar a alma de alguém, ou seja, praticar um bem, porém não percebia que esse bem

resultava num mal muito maior a si e aos outros.

O capítulo IV do Tratado Sobre a Tolerância nos faz perceber que os bons costumes e

a mansuetude da natureza humana devem sempre produzir a paz e nunca a guerra. Com isso,

se nota que as revoltas e assassinatos, as perseguições e as torturas, sejam da família Calas ou

de qualquer outra, geraram muito mais perseguições. Essa reflexão do bem que produz outro

bem e do mal, que gera, por conseguinte, outros males, deve ser um pensamento óbvio93 para

todos os cristãos. Desse pensamento destacam-se dois pólos contrários e que dizem respeito

ao presente estudo, a tolerância e a intolerância.

O simples pensamento a respeito da tolerância supõe levar em conta que estamos nos

referindo a uma oposição de pensamento religioso. Por outra perspectiva, pensar em

intolerância ou desejar praticá-la significa que o limite da prudência e do respeito foi ferido e

que, inevitavelmente, as perseguições se tornam uma possibilidade concreta, pois faltou o que

nos é principal, a tolerância. Somente para reforçar essa ideia do respeito, quando é violado,

relembro o que já disse em páginas anteriores a respeito de Jean Calas.

93 Voltaire ao advogar a causa dos Calas luta primordialmente contra o pensamento fanático dos católicos. Por várias vezes no Tratado ele expressa sua indignidade e incompreensão a respeito de como os cristãos se propunham seguir Jesus Cristo tendo ao mesmo tempo atitudes tão bárbaras. No capítulo XXII do Tratado, sobressai a afirmação de Voltaire dizendo que os cristãos devem suportar-se uns aos outros. Ainda no capítulo XIV do Tratado, ele afirma que ao imitar Jesus Cristo os cristãos precisam ser mártires e não carrascos.

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O suposto crime pelo qual Jean Calas fora julgado pelo viés da intolerância religiosa.

O próprio relato apresenta esse crime evidenciando as inúmeras intrigas religiosas entre

católicos e protestantes. Em um primeiro momento, para estabelecer as provas de que fora

mais um crime de matéria religiosa, deve-se perceber que a antiga França era fruto do

catolicismo tradicional. A mentalidade religiosa era a mais servil e provinciana possível, pois

muitos de seus fiéis eram pobres e analfabetos espalhados pelas aldeias.

Diante da morte de Marc Antoine, como Voltaire relata, a multidão se aglomerara

diante da casa dos Calas, e, daquele momento em diante, não haveria mais a mínima

possibilidade de verem aquela morte como não sendo um perfeito crime de ordem calvinista.

O que conduzia a multidão a chegar a tal julgamento era o ódio por seus irmãos de religião

diferente. Esse povo de Toulouse é violento e fanático e sua resposta diante do crime é por

consequência um novo crime: a morte de Jean Calas.

Tais afirmações encontram base no relato de René Pomeau, quando nos diz que

aquele povo violento e fanático celebrava anualmente uma festa que tinha como intenção

comemorar a morte de quatro mil huguenotes, protestantes calvinistas, que eles mesmos

haviam cometido. Nem mesmo o Tribunal de Justiça de Toulouse foi capaz de impedir essa

manifestação odiosa que gerava ainda mais intolerância. Por outro viés, deve-se analisar como

prova contra a religião equivocada que a maioria dos juízes fazia parte da confraria dos

Penitentes Brancos e por isso não possuíam a mínima intenção de inocentar Calas. Esses

Penitentes eram um grupo de controversistas, pessoas violentas que facilmente estavam

prontos para começar uma guerra civil. Além disso, eram cegos pelo zelo religioso e se

distinguiam dos demais por se acharem perfeitos.

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2.6 O PENSAMENTO RELIGIOSO EQUIVOCADO

Nesse caso da busca pela tolerância, o que podemos concluir? Obviamente, é um caso

de evidente crime religioso de base intolerante e expressa uma crueldade com opiniões

diferentes. Uma mínima suspeita equivocada foi suficiente para convencer a multidão a

clamar pela morte de Jean Calas decididamente. “Algum fanático da populaça gritou que Jean

Calas havia enforcado seu próprio filho Marc Antoine. Esse grito repetido, logo se tornou

unânime [...]. Um momento depois ninguém mais duvidava”.94 Esta passagem, presente no

Tratado Sobre a Tolerância, confirma a controvérsia do pensamento religioso da época. A

religião enganada tornava-se o maior pretexto, por meio do qual, os crimes pudessem ser

justificados como necessários naquele contexto. O sangue das vítimas inocentes derramado

nos cadafalsos,95 era visto como uma prática religiosa agradável a Deus, um deus que no

pensamento da época devia punir os adversários da fé na religião dominante. Com essa forma

de pensar e agir, em nome da religião, os religiosos fanáticos e intolerantes erigiam para si

mesmos a grande sentença, na qual, no final das contas, seriam eles mesmos os julgados e

castigados pela filosofia.96 No verbete “Abade” do Dicionário Filosófico, Voltaire afirma:

“Todos vocês, que se aproveitaram dos tempos de ignorância, de superstição e de demência

para nos espoliar, nos pisotear, para engordar à custa dos infelizes, estremeçam de medo

quando o dia da razão chegar”.97 Nesse contexto de perseguições e mortes apoiado na religião

94 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 6. 95 Palanque ou estrado para a realização de atos públicos ou cerimônias solenes. Neste caso estamos falando da execução pública por enforcamento, pelo fogo, torturas ou por decapitação de condenados por crimes de lesa-majestade ou não. Aqui se incluem os heréticos que negavam a fé na religião dominante. 96 Após a reabilitação da família Calas, quando Voltaire recebeu a noticia de que os magistrados e juízes de Paris haviam enfim concedido o reparo dos males contra os Calas, afirma Voltaire em seu Tratado que abraçou o mensageiro desta noticia e disse: “É a filosofia sozinha que obteve essa vitória”. No pensamento de Voltaire, a razão, assim como a filosofia, ocupam um papel fundamental, pois a razão é um instrumento essencial que foi dado ao homem para que ele haja em favor da justiça e de sua felicidade terrena. 97 VOLTAIRE, op. cit., 1956.

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dominante, era a filosofia iluminada pela razão a responsável por dar uma resposta salutar

contra as querelas religiosas.

De acordo com Voltaire, como já foi afirmado, a razão fora concedida ao homem para

que ele pudesse agir, e, com essa ação, construir sua felicidade neste mundo. “ O bem da

sociedade exige que o homem seja livre; se a liberdade não existir deve-se inventá-la, o

homem está no mundo para agir”.98

Os assassinatos e as torturas, que cada vez mais estimulavam os fanáticos a

combaterem seus irmãos inocentes, propiciavam muito mais o surgimento de perseguições

religiosas. O julgamento precipitado da população religiosa contra Jean Calas somente

contribuía para que novos tumultos e perseguições surgissem, fazendo das guerras religiosas

uma consequência inevitável. Dessa maneira, todos, independente do partido religioso,

deviam temer por sua segurança. Mais uma vez encontra-se nessa ideia anterior a certeza de

que o fanatismo religioso se projetava contra toda a população como um monstro funesto,

pronto a devorar por meio da intolerância mais um inocente. A respeito desse fanatismo

irracional, afirma Voltaire: “ Cometem-se injustiças no instante de furor das paixões – o grau

de violência nas paixões humanas é um dos fatores da extensão e do limite dos crimes dos

homens”.99

Somente para perceber e reforçar o que é apresentado sobre Bayle no primeiro capítulo

a respeito do ateísmo, procuro aqui mostrar a distinção de um ateu, entre Voltaire e Bayle.

A maneira de pensar que Voltaire expressa a respeito do fanatismo, tão perigoso como

o ateísmo, nos leva a perceber que se fôssemos considerar o pensamento100 de Pierre Bayle

para confirmar essa ideia de Voltaire, veríamos que jamais isso seria possível, porque a ideia

que Bayle faz sobre o ateísmo difere e muito da ideia de Voltaire.

98 POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op cit. P. 228. 99 VOLTAIRE, Deus e os Homens. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. P. 2. 100 Pierre Bayle era um dos autores bastante lidos no século XVIII, que muito falou sobre as guerras religiosas de seu tempo. Defendia a ideia de existir uma sociedade de ateus, pois para ele, os ateus podiam ser virtuosos, enquanto, a idolatria, em tudo devia ser evitada.

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Antes de qualquer tentativa de análise, é preciso reafirmar que Voltaire tem sérias

dívidas para com Bayle, pois sua ideia de tolerância e demais conceitos decorrentes dela

provém do pensamento bayliano, ou seja, Bayle é uma das fontes de Voltaire. Bayle defende a

possibilidade da existência de uma sociedade de ateus e critica fortemente a tradicional ideia

de que ser ateu é ser imoral. Em sua obra Penseés Diverses Sur La Comete, afirma que um

ateu pode ser um cidadão virtuoso, respeitador das leis de seu Estado, enfim, “um ateu é o

arquétipo do indivíduo moral e plenamente consciente de seus deveres no Estado”,101

enquanto um idólatra, não. Afirma ainda:

Nada indispõe mais os homens a serem convertidos para a verdadeira religião do que

a idolatria. Apesar de haver exemplos que mostrem que idólatras e supersticiosos

zelem mais pela boa causa do que aqueles que se convertem depois de terem sido

indolentes em sua falsa religião, [...] o zelo de um idólatra é uma disposição do

coração muito mais perniciosa que a indiferença.102

A idolatria é para Bayle o que o fanatismo e a intolerância são para Voltaire, ou seja,

monstros terríveis que em tudo se é preciso evitar. Em Voltaire, um ateu é tão indesejável na

sociedade como um fanático; em Bayle, ao contrário, o ateu pode ser um cidadão virtuoso

como qualquer outra pessoa que respeita as leis. Nos parágrafos 132 e 133 dos Penseés, Bayle

diz que o ateu não é necessariamente um corruptor da moral; no tocante à política, os idólatras

superam os ateus em crime de lesa-majestade. No contexto teológico político do século

XVIII, a violência provinda do pensamento religioso combatia, por meio da morte, todos

aqueles que incorriam em crime de sacrilégio. É fundamental perceber que no pensar de Bayle

não são os ateus, mas sim os idólatras que frequentemente cometem o pior dos crimes. No

relato103 apresentado por Voltaire e também comentado mais tarde por René Pomeau, sobre os

Calas, objeto desta discussão, são justamente os fanáticos e idólatras que condenavam seus

101 BAYLE, Pierre. Pensées Diverses Sur La Comete. Paris: Librairie E. Droz, 1939, v. 1, par. 119, p. 315. 102 Id., ibid. 103 Este relato se trata do acontecimento da morte de Jean Calas apresentado no capítulo I do Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire. Na nota introdutória do Tratado, René Pomeau afirma que Voltaire não esperou o processo Calas para se preocupar com a tolerância, pois já havia antes desse acontecimento uma necessidade desta.

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irmãos de outra religião às chamas ardentes. Tanto a idolatria, como a intolerância e o

fanatismo, quanto as superstições como o ateísmo, são práticas abomináveis que inspiram o

derramamento de sangue e as perseguições religiosas. Bayle, em seu Commentaire

Philosophique Sur ces Paroles de Jésus Christ: “Contrain-les d'entrer”, analisa a mesma

parábola bíblica que, mais tarde, Voltaire vai retomar para sua reflexão sobre a intolerância. O

subtítulo dessa obra de Bayle é: Em que se prova por várias razões demonstrativas que não

há nada mais abominável que fazer conversões pela força e são refutados todos os sofismas

dos convertedores pela força e a apologia que Santo Agostinho fez das perseguições. É

abominável conversões pela força: Voltaire se une a este pensamento de Bayle, pois ambos

apontam para um mesmo horizonte filosófico, ou seja, para uma prática da tolerância entre as

pessoas, a fim de terem seus direitos e liberdade garantidos em sociedade.

Além dessa finalidade apontada por ambos, Voltaire insiste na liberdade de

pensamento religioso, e Bayle, por sua vez, defende a consciência como aquela que orienta a

moral do homem.

