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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 103 POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA REPRODUÇÃO: CONTRIBUTO DO PENSAMENTO DE PIERRE BOURDIEU Nadjane Gonçalves de Oliveira 1 ; Maily dos Santos Santana 2 ; Edson Luís Gonçalves de Oliveira 3 RESUMO: O presente artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica e tem como objetivo refletir e discutir o contributo que os estudos de Pierre Bourdieu oferecem para compreendermos qual o lugar da educação no campo da organização social do Estado. Para este teórico as culturas e as práticas sociais, com seus mecanismos de produção e manutenção; as relações de força e a produção simbólica, existentes em cada campo na luta por poder e reconhecimento, são preocupações centrais. Concluímos através deste estudo que a escola reproduz a dominação de uma classe que impõe a sua própria cultura, dando-lhe um valor incontestável, configurando o arbitrário cultural dominante, concretizando o papel que a escola desempenha de marginalizar os alunos das classes populares. Dessa forma, concordamos que Bourdieu nos apresenta uma importante contribuição quando afirma que o enfrentamento a essa dominação simbólica, se inicia por levantar essa discussão, seguido de uma tomada de atitude frente a essa inquietante problemática social, sobretudo por acreditarmos que a tarefa fundamental da escola é capacitar os estudantes a compreenderem a natureza do mundo material e social, visando agir sobre ele para alcance dos objetivos individuais e coletivos. Palavras-chave: Bourdieu. Educação. Escola. Abstract: This article is the result of a bibliographical search and aims to reflect and discuss the contribution that Pierre Bourdieu studies offer to understand what is the place of education in the field of State’s social organization field. For this theorist the cultures and social practices, with its mechanisms of production and maintenance; power relations and symbolic production, in each field of the struggle for power and recognition are the author central concern. We conclude through this study that the school reproduces the domination of a class that imposes its own culture, giving it an undeniable value by setting the dominant cultural arbitrary, fulfilling the role that the school plays to marginalize students from the popular classes. Thus, we agree that Bourdieu presents an important contribution when he says that facing this symbolic domination begins by raising this discussion, followed by an attitude of taking this disturbing social problem, especially because we believe that the fundamental task of school it is to enable students to understand the nature of the material and social world, aiming to act on it to reach the individual and collective goals. Key-words: Bourdieu, School, Education 1 Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS 2 Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS 3 Universidade do Estado da Bahia UNEB CAMPUS V

POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA REPRODUÇÃO: … · contribuição quando afirma que o enfrentamento a essa dominação simbólica, se inicia ... na sociedade. Ao apreender os estudos

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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 103

POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA REPRODUÇÃO:

CONTRIBUTO DO PENSAMENTO DE PIERRE

BOURDIEU

Nadjane Gonçalves de Oliveira1 ; Maily dos Santos Santana2 ; Edson Luís

Gonçalves de Oliveira3

RESUMO: O presente artigo é resultado de uma pesquisa bibliográfica e tem como

objetivo refletir e discutir o contributo que os estudos de Pierre Bourdieu oferecem para

compreendermos qual o lugar da educação no campo da organização social do Estado.

Para este teórico as culturas e as práticas sociais, com seus mecanismos de produção e

manutenção; as relações de força e a produção simbólica, existentes em cada campo na

luta por poder e reconhecimento, são preocupações centrais. Concluímos através deste

estudo que a escola reproduz a dominação de uma classe que impõe a sua própria cultura,

dando-lhe um valor incontestável, configurando o arbitrário cultural dominante,

concretizando o papel que a escola desempenha de marginalizar os alunos das classes

populares. Dessa forma, concordamos que Bourdieu nos apresenta uma importante

contribuição quando afirma que o enfrentamento a essa dominação simbólica, se inicia

por levantar essa discussão, seguido de uma tomada de atitude frente a essa inquietante

problemática social, sobretudo por acreditarmos que a tarefa fundamental da escola é

capacitar os estudantes a compreenderem a natureza do mundo material e social, visando

agir sobre ele para alcance dos objetivos individuais e coletivos.

Palavras-chave: Bourdieu. Educação. Escola.

