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Dossiê: Ethos Contemporâneo e Religião- Artigo Original DOI – 10.5752/P.2175-5841.2017v15n46p345 Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 46, p. 345-363, abr./jun. 2017 – ISSN 2175-5841 345 Qual a função 1 das instituições religiosas nas sociedades saídas da religião? 2 What is the role of religious institutions in societies that originate in religion? Marcel Gauchet Tradução: Fabiano Victor Campos Resumo Este texto propõe uma reflexão sobre o papel que as instituições religiosas exercem na sociedade atual, uma sociedade na qual as igrejas são reenviadas para o âmbito da sociedade civil, reservando-se, assim, um espaço privado para o religioso. Ele mostra que o processo denominado de saída da religião não significa nem o fim da crença religiosa nem o desaparecimento das instituições religiosas, mas que seu sentido último reside numa mudança de estatuto, no que diz respeito ao religioso. O texto encontra-se dividido em cinco partes distintas. A primeira delas procura pensar a relação do religioso com os âmbitos público e privado, mostrando que as convicções religiosas são feitas para serem afixadas e reivindicadas no espaço público, mas que elas aí se inscrevem a título privado. A segunda parte apresenta a permanência das instituições religiosas como o resultado de uma relegitimação paradoxal, em que a religião emerge sob o signo de uma individualização do religioso. A terceira parte discorre sobre a ideia liberal de uma religiosidade republicana, em que a liberdade democrática adquire a forma de um espiritual histórico de alcance metafísico. A quarta parte trata da identidade histórica e de sua transmissão, bem como do movimento de destradicionalização das igrejas e de seu papel em meio à perda de sentido. A quinta e última seção mostra o papel que as instituições religiosas têm a desempenhar no cenário contemporâneo, que testemunha um insidioso processo de desumanização. Palavras-chave: Saída da Religião; Instituição Religiosa; Sociedade; Público-Privado. Marcel Gauchet Artigo submetido em 23 de junho de 2017 e aprovado em 29 de junho de 2017. Registrem-se os nossos agradecimentos à Capes pelo apoio recebido. 1 Embora seja mais usual traduzir o termo francês “rôle” por “papel”, em alguns momentos de nossa tradução optamos por assumir também a palavra “função”, para expressar o sentido do termo em questão. Todavia, por “função” não se deve entender aí o uso a que alguma coisa se destina, isto é, o seu emprego, a sua serventia ou utilidade. Tem, antes, o sentido de uma maneira própria de proceder ou de atuar. Convém observar, ainda, que o próprio Gauchet, ao longo de seu texto, emprega também a palavra francesa “fonction”, para expressar o seu pensamento. Observa-se, pois, uma oscilação no que diz respeito ao uso dos dois termos em questão, o que, a nosso ver, legitima a nossa tradução. 2 Este artigo constitui o texto de uma conferência inaugural pronunciada na école doctorale de l’Institut Catholique, de Paris, na ocasião do seu aniversário, referente aos anos de 2002 a 2003. Foi originalmente publicado, com o título Quel rôle pour les institutions religieuses dans des sociétés sorties de la religion?, na revista do supracitado Instituto, a Transversalités, n. 87, p. 1-14, julho-setembro 2003. Posteriormente, este texto foi publicado sob a forma do último capítulo da “GAUCHET, Marcel. Un monde désenchanté? Paris: Les Éditions de l’Atelier, 2004. p. 235-249”. Esta publicação, agora em língua portuguesa, foi realizada sob os auspícios de Fabiano Victor Campos. O autor autorizou a tradução e a publicação através do contato de Henrique Marques Lott, que participou na elaboração do resumo e das referências. Henrique Marques Lott é doutor em Ciências da Religião pela UFJF, e concluiu, recentemente, seu pós-doutorado no PPG em Ciências da Religião da PUC Minas. Historiador, filósofo e sociólogo, diretor de estudos junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, e editor- chefe da revista Le Débat, das Éditions Gallimard. País de origem: França. E-mail: [email protected] Doutor em Ciências da Religião (UFJF), bolsista PNPD CAPES no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

Qual a função das instituições religiosas nas sociedades ... · do seu aniversário, referente aos anos de 2002 a 2003. Foi ... Meu lugar aqui, a posição a partir da qual eu

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Dossiê: Ethos Contemporâneo e Religião- Artigo Original

DOI – 10.5752/P.2175-5841.2017v15n46p345

Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 46, p. 345-363, abr./jun. 2017 – ISSN 2175-5841 345

Qual a função1 das instituições religiosas nas sociedades saídas da religião?2

What is the role of religious institutions in societies that originate in religion?

Marcel Gauchet

Tradução: Fabiano Victor Campos

Resumo Este texto propõe uma reflexão sobre o papel que as instituições religiosas exercem na sociedade atual, uma sociedade na qual as igrejas são reenviadas para o âmbito da sociedade civil, reservando-se, assim, um espaço privado para o religioso. Ele mostra que o processo denominado de saída da religião não significa nem o fim da crença religiosa nem o desaparecimento das instituições religiosas, mas que seu sentido último reside numa mudança de estatuto, no que diz respeito ao religioso. O texto encontra-se dividido em cinco partes distintas. A primeira delas procura pensar a relação do religioso com os âmbitos público e privado, mostrando que as convicções religiosas são feitas para serem afixadas e reivindicadas no espaço público, mas que elas aí se inscrevem a título privado. A segunda parte apresenta a permanência das instituições religiosas como o resultado de uma relegitimação paradoxal, em que a religião emerge sob o signo de uma individualização do religioso. A terceira parte discorre sobre a ideia liberal de uma religiosidade republicana, em que a liberdade democrática adquire a forma de um espiritual histórico de alcance metafísico. A quarta parte trata da identidade histórica e de sua transmissão, bem como do movimento de destradicionalização das igrejas e de seu papel em meio à perda de sentido. A quinta e última seção mostra o papel que as instituições religiosas têm a desempenhar no cenário contemporâneo, que testemunha um insidioso processo de desumanização.

