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PSICANÁLISE LACANIANA - Capítulo IV A Clínica Márcio Peter de Souza Leite • O discurso do analista Modelos teóricos O ato analítico • Orientação Lacaniana e a direção do tratamento Transferência e desejo do analista Orientação Lacaniana Os tempos de análise Entrevistas preliminares e entrada em análise Destituição subjetiva e fim da análise O DISCURSO DO ANALISTA Modelos teóricos A psicanálise é uma ciência do particular: cada paciente é único e não se pode generalizar o que se encontra nem usar- se procedimentos universalizados. No entanto, se a psicanálise se propõe como ciência, haveria que adequar-se às convenções da epistemologia. O estabelecimento de um

PSICANÁLISE LACANIANA

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El psicoanalisis lacaniano

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PSICANLISE LACANIANA - Captulo IV

A Clnica Mrcio Peter de Souza Leite

O discurso do analistaModelos tericosO ato analtico Orientao Lacaniana e a direo do tratamentoTransferncia e desejo do analistaOrientao LacanianaOs tempos de anliseEntrevistas preliminares e entrada em anliseDestituio subjetiva e fim da anlise

O DISCURSO DO ANALISTAModelos tericos

A psicanlise uma cincia do particular: cada paciente nico e no se pode generalizar o que se encontra nem usar-se procedimentos universalizados. No entanto, se a psicanlise se prope como cincia, haveria que adequar-se s convenes da epistemologia. O estabelecimento de um modelo cientfico para a transmissibilidade da psicanlise choca-se neste obstculo. Para contornar esta dificuldade e dar um maior rigor transmisso, Lacan usou de grficos, matemas, lgica simblica, lgica quntica etc.

Dentro dos recursos grficos alm do esquema Lambda, h o Esquema R, (que um desenvolvimento do Esquema l ).

Esse grfico inclui o Real na demonstrao da estrutura do Sujeito, e foi til para Lacan durante um tempo; mais tarde ele passou a utilizar o n borromeano:

A novidade introduzida pelo n Borromeano estaria na possibilidade de mostrar a inter-relao dos registros e situar o objeto a, que seria o nico a pertencer a todos os registros.

A clnica de orientao lacaniana ainda dispe de um outro recurso, que so os quatro discursos, que consiste na formalizao das diferentes possibilidades de se estabelecerem os laos sociais.

Eles so escritos a partir da permutao de lugares (agente, verdade, outro e produo), ocupados por funes (significante mestre, saber, sujeito e mais-gozar), que se combinam dentro de uma lgica prpria.

Os termos que se articulam so: o sujeito (), o objeto . O S1 o significante mestre; o S2, o saber; S, o sujeito; e a o mais-gozar.

S1 e de S2 a simplificao da escrita da cadeia significante , reduzida sua unidade mnima, equiparando-se o que difere de S1, que (S2,S3...Sn) a S2.

O discurso o efeito do deslizamento de uma cadeia significante, e o sujeito produzido por essa cadeia. O sujeito no estar no centro da cadeia, ser produzido por ela.

Na teoria freudiana, o que determina o percurso de uma pulso so os traos mnmicos, que, por sua vez, so registros das vivncias de satisfao que, animadas por uma quantidade de afeto, visam a recuperao de uma vivncia anterior.

Lacan identificou este registro ao conceito freudiano de trao Unrio, e este, por sua vez, ao de S1. Lacan chamou o S1 de significante mestre, ou verdade, porque ele que organiza a cadeia, e ao S2 ele o identificou ao saber, pois seria a referncia verdade, ou seja, o registro original de um gozo como equivalente satisfao da pulso.

Para a psicanlise, a verdade no existe, porque nunca pode ser alcanada. Ou seja, a partir da existncia da castrao, um desejo nunca se realiza; analogamente, o que existiria seria somente um saber sobre a verdade. O sujeito ao buscar um Outro completo, o identifica verdade absoluta, no no sentido hegeliano, mas no sentido de que para cada sujeito existiria uma ltima verdade, indicada pelos seus desejos.

essa verdade que se buscaria na anlise e que no pode ser alcanada. E se a verdade no pode ser alcanada, como pensar um fim da anlise?

Existem vrias maneiras de se abordar a clnica. Uma so os casos clnicos de Freud; outras seriam os escritos tcnicos, que na verdade so teorizaes, indicando que a oposio teoria e tcnica merece sempre uma ressalva. A tradio de Freud propor a clnica psicanaltica como a clnica do particular. Por isso, no se poder extrapolar a estrutura psquica de um paciente independentemente da situao em que ela foi investigada, porque o analista participa do campo em sua investigao.

Ento, ao propor-se o estudo de um caso clnico, o que estaria se fazendo, seria o estudo do vnculo analtico em que o analista est envolvido.

Uma outra possibilidade de refletir-se sobre os procedimentos do analista, seria pela procura de invariantes das aes, atitudes e posturas que ele toma na situao analtica, verificando-se a constncia de algumas aes, independentemente das particularidades do caso, o que Lacan fez num texto de 1956, que se chama Direo do tratamento e os princpios do seu poder [1].

Outra questo que se impe quando se fala da atividade do analista quanto sugesto, feita por Freud, de que a psicanlise uma arte, sendo que arte o que no tcnica, arte o que supera a tcnica. A tcnica seria o estabelecimento de procedimentos nicos, invariveis, que seriam eficazes em qualquer tipo de situao. o que no existe na psicanlise. O analista deve ter um saber sobre os seus procedimentos, mas de maneira alguma deve utiliz-los de maneira mecnica: precisa adequ-los particularidade de cada caso.

No horizonte de Lacan, como interlocutor epistemolgico esteve Karl Popper, que estabeleceu os critrios de cientificidade, segundo os quais uma prtica, para ser cientfica, deveria obedecer-lhes. Seria invivel a psicanlise obedecer a esses critrios, pois a prtica analtica no falsificvel, o que contradiz o critrio de cientificidade fundamental.

O resultado de uma anlise depende da subjetivao que o paciente fez dela, no havendo meios de objetiv-la. Nesse sentido, os mtodos estatsticos ou outros mtodos usados nas cincias exatas seriam incompatveis com a prtica analtica.

Por isso, Lacan dir que a psicanlise uma retrica, ou seja, uma combinatria de formas de se usar a linguagem. Lacan afirmou que cada analista teria que reinventar a psicanlise e dar conta da prpria descoberta. Freud, propunha a prtica da psicanlise como um jogo de xadrez, em que pode-se ter uma conveno das aberturas e finais, mas o meio do jogo impossvel de ser codificado. Embora haja regras precisas do que se deve fazer, dependeria da criatividade de cada jogador superar esses programas e ultrapassar a possibilidade de ser um jogador unicamente mecnico.

Para pensar o que o analista faz, Freud usou a analogia da tangente, que uma reta que se aproxima de um crculo mas nunca o toca, apenas tende a se aproximar dele. Com esse recurso, Freud tentava definir a prtica analtica, na medida em que haveria uma certa impossibilidade de se concretizar o que ela realmente faz, e preferiu a via negativa, dizendo o que ela no faz.

Respondendo pergunta sobre o que o analista faz, Lacan disse: Dirige o tratamento. O que o analista faz estabelecer e administrar um vnculo discursivo, diferente do usual. O vnculo psicanaltico um vnculo social inventado por Freud. Uma pessoa procura o analista porque supe nele um saber, paga por isso e no recebe necessariamente uma resposta.

Ao vnculo social, Lacan chamou de discurso, o que na teoria lacaniana passvel de ser representado na sua estrutura. Segundo Lacan, a estrutura dos discursos supe um agente, que o que dentro de um vnculo social parte de algum em direo ao Outro. Ento, todo vnculo social tambm supe sempre o Outro.

Na situao analtica, que uma situao a dois, um dito parte do agente e se situa numa dimenso de verdade atribuda ao Outro, o que condiciona uma produo.

Em qualquer situao de vinculao humana h sempre um sujeito que discursivamente age no outro ao se sustentar numa verdade, e a ao de um no Outro ter como efeito a produo de saber ou verdade etc.

Fazendo uma distribuio dos matemas nos lugares estabelecidos, Lacan ordenou quatro possibilidades de vnculo social. Ele mencionou um quinto discurso que seria o discurso capitalista. Os quatro discursos so eixos paradigmticos, so uma forma de enunciar-se as possibilidades das vinculaes discursivas.

Lacan props quatro possibilidades para isso:

No discurso do mestre, o significante da verdade, S1, estar no lugar de agente, S2, o saber no lugar do outro, o sujeito no lugar da verdade e o mais-gozar como produo.

No discurso universitrio, no lugar do agente estar o saber. O significante mestre estar no lugar da verdade; ele ter como produo o sujeito, que estar preso ao saber.

Na universidade existem cdigos estabelecidos do que o saber, que colocado no lugar do agente produzem um sujeito do saber.

Outra possibilidade discursiva d-se a partir do sujeito como agente do discurso. O sujeito ao estar no lugar do agente tem como produo S2, o saber, e foi nesse discurso, o lugar da descoberta da psicanlise. Lacan chamou a esse discurso de discurso histrico. O sujeito no lugar do agente produz saber e foi esse saber que Freud recolheu para construir a psicanlise.

Neste discurso o objeto causa do desejo est no lugar de agente. Esse discurso indica o que o analista faz, pois a funo do analista estabelecer um tipo de vnculo onde ele est no lugar de agente como semblante do objeto a.

A finalidade da anlise produzir S1, fazer o sujeito produzir sua verdade por ele mesmo. Esse discurso o contrrio do discurso do mestre. O discurso analtico se instalar quando o objeto causa do desejo estiver no lugar de agente, condicionando como produo uma verdade sobre o sujeito.

A nica maneira de o analista instalar o discurso analtico, de dirigir a cura, no dirigir o paciente. Ele no d conselhos, pois os conselhos o colocariam do lado do mestre e essa a posio do psicoterapeuta, que supe que sabe o que falta ao outro.

Dentro dos conselhos tcnicos, Freud alertou para esse ponto exigindo a neutralidade do analista. Para ele, o analista deve deixar em suspenso seus prprios valores, sua verdade, sua experincia, para poder investigar a do outro.

Um outro procedimento para o analista instalar o discurso analtico fazer o sujeito aplicar a regra fundamental da associao livre. O analista, ao no identificar a sua verdade com a do paciente, encontra essa verdade no prprio paciente.

A psicanlise usa o mtodo da associao livre para descobrir a verdade do paciente, e pede a ele que diga tudo o que lhe passar pela cabea, sem que faa nenhum tipo de censura. Sem esse mtodo de investigao seria impossvel haver psicanlise e no haveria discurso analtico.

Para uma maior eficcia nesta investigao, utiliza-se de variveis tcnicas, que so uma questo de estilo, de conveno; o div, por exemplo. Freud dizia que usava o div por uma questo de preferncia pessoal, pois no conseguia atender dez pacientes seguidos olhando para eles todo o tempo. Freud tambm percebeu que, para facilitar a obedincia regra fundamental, deveria sair do campo escpico do paciente, pois suas reaes certamente influiriam na concatenao de idias do analisante.