Ainda a respeito da ideia de fanatismo e ateísmo vale a pena considerar a seguinte

questão: a de que no pensamento voltairiano encontra-se a ideia de que o fanatismo e o

ateísmo são perigosíssimos: “Que o ateísmo é um monstro perniciosíssimo para os que

governam, e igualmente para os estadistas em disposição, ainda que cidadãos inocentes, pois

podem um dia ou outro serem elevados ao poder; que se é tão funesto como o fanatismo, e

quase sempre fatal à virtude”.104

Voltaire, no combate contra a mentalidade servil105 de seu tempo, desejava fazer da

razão filosófica um instrumento libertador que possibilitasse às pessoas cegas pelo fanatismo

um acesso à autonomia racional. O pensamento livre das superstições, portanto, devia

104VOLTAIRE, op. cit., 1956, p. 47. 105 Esta mentalidade servil se apresenta como símbolo da regressão do pensamento religioso da época; esta servilidade era a obediência cega às normas religiosas, onde um comportamento demasiadamente zeloso pela religião fazia muitas vidas morrerem como vitimas inocentes.

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conduzir os homens à felicidade. As ações humanas neste mundo, os atos vividos com base na

razão, o trabalho visando a promoção da ciência e o progresso da vida humana eram a

finalidade de Voltaire.

2.7 A CAMPANHA PANFLETÁRIA DE VOLTAIRE

O Caso Calas foi um ponto de chegada estratégico em que Voltaire se apoiou para

realizar seu projeto no qual a autonomia da razão pudesse conduzir os homens no processo

histórico de suas vidas. Esse caso, por se tratar de um erro judicial da morte de um inocente e

da ruína total de uma família, ocupou grande parte da atenção de Voltaire, que em tudo exigia

a tolerância. Somente com a finalidade de expressar novamente o real interesse de Voltaire

pela tolerância, apresentamos novamente a frase em que René Pomeau, em nota introdutória

no Tratado sobre a Tolerância de Voltaire, diz: “Voltaire não esperou o processo Calas para

se preocupar com a tolerância; a questão já agitava o meio em que foi criado: é notório o

clima de discussões religiosas e perseguições em que terminou durante a juventude de

Arouet, o longo reinado de Luis XIV”.106 Nota-se que o empreendimento feito por Voltaire em

favor da tolerância já se iniciara bem antes do acontecimento do Caso Calas, uma vez que a

conquista da tolerância é algo fundamental a ser realizado. Voltaire tinha por finalidade, ao

defender os Calas, mostrar que era a dignidade do ser humano que precisava ser defendida.

O capítulo XIV do Tratado Sobre a Tolerância é um magnífico testemunho e um

argumento poderosíssimo em favor da tolerância, pois exemplifica justamente os horrores que

a intolerância faz produzir. Voltaire, ao escrever tal capítulo, mostra aos intolerantes que estes

106 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. VII.

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vivem inseridos na maior contradição de suas vidas; são eles cristãos, porém, em nada seguem

os ensinamentos de Jesus Cristo, que pautou sua vida na doçura e na bondade, nunca

ensinando a guerra ou a intolerância. A parábola apresentada pelos livros sinóticos da

Bíblia,107 a respeito do homem que convida seus amigos a uma grande ceia,108 não parece em

nada conspirar em desfavor dos convidados quando esses não vieram até a festa. Esse homem

que prepara a ceia é Jesus. Ele é quem deseja que os convidados façam parte da ceia, pois nela

todos são aceitos sem discriminação.

O homem quando incumbe seus criados a convidar todos que encontrar pelo caminho

deseja que de fato todos façam parte da festa, independente de raça, cor ou religião. Nesse

relato, a frase: “Obriga-os a entrar”, como o próprio Voltaire a analisa, deve ser

compreendida da seguinte maneira: roga, suplica, interceda, esforça-se ao máximo, ou seja,

tolere os que se negam a vir e não use do ódio, da vingança ou da intolerância para reprimir

quem não aceitar o convite para a ceia.

Voltaire analisa esta parábola mostrando Jesus como o mestre dos cristãos, a quem

estes deveriam honrar. Jesus nunca pregou as perseguições contra os não cristãos e mesmo

contra os cristãos; não agiu com violência e ódio quando os convidados se recusaram a vir à

festa, mas apresenta-se com indulgência e decide, por sua vez, convidar outros que aceitam o

convite para cear: cegos, surdos, mudos, aleijados e doentes.

Para perceber mais claramente que Jesus foi tolerante em tudo, Voltaire faz referência

a outras parábolas nesse mesmo capítulo como a do samaritano e do filho pródigo109 e em

nada nenhuma delas inspira o fanatismo do pensamento religioso contra as pessoas que

pensam diferentemente em matéria de religião. Voltaire ainda afirma que a intolerância usa de

107 Entende-se por livros sinóticos os três primeiros evangelhos do Novo Testamento (Mateus, Marcos e Lucas), que apresentam grandes semelhanças quanto aos fatos narrados. Os três são os escritores que contam a mesma história e feitos de Jesus Cristo, embora com algumas pequenas diferenças, mas somente quanto ao gênero literário, em nada modificando a linha de fé. 108 Lc 14, 16-24. Bíblia de Jerusalém, op. cit., 1985. 109 Id., ibid., Lc 10, 29-37; Lc 15, 11-32.

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más razões e busca pretextos ínfimos.110 O capítulo XIV é significativo, sobretudo para

mostrar que o espírito perseguidor dos fanáticos religiosos, por muito tempo abusou

enormemente de interpretações errôneas feitas da Bíblia para justificar seus crimes. Verifica-

se também, em meio à história das lutas religiosas dos cristãos, a pregação do proselitismo

religioso e, junto com esse o ódio, a vingança e a morte contra aqueles que não aderiam à

religião imposta.111

As consequências mais graves provindas das querelas de religião foram certamente o

aumento ainda maior do ódio e da vingança, um ódio que alimentava ainda mais os corações

daqueles que foram injustiçados por serem fiéis às suas consciências de fé.112 Como se

percebe nunca as perseguições com pretensão de matar pessoas gerou um fim justificável.

Antes, ao contrário, fizeram gerar mais perseguições e aumento considerável de mortes sem

fim. O ódio só produz ódio, enquanto as atitudes indulgentes geram, por sua vez, a

possibilidade de reconciliação entre os homens.

Sobre isso, Voltaire afirma, no capítulo IV do Tratado Sobre a Tolerância: “Parece-

me que não é raciocinar consequentemente afirmar: ‘Estes homens insurgiram-se quando lhes

fiz o mal; portanto se insurgirão quando lhes fizer o bem’”. E continua Voltaire:

Os huguenotes certamente deixaram-se tomar pelo fanatismo e manchar de sangue

como nós; mas a geração presente é tão bárbara quanto seus pais? O tempo, a razão

que fazem tantos progressos, os bons livros, a mansuetude da sociedade não

penetrara nos que conduzem o espírito desses povos? E não percebemos que quase

toda a Europa mudou de face uns cinquenta anos para cá?113

110 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 86. 111 Esta religião imposta se refere certamente ao catolicismo que ainda em meados do século XVIII se arrogava como a religião dominante. Deve-se analisar o seguinte: a religião nesta época alimentava um pensamento religioso que constituía a maior causa dos problemas das guerras de religião. A morte de Jean Calas e a ruína desta família foi causada por perseguições religiosas e a causa maior deste suplício se encontra no pensamento religioso ao qual os fanáticos estavam submetidos na época. 112 No Tratado Sobre a Tolerância, René Pomeau faz referência à perseguição contra o pastor Rochette por se declarar um ministro da religião reformada. Sua sinceridade e honestidade com sua consciência de fé o condenam à pena de morte, ele e mais três irmãos que inutilmente tentam defendê-lo. Introdução, in VOLTAIRE, op. cit., 2000. 113 Id., ibid., p. 21-22.

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Verifica-se que a proposta de Voltaire, neste caso, é a de que os bons costumes da

sociedade e de cada homem em si, alicerçados na razão autônoma e livre,114 possam fazer

com que estes superem a ignorância religiosa em vista de um bem maior: “o bem físico e

moral da sociedade”.115 As mortes em demasia no suplício da rodas, os horrores das

perseguições religiosas eram, na verdade, um retrocesso para a sociedade, pois em nada

contribuíam para o desenvolvimento da nação. O “interesse das nações”,116 tão falado por

Voltaire, era o fim da violência religiosa em face ao uso esclarecido da razão para a

emancipação do homem em sociedade.

O Caso Calas analisado por Voltaire expressou não somente a tentativa em denunciar a

religião fanática como também a possibilidade de resgatar o homem do abismo insondável a

que estava submetido por seu pensamento religioso. A vida de Jean Calas foi julgada, como se

sabe, pelo pensamento religioso intolerante da época. A causa maior desse crime estava na

maneira como era concebida a religião e os dogmas provindos de interpretações errôneas que

se faziam da Bíblia. É exatamente contra os abusos da religião que Voltaire se posiciona e

tenta reformar a mentalidade de seu tempo.

No capítulo XVII do Tratado Sobre a Tolerância, na carta escrita ao jesuíta Le Tellier,

se lê: “Essa execução é um corolário necessário de nossos princípios; pois, se devemos matar

um herege, como tantos grandes teólogos o provam, é evidente que devemos matar todos”.117

Este trecho faz referência ao que certamente há de mais odioso em matéria de perseguição

114 O século XVIII fora marcado pelo discurso racionalista; este tinha como finalidade a ideia de emancipação que iria conduzir os homens num caminho de superação das infâmias: superstição, fanatismo, intolerância e milagres. Os argumentos tradicionais provindos da religião ou de qualquer outra autoridade deveriam ser todos substituídos pelos argumentos puramente racionais. 115 Verifica-se que nesta época, meados do século XVIII, a maioria dos pensadores franceses, senão todos, tinham uma preocupação quase única em relação ao comportamento moral do homem em sociedade. O problema ético era um dos temas mais discutidos e escritos. A preocupação era direcionada ao problema moral, como nos afirma Brito Broca na introdução de Pensadores Franceses (Clássicos Jackson, vol. XII. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: M. W. Jackson, 1948, p. VII). Voltaire quando menciona sua preocupação com o bem moral da sociedade também certamente está influenciado por esta formação da escola de pensadores que caracterizou sua época. 116 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. IV, p. 27. 117 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. XVII.

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religiosa. Tais menções fazem Voltaire denunciar os crimes para que a situação pudesse se

reverter, uma vez que, segundo ele, a razão devia prevalecer e libertar os homens da

infâmia.118

Os exemplos citados e analisados por Voltaire merecem a atenção de todos nós,

leitores e estudantes preocupados com a atualidade da tolerância em nosso meio, uma vez

que, por meio de tais exemplos, podemos compreender com facilidade a justiça que Voltaire

desejava realizar. Escritor voraz, que, com a pena e o papel, alfinetava a arrogância dos

poderosos de seu tempo, fossem os príncipes, o clero ou mesmo os fiéis partidários de uma

religião incoerente ao seu papel neste mundo. Por incoerência também se pode observar o

crime cometido contra Jean Calas, que se apoiava na interpretação injusta das leis, já que estas

se apoiavam nas leis religiosas. Assim, se nota que o Caso Calas mereceu da parte de Voltaire

um julgamento com base na verdadeira justiça e na exata forma de empregá-la. Os juízes de

Toulouse, inspirados pelo furor do fanatismo religioso, não podiam ser tocados pela justiça a

que as leis estavam submetidas. Eles desejavam agir e direcionar o processo para obter não a

verdade dos fatos, mas a condenação de Jean Calas. No desenrolar do processo judicial, em

relação às acusações contra a família Calas, transparecia a todo o momento que se tratava

mais de um plano político de fundo religioso do que de um verdadeiro interesse pela justiça.

Existia uma manipulação desonrosa em relação ao que se pode conceber por justo. Voltaire

participa anonimamente de um concurso119 com a finalidade de questionar e modificar as leis

de seu país. Claro que seu interesse aqui também era o de receber glória pessoal. Na maioria

das vezes, no ambiente sócio-religioso, se utilizavam das leis para justificar crimes e mortes 118 De acordo com Maria das Graças do Nascimento: “A partir de 1759, vamos encontrar frequentemente nas obras de Voltaire e sobretudo no lugar de sua assinatura nas cartas que escreve aos seus inúmeros correspondentes a curiosa expressão: esmagai a infâmia. Objeto da crítica e do ódio implacável de Voltaire. O que pode ser esta infâmia? Em primeiro lugar ela é o fanatismo praticado pelas Igrejas constituídas, que gera a intolerância em relação a toda opinião divergente e leva os homens a trucidarem em guerras sangrentas. Em segundo lugar a infâmia é a superstição e a ignorância que induzem os homens a práticas cruéis e à manutenção de preconceitos do passado”. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza do, op. cit., 1996, p. 6. 119 Ver isso em sua obra de 1777, O Preço da Justiça (São Paulo: Martins Fontes, 2001). Nessa obra, Voltaire coloca que a moral é uma só, vem de Deus; já os dogmas vem dos homens. As paixões é que confundem a mente. Não há conhecimento inato. Pelo uso da razão podemos discernir o bem do mal.