Palavras-chave: Saída da Religião; Instituição Religiosa; Sociedade; Público-Privado. Marcel

Gauchet

Artigo submetido em 23 de junho de 2017 e aprovado em 29 de junho de 2017. Registrem-se os nossos agradecimentos à Capes pelo apoio recebido. 1 Embora seja mais usual traduzir o termo francês “rôle” por “papel”, em alguns momentos de nossa tradução optamos por assumir também a palavra “função”, para expressar o sentido do termo em questão. Todavia, por “função” não se deve entender aí o uso a que alguma coisa se destina, isto é, o seu emprego, a sua serventia ou utilidade. Tem, antes, o sentido de uma maneira própria de proceder ou de atuar. Convém observar, ainda, que o próprio Gauchet, ao longo de seu texto, emprega também a palavra francesa “fonction”, para expressar o seu pensamento. Observa-se, pois, uma oscilação no que diz respeito ao uso dos dois termos em questão, o que, a nosso ver, legitima a nossa tradução. 2 Este artigo constitui o texto de uma conferência inaugural pronunciada na école doctorale de l’Institut Catholique, de Paris, na ocasião do seu aniversário, referente aos anos de 2002 a 2003. Foi originalmente publicado, com o título Quel rôle pour les institutions religieuses dans des sociétés sorties de la religion?, na revista do supracitado Instituto, a Transversalités, n. 87, p. 1-14, julho-setembro 2003. Posteriormente, este texto foi publicado sob a forma do último capítulo da “GAUCHET, Marcel. Un monde désenchanté? Paris: Les Éditions de l’Atelier, 2004. p. 235-249”. Esta publicação, agora em língua portuguesa, foi realizada sob os auspícios de Fabiano Victor Campos. O autor autorizou a tradução e a publicação através do contato de Henrique Marques Lott, que participou na elaboração do resumo e das referências. Henrique Marques Lott é doutor em Ciências da Religião pela UFJF, e concluiu, recentemente, seu pós-doutorado no PPG em Ciências da Religião da PUC Minas. Historiador, filósofo e sociólogo, diretor de estudos junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris, e editor-chefe da revista Le Débat, das Éditions Gallimard. País de origem: França. E-mail: [email protected] Doutor em Ciências da Religião (UFJF), bolsista PNPD CAPES no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]

Marcel Gauchet

Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 46, p. 345-363, abr./jun. 2017 – ISSN 2175-5841 346

Abstract

This text reflects on the role played by religious institutions in today's society; a society in which churches are sent back to civil society, thus reserving a private space for the religious. It shows that the process of leaving religion means neither the end of religious belief nor the disappearance of religious institutions, but that its ultimate meaning lies in a change of status as far as religion is concerned. The text is divided into five distinct parts. The first of them seeks to think of the relation of the religious to the public and private spheres, showing that religious convictions are made to be displayed and claimed in the public space, but that such convictions are part of this private sphere. The second part presents the permanence of religious institutions as the result of a paradoxical relegitimation, in which religion emerges under the sign of the individualisation of the religious. The third part discusses the liberal idea of a republican religiosity, in which democratic freedom acquires the form of a historical spiritual of a metaphysical scope. The fourth part deals with historical identity and its transmission as well as the movement of de-traditionalization of the churches and their role in the face of loss of meaning. The fifth and final section shows the role that religious institutions have to play in the contemporary setting, which testifies to an insidious process of dehumanization.

Keywords: The exit of Religion; Religious Institutions; Society; Public-Private; Marcel Gauchet.

Introdução

Meu lugar aqui, a posição a partir da qual eu falarei e o estatuto do meu

propósito exigem alguns esclarecimentos prévios.

Qual função, para as instituições religiosas, numa sociedade saída da

religião? A questão pode ser considerada de duas maneiras. Evidentemente, é a

questão dos crentes; ela é, normalmente, a questão dos responsáveis das

instituições religiosas. Ela é, nessa ótica, a questão do lugar almejável ou desejável

das instituições religiosas ao olhar das exigências da fé. Mas a questão pode,

igualmente, ser abordada do exterior. Faz sentido em ser tratada por um

observador que se interroga, de maneira neutra e imparcial, sobre o possível papel

que as sociedades saídas da religião deixam às instituições religiosas. Esta será

minha linha de análise, sendo posto, claramente, que eu não tenho nenhuma outra

competência para me exprimir aqui, diante de vós, sobre o tema.

Esforçar-me-ei por elucidar o lugar que a situação criada pela saída da

religião atribui às instituições religiosas – retornarei sobre essa última noção. Em

quais funções nossas sociedades tendem a acantonar as instituições religiosas? Mas

em qual sentido também as solicitam de maneira inesperada? São essas limitações

Dossiê: Ethos Contemporâneo e Religião. Artigo: Qual a função das instituições religiosas nas sociedades saídas da religião?

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e essas potencialidades que eu tentarei trazer à luz, sob um modo tão objetivo

quanto possível.

Engajar-me-ei, em suma, em fazer sobressair o que as instituições religiosas

devem saber do mundo no qual elas estão doravante condenadas a viver. Isso não

quer dizer, de modo algum, que elas estão destinadas a se conformar a ele ou a lhe

obedecer de modo servil. Cabe a elas escolher a atitude que será a sua. Mas ainda

têm que fazê-lo com conhecimento de causa. Elas não podem qualquer coisa. Elas

têm interesse em estar conscientes dos limites que lhes são acordados e das

demandas que lhes são dirigidas. É nesta primeira série de questões, questões

condicionais ou prejudiciais, que eu me deterei. Depois, há lugar para uma reflexão

sobre o papel que as instituições religiosas devem ter, do ponto de vista das opções

crentes. Mas esse último lugar não me pertence mais.