Se o paciente observar o analista, a associao no ser to livre assim, porque qualquer reao do analista pode, inconscientemente, significar algo para esse paciente e produzir uma modificao em seu curso associativo. A tcnica da excluso do analista do campo visual do paciente uma forma de tornar mais pura a investigao, e de aproximar-se a uma condio em que o nico estmulo para a associao livre seja o prprio psiquismo do paciente.

H conselhos tcnicos que so seguidos com certo exagero em determinadas comunidades analticas. Algumas tm por consenso que o consultrio do analista deve ser impessoal, que o analista deve trajar-se discretamente e, de preferncia, de um modo formal, com vestimentas que despersonalizem, com o objetivo de poder transform-lo num objeto sem significaes.

Cada analista lidar com essas variveis de acordo com o modelo da prpria anlise, visando estabelecer o discurso analtico. Certos analistas, por mais que mimetizem a prtica analtica de Lacan, nunca a produzem; por outro lado, outros, mesmo tendo caractersticas particulares bastante evidenciadas, possibilitaro o discurso analtico com facilidade.

A freqncia das sesses tambm poderia entrar nessas consideraes, pois constitui uma das formas de o analista manter o discurso analtico. De qualquer forma, a priori, no h por que um nmero de sesses deva ser preestabelecido. Freud o fazia porque um de seus critrios tcnicos rezava que a anlise s seria anlise quando houvesse transferncia, e uma forma de consegui-la com maior eficcia era transformando o analista em resto diurno. Freud afirmava que quanto maior a freqncia das sesses mais facilmente o analista se instalava como resto diurno. evidente que, estando presente na vida do paciente diariamente, o analista passaria a ser um resto diurno privilegiado.

Porm, cada analista saber encontrar o ritmo que tiver a ver com a sua pessoa, com o seu estilo, com a sua forma de produzir a eficcia desse mtodo, sem necessariamente recorrer a padronizaes exteriores sua prpria escolha.O ato analtico

Uma outra maneira de entender como o analista dirige o tratamento seria pensar que o analista atua pelo que faz e no pelo que . O analista no atua por intermdio de seu ser, de suas qualidades, ou de sua sabedoria. O analista atua mediante uma ao que lhe prpria. No basta crer-se analista para que os efeitos da anlise se produzam. necessrio produzir um ato especfico prtica analtica. Quando o analista cr que cura pelo que , est agindo de acordo com a teoria da identificao, isto , de acordo com a teoria da psicologia do Ego, em que o fim da anlise ser fazer com que o paciente se identifique ao Ego forte do analista.

Seria uma idia errnea o analista crer que a cura consiste em transformar o paciente em sua imagem e semelhana. Essa forma de agir no a finalidade da psicanlise, pois nela fica excludo uma ao especfica do analista, porque ao se colocar s como modelo de identificao, no atua no inconsciente. O analista deve produzir um ato analtico, que a modificao da posio subjetiva do paciente.

O analista atua no discurso e dirige a cura estabelecendo um discurso especfico. O ato analtico no significa um acting-out. Pode at ser um acting-out, mas no tem o sentido neuromotor da palavra ato; haveria uma analogia com ato, na medida em que produz uma mudana subjetiva em relao forma de estabelecer o vnculo discursivo.

Se o analista atua no vnculo no qual est includo, se ele privilegia a associao livre como mtodo de investigao e se o nico recurso para obt-la so as palavras, o analista tambm participar com palavras, que so seu nico meio para efetivar seu ato, pois o paradigma da interveno do analista a interpretao.

Porm, mesmo sem usar as palavras, o analista pode interferir no discurso do paciente. Lacan, atuava s vezes dessa forma. No entanto, essa no uma regra a seguir, pois qualquer ao no verbalizada depender da subjetivao do outro; e s se saber qual foi o sentido que produziu ao faz-la retornar por palavras.

Nunca se sai das palavras, e isso nos leva ao Simblico e nele que o analista est implicado, uma vez que, no vnculo verbal que estabelece, tudo o que falar pode ser levado categoria de interpretao.

O lao social que o analista produz diferente do lao social comum, em que a inteno a comunicao. Numa situao social que no seja a analtica, h sempre a necessidade de compreenso, de objetividade. Com a proposta da associao livre, o paciente pode e deve falar qualquer coisa, sem se preocupar com a coerncia ou com a objetividade do que diz.

J com o analista isso no acontece, pois ele est implicado no vnculo e paga um preo para estar neste lugar. Ele no pode falar qualquer coisa, e tudo o que disser vai interferir no vnculo, podendo anul-lo ou transform-lo no discurso do mestre, universitrio ou mesmo no discurso histrico.

O analista tambm pagar com a prpria pessoa. Ele suporta a transferncia, ele tem de estar presente na sesso, no pode se fazer representar por outra pessoa, ele no poder colocar assistentes para atender seus pacientes. O analista paga um preo por estar se oferecendo de suporte ao que lhe transferido pelo analisante.

Da mesma forma, ele paga por ter que manter seu estilo dentro de determinados parmetros. O analista que muda freqentemente seu jeito de se apresentar, produzir efeitos no vnculo porque estar estimulando significaes.

O analista tambm paga com o seu ser no sentido de que ter que anular o seu julgamento mais ntimo. Como pessoa, o que o analista pensar do outro no contar. Seus prprios valores, suas prprias reaes, seu prprio psiquismo se anularo em face da necessidade de deixar seu juzo em suspenso. Caso contrrio, voltaramos ao discurso do mestre.

O discurso analtico se instaura quando o analista se compromete em palavras, no como pessoa, e exclui o mais ntimo do seu ser. Isso condicionar um vnculo muito particular, e no toa que o analista deve cobrar, pois manter sua posio ser custoso.

Para precisar melhor a atuao do analista, Lacan usou um recurso original para articular a interpretao e a transferncia e fez uma analogia til, retirada de Clausewitz, um terico militar, autor de Sobre a guerra.

Lacan relacionou o momento de interveno do analista, a interpretao, com a ttica, e o que corresponderia transferncia, com a estratgia. O correspondente ao ser seria a poltica. A ttica seria o que est relacionado sincronia, ao momento presente. A estratgia j seria a longo prazo. Assim, dentro dessa viso, taticamente se pode perder uma batalha para ganhar a guerra, como se faz no jogo poltico ou na diplomacia.

Esses recursos so teis para pensar a temporalidade na clnica, pois o que ocorre em cada sesso pode ser entendido como ttica, e o que acontece na seqncia de sesses seria da ordem estratgica. J o que une a ttica e a estratgia a poltica. A poltica do analista nunca permitir que seu ser entre em jogo. O analista jamais entra com os seus valores, seno ele encarnaria o mestre.

H casos, como o citado no livro Psicanlise: profisso impossvel [2], escrito pela jornalista norte-americana Janet Malcolm, onde relata a histria de um paciente que foi atropelado ao chegar porta do consultrio de seu analista. Assim mesmo entrou, todo ensangentado. O analista deitou-o no div e solicitou associaes. O paciente se enfureceu, justificadamente, foi embora e no voltou mais.

Essa seria uma situao em que a ttica a ser empregada naquela sesso talvez fosse a de no tentar obter informaes sobre o inconsciente, embora isso pudesse comprometer a estratgia, ou seja, comprometer a transferncia. Fazendo isso o analista poderia perder a batalha, mas no a guerra. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrrio, pois o paciente no voltou.

necessria uma flexibilidade para que, numa srie de sesses, o discurso analtico se mantenha instalado. O que no quer dizer que esse discurso permanecer sempre instalado. O discurso oscilar, e numa mesma sesso haver momentos em que se impor o discurso histrico, ou o universitrio, ou o do mestre. Compete ao analista atuar nesse vnculo, fazendo-o tender para o discurso analtico.

Existe uma metfora feita por Freud que esclarece esse ponto. Quando perguntavam a Freud o que era anlise, ele respondia: como ouro puro. Na verdade, o ouro puro no existe, j que no existe pureza absoluta do ouro. O ouro pode ser at 99% puro, mas no 100%.

Da mesma forma, no possvel um procedimento 100% analtico. Haver momentos em que se instaura o discurso analtico, em que o ato analtico ser possvel, e haver momentos em que isso no ser possvel. Se o analista for muito rgido, poder comprometer a estratgia do tratamento em funo de uma m conduta ttica.

Em relao poltica, as posies no se alteram. O analista nunca dever entrar com seu julgamento ntimo, pois isso descaracterizaria a anlise. Lacan disse que o analista seria mais livre em sua ttica do que em sua estratgia. Numa determinada sesso, o analista at pode no instaurar o discurso analtico, se, por exemplo, estiver numa situao de transferncia negativa ou numa situao em que se faz urgente uma interveno no analtica. Porm, no deve nunca perder de vista a estratgia, que manuteno da transferncia.

bvio que, se as dificuldades tticas persistirem, elas anularo a estratgia. Se em toda sesso o analista tiver de sair do enquadre analtico, isto significa que algo est acontecendo na conduo da anlise e o analista no consegue mant-la, ou o paciente no analisvel. Se a situao se repete em todas as sesses, o analista ter que se perguntar sobre sua estratgia e se vlido manter tal situao. Porque se na transferncia que se processa a clnica analtica, se a clnica psicanaltica clnica da transferncia, logo, a ttica dever visar a manuteno da transferncia.

Ttica, estratgia e poltica tambm so aspectos temporais, e servem para se pensar o manejo do tempo na conduo do tratamento, e foi um aspecto de prtica de Lacan muitas vezes tido como questionvel, talvez por ser inovador em relao prtica convencional.

O problema do tempo amplo, e no pode ser reduzido ao questionamento das sesses curtas. O tempo na anlise no s o tempo da sesso. tambm o tempo do tratamento, o tempo das intervenes do analista dentro de uma sesso e o tempo entendido como freqncia das sesses.

Quanto durao do tratamento, existe um consenso entre os analistas de que a psicanlise se caracteriza por ter durao indeterminada. Algumas escolas analticas convencionam o mnimo, mas nunca o mximo. Predeterminar uma durao para o tratamento analtico o descaracterizaria por completo.

No que Freud no tenha feito tentativas nesse sentido. Sabe-se que o Homem dos Lobos teve o fim de sua anlise precipitado por Freud, que estabeleceu uma data para seu trmino. Foi depois disso que ele sonhou com os lobos, precipitando a construo da neurose infantil. Esse fato se deu no momento em que Freud recebeu influncia de Ferenczi, que trabalhava no sentido de encurtar o tratamento analtico e acreditava na possibilidade tcnica de uma previso do trmino da anlise. Mas o fim da anlise no pode ser estabelecido a priori. Essa uma estratgia da psicanlise.ORIENTAO LACANIANA E A DIREO DO TRATAMENTOTransferncia e desejo do analista

A concepo lacaniana da transferncia (e tambm da interpretao psicanaltica), bem como os problemas que dela derivam, decorrem diretamente do conceito do inconsciente. No ensino de Lacan o inconsciente pensado como estruturado como uma linguagem e, se extrairmos as conseqncias desta definio, chegaremos a uma maneira de teorizar a relao transferencial, diferente daquelas promovidas por outros autores. Os problemas dos lacanianos no so os mesmos que dos kleinianos, porque as concepes de inconsciente no so as mesmas, apesar da referncia comum a Freud.