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inescrupulosamente.120 Voltaire afirma: “As leis não podem deixar de ressentir-se da fraqueza

dos homens que as fizeram. Elas são variáveis como eles. Algumas nas grandes nações foram

ditadas pelos poderosos com o fim de esmagar os fracos”.121 Esta afirmação de Voltaire sobre

as leis e sua fragilidade se liga à ideia de tolerância, pois esta última afirma que a primeira lei

da natureza é o reconhecimento de que todos nós somos constituídos por nossos acertos e

erros. Portanto, em matéria de relações humanas, a indulgência se faz necessária, sobretudo

quando se trata de cometer um crime terrível122, diante do qual não se tem a exata certeza do

erro do acusado. Diante de tudo isso, se percebe que o ponto essencial é o seguinte: a maior

crítica que possuía o caráter de ser demolidora em Voltaire era uma verdadeira luta contra o

poder hostil e assassino do pensamento religioso123 da época. É contra um modelo de

pensamento que em nada favorecia o desenvolvimento da humanidade que Voltaire se

empenha em modificar. Era preciso mudar as estruturas errôneas da sociedade, mas não

partindo das leis ou dos costumes diretamente falando, mas substituindo, aos poucos, a

maneira de pensar, para que um novo pensar fosse conscientizando e esclarecendo o espírito

dos homens. As luzes para uma nova sociedade baseada em ações humanas esclarecidas pelos

bons costumes estavam na aderência a um pensar que tivesse como finalidade o progresso

científico e o uso esclarecido da razão. É exatamente deste tema que trata a reflexão do

próximo capítulo.

120 Muitas foram as mortes cometidas em desfavor de pessoas inocentes, por sua convicção religiosa. Dentre os muitos casos de torturas Voltaire destaca o caso de Jean Calas que fora mais uma vítima do pensamento religioso. Neste caso, os magistrados de Toulouse justificaram tal crime por estarem influenciados pelo pensamento religioso que se deixava transparecer no âmbito das leis civis. 121 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 8. 122 O crime mencionado diz respeito à morte de Jean Calas. Muitas outras mortes poderiam aqui ser contempladas; sobretudo as mortes que tem sua origem no pensamento religioso fanático que por vezes assolou e perturbou inúmeros inocentes. 123 O pensamento religioso em que estava imersa a sociedade religiosa da época de Voltaire constitui o foco essencial dessa pesquisa. No universo religioso ainda do século XVIII, na França, se acreditava que os heréticos deveriam ser todos eliminados, ou seja, mortos, pois a morte era o único caminho por meio do qual deveriam se purificar dos pecados. A visão religiosa da época era a de que Deus se agradava pelas perseguições e mortes cometidas em nome da religião. É certo que as guerras de religião, nesta época, não eram mais como nos tempos da Inquisição. Mesmo assim, aconteciam ainda, mortes em fogueiras e suplícios nas rodas por permanecer em meio às religiões uma hostilidade cruel e isso, certamente, era a origem da violência e do enraizamento crescente do pensamento religioso fanático.

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3 A RELIGIÃO DE VOLTAIRE

Pretende-se, neste capítulo, ao analisar algumas concepções do conceito de “razão”,

afirmar que esta se propunha, no século XVIII,124 como um caminho que devesse conduzir os

homens a superar a ignorância daquele tempo. Assim, o fanatismo, a superstição e a

intolerância produzida pelo pensamento religioso precisavam ser dissipados.

Este estudo permitirá estabelecer um elo de reflexão inclusive a respeito do deísmo125

de Voltaire, pois se observa que ele não destrói a possibilidade da existência de Deus ao

afirmar que a razão é um guia moral para o homem.

3.1 RAZÃO: UM GUIA AUTÔNOMO DO HOMEM

Nota-se que a razão humana, como guia para a conduta dos homens em sociedade,

sempre se fez necessária de forma que não se pode abrir mão desta no mundo em que estamos

inseridos, pois este agir racional justifica nossa presença no cotidiano de nossas relações. A

ideia primeira de razão é que ela é um guia, ou seja, é luz para os homens neste mundo. A

noção de guia nos faz pensar naquilo que nos orienta infalivelmente rumo a nossos

propósitos; no caso aqui, o propósito a ser realizado é o bem à sociedade.

A razão identificada como luz se refere à noção de guia autônomo, que evidencia

claramente nossos pensamentos, libertando-nos das trevas da ignorância. Uma das definições

124 A razão como caminho e luz para a conduta dos homens não é uma ideia apenas do século XVIII, pois desde a Antiguidade clássica grega já se tinha tal noção. Porém pretendo mostrar que tal conceito é tão primordial na filosofia de Voltaire que tal importância a respeito da razão é aqui retomada. 125 René Pomeau em La Religion de Voltaire, pag. 126 afirma: “Um deísmo otimista preserva o mau humor”.

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clássicas deste conceito é: “Referencial de orientação do homem em todos os campos em que

seja possível a indagação ou a investigação. Nesse sentido, dizemos que a razão é uma

‘faculdade’ própria do homem, que o distingue dos animais”.126 Descartes no seu Discurso

Sobre o Método, por sua vez afirma que seria “a faculdade de julgar com acerto e de

distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama o bom-senso ou a

razão”.127

No período iluminista, a partir de 1680, a razão como instrumento de busca do

conhecimento se tornou fundamental e em grande destaque. O anseio filosófico do século

XVIII atribuía à razão uma característica fundamental que era a salvadora da condição

humana. Nesse período, embora enfrentando inúmeras dificuldades, a razão se propunha tirar

os homens das trevas, da barbárie e da ignorância128 a que estavam submetidos. Maria das

Graças afirma: “ Situadas no contexto do século XVIII, as afirmações de Voltaire não são tão

fora de propósito como podem nos parecer hoje. (...) A expansão das luzes é um fenômeno

das elites. Voltaire age, pois, com espírito pragmático. Para o povo inculto, a idéia de Deus é

um freio moral. A razão é um privilégio de poucos”.129

A razão acima de tudo se propõe nesse século ilustrado, em mostrar qual será sua

peculiaridade de ação; ela deseja investigar o mundo e seus elementos aparentemente mais

insignificantes para então poder conhecê-los. Assim é preciso afirmar que ela tem como base

de investigação a própria experiência, e não, as deduções. Paul Hazard afirma: “ Em vez de

126 ABBAGNANO, Nicola, op. cit., 1960, p. 824. 127 BROGA, Bruno (org.), op. cit., p. 53-54. 128 Compreende-se neste período do século XVIII que a barbárie à qual estava submetido o espírito dos homens era a violência de um pensamento religioso consolidado desde séculos anteriores. Este pensar se apoiava na religião para fomentar as guerras pela tomada do poder. A baixa Idade Média que se estendeu até o século XV era chamada de Idade das Trevas, pois estas representavam as atitudes intolerantes dos homens, zelosos por uma religião que mais alienava do que educava. Já no século de Voltaire, devemos identificar vários grupos religiosos, principalmente entre os católicos e protestantes calvinistas, que se contrapunham uns contra os outros. Essa hostilidade, na maioria das vezes, resultava em mortes e perseguições incontáveis. É justamente contra essa barbárie que Voltaire se propõe a lutar, com a finalidade de construir um novo pensar, visando a emancipação do homem, e não a sua destruição. Esse novo pensar devia ser orientado pela razão, a única, naquele momento, capaz de salvar os homens das trevas. 129 SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire e o materialismo do século XVIII. Dissertação de Mestrado. USP, 1983. P. 63.

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partir de princípios apriorísticos, como faziam as pessoas de outros tempos, que se

contentavam com palavras e andavam em círculos sem darem por isso, a razão debruça-se

sobre o real”.130

Voltaire empenha-se, em seu trabalho, para tentar, naquele momento, modificar a

mentalidade religiosa, valendo-se de alguns de seus escritos como, por exemplo, o Tratado

Sobre a Tolerância, que em seus diversos capítulos objetivos e bastante intencionais clama

pela tolerância e o fim do fanatismo religioso.

René Pomeau, no comentário inicial desse tratado, frisa que Voltaire desejava

sensibilizar a opinião do povo em relação aos crimes cometidos pelo pensamento religioso.

Era o comportamento moral dos homens dominado pelas superstições religiosas que Voltaire

planejava demolir. A proposta última dessa reforma mental era a de que a razão pudesse

orientar e guiar as ações dos homens em sociedade. A frase bastante citada por Voltaire, no

final de suas cartas, e que recolocamos aqui como força de expressão para este texto, écrazez

l’infáme, significava o ódio implacável desse escritor em relação às demências humanas de

seu tempo. Em continuidade com o pensamento de Voltaire, Luís Roberto Salinas Fortes, em

seu livro, O Iluminismo e os Reis Filósofos, apresenta a importância que a razão possuía no

contexto iluminista como guia de orientação ao homem.

Para os iluministas, a razão deveria ser um instrumento soberano de conhecimento e

como instância suprema incumbida de reger os destinos históricos do homem e

conduzir à sua emancipação diante dos preconceitos do passado, reformando a

sociedade em que viviam e procurando o aperfeiçoamento constante da

humanidade.131

Voltaire diz que, embora a razão seja limitada, ela foi concedida ao homem com a

justa finalidade da ação. Dessa forma, o homem deve se valer das possibilidades que a razão

lhe oferece para construir sua felicidade neste mundo. O ser humano deve se preocupar com a

130 HAZARD, Paul. O pensamento europeu do século XVIII. Tradução Carlo Grifo Babo. Lisboa: Presença, 1989. P. 36. 131 FORTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 26.

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conduta neste mundo, ou seja, ter seus atos iluminados pela razão e não ficar ansioso em

conhecer ou ter acesso àquilo que lhe é inacessível à razão.132Paul Hazard fala sobre o limite

que a razão possui: “ A razão é como uma soberana que, tendo alcançado o poder, toma a

resolução de ignorar as províncias onde sabe que nunca poderá reinar totalmente”133. Diante

desse novo olhar134 de Voltaire, que será o mesmo para os pensadores iluministas de seu

tempo,135 a razão se torna cada vez mais necessária, pois, por meio dela, não só o

comportamento humano pode servir ao progresso da nação, como também as grandes

descobertas científicas podem igualmente contribuir para este progresso no sentido de que a

razão esteja presente em todos os âmbitos da atividade humana.

No universo voltairiano, o culto que os homens devem prestar não é mais à religião,

mas à razão. A razão é destacada como “deusa”, que é soberana diante de um projeto, no qual

a ignorância humana deve se submeter e desaparecer por completo. Verifica-se, com isso, que

a razão passa a ser divulgada e compreendida no Século das Luzes como superior à religião

cristã, ou seja, desse pensamento religioso, origem das disputas religiosas. Isso fica mais claro 132 Essas coisas inacessíveis que a razão humana não pode pretender, segundo Voltaire, é o conhecimento metafísico. O discurso racionalista do século XVIII tinha a pretensão de rejeitar todo e qualquer conhecimento que não pudesse ser observado e compreendido pela luz da razão; tudo devia ser submetido ao crivo racional para ter validade e certeza científica. O pai da filosofia experimental é Francis Bacon que em pleno século XVII escreve o Novum Organum Scientiarum. Esta obra de grande rigor científico propunha uma nova organização para a ciência de seu tempo; isto também tinha a intenção de rejeitar o discurso metafísico, ou seja, o conhecimento sobre a realidade divina. O pensamento iluminista por sua vez também propõe um caminho racional para a compreensão do mundo e seus mistérios. A busca da verdade científica não era certamente a meta de Voltaire, ele desejava que, muito mais do que a investigação científica, o homem pudesse agir no mundo racionalmente, guiado unicamente pela razão. BACON, Francis (1561- 1626). Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Nova Atlântida. Col. Os Pensadores - História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental. Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 133 Hazard, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. Cit... p. 35. 134 A proposta de Voltaire, como figura principal do movimento iluminista, trazia uma novidade às pessoas de seu tempo que era o uso esclarecido da razão como parte integrante das ações humanas; o novo olhar se refere ao uso da razão para o homem no lugar da fé. A razão devia penetrar o mundo e a vida cotidiana das pessoas, ou seja, os atos humanos deviam ser iluminados pela luz racional. O monstro funesto a ser vencido no âmbito da vida social, política e religiosa era a hostilidade entre os partidos religiosos. O catolicismo pretendia ainda no século XVIII ser a religião dominante, no reino da França, por isso era hostil em relação aos protestantes calvinistas e vice-versa. 135 O projeto iluminista visava o progresso da nação por meio da atividade humana orientando-se pela razão. Não somente Voltaire, mas também outros pensadores aderiram a esta forma de pensar com base na razão que em tudo rejeitava o discurso religioso para a implantação do discurso racionalista. Por exemplo, cabe destacar aqui a intenção de Diderot quando faz seu comentário sobre a Encyclopédie Française: é preciso investigar tudo, remexer tudo sem escrúpulos quando se tratava de uma verificação racional a respeito da verdade dos objetos pesquisados.