Acrescento ainda uma palavra, a fim de nuançar a extraterritorialidade que

eu reivindiquei: é que a resposta que as instituições religiosas trarão à questão não

é indiferente àqueles que se situam fora da religião. Ela implica o destino comum e

o futuro da democracia. Igualmente, é esse interesse “laico” pelo papel das

instituições religiosas além das sociedades de religião que eu me esforçarei em

evidenciar.

1 O privado e o público

Qual papel, para as instituições religiosas, numa sociedade saída da religião?

A questão pressupõe que elas conservam um papel, que a saída da religião não as

condenou, pura e simplesmente, à marginalização e à volta sobre si mesmas, no

seio de um mundo indiferente sobre o qual elas teriam cada vez menos influência.

A questão pressupõe, em outros termos, que a saída da religião não significa,

mesmo em tendência, o fim da crença religiosa e o desaparecimento das

instituições religiosas. Ela significa que seu estatuto muda, que ele se transforma

Marcel Gauchet

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totalmente. É sobre esse ponto que a perspectiva da saída da religião, tal como eu

tento desenvolvê-la, se distingue das teses clássicas sobre a “morte de Deus”, como,

por outro lado, das perspectivas não menos clássicas da “laicização” ou da

secularização. As religiões eram organizadoras do mundo humano-social, eram

inseparáveis de uma estruturação religiosa das comunidades humanas. É esse

papel que elas estão em via de acabar de perder, em todo caso na Europa. Mas, no

âmbito do mundo novo que se desenvolve fora das religiões, que se organiza

segundo a norma da autonomia, a convicção religiosa conserva, ou antes adquire,

um novo sentido, tanto do ponto de vista dos indivíduos quanto do ponto de vista

da vida coletiva. Ela perde seu estatuto público, mas encontra, no estatuto privado

que lhe é atribuído, a instância de uma nova função.

É o lugar de explicitar essa noção cardinal de “privado”, a fim de dissipar os

mal-entendidos tenazes que se prendem a ela. Será a ocasião de precisar, na

sequência, a noção de “instituições religiosas”.

Dizer que as convicções religiosas passaram irrevogavelmente para o lado do

privado é, simplesmente, registrar este fato fundamental de que as religiões

perderam seu lugar de lei pública, num mundo onde, doravante, está excluído que

elas forneçam a norma englobante da existência coletiva. As religiões estão

separadas, por princípio, das instituições políticas; qualquer que seja o estatuto de

direito daquelas, a elas não cabe conferir forma a estas últimas, mesmo quando, de

fato, continuam a estar vinculadas às instituições políticas. Mas esta privatização

não significa a relegação das crenças ao segredo do foro interno, do qual elas não

teriam que sair. O privado não é o íntimo. As religiões são componentes eminentes

da sociedade civil, livres para aí se organizarem e para aí se manifestarem. As

convicções religiosas são feitas para serem afixadas e reivindicadas no espaço

público. Mas elas são feitas para se inscreverem nesse espaço público a título

privado. Entendemos, por isso, que elas não podem mais exigir mais que apenas

representar uma parte desse espaço público pluralista, e que elas têm que

permanecer distintas, em todos os casos, do princípio de autoridade pública. Elas

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são privadas nisto que elas não poderiam reivindicar o estatuto de verdade oficial

exclusiva.

Podemos precisar, a partir daí, a noção de “instituições religiosas”, e, ao

mesmo tempo, a mudança de princípio que afeta a essas instituições. Mudança de

uma tal amplitude que leva alguns a falar de uma “desinstitucionalização” religiosa,

não sem boas razões. As Igrejas simplesmente estavam, ou reivindicavam estar, do

lado das instituições, entendamos, dos aparelhos de autoridade que têm vocação

para abraçar a coletividade em seu conjunto, a fim de ordená-la e de nomeá-la. É

verdade, especialmente em se tratando da Igreja católica, construída, a esse

respeito, como a instituição por excelência, o lugar onde se forjou a fórmula

institucional ocidental naquilo que ela tem de específico. Essa antiga posição

institucional não tem mais razão de ser – é ao que a expressão

desinstitucionalização alude com pertinência. As Igrejas são reenviadas para o lado

da auto-organização da sociedade civil, fundada sobre a livre adesão das pessoas.

Elas se enquadram, numa palavra, no princípio geral da associação, em face do

princípio de pertença obrigada que o poder público encarna. Acredito, todavia, que

é preferível manter o termo instituição, a fim de não perder de vista o caráter de

forças sociais organizadas que as Igrejas conservam e, sobretudo, a vocação

particular que distingue as organizações da crença através do tempo e que mantém

a continuidade de uma tradição na duração. Sob esse nome de instituições

religiosas, compreenderei, pois, as organizações da sociedade civil com finalidade

espiritual, aí incluindo, além dos magistérios eclesiais propriamente ditos, o

conjunto das estruturas que se unem, de uma maneira ou de outra, a uma

identidade confessional.

Marcel Gauchet

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2 Uma relegitimação3 paradoxal

Não somente a saída da religião não faz com que as instituições religiosas

percam toda função, mas contribui para lhes restituir uma função. É o grande

paradoxo da situação atual. De um lado, somos testemunhas, na Europa, desde uns

trinta anos, de uma aceleração da saída da religião e de um esvaziamento terminal

da ideia de sociedade cristã. De outro lado, assistimos à ressurgência da

visibilidade e da legitimidade públicas destas convicções religiosas

irresistivelmente privatizadas.