Dentro da orientao lacaniana, a clnica psicanaltica vista como clnica da transferncia. A clnica, nesta orientao, tambm vista como clnica do significante ou clnica do Outro.

A obra de Lacan pode ser considerada ps-freudiana, ainda que o seu recurso seja o de um retorno a Freud. o que acontece com o exame que Lacan faz do conceito de transferncia. Ele toma este conceito como um desenvolvimento feito por Freud, que se poderia esquematizar em trs momentos: um primeiro identificando a transferncia com a repetio, depois pensando-a como resistncia, e finalmente articulando-a com a sugesto.

Sem abandonar nenhuma dessas trs perspectivas, Lacan procura definir uma essncia da transferncia, procura encontrar um eixo que possibilite articular todas elas numa s. E encontra esse eixo no prprio dispositivo da anlise ao tomar a transferncia como uma conseqncia da associao livre.

Ou seja, o analisante, ao fazer associaes, o faz para algum: o analista fica assim colocado como um ouvinte privilegiado da busca feita pelo analisando da verdade sobre si mesmo. E o analisante busca essa verdade nos limites das suas palavras. Limite que imposto ao analista, enquanto este encarna no qualquer ouvinte, mas um ouvinte especial, um ouvinte que decide a verdadeira significao de suas palavras.

Para Lacan, existe abertura para a transferncia pelo simples fato de que o paciente se coloca em associao livre. na submisso do analisante regra fundamental, regra de dizer tudo a um outro, que se pode conectar o inconsciente, com o saber.

Desde este prisma, a transferncia , em primeiro lugar, a relao com o saber. Este saber porm , na situao analtica, atribudo ao ouvinte, lugar do analista, e no necessariamente sua pessoa. Se do que se trata na transferncia do amor, o marcante que se trata de amor, a qualquer um, na posio de analista. Este qualquer um, peculiar da situao analtica, o conceito de Outro. Por isso a clnica lacaniana a clnica do Outro, ou a clnica da transferncia.

Quando se fala (e esta a forma de articular o modo de operar da psicanlise), dirige-se sempre a esse Outro. A inveno de Freud foi a do analista como representando esse Outro. O analisante, pelo simples fato de aceitar a regra fundamental que o coloca na posio de no saber o que diz, cai na dependncia desse Outro. No entanto, no se trata de uma dependncia real. Trata-se da dependncia da relao desse sujeito com o saber (saber este que o que esse sujeito procura numa psicanlise).

A esse elemento que define a essncia, o motor da transferncia, a essa relao epistmica, o que Lacan chamou de Sujeito Suposto Saber (SSS). A transferncia vista no seu fundamento no outra coisa seno a prpria constituio da relao analtica. O SSS o piv das vrias funes da transferncia, ele em outros termos uma conseqncia do Discurso Analtico.

O SSS , enquanto o piv da transferncia, ou seja, enquanto o que a fundamenta, do nvel constitutivo, e por isso transfenomnico e estrutural. Assim no se deve confundir o efeito constituinte da transferncia (que o SSS) com os seus efeitos constitudos (fenomnicos) que derivam dele.

Ao situar a transferncia desta forma, como efeito do dispositivo do tratamento analtico, com sua estrutura particular diferente do seu aspecto espontneo fora da situao analtica, a transferncia no entendida como um fenmeno da categoria do Real, como o a repetio. Entendida dessa forma, em seu nvel Simblico, a transferncia fica desvinculada da repetio.

Por isso Lacan separa, e difere, a transferncia da repetio. A transferncia assim formalizada no nada de real no sujeito, algo artificial. O que da ordem do Real, a repetio. Para Freud, a repetio foi vista como uma maneira de se lembrar, como ato, tanto que este ato, na anlise, se desenrola no domnio da transferncia. No desenvolvimento da sua obra, a repetio ficou finalmente formalizada como lembrana de um fracasso, no tendo mais o prazer como princpio.

Em Freud, ento, a repetio e o surgimento da transferncia como repetio permitem situar esse aspecto pontual, temporal da transferncia. Com a noo de SSS, que situa o fundamento simblico da transferncia, Lacan vai diferenciar a transferncia da repetio, destacando a repetio como repetio do significante (pensando como inrcia do significante) da transferncia imaginria (com os efeitos de amor e dio).

No tratamento analtico ainda necessrio pensar a transferncia como resistncia, momento em que o analisando cria uma fico de saber em direo ao analista. Fico esta necessria ao processo analtico, e que se manifesta essencialmente pelo amor de transferncia. Isso constitui o aspecto mais apropriado para pr em evidncia a funo do analista como suporte do lugar do Outro.

justamente nesse momento que o analista encontra seu lugar, pois decorrente desse movimento transferencial o analista deve desaparecer como indivduo, colocando-se assim apenas como suporte dessa funo do Outro.

O analista, assujeitado a esse Outro, ocupa um lugar virtual, como o do morto no jogo de cartas (Bridge ou buraco), lugar este que no explcito, porm deduzido a partir de uma lgica. O analista, ocupando este lugar, faz com que o analisando receba de volta sua prpria mensagem, porm de uma forma invertida.

O amor de transferncia, ao colocar em evidncia a funo Outro, evidencia que o que se ama numa outra pessoa sempre um significante. Assim se ama na outra pessoa aquilo que nos falta e a outra pessoa tem. esse o sintoma do analisante: procurar isso que lhe falta no analista.

Se os analistas de todos os tempos consideraram a transferncia como condio da interpretao, devido observao do fato de que se a interpretao produz algum efeito, ela somente o fez por causa da transferncia do analisando. Com a interpretao, o que o analista faz fornecer um significante a mais, em relao a uma cadeia de significantes dita pelo analisando. Nessa lgica, o significante da transferncia um significante anterior, que sempre ressignifica a cadeia.

Nesse sentido, a transferncia em Lacan transferncia de interpretao, isto , o analisante transfere sua prpria interpretao ao analista. A interpretao assim vista a prpria mensagem do analisante, porm recebida de forma invertida.

Para os analistas de orientao lacaniana, no h por isso interpretao da transferncia, mas se poderia dizer: transferncia de interpretao. Por isso tambm a presena do analista na conduo de uma anlise, que foi classicamente pensado como contratransferncia, tomado no ensino de Lacan de maneira diferente das outras concepes. A contratransferncia, pensada como um obstculo ao progresso da anlise, como uma resposta emocional do analista aos estmulos do analisante, ser vista, desde o prisma lacaniano, apenas como transferncia do analista, no cabendo outro conceito alm deste.

Ou seja, a contratransferncia (como obstculo) vista como o analista cedendo tentao de se identificar ao saber que o analisando lhe supe. Essa contratransferncia, ou melhor, essa transferncia por parte do analista deve ser removida. conhecida a soluo dada por Freud, para que o analista pudesse superar seus pontos cegos: a anlise do analista.

Porm, o conceito de contratransferncia adquiriu principalmente nos anos 50 outras acepes alm daquela de obstculo proposta por Freud. Entre outras, as concepes de P. Heimann, pela escola inglesa, e H. Racker, pela escola argentina, ampliaram este conceito, transformando-o de obstculo em instrumento na conduo de uma anlise.

Em Lacan, a questo da presena do analista pensada com um conceito que, sem se superpor a essa noo de contratransferncia como instrumento do analista, a contrapartida desse conceito. Trata-se da noo de desejo do analista.

O analista tomado, desde esse ltimo ponto de vista, como formando parte da estrutura da relao analtica. O analista como significante forma parte da economia psquica do analisando. Pois o que a transferncia nos ensina, a partir do exemplo dos restos diurnos, que o vnculo que o analisante estabelece muito mais em relao a um significante do que a uma pessoa.

O desejo do analista ser ento situado no registro do Outro conforme a definio do desejo (pois o essencial do desejo ser mediatizado pelo Outro). deixando de lado o prprio desejo pessoal que esta funo de desejo, como proveniente de Outro, se manifestar. Quanto mais o analista cala o seu desejo pessoal, mais a alienao do desejo do paciente no Outro se manifestar.

O desejo do analista no ento o desejo pessoal de um analista, uma funo essencial para a confisso do desejo, como exigindo reconhecimento. O desejo do analista pois uma funo significante, em tanto o analista tem sua colocao no Outro. um desejo vazio de contedo e por isso ele difere do conceito de contratransferncia. O desejo do analista um lugar na experincia psicanaltica. Enfim, o desejo do analista o nome que se d causa da anlise, nome que se d causa do desejo da anlise.

No se trata ento de o analista ser purificado, atravs de sua anlise pessoal, da contratransferncia. O analista assegura sua posio na anlise colocando-se no lugar do Outro, e assegura a sua funo atravs da mecnica significante. Sua neutralidade vem a ser a mesma do significante, que s produz significao ao ser confrontado com outro significante. Nada parte dele, a no ser o desejo que haja anlise.

O apoio que o sujeito encontra para o seu desejo no Outro implica que o seu desejo tem que ser colocado na estrutura como desejo do Outro. E a que o analista colocado, neste intervalo entre o desejo e o Outro, como causa do desejo.

Essas formalizaes trazem muitas e importantes conseqncias e uma se refere questo do fim da anlise. Questo que em Freud encontra seu impasse na rocha da castrao, escrevendo essa situao na relao transferencial como sendo para o homem a rebeldia submisso passiva e na mulher o penisneid .

A castrao posta na terminologia lacaniana corresponde falta no Outro, falta esta comum tanto ao homem como mulher. Esta falta que origina o desejo, porm este desejo o desejo do Outro. Pois se o desejo do Outro um enigma, porque o semelhante no tem um saber deste desejo, e assim tanto o analista como o analisando se vem confrontados com essa falta no Outro, pois no h uma verdade ltima. Nesse sentido, para Freud, no havia fim de anlise.

O objetivo do tratamento no entanto a sada da transferncia que implica em que o analista no fique s na funo significante, e possa ser reduzido a uma funo de objeto (sem significaes). O tratamento analtico aponta revelao a ser obtida pelo analisante, de que o SSS no essencial para o seu desejo, seno o contrrio, que este saber mascara a sua essncia. A transferncia no se liquida, mas se transforma em saber sobre a causa do desejo.Orientao Lacaniana

A histria das idias, principalmente das religiosas, nos ensina que prprio ao humano negar seu fim. Quase todos os sistemas religiosos nos falam de uma maneira ou de outra de uma vida aps a morte, isso quando no sugerem uma anterior. Como todo ser vivo, o humano est marcado por dois momentos, nascimento e morte, incio e fim, porm somente ele articula estes fatos dentro de uma estrutura de sentido que, igual a qualquer outra produo que o envolve, como ensina a psicanlise, serve sempre ao fim de evitar a angstia.

