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REGISTROS E PROCESSOS FORMATIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: AUTORIA E DIÁLOGO Os artigos que compõem o painel destacam a importância do registro e da documentação como espaços de memória e narração de histórias e que, por suas características, engendram diálogos e aprendizagens. Propondo a discussão sobre processos formativos do professor de educação infantil, as autoras argumentam que o exercício do registro, em suas múltiplas modalidades e possibilidades, potencializa a reflexão e fertiliza autorias docentes; ou seja: ao documentar a experiência vivida o professor reafirma sua condição de sujeito da formação e autor de sua prática. As propostas de registro são diversas: pensamentos anotados em papéis ou no aplicativo do celular, fotografias, escrita em cadernos de registro, produção de álbuns de imagens, recorte e colagem, pinturas, desenhos, áudio-gravação, pequenas filmagens, etc. Nas tramas do cotidiano educativo e da prática pedagógica, a intencionalidade reflexiva do registro permite ao professor ampliar possibilidades de, revisitando o passado, projetar o futuro. Seja revelando e problematizando meandros das relações entre os diferentes profissionais na educação infantil buscando e construindo sentidos da profissão, reveladas nos dizeres sobre fazeres e saberes, específicos e do coletivo , seja apresentando e discutindo conceitos e práticas que contribuem para repensar propostas de cursos de formação continuada contemplando experiências do corpo sensível, de educação estética , as pesquisas que deram origem aos trabalhos apresentados afirmam que a dinâmica de registrar o vivido possibilita o alargamento do olhar dos educadores, contribuindo para (re)significar suas experiências. Como vem sendo apontado pela bibliografia especializada sobre o tema, no âmbito nacional e internacional, ao compor quadros imagéticos descrevendo fatos, atividades e aprendizagens , ou formular análises do vivido repensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado , quando intencionalmente produzido e coletivamente partilhado o registro transforma-se em documentação das histórias construídas no espaço educativo, reconhecendo e validando diferentes saberes. Palavras-chave: Formação Continuada, Saberes Docentes, Registro XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 8925 ISSN 2177-336X

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REGISTROS E PROCESSOS FORMATIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:

AUTORIA E DIÁLOGO

Os artigos que compõem o painel destacam a importância do registro e da

documentação como espaços de memória e narração de histórias e que, por suas

características, engendram diálogos e aprendizagens. Propondo a discussão sobre

processos formativos do professor de educação infantil, as autoras argumentam que o

exercício do registro, em suas múltiplas modalidades e possibilidades, potencializa a

reflexão e fertiliza autorias docentes; ou seja: ao documentar a experiência vivida o

professor reafirma sua condição de sujeito da formação e autor de sua prática. As

propostas de registro são diversas: pensamentos anotados em papéis ou no aplicativo do

celular, fotografias, escrita em cadernos de registro, produção de álbuns de imagens,

recorte e colagem, pinturas, desenhos, áudio-gravação, pequenas filmagens, etc. Nas

tramas do cotidiano educativo e da prática pedagógica, a intencionalidade reflexiva do

registro permite ao professor ampliar possibilidades de, revisitando o passado, projetar o

futuro. Seja revelando e problematizando meandros das relações entre os diferentes

profissionais na educação infantil – buscando e construindo sentidos da profissão,

reveladas nos dizeres sobre fazeres e saberes, específicos e do coletivo –, seja

apresentando e discutindo conceitos e práticas que contribuem para repensar propostas

de cursos de formação continuada – contemplando experiências do corpo sensível, de

educação estética –, as pesquisas que deram origem aos trabalhos apresentados afirmam

que a dinâmica de registrar o vivido possibilita o alargamento do olhar dos educadores,

contribuindo para (re)significar suas experiências. Como vem sendo apontado pela

bibliografia especializada sobre o tema, no âmbito nacional e internacional, ao compor

quadros imagéticos – descrevendo fatos, atividades e aprendizagens –, ou formular

análises do vivido – repensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado –,

quando intencionalmente produzido e coletivamente partilhado o registro transforma-se

em documentação das histórias construídas no espaço educativo, reconhecendo e

validando diferentes saberes.