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quando compreendemos qual era a intenção de Voltaire para o homem daquele tempo: não ao

incentivo às práticas religiosas, pois estas eram geradoras dos crimes mais funestos, mas ao

uso livre e esclarecido da razão diante do mundo. O homem devia agir com sua inteligência e

não se deixar seduzir por presunções alheias que impedissem sua liberdade de ser e pensar.

O apelo para que esse homem aderisse a essa nova mentalidade foi sentido em todas as

dimensões da sociedade: política e religiosa. A nova forma de pensar, defendida por Voltaire,

e, concomitantemente, pelo projeto iluminista, era que a ciência progredisse orientando-se

exclusivamente por meio da razão, considerada a única capaz de responder aos desafios

daquele momento, que eram o fanatismo e o pensamento religioso intolerante. Diante desse

contexto em que a atividade racional predomina como penhor de uma nova civilização, deve-

se afirmar o seguinte: a razão se tornava critério para tudo, inclusive a base para toda

pretensão de conhecimento científico. Da mesma forma, colocava-se também como norma de

vida na orientação moral de cada indivíduo: “Os deístas do século XVIII, fundamentam a

moral sobre uma religião e afirmam que o homem virtuoso não necessita de Deus”136.

A respeito dessa moralidade do indivíduo137, como alguém que necessita da razão para

formar mesmo sua conduta moral em sociedade, Voltaire afirma:

Mas como! Cada cidadão só deverá acreditar em sua razão e pensar o que esta razão

esclarecida ou enganada lhe ditar? Exatamente, contanto que ele não perturbe a

ordem, pois não depende do homem acreditar ou não acreditar, mas depende dele

respeitar os costumes de sua pátria.138

Partindo do Tratado Sobre a Tolerância, sobretudo do último parágrafo do capítulo

VI, nota-se que Voltaire abomina a possibilidade do direito da intolerância: “O direito da

intolerância é, pois, absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres e é bem horrível, porque os tigres

136 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 229. 137 A moralidade aqui não deve ser compreendida como sendo fruto de uma formação religiosa; a moral de cada indivíduo deve estar conduzindo este para o bom cumprimento das leis e dos costumes de sua pátria. Lembremos que Voltaire possui uma preocupação com o bem físico e moral da sociedade, sendo que isso deve ser uma meta alcançada pelos indivíduos, pois a tolerância depende desse comportamento social onde a razão deve conduzir e orientar cada indivíduo em seus atos. 138 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p.. 63.

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só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos”.139 Mediante tais

afirmações, reforça-se ainda mais a ideia de que a intenção aqui é de uma mudança de

mentalidade, pois a mentalidade vigente naquele momento configurava ainda mais a

intolerância e o fanatismo religioso.

A preocupação de Voltaire era social, ou seja, uma mudança na mentalidade vigente

da época e que devia acontecer no espírito dos homens, mas para isso ele necessitava de

empenho e paciência, pois a ignorância moral140 a que o povo estava submetido ainda

permanecia como um desafio a ser superado pela razão. E a razão era a consciência lenta e

infalível que devia instalar-se como luz para os atos de cada indivíduo. Quando se analisam os

poderes constituídos, civil e religioso do século XVIII, percebe-se que estes não

possibilitavam às pessoas o uso esclarecido da razão como desejam Voltaire e o projeto

iluminista.

As Igrejas, católica e protestante, como instituições erigidas para zelar pela paz e o

amor, não fazem mais do que digladiarem-se em perseguições intermináveis. Na pena de

Voltaire, tais Igrejas sofrem ataques constantes, assim como seus pastores e padres e, por

consequência dessas más orientações de seus pastores, o povo religioso em geral. Nessa visão

iluminista, nem sempre tais Igrejas cumpriam seus principais deveres na sociedade, pois ao

mesmo tempo em que ostentavam seus poderes em dominar, alienavam igualmente seus

súditos e fiéis. Assim, o não uso esclarecido da razão e a não liberdade religiosa dos fiéis

levavam todos a cultivar a intolerância e, por consequência havia perseguições religiosas. O

poder civil, por sua vez, na França, era e muito conduzido pelo pensar religioso: nota-se que,

enquanto Henrique IV, na França, estabelece o Édito de Nantes, concedendo com isso uma

139 Id., ibid., cap. VI, pp. 33-34. 140 As atitudes sanguinárias e intolerantes dos religiosos sejam estes católicos ou protestantes calvinistas, do século XVIII constituía esta ignorância moral. Era, sobretudo, um problema de conduta do homem em sociedade que precisava transformar-se. A revolução que se preparava no espírito dos homens era a luta da razão contra o fanatismo que os impedia de iluminarem-se racionalmente. Os religiosos intolerantes agiam por seus costumes bárbaros e matavam seus irmãos por tê-los como heréticos. Tais costumes produzidos pela mentalidade religiosa deveriam ser domados por uma conscientização lenta, porém infalível, cujo único instrumento fosse a razão.

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liberdade parcial de culto aos protestantes, quase cem anos depois, Luís XIV revoga-o,

julgando que seu poder absoluto se manteria melhor em um Estado nacional mais estável

porque colocado sob uma única religião. A política de Luís XIV era fundamentada nos ideais

da religião católica, ou seja, desejava-se com isso uma França “toda católica”. Uma das

principais características desta política religiosa foi a sanção do Édito de Fontainebleu – à

revelia do papa Inocêncio XI e da Cúria romana – que pretendia, inclusive, obrigar os

protestantes a conversões forçadas, constituindo, assim, esses novos fiéis, como “católicos

novos”.141

Discriminar alguém por sua forma de pensar ou perseguir com mortes aqueles que

deveriam ter a liberdade de optar pela religião que bem desejasse eram atitudes absolutamente

contrárias à ideia dos novos pilares da sociedade que os iluministas desejavam construir.

Segundo Voltaire, a filosofia deveria ser uma resposta a tais anseios de uma sociedade nova

com mudanças sociais e políticas. Ao analisar a filosofia clássica, sobretudo o interesse que

esta tinha pela metafísica, ele critica-a dizendo que possuímos uma razão marcada por limites

que nos impossibilita conhecer a realidade última das coisas, dos seres e da substância.

O homem é um ser que não difere muito dos outros animais, só lhe é concedido a mais

o uso esclarecido da razão. Portanto, antes de ficar desejando conhecer o mistério do além, é

preciso aceitar nossa frágil natureza e reconhecer os limites que ela não pode ultrapassar. É

preciso se preocupar com o momento atual da existência; partir do ponto em que se está a fim

de mudar a sociedade por meio do trabalho árduo sempre auxiliado pela razão. Por meio do

pensamento de Voltaire, vamos encontrar esse interesse peculiar – o de uma luta por uma

racionalidade presente nos atos humanos. Isso possibilitaria a dissipação da ignorância

141 Os católicos novos eram os ex-calvinistas que obrigados pela lei antiprotestante de Luís XIV se viam forçados a converterem-se ao catolicismo, pois este pretendia impor uma religião dominante. René Pomeau faz referência a tais conversões forçadas no comentário inicial do Tratado Sobre a Tolerância, de Voltaire. Lá, colocou que o relatório diariamente apresentado para o rei não expressava na realidade o que diziam; eram muitas as conversões forçadas, porém tais conversões não possuíam solidez de fé e convicção por parte destes convertidos. As conversões eram ainda mais motivos de ódio dos protestantes para com os católicos.

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presente nos atos das pessoas marcadas pelo desejo de violência, uns contra os outros, por

motivos de religião. A ignorância tão mencionada durante toda essa reflexão era a falta de

conhecimento, a falta de informação mesmo sobre a religião que dominava nos povos mais

pobres. O poema de Voltaire La Henriade não tinha outra intenção a não ser pintar as terríveis

imagens do fanatismo142. Essa mesma intenção se percebe em Voltaire no Tratado Sobre a

Tolerância.

Voltaire escreve o Tratado Sobre a Tolerância, como já se disse, visando

conscientizar estes pobres arrastados pelas superstições, das quais não conseguiam se livrar

devido ao domínio da religião. É para o populacho e também para os burgueses e nobres que

Voltaire escreve tentando fazer com que estes pudessem sensibilizar-se e usar a razão para

libertarem-se de seus atos violentos. A ação incansável de Voltaire em incomodar as

autoridades para que olhassem os exageros do fanatismo, nos faz acatar a afirmação de René

Pomeau: “ Voltaire não era um homem de gabinete, ele tinha gosto pela ação, pelo fazer e

pela pesquisa...”143.

3.2 A INFÂMIA E O DEÍSMO EM VOLTAIRE

A expressão écrazez l’infâme é objeto usado como expressão de ódio e, sobretudo, de

crítica implacável de Voltaire contra a violência religiosa. Ela sugere o fim dessas atitudes

sanguinárias e ao mesmo tempo propõe a emancipação moral e ética do homem em sociedade.

Como o objetivo de Voltaire é o interesse em preservar a dimensão física e moral da

sociedade, começa ele por sugerir essa tão falada mudança de mentalidade dos indivíduos. Tal

142 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 106. 143 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 99.

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infâmia da qual fala Voltaire insistentemente estava presente não somente no pensamento do

povo religioso, mas também em suas autoridades religiosas e civis. Assim, a mentalidade

originária de um pensamento religioso alimentado por superstições e fanatismos se fazia

presente em grande parte da população que, diante da menor suspeita de um “herege”, estava

pronta para eliminá-lo. A religião que as pessoas praticavam, certamente, era mais por

interesse desse pensamento religioso do que por amor a Deus. René Pomeau afirma: “

Voltaire treme de horror das superstições, e sofre, quase fisicamente, pelos crimes do

fanatismo, quer interessar-se pela história da miséria humana”144.

Diante disso, é preciso que façamos justiça ao pensamento de Voltaire. Muitos podem

ver nas críticas que ele faz em relação à religião o mais intolerante dos pensadores, porém,

suas críticas não tinham por interesse condenar a ideia de Deus ou da religião, ao contrário,

ele relativizava a religião dizendo inclusive que muitas religiões poderiam ser uma resposta

contra a intolerância dos religiosos. Sobre isso, Voltaire afirma, no verbete “Tolerância”: “Já

vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas religiões, elas se trucidarão;

se tiverdes trinta, viverão em paz”.145Somente para reforçar a idéia de que Voltaire não estava

perseguindo a religião ou a idéia de Deus, René Pomeau nos ajuda a perceber isso, quando

afirma que devemos nos abster da idéia de julgar Voltaire a partir de textos isolados; “sua

obra é imensa e ele é complexo”.146 Deve-se, portanto, compreender que Voltaire era

contrário às autoridades da religião, padres, bispos, enfim aqueles que alimentavam no povo

uma ideia sanguinária em relação aos outros homens partidários de uma religião diferente.

Por outro lado, em se tratando de fé, algo que pode muito bem ser observado em

pessoas não partidárias de um credo religioso, Voltaire, em seu pensamento, manifesta a

necessidade da existência de Deus e também é sensível para com a bondade divina.147 Em

144 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 127. 145 VOLTAIRE, op., cit., 1956, p. 289. 146 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 15. 147 “Prece pela Tolerância”, in VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. XXIII.

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outras palavras, Voltaire é partidário de um deísmo148 e seu deísmo é uma concepção

antagônica quanto à noção de teísmo que por muito tempo dominou o pensamento religioso.

De acordo com René Pomeau, Le Vrai Dieu, é o primeiro texto deísta de Voltaire; essa

é uma sátira de mistérios cristãos de encarnação e de redenção149.

Sabe-se que o deísmo é partidário da ideia de uma religião natural, uma religião

fundada não na revelação histórica de Jesus Cristo, como para os cristãos, mas uma

manifestação natural de Deus à razão humana, ou seja, a razão humana é a única via capaz de

nos assegurar sobre a existência de Deus. O deísmo de Voltaire o leva a compreender o

homem como um ser não muito diferente dos outros animais: “O homem é um corpo que

pensa, fora disto não se pode saber mais nada”.150 Vê-se com isso que Voltaire é bastante

contrário à ideia dualista entre corpo e alma que influenciou o pensamento ocidental. A

religião cristã sempre foi partidária desta ideia da imortalidade da alma.