Abstract: This article is the result of a bibliographical search and aims to reflect and

discuss the contribution that Pierre Bourdieu studies offer to understand what is the place

of education in the field of State’s social organization field. For this theorist the cultures

and social practices, with its mechanisms of production and maintenance; power relations

and symbolic production, in each field of the struggle for power and recognition are the

author central concern. We conclude through this study that the school reproduces the

domination of a class that imposes its own culture, giving it an undeniable value by

setting the dominant cultural arbitrary, fulfilling the role that the school plays to

marginalize students from the popular classes. Thus, we agree that Bourdieu presents an

important contribution when he says that facing this symbolic domination begins by

raising this discussion, followed by an attitude of taking this disturbing social problem,

especially because we believe that the fundamental task of school it is to enable students

to understand the nature of the material and social world, aiming to act on it to reach the

individual and collective goals.

Key-words: Bourdieu, School, Education

1 Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS 2 Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS 3 Universidade do Estado da Bahia – UNEB – CAMPUS V

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INTRODUÇÃO

É inegável a valiosa contribuição que o renomado sociólogo francês4, Pierre Bourdieu,

nos apresenta. Suas obras versam sobre variados temas, conseguindo assim, produzir

conhecimentos extremamente importantes à sociedade e para as gerações vindouras. A

sua teoria, desenvolvida ao longo de décadas de pesquisa, e com elevado grau de

complexidade, nos traz instrumentos teóricos preciosos que nos permitem analisar e

compreender a realidade social. Bourdieu nos apresenta importantes conceitos que

compõem toda sua teoria, como conceito de habitus, de campo, de capital, de dominação,

de distinção e de violência simbólica. E esse vasto campo de objetos de estudos se

constitui em uma característica específica da teoria bourdiana.

Ao apropriar-se de Marx 5 , Bourdieu demarca uma forte presença do paradigma da

dominação e das relações de força e conflitos sociais daí gerados, enfatiza rupturas e

questionamentos para melhor compreender a luta de classes BOURDIEU, Pierre,

2001.Ele não reconhece a classe teórica como real e efetivamente mobilizada e considera

o economicismo reducionismo grave da realidade. Dessa forma, Bourdieu não se propõe

a romper com o objetivismo, que ignora as lutas simbólicas que ocorrem nos diferentes

campos, adotando a noção de capital, que amplia para outros âmbitos, além do

econômico, como o social, o cultural e o simbólico.

Bourdieu amplia a concepção marxista de capital, entendendo que este termo não traduz

apenas o acúmulo de bens e riquezas econômicas, mas sim, todo recurso ou poder que se

manifesta em uma atividade social. Assim, além do capital econômico é decisiva para o

sociólogo a compreensão de capital cultural, compreendido naqueles saberes e

conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos; Ocapital social, configurado através

das relações sociais que podem ser convertidas em recursos de dominação. Em resumo,

4 A década de 1960 marcou, principalmente na França, uma insatisfação geral com a escola. O caráter

autoritário e elitista do sistema educacional e o baixo retorno social e econômico, advindo dos certificados

escolares, frustravam a expectativa das classes subalternas francesas que buscavam obter mobilidade social

e econômica a partir da formação escolar (Nogueira & Nogueira, 2004).

5 Karl Heinrich Marx foi um filósofo, cientista político, e socialista revolucionário muito influente em sua

época, até os dias atuais.

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refere-se a um capital simbólico(aquilo que chamamos prestígio ou honra e que permite

identificar os agentes no espaço social). Ou seja, desigualdades sociais não decorreriam

somente de desigualdades econômicas, mas também dos entraves causados, por exemplo,

pelo déficit de capital cultural no acesso a bens simbólicos.

Quando se apropria dos estudos de Weber6 ele nos traz a noção de representação, em

relação ao sentido conferido pelos agentes para suas ações (dimensão simbólica)

BOURDIEU op. cit. 2001. E nos apresenta também a noção de legitimidade, ou a

qualidade de adesão, aceitação e reconhecimento de algo pelos agentes. São aplicadas

para a compreensão dos mecanismos de dominação e de seu processo de produção,

transmissão e manutenção, na sociedade.