Palavras-chave: Formação Continuada, Saberes Docentes, Registro

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CORPO, ARTE E NATUREZA: CAMINHOS DA FORMAÇÃO MARCADOS

EM REGISTROS DE UM CURSO DE EXTENSÃO

Adrianne Ogêda Guedes - UNIRIO

Resumo:

No percurso de formação dos professores da Educação Infantil, os registros apresentam-

se como espaços potentes de documentação, nos quais e pelos quais são marcadas as

experiências docentes, potencializando processos de reflexão. Resultado de uma

pesquisa-formação desenvolvida em uma universidade pública localizada na cidade do

Rio de janeiro, o presente artigo discute questões suscitadas pela realização e análise da

proposta do “Curso de Extensão em Educação Infantil: Corpo, Arte e Natureza”.

Oferecido nos anos 2013 e 2014 como parte do convênio firmado entre o Ministério da

Educação (MEC) e a referida universidade, aberto aos professores de Educação Infantil

em exercício, da rede pública do estado do Rio de Janeiro, o curso teve por objetivo

pensar e propor processos formativos sob o viés da estética, dos sentidos e das

sensibilidades corporais. Algumas questões nortearam a pesquisa-formação: que

espaço/tempo é o da formação continuada? Quais os seus limites, possibilidades e o que

aprendem os professores nesses espaços? Quais os subsídios necessários para que seja

uma experiência relevante? Como dialogam espaços formativos e escola? Nesta direção,

o registro e a documentação foram propostos como instrumentos que, alinhavados às

reflexões acerca da autoria e criação do professor, reafirmavam sua condição de sujeito

da formação e autor de sua prática. As propostas de registro foram diversas, desde

pensamentos anotados em papéis ou no aplicativo do celular, até imagens e textos

postados nas redes sociais. Culminando no chamado “Álbum da Vida”, imagens, textos,

colagens, pinturas, recortes e uma série de outros recursos se fundem à experimentação,

vivência, bases teóricas e reflexão acerca de como se dá o processo de formação do

professor da Educação Infantil.

Palavras chave: Formação de professores; Educação estética; Documentação.

Introdução: um curso de extensão, muitas questões

No estágio de ser essa árvore um irmão aprendeu de sol, de céu

e de lua mais do que na escola. No estágio de ser árvore meu

irmão aprendeu para santo mais do que os padres lhe ensinaram

no internato. Aprendeu com a natureza o perfume de Deus. Seu

olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul. No

estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são

vaidosas. (Manoel de Barros)

Manoel de Barros nos convida, poeticamente, a pensar/sentir a experiência

formativa a partir do contato mais amplo do sujeito com elementos e espaços diversos.

No caso do poema, a natureza e a experiência sensível corporificam essa formação.

Como construir uma prática de formação que possa, efetivamente, contribuir para o

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professor em exercício? Essa é a pergunta-chave que, como uma bússola, orienta as

reflexões que teço sobre o projeto de formação continuada que coloco em cena.

Neste trabalho, a partir da apresentação do “Curso de Extensão Educação

Infantil: arte, corpo e natureza”, oferecido por uma universidade pública do Rio de

Janeiro, em parceria com o Ministério de Educação (MEC), nos anos de 2013 e 2014,

colocamos em discussão conteúdos e processos formativos. O espaço do curso

possibilitou o desenvolvimento de uma pesquisa de colaboração, e é sobre essas

possibilidades, que configuram um campo de pesquisa-formação que trataremos,

focando na análise de um específico instrumento: o registro de práticas produzido ao

longo do referido curso.

A análise estará voltada para os dados do curso oferecido em 2014 que, assim

como o primeiro, teve como público-alvo professores de Educação Infantil (creches e

pré-escolas) da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Participaram 80 professores,

sendo que o critério de seleção, indicado pelo MEC, consistiu em que todos os

candidatos estivessem atuando na área. É importante destacar que esta iniciativa

constitui-se em uma das ações referentes à Política Nacional de Formação de

Profissionais do Magistério da Educação Básica, na qual a formação inicial e

continuada desses professores encontra-se entre as prioridades, buscando garantir

educação de qualidade, centrada no aprendizado do educando.