Em Voltaire, essa concepção de que o homem é dividido entre um corpo que age e a

alma eterna e imortal, não se sustenta, assim como o homem não pode conhecer aquilo que é

inacessível à sua razão, não pode ele igualmente pretender que exista um outro “eu” que

permaneça vivo quando seu corpo morre. Voltaire reúne todos os argumentos materialistas

possíveis para se colocar contra essa ideia dualista de corpo e alma. Os argumentos,

apresentados por Voltaire, que tem por interesse destruir a ideia dualista são: “Que

fundamento, causa, poderíamos atribuir à alma após a morte do corpo? ou “Os povos hebreus

não acreditavam na imortalidade da alma; suas recompensas e castigos eram obtidos durante

suas vidas terrenas”.151

148 GRAY, John, 1999, p. 31. 149 POMEAU, René. La Religion de Voltaire. Op. Cit. P. 80. 150 VOLTAIRE, op. cit., 2007. 151 In NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza, op. cit., 1996, p. 30.

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A forma de Voltaire conceber o homem como “um corpo inteiro que pensa” nos leva,

a nós leitores, à profunda convicção de que a razão constitui, de fato, o agir do homem neste

mundo. E essa ação deve construir no mundo a emancipação do homem em sociedade. A

razão humana deve conduzir a ação do homem no mundo, sem que este fique preso às

superstições que nada o ajudam; ao contrário, elas o atrapalham na edificação do progresso e

da ciência no mundo.

3.3 UMA PRECE A DEUS

Voltaire, mesmo tendo clareza de seu objetivo proposto, que era a luta pela defesa da

razão como emancipadora da vida humana, deixa transparecer em sua reflexão algo de seu

deísmo um pouco confuso, pois, ao mesmo tempo em que declara a não interferência de Deus

na vida humana, se dirige a Deus como se este estivesse perto dos homens. Isso pode ser

notado no capítulo XXIII do Tratado Sobre a Tolerância, na “Prece pela Tolerância”.

A oração de Voltaire a Deus possui a forma de uma prece, uma súplica, um pedido que

se direciona a Deus a fim de que ele ouça e atenda o pedido de alguém que não merece seus

favores. Essa oração faz, além da súplica, um apelo universal à tolerância. As diferenças de

pensamento em relação às religiões não podem ser motivo de ódio ou tirania, pois todos

devem ser livres para fazerem suas escolhas. Voltaire afirma nesta oração: “Não nos destes

um coração para nos odiarmos e mãos para nos matarmos”.152

Nessa prece, Voltaire parece dizer que uma religião que mata e escraviza não pode ser

inspirada em Deus, que é ternura e bondade; então o que deve ser ignorado é a religião mal

152 Esta frase de Voltaire se refere aos conflitos entre os cristãos que se matavam impiedosamente dominados por um pensamento religioso intolerante e fanático.

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constituída, e não Deus, que, com sua bondade, só inspira a benevolência e a paz. Assim

sendo, devemos então atribuir a Voltaire uma crença em Deus? Aquele homem tantas vezes

censurado por seu pensamento antirreligioso, anticlerical deve ser visto como alguém crente

em Deus? Sobre isso André Maurois afirma:

“Voltaire crê que um maquinismo divino concebeu, conjuntou e regulou este

universo. A grande prova que ele dá dessa crença é, primeiramente, a ordem do

mundo, as simples e sublimes leis pelas quais os globos celestes caminham no

abismo do espaço. O relógio prova a existência do relojoeiro; a obra maravilhosa do

universo mostra um obreiro, e tantas leis constantes demonstram que há um

legislador; é necessário para os príncipes e para os povos que a ideia de um Ser

Supremo esteja profundamente gravada nos espíritos. Não se pode dizer, porém que

esta prova da existência de Deus seja muito sólida, porque ela provaria também a

necessidade de crer; mas esta prova agrada a Voltaire, não porque sirva a ele, mas

porque serve para o povo; se, portanto a existência do mundo prova a existência de

um Deus, não prova contudo, de modo algum, a existência do Deus dos judeus e dos

cristãos e nem de outro qualquer Deus particular. O nosso deísta é ao mesmo tempo

agnóstico.153

A respeito da benevolência divina, pode-se perceber inclusive que esta inspira também

a ideia de tolerância. O capítulo XXII do Tratado Sobre a Tolerância afirma que o interesse

das nações exige a tolerância e ela não pode ser desejada como um mero capricho vivido por

apenas alguns que julgam suportar outros por suas crenças, uma vez que isso somente não

constituiria o interesse essencial das nações. A tolerância supõe a convivência pacífica entre

os povos, culturas e religiões e o maior interesse das nações, aqui expresso, não é por uma ou

outra religião específica. A religião enganada ou esclarecida não é o que deve atrair o

interesse das nações: esse interesse se liga à ideia da construção do progresso em sociedade,

que, por sua vez, constitui o essencial interesse de Voltaire.

153 MAUROIS. André (introd.). O Pensamento Vivo de Voltaire. Tradução de Lívio Teixeira. São Paulo: Livraria Martins, 1954, pp. 16-19.

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Em outras palavras, podemos compreender que a religião pode até e muito

proporcionar parte deste progresso em sociedade, porém fará isso na medida em que for “pura

e santa” e não intolerante como se tem assistido há séculos entre os cristãos. Curiosamente, o

capítulo XXII se intitula: “Acerca da tolerância universal”. É bem característico em Voltaire

esse interesse infalível pela tolerância, pois ele tem, diante dos olhos, tempos de perseguições

e assassinatos provindos de uma vivência religiosa intolerante e fanática. Por isso se empenha

em destruir esse pensamento religioso até as raízes, uma vez que o considera a origem da falsa

religião.

Com tudo isso, não se pode esperar de Voltaire elogios em favor desse pensamento

religioso fanático, pois a religião enganada por suas crenças supersticiosas não inspirava o

modelo de tolerância pretendido por Voltaire. Em se falando de religião no contexto de

Voltaire, este afirma que o cristianismo foi a religião mais intolerante que já existiu. A

respeito dos povos antigos civilizados, entre eles o judeu, no Tratado Sobre a Tolerância,

capítulo XII, afirma que esses povos já possuíam a intenção de uma tolerância universal. E

apesar da realidade que vê entre os povos cristãos, mesmo assim se mostra esperançoso,

porque “sempre escapam na nuvem dessa barbárie tão longa e tão horrível raios de uma

tolerância universal”.154

É preciso perceber que Voltaire, ao falar da tolerância universal, se referia aos povos

antigos com uma visão toda particular, indicativa de sua simpatia por uma religião natural. No

capítulo VIII do Tratado, afirma: “Os romanos não professavam todos os cultos, não davam a

todos a sansão pública; mas permitiam todos”.155 De todos os povos antigos, diz Voltaire,

nenhum deles impediu a liberdade de pensar, sejam os gregos, os romanos ou os judeus. Por

outro lado, porém, os cristãos sempre pretenderam que sua religião fosse em tudo a

dominante. Os romanos toleravam todos os cultos de seus povos dominados, inclusive o culto

154 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. XII, p. 73. 155 Id., ibid., cap. VIII, p. 41.

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dos cristãos, que, por sua vez, não queriam tolerar nenhum outro culto a não ser naquele em

que acreditavam.

Dessa maneira, se observa que, por muito tempo, a intolerância religiosa fez parte do

cristianismo, quando ele quis justificar a própria fé perseguindo outras religiões. Há uma

característica bastante peculiar em Voltaire, sobretudo quando ele ataca práticas de violência

contra a liberdade de pensamento. A escolha religiosa ou a não escolha de um credo religioso

deve ser garantido a cada um, pois somos livres para fazermos nossas escolhas, inclusive em

matéria de religião.

Se para Pierre Bayle a consciência deve ser seguida em tudo o que ela nos indicar,

para Voltaire, a razão deve ser igualmente a luz que guia as escolhas neste mundo. Assim,

verificamos que em tudo a liberdade humana deve ser garantida a todos os homens. Pensar a

ideia de liberdade a partir de Voltaire é, ao mesmo tempo, levar em conta os conflitos

tirânicos produzidos pela religião de seu tempo. É diante desse momento de tensão e

perseguição religiosa que Voltaire forma sua opinião a respeito do que possa ser a liberdade

humana.

Essa liberdade é, em primeiro lugar, o direito de cada um escolher a crença que bem

desejar, e, ao mesmo tempo, respeitar opiniões religiosas diferentes. No Dicionário Filosófico

de Voltaire, a liberdade assume caráter de poder, o poder de realizar alguma coisa que esteja

em nosso pleno domínio. Esse poder envolve a ideia de que posso realizar algo pelo fato disso

estar em minha plena liberdade de fazê-lo com segurança, então faço porque posso, faço

porque tenho poder para isso.

No período da Luzes, esta tão pretendida liberdade humana deveria ser realizada pela

própria razão humana. Ela obriga os homens a reconhecerem seus direitos de humanidade em

sociedade. A revolução que se preparava, no espírito dos homens, prenunciava as mudanças

sociais e políticas que, naquele momento, a França necessitava para aderir a uma liberdade

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que contribuísse para o progresso da nação. Assim, é contra a hegemonia dos poderes civil e

religioso que os pensadores iluministas se colocam, a fim de mudar a mentalidade servil. A

religião cristã divida nas facções católica e protestante estava sempre pronta a manter a ideia

de uma verdade eterna, única e inquestionável, devido ao domínio da religião. As pessoas não

tinham a liberdade de questionar as verdades reveladas como os dogmas religiosos, por

exemplo. Para Voltaire, a religião incentivava e alimentava o fanatismo em seus fiéis, era ela

a responsável por manter os fiéis nas superstições, pois os religiosos eram dominados pelo

fanatismo e, assim, eram cada vez mais intolerantes com seus irmãos da mesma religião.

Nota-se, portanto, que tais conflitos religiosos eram justificados como práticas justas pela

própria religião.

Se, como afirma Voltaire, o interesse das nações exige a tolerância era, então,

impossível obtê-la em meio a tamanhas discórdias produzidas pelo pensamento religioso

daquela época. Diante das censuras e mortes que esse pensamento causava, de fato a liberdade

não encontrava o mínimo espaço fértil para se estabelecer e curar os homens de seus crimes.

A consciência daqueles homens, diante de tantas barbáries, não poderia ser tocada pela ideia

fundamental do pensamento iluminista, que era um interesse supremo pelo progresso

científico e pela emancipação humana.

Voltaire, em seu conto “Elogio histórico da Razão”, 156 mostra que a razão e sua filha,

a verdade, não encontraram espaço e acolhida em meio aos horrores das guerras religiosas

produzidas pelo fanatismo. Na coletânea de textos de Voltaire O Preço da Justiça, Artigo I,

página 7, Dos crimes e das penas proporcionais, afirma: “As leis não podem deixar de

ressentir-se da fraqueza dos homens que as fizeram. Elas são variáveis como eles”. Nessa

mesma obra, no tema sobre heresia, ele afirma: “A heresia é um dos piores crimes”.157

156 VOLTAIRE. Contos. Tradução de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 649. 157 Id., op. cit., 2001.

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Por heresia entendemos o fato de alguém ser perseguido por suas opiniões contrárias à

religião dominante. A religião católica e também a protestante158 se viram como soberanas de

um poder absoluto e divino que, por muitas vezes, apoiava-se na ideia de atormentar pessoas

por suas crenças.

No Dicionário Filosófico, Voltaire, no verbete “Leis Eclesiásticas e Civis”, afirma que

nenhuma lei eclesiástica deve ser válida antes de ser sancionada pelo governo. Afirma,

inclusive, que as leis divinas ocupam outro plano, não devem estar submetidas ao mesmo

nível das leis civis e, consequentemente, com os negócios burocráticos deste mundo, ideia

esta que certamente herdou de John Locke, aquele que estabeleceu a real separação entre

Igreja e Estado.

A lei civil é quem deve presidir o Estado. As leis eclesiásticas devem se limitar às suas

funções específicas, no que se refere às práticas religiosas que são: abençoar, sagrar e rezar.

Diante de todo o histórico que o catolicismo se apresentava por meio de práticas intolerantes,

Voltaire mantinha seu perfil de ataque contra tais infâmias, porém sem jamais fazer concessão

com a intolerância.

Para Voltaire, Deus devia certamente ser a causa inteligente da formação do universo.