Ao apreender os estudos de Durkheim, Bourdieu retoma a discussão de defesa da

constituição da Sociologia como ciência, buscando identificar as “leis objetivas” que

orientam a realidade social e atribuindo uma explicação e ordem ao aparente caos da

sociedade7. BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas, 2004

Como a educação é objeto de discussão neste artigo, vale ressaltarmos que o processo

educacional não está isento de intenções e motivações, e nesse processo cabe considerar o

papel do Estado representado na escola através das ações dos agentes presentes nas

6 Maximilian Weber É muito conhecido por seus estudos sobre as causas sociais. Teve enorme importância

para a política europeia, ao escrever o Manifesto Comunista, juntamente com Friedrich Engels, que deu

origem ao “Marxismo”, citado adiante. Foi um ativista do movimento operário europeu, no

chamadoInternational Workingmen‟s Association(IWA), também conhecido como First International.

<http://www.infoescola.com/sociologia/ karl-marx-e-o-marxismo/>. foi um economista e sociólogo

alemão, e é considerado atualmente um dos fundadores do estudo moderno da sociologia e administração

pública. Começou sua carreira na Universidade de Berlin, e depois passou para várias outras instituições.

Teve grande influência política na Alemanha, sendo um dos negociadores de seu país no Tratado de

Versalhes, e membro da comissão que criou a Weimar Constitution, a Constituição do Estado Alemão. Ele

foi o responsável pela inserção do Artigo 48 nesta constituição, que mais tarde foi usado por Adolf Hitler

para reprimir a oposição e conseguir poderes ditatoriais. Até hoje as contribuições de Weber para a política

alemã continuam controversas. <http://www.infoescola.com/sociologia/max-weber- maximilian-weber/>.

7 Émile Durkheim foi um dos responsáveis por tornar a sociologia uma matéria acadêmica, sendo aceita

como ciência social. Durante sua vida, publicou centenas de estudos sociais, sobre educação, crimes,

religião, e até suicídio. Um dos focos de Durkheim era em como as sociedades poderiam manter a sua

integridade e coerência na era moderna, quando as coisas como religião e etnia estavam tão dispersas e

misturadas. A partir disto, ele procurou criar uma aproximação científica para os fenômenos sociais.

Descobriu a existência e a qualidade de diferentes partes da sociedade, divididas pelas funções que

exercem, mantendo o meio balanceado. Isto ficou conhecido como a teoria do Funcionalismo. <

http://www.infoescola.com/sociologia/emile-durkheim/>.

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dimensões administrativas e pedagógicas e neste ensaio, procuramos refletir a

importância da teoria bourdiana para a compreensão do Estado, no que tange a educação,

discutindo o papel da escola enquanto reprodutora de uma estrutura coercitiva e

dominante, considerando os mecanismos pelos quais a violência simbólica é exercida

pela instituição escolar e pelos seus agentes, que infelizmente contribuem para essa

legitimação social e para a conservação das estruturas sociais.

CONTRIBUTO TEÓRICO E CONCEITUAL

Tentaremos aqui apresentar de maneira sistematizada, alguns conceitos importantes para

a compreensão do legado teórico deixado por Pierre Bourdieu, sem a pretensão de

considerar que apenas esse recorte teórico será suficiente para a compreensão de sua

importante obra.

Iniciaremos abordando o espaço social, que para Bourdieu pode ser compreendido como

um sistema de posições sociais que se definem umas em relação às outras, que se faz em

determinado espaço e tempo físicos, e que tendencialmente se reproduz pela conformação

consensual, em geral inconsciente, de seus agentes. Dessa forma, os espaços sociais

podem abranger campos distintos, que se inter-relacionam, e assim, cada elemento do

campo é considerado um agente, que pertencente a determinado campo partilha de um

conjunto de interesses e de capital comum, sem, no entanto, deixarmos de considerar que

nesse mesmo campo existem lutas e concorrências oriundas das relações de poder

existentes no interior deste campo.

Vale destacar que todos os campos caracterizam-se por possuírem características

próprias, com dinâmicas, regras e capitais específicos e por um grupo dominante e outro

dominado, com possíveis gradações intermediárias e conflitos constantes, e definidos de

acordo com seus valores internos.

