Raphael Carvalho - Historicidade Sergio Buarque

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    UM ESTUDO COMPREHENSIVO: HISTORICIDADE EM RAZES DO BRASIL ,DE SRGIO BUARQUE DE HOLANDA

    CURITIBA2013

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    Catalogao na publicao

    Cristiane Rodrigues da Silva CRB 9/1746

    Biblioteca de Cincias Humanas e Educao - UFPR

    Carvalho, Raphael Guilherme

    Um estudo comprehensivo: historicidade em Razes do

    Brasil, de Srgio Buarque de Holanda / . Curitiba, 2013.

    191 f.

    Orientadora: Prof. Dr. Helenice Rodrigues da Silva

    Dissertao (Mestrado em Histria) Ps-Graduao emHistria da Universidade Federal do Paran, na Linha de

    Pesquisa Cultura e Poder.

    1. Historiografia Brasileira. 2. Srgio Buarque de Holanda 3.

    Razes do Brasil. I.Titulo.

    CDD 981

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    Maria Clara, minha alegria.

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    AGRADECIMENTOS

    Dizia um antigo filsofo que a gratido me das virtudes e a amizade como um segundo

    eu. Um exerccio difcil, este: afastar as sombras do egosmo e perceber o quanto a presena dosoutros determinante. So o que h de mais importante em ns para o reconhecimento de nsmesmos. No dizer de Dilthey: Eles exercem uma presso sobre mim ou trazem para mim fora ealegria de viver; [...] eles colocam-me desafios, tomam espao em minha existncia. A trajetriadesta pesquisa de mestrado foi-se delineando muito em funo da participao ativa de algumaspessoas, elas fizeram exercer sobre mim sua fora e impulsionaram minha vontade e direcionarammeu caminho. Devo muito a elas, e aqui gostaria de manifestar meu sentimento de gratido. Aimpresso mais funda que tenho dessa experincia que me ocupou alguns anos da vida relacionada autocompreenso, fundamento sem o qual a prpria compreenso histrica no faria muito sentido.Penso que essa volta pelo mundo histrico tenha me ensinado, como diria o professor Rsen, a metornar mais humano, conhecedor de minhas limitaes, fragilidades e, talvez, potencialidades.

    Dedico um agradecimento especial Professora Dra. Helenice Rodrigues da Silva, minha

    orientadora, que h um bom tempo vem me acompanhando, incentivando, corrigindo e sedandominhas ansiedades. A ela devo a oportunidade deste momento, a experincia do aprendizado e,sobretudo, a confiana no crescimento intelectual, proporcionado por suas preciosas leituras nas reasde epistemologia da histria e histria intelectual. A minha participao na Primeira Jornada deEstudos Interdisciplinares e Transnacionais, por seu convite, muito me honrou e acrescentou em meuprocesso de amadurecimento. Seu trabalho e o impacto de sua presena em mim extrapolam os limitesda orientao propriamente dita; vejo-a como uma verdadeira mestra. Agradeo aos membros dabanca de arguio, os Professores Doutores Renato Lopes Leite e Paulo Astor Soethe, pelo aceite doconvite, leitura atenta e sugestes. Agradeo ao Renato tambm pelo seu desprendimento esensibilidade, qualidades que muito me favoreceram em momentos delicados. Professora DoutoraJoseli Mendona pela muito oportuna participao na banca de qualificao, com apontamentosvaliosos.

    Agradeo aos demais professores do Programa de ps-graduao em Histria da UniversidadeFederal do Paran com quem travei contato mais prximo, sobretudo na linha de pesquisa Cultura ePoder, que sempre me estenderam a mo e prestaram apoio. Dentre eles, especialmente gostaria deagradecer ao Professor Dr. Dennison de Oliveira, que, em meio a outras ocasies, deu-me timaoportunidade de participar como colaborador de seu livro Histria e Audiovisual no Brasil do sculoXXI. secretria do programa, Maria Cristina Parzwski, pela gentileza e solicitude no trato das maisdiversas encrencas. Aos colegas e amigos da Universidade e de outras paragens, pela atenodispensada, agradeo. Alguns deles: Carla Fernanda da Silva, Alex Neundorf, Adriane Piovezan,Mateus Buffone, Frederico Tavares, Thiago Felcio, Marcos Antonio de Frana, Fabio Ferreira, LusFernando Costa, Marlon Citon, Eliane Santana, Andrea Dal Pra de Deus, Gabriel Paizani, RodrigoAraujo, Rosana Louro, Luiz Renato e Rodrigo Feres, Maria Augusta Brandt, os colegas da ONG EmAo.

    Agradeo tambm aos pesquisadores da obra de Srgio Buarque de Holanda. O contato comestes e seus trabalhos foi de fundamental importncia. O trabalho de realizar escolhas foi o lance maisdramtico do percurso dessa pesquisa. Requis muita meditao, contorcionismos, angstias. Muitomaterial de pesquisa teve de ser deixado de lado, e ainda assim o texto ficou um tanto extenso, talvezem meu prejuzo. Sobretudo, foi difcil encontrar um caminho minimamente prprio entre tantos e toimportantes comentadores, crticos e pesquisadores da obra de Srgio Buarque. Como disse aquelemonge medieval, senti-me como nunca um ano sobre os ombros de gigantes. Meu olhar sobre aobra de Srgio Buarque foi facilitado pela estatura destes. Agradeo mais de perto ao Jos Adil Blancode Lima (Zeno), Thiago Nicodemo, Joo Kennedy Eugnio, Diogo Roiz e Dalton Sanches, pelasconversaes, orientaes, leituras, crticas e apontamentos, alm da disposio de materiais e ideias.Ao pessoal do Siarq/Unicamp e Coleo Especial Srgio Buarque de Holanda da Biblioteca Cesar

    Lattes/Unicamp agradeo pelas timas condies de trabalho proporcionadas. Sinto-me igualmentedevedor do trabalho de outros pesquisadores, nos quais me apoiei, mas que no tive oportunidade detravar contato, a no ser por meio de suas contribuies.

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    Agradeo ao CNPq pelo inestimvel apoio financeiro proporcionado pela bolsa de mestradoque sustentou por dois anos esta pesquisa.

    Por fim, o mais importante, agradeo a Deus e aos meus familiares. Ao meu padrinho PauloCsar de Carvalho, pelo apoio moral; aos meus tios Beatriz e Noel Nascimento, pela inspirao esadas de emergncia; ao meu irmo, Tiago Gonalves de Carvalho, pelo exemplo de disciplina eperseverana; e, principalmente, minha me, Helosa Leme Gonalves, sem a qual a prpria vidaseria impossvel (at hoje). A Deus agradeo pela ddiva da vida e conduo favorvel de uma miradede pequenas circunstncias que me escapam; por tolerar o verdadeiro privilgio de permanecer nocaminho que escolhi e que acredito fazer sentido e conexo entre as demandas interiores enecessidades da vida prtica.

    .

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    Compreender , para o ser finito, transportar-se para outra vida.

    [RICOEUR, P. O conflito das interpretaes: ensaios dehermenutica, 1969, p. 9]

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    O Tu dotado de alma nosso nico par nocosmos, o nico ser com o qual partilhamosuma compreenso mtua e podemos nos sentirum como no ocorre com mais nada.Quando pensamos em nos sentir em unio como resto da natureza, integramos isso nacategoria do Tu, motivo pelo qual Franciscode Assis se dirigia aos animais e s coisasinanimadas como irmos.

    [SIMMEL, G. Ensaios sobre teoria da histria. Rio deJaneiro: Contraponto, 2011, p. 37.]

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    RESUMO

    Investigar a noo de historicidade envolvendo o clssico ensaio Razes do Brasil (1936), de

    Srgio Buarque de Holanda, maneira de uma espcie de histria da historiografiateoricamente orientada, o objetivo central deste trabalho. Seguindo a abordagem da HistriaIntelectual, procuramos, de um lado, compreender a obra em sua historicidade, em seumomento singular de enunciao; de outro, explorar o contedo do objeto intelectual, qualseja, a historicidade ou a maneira como o ensasta articula as categorias temporais naapreenso de sua circunstncia em processo de mudana temporal. Surgido em um contextode profundas transformaes na vida brasileira,Razes do Brasilse apresenta como alternativareflexiva-compreensiva s necessidades de orientao temporal, motivadoras de umameditao articulada entre passado histrico e sentido do devir. Reinhart Koselleck, e suascategorias meta-histricas, experincia e expectativa, a referncia para se pensar ahistoricidade em Razes do Brasil. Ele assevera que a teoria da histria tem entendido a

    historicidade como delineamento das condies de possibilidade para a histria em geral epara a disciplina histrica mais especificamente. A problemtica de pesquisa refere-se compreenso da resposta que o autor proporciona em funo das mudanas engendradas emseu tempo. Alguns objetivos especficos e hipteses explicativas sero desenvolvidos, semprecom vistas ao tema e objeto central: primeiro, considerando a participao de Srgio Buarqueno modernismo, compreender a singularidade dessa participao, o papel que a histria ocupana sua crtica literria; compreender de que maneira o contato com a historiografia alem,

    principalmente a partir da temporada alem, atua na formao e amadurecimento de ideiassobre histria em Srgio Buarque de Holanda (considerando a apropriao do pensamentohistrico alemo centrada na noo de mudana histrica); por fim, no terceiro captulo,compreender as categorias de historicidade no seu estudo compreensivo das razes

    brasileiras, ou seja, de que forma, pautado na perspectiva do presente, articula passado efuturo, ou experincia e expectativa, constituindo as categoria meta-histricas da historicidadea pedra angular da obra. A vontade que movimenta esta pesquisa revisitar aquelaexpectativa que se apresentava, no empenho de compreend-la e atualiz-la (torn-lacompreensvel aos olhos dos tempos atuais).

    Palavras-chave: Srgio Buarque de Holanda. Razes do Brasil. Historicidade. Historiografiabrasileira. Teoria da Histria.

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    ABSTRACT

    This research aims to analyze the concept of historicity in Razes do Brasil, by Srgio

    Buarque de Holanda. Razes do Brasilwas published within a context marked by profoundtransformations in the Brazilian life and has been used as a means to reflect and understandthe temporal changes that motivate a reflection about the past and the historical meaning. Thestudy, rooted in the historicity categories proposed by the historian and theorist ReinhardtKoselleck, seeks to understand how the interpreter Sergio Buarque associates authority,

    personal remarks and cordiality, traits of Portuguese heritage, with the prospective of a future,permeated with modernism and hope for democracy. Some specific objectives andexplanatory hypotheses are proposed, addressing the thesis core object, the historicity:discuss Sergio Buarques participation in the Modernism Period understand the originality ofhis participation (critical views and parameters which suggest a partial rupture with themovement) and the role that the history (or before that, the experience) plays on his literary

    reviews and the connections between his experience as a reviewer and the historicalinterpretation essay; understand how the German historiography, comprising the time he spentin Germany, influenced Sergio Buarque de Holandas views on history (besides Webersconcepts, he also adopted several complex concepts suggested in former debates); finally, themost important, understand the categories of historicity in his comprehensive study of theBrazilian roots, that is, how Sergio Buarque connects past and future, experience andexpectation, transforming historicity into the epistemic principle of his work. The categoriesof historicity offer the possibility, through the analysis of issues raised from the transforming

    present, to link a review of the past with a future inspired by modernization and democratichope. The major motivation of this research is to revisit that delayed and unaccomplishedexpectation so that it can be understood and updated for the actual times.