Na sua visão Deus se explica como que um relojoeiro que constrói um relógio; o relógio é o

produto, ou seja, a obra que tem por trás de si um artesão; este artesão é Deus, e a razão

humana é a via inteligente que o pode conhecer. No Tratado Sobre a Tolerância, nas notas

158 A caça aos hereges foi um movimento liderado pela Igreja Católica desde o século XVI quando aconteceu a Reforma Protestante. Da parte da Igreja existia a intenção de manter a política de adesão a fé para com isso continuar a ser o poder dominante. Observa-se também que este poder arrogava-se ao extremo em todos os sentidos, ou seja, a religião era a maior expressão, a única capaz de se pronunciar a respeito da verdade, pois acreditava ela ser a única intermediadora entre Deus e os homens. Isso certamente fortalecia ainda mais seu poder. Assistia-se à sagração de reis que faziam o propósito de continuar a mesma missão da Igreja no que se refere a caça aos hereges. Luís XIV, por exemplo, foi um dos que fizeram tal propósito. Voltaire faz uma afirmação a este respeito: “Os reis precisavam jurar, em sua sagração, que matariam quase todos os habitantes do universo, pois quase todos tinham uma religião diferente da sua”. (Id., op. cit., 2000, p. 31-32.) O rei Luís XIV, além do propósito que fizera a respeito de continuar a política antiprotestante, desejava como se sabe, uma França toda católica, como Pierre Bayle coloca em Pensées Diverses Sur la Cometè. A revogação do Édito de Nantes por Luis XIV foi a expressão de uma atitude intolerante e incentivo à caça ao hereges. Naquele momento o rei passava a aderir integralmente a uma política civil que em tudo se conformava com a política religiosa do pensamento dominante.

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introdutórias, René Pomeau faz uma afirmação mostrando que esse tratado vai além do

objetivo de ser uma obra que simplesmente advoga a respeito da tolerância, pois Voltaire

também em tudo exige uma liberdade de pensar: “O Tratado da Tolerância revela uma

substância da liberdade de pensar”.159

Esta frase marca o fiel posicionamento de Voltaire na luta pela liberdade religiosa e

também pela liberdade de pensamento empreendida em favor do Caso Calas, objeto de estudo

do primeiro capítulo desta reflexão. Jean Calas fora perseguido pelo pensamento religioso,

pois este não possibilitava uma liberdade religiosa; fora morto pelo suplício da roda tendo a

sua frente somente como defesa sua inocência e sua liberdade de consciência.160

Verifica-se que na execução do Caso Calas, os juízes de Toulouse foram tomados pela

intolerância religiosa, e a liberdade de pensamento não teve a menor chance de ser admitida,

pois diante do fanatismo, é a barbárie que se sobressai. Jean Calas morrera inocente, porém

sua execução não conseguiu esconder a atitude deste homem em não se deixar dominar pelo

fanatismo de seus algozes. Este fato ocorreu em plena época das Luzes na Europa no século

XVIII. Voltaire afirma ainda que: “E aconteceu isso em um tempo em que a razão já fazia

tantos progressos; os espíritos já se iluminavam afastando-se da barbárie”.161 Na tentativa de

aos poucos ir conscientizando a populaça religiosa a respeito dos crimes que cometiam, e que

tais crimes só poderiam produzir tantos outros crimes, Voltaire afirma no capítulo IV do

159 VOLTAIRE, op. cit., 2000. 160 Jean Calas morrera vítima inocente de sua sinceridade de consciência. A melhor justiça certamente a favor deste inocente é ter este caso tido um dos maiores desfechos da época. A Europa inteira tomou conhecimento deste cruel acontecimento, e isso a fez pensar um pouco mais sobre as atrocidades do fanatismo religioso. Nos escritos e campanhas de Voltaire, partindo obviamente do Tratado Sobre a Tolerância, este caso foi não somente advogado como também divulgado, no sentido de alcançar seu maior objetivo que era o de sensibilizar a opinião do povo. O Caso Calas representa, para a Europa do século XVIII, um grito em favor da liberdade de pensar até então negada sobretudo aos protestantes calvinistas, visto que estes eram as maiores vitimas das perseguições religiosas. Essa liberdade tão almejada por Voltaire significava a substituição do fanatismo religioso pelo domínio esclarecedor da razão; a pretensão igualmente a isso era submeter a religião ao domínio das leis, e estas por sua vez, deveriam ser justas e favoráveis ao progresso científico e humano. Voltaire era contra a barbárie por muito tempo cultivada por reis e clérigos, e postulava que a liberdade religiosa se fazia necessária. A intolerância religiosa e civil por muito tempo sobreviveu causando mortes e perseguições; era o momento de reconstruir o homem começando por despertar nele a luz da razão. Sobre isso Voltaire afirma: “A razão esclarece lenta, mas infalivelmente os homens”. VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. 30. 161 Id., ibid., cap. XVIII.

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Tratado: “Parece-me que não é raciocinar consequentemente afirmar: esses homens

insurgiram-se quando lhes fiz o mal; portanto se insurgirão quando lhes fizer o bem”;162

portanto se vê que uma ação benéfica arrazoada com uma boa dose de razão dirigida a

outrem, só poderá resultar em um beneficio ainda maior da parte de quem o concede.

Os atos provindos da reflexão e do raciocínio terão como meta o bom comportamento

moral do indivíduo em meio à sociedade. Se a preocupação de Voltaire é o bem físico e moral

da sociedade, então, nesta ação do indivíduo orientada pela razão, vemos luzes de uma

civilização universal baseada no progresso da humanidade, e isso sim, é digno de destaque

para o pensamento de Voltaire.

3.4 POR UMA LIBERDADE DE PENSAMENTO

É preciso, ao ler esta obra de Voltaire, levar em conta que se tratava de situações

envolvendo a hegemonia civil e religiosa da época. Diante disso, o que menos se priorizava

era a liberdade de pensamento, e sim a submissão do indivíduo a um pensamento

autoritário163 e nada indulgente.

162 Id., ibid., cap. IV. 163 Por esta visão, a de um pensamento autoritário, deve se entender a posição da Igreja Católica que se arrogava como a única capaz de proferir a verdade sobre a vida humana. Este discurso religioso apesar de enfraquecido com a nova mentalidade iluminista continuou exercendo seu domínio sobre as pessoas. Diante da possibilidade de não mais ser o poder dominante da época, a Igreja submersa em sua visão autoritária, perseguia e torturava pessoas por suas crenças. As perseguições aos hereges, que por muito tempo foram um grande espetáculo irracional do gênero humano, destacaram-se como um dos mais vergonhosos crimes, como o próprio Voltaire afirma. Na política de Luis XIV se verifica um esforço cada vez maior em estabelecer leis antiprotestantes, éditos que em tudo desfavoreciam a liberdade religiosa. Pretendia-se com isso uma França toda católica. Acontecimentos do tipo: massacre dos protestantes na Noite de São Bartolomeu, caça aos hereges, mortes em fogueiras, torturas de pastores calvinistas em seus ministérios, e a própria morte de Jean Calas no suplício da roda, são acontecimentos que marcam características deste pensamento autoritário do mundo religioso. Acrescido a isso, deve-se considerar que por muito tempo a Igreja se limitou a perseguir, guerrear contra os hereges em querelas intermináveis, desde os primórdios do cristianismo passando pelo século XVI e continuando com tais perseguições inclusive no período da Luzes. Diz Voltaire: “Parece que o fanatismo enfurecido com os êxitos da razão se debate ainda mais fortemente a seus pés”. De tudo isso é preciso ao menos tirar uma lição:

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No verbete “Tolerância” do Dicionário Filosófico, Voltaire se refere à Bolsa de

Amsterdã, e também a de Londres, como um lugar de coexistências diversas, no que diz

respeito a religiões e pensamentos, mostrando que o interesse que unia as pessoas era um

único, o interesse financeiro e econômico de uma nação. Porém, para que este objeto comum

fosse garantido a todos, se fazia necessária a tolerância como o único critério essencial para

uma convivência pacifica entre tais diferenças.

Nota-se que o exemplo atribuído da Bolsa de Amsterdã se constitui como símbolo

também de liberdade de pensamento e consequentemente liberdade religiosa, pois o interesse

comum era sempre um mesmo, o bem da nação e seu progresso. O exemplo que cita a

respeito das trinta religiões diferentes164 neste mesmo verbete, era um apelo que fazia a favor

da liberdade religiosa,165 pois, se a religião não promovia tal liberdade, então a razão

precisava fazê-lo.

A liberdade religiosa que Voltaire encontra na Inglaterra o faz automaticamente

estabelecer uma comparação com a situação religiosa na França. Enquanto Paris e as

províncias da França respiravam uma sutil e camuflada perseguição religiosa, na Inglaterra

incentivava-se a livre expressão religiosa como fruto de um pensamento esclarecido que

enquanto as pessoas inocentes, ou não, morriam na mais espessa barbárie, era a estagnação do progresso que se fazia sentir. 164 Essa diversidade religiosa que encanta num primeiro momento Voltaire se referia ao ambiente cultural da Inglaterra. Não é indevidamente que a expressão ilha da razão se faz presente na reflexão de Voltaire quando se refere à Inglaterra. A curiosa expressão de Voltaire, em suas Cartas Filosóficas (2007, p. 54), “um inglês vai para o céu pelo caminho que bem lhe aprouver” define um pouco do desejo de Voltaire em que a França imitasse tal exemplo. Enquanto a Inglaterra promovia a liberdade de pensamento e consequentemente religiosa às pessoas, na França a situação era oposta, pois não era a razão que direcionava a vida das pessoas religiosas, mais o fanatismo e as superstições. De tudo isso, o que na França se destaca não é o progresso científico e o bem da nação, mas a intolerância do pensamento religioso. 165 Na “Carta I” sobre os quacres, nas Cartas Filosóficas, Voltaire dialoga profundamente sobre tal seita que em quase tudo parece se colocar longe de todo fanatismo e superstição religiosa. Segundo Voltaire, se tratavam de homens sábios que cultivavam a paz de espírito, e o mais importante, eram livres em sua consciência religiosa. Ridicularizados pelos anglicanos com o nome de quakers (os tremedores), eles se consideravam cristãos, pois entendiam que Jesus Cristo fora o primeiro quacre que existiu. Os quacres acreditavam que sua religião havia sido corrompida no processo histórico, porém isso não mudara em nada a dignidade em afirmar que tal religião fora divinamente inspirada. Sobre essa religião vale a pena destacar aquilo que Voltaire vem longamente discutindo como ponto essencial de seu pensamento: a paz religiosa, a liberdade religiosa e a ojeriza total pelo fanatismo religioso. Sobre a paz religiosa, Voltaire destaca inclusive o aspecto da não perseguição religiosa que cultivavam: “Nunca iam às guerras, nem pegavam em armas contra seus irmãos de religião diferente; não eram batizados segundo os costumes cristãos e, no entanto, consideravam-se cristãos”. VOLTAIRE, op. cit., 2007.

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dominava as paixões e o fanatismo. Essa liberdade religiosa garantida pelo Estado impunha

logicamente algumas restrições em relação às religiões, sobretudo no que diz respeito às

funções do Estado e as da Igreja.

Na França, a situação dos protestantes calvinistas era a pior possível, sobretudo na

gestão de reis católicos, pois estes tinham sua liberdade de expressão religiosa censurada ao

máximo pela religião dominante.

Na Inglaterra os anglicanos166 por serem dissidentes do catolicismo não enfrentavam

tamanhas restrições como os calvinistas na França; a situação era bastante diferente e a paz

lhes era garantida.