Segundo Bourdieu (2008, p. 21), “O habitus é esse princípio gerador e unificador que

retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida

unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas”.

Ressaltamos que o habitus é ao mesmo tempo coletivo e individual, sobretudo, porque a

dominação ocorre nos agentes e nos espaços coletivos, representados pelas instituições.

Interessante perceber a ênfase que Bourdieu atribui a característica de incorporação do

habitus no agente, e segundo ele, essa incorporação dá-se de tal maneira que se torna o

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próprio agente, tendo em vista que ocorre em um processo de interiorização,

reproduzindo, no plano interno do agente, as estruturas externas do

O espaço é relacional: “(...) conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas

às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, vizinhança ou de

distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre”.

(BOURDIEU, 1996, p. 18)

O habitus preenche uma função que, em uma outra filosofia, confiamos à consciência

transcendental: é um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporou

as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor particular desse mundo , de um

campo, e que estrutura tanto a percepção desse mundo quanto a ação desse mundo.

(BOURDIEU, 1996, p. 144)

mundo. Essa lógica contribui para a reprodução da ordem social, na medida em que esta

não pode se dar sem a adesão, o reconhecimento e mesmo a ação dos agentes e

instituições envolvidas; porém, este processo se dá de forma sutil, em geral inconsciente

por parte dos agentes. E para esclarecer esse pressuposto Bourdieu afirma que

A lógica especifica de um campo se institui em estado incorporado sob a forma de um

habitus especifico, ou melhor, de um sentido do jogo, ordinariamente designado como

um "espírito" ou um "sentido" (“filosófico „literário‟; “artístico” etc.”.), que praticamente

jamais e posto ou imposto de maneira explicita. Pelo fato de operar de modo insensível,

ou seja, gradual, progressiva e imperceptível, a conversão mais ou menos radical

(conforme a distância) do habitus originário requerido pela entrada no jogo e

consequentemente aquisição do habitus específico acaba passando despercebida quanta

ao essencial. (BOUDIEU, 2001, p. 21).

De acordo com o referido teórico é preciso conhecer a história, a gênese e as estruturas

vigentes na sociedade e em determinado campo em especial, para compreender a

constituição do habitus. Em contra partida, compreende-se também que as funções

sociais são verdadeiras ficções, tendo em vista que a imagem social é forjada pelo Estado,

por meio da representação, e institui-se assim, as funções sociais que, para serem

cumpridas, necessitam de adesão do agente ao jogo social.

Dessa forma, compreendemos que a constituição do habitus implica em uma dialética

entre ele e as significações prováveis percebidas pelo agente, no sentido de que este

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tenderá a observar na realidade elementos que reconhece e pensa compreender,

resultando em práticas que reforçam essa visão de mundo. E para uma melhor

compreensão deste conceito, Bourdieu propõe a seguinte fórmula: [(habitus) (capital)] +

campo = prática (BOURDIEU, 2007, p.97). Esta formula é compreendida como resultado

da relação dialética entre as estruturas e a conjuntura em que elas estão inseridas, sendo

intermediada pelo habitus, que se constituí nessa relação dialética, configurando um

movimento entre as estruturas e a conjuntura, e entre o habitus e estas estruturas e

conjuntura, levando à prática.

Nessa dinâmica a prática fundamenta a noção de estratégia, que também pode ser

individual ou coletiva, e visa à manutenção, apropriação ou expansão do capital

disponível e desejado, sobretudo porque dependem do capital disponível e de seu valor

em determinado campo e conjuntura. Entretanto, as estratégias dependem e recorrem aos

diferentes tipos de capital. Na teoria bourdiana os campos organizam-se hierarquicamente

no interior do campo de poder a partir do capital que se subdividem em capital social,

capital cultural, capital econômico e o capital simbólico acrescentado por Bourdieu como

sendo “um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento suficiente

para ter condição de impor o reconhecimento [...].” (BOURDIEU, 2004, p.166). Para o

autor o capital simbólico confere poder (simbólico) ou legitimidade ao agente ou grupo

que o detém, considerando o reconhecimento dentro de um campo determinado.