Assim desde a perspectiva psicanaltica, as reflexes sobre o significado da origem e do destino so sempre respostas oportunas diante do que ameaa o narcisismo. A morte, o fim, inconcebvel para o inconsciente que, segundo Freud, no tem uma representao. Por isso, os mitos de fim do mundo, como o apocalipse, prometem fins que apenas anunciam novos comeos, permitindo com isso que se mantenha a iluso de imortalidade.

Na atualidade se constata, no sem surpresa, que a antiga reflexo metafsica, no que concerne particularmente ontologia, estaria deslocada para uma cosmologia regrada pelo discurso da fsica. A origem e o fim do universo, big-bang e big-crush, substituem modernamente as antigas modalidades ele questionamento sobre a origem do ser. Isto talvez se eleva ao fato de que o chamado tempo biolgico insuficiente para acompanhar o tempo do sujeito, fazendo-se necessrio a ele projetar-se nas novas concepes da fsica, para poder superar o tempo linear e irreversvel da biologia.

Surgiram assim dentro da fsica moderna novas noes de temporalidade que tiveram por efeito subverter a idia de tempo absoluto, tal como foi descrito por Isaac Newton, ao relacion-lo com o espao. Com efeito, o relgio de pndulo, inventado no sculo XVII por Cristian Huyghens, tornou possvel uma cincia do tempo, o que permitiria que Newton afirmasse : O tempo absoluto, verdadeiro e matemtico por si mesmo e proveniente da sua prpria natureza [...] transcorre uniformemente sem relao com nada externo.

O questionamento deste dogma comeou com Einstein, quando introduziu a Teoria da Relatividade em oposio ao tempo absoluto, elevando o tempo a uma quarta dimenso. Depois disso as subverses em relao noo de tempo na fsica no cessaram: tempo quntico, tempo termodinmico e modernamente o tempo criativo de Prigogine.

Enfim, mesmo escapando religio, o humano continua com a pergunta sobre sua origem e seu destino, seu incio e seu fim, ainda que dentro de uma outra forma do discurso do mestre, a atual, que a cincia. A humanidade, porm, continua e continuar narcsica, por isso no surpreende a tentativa recente de se relacionar cincia e religio, com o que se quis chamar de holismo. Nesta nova tentativa de se evitar a castrao, o bigi-bang se sucede ao big-crush como a respirao de Brahma, e o sujeito-universo termina para apenas recomear, renovado.

Coube a Lacan justificar os fundamentos demonstrar dentro da lgica do significante o efeito Nachtrglicb apontado por Freud como regente da temporalidade prpria produo do sentido. Ou seja, para o Sujeito, o vivido que Freud chamou de verdade histrica est submetido dimenso do Simblico e de suas leis. E nela a temporalidade Outra.

Em Lacan a formalizao desta questo foi feita inicialmente com o que ele chamou de tempo lgico, apontando a uma heterotemporalidade, o que significa que o tempo do sujeito depende do Outro. Este tempo, impe ao analista o uso da pressa como categoria de precipitao.

Querem alguns autores que o tempo correlativo ao registro do Simblico seja o tempo cronolgico. Outros apontam ao tempo gramatical ou heideggeriano como o pertinente a este registro. Mas foi com a proposta da temporalidade da causao do sujeito, que Lacan chamou de pulsao temporal, que se produziu uma preciso do tempo do sujeito em suas relaes com a cadeia significante. J o tempo prprio ao registro do Real foi apontado como o articulado pelo tempo topolgico.

Porm, na direo do tratamento, a lgica do tempo, se bem poderia ser includa numa das propostas anteriores ou em todas, impe uma particularidade quando se trata da questo do incio e do fim do tratamento analtico.

A teoria do fim de anlise em Lacan teve como um dos principais momentos de formalizao o texto Proposio de 9 de outubro de 1967 para o analista da Escola, escrito apenas alguns anos depois da fundao da Escola Freudiana de Paris. Neste texto Lacan apresenta o fim da anlise como articulado transferncia: O que ocorre em relao transferncia quando o desejo, estando resolvido quem sustentou o psicanalisante em sua operao, j no tem vontade de levantar-lhe a opo, quer dizer o resto que, como determina sua diviso, o faz cair de sua fantasia e o destitui como sujeito [3].

A destituio subjetiva corresponderia tanto queda dos significantes-mestres que representam o sujeito, significantes da identificao ideal advindo do Outro, quanto ao advento do ser, pois sendo o sujeito falta a ser no final da anlise, seria em relao falta que apareceria o seu ser.

A destituio subjetiva seria portanto a destituio do sujeito Suposto Saber, da seus efeitos na transferncia. A teoria do fim da anlise supe ento, nesta proposta de Lacan, uma lgica segundo a qual, no fim da anlise, termina o que a fez possvel no comeo, que foi a instalao da transferncia.

Esta lgica aponta ao momento em que o sujeito v soobrar a segurana que lhe dava a fantasia, momento este conceitualizado como travessia da fantasia. Essa operao corresponderia por um lado simbolizao flica, e por outro a um gozo no simbolizvel correspondente ao objeto a. Assim, se a fantasia era o que permitia ao Sujeito crer ser inteiro, no momento do passe, da travessia da fantasia, este sujeito no encontra mais sua unidade ilusria no significante.

Esse momento, que se refere localizao na transferncia do lugar do sujeito como objeto a, o que lhe permite dar uma soluo ao enigma do desejo do Outro. O Sujeito encontra dessa forma ao seu ser no mais dentro de uma identificao idealizante ao significante, proveniente de uma unidade ilusria, mas a partir da, atravs de uma identificao de outra ordem instituda pelo objeto a . O que est em jogo num final de anlise pensado com essas categorias, que o sujeito se reconhea na sua causao objetal, portanto, fora do sentido.

O objeto a sobra como um resto do lado do analista, que ao deixar de ser sujeito Suposto Saber fica reduzido a um resto, um desejo desprovido de saber e de sentido. No dizer de Lacan, desprovido de valor de agalma: Nosso propsito (a terminao da anlise) produzir uma equao cuja constante o agalma [4].

O desejo do analista sua enunciao, que s poderia operar-se se ele vem a em posio de x. Este x mesmo, a cuja soluo o psicanalisante entrega o seu ser, e cujo valor se anota (- j), a hincia que se designa como funo do falo ao isol-lo do complexo de castrao, ou (a) para aquilo que a obtura com o objeto que se reconhece sob a funo aproximada de relao pr-genital.

Uma psicanlise levada a este ponto produziria ento a desarticulao do agalma, o que poderia ser escrito (- j /a), produzindo um efeito de ruptura, de desencantamento, desmoronando a transferncia.

Novamente o mesmo tema: dentro desta viso de fim de anlise, supe-se uma lgica onde ela chega a seu fim quando termina aquilo que lhe (deu seu incio, a transferncia. Esta posio gera imediatamente uma srie de questes que giram em torno de um alm da anlise ou de uma travessia da transferncia. Como no se pode pensar em alguma coisa como uma transferncia fundamental ou mesmo um grau zero da transferncia, fato que h na transferncia um elemento irredutvel que impede de se confundir sua resoluo com sua dissoluo.

Por isso, o procedimento do passe e a Escola como esta dimenso do alm da anlise: No passe no mais o analista que suporta a transferncia de saber, preciso que aqueles que o julgam a suportem; seno, para qu? Os que o julgam, digo, como emanao desse conjunto que chamamos Escola para enfatizar que formado volta de um saber, e em vista de sua transmisso. [5].

Porm, a transferncia por sua estrutura da ordem da fala, sendo efeito do modo operatrio do discurso. Esta dimenso de transferncia condiciona a concepo de fim de anlise que a toma por eixo e aponta a uma identificao com a fantasia (fundamental).

Voltando analogia com a fsica, se certo que ela como paradigma do discurso cientfico, que a nova roupagem do discurso do mestre , ao substituir a religio, tomou para si, via cosmologia, o dever de responder ao humano a pergunta sobre sua origem e seu fim, com a ultrapassagem do sensvel que caracterizava a fsica mecnica, tornou necessria novas concepes, principalmente do fator tempo, para incluir a os paradoxos do sujeito que em ltima anlise sustenta o observador. Tambm para a psicanlise foi necessrio ultrapassar limites.

Lacan expressou este fato atravs do ideal de um discurso sem palavras. Conforme a este ideal, nos anos 70 ele efetuou dentro de sua teoria uma mudana de nfase do significante para o signo, da fala para a escrita, do Outro para o Um. Em termos da direo do tratamento pode-se dizer que est a sugesto para um recolhimento de Um dizer que se sobrepe dimenso do dito.

Esta nova concepo de Lacan poderia ser evocada atravs de uma produo sua no Seminrio XIX Ou Pire [6], onde ele escreve a frase Y a de lUn, que se coloca como uma escrita que carrega na dimenso da palavra a transcrio literal da contrao falada: Existe dUn.

Teria Lacan com este avano conceitual superado a teoria de fim da anlise como estava formalizada anteriomente? No seria, na medida em que se torna necessrio fazer presente o Um, que da ordem da escrita, que o incio, condio necessria para se ter acesso a um fim? Tambm aqui o eixo do processo do fim de anlise opera em relao transferncia, porm no mais no seu efeito de suposio de saber ao Outro da fala, mas agora pensado em relao ao que sua causa, que a letra. Pois se h um saber no Real, este s poderia ser da ordem da letra e, por conseguinte, da ordem da escrita.

A srie significante que sustenta a fala infindvel e supe sempre a possibilidade de um recomeo. J o que o analista escuta na dimenso do dito, na dimenso da escrita, naquilo que Lacan chamou de Um do Real torna possvel um fim sem recomeo, torna possvel um efeito, que ao contrrio da fala, no remete ao Outro, mas fica em si mesmo, que a caracterstica da escrita.

Impe-se aqui o Um do Real o Um-todo-s que indica que no h relao entre dois elementos (ia cadeia significante, o que h efeito de corte entre os elementos da cadeia). O que o analista escuta na dimenso do dito o Um dizer , o Um da no-relao.

Y a dlUn uma frmula que confronta na prtica analtica o que se precipita no dizer como escrita. A escrita pode ser pensada tambm como um discurso sem palavras, outro nome do gozo. A fala, por estar restrita ao que Lacan chamou de campo unrio, decorrente de sua constituio a partir do trao unrio, daria incio srie necessariamente infinita, em vista de ela buscar sua completude numa identificao. A isso Lacan contraps o campo uniano, conceito que operaria a separao entre o registro do ideal, prprio ao campo unrio, e o registro do real, prprio ao campo uniano.