Funcionando aos sábados pela manhã, o curso de extensão teve como objetivo

central oportunizar aos professores participantes experiências variadas no campo da

educação estética, no campo das artes visuais, expressão corporal, dança, teatro, cinema

e literatura, e foi operacionalizado em dois módulos. O primeiro módulo focalizou a

educação estética e as infâncias, tendo como objetivo o estudo e reflexão sobre os

conceitos e fundamentos estéticos da arte, o estudo dos conceitos de cultura e infâncias,

imaginação e criação na infância e as múltiplas linguagens artístico-culturais em suas

especificidades. O segundo módulo tratou da Arte na educação infantil. Nesse módulo,

a ênfase esteve voltada para o relacionamento e interação das crianças e, principalmente

dos professores, com diversificadas manifestações estéticas e culturais – música, artes

plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura.

No aspecto metodológico, o curso foi marcado pela proposição de vivências,

articuladas com as reflexões teóricas e os espaços de troca e compartilhamento de

experiências docentes. Assim, mais do que discutir e estudar sobre a importância das

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artes na Educação Infantil e o aprendizado de um conjunto de técnicas e/ou formas de

trabalhar com as crianças, a cada sábado os professores participantes eram convidados a

colocarem seus corpos, imaginação, sensibilidade em ação. As experiências foram

focalizadas no corpo e no movimento, uma dimensão pouco presente nos espaços

formativos, tanto na formação inicial do professor (Cursos de Pedagogia) quanto nas

formações continuadas. Como bem nos coloca Vianna (1998, p.11-12), “O corpo é um

meio de expressão, não um meio de atuar automático. O trabalho corporal desenvolve a

sensibilidade, a imaginação, a criatividade e a comunicação”.

Lecionaram no curso, além de professores, artistas dos diversos campos

abordados, considerados, então, especialistas. Desta forma, os professores cursistas

tiveram contato com profissionais que não apenas trabalhavam com formação, mas que

também estavam envolvidos com a experiência criadora. Como parte da proposta do

curso, foram contempladas idas a espetáculos de dança e de teatro (dos professores

convidados para as aulas) que estavam em cartaz na época. O curso contou com um

grupo de 13 professores especialistas, assim distribuídos: 3 na área de Artes Plásticas e

Visuais; 3 em Consciência corporal; 3 referentes à Dança, 2 em Literatura e 2 em

Teatro. Duas professoras-formadoras que atuavam ao final de cada vivência com esses

especialistas, trazendo propostas que seriam experimentadas nas salas de aula de cada

cursista. Os 80 cursistas foram divididos em dois ou três grupos que variavam de acordo

com a proposta.

As premissas teórico-metodológicas que fundamentaram as estratégias

priorizadas, tais como garantir espaços de vivencias em todos os encontros, se

assentavam na compreensão de que a formação de professores precisa necessariamente

envolver o plano das vivências estéticas. Por estética tomamos o conceito utilizado por

Freire (2003), como algo que acontece na realidade, nas relações, na escola, na sala de

aula, chegando a dizer que “é impossível educar sem fazer uma experiência estética”

(FREIRE, 2003 citado por TREZZI, 2011, p. 74). A estética da qual falamos é, então,

algo visceral, que vem de dentro, ou que nos atinge por dentro, despertando e/ou

aguçando sentidos, nos atravessando e afetando. O estético reside nas vivências e no

que fazemos com elas.

Na proposta implementada, o professor cursista foi compreendido como sujeito-

professor e, nessa perspectiva, a formação tinha como foco levar o professor a refletir “a

respeito de seus próprios processos de apropriação dos conhecimentos, de suas relações

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com os alunos, de seus dilemas, de suas conquistas e de suas histórias” (GUIMARÃES;

NUNES; LEITE, 1999, p. 161). Como sujeito da formação, torna-se importante ser ele

quem explicita, intervém e reorienta o processo (JOSSO, 2010). Ao narrar e registrar

suas vivências na formação, o sujeito-professor constrói sentidos sobre o ato de educar

crianças pequenas.