    Keywords: Srgio Buarque de Holanda. Razes do Brasil. Historicity.Historiography. Theories of History.

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    SUMRIO

    Agradecimentos ....................................................................................................................... 4Resumo ................................................................................................................................... 10Abstract .................................................................................................................................. 11

    INTRODUOInterpretao, experincia interior: Srgio Buarque de Holanda e a temporalidade histrica .......13

    CAPTULO ISrgio Buarque de Holanda, o modernismo, a histria............................................................ 27

    1.1Histria e modernismo ........................................................................................... 271.2 Romantismo dentro do romantismo ...................................................................... 381.3 O modernismo eRazes do Brasil......................................................................... 531.4 O modernismo na viso retrospectiva de Srgio Buarque de Holanda ................. 59

    CAPTULO IISrgio Buarque de Holanda e o pensamento histrico alemo: mudana histrica em

    perspectiva ................................................................................................................................... 63

    2.1A viagem Alemanha ............................................................................................ 672.2 Historicismo e hermenutica: mudana histrica em perspectiva ......................... 752.3 Ensaio histrico e estudo compreensivo ................................................................. 89

    CAPTULO IIIHistoricidade emRazes do Brasil: ultrapassagem das razes e abertura ao futuro ...............100

    3.1 Sobre a noo de historicidade ............................................................................ 1003.2 O presente emRazes do Brasil: dilogos com seu tempo e historiografia .......... 104

    3.3 A experincia passada: atualizao e superao das razes ................................. 1163.4 A expectativa democrtica: uma historicidade aberta ao futuro ......................... 1383.5 Tenso e sentido histrico emRazes do Brasil.................................................. 160

    CONSIDERAES FINAISSobre a atualidade deRazes do Brasil................................................................................. 166

    REFERNCIAS ................................................................................................................. 178

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    INTRODUO

    Interpretao, experincia interior

    Srgio Buarque de Holanda e a temporalidade histrica

    Sobre a histria, ningum melhor poder ter uma opinio do queaquele que a experimentou em si prprio.1

    J. W. Goethe,Mximas e reflexes

    Em 1974, Srgio Buarque de Holanda (1902-1982) escreveu um ensaio notvel, que

    serviria de prefcio a uma coletnea de textos do mais conhecido nome da escola histrica

    alem, Leopold von Ranke (1795-1886).2 Intitulado O atual e o inatual na obra de Leopold

    von Ranke, o texto pode ser lido tambm como uma espcie de testamento do autor sobre

    suas filiaes, vinculaes ou enraizamentos no que concerne teoria e metodologia da

    histria ou, mais a fundo, sobre sua prpria atitude espiritual diante da realidade em seu

    carter singular e dinmicohistrico, em uma palavra. No apenas porque, por acaso, tenha

    sido o ltimo trabalho publicado em vida, mas pelo contedo, amplo domnio da matria, por

    expandir o estudo sobre Ranke e historiciz-lo nos embates da Escola Histrica,pelo elogio

    tradio fecunda e gloriosa do historismo3 e, principalmente, pela consonncia entre o que

    entendia como a caracterstica principal do historicismo e a sua prpria concepo de histria

    e prtica historiogrfica: a tradio espiritual representada por Leopold von Ranke infensa,

    1ApudSAFRANSKI, R.Romantismo: uma questo alem. So Paulo: Estao Liberdade, 2010, p. 28.

    2 O texto foi publicado, originalmente, como artigo naRevista de Histria da Universidade de So Paulo (USP),em 1974; em seguida, serviu de prefcio para a coletnea de textos de Leopold von Ranke, organizada pelo

    prprio Srgio Buarque, para a coleo Grandes Cientistas Sociais, da Editora tica, em 1979; por fim, foipublicado uma terceira vez no livro que rene os prefcios escritos pelo historiador paulista durante sua trajetriaintelectual. No h alteraes substanciais entre as diferentes publicaes. A de que dispomos e citamos altima: HOLANDA, S.B. O atual e o inatual na obra de Leopold von Ranke. In: HOLANDA, S.B.O livro dos

    prefcios. So Paulo: Companhia das Letras, 1996a, pp. 162-218.

    3 Srgio Buarque se refere distino entre historismo e historicismo decorrente da traduo do termoalemo historismus para outros contextos intelectuaiso que tem dado lugar a no poucas confuses e opta

    por usar historismo para evitar a carga negativa conferida ao termo por Karl Popper: adota-se aqui a formahistorismo, diverso e, em alguns pontos, contrrio ao historicismo de que falou Popper. In: HOLANDA,

    S.B.O livro dos prefcios. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p 214. De nossa parte, fazemos coro ao usoatualmente corrente, historicismo. Cf. MARTINS, E.R. Historicismo: tese, legado, fragilidade. HistriaRevista, UFG, n. 7: 1-22, jan./dez. 2002.; IGGERS, G. The german conception of history: the national traditionod historical thought from Herder to the present.Wesleyan University, 1983.

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    por sua prpria natureza, a pretenses dogmticas, pode renovar-se sem maiores

    dificuldades.4

    Dois anos aps o lanamento, na Alemanha, do Geschichtliche Grundbegriff,

    organizado por Reinhart Koselleck (1923-2006), ao lado de Otto Bruner e Werner Conze,

    Srgio Buarque no apenas o tinha adquirido e estudado, como desculpando-se pela

    digresso faz dele uma resenha no final do ensaio sobre Ranke. O primeiro volume do

    Lxico dos conceitos fundamentais da histria, que se encontra em sua biblioteca, hoje

    alocada em uma coleo especial da Biblioteca Cesar Lattes, na Universidade Estadual de

    Campinas (Unicamp), sugere uma leitura atenta e compromissada da parte de Srgio Buarque.

    A meno histria dos conceitos (Begriffsgeschichte) de Koselleck no foi en passantou

    por desejar exibir erudio e atualizao. Antes disso, significava o reconhecimento de umanova perspectiva. Srgio Buarque animou-se com a histria dos conceitos de Reinhart

    Koselleck. Sobre o monumental dicionrio, disse que representava uma maneira de

    remoar, sem tra-lo, o esprito da escola histrica alem.5

    Na leitura de Srgio Buarque, o tema central do dicionrio a revoluo no mundo

    dos conceitos na passagem dos sculos XVIII e XIX, correspondente ruptura revolucionria

    da modernidade. Este aspecto da transformao histrica dos conceitos a partir da experincia

    neles condensada vista como o trao original da abordagem, o que o distingue de outrastentativas congneres e, em particular, dos dicionrios filolgicos e filosficos conhecidos.6

    Muito cara a Srgio Buarque a viso da histria como mudana temporal, capaz de

    assegurar o sentido de liberdade no processo histrico e renovao e pluralidade interpretativa

    na escrita da histria. Por isso, o entusiasmo e o elogio da histria conceitual de Koselleck:

    no pretende oferecer definies abstratas e exteriores histria, que pudessem prescindir

    das mudanas de significao ao longo do tempo.7

    Sobre sua prpria concepo de histria, Srgio Buarque afianaria, em 1976, ementrevista revista Veja: A histria no priso ao passado. Ela mudana, movimento,

    transformao.8 Ademais, desde sua obra de estreia, o ensaio de interpretao histrica

    4 HOLANDA, S. B., 1996a, p. 212.

    5Idem, p. 213.

    6Idem, ibidem.

    7

    Idem, p. 214.8 HOLANDA, S.B. A democracia difcil. Entrevista com Srgio Buarque de Holanda [1976]. In: Srgio

    Buarque de Holanda. Org. Renato Martins. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009 (Encontros), p. 84-93.

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    Razes do Brasil(1936), pode-se perceber o mesmo pacto com uma viso de histria imbuda

    de temporalidade intricada, que articula passado, presente e futuro; ou, melhor, articula, do

    ponto de vista do presente, a representao da experincia passada com vistas sondagem das

    condies de possibilidade de futuro prximo. Principalmente isso: a experincia histrica

    viva, em movimento, por oposio a sistemas de ideias fixas que no se dobram ao fluxo e

    refluxo de nosso ritmo espontneo.9 Na mesma entrevista, Srgio Buarque evoca o filsofo

    Benedetto Croce (1866-1952), representante na Itlia do idealismo hegeliano, e sua famosa e

    sempre atual expresso, segundo a qual toda histria histria contempornea,10 para

    afirmar o iniludvel enraizamento do pensamento histrico na realidade presente, assim como

    Croce, ao defender a histria como pensamento e ao, diz que ela move-se a partir da

    conscincia presente do passado. 11No apenas em relao histria conceitual de Koselleck Srgio Buarque colocaria

    em evidncia a sua prpria compreenso de histria e temporalidade histrica, mas tambm

    em relao caracterstica mais central do historicismo12de reao ao naturalismo, de um

    lado, e filosofia especulativa, de outro , que levava a uma reflexo individualizante e

    historizante, isto , tendente a mover-se de acordo com o curso imprevisvel da histria,13 em

    lugar de postulados eternos e universais. De Ranke, Srgio Buarque dizia, e assim tambm de

    certa forma se ligava a Ranke, defendendo-o das mais variadas acusaes, que s conhecia

    9 HOLANDA, S.B.Razes do Brasil. So Paulo: Jos Olympio Editora, 1936, p.136. Sobre a espontaneidadecomo fundamento do organicismo de Srgio Buarque na primeira edio de Razes do Brasil, ver EUGNIO, J.K. Ritmo espontneo: o organicismo em Razes do Brasil de Srgio Buarque de Holanda. Teresina: Editora daUFPI. Teresina, 2010.

    10 CROCE, B.Histria como histria da liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 29.

    11Idem, p. 423.

    12 O prprio Srgio Buarque limita-se a diz-lo, em lugar de arriscar uma difcil definio, antes umamentalidade do que um mtodo. Contudo, quando Srgio Buarque utiliza o termo mentalidade, no se deveassoci-lo, de forma alguma, histria das mentalidades praticada pelos Annales. Significa, mais que isso,uma percepo histrica do mundo humano ou a relativizao dos sistemas de valores e de orientao no fluxoimprevisvel da histria. Ele discute tambm as crticas antepostas ao historicismo, entre elas, a anarquia devalores, a ausncia de convices, a responsabilizao pelas deformaes patolgicas verificadas na histriarecente, a acusao de racismo e nacionalismo exacerbado, e procura atenu -las ou refut-las. In:HOLANDA, S.B. O atual e o inatual na obra de Leopold von Ranke. In: O livro dos prefcios. So Paulo:Companhia das Letras, 1996, p. 163-4. Para uma definio ou, antes, identificao da tese do historicismo, cf.MARTINS, E.R. op.cit., p. 2: Entende-se por historicismo a poca de desenvolvimento da cincia hist rica,

    na qual esta se constitui, como cincia humana e compreensiva, sob a forma de uma especialidade acadmica.13 HOLANDA, S.B.,1996a, p. 163.