Porm, se o Trao Unrio pode ser pensado como o grau zero da identificao que produz a alienao no Outro, a anlise que colocasse seu fim na identificao estaria supondo um grau zero da transferncia. J a anlise, que pensa seu final no como uma identificao ao ideal, e que tambm no toma a travessia da fantasia como seu fim ltimo, pois neste caso, ainda que pela via negativa, seu parmetro tambm de uma identificao a ela, busca a modificao da transferncia, visto a impossibilidade do seu desaparecimento. A esta outra possibilidade de se pensar o fim de uma anlise, Lacan chamou no Seminrio RSI [7], de identificao ao sintoma.

Aponte-se que a identificao ao sintoma adquire maior preciso com a escrita do sintoma como sinthome, que Lacan criou no ano seguinte ao Seminrio RSI, no Seminrio O sintoma [8], onde com esta grafia apontou particularidade de um sujeito produzir seu sintoma na escrita borromeana, diferindo-a do sintoma como metfora.

De fato, o Um do campo do uniano, o Um da escritura, s toma consistncia com uma escritura nodal. Lacan no Seminrio Encore afirma: O n borromeano a melhor metfora disto: de que procedemos do Um [9]. Este pensamento produz uma mudana fundamental na direo do tratamento, ao produzir uma mudana da estrutura at ento fundada num privilgio do Simblico, para uma outra onde a primazia est posta no Real e nos seus efeitos, que so fora do sentido. Na proposta anterior se buscaria uma exausto do Simblico, e o sintoma era pensado a partir do seu envoltrio formal, enquanto mensagem, enquanto metfora. J com as novas afirmaes de Lacan, o sintoma passou a ser considerado como fazendo parte da relao entre o Simblico e o Real. O sintoma a partir da no tem mais seu privilgio posto na significao, mas vai depender do gozo que contm.

Assim, o fim da anlise pensado como identificao ao sintoma levaria a pensar o sintoma como uma satisfao que procura a restaurao, no de um novo sintoma, mas de uma suplncia sintomtica diferente da transferncia. A identificao ao sintoma seria desta forma uma interveno analtica que conseguiria por fim infinitude da decifrao do inconsciente, apontando ordem da escrita e no mais da fala.

Essas consideraes levantam a questo da relao entre esta posio do fim da anlise com identificao ao sintoma em suas relaes com a travessia da fantasia. No levaria esta concepo do sintoma, da sua abordagem como metfora, para ser entendido como uma maneira de gozar, a uma nova abordagem da travessia da fantasia, onde o sujeito ao desprender-se da crena de que o Outro goza de seu sintoma, permitiria que o formal do sintoma se dissociasse do material de gozo que o envolve?

Desta maneira, a identificao ao sintoma, ao contrrio da travessia da fantasia, no implica uma perda de gozo, mas sim numa identificao sua singularidade.

Este sinthome seria irredutvel por ser da ordem do Um e representaria o limite final ao processo analtico. Este sinthome ao equivaler ao Um da escrita um sintoma que no pode ser interpretado como o sintoma metfora, nem atravessado como uma fantasia.

J.-A. Miller no prefcio de uma coletnea de textos que tem por ttulo Joyce avec Lacan [10], ao comentar a questo do sinthome, referindo-se a ele como sintoma fora do discurso, e letra fora dos seus efeitos de significado, comemora a partir da anlise que Lacan fez de Joyce, tido por inalisvel, que na medida em que o sujeito identificado a seu sintoma se fecha em seu artifcio, talvez a anlise no tenha melhor fim [11]. Retomo uma pergunta deste mesmo texto que, constata que no h como dar conta do sintoma sem implicar a letra na estrutura de linguagem. Desta maneira, o sintoma, se bem est suportado por uma estrutura de linguagem, no articulado num processo da fala, mas se inscreve num processo de escritura.

A proposta do fim da anlise como identificao ao sintoma , portanto, o resultado desta interrogao da psicanlise do campo da linguagem, a partir da escritura.Os tempos de anlise

A freqncia s sesses uma conveno diferente para cada grupo de analistas. Freud dizia que a tcnica como uma ferramenta que tem que se adequar mo de quem a usa.

A freqncia s sesses, convencionada por Freud, era de seis vezes por semana, mas ele a diminuiu para cinco. Vocs devem conhecer o episdio que o levou a essa mudana: Freud tinha cinco pacientes, que atendia seis vezes por semana, e numa determinada poca passou a ter seis pacientes para atender, mas teria que dispensar um deles porque s tinha horrio para cinco. Ento, Anna Freud disse a ele que, se 5x6 equivale a 30, 6x5 tambm. Bastaria ele atender os seis pacientes cinco vezes por semana, e daria para atender a todos. Freud adotou essa soluo.

Em Lacan, a proposta para a freqncia das sesses que ela seja varivel. Lacan atendia o paciente quantas vezes o mesmo quisesse, dependendo do desejo de retornar ou no. O paciente no deveria retornar somente porque a sesso estava marcada, mas porque assim o desejava.

Ento, os lacanianos podem atender uma mesma pessoa em mais de uma sesso num mesmo dia. No h um nmero fixo de sesses, que numa mesma semana podem ser cinco, dez, ou at mesmo uma nica. O que vai motivar a freqncia das sesses ser o manejo que o analista faz da ttica e da estratgia do tratamento e no um parmetro prefixado.

O aspecto anterior est ligado diretamente noo do manejo do tempo da sesso, Numa sesso curta se tem um procedimento diferente para pensar o processo analtico. Dentro dos outros, esse aspecto est sustentado pela proposta de que, aps uma interpretao, haver a perlaboro, o work-trought, em que se elaborar o resultado da interpretao.

No estilo lacaniano, o prprio corte da sesso poder ser uma interpretao, o que implica que o momento de concluir seria colocado fora da sesso, produzindo intensos efeitos no paciente. Assim, dentro do compromisso do analista manter a estratgia, muitas vezes no se deve esperar o horrio convencionado a priori e, se o paciente sentir necessidade e demandar mais uma sesso, poder ser atendido no mesmo dia, ou no dia seguinte, independentemente de um agendamento anterior.

O analista que adotar esse estilo de trabalho com sesses de tempo varivel dever ter critrios que sirvam de continente aos resultados dessa prtica e s incidncias que se produziro no psiquismo do paciente. Ento, claro que se faz necessrio um enquadre diferente. O analista no poder misturar uma postura convencional com uma no convencional, o que seria um desconhecimento da ao do analista, embora isso acontea com freqncia.

A idia bsica de Freud em relao ao tempo a de que o inconsciente o ignoraria, pois para ele o inconsciente atemporal. Esta uma indicao importante para a utilizao que o analista far do tempo cronolgico em sua prtica, porque no nesse tempo que se apreende o inconsciente. O tempo do inconsciente poderia ser formulado em Freud como o tempo da tenso da pulso. Trata-se de uma outra noo de tempo, que no a cronolgica.

Uma pulso sempre tende para a satisfao, e esse o tempo da pulso, um tempo de tenso. o que Lacan escreve como o S2 tendendo ao S1, e que a tendncia a reencontrar o trao unrio. Por isso, um desejo infantil tende sempre a se realizar e se perpetua na histria do sujeito.

Dessa noo surgiu o conceito de Nachtraglichkeit, traduzido em portugus por posterioridade. A traduo para o francs foi aprs-coup, e em portugus se sugeriu, s depois. A esse tempo Lacan chamou de tempo metonmico.

Freud pensou o tempo do Sujeito com esse conceito, mas a dificuldade de traduo diluiu a nfase que ele deu ao termo. Freud sempre disse que o aparelho psquico se reorganiza, e esse conceito aparece do incio ao fim de sua obra. importante demonstrar que o contedo do psiquismo no esttico, no apenas a realizao repetitiva de desejos infantis. E esse tempo que Lacan chamar de tempo metonmico, apontando-o como o tempo do Sujeito, como o tempo de causao do Sujeito. esse tempo que o analista de orientao lacaniana usa em sua clnica.

O que justifica a ao do analista a produo do Sujeito do inconsciente. O tempo lgico mostrou a possibilidade de, dentro do processo psquico, um Sujeito sofrer interferncia de uma ao que lhe exterior. No sofisma do tempo lgico, no exemplo dos trs prisioneiros que deviam resolver o problema proposto pelo diretor da priso apresentando uma justificativa lgica, o importante de que forma esses processos psquicos puderam ser escandidos por um agente exterior.

A proposta do diretor da priso feita aos prisioneiros: o primeiro que chegar a alguma concluso ser libertado, implica, ao dizer o primeiro, que se apressou o raciocnio dos prisioneiros. O que se utiliza na psicanlise da lgica deste sofisma a noo que Lacan isolou com o nome de pressa precipitante. O analista pode atuar na subjetividade de algum por meio da pressa, pois pode acelerar as concluses do outro. o que se deduz do sofisma do tempo lgico.

Ento, a noo de tempo lgico, tida por alguns como a que sustenta a prtica de sesses curtas de Lacan, sustenta somente que o analista possa se autorizar a intervir no tempo subjetivo do sujeito. A pressa se produz nas manifestaes do discurso e incidir no que Lacan chamou de tempo metonmico, que seria o tempo da produo do sujeito.

A produo do sujeito tambm recebeu o nome de pulsao temporal . Se a posio do analista produzida pela transferncia, os efeitos decorrentes dela sero vivenciados na relao de manuteno do discurso analtico. A pulsao temporal refere-se ao que Lacan chamou de abertura e fechamento do inconsciente. Quando ocorre o fechamento do inconsciente, d-se a produo do sujeito, correlativamente ao posicionamento do analista em determinada situao transferencial, o que decorre da produo fantasmtica do analisante.

Outra referncia ao tempo na sesso quanto ao momento em que se faz uma interveno interveno que poder ser elevada categoria de interpretao, pois um analista no sabe quando interpreta. Se souber, estar dentro do discurso universitrio, pois nesse caso o analista coloca o saber no lugar do agente.

O analista deve posicionar o objeto a no lugar do agente e, se a interpretao for exata, isso produzir novas associaes. Ele saber do efeito de sua interpretao s depois, pelos resultados dessa interveno. Se a interveno foi eficaz, no sentido analtico, no sentido de produzir verdades sobre o sujeito, ela foi uma interpretao. A interveno ser interpretao pela transferncia do paciente e no pelo desejo do analista.Entrevistas preliminares e entrada em anlise

Uma anlise nem sempre existe de entrada, ela apenas existir a partir da instaurao do discurso analtico, que nunca anterior ao encontro com o analista, mas a transferncia pode ser. O Sujeito Suposto Saber pode ser personificado em uma pessoa, mas a presena dela que estabelecer o vnculo. No existe vnculo sem a presena, pelo menos no discurso analtico. Desse modo, a pergunta que se impe no incio do tratamento : que lugar o paciente atribui ao analista? Se esse lugar for o do Outro, ou o do Sujeito Suposto Saber, ento pode ser que o incio do tratamento coincida com o incio da anlise propriamente dita.