O que nós vivemos na Europa, se o quisermos resumir numa palavra, é o fim

do cristianismo sociológico, baseado sobre a transmissão familial e a pertença

comunitária – o que outrora pudemos nomear “a civilização paroquial”. As famílias

repugnam cada vez mais à inculca da crença religiosa, em função da ideia que têm

da fé, a qual só é considerada válida se ela se baseia na livre adesão. As

comunidades cada vez mais repugnam a se definirem pela religião, em função da

ideia que fazem da sua natureza: não é papel da religião servir de laço social ou de

identificante coletivo. É assim que emerge uma religião do indivíduo, uma fé

constituída por sua pertença à esfera da individualidade. A individualização do

religioso: tal é o grande fenômeno social que nos é dado viver.

Mas, de outra parte, este poderoso movimento de modo algum impede as

instituições, que representam esses indivíduos, de se reencontrarem

propulsionadas ao primeiro plano da cena pública e de constituírem o objeto de

uma demanda ou de uma espera inéditas, à proporção da sociedade global. Tal é o

fenômeno emergente que se trata de clarificar. É que, inicialmente, nossas

sociedades, as sociedades europeias prestes a acabar de sair da religião têm um

problema com os seus valores e os seus fins, tanto do ponto de vista privado das

3 Adotamos o neologismo “relegitimação” para traduzir o termo francês usado por Gauchet, relegitimation. Gauchet liga o prefixo latino –re, que frequentemente exprime a ideia de repetição, ao substantivo legitimação (em francês, legitimation). Com isso, o autor pretende evocar a ideia de uma nova legitimação, agora paradoxal, instaurada pela “saída da religião”, isto é, pelo “desencantamento do mundo”. (Nota do Tradutor).

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pessoas quanto do ponto de vista público. Em seguida, é que as sociedades saídas

da religião têm um problema com a sua identidade histórica, com a possibilidade

de assumir o seu passado e de assegurar a transmissão de seu sentido. Enfim, é que

as sociedades saídas da religião têm um problema com a definição do homem e do

humano. É a esses três títulos maiores, me parece, que elas se voltam para as

instituições religiosas e que delas esperam, confusamente, alguma coisa, sem

saberem muito bem o que. Tais são os três focos obscuros de inquietude em que eu

gostaria de introduzir alguma luz.

3 A neutralidade liberal e o lugar das finalidades

A melhor maneira de enfatizar o primeiro ponto é lançar um olhar de lado. A

aceleração da saída da religião no decorrer do último período não afetou apenas as

Igrejas estabelecidas. Ela foi fatal às religiosidades seculares que se definiram

contra elas. Ela literalmente dissolveu a fé marxista na realização revolucionária da

história. De maneira mais geral e mais difusa, ela desfez a crença nas promessas do

futuro, cujas expectativas investidas no progresso representavam a versão mais

difundida. Mas, igualmente, ela aplicou um golpe mortal a uma religiosidade

política de menor envergadura e de menor irradiação que na França exerceu,

entretanto, um papel histórico capital: a religiosidade republicana da liberdade e

seu espiritual laico. A República emprega uma opção de alcance metafísico. Em

face da religião heterônoma, ela afirma o valor supereminente da autonomia

humana, tal como ela se concretiza através da esfera pública, por cima das

convicções privadas. Ela faz da política o lugar de realização do homem, o teatro

onde sua liberdade se realiza no governo em comum. É o que nutre a

transcendência do Estado republicano. Vimos esse espiritual republicano decair;

por falta de adversário, sua causa tendo prevalecido em todos os aspectos. A

liberdade metafísica e sua tradução política doravante são reconhecidas por todos;

os cristãos são os primeiros a se reclamarem delas; elas não mais justificam um

combate específico. As religiões estão na democracia. É esta absorção que

Marcel Gauchet

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transformou completamente o sentido da laicidade à francesa, transformando o

estatuto da coisa pública.

Também em nenhuma parte melhor do que na França, talvez, discernimos a

mudança consecutiva ao refluxo dessas religiosidades seculares, à medida da

influência considerável que elas aí exerceram. O retorno das religiões estabelecidas

ao primeiro plano da cena pública se esclarece comparativamente. Ele é função do

fato de que a política e a história não são mais fontes últimas de sentido. Elas não

fornecem mais sistemas completos e autossuficientes de compreensão e de

justificação da existência. O homem não é destinado a se realizar através delas ou a

conquistar sua essência final graças a elas. Desde então, lhe é necessário responder

à questão do como viver por seus próprios meios. Aqui se exerce uma decisiva

individualização do sentido. Para as questões que implicam os fins últimos, só pode

haver resposta individual.

É neste quadro que as religiões encontram o seu estatuto legítimo de fontes

de sentido e de doutrinas compreensíveis, inclusive em relação ao agnosticismo

mais resoluto. As religiões constituídas têm a sua revanche sobre as religiosidades

políticas. Mas não só as religiões; na verdade, as religiões ao lado das

espiritualidades, das filosofias, das morais herdadas ou a serem reinventadas. Elas

se impõem conjuntamente no vazio criado pelo desaparecimento da espiritualidade

própria, da qual a coisa pública ou a causa coletiva estavam encarregadas. Nada das

razões supremas se determina no nível comum: eis o ponto em torno do qual gira a

nova demanda de espiritual e de religioso no seio de nosso mundo.

As religiões voltam a ser, ao olhar da consciência social, uma possibilidade

ao lado de outras, mas uma possibilidade estrutural, e uma das possibilidades

maiores da humanidade, tratando-se de definir os fins últimos. Não é excessivo

falar de uma relegitimação do religioso pela saída da religião, sob a condição de

bem mensurar o deslocamento do qual ela se acompanha: ela se efetua a título do

indivíduo. Sendo entendido, por outro lado, que tudo isso deve se desenrolar num

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âmbito liberal e pluralista no qual nenhuma verdade religiosa, metafísica ou moral

está em posição oficial e englobante. Mas acordada esta cláusula arquitetônica, as

religiões reencontram pleno direito de cidade como um dos eixos nutrizes da

cultura e dos valores. O fenômeno vai longe. Ele modifica, à distância, a consciência

extrarreligiosa. É requerido, do ponto de vista laico, pensar que se possa ser

religioso. É uma possibilidade que o próprio ateísmo deve integrar.