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    ideias histricas, no tempo, rejeitando como abstratas as ideias puras, permanentes,

    objetivas e absolutas, metafsicas e ticas.14

    Esse argumento, mais outros arrolados no ensaio, servem para tentar desfazer o

    mito construdo historicamente em torno de Ranke.15 Srgio Buarque replica queles que s

    conhecem de Ranke, como se sua nica contribuio historiografia fosse, a sua maneira de

    apresentar o passado tal e como aconteceu (wie es eigentlich gewesen): uma frmula sem

    dvida infeliz, porque sua redao pode dar margem a interpretaes que no correspondem

    ao pensamento do autor e, em muitos casos, so radicalmente opostas a esse pensamento.16 O

    que ele entende como a capacidade principal de Ranke a mesma que seduzira Wilhelm

    Dilthey (1833-1911), que de Ranke elogia o seu ponto de partida emprico e o questionamento

    da possibilidade de o historiador partir de teorias gerais e abstratas para o conhecimento doparticular.17 Sua especificidade estava, de acordo com o olhar de Srgio Buarque, na

    capacidade de desvendar grandes unidades de sentido, que iro dar queles sucessos

    [acontecimentos sucessivos] sua verdadeira significao histrica. Ele se refere, portanto,

    competncia de escrita e apresentao da histria, que em Ranke se manifestava de maneira

    sobeja.18 Se Dilthey diria de Ranke que este fora um grande artista (e nisso reside uma crtica

    de Dilthey ao objetivismo de Ranke), comparvel a Goethe, capaz de representar a amplitude

    14Idem, p. 190.

    15 Srgio da Mata, professor de Teoria da Histria na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), afirma queem torno de Ranke, sobretudo no terreno da oralidade acadmica (no Brasil, a partir dos anos 1980), erigiu-seum dos mitos historiogrficos mais poderosos: sobre ele sempre se fala e escreve, dele pouco (ou o que mais comum, nada) se l. O fim ltimo desse mito do Ranke arquipositivista seria a legitimao do avesso deoutro mito: o da revoluo dos Annales. Cf. MATA, S. Apresentao de Leopold von Ranke. In: MARTINS,E.R.A histria pensada: teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX. So Paulo: Contexto, 2010,

    p. 188-9. Um dos trabalhos que contribuiu para a reabilitao de Ranke entre a comunidade de historiadores dosculo XX, de outros contextos que no o exclusivamente alemo, foi a introduo de Georg Iggers a umacoletnea de textos de Ranke publicada nos Estados Unidos em 1973. No prefcio, Iggers procura corrigir aimagem de Ranke como historiador factual desprovido de teoria e apresentar elementos de sua narrativa que

    refletiram aspectos importantes da historiografia do novecentos. Somente na Alemanha ele continuaria sendolevado a srio no sculo XX, enquanto nos pases de lngua inglesa tinha sido absolutamente ignorado at ento.Contudo, ele havia sido, no sculo XIX, o historiador de provvel maior influncia no desenvolvimento doconhecimento histrico, a ponto de cham-lo o pai da histria moderna. Cf. IGGERS, G (Org.).Introduction. In: RANKE, L. The theory and practice of history. London, New York: Routledge, 2011, p. xi -xiii.

    16 HOLANDA, S.B., 1996a, p. 168.

    17 Ele primeiro exps de maneira completa o fato de a base de todo saber histrico, assim como o objetivosupremo desse saber, ser a apresentao do contexto singular da histria. In: DILTHEY, W. A construo domundo histrico nas cincias humanas. So Paulo: UNESP, 2010, p. 50.

    18

    Sobre a questo da escrita da histria, Ranke disse: A histria distingue -se das demais cincias por ser,simultaneamente, arte. Ela cincia ao coletar, achar, investigar. Ela arte ao dar forma ao colhido, aoconhecido e ao represent-los. Apud RSEN, J. Histria viva. Teoria da Histria III. Formas e funes doconhecimento histrico. Traduo de Estevo de Rezende Martins. Braslia: UnB, 2010, p. 18.

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    sensvel do acontecimento singular,19 Srgio Buarque ressaltaria a qualidade com que depois

    de apreender os fatos particulares, sabia reviv-los em suas pulsaes, para que se integrem,

    afinal, em quadros amplos, onde ganham nova dimenso e significado mais alto.20

    Por todos esses motivos, causa estranhamento em Srgio Buarque que se tenha

    acostumado curiosamente a designar Ranke o oposto de um simples cronista e avesso s

    abstraes filosficas , em outros contextos intelectuais que no o alemo, como um

    positivista.21 Na Alemanha, ao contrrio, o nome de Ranke teria passado a designar

    oposio ao empirismo no filosfico e com razes no idealismo. Srgio Buarque bem

    conhecia a filosofia positivista, como atestam as crticas a ela descidas em seu livro de estreia.

    Para ele, o positivismo despreza os condicionamentos histricos concretos e particulares. A

    importao do iderio positivista para o Brasil seria representativa da afetividade dos homensde letras brasileiros pelas formas fixas e leis gerais ao mesmo tempo em que nutriam um

    secreto horror realidade. Entende-se o sucesso do sistema de Comte na Amrica Latina

    (Brasil, Chile, Mxico), segundo a lgica do personalismo, pelo repouso que permitem ao

    esprito as definies irresistveis e imperativas desse sistema:

    realmente edificante a certeza que punham esses homens no triunfo final dasnovas ideias. O mundo acabaria irrevogavelmente por aceit-las, s porque eram

    racionais, s porque a sua perfeio no podia ser posta em dvida e se impunhaobrigatoriamente a todos os homens de boa vontade e de bom senso [...] Nossahistria, nossa tradio eram recriadas de acordo com esses princpios inflexveis. 22

    O veio historicista de Srgio Buarque de Holanda, dissimulado neste belo texto

    introdutrio a Leopold von Ranke, manifesta-se vigorosamente desdeRazes do Brasil, ensaio

    que, avesso s teorizaes e abstracionismos, embebido no historicismo (dois captulos foram

    escritos durante sua estada na Alemanha, entre 1929-1930), acena o despejo do olhar para a

    singularidade da experincia brasileira: no existiria, base dessa confiana no poder

    19 DILTHEY, W.Idem, 2010, p. 48-51.

    20 HOLANDA, S.B.Idem, 1996a, p. 169.

    21 Em outro trabalho, Srgio da Mata afirma que, sua poca (1974), o artigo de Srgio Buarque de Holandasobre Ranke no poderia ter realizado o intento a que se propunha, pois: no obstante o entendimento geral arespeito de conceitos como positivismo e historicismo no Brasil estivessem ento contaminados por toda sorte deinterferncia extraterica, elegeu-se um nome para simbolizar tudo aquilo que a historiografia do sculo XX

    pretendia ter deixado para trs: Leopold von Ranke. Cf. MATA, S. Ranke reloaded: entre histria da

    historiografia e histria multiversal.Histria da Historiografia. Ouro Preto, n.6, mar. 2011, p. 248.22 HOLANDA, S.B., 1936, p. 118-9.

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    milagroso das ideias, um secreto horror nossa realidade nacional?. 23 Neg-la seria a

    negao da experincia concreta e a ignorncia do movimento dinmico da temporalidade

    histrica: querer ignorar esse mundo ser renunciar ao o nosso prprio ritmo espontneo,

    lei do fluxo e refluxo, por um passo mecnico e uma harmonia falsa.24 A questo crtica,

    nesse nterim, que a forma de reconstruo do passado obrada por esses tradicionalistas

    ignorava a historicidade prpria do Brasil, o tempo brasileiro no concerto das naes. A

    advertncia est centrada na considerao da experincia histrica concreta. Positivistas,

    evolucionistas e marxistas, segundo o ponto de vista de Srgio Buarque, desconsideravam a

    historicidade e a espontaneidade de uma histria que, ao se movimentar do singular para

    unidades mais amplas de sentido, no se poderia submeter a modelos e conceitos ou sistemas

    filosficos inflexveis. A histria viva, acompanhando nosso ritmo espontneo era, portanto,o centro de interesse de Srgio Buarque. Um exemplo mais ou menos radical (mas no sem

    propsito, afinal, Srgio Buarque tambm criticava o passadismo tradicionalista de

    intelectuais catlicos, representados por um Tristo de Athayde, que reagiam ao modernismo)

    pode ser til para tornar mais claro este argumento: as pocas realmente vivas nunca foram

    tradicionalistas por deliberao. A escolstica na Idade Mdia era vivaporque era atual.25

    Essas duas expresses vivacidade e atualidade, marcantes na crtica historiogrfica

    aos positivistas e demais tradicionalistas so fundamentais no pensamento histrico deSrgio Buarque de Holanda deRazes do Brasil, a partir da imerso em seu prprio contexto

    de orientao em processo de transformao. Elas so informadas, pelo que tudo indica, na

    teoria hermenutica ou teoria da interpretao como epistemologia e metodologia das cincias

    humanas e sociais (Geisteswissenschaften), reelaborada por W. Dilthey no sculo XIX.

    De Wilhelm Dilthey (1833-1911) j se disse que foi o maior filsofo do sculo XIX.

    Ortega y Gasset, emAurora de la razn histrica, apresentava a novidade de Dilthey: [...]

    Dilthey, o maior pensador que teve a segunda metade do sculo XIX, fez a descoberta de umanova realidade: a vida humana.26 Ao positivismo, Dilthey ops a filosofia da vida

    (Lebensphilosophie), ou seja, aquela que entende a realidade como constituda somente por

    fatos da conscincia em seu fluxo vital e temporal, sem estarem desconectadas da realidade

    23Idem, p. 119.

    24Idem, p. 136.

    25

    Idem, p. 7 [grifos meus].26 ORTEGA Y GASSET, J. Sobre la razn histrica. Alianza editorial, Madrid, 1996, p. 233.

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    exterior. A filosofia da vida de Dilthey explica os critrios distintivos entre cincias naturais e

    cincias do esprito (geisteswissenschaften), bem como as condies de possibilidade e

    validade destas. Extenso da crtica kantiana, procura ainda assim superar o

    transcendentalismo de Kant ao propor uma crtica da razo histrica. O que Ortega y Gasset

    quer dizer com a descoberta de Dilthey que a filosofia a partir dele passa a se dobrar

    historicidade (Geschichitlichkeit) do homem (como ser histrico, finito) e do saber (como

    relatividade consequente).