Chama-se o perodo prvio anlise de entrevistas preliminares. Lacan as prope como uma recomendao tcnica que implica, antes de aceitar um paciente em anlise, investigar-se em que lugar o sujeito coloca o analista.

As entrevistas preliminares se caracterizam por um tempo de localizao subjetiva, localizao do significante da transferncia, se houver. E, se no houver, o objetivo das entrevistas preliminares seria produzi-lo.

Cito o exemplo de uma pessoa que me procurou porque julgava que eu fosse parapsiclogo. Nesse caso a situao transferencial coincidiu com o incio do tratamento. Para instalar o discurso analtico no foi necessrio que o paciente me nomeasse como analista; o que importava era o vnculo, em que ela me atribua saber de seus pensamentos por telepatia.

Assim, essa pessoa autorizou o discurso analtico, e no foi o nome dado prtica o que o possibilitou, foi o vnculo transferencial que fez desse encontro um encontro analtico.

Na pea de Shakespeare, Romeu encontra Julieta e ambos descobrem seus sobrenomes e que so sobrenomes de famlias inimigas, o que tornaria impossvel o amor entre eles. Ento, Romeu diz a Julieta: O que h num nome? Aquilo que chamamos de rosa, com qualquer outro nome cheiraria sempre igual.

Na situao analtica acontece o mesmo: no importa o nome que se lhe d; se h anlise, pode-se at cham-la de parapsicologia. O que importa que o objeto causa do desejo esteja na posio de agente e, conseqentemente a verdade, enquanto S1 aparea como produto. Seria diferente no caso de algum chamar o tratamento de analtico e sugerir ou aconselhar o paciente.

Com os quatro discursos Lacan mostrou que nem todo vinculo psicoteraputico analtico. O que no significa que no se deva tratar um paciente, no caso de ser impossvel analis-lo. Mas o analista saber que talvez possa fazer mais por ele. Lacan foi contra a psicoterapia, e afirmou que ela levaria ao pior.

Entre os leitores de Lacan nota-se grandes divergncias em relao ao estilo de cada um quanto forma de se conduzir perante a clnica o que, muitas vezes, revela atitudes at mesmo paradoxais. No acredito que haja uma nica verdade sobre o que seja a anlise de orientao lacaniana; penso que existem vrias verses sobre ela, portanto sempre ser necessrio que o analista sustente sua posio.

Adotar uma posio dogmtica, religiosa, supor que h uma verdade nica que perpassa toda a obra de Lacan constitui um exagero e mostra apenas a insegurana do analista quanto prpria experincia pessoal.

Dentro desta perspectiva, diante da no indicao de anlise em pr-psicticos, existem posies diferentes, logo tambm quanto ao uso das entrevistas preliminares com a utilidade de identificar o paciente pr-psictico. Em 1914, numa de suas modificaes da nosografia, Freud definiu a neurose de transferncia como a situao em que h vnculo transferencial, e a neurose narcsica quando no se consegue vnculo. Ento, existiria a neurose de transferncia e uma outra possibilidade, aquela em que no possvel vnculo. A essa situao ele denominou psicose. Freud abandonou esse ponto de vista rapidamente e retomou a utilizao do parmetro psiquitrico. Porm j estava apontada a existncia de situaes na psicanlise em que o vnculo transferencial no seria possvel.

Lacan acrescentou a constatao de que, se o sujeito tem uma estrutura psictica, se em seu dipo houve um acidente em que se deu a foracluso do Nome-do-Pai, esse momento no seria ainda o momento de desencadeamento da psicose.

Lacan prope ao analista um cuidado para identificar se o sujeito que o procura teria uma estrutura psictica. Pois, se a tiver, a anlise poder desencadear a psicose. Esse desencadeamento se daria porque o analista age a partir do lugar do Nome-do-Pai, que o que falta ao psictico; e o elemento desencadeador do surto psictico aconteceria quando "Um pai fosse chamado ali onde nunca esteve", pois dentro da cadeia significante que opera a foracluso do Nome-do-Pai.

Hoje em dia essa considerao mais terica que prtica, pois raramente um analista recua na indicao de uma anlise diante do temor de que o paciente seja psictico. Tudo depender do que a psicose signifique para o analista e dos meios que tiver para lidar com ela.

Uma vez superada a situao das entrevistas preliminares, o analista constataria a existncia do significante da transferncia na escuta do discurso do analisando. Nessa situao, o paciente no fala ao analista como a um semelhante, como a outro igual a ele, como a um amigo, mas se dirige ao saber que ele suporta.

no surgimento da transferncia que se d a instalao do vnculo analtico. A instalao da transferncia uma posta em ato de uma suposio de saber ao analista por parte do paciente: ele acredita que o analista detm a verdade sobre ele. O paciente supe que o analista sabe sobre a sua falta, que o analista sabe sobre o que o faz sofrer, que tem a significao de seu sintoma.

So esses os motivos de toda anlise, e se o paciente chega dizendo que a anlise no funciona, mesmo que o faa, j estar na transferncia, ainda que negativa. Lacan dizia que o ateu a pessoa que mais acredita em Deus, pois a necessidade de negar sempre implica um comprometimento do Sujeito com a verdade que est negando. O mesmo vale para um sujeito que procura uma analista para negar a validez da anlise, pois a transferncia supera a pessoa do analista, indo alm dele.

Relendo o desenvolvimento da noo de transferncia em Freud, Lacan props um eixo que articulasse todas as noes nele contidas com o nome de Sujeito Suposto Saber. Para Lacan, a transferncia seria uma transferncia de saber ao Outro, suportada numa pessoa. No que o analista saiba o que falta ao Outro esse seria o discurso do mestre , ele colocado nesse lugar, embora saiba que no sabe a verdade do Outro. Essa a diferena entre o analista e o mestre.

Ele usar esse no-saber e bancar o objeto causa do desejo e, quando o objeto causa do desejo estiver no lugar do agente, teremos o discurso analtico. O aparecimento do Sujeito Suposto Saber automaticamente estar posicionando o analista no lugar do Outro. O analista consegue facilitar a transferncia aplicando a regra fundamental, no dirigindo o paciente e no se propondo como modelo de identificao pois se o analista identifica-se com o Sujeito Suposto Saber e se coloca no lugar do mestre, aparecer a contratransferncia. A contratransferncia indica que o analista cedeu tentao de se identificar com o que falta no Outro e de colocar a representao da falta que sua como sendo do Outro.

As entrevistas preliminares tambm o momento em que se faz o diagnstico. O analista far o diagnstico na transferncia, mas no far um diagnstico objetivo como o do psiquiatra Se certos sintomas e sinais, segundo a medicina, caracterizariam determinadas sndromes, isto corresponde ao discurso do mestre, o que, nesse caso, viria da importao do saber mdico pela psiquiatria ou da importao do saber psiquitrico pela psicanlise. A proposta seria manter o diagnstico dentro da especificidade analtica: o diagnstico feito pelo lado do Sujeito, pela posio que o Sujeito assume perante o Outro, como fala de seu sintoma para o Outro.

Isso no implica que o paciente tenha conscincia do que est falando, o que se d numa variao entre o dito e o dizer. Ento ser a que o analista escutar. Se um paciente fala para o analista: No que minha gagueira me incomode... e d vrias explicaes sobre o motivo de sua gagueira no incomod-lo, o diagnstico no seria sobre a gagueira, e sim como o Sujeito elabora o sofrimento que a gagueira lhe traz. Ento o analista saber de que forma o paciente lhe supe um saber sobre a gagueira. No ser o sintoma que proporcionar o diagnstico, mas a relao transferencial, o posicionamento subjetivo do paciente ante o seu sintoma.Destituio subjetiva e fim da anlise

Quando o Sujeito segue as regras analticas, ele fala tudo o que lhe vem cabea, e tudo o que falar estar sobredeterminado. O analista, assim, ter acesso ao Simblico, j que o Imaginrio em si inacessvel.

Por esse motivo, Freud privilegiou a via das palavras, embora o sujeito tenha muitas formas de se expressar, porque o meio que propicia maior profundidade investigao do ser. Por isso Lacan disse que a via do analista era a via do Simblico.

Existem inmeras outras prticas que tomam a via do Imaginrio como eixo. A que est mais estritamente nessa via a junguiana, que supe a possibilidade da complementao da falta do Sujeito pela imagem, os arqutipos, que seriam o que falta ao Sujeito.

Tambm h sugestes de que a anlise kleiniana privilegiaria a via do Imaginrio. Embora na teoria kleiniana no existam construes sobre a funo paterna, isso no quer dizer que o eixo Simblico no estaria includo nas suas elaboboraes.

No Seminrio I, Os escritos tcnicos de Freud [12], Lacan trabalhou o caso Dick, de Melanie Klein, onde as interpretaes foram entendidas como enxerto simblico. Ento o Simblico estaria presente, embora no a elaborao terica da funo paterna. Mas isso muito diferente da prtica junguiana, onde se visa unicamente o Imaginrio, e pretende-se resolver tudo pelo universal que o inconsciente coletivo.

Dentro da via do Simblico, que seria a via do analista por excelncia, num determinado momento de sua obra, Lacan pensava que o fim da anlise coincidiria com a finalidade da anlise. Isso seria a promessa de que o sujeito pudesse alcanar a verdade pelo processo dialtico da fala. A verdade particular, no a verdade universal, no a verdade absoluta, hegeliana; mas a sua verdade, esse encontro com suas vivncias de satisfao, com seus desejos, com os fatos que condicionam a sua histria.

Se esse fim de anlise fosse a finalidade da anlise, buscar a verdade j alteraria a viso da psicanlise como teraputica, que em Freud sem dvida estava presente.

A princpio, a psicanlise foi uma psicoterapia das histerias. Mas depois, com as descobertas freudianas, a finalidade da anlise foi mudando. No ltimo momento do desenvolvimento da teoria freudiana, que se inicia com Alm do princpio do prazer [13], onde aparecem as idias de masoquismo primordial, pulso de morte e Superego, o fim da anlise passou a ser metaforizado como conseqncia da intransponibilidade da rocha da castrao. No haveria uma ltima verdade do sujeito sobre si mesmo, porque sempre faltaria alguma coisa.

Mesmo com essa idia, Lacan supe que talvez houvesse a possibilidade de, privilegiando a via do Simblico, o sujeito enunciar toda a verdade sobre si mesmo. A tica da psicanlise nesse momento seria a tica do bem dizer: a produo da verdade sobre o sujeito. A verdade do sujeito um bem dizer, dizer aquilo que o completa. a verdade, a palavra que exclui toda a fala.

Ningum nega que a psicanlise tenha um efeito teraputico. Mas se o analista se orienta por ele ou se obtm um resultado teraputico como plus, como adendo, e no como objetivo principal, so coisas distintas.