Essa diferença entre a França e a Inglaterra constatada por Voltaire, no que se refere à

paz religiosa e a liberdade de pensamento, faz dele ainda mais um campeão na luta pela

166 Na “Carta V”das Cartas Filosóficas, sobre a religião anglicana, Voltaire mostra como muitas vezes uma religião conduz as leis de um Estado a seu próprio favor. Na Inglaterra e na Irlanda, os cargos públicos eram distribuídos em favor dos adeptos desta religião. Isso lembra um pouco da política religiosa na França onde aos protestantes eram negados alguns empregos públicos e consequentemente muitas outras restrições como a não validade de seus casamentos, o não reconhecimento e legitimidade dos filhos, a recusa em alguns casos de sepultura. Voltaire analisa longamente nas Cartas Filosóficas a cultura inglesa que em tudo parece prezar pela liberdade de pensamento e religiosa entre as seitas que ali existem. Era notável, por exemplo, que perseguições contra pessoas por causa de suas crenças não se faziam presentes na vida de um inglês. O interesse naquela sociedade era o respeito às leis e a liberdade como livre expressão de pensamento. A respeito desta liberdade Voltaire lembra que enquanto as guerras na França e na Europa somente produziram a escravidão do gênero humano, na Inglaterra, o fruto das guerras foi a liberdade do homem. Em contrapartida pode se verificar que, enquanto Voltaire elogia o avanço de progresso presente na sociedade inglesa, ele automaticamente critica a estagnação da França, pois enquanto os ingleses viviam a tolerância religiosa, a França católica e calvinista investia nas querelas religiosas. O contato com a cultura inglesa faz Voltaire refinar ainda melhor suas ideias sobre liberdade e tolerância. Pensadores como John Locke, por exemplo, influenciaram Voltaire a respeito das ideias sobre tolerância religiosa. Voltaire não somente herdou de Locke ideias fundamentais para seu conceito de tolerância como também era em si mesmo um pensador inclinado ao liberalismo racional. Foi um livre pensador, um crítico absoluto de seu tempo, um impositor enérgico de suas ideias, mas todas elas em favor de seu brilho pessoal e ao mesmo tempo, por uma nova sociedade pensante. Voltaire acreditou na emancipação do homem em sociedade por meio de uma atividade essencialmente racional, pois naquele momento, as instituições da França, como a Igreja, por exemplo, não possibilitavam uma expansão do pensamento humano no sentido do progresso social e da libertação do homem. É contra a manipulação desumana do clero e dos reis que Voltaire se choca na tentativa de estabelecer uma nova ordem social e no desejo em destronar tais hierarquias, religiosa e civil. É justamente com a intenção de substituir o pensamento religioso da época que Voltaire se empenha em lutar, utilizando-se de seus escritos, sobretudo para criticar a intolerância dos religiosos fanáticos. A França naquele momento, devido às infâmias que a assolavam, representava para Voltaire um país atrasado em relação à Inglaterra. Era preciso não somente novas leis que possibilitassem o fim da ignorância, mas também uma reforma necessária do pensamento religioso, pois era este a origem de tantos males. Era preciso, sobretudo que a liberdade de pensamento garantida aos homens fosse um resultado da campanha da luzes empreendida por Voltaire.

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tolerância. Essa tolerância não honraria a si mesma, mas serviria de um caminho para um

projeto ainda maior que era o de uma civilização universal.

A constituição de uma civilização que fosse a configuração da nova sociedade livre e

pensante era o projeto das Luzes, projeto que se referia à emancipação do homem167 em

sociedade, e a filosofia seria um instrumento neste desenvolvimento.

E John Gray em seu livro Voltaire e o Iluminismo esclarece: “O iluminismo só pode

ser compreendido no contexto do credo que desejava aniquilar”.168

167 Esta emancipação humana é a necessidade sempre urgente de se colocar fim a todas as superstições de ordem religiosa que não esclarecem as pessoas, mas ao contrário, deixam-nas submissas e não esclarecidas diante da vida. A emancipação, além do fim destas infâmias que cegam o espírito do homem e o impedem de pensar de forma racional, pretende o aumento da riqueza material da vida humana, o aumento do saber e o progresso das ciências. 168 GRAY, John, op. cit., 1999, p. 9.

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CONCLUSÃO

O século XVIII se caracterizou como um momento histórico fundamental do homem

em busca de sua autonomia política, de sua liberdade diante de si mesmo e da nação. Por

autonomia também devemos conceber, num momento em que se preparava uma verdadeira

revolução no espírito dos homens, o ser humano que se viu na necessidade de se posicionar de

maneira participativa diante de questões169 que já não tinham mais razão de existir e que em

tudo precisavam ser combatidas.

Esse século denominado também como ilustrado fora marcado por uma geração de

filósofos moralistas, cujo principal objetivo era construir na sociedade uma nova moral. Nas

palavras de Paul Hazard se encontra a seguinte afirmação: “Tratava-se de fazer uma moral

que fosse iluminada pelas luzes”.170

O movimento iluminista tinha por finalidade instaurar na sociedade um novo olhar

onde a razão humana fosse a base disso. Sendo, no período medieval, a religião a

orientadora171 da vida dos homens, agora, portanto serão as Luzes que devem substituir a

antiga ideia de Deus, em face da autonomia racional. Devemos notar que todo discurso

teológico,172 que afinal de contas tinha seu peso e sua importância para a mentalidade da

169 Devemos compreender que a campanha panfletária de Voltaire levou muitas pessoas da sociedade seja de Toulouse ou de Paris a refletirem sobre os atos de desumanidade que o povo, seduzido por um pensamento religioso, praticava. É preciso também perceber que por meio da lenta, porém infalível conscientização liderada por Voltaire, muitas pessoas de Toulouse exigem também que os magistrados de Toulouse reparem o crime que cometeu contra a família Calas. 170 Hazard, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. Cit. P. 156. 171 Mesmo após o período medieval, ainda por muito tempo se encontrará na sociedade uma mentalidade climatizada pelas ideologias medievais. O período iluminista deseja romper com essas estruturas para que o pensamento religioso não mais manipule a vida dos homens e sim que eles se deixem guiar pela razão. 172 O discurso teológico medieval era unilateral e paradigmático, ou seja, não era permitida uma concepção de vida mais ampla que envolvesse, por exemplo, a experiência cientifica como método na descoberta de outras verdades. A única verdade imutável da qual se podia afirmar alguma coisa era sobre a existência de Deus. O século XVI deixou profundas marcas na vida cristã; um novo cisma é provocado e inevitavelmente separa o cristianismo em dois grandes grupos, católicos e protestantes. Sabe-se que desde os primeiros séculos da Igreja cristã, as insurreições e disputas por dogmas religiosos já se faziam sentir. Tais guerras não permitiam em nada a

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época, foi enfraquecido e, em parte, absolutamente substituído pela força do discurso da

razão.

A ortodoxia do pensamento religioso cristão não fora capaz de perceber as atrocidades

cometidas em nome da religião. Voltaire critica essa forma de pensar que se constituía de um

modelo inflexível incapaz de abrir-se aos apelos da razão que em tudo pretendia o progresso

da humanidade.

Voltaire era deísta e suas ideias sobre religião foram vagas e imprecisas, pois se vê que

seu interesse principal não era a reforma da religião, mas a reforma das ideias sobre religião

que por muitas vezes comprometiam o bem da sociedade. O que, portanto, ajudará o homem

como um ser mais racional do que religioso será em tudo a razão.

Por meio da razão o homem de criatura passa a ser criador e estruturador de sua vida;

cada um se torna o centro do universo, pois nesse novo modelo de vida o homem se descobre

como um criador, um manipulador da natureza; enfim a previsibilidade da vida concentra-se

em mãos humanas, pois por meio do conhecimento científico tudo devia se tornar possível. Já

no século XVII, Francis Bacon escrevia sua obra Novum Scientiarum Organum, que

possibilitaria a aquisição do conhecimento científico por meio da experiência.

A sociedade, para Voltaire, deveria ser um organismo essencialmente político no qual,

ao lado da tolerância religiosa e civil, existisse uma hierarquia e uma disciplina. Por isso, é

convincente que para Voltaire era intragável a ideia de uma desordem social em que a

intolerância fosse a força motriz. Ele era consciente de que os cristãos não dignificavam a

religião; na maioria das vezes estavam mais aptos a praticarem a crueldade do que a

benevolência com seus irmãos da mesma ou de outra religião. No Tratado Sobre a

Tolerância, ele afirma: “Esse povo é supersticioso e violento; vê como monstros seus irmãos

possibilidade de uma reconciliação entre os cristãos. Por isso, nota-se que a intolerância religiosa entre os cristãos tem sua origem no discurso religioso que se arrogava no direito de estabelecer a verdade para tudo.

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que são da mesma religião que ele”.173 Voltaire mostra com indignação um ódio pelo

comportamento intolerante de católicos que reagiam contra seus irmãos calvinistas.

Por ódio implacável devemos compreender também que Voltaire estava rejeitando

aquele modelo social dominado por um pensamento religioso anacrônico e inviável para a

formação de uma nova sociedade. A impertinência infinita de suas críticas se direciona quase

sempre contra as autoridades da religião. São os bispos e padres que em primeiro lugar

alimentam em seus fiéis a intolerância. Muitas dessas autoridades, segundo Voltaire, não eram

capazes de formar bem seu povo e ensinar-lhes o verdadeiro caminho que deveria levá-los à

indulgência dos corações.

Quando nos deparamos com a época de Voltaire logo vamos perceber um divisor de

águas bastante evidente, pois uma sociedade com sérias transformações estava se dando

paulatinamente. Voltaire é figura essencial no tempo das Luzes que provoca uma mudança

lenta, porém infalível na mentalidade do século XVIII.

O essencial do pensamento de Voltaire reside em sua capacidade incomum de estar e

muito além de sua época. Foi um liberal quanto à forma de pensar a religião e um

inconformista com a ignorância que dominava o povo. Utilizava-se da ironia e do sarcasmo

para criticar os reis e príncipes, padres e bispos partidários de um modelo social tradicional

incapaz de responder aos anseios da nova sociedade pensada por ele. Sua educação

religiosa174 de berço familiar não fora capaz de domar seu espírito e impedi-lo de gritar pela

liberdade de sua nação e de seu povo em favor da tolerância e da liberdade religiosa.

René Pomeau afirma na Introdução do Tratado Sobre a Tolerância que Voltaire desde

sua juventude conhecera de perto o clima tenso da intolerância religiosa. Disputas essas por

dogmas religiosos entre católicos e calvinistas. O ódio provindo das competições religiosas

precisava ser domado e certamente não estava no pensamento religioso esta resposta. A 173 VOLTAIRE, op. cit., 2000, cap. I, p, 19. 174 Voltaire estudou no colégio dos jesuítas, Luís-Le-Grand. O desejo de seu pai era o de que seguisse a carreira da magistratura.

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proposta de Voltaire é a de que cada cidadão vença sua ignorância de pensamento e abra-se

para o mundo do conhecimento racional, onde a liberdade religiosa e de pensamento são

possíveis.

Falar em liberdade religiosa no contexto de Voltaire é se colocar contra as estruturas

hierárquicas daquele tempo. O domínio do pensamento religioso não estava disposto em

momento algum a afastar-se de sua estrutura ortodoxa.

A conscientização proposta pela filosofia das Luzes era a de uma formação que

restaurasse no indivíduo sua capacidade de pensar, pois o que percebemos ainda neste

momento era uma regressão no que diz respeito ao comportamento desses indivíduos. Desses

povos dominados pela religião é possível observar que o fanatismo que praticavam era

solução e resposta contra todo tipo de possíveis tentativas de liberdade religiosa. Isso

podemos notar, por exemplo, no capítulo II do Tratado Sobre a Tolerância quando Voltaire

se refere aos católicos Penitentes Brancos que veem seus irmãos calvinistas como monstros e

inimigos implacáveis.

Na concepção de Voltaire era preciso urgentemente solucionar os problemas de

religião que se reduziam basicamente entre o fanatismo e o ateísmo. Um ateu175 constituiria

segundo Voltaire um enorme retrocesso para a sociedade desenvolvida racionalmente falando,

pois acreditar demasiadamente em Deus pode desembocar no fanatismo, porém não acreditar

também pode comprometer o processo do desenvolvimento social. Devemos portanto

entender que, quando Voltaire rejeita o ateísmo, ele não quer com isso propor que a sociedade

iluminista seja construída com base na religião ou na fé religiosa dos indivíduos; sabemos que

para Voltaire a religião não passa de um simples detalhe, útil para o populacho.

175 Segundo Voltaire um ateu pode ser tão perigoso quanto um fanático, por isso nem um nem outro devem ser admitidos no modelo de sociedade ilustrada. Voltaire acredita que o ateu comprometeria as bases da nova sociedade, pois seria tão violento quanto um fanático, e isso, deveria em tudo ser evitado.

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Para os cristãos a ideia de Deus é fundamental na construção de uma nova

sociedade.176 Para Voltaire, Deus se revela unicamente à razão humana. Quando olhava para o

modo de vida dos cristãos vivendo de perseguições e competições geradoras de guerras

religiosas, não podia compreender o porquê desses terríveis males que por vezes produziam

aquilo que ele tanto combatia: o fanatismo e a intolerância. Se os cristãos deveriam em tudo

viver a paz e não a guerra, pois Jesus Cristo confirma isso no Evangelho,177 então por que

haver tantos males cultivados pelos cristãos? Afinal, onde estava a origem do mal: em Deus

ou nos homens?