Fazer, compartilhar, refletir: registrar

Desta maneira, compreendendo a importância das narrativas dos professores, de

suas marcas do percurso formativo experienciado, foram produzidos registros de

diversas formas: fotografias, entrevistas, interação na rede social e confecção do Álbum

da Vida – livrão em que os professores-narradores registravam com diferentes recursos

as experiências, reflexões, aprendizagens vividas ao longo do curso. A produção e

documentação possibilitaram acompanhar as impressões dos professores cursistas

revelando como as experiências afetaram e contribuíram em cada prática.

A rede social, modo encontrado para socialização de experiências e criação de

um espaço de rápida comunicação entre todos os participantes, com o passar do tempo

assumiu funções antes não previstas. Ao longo do curso eram visíveis o

compartilhamento de trabalhos e atividades realizadas, e também sugestões além do que

fora proposto no grupo; questionamentos acerca das próprias práticas no cotidiano

educativo; e trocas referentes a eventos, cursos e programas culturais.

Observando a forma e o conteúdo dos registros digitais, nota-se a presença de

muitas imagens, carregadas de sentido e afetividade, para quem as postava e quem

compartilhava/visualizava. Mas também apresentavam uma narrativa carregada de

simbolismo e especificidades, pois o tempo de uma postagem na rede é diferente do oral

e da escrita.

A escrita também esteve presente, sobretudo na produção dos “Álbuns da Vida”,

reafirmando a potência das narrativas e a autoria dos professores. A respeito do ato de

narrar, próprio das pesquisas narrativas, Benjamin (1994) nos diz que as experiências

narrativas têm se tornado cada vez mais raras na contemporaneidade, em função de um

tempo que dá relevo à velocidade das informações, ao consumo em detrimento da

experiência e da convivência.

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São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.

Quando se pede a um grupo que alguém narre alguma coisa, o

embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma

faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de

intercambiar experiências (BENJAMIN, 1994, p. 197-8).

As pesquisas narrativas buscam abrir espaço para que a experiência dos sujeitos

seja contada e interpretada, possibilitando para aqueles que tenham acesso a ela, a

reflexão sobre a sua própria trajetória no contato e na interlocução com a trajetória do

outro. Além disso, contribuem para pensar/ponderar sobre as questões e problemas

educacionais, ao trazer via bio-história aspectos da trajetória profissional e de seus

contextos à tona. Ao desenvolver de modo sistemático a prática de escrita e análise

sobre os relatos, com os professores, este tipo de estudo configura um tipo de pesquisa

de colaboração, à medida que os professores envolvidos nesse processo se tornam

simultaneamente objetos e sujeitos da pesquisa. Desta forma, o estudo aqui apresentado

comunga de tais princípios, configurando-se uma pesquisa-formação.

Os itens a seguir apresentam e analisam as formas de registro propostas pelo

curso e como foram produzidos esses registros e documentação por parte dos

colaboradores, os professores participantes.

Registros fotográficos: olhares dos professores

Analisando o vasto material produzido, uma forma de registro bastante utilizada

pelos cursistas foi a fotografia. Nos compartilhamentos da rede social, muitos eram

feitos através das fotos, seja dos momentos entre o grupo nas aulas, imagens de

propostas realizadas com as crianças nas diferentes instituições em que atuavam

(algumas inspiradas no que viviam no curso) ou os registros das amizades firmadas a

partir daquele encontro semanal.

A fotografia, segundo Lopes (1998), pode ser vista como uma possibilidade de

concretização da imagem visual por um observador atento e sensível à realidade.

Considerar a educação em uma perspectiva estética, ou seja, como algo que nos

atravessa, marca e motiva, implica refletir sobre as emoções no percurso de formação,

nas companhias que escolhemos e na maneira como nos expressamos. No material

analisado, a fotografia foi instrumento para a comunicação dos sentidos expressos

artisticamente em imagens pelo observador-professor. Na escolha do que compartilhar,

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nas atividades com as crianças, é possível ver o encontro e as relações estabelecidas.