Assim, dentro da via do Simblico, Lacan pretendia o surgimento total do Sujeito. Isso equivaleria idia de subjetivao da morte, tirada de Heidegger. Lacan avanou em relao a Freud, com a idia de que haveria uma postura existencial do sujeito ante a prpria morte, postura que possibilitaria complet-lo.

Porm, essa no uma idia analtica, existencialista. E a prtica de Lacan rapidamente chegou sua impossibilidade. O sujeito poderia chegar at o extremo do dizvel, mas nunca se completaria, nunca se realizaria totalmente nas palavras, nunca poderia dizer tudo.

Sistematizando a prtica lacaniana em termos de vias do analista, uma delas seria a do Imaginrio da qual coloquei Jung como paradigma , que Lacan exclui de sada, pois o Imaginrio s alcanaria o sentido pelo Simblico, e no poderia consistir por si mesmo.

Privilegio a palavra via; vocs a encontraro em Lacan, pois no ingnua. Lacan pouco falou de si e, quando falou de religio, confessou como notria sua preferncia pelo Taosmo. O Taosmo uma antiga religio chinesa, em que a palavra Tao quer dizer caminho . Taosmo seria o caminho da realizao da vida. Ento, a via seria o prprio Tao. Quando Lacan introduziu os matemas, disse que o primeiro matema da humanidade seria o smbolo taosta da harmonia, o Yang e o Yin.

Este smbolo um matema, pois produz efeito de sentido, uma escrita e permite uma transmisso.

Seguindo-se Lacan, convencionou-se trs vias possveis para uma anlise. A via imaginria, descartada por encontrar seu sentido somente no Simblico; a do Simblico, que implica um impasse, porque no possvel o ser falante completar-se na fala, pois sempre haver um resto que faz obstculo a essa completude a noo de falta, presente o tempo todo, e que um dos nome do Real, e que a terceira via.

O Real seria o Real da falta, o Real da incompletude do Sujeito, um resto fundamental e no subjetivvel. No se pode subjetivar a falta. Ento, a idia de subjetivar a morte funcionaria se a morte fosse subjetivvel, mas no se pode subjetivar o que o constitutivo da subjetividade, e o que constitui a subjetividade a falta. Assim, a subjetividade no pode subjetivar a prpria falta, pois se assim fosse, seria um paradoxo.

Freud chegou a esse impasse figurando-o como rocha da castrao, que seria o que determina o fim de uma anlise, que ele diferenciava no homem e na mulher. Para o homem, o que precipitaria ao interrupo de uma anlise seria uma rebeldia submisso passiva, e na mulher o penisneid.

Uma forma de entender isso, referir-se s propriedades da ordem simblica, onde a combinatria dos significantes infinita. Por mais que se possa analisar e mostrar a correlao dos significantes, sempre sero possveis outras combinaes e, nesse sentido, no haver um fim de anlise possvel.

A via do Real, que comeou a ser formalizada nos anos 60, foi a resposta de Lacan ao impasse colocado pela impossibilidade de o Sujeito subjetivar a falta. J que o Sujeito no pode advir completamente na palavra, mesmo porque a falta no subjetivvel, Lacan inovou a experincia analtica, produzindo um avano inventando o procedimento do passe.

A experincia de Lacan levou-o a propor uma resoluo do impasse da castrao, da impossibilidade da subjetivao da falta por intermdio da idia de uma dessubjetivao, a que chamou de destituio subjetiva, que o que Lacan fez equivaler ao efeito da travessia da fantasia.

A fantasia o que faz o Sujeito crer que a subjetivao total possvel. A escritura da fantasia feita por Lacan atravs do matema $ a, onde o sujeito aparece numa relao com o objeto a , em que ele estaria completo.

Todos temos fantasias. isso o que se trabalha numa anlise, como cada um se conta um conto de iluso, onde nos vemos num mundo pleno de sentido, completo, onde h razo para existir, onde h razo para todas as aes. E ser nisso que a psicanlise ir intervir, produzindo a disjuno do que condiciona essa completude ilusria do Sujeito.

No psictico pode-se questionar se haveria fantasia. Se no h falta no Outro, no haveria por que completar a falta. O perverso completa essa falta com um objeto Real, o que elimina a angstia no havendo, portando, motivo para que procure o analista. Ento, a fantasia que encontramos na clnica , fundamentalmente, a fantasia neurtica.

A partir dos anos 70, Lacan afirmou que o analista entraria no discurso analtico apenas como objeto a . S que o analista estaria apenas fazendo semblante do objeto a, ao encarnar alguma coisa que no , a partir dessa atribuio de saber. Mas seria esse objeto que operaria na subjetividade do paciente. O analista no estar no lugar do objeto da fantasia de uma maneira passiva, estar como representante da causa do desejo do Outro, que o agente do discurso analtico.

O fim da anlise seria o resultado de uma experincia de saber, de um trabalho significante que culminaria numa assimilao, numa assuno da falta em ser, numa disjuno do Sujeito com esse objeto que o completa.

Na proposta lacaniana, o fim da anlise implicar que o sujeito subjetive essa incompletude radical e no suponha que ela possa ser completada por alguma coisa. Isso tem efeito na transferncia, produzindo o que j era clssico chamar-se de liquidao da transferncia. Lacan precisa essa situao transferencial como uma dessuposio de saber. No que um dia o paciente saber a sua verdade atravs do Outro; ele saber que o Outro faltante, e continuar faltante, e que ningum sabe sobre o que falta ao Outro.

Essa seria a posio do Sujeito num fim de anlise. No demais dizer que no a felicidade que a psicanlise aponta, pois o analista no a promete; e o analisando ficar entre a felicidade e seu desejo. A ingenuidade, a inocncia do analisando seria supor que, buscando o seu desejo, encontraria a felicidade. E nesse ponto entram as consideraes ticas clssicas. Se para Kant a felicidade era um acordo sem ruptura do Sujeito com a vida, que ele denominava de Boa Fortuna, no sentido analtico a felicidade compreende a relao do Sujeito com o seu sintoma.

A sada da anlise consistir em estabelecer um acordo do Sujeito com o seu sintoma. O que no um compromisso porque, diferena do conformismo, o Sujeito se assumir como incompleto e no se iludir de que um dia possa se completar.

Lacan formalizou suas ideias sobre a formao do analista no texto Proposio de 9 de Outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Este foi o ttulo de um projeto elaborado para fundamentar, num estatuto duradouro o bastante para ser submetido experincia, as garantias mediante as quais a nossa Escola poder autorizar um psicanalista por sua formao e, por conseguinte, responder por ela [14].

Existem duas verses deste texto, uma publicada em Scilicet em 1968, que uma nova redao da inicialmente apresentada na Escola Freudiana de Paris em outubro de 1967, e a original, somente publicada em 1978 na revista Analytica.

Ao fazer constar uma data, 9 de outubro de 1967, no ttulo deste escrito, Lacan estabeleceu definitivamente uma relao deste seu texto com os acontecimentos daquele momento que o fizeram necessrio.

Quase um quarto de sculo depois da Proposio..., a psicanlise de orientao lacaniana , no s no contexto francs mas em muitos pases do mundo, uma realidade insofismvel. Ela tambm o mesmo para aqueles que no tiveram Lacan diretamente como mestre e foram apenas seus leitores. Realidade esta particular dos psicanalistas brasileiros, que fazem referncia ao seu ensino via sua prtica clnica.

A especificidade da relao da Escola com seu ensino assim foi enfatizada por Lacan:

ento a um grupo para o qual meu ensino era suficientemente precioso, inclusive essencial a ponto de que cada um, deliberando, tenha marcado preferir sua manuteno vantagem oferecida isto sem ver alm, da mesma forma que, sem ver alm, eu interrompia meu seminrio depois de mencionado voto a este grupo com dificuldades; de encontrar uma sada que eu ofereci a fundao da Escola. Esta escolha, decisiva para os que esto aqui, assinala o valor da aposta. Pode haver aqui uma aposta que para alguns tenha o valor suficiente, a ponto de ser-lhes essencial, e que o meu ensino. Se o dito ensino sem rival para eles, o para todos, como demonstram aqueles que se lanam a sem ter pago o seu preo, ficando-lhes suspensa a questo do lucro que lhes permitido. Sem rival aqui no quer dizer sem estimativa, mas um fato: nenhum ensino fala do que a psicanlise [15].

Essa formulao deve levar em considerao o momento particular da elaborao de Lacan, o que no pode ser feito sem se referir aos Seminrios contemporneos deste texto, que so A lgica da fantasia [16] e O ato analtico [17].

Como os psicanalistas se fazem um a um, isso implica na srie produzida pelo conjunto deles, sempre um primeiro. Fato este que imps para Freud, dentro de questes similares, a necessidade de se referir noo de originrio, traduo do Ur alemo, como por exemplo as fantasias originrias, recalque originrio etc. Para os psicanalistas, poderamos chamar, chistosamente, o primeiro, de Ur-psicanalista? Este primeiro o que faz Escola, desde que o ensino deste primeiro seja sem rival e diga o que a psicanlise, tornando-se essencial.

Assim, numa Escola, os que seguem o primeiro devem dar provas de que so fiis aos princpios estabelecidos por este sobre o que psicanlise. Ou seja, os segundos devem dar provas de que so da Escola do primeiro.

Se antes de Lacan um psicanalista podia ser nomeado como tal, somente o era por ter sido aprovado por uma instituio, no caso as afiliadas da IPA, devido ao reconhecimento de ter o candidato cumprido as normas estabelecidas pelos critrios convencionados, o que colocava principalmente em questo o valor do conceito das psicanlises ditas didticas.

Ressalte-se que nenhuma instituio escapa ao procedimento de convencionar critrios. Porm o que se operou com a interveno de Lacan na problemtica da formao psicanaltica foi o deslocamento da questo dos produtores autorizados de psicanlises, os chamados didatas, para os seus produtos, as didticas.

Este deslocamento da questo operado poderia ser, dentro de um ordenamento lgico da Proposio..., um primeiro axioma, fundamental, e que foi assim enunciado: O analista se autoriza por si mesmo [18]. Ao que Lacan acrescenta: Isso no exclui que um psicanalista depende de sua formao [19].

Esta afirmao O analista se autoriza por si mesmo, elevada categoria de princpio, aponta no seu contexto de ruptura com os modelos tradicionais que uma psicanlise didtica no garante necessariamente um psicanalista, ou melhor, que uma psicanlise no didtica pelo fato de ter sido operada por um didata, ou, o psicanalista no se autoriza pelo seu psicanalista.

O psicanalista autoriza-se por si mesmo. Da podemos acrescentar, no h didatas, mas pode haver anlise didtica. Ou ainda, dever haver psicanlise, no necessariamente psicanalista.

O que , ento, nessa perspectiva, um psicanalista? Diz a Proposio...: Com o que chamei o fim da partida (anlise) nos encontramos enfim -no corao da fala dessa noite. A terminao da psicanlise chamada redundantemente de didtica a passagem, com efeito, do psicanalisante a psicanalista [20].