    Para Dilthey, a explicao (Eklrung) operao especfica das cincias naturais,

    enquanto o procedimento bsico das cincias humanas a compreenso (Verstehen) das

    manifestaes da vida.27 A compreenso colocada, ento, na base do fundamento do mtodo

    histrico, no tempo em que a histria constitua-se como campo autnomo do saber.Contemporaneamente a Dilthey, aHistorik(1882) de J. G. Droysen (1808-1884), no seio da

    escola histrica alem, prope na histria a distino entre explicao e compreenso. Ambos,

    Droysen e Dilthey, na esteira da hermenutica romntica de F. Schleiermacher (1768-1834),

    seriam crticos do positivismo e sua metafsica tanto quanto de Ranke e seu objetivismo. Em

    seu lugar, colocava-se ento o perspectivismo e a interpretao.28

    27 Contemporaneamente, a hermenutica crtica de Paul Ricoeur busca uma reorientao da disciplina com afinalidade de se opor seriamente ao estruturalismo por meio da superao de uma desastrosa aporia, aalternativa entre explicar e compreender: a busca de uma complementaridade entre essas duas atitudes, que ahermenutica de origem romntica tende a dissociar, exprime, no plano epistemolgico, a reorientao dahermenutica. Dilthey antes de tudo, o intrprete deste pacto entre historicismo e hermenutica seria ofundador da separao entre compreenso e explicao. Seu descrdito e o do historicismo na segunda metade dosculo XX seriam resultantes de uma reordenao cultural resultante de uma mudana cultural que nos leva aprivilegiar o sistema em detrimento da mudana, a sincronia em detrimento da diacronia RICOEUR, P.

    Hermenutica e Ideologias, Petrpolis, RJ: Vozes, 2008, p. 23.

    28 Embora tenha-se ressaltado anteriormente um elogio de Dilthey, tanto quanto de Srgio Buarque, ao estilo

    rankeano, o hermeneuta possui, mesmo falando de dentro da escola histrica, uma crtica contundente aohistoricismo de Ranke. Para Dilthey, Ranke e a escola histrica, ao invs de questionar as bases do trabalho querealizavam, contentavam-se somente em produzir. Os historiadores, ento, acreditavam que elevar oconhecimento histrico condio de cincia era garantir o rigor do mtodo crtico das fontes. Para Dilthey, essafoi a grande limitao do historicismo, por faltar-lhes uma discusso conceitual. H-G. Gadamer, de outro lado,diz que Dilthey, tal como criticou os mtodos das cincias naturais, defendeu o ideal de se alcanar umconhecimento objetivo nos estudos histricos, que poderiam ser designados cincias, embora cinciashumanas. In: PALMER, R. Hermenutica. Lisboa: Edies 70, 1969, p. 180-2. Quanto a Srgio Buarque,apesar do evidente elogio a Ranke, no se pode deixar de lado que o texto trata do atual e do inatual do

    pensamento rankeano. Srgio Buarque sublinha por exemplo os crticos de Ranke que nele viram o historiadordo exclusivamente poltico e das minorias dominantes, bem como o que expulsou da histria moderna as naesque no pertenceram civilizao ocidental nem ao catolicismo e protestantismo. No escapava de SrgioBuarque, considerando a historicidade das teorias da histria, portanto, a suspeita do comprometimento, mais ou

    menos direto ou indireto, ciente ou inconsciente, do historicismo clssico com a trgica experincia Ocidental daSegunda Guerra. HOLANDA, S.B. O atual e o inatual na obra de Leopold von Ranke. In: O livro dos prefcios.So Paulo: Companhia das Letras, 1996a, p. 186-7.

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    A vida mesma histrica, e no abstrata, sistemtica ou transcendente. A

    possibilidade de conhecimento, em cincias humanas, apoia-se na experincia vivida. Seu

    objeto, o mundo histrico. Para se conhecer o mundo interior do homem, deve-se dar a volta

    na histria, forma de objetivao da experincia vivida:

    em torno da vida que gira todo o rudo exterior histria. [...] E neste mundoespiritual que se movimenta em ns de maneira criadora, e somente nele, que a vida

    possui seu valor, seu fim e sua significao.29

    O desafio, para Dilthey, era a recuperao da conscincia de historicidade da

    existncia humana, em vias de perder-se nas categorias cientficas estticas. A

    autocompreenso do homem seria, portanto, histrica (temporal): deve ser entendida, assim

    como o acontecimento histrico singular, em relao ao contexto do passado e o horizonte de

    possibilidades futuras. Seu contributo hermenutica foi coloc-la no horizonte da

    historicidade.30

    Em Srgio Buarque de Holanda, a noo de vida, carregada de mobilidade e fluidez,

    invalidaria a pretenso teleolgica positivista, prevendo a no realizao do triunfo dos

    preceitos racionais puros. A realidade poderia ser compreensvel atravs de sua racionalidade

    histrica intrnseca, a fim de que as frmulas abstratas no abafassem a espontaneidade do

    ritmo. A recusa dos dogmatismos, em Buarque de Holanda, uma investida, portanto, da

    noo de historicidade:

    Em verdade o racionalismo excedeu os seus limites somente quando ao erigir emregra suprema os conceitos assim arquitetados, separou-os irremediavelmente davida e criou com eles um sistema lgico, homogneo, ahistrico.31

    No seria, cerca de 40 anos depois de traadas essas linhas, a mesma noo dehistoricidade e movimento da histria o que animava o elogio de Srgio Buarque histria

    dos conceitos de Reinhart Koselleck? A resposta questo pode ser positiva. Principalmente,

    se se prestar ateno, na resenha que o autor brasileiro fez do Lxico dos conceitos

    fundamentais da histria, seguinte passagem, citada por Srgio Buarque da introduo do

    29 DILTHEY, W.A construo do mundo histrico nas cincias humanas. So Paulo: Unesp, p. 23.

    30

    PALMER, R.Hermenutica. Lisboa: Edies 70, 1969, p. 128.31 HOLANDA, S. B.Idem, p. 147 [grifo meu].

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    dicionrio: Todos os conceitos em que, do ponto de vista semitico, se congregue todo um

    processo esquivam-se definio: s o que no tem histria definvel.32 Um conceito no

    inaltervel, no um centro fixo e estvel, deve ser entendido como um objeto imerso na

    temporalidade. Isso de certa forma converge com a sua noo particular de histria

    mudana, movimento, transformao, como pronunciou na entrevista de 1976.33 Assim,

    percebe-se uma afinidade entre nosso objeto de pesquisa, a historicidade emRazes do Brasil,

    e o aporte terico sobre o qual nos apoiamos, o conceito de tempo histrico proposto por

    Koselleck.

    A noo de historicidade o tema central deste trabalho de dissertao. Razes do

    Brasil, de Srgio Buarque de Holanda, tributrio das discusses do seu autor no movimentomodernista (a partir de uma parcial ruptura com o modernismo, em que experincia histrica e

    a prpria historicidade determinam sua singularidade no interior dos debates modernistas),

    tributrio de suas leituras alems (desde antes da viagem de 1929, e depois, com o

    enraizamento no historicismo apreendido na terra de Goethe), apresenta-se no contexto

    brasileiro da dcada de 1930 como uma resposta aos impasses da modernizao do pas ou

    como uma interpretao capaz de subsidiar a orientao temporal sobre a profunda mudana

    histrica pela qual passava o Brasil naqueles anos. O ensaio de interpretao histricaRazesdo Brasil, a partir da autoconscincia de seu lugar no tempo, se oferece como um projeto

    (mesmo assistemtico e avesso sobreposio de qualquer tipo de construcionismo atemporal

    que se chocasse com a historicidade prpria e espontnea da nao) de interveno no

    32 HOLANDA, S. B. O atual e o inatual em Leopold von Ranke. In: Livro dos prefcios. So Paulo: Companhiadas Letras, 1996a, p. 214.

    33 Sem querer negar a pertena de Koselleck tradio do historicismo e linhagem de historiadores como

    Humboldt e Ranke ou de pensadores como Dilthey e Weber, como foi aventado por Srgio Buarque de Holandaquando disse que a histria dos conceitos renovava, sem trair, o esprito da escola histrica, mas necessriomencionar que Koselleck guardava certas diferenas e reservas quanto sua prpria tradio, coisa que talvezSrgio Buarque no tenha tido tempo de perceber nem de aprofundar. Franois Dosse, em recente texto sobreKoselleck, afirma que essa insatisfao estaria base do projeto de Koselleck por uma semntica histrica ehermenutica crtica. Cf. DOSSE, F. Reinhart Koselleck entre semantique historique et hermeneutique critique.In: DELACROIX, C.; GARCIA, P.; DOSSE, F. (Orgs.) Historicits. Paris: La Dcouverte, 2009, p. 121.Ouamos o prprio Koselleck a propsito do historicismo: a singularidade dos eventos, a singularidade dahistria, tornou-se a principal premissa terica tanto do historicismo quanto das teorias do progresso (In:KOSELLECK, R. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro:Contraponto/Ed. PUC-RJ, 2006, p. 144). Historicismo e progresso, embora paream distintos, so como duasfaces da mesma moeda. O que os aproxima a separao entre passado e futuro caracterstica da modernidade,que d origem noo de tempo histrico. Ou seja, na modernidade, a histria fica restrita s elaboraes

    progressistas das filosofias da histria que sero instrumentos de uma crise sociopoltica sem precedentes (Cf. atese de Koselleck, de 1954: KOSELLECK, R. Crtica e crise. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora da UERJ,1999).

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    presente, pela compreenso, pela orientao das expectativas, pela crtica aos obstculos

    plena modernizao e democratizao da sociedade brasileira, associados herana colonial

    portuguesa.

    Reinhardt Koselleck a referncia para se pensar a historicidade emRazes do Brasil.

    Sobre a noo de historicidade propriamente dita, o terico alemo assevera que o termo

    uma mediao entre a filosofia da histria nascida no sculo XVIII e a histria ela mesma (a

    experincia passada); refere-se, em sua formulao recente, ao permanente processo de

    relativizao pelo qual o historicismo foi reprovado. Historicidade absolutiza a relatividade,

    na expresso de Koselleck.34 Como definio, Koselleck afirma que a teoria da histria, hoje,

    tem entendido a historicidade como delineamento das condies de possibilidade para a

    histria em geral e para a disciplina histrica mais especificamente.35Koselleck assegura o primado da teoria da histria para a pesquisa emprica, pois ela

    estimula e obriga construo de hipteses, sem a qual nenhuma pesquisa histrica pode ser

    conduzida [...], s a partir do estabelecimento dessas premissas que as fontes comeam a

    falar [...].36 Com isso, em concordncia com Koselleck, queremos dizer que a teoria da

    histria tem um papel preponderante nessa pesquisa de mestrado. Mas, empiricamente, a

    questo da historicidade emerge da prpria obra de Srgio Buarque exemplo de aguda

    conscincia da historicidade, ou seja, da realidade em transformao, quando, por exemplo,para melhor compreenso do Brasil, evoca que se deixe intacto um mundo de essncias

    ntimas, desdenhoso de toda forma de construtivismo e inveno humana, a fim de evitar o

    compasso mecnico e a falsa harmonia e deixar entrever a lei do fluxo e refluxo da vida e

    da histria. 37 A, a pesquisa emprica encontra-se e afina-se com as perspectivas tericas que

    orientam o nosso trabalho.