Nas imagens, identificamos também, entre conhecimento, arte e prática docente, o

estranhamento, o prazer do encontro e a emoção nas vivências.

Imagem 1: Registro fotográfico e relato na rede social da ação com crianças pela professora cursista.

Fonte: da autora

Imagem 2: Registro fotográfico de vivência com o grupo feito por cursista

Fonte: da autora

Registros nas redes: multiplicam-se as trocas

O grupo virtual foi criado na rede social por iniciativa dos coordenadores do

curso, para facilitar a interação e a comunicação entre cursistas, especialistas e

formadores; também foi veículo de divulgação de informações do curso e outros

eventos relacionados à arte para os cursistas. Interessante destacar que apenas uma

cursista não fazia uso da tecnologia e, para não ficar de fora das trocas, essa professora

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levava sua contribuição na aula seguinte e compartilhava com a turma. Com os

compartilhamentos de atividades e a interação entre o grupo, o espaço tornou-se de

todos. Ao longo dos meses, os cursistas já faziam convites para participação de eventos

e atividades, já identificavam e informavam o que poderia enriquecer o repertório

cultural do grupo. Pelo material postado, revela-se claramente a ressonância das

experiências vividas em cada um dos integrantes da turma.

Ao longo do curso as formadoras propunham experiências a serem realizadas

nos espaços escolares em que atuavam as professoras cursistas. Essas “tarefas”

semanais consistiam em ações simples de pesquisa ou propostas a serem vividas com as

crianças. Essas atividades podiam ser propostas também pelos especialistas, como em

uma das aulas, onde a professora especialista pediu que os cursistas escolhessem uma

obra de arte que dialogasse com eles e postassem no grupo da rede social. A atividade

visava ampliar o repertório de imagens dos cursistas. E a participação foi intensa.

Muitos olhares, relatos e Marc Chagall. O grupo revelou a descoberta algo de

inspirador no pintor, pois compartilharam vários de seus quadros. A interação e os

comentários a partir dessa proposta foram significativos, aconteceram fora das aulas,

mas não da formação, um espaço permanente de reflexão e construção.

Imagem 3: Fotografia de uma das obras de Chagall selecionada por uma das professoras cursistas,

seguida do comentário: “Esse quadro de Chagall me tocou, pois como vivenciamos muitas memórias na

aula passada, tenho a sensação de que a mulher do quadro também está recorrendo às suas memórias...”

Fonte: http://en.musees-nationaux-alpesmaritimes.fr/chagall/node/55

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Podemos afirmar que a rede social se tornou um espaço de reflexão sobre si e

sobre o outro – esse outro era às vezes um colega de escola, a criança presente nas

instituições em que trabalhava ou o colega cursista, que por meio das imagens e

comentários postados se abria para receber críticas, sugestões e até provocações, no

sentido de fazê-lo repensar a própria prática e buscar conhecimento teórico que as

fundamentassem. Percebe-se que nesse processo os cursistas não apenas narravam e

(re)construíam seus percursos, mas também rememoravam as práticas que os

constituíram, ou seja, a memória atuava como experiência formadora (GUEDES;

FRANGELLA, 2013). Esse destaque para a memória e narrativa dos professores é dado

também por Guimarães, Nunes e Leite (2012) ao afirmarem que “torna-se um desafio

resgatar a memória, a palavra e as narrativas dos professores, a fim de que possamos

compreender, nas suas histórias de vida, os sentidos que constroem sobre o mundo” (p.

164). O que muda aqui, ou melhor, acrescenta, é a utilização da internet como receptora

expositora e mediadora das narrativas docentes.

Álbum da vida: escritos e marcas

O vivido só se torna recordação na lei da narração (...). E aí, se

torna outra vez vivo, aberto, produtivo. A memória que lê e que

conta é a memória em que o “era uma vez” converte-se em um

“começa”! (Jorge Larrosa).