Todo esse processo desencadeia o que Bourdieu denomina de violência simbólica, que

para o teórico é “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem

e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são

inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997, p. 22), sendo exercida por

agentes dominantes ou instituições, que estabelecem o que é reconhecido como legítimo

dentro do campo.

Bourdieu e Passeron (2002, p. 27), ao tratarem do princípio de que a cultura, ou o sistema

simbólico, é arbitrário, uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural,

afirmam que se trata de uma construção social e que a sua manutenção é fundamental

para a perpetuação de uma determinada sociedade, através da interiorização da cultura

por todos os membros da mesma.

Nessa perspectiva, a violência simbólica se expressa na imposição legitimada e

dissimulada, através da interiorização da cultura dominante, reproduzindo as relações do

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mundo do trabalho. Na prática os dominados não se opõem ao seu opressor, considerando

que não possuem formação crítica para se perceberem como vítima do processo de

dominação, em contra partida, envolvido nesse campo, o oprimido considera a situação

natural e inevitável.

Corroborando com essa discussão a professora Lúcia Bruno ao estudar o Poder Político e

Sociedade BRUNO, Lúcia. Poder Político e Sociedade: Qual objeto? Disponível em

<www.usp.br/prolam/downloads/nespi_023ok.pdf.> , questiona De onde vem este

sentimento hoje tão presente nas consciências, da impossibilidade de engendrarmos a

partir de nós mesmos o político? O político aqui entendido como a capacidade de

tomarmos decisões, apoiados no sentimento de pertencimento a um grupo, a uma

comunidade que não seja apenas decorrente de um ou mais aspectos isolados de nossas

práticas, mas de um conjunto integrado, ainda que contraditoriamente, de aspectos de

práticas compartilhados e que nos definem como humanos? (BRUNO, 1993, p.3).

A citada autora pontua que a racionalidade anunciada ou esperada do Estado, carrega

consigo o resíduo inevitável da violência e da usurpação que acabou por converter-se em

irracionalidade e esta minou as suas bases possíveis de legitimação. Para Bruno (1993, p.

5), atualmente só a manutenção da preeminência da massa pode sustentar esta situação,

na qual o Estado, apesar do grau de ilegitimidade que o caracteriza, continua a ser visto

como inevitável, quando não, como solução.

SISTEMA EDUCATIVO: A ESCOLA E AÇÕES PEDAGÓGICAS

Podemos perceber a importância dos estudos de Bourdieu para pensarmos a educação

brasileira quando refletimos a cerca da realidade das nossas escolas. Infelizmente ainda

temos uma escola a serviço dos interesses de um Estado dominante que não prioriza um

projeto social com amplitude para suprir as reais necessidades sociais. A escola efetivada

pelos seus agentes não compreende a enorme responsabilidade que possui através da sua

função social, sobretudo por não pertencer a um sistema de educação que se proponha

formar e capacitar os filhos e filhas das camadas populares, continuando assim por

perpetrar as desigualdades sociais que separam a classe dominante das classes

dominadas.

Podemos comprovar essa perpetuação do poderio do Estado na fala de Carlos Nelson

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Coutinho quando nos diz que

Menos consensual é a constatação de que muitos dos traços dessa formação estatal

brasileira ora em crise têm raízes já no início da nossa história. Isso significa que o Brasil

se caracterizou até recentemente pela presença de um Estado extremamente forte,

autoritário, em contraposição a uma sociedade civil débil, primitiva, amorfa

(COUTINHO, 2006, p. 173).

Ao traçarmos uma ligação dessa afirmativa com os fundamentos teóricos bourdianos,

percebemos que a dinâmica da dominação simbólica é trazida para dentro da escola que

dissimuladamente contribui para que essa cultura dominante continue transmitida como

tal e dessa forma acaba favorecendo alguns alunos em detrimento de outros. As crianças

e adolescentes desfavorecidos são justamente aqueles que não tiveram contato, através da

família, com o capital cultural, seja este representado na falta de livros, representações

concretas e por não terem ido a lugares e recebido informações facilmente acessíveis aos

mais ricos.