O fenômeno é tomado numa transformação da democracia cujo exame nos

conduziria muito além dos limites do presente propósito. Eu deixarei de lado,

assim, a questão das identidades religiosas e de seu reconhecimento. Por mais que

ocupe o lugar em evidência nesta recomposição do espaço público, ela é periférica

em relação a nosso objeto. Concentrar-me-ei sobre as duas questões mais salientes

na perspectiva que nos interessa: de uma parte, a do teor exato da demanda dos

indivíduos em matéria religiosa; de outra parte, a da natureza das esperas das quais

as religiões são investidas no domínio público.

É preciso sublinhar fortemente que os indivíduos, todos singularmente

reenviados ao seu problema moral ou à sua interrogação sobre o que é uma vida

boa, têm pouco a ver com os fiéis das comunidades crentes de outrora? Por causa

disso mesmo que singulariza a sua demanda, eles não estão prontos a se

submeterem a um magistério. Além disso, eles só podem conceber o espaço público

onde eles hão de se inscrever como um espaço pluralista no qual várias proposições

de sentido, religiosas ou não, coexistem. Mas, sob essas reservas e condições, eles

estão dispostos a prestar um ouvido atento e respeitoso a toda mensagem que se

refere às justificações, aos fins e aos valores. Além das religiões, é preciso insistir

nisto, isso diz respeito ao conjunto das doutrinas que se referem não só ao todo,

senão também ao último. Cabe saber se esta escuta distanciada e concorrencial

interessa às instituições religiosas. Elas se enganariam, desqualificando-a

apressadamente sob a etiqueta de “consumismo”, como tendem a fazer. É verdade

que elas não encontrarão aí catecúmenos dóceis. Isso não impede que elas devam

saber que uma chance histórica se oferece a elas, a de fazer entender o cerne da sua

Marcel Gauchet

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mensagem a um número de pessoas de boa vontade talvez mais amplo do que

nunca. Sem autoridade social, elas podem ganhar com isso uma irradiação

intelectual considerável.

Mas não há apenas os indivíduos. Se nada dos fins se determina no nível

comum, resta que o nível comum é o ponto de aplicação dos fins seguidos

individualmente. O lugar do poder permanece aquele onde convergem essas

visadas individuais e onde elas adquirem forma de escolhas coletivas. É por esse

viés que as instituições religiosas e as autoridades espirituais encontram um modo

de visibilidade oficial.

O poder público, o Estado democrático, doravante completamente neutros,

pois não consagram e nem oficializam nenhuma doutrina religiosa ou metafísica,

necessitam, todavia, dessas doutrinas e dessas filosofias das quais eles estão

separados. Eles necessitam delas precisamente porque delas estão separados. Eles

são constrangidos a ir procurar o sentido do que fazem lá onde ele se encontra, na

sociedade, do lado das tradições religiosas e filosóficas constituídas. Pois esse

Estado neutro não é menos o lugar onde se operam as arbitragens entre os diversos

fins supremos que os membros da comunidade política estão suscetíveis de propor.

Ele é o instrumento graças ao qual elas se encarnam. A esse título, ele não

pode se desinteressar delas, mesmo se não participa delas e se está aí para impedir

que qualquer uma das convicções que justificam esses fins tome o poder. Ele deve

fazê-las entrar na sua esfera, e marcar a sua importância. Eis o que restitui a sua

visibilidade pública ao religioso e o entroniza como protagonista eminente da

deliberação coletiva. As decisões prosaicas implicam fins superiores e a linguagem

dos fins não pode estar ausente do domínio do governo, mesmo que esteja excluído

que ela o comanda. Ainda aí, cabe às instituições religiosas decidir o que deve ser a

sua atitude em relação a este convite ao mesmo tempo caloroso e limitativo. A elas

é e será oferecida a possibilidade de se fazer ouvir na elaboração das escolhas

coletivas e de aí pesar, desde que elas compreendam as implicações da exigência

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pluralista. Certamente, isso não tem nada a ver com seu antigo império, mas isso

lhes abre uma influência não negligenciável, à medida de seus talentos de

persuasão. Que, em todo caso, elas não se enganem sobre a neutralidade liberal:

esta não impede, de modo algum, o apelo aos valores e aos fins. Ela define apenas

um outro modo de considerá-las, que, aliás, tampouco implica o relativismo.

Questão suplementar que agora seria preciso abordar nesta linha, a da

linguagem e da atitude adaptadas a veicular o que a fé cristã – pois é precisamente

dela que se trata – pode legitimamente ambicionar fornecer a um espaço público

não religioso. Limitar-me-ei a colocá-la nos termos que devem ser os seus. Ela não

é nova, ela caminha através da modernidade, mas ela toma hoje um realce

incontornável. Ela se resume como segue: propor uma versão do conjunto social

conforme aos valores religiosos, mas que seja respeitosa, simultaneamente, do

caráter não religioso desse conjunto. A tarefa requerida, em outros termos, é a de

definir um civismo cristão. Ela não é simples. É bom lembrar, a esse respeito, das

críticas, a meu ver fundamentadas, que Rousseau formula no capítulo “Da religião

civil”, do Contrato social. O propósito é facilmente transponível. Ele dá a ler a

distância que separa um civismo autêntico de um simples progressismo clerical.

Este pouco nos faria avançar mais longe que o clericalismo reacionário ou que o

conservantismo clerical de hoje e de anteontem. Ele passa igualmente ao lado da

questão posta. Ele não leva mais em conta a espessura própria e as coações

intrínsecas da cidade. Conversão impossível, ao olhar de uma tão pesada herança?

O futuro dirá se o desafio pode ser enfrentado.