O registro e a documentação – na formação, na prática docente e na vida –, são

importantes, uma vez que somos sujeitos de narrativas: como seres sociais, faz-se

essencial a constituição de nossa memória e história. O curso em análise propunha que

os cursistas registrassem todo o percurso do curso. A proposta não se limitava às aulas

ou aos momentos em que estavam realizando alguma das atividades, mas que

buscassem registrar toda a trajetória de reflexão, emoção e ação desde o início, até o

final do curso. Para tanto, todos mantinham um livro de registro, o qual recebia marcas

a cada encontro. As atividades vivenciadas nos diferentes módulos do curso – arte,

dança, consciência corporal, literatura, teatro –, tornavam-se registros escritos a partir

das narrativas dos cursistas.

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Dialogando com as produções, vê-se que aos relatos do vivido juntavam-se

objetos ou gravuras: diferentes materialidades eram anexadas ao álbum para expressar e

comunicar as relações estabelecidas. Por meio do álbum, nota-se a abertura para

visualizar as conexões vividas em cada módulo, em cada encontro, em cada aula,

ampliando os modos de pensar. Como nos instiga o filósofo,

(...) considerando-se o saber como problema, pensar é ver e é falar,

mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e

do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha

de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas

palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com

que o ver atinja seu limite próprio, e o falar atinja o seu, de tal forma

que os dois estejam no limite comum que os relaciona um ao outro

separando-os (DELEUZE, 1991, p. 124).

O que essas aulas, os módulos de corpo, arte, dança faziam pensar? Quais as

produções, os sentidos produzidos em cada um? Nota-se que o Álbum da vida foi uma

ferramenta a serviço dos pensamentos vividos nas aulas e pós-aulas. Um registro que

narrava as histórias e experiências dos professores a partir do curso, mas que não

findava ali; ao contrário, assegurava, marcava e firmava a autoria e expressão desse

cursista como sujeito-autor de sua história, formação e do conhecimento.

Imagem 4: Registro de cursista – álbum da vida (instrumento de documentação das narrativas e

experiências do curso de extensão)

Fonte: da autora

A experiência de utilizar outros tipos de registros, diferentes dos formais, mais

usuais nos espaços de formação, convidou os participantes a experimentarem novas

linguagens expressivas, ampliando a possibilidade de dizer de si e da experiência, pois

como traduzir o vivido? Quais sentidos o vivido produz no grupo e em cada um? O

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Álbum da Vida torna-se mais que um instrumento de “aferição” do conhecimento, mas

um convite para que cada um pudesse abrir em seu cotidiano um espaço-tempo para

tecer suas lembranças, ideias, sentimentos, vontades, enfim, o que se passa em cada um.

Imagem 5: Fotografia com relato de experiência e apontamentos para a narrativa sobre a visita à uma

casa de cultura com o grupo do curso.

Fonte: da autora

Destaque-se uma condição para que tais propostas e experiência se realizassem:

o tempo. A experiência é algo que necessita da percepção, de um tempo para a

apreciação e reflexão.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,

requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos

tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar

para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais

devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos

detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,

suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza,

abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a

lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,

ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p.25).

O fator tempo é um aspecto que pode ser questionado nos cursos de formação,

inicial e continuada: como os professores podem viver e se apropriar de suas

experiências, podem refletir e tecer novas compreensões sobre a prática, se o tempo

corre, se não há tempo para a reflexão, para o fazer, para o dizer, para o compartilhar?

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Esses álbuns, construídos ao longo do curso e apresentados no dia do encerramento, em

uma grande mostra, onde todos puderam ver, manusear, interagir e se encantar com as

produções dos colegas, testemunham que outros percursos podem ser propostos e

trilhados pelos cursos de formação.

Considerações finais

Uma educação do sensível só pode ser levada a efeito por

educadores cujas as sensibilidades tenham sido desenvolvidas e

cuidadas. (João Duarte Jr. )

Da análise empreendida, compreendemos que a experiência formadora implica

uma articulação conscientemente elaborada entre atividade, sensibilidade, afetividade e

ideação. Nesta direção, o “Curso de Extensão em Educação Infantil: Arte, corpo e

natureza”, integrou experiências vivenciadas pelo professor-cursista à possibilidade de

produzir sentido sobre as mesmas, mobilizando afetos e ideias, tocando as sensibilidades.