Assim Lacan resolve a questo do que um psicanalista: o que se produz numa psicanlise mediante uma passagem. Deduz-se que no se pode verificar psicanalistas, mas somente psicanlises, e a que se encontra o psicanalista.

Esta posio implica a necessidade de uma proposta de como se proceder para se verificar esta passagem de psicanalisante a psicanalista, visto ser esta a nica garantia de que ele o , o que torna tambm necessrio formalizar teoricamente no que consiste esta passagem.

A proposta com que Lacan solucionou este avano foi vista como sendo um dos atos mais inovadores da histria da psicanlise em matria de formao. Com o princpio o psicanalista se autoriza por si mesmo, afasta-se o domnio da didtica, preferindo um ttulo que decorra exclusivamente da formao, isto , da passagem de psicanalisando a psicanalista [21].

Autorizar-se por si mesmo a conseqncia lgica da supresso da hierarquia em benefcio do grau [22]. Em outras palavras, repensa a ordem institucional em funo de uma primazia atribuda ordem terica. Isto feito teorizando-se o que se deduz da experincia clnica, formalizada enquanto passagem pela castrao e na referncia ao mito edipiano.

questo de como verificar a passagem do psicanalisante a psicanalista, Lacan responde com a formulao do que foi concebido depois como procedimento do passe, que seria a traduo institucionalizada de uma experincia concreta.

Na Proposio... Lacan refere-se a esta soluo:

De qualquer lugar poderia ento ser esperado um testemunho justo sobre aquele que franqueia este passe, seno de um outro que, como ele, o , ainda, este passe quer dizer em que est presente nesse momento o des-ser onde seu psicanalista guarda a essncia do que lhe passou como um luto, sabendo assim, como qualquer outro em funo de didata, que tambm a ele isto j vai passar. (...)

isto que lhes proporei de imediato como o ofcio a confiar para a demanda de tornar-se psicanalista da Escola a alguns que nela denominaremos passadores.

a eles que um psicanalisante, para fazer-se autorizar como analista da Escola, falar da sua anlise e o testemunho que, sabero colher do ncleo mesmo do prprio passado, ser daqueles que nunca recolhe nenhum jri de aprovao. A deciso de tal jri se veria assim esclarecida, ficando entendido, no entanto, que estas testemunhas no so juzes [23].

O procedimento do passe no foi tornado obrigatrio, e aqueles que se submeteram a ele, quando aprovados pelo jri, receberam o ttulo de AE (Analista da Escola), um dos graus institudos por Lacan.

O princpio destes procedimentos foi articulado dentro de uma lgica em que o passante pudesse fornecer testemunho de sua anlise a dois passadores escolhidos por sorteio, transmitindo estes sua escuta a um jri, a quem caberia a aprovao deste pedido.

Esse dispositivo, organizado segundo essa concepo, viria sofrer modificaes na forma de sua efetivao, principalmente a partir de 1983 dentro da Escola da Causa Freudiana.

Na Proposio... essa questo foi articulada em conseqncia da passagem do psicanalisante a psicanalista, e seu efeito descrito em relao transferncia:

A estrutura assim abreviada lhes permite fazer uma idia do que ocorre em termos da relao de transferncia, ou seja, quando o desejo, estando resolvido quem sustentou o psicanalisante em sua operao, j no tem vontade de levantar-lhe sua opo, quer dizer, o resto que, como determinando sua diviso, o faz cair de sua fantasia e o destitui como sujeito [24].

A destituio subjetiva corresponderia tanto queda dos significantes mestres que representavam o Sujeito, significantes da identificao ideal advindo do Outro, quanto ao advento do ser, pois, sendo o Sujeito, falta a ser, no final da anlise seria em (- j) ou em (a) que apareceria seu ser. o que nos diz Lacan na primeira verso da Proposio...:

Sua significao de Sujeito no exclui o advento do desejo, fim aparente da psicanlise, seno que ali continua sendo a diferena do significante ao significado o que cair sob a forma de (- j) ou do objeto (a), entre eles e o psicanalista, na medida em que este vai reduzir-se ao significante qualquer. Por isso digo que nesse (- j) ou esse (a) onde aparece o seu ser. O ser de agalma do Sujeito Suposto Saber completa o processo do psicanalisante, numa destituio subjetiva. No temos aqui o que somente entre ns poderamos enunciar? No bastante para semear o pnico, o horror, a maldio e at o atentado? [25].

A destituio subjetiva, portanto, tambm seria destituio do Sujeito Suposto Saber, da seus efeitos na transferncia. A teoria do fim de anlise supe, ento, uma lgica segundo a qual no fim da anlise termina aquilo que a fez possvel no comeo, que foi a instalao da transferncia.

Essa lgica aponta seu eixo no momento em que o Sujeito v soobrar a segurana que lhe dava a fantasia [26], operao esta conceitualizada como travessia da fantasia. Essa travessia corresponderia, por um lado, simbolizao flica, e, por outro, ao gozo no simbolizvel do objeto pequeno a, pois se a fantasia era o que permitia ao sujeito crer-se um, inteiro, no momento do passe, da travessia dessa fantasia, esse sujeito no encontraria mais sua unidade no significante. Esse momento se refere localizao na transferncia, no desejo do analista, do lugar do sujeito como objeto a, sendo isso que permite dar uma soluo ao x do desejo do Outro. O sujeito encontra a ao seu ser no uma identificao idealizante ao significante, provindo de uma unidade ilusria, seno na identificao instituda pelo objeto a. O que est em jogo, ento, no final da anlise, que o Sujeito se reconhea como objeto.

Na Proposio... esse momento seria correlato a uma perda, que se realizaria no nvel do des-ser do Sujeito Suposto Saber, des-ser do analista. O objeto pequeno a resta, portanto, do lado do analista, que ao cair como Sujeito Suposto Saber fica reduzido a um resto desprovido de todo valor de agalma. Lacan refere-se a este fato assim: Nosso propsito acerca dela (terminao da anlise) produzir uma equao cuja constante o agalma. O desejo do analista sua enunciao, que s poderia operar-se se ele vem a em posio do x [27].

Este x mesmo, a cuja soluo o psicanalisante entrega seu ser, e cujo valor se anota (- j), a hincia que se designa como funo do falo ao isol-la no complexo de castrao, ou (a) para aquilo que a obtura com o objeto que se reconhece sob a funo aproximada da relao pr-genital.

Uma psicanlise levada a este ponto produz, ento, a desarticulao do agalma, o que poderia ser escrito (a/- j). Produzindo um efeito de ruptura, desencantamento, enfim de desmoronamento da transferncia.

Nestes vinte e cinco anos desde a Proposio.. muito se avanou em relao a ela. Caber aos colegas, na seqncia desta reflexo, estabelecer os desdobramentos da lgica proposta por Lacan, para a formao do psicanalista, no texto em exame.

O prprio Lacan, em 1974, dizia na sua atualmente famosa Nota aos italianos:

O psicanalista s se autoriza por si mesmo, isso evidente. Pouco lhe adianta uma garantia que minha Escola lhe d, sem dvida, sob a cifra irnica do AME no com isso que ele opera(...). por isso que ele deve zelar; para que, autorizando-se por si mesmo, s haja o psicanalista. Pois minha tese, inaugural por romper com a prtica pelo qual pretensas sociedades fazem da psicanlise uma agregao, no implica, no entanto, que qualquer um seja psicanalista. [28]

Quer dizer, o princpio de que a psicanlise que autoriza o psicanalista continua vlido, o que viria a ser modificado seriam os instrumentos de sua verificao. Considerando-se correta a opinio de Lacan, em Deauville em 1978, de que o passe na Escola Freudiana de Paris foi um fracasso, autorizou-se no entanto sua retomada a partir de 1983, com modificaes que convergem na sua concepo atual.

Mas, embora o procedimento do passe tenha sido modificado em alguns de seus aspectos, permanece inalterada a fidelidade lgica da Proposio... que infere a anlise como condio do psicanalista, e o passe como seu instrumento de verificao. Agregue-se a esta proposta, no meu entender, o cerne do texto de 1967, uma teoria do fim da anlise, sem a qual a proposta no seria exeqvel. Essa teoria, se vlida, redefine dentro de uma perspectiva no s o trmino de uma anlise, como sua finalidade, alterando toda a sua operacionabilidade.

Para esta perspectiva, o psicanalista o instrumento de uma operao ao fim da qual ser refugado. O sujeito, chegado a este ponto, de destituio subjetiva des-ser, conquistou uma verdade, no sem sab-lo uma verdade incurvel [29].

Aqui se poderia falar numa Escola de Lacan, uma Escola avanada de Freud, pois se o fundador da psicanlise colocou o impasse da resoluo da anlise na rocha da castrao, Lacan formulando-a dentro de um sentido lgico (inexistncia da relao sexual) prope um passe a esse impasse. Para Freud, a castrao foi postulada como um impasse de ordem biolgica. Lacan elaborou-o logicamente e considerava-o atravessvel.

O no existe relao sexual resume a impossibilidade lgica de uma complementariedade entre os universais. S existe um significante, falo, e a relao ao outro sexo sempre mediada por este, implicando uma falta no significante, pois o Outro incompleto. essa perspectiva nica, que formaliza procedimentos e concepes, que, por sua coerncia, consiste numa Escola.

[1] Lacan, J. in Escritos, p. 591.[2] Malcolm, J. Psicanlise: A profisso impossvel, Zahar ed., R.J., 1983. [3] Lacan, J. Proposio de 9 de outubro de 1967 para o analista da escola, in Scilicet, 1968, num 1, p.14-30. [4] Ibid. [5] Ibid. [6] Lacan, J. Seminrio XIX Ou Pire... , indito, 1971.[7] Lacan, J. Seminrio XXII, RSI, in Ornicar n. 4, 1975.[8] Lacan, J. Seminrio XXIII, Le sinthome in Ornicar, 6,7,8,9,10,11, 1975/76.[9] Lacan, J. Seminrio XX, Mais ainda, 1972.[10] Lacan, J. Seminrio XXIII, Le sinthome, in Ornicar, ,7,8,9,10,11,1975/76.[11] Aubert, J. Joyce avec Lacan , Navarin Editeur, Paris, 1987.[12] Lacan, J. Seminrio I, 1953-1954. [13] Freud, S. S.E , v. XVIII, p. 324. [14] Lacan, J. in Scilicet, n. 1, 1968. [15] Ibid. [16] Lacan, J. Seminrio XIV , indito, 1967. [17] Lacan, J. Seminrio XV, indito, 1968. [18] Lacan. J. in Scilicet, n. 1, 1968. [19] Ibid. [20] Ibid. [21] Ibid. [22] Ibid. [23] Ibid. [24] Ibid. [25] Ibid. [26] Ibid. [27] Ibid. [28] Lacan, J. Note italienne, 1973, Le tripode, avril 1974. [29] Lacan, J. Proposio de 9 de outubro sobre o analista da escola, in Scilicet, n. 1, 1968.