Considerando esse pressuposto, ao tratarem da ação pedagógica, Bourdieu e Passeron

(2013), explicitam que as relações de força presentes na ação pedagógica são

consideradas como sendo simultaneamente autônomas e dependentes, e para os autores

dependem das relações de força presentes na estrutura social e conseguem constituir-se

como instituição autónoma para a reprodução dessa mesma estrutura. A ação pedagógica

é exercida pelos membros educados de um grupo social, podendo ser exercida pelas

famílias, ou por quaisquer outros agentes mandatados para o efeito. A ação pedagógica

reproduz a cultura dominante, reproduzindo também as relações de poder de um

determinado grupo social (BOURDIEU e PASSERON, 2013).

Dessa forma, os autores chamam a atenção para o fato de a Ação Pedagógica perpetuar a

violência simbólica através de duas dimensões arbitrárias: o conteúdo da mensagem

transmitida e o poder que instaura a relação pedagógica exercendo-o por autoritarismo. A

autoridade pedagógica que visasse destruir a violência simbólica destruiria a si própria,

pois se trata do poder que legitima a violência simbólica.

Nesse sentido, Nogueira e Nogueira (2004), ao estudarem a obra de Bourdieu destacam

que este teórico preocupava-se com os alunos e chamava a atenção para a forma como

estes eram vistos pelo sistema educativo

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Uma das teses centrais da Sociologia da Educação de Bourdieu é a de que os alunos não

são indivíduos abstratos que competem em condições relativamente igualitárias na

escola, mas atores socialmente constituídos que trazem, em larga medida, incorporada

uma bagagem social e cultural diferenciada e mais ou menos rentável no mercado escolar

(NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p. 18).

Assim, pensando a ação pedagógica, Bourdieu e Passeron (2013), afirmam que e trata de

“força pura e pura razão” que recorre a meios diretos de constrangimento na imposição

de significações, pois, segundo eles pelas relações de força e sua reprodução, o arbítrio

cultural dominante tende a ficar sempre em posição dominante, o que origina a ação

pedagógica dominante (classes superiores) que tende a impor e a definir o valor do

mercado econômico e simbólico à ação pedagógica dominada (classes inferiores).

Bourdieu destaca que paradoxalmente só recuperam sua necessidade se os recolocarmos

na lógica, puramente sociológica, do campo onde foram gerados e onde funcionaram

enquanto estratégias simbólicas nas lutas pela dominação simbólica, ou seja, pelo poder

sobre um uso particular de uma categoria particular de signos e, desse modo, sobre a

visão do mundo natural e social (BOURDIEU, 2004, p. 174).

Nessa perspectiva, os professores constituem uma autoridade frente aos alunos e se

tornam legitimadores das mensagens que transmitem, fazendo com que seus alunos

recebam e interiorizem as informações, configurando assim, uma reprodução cultural e

social da classe dominante. Ressaltamos com isso, que os próprios professores pertencem

a esta classe, mesmo sendo também, manipulados pelo sistema de dominação simbólica,

tendo em vista que a violência simbólica é estabelecida a partir do momento em que se

hierarquizam os cargos na escola, e do mesmo jeito que essa dominação não é natural,

esta relação hierárquica de poder também se constitui arbitrária.

Segundo Bourdieu e Passeron (2013), toda a ação pedagógica produz uma autoridade

pedagógica, operação pela qual concretiza a sua verdade objetiva de exercício de

violência. Sem autoridade pedagógica não é possível levar-se a cabo a ação pedagógica,

pois estas detêm o direito de imposição legítima de significações. Dessa forma, as

representações de legitimidade da ação pedagógica variaram ao longo da história. Assim,

toda a ação pedagógica deverá ter como pressuposto a autoridade pedagógica que

exercerá um trabalho de inculcação de um arbítrio cultural. Este trabalho de inculcação

implica sempre o exercício de violência simbólica por parte da autoridade pedagógica.

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Sendo a escola o espaço de formação intelectual e social dos sujeitos, citamos Mendes

(1983), quando este nos apresenta questionamentos extremamente importantes para

refletirmos sobre a função social da educação

“Se se pode promover uma sociedade com cem ou mil pessoas exercendo o papel

ditatorial, por que educar dez milhões ou cem milhões, para exercer a democracia? Se o

“desengrossamento” do povo, até a limpidez é tão dispendioso e “incerto”, por que não

admitirmos a meia-educação?” (MENDES 1983, p. 58).