Na concepção, na organização, nos conteúdos e formas, os registros da

experiência realizados pelos cursistas reiteram que se faz mais do que necessário

articular razão e sensibilidades, considerando a realidade dos espaços escolares,

principalmente de Educação Infantil, onde ainda nos deparamos com corpos

precarizados, instituídos e diariamente violentados, tanto dos educadores quanto dos

educandos (ARROYO, 2012).

No modelo de formação apresentado e analisado, o professor não foi mero

expectador, que colhia receitas prontas, mas um vivente, “experimentante” de práticas

que primavam pelo sensível, pelo afetamento do encontro com seu „eu‟ e dele com o(s)

outro(s). Uma formação estética começa pelo educador, de maneira que seus sentidos

sejam alargados da mesma forma que o mar, quando olhamos para o horizonte. Seu

corpo deve estar aberto como as asas de um pássaro ao sobrevoar as rochas. E a mente,

aberta como um guarda-chuva em dia de temporal, mesmo que nos molhemos um

pouco, afinal, como é bom tomar um banho de chuva! O estético reside nas vivências e

no que fazemos com elas.

Uma formação estética requer olhares, escutas, falas, disponibilidade para o

outro; vontade de se expressar verdadeiramente e acolhimento para receber o que se

expressa, sem julgamentos, valores, pudores; sempre afetando de alguma forma,

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deixando marcas que muitas vezes são sentidas no mais profundo silêncio e que se

expressam num gesto, num toque, num olhar. E essa sensação ficará para sempre, pois a

vida acontece enquanto há movimento, processos emergindo.

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A PRÁTICA DO REGISTRO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIÁLOGOS ENTRE

ORIENTADORA PEDAGÓGICA E PROFESSORAS

Maria de Lourdes Gomes da Silva – UNICAMP

Resumo:

O artigo, cujo conteúdo advém de uma pesquisa de mestrado, propõe a discussão sobre

situações e temas do cotidiano da Educação Infantil, a partir de relações estabelecidas

entre professoras e coordenadora pedagógica. No percurso, tanto da pesquisa (que

buscou discutir sentidos da orientação pedagógica em circulação na educação infantil)

quanto da ação educativa evidenciada, a produção e a retomada de registros escritos

revelam aspectos insuspeitados de tais relações, permitindo aprofundar a análise dos

complexos elementos envolvidos nas relações profissionais dentro da escola. Na busca

dos sentidos da profissão e atuação, foram tomados como objeto de análise os registros

escritos de situações de trabalho vividas pela autora em três escolas municipais de educação

infantil de Campinas, no período de 2012 a 2014. Para o texto aqui apresentado, destaca-

se a importância do registro na Educação Infantil, a qual vem sendo amplamente

pautada entre os educadores brasileiros e, no diálogo com experiências internacionais,

sobretudo do norte da Itália, tem crescido a apropriação de práticas e princípios que

contemplam diferentes tipos de registros, articulados ao conceito de documentação

pedagógica. Nesta abordagem, a concepção de documentação insere-se em uma

proposta pedagógica que considera a importância da escuta e da observação – das

crianças e das práticas dos seus professores. A potencialidade do registro é afirmada,

pois, como um recurso utilizado para documentar as histórias vividas e compartilhadas

entre professores e crianças, com o intuito de não perder as riquezas do cotidiano e

potencializar o processo de construção do trabalho pedagógico. Na pesquisa e no texto

apresentado, tal importância é referendada, descortinando, por sua vez, processos

formativos possibilitados pela prática do registro e pela análise crítica dos mesmos.

Palavras-chave: educação infantil; orientação pedagógica; registro.

Introdução

O presente texto, produzido a partir de uma pesquisa de mestrado, propõe a

discussão sobre situações e temas do cotidiano da Educação Infantil, a partir de relações

estabelecidas entre professoras e orientadora pedagógica. No percurso, tanto da pesquisa

quanto da ação educativa evidenciada, a produção e a retomada de registros escritos

revelam aspectos insuspeitados de tais relações, permitindo aprofundar a análise dos

complexos elementos envolvidos nas relações profissionais dentro da escola.