    Desde a sua atividade de crtico literrio e militncia modernista, entre os anos 1920 e1926, Srgio Buarque apresenta uma inclinao para tais questes. Srgio Buarque fora leitor

    assduo de J. W. Goehte (1749-1832). O poeta alemo fora uma das primeiras referncias

    34 KOSELLECK, R. The practice of conceptual history: timing history, space concepts. Califrnia: StanfordUniversity Press, p. 2.

    35Idem, p. 3.

    36 KOSELLECK, R.Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-

    RJ; Contraponto, 2006, p. 187.37 HOLANDA, S. B.Razes do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1936, p. 161.

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    intelectuais de Srgio Buarque de Holanda.38 Freidrich Meinecke (1862-1954), em seu livro

    clssico sobre a gnese do historicismo, tambm de 1936, dir que Goethe est no centro da

    revoluo do historicismo, pela remisso interioridade e criao de um individualismo

    universal (face ao desenvolvimento triunfante das cincias naturais): este sentimento do

    mundo, novo, [...] implica em si mesmo um novo sentimento da histria, fornecendo o

    poderoso fluxo capaz de liberar o mundo histrico de sua rigidez.39 Goethe, segundo

    Meinecke, partira de sua vivncia interior, ligada geneticamente com o Deus-natureza

    romntico, para se fundir com o temporal-histrico. Goethe penetrava de modo indito o

    mundo histrico, desde a profundidade do homem, fundido em uma corrente geral de vida e

    evoluo. O historicismo, em geral, no era somente uma maneira de ver do historiador,

    porque ensinou a compreender toda a vida histrica como evoluo do individual.40 OGoethe de Viagem Itlia (1786-1788), por exemplo, encontra-se em um pas que a prpria

    histria viva, ainda presente, em que as runas so testemunhos da civilizao do passado;

    ele reconhece o passado vivo, sensivelmente. Perante as runas de Roma, Goethe pressente a

    necessria convivncia entre passado e presente ou a presena do passado no presente.41

    Meinecke, ainda sobre Goethe nas origens do historicismo, ressaltaria igualmente essa

    dimenso de interioridade: no somente uma maneira de ver do historiador, seno de toda a

    vida humana, levou este processo de individualizao conscincia de si mesmo.42

    Enaltecendo a vivacidade da histria, Srgio Buarque fechava o seu ensaio clamando

    pela preservao do mundo das essncias mais ntimas intacto, irredutvel e desdenhoso

    das invenes humanas, pois no seria pela experincia de elaboraes engenhosas que nos

    38 J em 1920, no primeiro artigo enquanto crtico de rodap publicado pelo autor, ele fazia meno a Goethe. Oartigo intitulava-se Originalidade literria e fora publicado no Correio Paulistano, rgo oficial do PartidoRepublicano Paulista, em 22 de abril de 1922, data comemorativa do descobrimento do Brasil. A publicao foifavorecida por Affonso dEscragnole Taunay, professor de histria de Srgio Buarque no Colgio So Bento e

    amigo de seu pai. No artigo, percebem-se elementos que permitem observar quais problemas o preocupavam eque, de certa forma, seriam desdobrados posteriormente em sua obra de crtico e historiador. A temtica daespontaneidade, por exemplo, encontra-se desde j em seus trabalhos. Sobre Goethe, Srgio Buarque disse querazes de sobra tinha o poeta para afirmar que o homem sempre o assunto mais interessante para ohomem. HOLANDA, S. B. O esprito e a Letra: estudos de crtica literria I (1920-1947). Antonio ArnoniPrado (org.). So Paulo: Companhia das Letras, 1996b, p. 38. Ainda em 1920, a propsito da traduo do Faustode Goethe, Srgio Buarque escreve uma crtica bastante elogiosa da traduo de Gustavo Barroso. Idem, p. 77-89.

    39 MEINECKE, F.El historicismo y su genesis. Mxico, DF: Fondo de Cultura Economica, 1982, p. 492-3.

    40Idem, p. 494.

    41

    CALDAS, P. As dimenses do historicismo: um estudo dos casos alemes. OPSIS, Goinia (UFG) vol. 7, n 9,jul-dez 2007, p. 60.

    42 MEINECKE, F.Idem, p. 492.

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    encontraramos um dia com nossa realidade.43 Para compreenso dessa afinidade, deve-se

    levar em conta ainda a forma de ensaio do livro. Somente considerando o ensaio como forma

    de escrita da histria pode-se compreender melhor o pensamento histrico de Srgio

    Buarque.44 Segundo a definio do escritor austraco Robert Musil (1880-1942), o ensaio a

    forma nica e inaltervel que um pensamento decisivo toma vida interior de um homem.45

    Trata-se de um ensaio sobre a brasilidade, mas, pela via da autocompreenso, o autor

    d vazo subjetividade, como se ele mesmo em particular se alimentasse das vivncias ou

    essncias ntimas do carter singular brasileiro. No dizer de Dilthey, o ponto de partida o

    vivenciar; dele surgem as categorias histricas do valor e da inteno no tempo; sobre a base

    da vivncia e compreenso de si forma-se a base da compreenso do outro.46 O ensaio (como

    forma) permite essa dialtica entre sujeito e objeto.47 Entre o passado e o futuro, o particular eo geral, injetado de perspectivismo e cnscio da historicidade, o ensaio buarquiano uma

    narrativa histrica, interpretativa, que constitui sentido aos fatos narrados; sintetiza distintas

    camadas temporais, cujo fio condutordas razes sua atualidade e alm diz respeito ao

    lento, doloroso e recalcitrante, mas contnuo, processo de mudana histrica e modernizao

    nacional. A historicidade apresenta-se como o fundamento que assinala as condies de

    possibilidade de interpretao histrica na obra: entre o reclame da experincia histrica

    brasileira e a expectativa das virtualidades da modernizao, no endossa nenhuma propostaenftica ou sistemtica de ao poltica que se apresentava ao seu tempo adota o

    imprevisvel, a experincia singular, o movimento, o fluxo e refluxo do tempo e da histria,

    em suma, mantm em aberto o campo de possibilidades.

    O trabalho a seguir pesquisa tais questes. Investigar a noo de historicidade

    envolvendo o clssico ensaio Razes do Brasil (1936), de Srgio Buarque de Holanda,

    maneira de uma espcie de histria da historiografia teoricamente orientada, o objetivo

    43 HOLANDA, S. B., 1936, p. 161.

    44 Theodor Adorno define o ensaio como a forma crtica por excelncia, em definio bastante pertinente quandose trata de um ensaio histrico, que apreende o movimento da temporalidade: no segue as regras do jogo dacincia e da teoria organizadas, [...] no almeja uma construo fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revoltasobretudo contra a doutrina [...] segundo a qual o mutvel e o efmero no seriam dignos da filosofia.ADORNO, T. O ensaio como forma. In:Notas de literatura I. So Paulo: Editora 34, 2003, p. 25.

    45ApudHARTOG, F. Entrtien avec Franois Hartog. In: DELACROIX, C.; GARCIA, P.; DOSSE, F. (Orgs.)Historicits. Paris: La Dcouverte, 2009, p. 148.

    46 DILTHEY, W.A construo do mundo histrico nas cincias humanas. So Paulo: Unesp, 2010, p. 184.

    47 WEGNER, R. Um ensaio entre o passado e o futuro. In: HOLANDA, S. B. Razes do Brasil. Ediocomemorativa 70 anos. Orgs. Ricardo Benzaquen de Arajo e Lilia Moritz Schwarcz. So Paulo: Companhia dasLetras, 2006

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    central deste trabalho. Seguindo a abordagem da Histria Intelectual, procuramos, de um lado,

    compreender a obra em sua historicidade, em seu momento singular de enunciao; de outro,

    explorar o contedo do objeto intelectual, qual seja, a historicidade como fundamento meta-

    histrico da obra ou a maneira como o ensasta articula as categorias temporais na apreenso

    de sua circunstncia em processo de mudana temporal. Nessa introduo, procuramos situar

    o objeto de pesquisa e a referncia terica que ajuda a pens-lo e a elaborar hipteses em

    torno da noo de historicidade. Alguns objetivos especficos e hipteses (pode-se tambm

    entender por hipteses a problemtica de pesquisa) explicativas sero desenvolvidos, sempre

    com vistas ao tema central da historicidade.

    Os dois primeiros captulos referem-se ao preldio de Razes do Brasil, ou seja, ao

    percurso intelectual do amadurecimento de Srgio Buarque anterior ao ensaio. O primeirocaptulo, Srgio Buarque de Holanda, o modernismo, a histria, analisa em parte a produo

    crtica de Srgio Buarque (quando rompe com a militncia modernista e vai morar no Esprito

    Santo) de forma atenta presena de uma preocupao com histria e conscincia histrica

    latentes nas crticas produzidas no perodo. A hiptese que se divisa a de que, desde ento,

    Srgio Buarque, imerso em um universo histrico-romntico de pensamento, pois define o

    modernismo como um romantismo dentro do romantismo, o que o conduz a uma

    preocupao com a conscincia moderna, isto , quase sinnimo, uma preocupao com ahistria.

    O segundo captulo, Srgio Buarque de Holanda e o pensamento histrico alemo:

    mudana histrica em perspectiva, trata da viagem de Srgio Buarque Alemanha e analisa

    alguns artigos por ele publicados, na Alemanha e no Brasil, durante a estadia no estrangeiro,

    bem como a afinidade com o pensamento histrico alemo emRazes do Brasil. Discute-se a

    ancoragem de Srgio Buarque, sobremaneira, no historicismo e na hermenutica.

    Considerando que a apropriao do paradigma historicista pelo autor intricada, que seaproveita de elementos de Dilthey a Weber, nossa leitura preocupa-se menos com vincular

    sua produo de autores tericos, individualmente, que, de modo geral, em compreender a

    nfase de Srgio Buarque de Holanda na mudana histrica, que seria o prprio paradigma do

    tempo histrico produzido pela poca. Assim, desses dois primeiros captulos pode-se dizer

    que medida que vo delineando a questo da historicidade, so eles mesmos uma

    historicizao da trajetria intelectual do autor, desde o vis crtico e cosmopolita, at o livro

    de estreia, bem como fundamentam a prpria historicidade da obra de 1936, o processo de sua

    produo e o momento singular de sua enunciao.