Voltaire em seu “Poema Sobre o Desastre de Lisboa”,178 escrito em 1755, questiona a

benevolência divina. É evidente que sua crítica nesse poema se dirige principalmente aos

176 Como seguidores de Cristo, os cristãos se propõem a trabalhar socialmente para que os valores do Evangelho sejam disseminados no mundo em que vivem. Tais valores obviamente não admitem que a intolerância e o fanatismo sufoquem a ética evangélica, pois Cristo veio pregar a paz e a indulgência nos corações e nunca a guerra. A divisão do cristianismo entre católicos e protestantes se deve unicamente aos cristãos e nunca a Cristo. Voltaire está consciente de que a origem desse mal é proveniente do pensamento religioso da época. 177 Por Evangelho deve-se compreender a mensagem de salvação que Jesus Cristo veio anunciar à toda humanidade. Por isso, essa mensagem se caracteriza também pela Boa-Nova (notícia feliz) de Deus aos homens. 178 Poema escrito por ocasião do terremoto em Lisboa que matou mais de sessenta mil pessoas. Voltaire se utiliza desse evento para questionar o otimismo filosófico de Pope e de Leibniz. Ao descrevê-lo Voltaire narra os terrores catastróficos que levaram inúmeras pessoas à morte. Deus por sua benevolência como acreditava os otimistas não podia ter evitado tantos males? Segue-se o excerto desse Poema: (...) Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra! Ó agregado horrendo que a todos mortais encerra! Exercício eterno que inúteis dores mantêm! Filósofos iludos que bradais: “Tudo está bem”; Acorrei, contemplai essas ruínas malfadas, Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas, Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados, Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados Cem mil desafortunados que a terra devora, Os quais, sangrando despedaçados, e palpitantes embora, Enterrados com seus tetos terminam sem assistência, No horror dos tormentos sua lamentosa existência! Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes, Aos espetáculos medonhos de suas cinzas fumegantes, Direis vós: “Eis das eternas leis o cumprimento, Que de um Deus livre e bom requer o discernimento? Direis vós, perante tal amontoado de vítimas: “Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes? Que crime, que falta cometeram esses infantes Sobre o seio materno esmagados e sangrantes? Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? Lisboa está arruinada, e dança-se em Paris. (...). VOLTAIRE, Poema Sobre o Desastre de Lisboa Seguido de Carta a Voltaire (sobre a providência). Tradução Jorge P. Pires. Lisboa: Frenesi, 2005.

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filósofos partidários de um otimismo exagerado como Leibniz e Pope. Leibniz é autor da tese:

“O melhor dos mundos possíveis”.179 Este desejava com isso afirmar a tese de que Deus sendo

infinitamente bom não poderia deixar de ter feito e escolhido o melhor dos mundos. Diante

dessa afirmação e do terrível acontecimento do terremoto em Lisboa, Voltaire expressa um

incompreensão por aquilo que esses otimistas falam de Deus. Afinal, se Deus é bom não

deveria evitar aqueles males? Por que tantos inocentes como crianças indefesas e mães

lactentes deveriam pagar com a própria vida erros que não haviam cometido? Afinal o poder

de Deus como acreditavam os cristãos não consistia primeiramente na defesa dos inocentes?

Seja como for, quanto à origem do mal, é preciso encará-la a partir dos problemas humanos,

pois o que emerge da realidade social na época de Voltaire são os conflitos dos homens por

disputas de religião. Para que a vida possa se tornar mais suportável é preciso eliminar a

ignorância humana e em tudo “cultivar nosso jardim”.180

Voltaire em Cândido ou o Otimismo [Candide, ou l'Optimisme], de 1759, mostra que a

existência humana é envolvida pelos mais imprevistos acontecimentos. Nesse conto a

incógnita do mal continua a desafiar as mais profundas compreensões filosóficas, ou seja, a

filosofia otimista, que se arrogava no direito de estabelecer a verdade como horizonte aos

homens, se vê limitada e incapaz de responder ao problema da origem do mal. Segundo

Voltaire, os males particulares não concorrem para bens universais como acreditavam os

filósofos otimistas. A crença de que tudo estava bem só justificava ainda mais uma

compreensão filosófica que nada tinha a ver com a realidade do universo.181 Cândido, mesmo

179 LEIBNITZ, Gottfried Wilhelm. Os princípios da filosofia ditos a monadologia. Tradução Marilena de Souza Chauí. Col. Os Pensadores: História das Grandes Ideias do Mundo Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.103. 180 Expressão utilizada por Voltaire para falar que devemos partir da realidade concreta do nosso cotidiano para que, auxiliados pela razão, possamos viver na busca do progresso, e também, procurando ser felizes nesse mundo. VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. Tradução, apresentação e notas de Miécio Tati. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988, cap. XXX. 181 De acordo com Voltaire o universo é constituído por leis fixas e universais. Por isso, não são as crenças do homem ou suas orações a Deus que devem impedir os terremotos ou os desastres ambientais, mas tudo já está predeterminado por tais leis. Voltaire é um grande admirador de Isaac Newton, o pai da física moderna. Newton não apenas explicou a teoria da gravidade como também a demonstrou ao mundo. Esta teoria gravitacional é a

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com sua nobreza e polidez de costumes, não conseguiu evitar os mais inusitados males que

ocorreram em sua vida; mesmo seu grande amor por Cunegundes se realizou em meio aos

mais terríveis tormentos, pelos quais jamais esperava. Durante a vida de Cândido ele pode

notar que a filosofia do mestre Pangloss era vaga e imprecisa, pois ao mesmo tempo em que

não conseguira prever tantos acontecimentos ruins, também não fora capaz de solucioná-los

quando se fazia necessário.

Se o mal é uma constante na vida humana, se devemos conviver com esse empecilho

na construção de uma sociedade onde o progresso deva ser maior, então necessitamos

urgentemente sanar o mal da intolerância entre os homens. Não apenas na época de Voltaire

existira esse desafio. A intolerância religiosa e civil se expressa por meio dos mais diversos

protótipos desde os tempos mais remotos em que se ousou proclamar um simples dogma de fé

ou doutrina religiosa. A religião sempre foi acompanhada por esse mal que é o fanatismo e a

intolerância. Na tentativa de religar os homens a Deus muitas vezes a religião é cada vez mais

usada como instrumento camuflador para inocentemente provocar a desunião e as

perseguições sanguinárias.

René Pomeau no final da Introdução do Tratado afirma: “No mundo em que vivemos,

dois séculos depois de Voltaire, a universalidade faz da tolerância um dever”.182 O autor da

presente frase preanuncia o que de fato acontecerá em tempos futuros da humanidade. Isso se

afirma porque em qualquer âmbito social, seja ele político, científico e certamente religioso, a

ideia de praticar a tolerância é fundamental e cada vez mais urgente.

No século XX temos assistido os mais terríveis tormentos em nome da intolerância.

Casos como a Segunda Guerra Mundial,183 resultando na chacina de mais de seis milhões de

mais real constatação por parte da física de uma lei fixa no universo e ao mesmo tempo a demonstração de uma lei universalmente aceita. Por isso, não devemos na concepção voltairiana considerar os terremotos e desastres ambientais como castigos de Deus, mas fenômenos ocasionados pelas leis do universo. 182 VOLTAIRE, op. cit., 2000, p. XXXI. 183 O nazismo de Hitler expressa também uma atitude fanática e intolerante de um poder que se julgava absoluto e ilimitado no domínio das nações.

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pessoas, a destruição de Hiroshima em 1945 e os conflitos da Guerra Fria,184 que terminaram

com a sobreposição do sistema capitalista americano sobre a política do comunismo. Todos

esses tristes acontecimentos que não dignificaram a humanidade, mas antes, retrocederam o

desenvolvimento das nações, devem ser analisados pelo viés ético do dever da tolerância

universal. Seria demais acreditar que o progresso das ciências, o desenvolvimento ilimitado

das tecnologias a fim de tornar a vida humana mais confortável, tenha de fato contribuído

também para uma tolerância maior entre as pessoas? Como devemos encarar essa questão? A

tolerância deve ser resultado de uma multiplicidade de seitas cada vez maior? Deve ela ser

consequência de uma agir humano mais racional como acreditava Voltaire? Seja como for ou

o que pensemos sobre a questão, a verdade é que ainda não superamos o desafio da

intolerância religiosa e civil que vivenciamos nos dias atuais do século XXI.

Voltaire havia dito no Tratado Sobre a Tolerância que o costume das nações havia se

abrandado. Poderíamos dizer o mesmo, nós cidadãos de um mundo aonde a indústria do

descartável e dos aparelhos digitais conduzem em tudo a vida dos homens? A tecnologia de

ponta que temos é capaz de abrandar nossos hábitos intolerantes? E, além disso, o que pensar

sobre a religião? A proposta de Voltaire muito bem expressa no verbete “Tolerância” de que

essa é o privilégio das nações, não parece ainda muito clara para a consciência do homem

religioso do século XXI.

Assistimos atualmente ao maior comércio religioso185 de todos os tempos; a

multiplicidade das seitas parece ocupar todos os setores da sociedade religiosa. Ao mesmo

tempo em que existe uma liberdade ilimitada na escolha da religião, da seita, e do caminho

184 O mundo estava dividido entre dois poderes antagônicos: o capitalismo e o comunismo. A queda do Muro de Berlim em 1989 marcava definitivamente o fim dessa Guerra Fria e a imposição do capitalismo americano como sistema político mundial para as nações. 185 Por comércio religioso devemos entender a religião como instrumento de aquisição de dinheiro. Muitas seitas religiosas no momento atual do século XXI trabalham unicamente com a intenção de vender a fé por dinheiro. Isso pode ser percebido quando se oferecem curas milagrosas e promessas absurdas de curas, isentando totalmente o auxílio da medicina, mas unicamente pela fé. O proselitismo religioso se impõe cada vez mais, e quando a intenção desse monstro pernicioso não é a de ganhar dinheiro, é a de impor intolerantemente a ortodoxia da fé.

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que se deseja seguir para um maior bem-estar pessoal, a real tolerância que tanto se almeja

ainda não é praticada.

Por isso, se a “universalidade faz da tolerância um dever”, como afirmou Pomeau, o

que também nós devemos pensar atualmente sobre essa filosofia da tolerância? Vivendo a

mais de dois séculos depois de Voltaire, continuamos a experimentar uma absoluta

necessidade da tolerância em nosso meio social.

A proposta de um mundo globalizado, dialogando numa mesma linguagem, e ao

mesmo tempo dominado pelo poderio econômico americano, não é capaz de promover uma

consciência sobre a tolerância. Aliás, suportar ou tolerar o outro, só é possível quando o

dinheiro pode comprar essas relações entre os indivíduos.

A tolerância atualmente tão almejada diz respeito não apenas ao diálogo pacífico inter-

religioso como na época de Voltaire, mas principalmente na formação integral ética e moral

de cada indivíduo. Estamos acostumados a viver nosso individualismo e isso é muito perigoso

tanto quanto o fanatismo combatido por Voltaire. A pergunta que nos impele a todo momento

é responder se estamos preparados a vencer o “monstro funesto” do individualismo desumano

e abrir-nos a esse mundo diversificado, sem rejeitar ninguém por suas ideias e maneiras de

viver. Assim, ao refletirmos hoje o Tratado Sobre a Tolerância de Voltaire devemos nos

inspirar na insistência ininterrupta desse crítico em implantar a qualquer custo na sociedade

uma consciência que expresse uma real tolerância pela humanidade.

“Defendo o conteúdo racional de uma moral baseada no mesmo respeito por todos e

na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro. A desconfiança moderna diante

de um universalismo que sem nenhuma cerimônia, a todos assimila e iguala, não entende o

sentido dessa moral e, no ardor da batalha, faz desaparecer a estrutura racional da

alteridade e da diferença, que vem sendo validade por um universalismo bem entendido (...) o

mesmo respeito por “ todos e cada um” não se entende àqueles que são congêneres, à pessoa

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do outro ou dos outros em sua alteridade. A responsabilidade solidária pelo outro “ como um

dos nossos” se refere ao “ nós” flexível numa comunidade que resiste a tudo o que é

substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa comunidade moral se

constitui exclusivamente pela idéia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento,

assim como a inclusão dos marginalizados – e de cada marginalizado em particular – em

relação de diferença mútua. Essa comunidade projetada de modo construtivo não é um

coletivo que obriga seus membros uniformizados à afirmação da índole própria de cada um.

Inclusão não significa aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio.

Antes, a “ inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão aberta a todos

– também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro – e querem continuar sendo

estranhos”.186

186 HABERMAS. Jugen. A inclusão do outro. Estudos de teoria Política. São Paulo. Edição Loyola. 2002. P 7.

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