4 A identidade histórica e sua transmissão

A sociedade saída da religião tem um problema com a sua história e com a

transmissão-perpetuação da sua identidade histórica, um problema que concerne e

que só pode concernir às instituições religiosas, especialmente as Igrejas e as

instituições cristãs. Este será o meu segundo ponto.

Marcel Gauchet

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Por que esse problema? Pelo fato desse avanço acelerado que já evocamos, a

sociedade saída da religião caracteriza-se, nos seus desenvolvimentos recentes, por

uma destradicionalização4 radical. Percebemos a dissolução de tudo aquilo que

ligava o presente à tradição, aos exemplos e aos modelos vivos do passado. Seja o

que de fato sustentava a operação de transmissão sob o seu aspecto simbólico de

vínculo genealógico, percebe-se agora que a base desapareceu. Aprendo aquilo a

que devo minha origem e que continua a viver através de mim. A

destradicionalização desfaz essa relação de copertencimento do presente com o

passado e de incorporação do passado no presente. Disso resulta esse formidável

paradoxo de uma sociedade que se pensa histórica de um lado a outro, que se

concebe toda produzida pelo devir, que vive na mudança e para a mudança, mas

que tem, simultaneamente, a mais profunda aflição por transmitir a sua dimensão

histórica, por torná-la acessível e viva no espírito de seus atores. Ela dissuade a

curiosidade; é porque o presente está desligado do passado, que ele

espontaneamente se dá por autossuficiente. Para encontrar o caminho da

explicação histórica, é preciso querer compreender, assim como para discernir o

trabalho do passado no presente é necessário procurar. Podemos passar disso.

Nada mobiliza essas diligências instantaneamente. Certamente, esta sociedade

tem, como nenhuma outra antes dela, o sentido patrimonial do seu passado. Ela é

obcecada por conservação. Ela musealiza5 não importa como. Mas uma coisa é

conservar, outra coisa é estabelecer uma relação viva e problemática com o passado

do qual se reconhece herdeiro, quando não se pode mais tratar de reconduzir aos

seus usos, de prorrogar as suas lições, de encarregar a sua continuação no presente.

Ao contrário de uma apropriação fecundante, a musealização6 embalsama o

passado, distancia-o, exterioriza-o em relação ao presente, sob o signo de um

respeito indiferente. Isso se repercute nas dificuldades de nossos sistemas de

4 Adotamos aí o neologismo “destradicionalização” para traduzir o termo francês “détraditionalisation”, forjado pelo autor para se referir ao processo de inversão do movimento de tradicionalizar próprio às sociedades anteriores àquelas saídas da religião. (Nota do Tradutor). 5 Do verbo musealizar, adotado pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e em conformidade à Academia Brasileira de Letras. (Nota do Tradutor). 6 Neologismo forjado a partir do verbo musealizar. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa registra o verbo, mas não a sua forma substantivada. (Nota do Tradutor).

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ensino e, mais amplamente, dos mecanismos sociais de transmissão. O mais

comprometedor na nossa capacidade de educar concerne ao eixo do tempo. Nós

bem sabemos mais ou menos desenvolver competências, aguçar aptidões, iniciar

em conhecimentos técnicos. O que nós penamos sempre mais em garantir é a

apropriação do sentido do passado que constituímos, nas obras e nos monumentos

em que ele se atesta. Apropriação que é, no entanto, a condição do advento de

atores históricos autônomos em relação a si mesmos, em possessão do mundo onde

lhes é dado evoluir e da cultura que o controla.

Em relação a essa dificuldade de primeira grandeza, as instituições religiosas

têm um papel a exercer. Eu de novo falarei mais particularmente das Igrejas cristãs

e, especialmente, da Igreja católica. Primeiramente, porque é da memória cristã da

Europa e do Ocidente que temos que nos ocupar em prioridade; em seguida,

porque são uma parte essencial das instituições de transmissão, da transmissão da

fé, certamente, mas de uma transmissão que não se separa do resto, como

testemunha a bem rica e bem específica tradição educativa cristã. Dois títulos

eminentes do nosso interesse, que não dispensam um exame mais amplo do lado

de outras tradições espirituais, mas que autorizam uma restrição provisória da

análise.

A dificuldade que afeta o mecanismo da transmissão em geral, aliás, atinge

violentamente as Igrejas sobre o terreno da pastoral. Isso não me interessa, e eu só

o menciono pela exemplificação que traz ao meu propósito. O desaparecimento do

cristianismo sociológico que eu evocava há pouco é um aspecto da

destradicionalização. É patente que ele muda radicalmente as condições de

introdução à fé. A destradicionalização religiosa impõe às Igrejas o desafio de

elaborar uma outra maneira de se dirigir à sociedade e aos cristãos potenciais e

futuros. Essa situação faz com que as Igrejas cristãs sejam cada vez mais, no futuro,

Igrejas de convertidos, uma população em direção da qual seja necessário um outro

modo de proposta da fé, outro que as antigas impregnações.

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O exemplo tem um alcance mais amplo. Parece-me que, no âmbito do

civismo cristão cujos contornos eu me permito traçar, essa reconsideração da

transmissão deve ser alargada e generalizada. Da transmissão do passado cristão

em geral é que se trata, e do passado cristão enquanto parte dominante do passado

europeu e ocidental. As Igrejas cristãs são as mais vastas instituições de memória

da Europa; nenhuma outra sofre a comparação sob este ângulo. Por que elas não se

preocupam em fazer viver essa memória sistematicamente e nas suas diferentes

dimensões, bem além do mundo cristão ou católico?

De resto, isso lhes é demandado, ainda confusamente, é verdade, mas de

uma maneira desde agora detectável; isso faz parte das funções insubstituíveis que

elas podem ocupar, dos modos de presença no mundo que elas têm que inventar.