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    O terceiro captulo, Historicidade em Razes do Brasil: ultrapassagem das razes e

    abertura ao futuro, investiga, por fim, a categoria da historicidade no seu livro de estreia,

    como ordenamento cognitivo, isto , aquilo que fundamenta a interpretao e possibilita as

    condies de articulao de uma crtica do passado, a partir das questes suscitadas pelo

    presente em transformao, miragem de um futuro em vias de realizao (eis a hiptese).

    Em torno disso, outra hiptese que se apresenta a discusso da autoconscincia de seu lugar

    no tempo, ou seja, em que medida o ensaio representa uma interveno no presente e qual a

    especificidade de seu olhar sobre o tempo da nao em relao a outras obras do mesmo

    contexto. Ou seja, que futuro sondava para o Brasil Srgio Buarque de Holanda a partir da

    interpretao crtica de suas razes? De qualquer forma, a virtual abertura para o futuro logo

    seria frustrada pela implantao do Estado Novo um ano depois, em 1937, a partir de umautogolpe de Vargas.

    Estamos, ento, diante de um futuro passado. Como no romance de Goethe,

    Afinidades Eletivasquando os amantes Otillie e Eduard assumem e afirmam reciprocamente

    sua paixo, em momento de rarssima felicidade, sucede-lhes a maior desgraa, a morte

    acidental do filho de Eduard nas mos de Otillie,parece que a esperana passou por sobre

    as suas cabeas como uma estrela caindo do cu.48 A vontade que movimenta esta pesquisa

    revisitar aquela expectativa fugidia e adiada, no af de compreend-la e atualiz-la (torn-lacompreensvel aos olhos do hoje), seguindo nesse ponto a orientao da Histria Intelectual

    de um Franois Dosse, que hermeneuticamente fala da mensagem que ele [um clssico]

    carrega tempo afora at nossa atualidade, ou seja, o modo como nos fala de nossa

    contemporaneidade.49

    48

    GOETHE, J. W.As afinidades eletivas. So Paulo: Nova Alexandria, 1992, p. 232.49 DOSSE, F. Da histria das ideias histria intelectual. In: Histria e Cincias Sociais. Bauru, SP: Edusc,2004, p. 294.

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    CAPTULO I

    Srgio Buarque de Holanda, o modernismo, a histria

    No mais a fuso com Deus, mas com a histria: esse o destino do homem na modernidade.50

    Octavio Paz, Os filhos do barro:do romantismo vanguarda.

    1.1 Histria e modernismoEm conhecida entrevista de Srgio Buarque de Holanda, concedida a Richard Graham,

    publicada originalmente naHispanic American Historical Review, em 1982, e republicada na

    Revista do Brasil, em 1987, o ento consagrado historiador, reavaliando sua trajetria de

    jovem crtico literrio no ambiente modernista, diria que o modernismo significou:

    [...] acima de tudo, a quebra do formalismo das velhas tradies. Em estudos de

    folclore, os modernistas dirigiram sua ateno para o interior do Brasil, longe dascidades europeizadas. Tornando os negros o objeto de sua arte, eles declararam queno somente os brancos eram brasileiros. Eu trouxe estas preocupaes para dentrodo meu trabalho histrico, bem como para todos os demais.Razes do Brasilfoi umatentativa de fazer algo novo, para quebrar com a glorificao patritica dos heris do

    passado, para ser crtico. 51

    O vis crtico em relao ao passado brasileiro, apreendido desde os anos do

    modernismo, Srgio Buarque conservaria sempre. Ao refletir sobre a presena do passado e a

    funo do historiador, ele afirmaria que, primordialmente, esta seria a de fazer esquecer o

    passado, promover a libertao de seu peso. No caso da histria do Brasil, disse, nosso

    passado to triste que melhor esquec-lo.52 A ruptura com o passado arcaico um tema

    eminentemente modernista. Em Razes do Brasil ensaio elaborado seno no mpeto da

    50 PAZ, O. Os filhos do barro: do romantismo vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 50.

    51 HOLANDA, S. B. Todo historiador precisa ser bom escritor Entrevista a Richard Graham [1982]. In:Srgio Buarque de Holanda: Entrevistas. Organizao de Renato Martins. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,

    2009.52Idem, p. 107.

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    primeira fase, iconoclasta, do modernismo brasileiro, pelo menos resultante de sua

    interveno a reflexo histrica tem a funo, em larga escala, de identificar as razes

    arcaicas e conservadoras que atravancavam os processos de modernizao e democratizao

    da sociedade brasileira. Claro, muita coisa aconteceu entre Razes do Brasil e a entrevista de

    1982. Contudo, a temtica modernista de ruptura com o passado arcaico sobreviveria obra

    posterior de Srgio Buarque, ainda que revestida de novo carter tcnico, desde quando ele

    avana em direo profissionalizao do ofcio de historiador.53

    Mrio de Andrade, em conferncia pronunciada no Ministrio das Relaes

    Exteriores, no Rio de Janeiro, em 1942, comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte

    Moderna (1922), tentaria fixar uma memria do movimento modernista, centrada sobre o

    paradigma de 1922 como um marco de ruptura na cultura brasileira. O texto da conferncia de1942 procura, em retrospectiva, conceituar o modernismouma convulso profundssima da

    realidade brasileira e avaliar suas contribuies para o campo intelectual. Em sntese,

    Mrio de Andrade avalia as conquistas do movimento modernista em trs aspectos centrais:

    O que caracteriza esta realidade que o movimento imps a fuso de trs princpios

    fundamentais: o direito permanente pesquisa esttica; a atualizao da inteligncia artstica

    brasileira; e a estabilizao de uma conscincia crtica nacional.54 Um dos aspectos

    fundamentais da temtica modernista, o trato do passado nacional, relembrado por Mrio deAndrade como marco de ruptura: [...] foi um abandono de princpios e de tcnicas

    consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligncia nacional.55 O autor dePaulicia

    Desvairada (1922), cujoPrefcio Interessantssimo lana ideias-chave do movimento, refere-

    se, sobretudo, ao perodo que ele designa como a verdadeira fase do modernismo, entre

    1922 e 1930, quando se viveu a maior orgia intelectual da histria artstica do pas.56 Srgio

    Buarque assistiu in loco a conferncia. Em carta ao amigo Mrio, no mesmo ano de 1942, ele

    demonstra ter percebido esse carter oficial da conferncia, ao coment-la: v. tratou quase

    53 este o sentido, por exemplo, do prefcio segunda edio de Viso do Paraso, de 1969: no pertence [aoofcio de historiador] o querer erigir altares para o culto do Passado, desse passado posto no singular, que

    palavra santa, mas oca. [...] uma das misses do historiador, desde que se interesse pelas coisas de seu tempo mas em caso contrrio ainda se pode chamar historiador? , consiste em afugentar do presente os demnios dahistria. HOLANDA, S. B. Prefcio segunda edio. In: Viso do Paraso: os motivos ednicos nodescobrimento e colonizao do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 21-2.

    54 ANDRADE, M. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. So Paulo: Livraria MartinsEditora, 1974, p. 242.

    55

    Idem, p. 235.56Idem, p. 238.

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    s dos sales modernistas, fazendo uma espcie de concesso ao ambiente itamaratiano.

    Dado o recado, logo desvia do assunto e atenua, para depois entrar no mrito de assuntos

    prticos, sobre publicaes futuras: sua conferncia representa de qualquer modo uma

    contribuio muitas vezes oportuna e importante para a histria do movimento [grifo

    nosso].57

    A crtica recente, no obstante, procura reavaliar alguns dos marcos referenciais do

    modernismo e empreende crticas mais ou menos severas memria oficial do movimento,

    da qual este texto de Mrio de Andrade o mais legtimo representante. Um dos balanos

    crticos mais significativos do modernismo, dada a multiplicidade de abordagens, foi

    produzido nos anos 1970, durante o IV Festival de Inverno de Ouro Preto, promovido pela

    Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As comunicaes apresentadas no encontropor ocasio do cinquentenrio da Semana de Arte Moderna (1972) foram reunidas por

    Affonso vila (organizador) e editadas pela Editora Perspectiva, sob o ttulo O

    modernismo. O texto de abertura da coletnea, de autoria do historiador mineiro Francisco

    Iglsias, ligado histria das ideias, procura historicizar o movimento e propor marcos

    temporais para as distintas etapas de desenvolvimento. A historicidade do modernismo ela

    mesma um movimento de historicizao: ao analisar o legado do modernismo para a cultura

    brasileira, Iglsias aponta a redescoberta do Brasil entre 1922 e 1930 o momento dasacudida modernista, que irrompeu um surto renovador no sentido de apontar-lhes os

    caminhos a seguir:

    O Brasil entra no ritmo da acelerao histrica que se verifica nos grandes centros,dos quais era simples reflexo, quando agora, ainda seja em parte reflexo, j produz

    bem mais o que seu, dando-lhe a nota essencial de seu estilo.58

    O texto de Iglsias chama a ateno para o aspecto (ou a corrente ou, ainda, o lado

    oposto, como diria Srgio Buarque, em 1926) conservador e ambguo do modernismo; os

    jovens modernistas encontram receptividade e proteo nos crculos dominantes de So

    Paulo, misturando-se a intelligentsia plutocracia. Paulo Prado (autor do Retrado do

    Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, de 1928), figura representativa da alta burguesia

    57 MONTEIRO, P. M. (Org.) Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda: correspondncia. So Paulo:Companhia das Letras, Instituto de Estudos Brasileiros, Edusp, 2012, p. 132.

    58 IGLSIAS, F. Modernismo: uma reverificao da inteligncia nacional. In: VILA, A. (Org.) O modernismo.So Paulo: Perspectiva, 1975, p. 25.

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    paulistana, encabearia a organizao da Semana de Arte Moderna, ao lado de nomes da mais

    tradicional elite de So Paulo. A explicao para essa ambiguidade a reunio do elitismo

    tradicional expresso renovadora da sensibilidade moderna , segundo o historiador

    mineiro, est no gosto de domnio em que se afirmou a superioridade dos elementos

    organizadores da Semana: [eles] a aceitaram pelo fato de que dirigida por eles [...], como

    protetores de jovens que fazem sua festa, exibem talento e no afetam em nada a ordem

    estabelecida[grifo nosso].59 A reunio de pessoas de tendncias to dspares, no diagnstico

    apresentado, sintoma de que no se percebia bem o que se passava60. curioso notar,

    nessa tica, que boa parte do esforo de crtica de Srgio Buarque entre os anos 1920-1926

    pode ser avaliado segundo a forte tendncia do autor em compreender o que se estava

    acontecendo, discernir grupos divergentes e tendncias dspares, intenes conservadoras ouverdadeiramente modernas, como demonstra o exemplo recorrente O lado oposto e

    outros lados (1926), entre outros artigos. S noite enxergamos claro,61 diria Srgio

    Buarque, no quase enigmtico ensaioPerspectivas, de 1925. poca, o autor flertando com o

    surrealismo e a psicanlise, este artigo reivindica para a arte potica o papel de declarao de

    direitos do Sonho, onde se buscaria a realidade, no paraso das regies inexploradas.