A escola é um dos importantes lugares onde o conhecimento deve ser transmitido de

forma democrática para todos, entretanto, infelizmente termina por enfatizar as diferenças

e reforçando o sentimento de incapacidade nas crianças e adolescentes que não detêm

capital cultural equivalente aos dos filhos e filhas pertencentes à elite dominante. Dessa

forma, mesmo não se lançando diretamente a estudar o universo da escola, uma vez que

seu foco de estudo era a análise do social e dos aspectos relacionais da vida em

sociedade, os conceitos de Bourdieu 8 nos auxiliam a refletir sobre as instituições

educacionais e sobre as experiências dos agentes sociais quanto aos fatores

influenciadores para o êxito escolar, sobretudo porque a escola não se encontra neutra em

relação à configuração social preexistente.

BREVES CONSIDERAÇÕES

Somos cientes quanto ao fato dos estudos de Bourdieu corresponderem a um sistema de

ensino francês, com especificidades culturais, históricas e políticas diferenciadas do

contexto brasileiro, entretanto, identifica-se claramente em seus estudos a existência de

elementos em comum com a realidade educacional em nosso país, considerando também

a pertinência teórica dos seus estudos, uma vez que a sociologia da educação crítica

elaborada por Bourdieu atribui à escola papel destacado como dispositivo a serviço da

manutenção e legitimação de privilégios sociais.

Infelizmente na sociedade brasileira, o conteúdo transmitido nas escolas é aquele que

interessa à perpetuação da hegemonia cultural da classe dominante, ainda hoje a realidade

do sujeito branco, urbano e economicamente bem sucedido é transmitida de

forma natural e nessa perspectiva, Bourdieu considera os agentes do campo educacional

8 A reprodução (BOURDIEU & PASSERON, 2013); Escritos de Educação (BOURDIEU, 2014).

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de extrema importância para a efetivação da democracia, entretanto, para este estudioso,

essa efetivação só poderá acontecer através da ação de um contra poder reivindicado

pelos intelectuais, os quais o autor considera de “primeira grandeza”.

Através dos estudos de Bourdieu apreendemos que a violência simbólica pode ser

exercida por diferentes instituições da sociedade, a exemplo do Estado, da igreja, da

mídia e da própria escola, etc. Nessa perspectiva, importante se faz perceber que a

educação, no entanto, está no centro desta discussão e que é através da educação que o

indivíduo poderá ser capaz de perceber a violência simbólica que o envolve e poderá

oportunizar o protagonismo de tornar-se um ator social que contraponha a sua

legitimação.

Em meio a toda essa complexidade a escola configura-se como o principal agente

educacional da sociedade contemporânea e, de maneira lamentável continua enfrentando

barreiras histórico-politica e social, no que diz respeito a contribuir com a formação

crítica de sujeitos que sejam autônomos na construção de suas identidades e que

promovam ações emancipatórias, sendo agentes de uma realidade que se contraponha ao

que está imposto por um Estado dominador e coercitivo, que impõe padrões e controle

através dos seus aparelhos.

Os estudos de Bourdieu são imprescindíveis para pensarmos um processo de mudança no

papel das instituições, e assim, discutirmos a ruptura de uma escola que não esteja a favor

da manutenção do poder do Estado e da legitimação da sua violência simbólica,

favorecendo a disseminação de agentes ideologicamente dominados, e sim, que haja um

investimento na construção de uma escola a favor das classes menos favorecidas, uma

escola que esteja para além da reprodução. Ele defende um tratamento igualitário para

aqueles que são diferentes e enfatiza que a educação deve possibilitar a todos as mesmas

oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento, tendo em vista que a escola não pode

ignorar as desigualdades existentes na escola, considerando que agindo dessa forma

poderá favorecer ainda mais os já favorecidos.

REFERÊNCIAS

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teoria do sistema de ensino. Tradução de Reynaldo Bairão. 6a Edição. Petrópolis, Rio de

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Revista Olhares Sociais / PPGCS / UFRB, Vol. 03. Nº. 02 – 2014/ pág. 114

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