Aliás, não é o que se dá a entender na forte revalorização do ensino

confessional no seio do espaço público e familiar? Seria um erro reduzi-la a rasas

considerações utilitárias ou a um medíocre consumismo escolar. Está em jogo algo

bem mais profundo; ela implica a demanda, inclusive entre muitos não cristãos e

não crentes, de um acesso, para suas crianças, a um universo de valores e de

cultura do qual se entrevê que já não é mais evidente e que as instituições públicas

não estão mais em condição de garantir.

Abrir-se a esta preocupação supõe, evidentemente, uma mudança de atitude

importante por parte das instituições. Para satisfazê-la, seria preciso que elas

consentissem em sair de seu domínio reservado e se distanciassem de sua missão

eletiva. Seria preciso que elas encontrassem os meios de falar à sociedade inteira,

continuando a exercer o seu papel próprio de formar e de acompanhar seus fiéis.

Não é exagerado lhes pedir e exigir outra coisa que aquilo a que estão destinadas?

Não sou juiz delas.

Limito-me a revelar uma demanda latente. Por causa da densidade especial

que as liga ao passado, por causa da importância da memória da qual elas são

portadoras, as instituições religiosas são fundadas, aos olhos de todos, para

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desenvolverem, no seio da sociedade saída da religião, uma função de mediadoras

com o passado, função que as sociedades saídas da religião terão que reinventar

por sua conta. As instituições religiosas não serão as únicas na linha de frente, mas

a dificuldade é tal que jamais haverá esforços em demasia e substituição neste

domínio. As instituições religiosas partem com a vantagem de uma posição

privilegiada. Num mundo destradicionalizado, elas são as únicas instituições a

entreter uma relação direta e constitutiva com o passado, ao lado dos museus e das

instituições patrimoniais em geral, exceto que os museus e as instituições de

memória apenas conservam, ao passo que as instituições religiosas fazem viver.

Elas perpetuam, entretêm, atualizam, enriquecem uma imutável mensagem vinda

do fundo das eras. Elas são, num mundo destradicionalizado, o único bastião de

tradição que subsiste, precisamente porque essa tradição só se transmite pelo

costume e pela herança, mas passa pela explicitação do Livro, pela exposição da fé e

de seu ensinamento. Elas formam o único sítio onde a noção de tradição conserva

seu sentido pleno e atual. Esta singularidade as designa para uma função mais

vasta, à proporção da coletividade: a de guardiã e de propagadora da história

profunda na qual temos nossas origens.

5 A repensar o humanismo

Isto me conduz ao meu último ponto. Se se resolve colocar, sob a palavra

“cultura”, essa função de atualização sentida das origens da qual eu acabo de

pontuar o indefinido presente – e é preciso se decidir por tal, pois não há outra

palavra –, então, é necessário sublinhar com vigor que a cultura, nesta acepção, não

se reduz a um vago ornamento do espírito, a um adorno estético da existência. A

cultura aparece, sob este ângulo, como o próprio elemento do humano, seu meio

intelectual e espiritual vital. Ela implica uma visão do homem como este ser não

imediatamente dado e presente a si mesmo, mas instituído, elevado a si mesmo

pelo intermédio de uma cultura cuja apropriação é inseparável de um trabalho

sobre si mesmo. A cultura, em outros termos, está no coração do processo

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antropogênico que faz com que a humanidade deva se aplicar a si mesma, se voltar

sobre si mesma para ser. Ela deve se conceber e se produzir pela mediação da

cultura, da ética, do saber, da estética – nesta perspectiva, tantos registros de uma

única e mesma diligência –, para que cada uma das individualidades que a compõe

tome forma e seja capaz de uma existência digna em meio aos seus semelhantes.

Também sobre este terreno, as instituições religiosas e, de maneira eletiva, as

instituições cristãs, têm um papel a exercer na salvaguarda de uma ideia do homem

como ser de cultura, no seio de um mundo sob a ameaça da desculturação.

Com efeito, a sociedade saída da religião tem um problema com a ideia do

homem. Ainda que esteja inteiramente fundada sobre os direitos do homem, como

ela acaba de redescobrir justamente em virtude da recente aceleração da saída da

religião, ela tem apenas uma ideia vaga desse homem que tem direitos. É que, com

efeito, os direitos do homem não viabilizam ideia de homem. Eles só a abordam

abstratamente – é esta a sua prodigiosa força operatória –, eles só a consideram

sob o ângulo da igual liberdade e da igual dignidade dos seres no presente. Nada

mais e nada menos. Por isso, a proteção vigilante e a promoção ativa desse ser de

direito podem ser acompanhadas por um extremo rebaixamento do homem que

protegemos e promovemos. É aquilo de que somos testemunhas. Isso não condena

os direitos do homem, é necessário elucidar; isso significa que eles não têm

resposta para tudo.

A sociedade saída da religião, na face inédita que a vemos adquirir, é

conduzida por um “naturalismo” de um novo gênero, para retomar um termo

carregado de história ao qual convém conferir uma nova significação. Um

“naturalismo” em que a natureza não se opõe à “supranatureza”, mas à “cultura” na

acepção que acabamos de definir. Um naturalismo intimamente ligado ao

individualismo e que opera uma desculturação em nome do indivíduo, por causa da

ambição deste em aceder a uma existência imediata e direta por si mesmo. Uma

lógica poderosa faz reviver o estado de natureza entre nós e tende a fazer acreditar

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que o homem existe antes e independentemente destas formas e mediações de

cultura que lhe fornecem aquilo que aparece apenas como uma identidade social

contingente e extrínseca. Esta aparelhagem cultural encontra-se desqualificada ou

relativizada em nome das necessidades, dos desejos, dos interesses, da

autenticidade do indivíduo, ao olhar dos quais só conseguem passar por sujeição

arbitrária e autoritária. Estamos, aqui, na origem da desumanização insidiosa que

produz nosso mundo. Ela não tem nada a ver com a inumanidade selvagem da era

totalitária. Ela se entende melhor com um humanismo de princípio; ela não é

animada por nenhuma hostilidade para com a cultura. Ela é uma desumanização

de indiferença, de esquecimento e de incompreensão. Ela é “afável e doce”, teria

dito Tocqueville. Esta é a razão pela qual ela é mal compreendida.