    A despeito do balano crtico de Iglsias, ainda assim sua abordagem est centrada no

    herosmo e heresia da gerao de 1922, exemplo de grupo eliminatrio e de combate,responsvel por, cem anos aps a independncia poltica do pas, question-lo quanto s

    dependncias a que estava submetido no mbito cultural e no realizao de uma sociedade

    aberta e democrtica. Em sntese, a viso do modernismo apresentada por Iglsias coincide

    e at mesmo corrobora, sem nome-loa de Mrio de Andrade: no era o gosto de destruir

    por destruir, mas a necessidade de limpar o terreno para nascer o autntico e novo que

    animou os artistas verdadeiramente criadores e modernos de 22.62 Estudos ainda mais

    recentes tm apontado, contudo, uma aguda crtica ao paradigma de 22. o caso dapesquisadora Monica Pimenta Velloso, autora de diversos trabalhos sobre o perodo do

    59Idem, p. 14-5.

    60Idem, p. 15.

    61 HOLANDA, S. B. Perspectivas. In: O Esprito e a Letra: Estudos de crtica literria I: 1920-1947. Org.

    Antonio Arnoni Prado. So Paulo: Companhia das Letras, p. 215.62 IGLSIAS, F., p. 16.

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    modernismo brasileiro.63 Em pequeno livro dado ao pblico em 2010, Histria &

    Modernismo, a autora investe em uma deslegitimao de 1922 como acontecimento

    fundador do novo na histria literria brasileira.64 Durante muito tempo foi utilizada a

    expresso pr-modernismo ou antecedentes, de modo a definir o panorama cultural

    brasileiro anterior SAM/22, na virada do sculo XIX para o sculo XX, como um momento

    de vazio cultural.65

    Este trabalho de questionamento se faz necessrio ainda hoje, e mais que nunca,

    porque a viso hegemnica do modernismo brasileiro, segundo a historiadora, ainda repousa

    em um consenso, circunscrito ambincia paulista e a um grupo cannico de intelectuais. Na

    apreciao de Velloso, com isso a historiografia do modernismo acaba por reforar antigas

    elaboraes (os marcos cronolgicos pautados pelos grandes acontecimentos) do fazerhistoriogrfico. importante, ento, considerar que a narrativa hegemnica do modernismo

    foi uma construo social fabricada pelas vanguardas paulistas, que a atualizaram entre as

    dcadas de 1930 e 1950, passando a construo dos acontecimentos dimenso da memria

    historiogrfica. O grande problema, na tica da autora, que a verso hegemnica no

    cogitava o carter compsito e ambguo do modernismo, nem abarcava pluralidades espao-

    temporais. Da um momento importante, como o chamadopr-modernismo, pelo resgate das

    tradies regionais, por exemplo, serabarcado a partir do e em funo do paradigma de 22:

    tais ideias acabaram comprometendo a prpria historicidade e conceituao domovimento; deixaram de ser considerados aspectos fundamentais, como aheterogeneidade dos grupos intelectuais e [...] as fortes tenses entre tradio emodernidade, que geraram dinmicas especficas.

    66

    Assim, a polissemia e ambiguidade que deveriam revestir o termo (Velloso sugere que

    se fale em modernismos) se anulam. Nessa discusso, o tema da temporalidade histrica

    63 Cf. OLIVEIRA, C.;LINS, V.;VELLOSO, M. P. O moderno em revistas: representaes do Rio de Janeiro de1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

    64 VELLOSO, M. P. Histria & Modernismo. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2010 (Coleo Histria &...Reflexes, 14).

    65 Tal crtica foi apontada tambm, por exemplo, por Francisco Foot Hardman: [...] boa parte da crtica e dashistrias culturais e literrias produzidas, desde ento, construram modelos de interpretao, periodizaram,releram o passado cultural do pas, enfim, com as lentes do movimento de 1922. In: HARDMAN, F. F. Antigosmodernistas. In: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e Histria. So Paulo: Companhia das Letras; Sec.

    Municipal de Cultura, 1992, p. 289-305.66 VELLOSO, M. P.Idem, p. 23.

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    ganha dimenso central; trata-se de considerar a espessura da temporalidade, que confere

    sentido aos acontecimentos, e pensar o acontecimento para alm do seu momento de origem.

    No processo de releitura do modernismo brasileiro, foi fundamental a gerao de literatos dos

    anos 1970 (Lus Costa Lima, Alfredo Bosi, Silviano Santiago), quecrticos do paradigma de

    1922 deu nfase diversidade da cultura brasileira e contribuiu para o entendimento da

    temporalidade mltipla da brasilidade.67 O entendimento da brasilidade modernista (a

    busca pela identidade nacional legtima por meio de uma literatura original) extrapolaria em

    muito, segundo a autora, o ambiente paulista e a Semana de Arte Moderna. A temtica da

    brasilidade teria uma trajetria longa, passando pelos mais diversos grupos intelectuais, desde

    a gerao de 1870 e a Escola do Recife, o regionalismo de Ccero Dias, Gilberto Freyre,

    Jos Lins do Rego no Recife dos anos 1930, at o modernismo mineiro, tambm regionalista,produtor de diversos debates com o modernismo paulista. O prprio Srgio Buarque de

    Holanda, embora bastante prximo dos paulistas, principalmente Mrio e Oswald, vivia no

    Rio de Janeiro e no tomou lugar efetivo na Semana de Arte Moderna, tendo servido,

    contudo, de divulgador do modernismo paulista na capital fluminense, representante de

    vendas da revistaKlaxon: mensrio de arte moderna, que circulou entre 1922 e 1923. Monica

    Pimenta Velloso confere a Srgio Buarque um lugar de destaque no modernismo

    principalmente se considerada a atualidade dos estudos e interpretaes do modernismoporseu papel de autocrtica do movimento. Aps o encerramento das atividades da revista

    Klaxon, Srgio Buarque mais seu amigo Prudente de Moraes Neto dirigiram, entre 1923 e

    1924, a revista Esttica, que tinha por funo central promover o debate entre os prprios

    modernistas. Pautada pela demanda de abertura intelectual, crtica da cultura e nova viso

    do passado brasileiro,Estticaapresentaria uma noo de brasilidade como obra inacabada,

    marcada pela mais profunda liberdade.68 Esse sentido da brasilidade por fazer-se, de

    acordo com o ritmo espontneo e historicidade prpria da nao encontrar reverberaonas pginas finais de Razes do Brasil.69 Um dos objetivos deste captulo da dissertao

    escrutinar algumas conexes mais ou menos ocultas da produo de crtico literrio de Srgio

    Buarque de Holanda no ensaio histricoRazes do Brasil.

    67Idem, p. 26.

    68

    Idem, p. 86.69 HOLANDA, S. B.Razes do Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1936, p. 161.

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    Outro trabalho recente que discute o cnon modernista o do professor do

    departamento de Letras da Universidade Federal do Paran (UFPR), Lus Bueno. Uma

    histria do romance de 30 foi publicada em 2006, o resultado de sua tese de doutoramento,

    homnima, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2001. Uma das

    partes do livro de mais de setecentas pginas (O lugar do romance de 30: 22 e 30)

    dedicada ao questionamento da validade do movimento modernista, um dos grandes temas

    da histria literria brasileira, hoje.70 Este questionamento, na tica de Bueno, parte

    bastante visvel de uma reao sedimentada postura de dimensionar a literatura brasileira do

    sculo XX a partir do movimento modernista. Ele faz a denncia, tambm, do

    estabelecimento de um conceito depr-modernismo como revelador dessa postura, pois assim

    se coloca o modernismo no centro de nossa tradio literria, a ponto de determinar o que vlido e o que secundrio na literatura do incio do sculo. No seu bojo, a ideia bastante

    questionvel de que as obras de um Lima Barreto ou Euclides da Cunha ganham sentido por

    suas antecipaes de certos aspectos modernistas.71 No por acaso, a maior parte dos

    questionamentos ao modernismo partem de estudos sobre o chamado p-modernismo.

    De outro lado, Lus Bueno procura desmontar todo um sistema de leituras do

    modernismo que ganharam corpo a partir da tese de Joo Luiz Lafet (1973),72 segundo a qual

    o romance de 30 alargamento do modernismo de 22, sua continuidade, viso que atribui aomodernismo de 22 posio definidora.73 Essa tese parte da ideia segundo a qual todo

    movimento esttico tem um projeto esttico tanto quanto um projeto poltico/ideolgico. No

    caso do modernismo brasileiro, segundo Lafet, teria ocorrido uma nfase maior no projeto

    esttico durante a dcada de 1920 e, nos anos 1930, uma maior nfase no projeto ideolgico.

    Ora, esta disposio se apoia naquele arranjo determinante do modernismo de 22, espcie de

    ortodoxia [...] e olhar inquisitorial sobre os que dela se afastam.74 Na esteira do pensamento

    de Antonio Candido,

    75

    um dos ativos lderes dessa ortodoxia, Lafet busca a identificao

    70 BUENO, L. Uma histria do romance de 30. So Paulo: Edusp; Campinas: Ed. Unicamp, 2006, p. 43.

    71Idem, p. 44.

    72 LAFET, J. L. 1930, a crtica e o modernismo. So Paulo: Ed. 34, 2000.

    73 BUENO, L.Idem, ibidem.

    74Idem, p. 45.

    75

    O prprio Antonio Candido, alm de inspir-la, concordaria com a tese de Joo Luiz Lafet: [...] no decniode 1930 o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um direito, no uma transgresso, fato notriomesmo nos que ignoravam, repeliam ou passavam longe do modernismo. Na verdade, quase todos os escritoresde qualidade acabaram escrevendo como beneficirios da libertao operada pelos modernistas, que acarretava a

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    imediata do modernismo com um esprito revolucionrio e, consequentemente, represso e

    apagamento do modernismo relacionado tambm a posturas polticas reacionrias.76

    Considera-se, conquanto, que a tese de Lafet fora escrita nos piores momentos da ditadura

    militar e que, por esse motivo, merece hoje uma reviso. A proposta de Bueno, na sua histria

    do romance de 1930, deslocar o olhar para perceber um certo afastamento dos projetos de

    cada gerao, e no uma aproximao ou simples continuidade. Para a gerao de 1922, a

    utopia era clara e palpvel; em 30, pelo menos para o romance, manchava-lhe o rumo

    conservador e autoritrio tomado pela modernizao:

    Nem mesmo para o mais otimista dos romancistas de 30 o tempo da utopia poderiaser visvel como fora para os modernistas, que o vislumbraram a partir de um

    presente no qual conseguiam identificar os prenncios desse futuro ao mesmo tempoutpico e palpvel. Com os ps fincados num presente que s pode prever o piorinclusive a Guerra, da qual se falava desde a primeira metade da dcada pareceque at mesmo o militante tem que se conformar em adiar seu sonho para um futuroindeterminado.77

    Srgio Buarque, de certa forma, como dizamos na introduo, vira-se obrigado a adiar

    suas projees, frustrado que fora pelo golpe de Vargas e implantao da ditadura do Estado

    Novo. Talvez da o desfecho enigmtico da primeira edio de Razes do Brasil, de 1936.