Esta propensão requer retomar a questão do humanismo sob novos ares,

colocando em seu centro a questão da natureza cultural do homem, se ouso dizer.

Na circunstância, cultura designando, uma vez ainda, não aquilo que povoa o

espírito, mas o que anima esse trabalho sobre si que permite ao homem aceder a si

dando-se forma, forma essa que segue as vias da escolha ética, dos imperativos do

saber ou da disposição estética. Não estamos mais na questão: pelo ou contra o

humanismo? Num mundo onde aproximadamente há apenas mais humanistas de

princípio, mas onde o humano se dissimula, a questão é: qual humanismo? Seu

teor7 está em recomeçar em função do que vem hoje, de maneira perfeitamente

imprevista, pôr especificamente em questão a humanidade do homem na

caminhada de nossa história.

As instituições religiosas, e especialmente as instituições cristãs, têm fortes

razões de ser8 para esse combate, elas que são herdeiras de um humanismo cristão

no qual os humanismos modernos e seculares têm sua matriz. Não posso entrar

nesta genealogia apaixonante que demandaria retomar o problema da

especificidade do cristianismo. Religião da salvação no outro mundo, sem dúvida,

7 A palavra teor [teneur] é aí usada no sentido de conteúdo essencial de um propósito, de um texto, de um ato. (Nota do Tradutor). 8 A expressão “razões de ser” refere-se ao que constitui a explicação ou a justificação de alguma coisa. (Nota do Tradutor).

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mas que desde a vida neste mundo instala, no coração de seu projeto, a elevação da

criatura decaída para além de si mesma; religião, a esse título, que permite a um

projeto extrarreligioso de dignificação do homem se desabrochar dela e contra ela9.

Religião da fé suspendida à inquestionável autoridade da Revelação, sem dúvida,

mas que a esta apresenta sob uma forma que exige a ultrapassagem da observância

e do rito em nome do mistério divino, de tal sorte que ela abre um espaço em que a

exigência de aprofundamento do conhecimento e do sentido possa se desenvolver e

se fundar por sua própria conta. Breves indicações que só pretendem indicar a via

da anamnese a ser conduzida. As Igrejas cristãs travaram uma longa batalha com

esse humanismo que se afirmava fora delas. Os termos do afrontamento são

conhecidos: poder de Deus contra liberdade do homem, dependência sobrenatural

contra autossuficiência do domínio da natureza. A agitação do combate dissimulou

aos protagonistas dos dois campos o que eles tinham em comum. Forçoso lhes é

reconsiderar, agora que não é mais evidente, que a caminhada de nossas

sociedades o põe em questão, por um desenvolvimento que considera a ambos

como falhos.

Os cristãos são chamados a reconsiderar o que a sua ideia do divino implica

como ideia do humano, ao passo que os leigos são chamados a reconsiderar o que o

seu pensamento da autossuficiência humana retoma do pensamento da

transcendência do qual se destacou. Humanismo religioso e humanismo ateu, para

retomar as expressões canônicas, são levados a descobrir um domínio de

convergência e, ao mesmo tempo, se redefinir. Não cabe apenas às instituições

religiosas trabalhar para salvar o sentido da humanidade do homem, sentido esse

que desaparece, mas elas não podem se desinteressar disso e elas só poderão

fornecer uma ajuda eficaz a isso estabelecendo alianças com espíritos que não

partilham suas esperanças no outro mundo, mas cujas exigências neste mundo

confirmam as suas. Semelhantemente, leigos, agnósticos, descrentes, ateus,

percebem que não salvarão apenas a dignidade do homem na qual acreditam; eles

9 Ou seja, que permite a esse projeto desabrochar a partir dessa mesma religião e contra ela. (Nota do Tradutor).

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necessitarão do socorro de uma fé esclarecida para uma luta que não a concerne

diretamente, mas da qual ela não poderia se desviar sem falhar.

O futuro das instituições religiosas, numa palavra, está tanto fora quanto

dentro delas, a despeito das aparências que privilegiam o retraimento sobre si10.

Ele está num esforço por agir sobre uma sociedade descristianizada, mas na qual os

não cristãos têm alguma coisa a esperar delas.

Conclusão

Eu não poderia concluir sobre outra coisa que sobre a abertura da história.

Esforcei-me por circunscrever possíveis. Nada diz que serão apreendidos e que se

tornarão objeto de uma atualização. A história é plena de potencialidades

abortadas. Mensuremos nossa liberdade e a contingência do devir. Esses possíveis

existem. Sucederá o que poderemos ou conseguiremos fazer.

REFERÊNCIAS

GAUCHET, Marcel. La démocratie contre elle-même. Paris: Gallimard, 2002. GAUCHET, Marcel. La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998. GAUCHET, Marcel. Le désenchantement du monde: une histoire politique de la religion. Paris: Gallimard, 1985. GAUCHET, Marcel. Un monde désenchanté? Paris: Les éditions de l’Atelier, 2004. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social: Discours sur l’économie politique. Paris: Gallimard, 1993. TOCQUEVILLE, Alexis. De la Démocratie en Amérique. v. I. Paris: Garnier-Flammarion, 1981.

10 A expressão francesa le repli sur l’entre-soi, que traduzimos por “retraimento sobre si”, diz respeito, neste contexto, à atitude aparente de um retorno das instituições religiosas sobre si mesmas, de um dobrar-se em si mesmas, no sentido de escolher viver no seu próprio microcosmos, evitando os contatos com aqueles que não fazem parte dele, isto é, fechando-se ao que permanece exterior e diferente de si. (Nota do Tradutor).