    Tambm, ele seria protagonista de certa ruptura com os modernistas ou, pelo menos, com umdos lados do modernismo, identificado por ele em 1926 como composto de acadmicos

    modernizantes, que idealizavam uma elite de homens, inteligentes e sbios, embora sem

    muito contato com a terra e o povo.78 Quem orientou a tese de doutoramento de Lus Bueno

    na Unicamp foi o professor Antonio Arnoni Prado, do departamento de Teoria Literria. Em

    seu trabalho, Prado analisou as correntes reacionrias que participaram do movimento

    modernista. Ele destaca a singularidade de Srgio Buarque de Holanda no interior do

    modernismo como algum capaz de elucidar, no calor do momento, o verdadeiro sentido

    depurao antioratria da linguagem, com a busca de uma simplificao crescente e dos torneios coloquiais querompem com o tipo anterior de artificialismo. In: CANDIDO, A . A Revoluo de 1930 e a Cultura. In: Aeducao pela noite e outros ensaios. So Paulo: tica, 1987, p. 186 apudBUENO, L.Idem, p. 65.

    76 BUENO, L.Idem, p. 46.

    77Idem, p. 74.

    78 HOLANDA, S. B. O lado oposto e outros lados. In: O Esprito e a Letra: Estudos de crtica literria I: 1920-1947. Org. Antonio Arnoni Prado. So Paulo: Companhia das Letras, p. 226.

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    reformista da revoluo dissidente. 79 Essa revoluo dissidente, que Prado denominaj no

    ttulouma falsa vanguarda, a brasilidade integral, considerada um desvio ideolgico,

    nacionalismo exacerbado levado ao terreno poltico-partidrio. A esses representantes da

    falsa vanguarda, Srgio Buarque despacharia para o lado oposto do modernismo. Sua

    singularidade, que o torna ao mesmo tempo um modernista avant la lettre e um crtico do

    prprio modernismo, estaria nesse esforo de discriminao, a fim de elucidar posies e

    comprometimentos. Arnoni Prado, observando a transposio dos argumentos presentes na

    crtica para Razes do Brasil, diz que a crtica buarquiana participao intelectual de

    minorias ilustradas comprometidas com os segmentos oligrquicos desmarcara, no projeto da

    brasilidade integral, o trao agravante de uma remodelagem conservadora [...] inscrita na

    velha tradio brasileira de bloqueio ostensivo a qualquer tipo de organizao oponente.80Tambm organizador de O Esprito e a Letra (1996), que rene a crtica literria de

    Srgio Buarque em dois volumes, Arnoni Prado considera que Razes do Brasil, em relao

    ao modernismo, representa o olhar maduro do intelectual que encarna, ele prprio, a

    superao crtica do sistema em que se formou.81 Nos escritos de Srgio Buarque um

    jovem modernista, na dcada de 1920percebe-se no apenas uma relao particular do autor

    com os moos da Semana de Arte Moderna, mas principalmente a gestao das ideias que

    definiriam o perfil do clssico ensaio da dcada de 1930. O projeto de interpretao doBrasil de Srgio Buarque atravessaria, portanto, o movimento e culminaria na publicao de

    Razes, em 1936, como um deslocamento crtico do projeto modernista.

    Considerados estes aspectos, Maria Odila Dias, que fora orientanda de Srgio Buarque

    na Universidade de So Paulo (USP) nos anos 1970, alm de representar hoje uma das

    principais chaves de leitura da obra do historiador, afirma que Razes do Brasil, inserido no

    contexto intelectual do modernismo, uma espcie de acerto de contas com os modernistas.

    Trata-se da interpretao de um processo temporal, em que a vida urbana era a grande forarevolucionria, que finalmente ameaava o predomnio da cultura e dos costumes ibricos.82

    Sua chave de leitura interpretativa deRazes do Brasil considera a partilha de Srgio Buarque

    79 PRADO, A. A. Itinerrio de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a Semana de 22, e o Integralismo. SoPaulo: Ed. 34, 2010, p. 249.

    80Idem., p. 251.

    81 PRADO, A. A.Razes do Brasile o modernismo. In: CANDIDO, A. (Org.) Srgio Buarque de Holanda e oBrasil. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1998, p. 72.

    82 DIAS, M. O. Srgio Buarque de Holanda, historiador. In: DIAS, M. O. (Org.) Srgio Buarque de Holanda.So Paulo; tica, 1985 (Coleo Grandes Cientistas Sociais, n.51), p. 37.

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    de valores caros ao pensamento histrico do historicismo clssico e sua nfase no processo de

    mudana temporal. A partir do convvio intelectual durante a estada na Alemanha, entre

    1929-1930com Friederich Meinecke, professor na Universidade de Berlim, Srgio Buarque

    aderira a um modo de ser historista, que consistia basicamente em ver na vida dos homens

    em sociedade configuraes de momento, conceitos temporrios de vida, valores culturais

    relativos, em processo de mudana.83

    Podemos encontrar, nos textos de crtica literria e em Razes do Brasil, como

    recorrente, a questo da tenso permanente entre arcaico e moderno ou a persistncia das

    tradies e a mudana histrica. A questo da temporalidade elemento primordial no

    somente para Srgio Buarque de Holanda, mas para o prprio modernismo, que procura

    desvencilhar-se da situao de atraso do contexto nacional em relao ao concertointernacional e se define, justamente, pela atualizao do contexto da nacionalidade em face

    das transformaes mundiais em termos econmicos, artsticos e culturais.84 No caso de

    Srgio Buarque, no universo de sua crtica literria, tanto quanto anos mais tarde, no ensasmo

    histrico, o sentido o de uma temporalidade aberta. Isso fica evidente, por exemplo,

    quando afirma o papel da obra de arte a partir da experincia de seu tempo: no exprime

    nunca uma soluo, mas somente uma atitude.85 Da, talvez, sua obstinada resistncia a se

    deixar engendrar por qualquer sistema, movimento organizado, credo poltico. Se nas pginasfinais deRazes do BrasilSrgio Buarque evita a todo o custo encampar solues ou projetos

    polticos de Brasil e, antes disso, fazer a crtica de todas as solues que poca se

    apresentavam na contramo de seu tempo, em que a sociologia se tornara a arte de salvar

    rapidamente o Brasil86, ele daria sinais disso desde a juventude modernista: o pensamento

    que realmente quiser importar para a nossa poca h de se afirmar sem nenhum receio pelos

    seus reflexos sociais [...]. H de ser essencialmente apoltico.87 O seu amigo Manuel

    Bandeira, que na boemia costumava lhe chamar carinhosamente de gamb, assinalou esteaspecto quando escreveu comentrio nO Jornal, do Rio de Janeiro, em 1931, por ocasio do

    83Idem., p. 17.

    84 MORAES, E. J.A brasilidade modernista: sua dimenso filosfica. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

    85HOLANDA, S. B. Modernismo no escola: um estado de esprito: entrevista com Prudente de Moraes,neto e Srgio Buarque de Holanda [1925]. In: Razes de Srgio Buarque de Holanda. Organizao de FranciscoAssis Barbosa. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 72.

    86 ANDRADE, M. O empalhador de passarinhos. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1955, p. 41.

    87 HOLANDA, S. B. Tristo de Athayde [1928]. In: op. cit., p. 114.

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    retorno de Srgio da Alemanha: nele predominava uma ausncia de qualquer f bem

    definida, de adeso a qualquer sistema.88

    Crtica e histria convergem no pensamento histrico de Srgio Buarque de Holanda.

    Um exemplo bem claro disso, alm dos que j dispusemos, a crtica que nosso autor faz a

    Graa Aranha, um dos prceres do modernismo a quem combateu incansavelmente, durante e

    depois de passada a intensidade do movimento. Para Srgio Buarque, faltava a Graa Aranha

    imaginao histrica, ele a negava, pois considerava-a um estorvo imaginao

    esttica.89 Procuraremos demonstrar issoa convergncia entre crtica literria e conscincia

    histricaneste captulo, ao propor, primeiro, uma interpretao da crtica literria de Srgio

    Buarque imersa na dimenso da conscincia da historicidade (1.2. Romantismo dentro do

    romantismo: conscincia histrica na crtica literria), depois, ao apontar algumas conexesentre os ensaios crticos eRazes do Brasil(1.3. O modernismo eRazes do Brasil), para, por

    fim, apontar que as diferenas de Srgio Buarque para com os o lado oposto e os outros

    lados do modernismo, a partir da viso retrospectiva de Srgio Buarque sobre o movimento,

    antecipam alguns aspectos das releituras crticas que se fazem hoje ao paradigma de 22

    (1.4. O modernismo na viso retrospectiva de Srgio Buarque de Holanda). Esse movimento

    do captulo visa compreenso do preldio de Razes do Brasil, sempre com vistas questo

    da historicidade do clssico ensaio histrico, motivo de nossa pesquisa.Pelo menos dois trabalhos acadmicos recentes exploraram minuciosa e

    sistematicamente a produo crtica de Srgio Buarque de Holanda, ligando-a a Razes do

    Brasil e sua reflexo identitria. Trata-se da dissertao de mestrado de Joo Kennedy

    Eugnio, O outro Ocidente: Srgio Buarque de Holanda e a Interpretao do Brasil,90

    defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1999; e da tese de doutorado de

    Marcus Vincius Correa Carvalho, Outros lados: Srgio Buarque de Holanda, crtica

    literria, histria e poltica (1920-1940), defendida em 2003 na Unicamp.

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    Ambos situam ohorizonte de Srgio Buarque de Holanda na crtica e na histria no romantismo. J. K.

    88 BANDEIRA, M. Srgio Buarque de Holanda acaba de regressar da Alemanha, onde passou dois anospreparando uma invaso da Rssia, que fracassou [1931]. In: op. cit., 1989, p. 293.

    89 HOLANDA, S. B. Um homem essencial [1924]. In: op. cit., p. 226.

    90 EUGNIO, J. K. O outro Ocidente: Srgio Buarque de Holanda e a Interpretao do Brasil. Dissertao(Mestrado)Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. Niteri, RJ: 1999.

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    CARVALHO, M. V. Outros lados: Srgio Buarque de Holanda, crtica literria, histria e poltica (1920-1940). Tese (Doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.Campinas, SP: 2003.

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    Eugnio fala em histori