Incialmente apresento o contexto da pesquisa, situando referencial teórico e

abordagem teórico-metodológica. Em seguida trago um episódio a partir do qual faço

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um exercício de análise, tecendo algumas considerações a respeito da produção de

registros na educação infantil e do diálogo entre professoras e Orientadora pedagógica

na busca por atribuir sentidos a essa prática no contexto da escola.

A pesquisa: contexto e percurso

A referida pesquisa teve por objetivo apreender os sentidos da atividade de

orientação pedagógica que circulam nas relações cotidianas da educação infantil, a

partir de questões suscitadas pela experiência da autora como orientadora pedagógica

(OP) na Rede Municipal de Ensino de Campinas. Tais questões estavam relacionadas ao

sentido dessa atividade (afinal de contas, o que caracteriza a orientação pedagógica?) e

se assentavam na sensação de perda do sentido e da eficácia do trabalho realizado.

Procurei aproximar-me desses sentidos, a partir das interlocuções produzidas no

cotidiano das instituições de Educação Infantil, onde atuo desde o ano de 2009. Elegi

como objeto de análise, registros escritos de situações de trabalho vividas em três escolas

municipais de educação infantil de Campinas, no período de 2012 a 2014, que

posteriormente foram analisados à luz dos pressupostos de Vigotski (1984; 2000), Paulo

Freire (1983) e Mikhail Bakhtin (1995; 2011) no que se refere à constituição histórico-

cultural da pessoalidade e da profissionalidade dos sujeitos e à centralidade da

linguagem nesse processo. Também utilizei, nesse processo de investigação, alguns

conceitos da psicologia do trabalho de Yves Clot (2007) e o conceito de experiência do

historiador Edward Thompson.

As situações documentadas em meus registros cotidianos deram visibilidade às

interações produzidas entre mim e os demais sujeitos, sobretudo as professoras, na

imediaticidade do cotidiano das escolas. Nelas, a orientação pedagógica não era

propriamente o objeto das interlocuções. As referências a essa atividade emergiam no

âmbito de outros assuntos, em especial de temas da Educação Infantil. Os sentidos da

orientação pedagógica apareciam na forma de comentários, de perguntas, de pedidos de

intervenção, de sugestões, de negociações e indiciavam expectativas, incômodos,

concordâncias e discordâncias em relação à atuação da orientadora pedagógica.

Da perspectiva assumida, as situações registradas foram tomadas, então, como

fonte de indicadores dos sentidos da atividade de orientação pedagógica em circulação e

em elaboração nas interações sociais, produzidas tanto nas condições imediatas, quanto

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nos contextos mais amplos. Para apreender tais compreensões, não bastava analisar o

conteúdo comum, de significação estável, sobre o qual os participantes das ocorrências

interativas documentadas produziam seus enunciados, era necessário também,

considerar os modos como eles enunciavam esse conteúdo, a quem, com que

entonações, com quais apreciações valorativas e em que condições (Bakhtin, 1995;

2011).

Em função do indicado acima, para conduzir tal análise, foi necessária a imersão

nos registros a partir de alguns passos: caracterizar os contextos das situações, seus

participantes e o assunto principal da interlocução onde se indiciavam sentidos da

orientação pedagógica; explicitar o motivo que me levou a registrar a situação;

explicitar os sentidos da orientação pedagógica apreendidos no registro e os elos

existentes entre eles e aqueles presentes na literatura científica da área pedagógica e na

literatura relativa às normas e regimentos que normatizam essa atividade, entendidos

como sua tradição, como seus sentidos cristalizados no âmbito das relações culturais;

explicitar os usos dados aos sentidos da orientação pedagógica no âmbito da situação

imediata registrada e o que se apreendeu em termos de estilos pessoais.

Diante do volume de registros escritos produzidos por mim, no processo de

elaboração da dissertação a necessidade de uma análise mais detalhada me conduziu à

seleção de seis episódios, nos quais se destacavam três temas da Educação Infantil: o

acolhimento, a incorporação de múltiplas linguagens ao processo educativo e o registro.

Nos limites do presente artigo destaco, para apresentação e análise, um episódio que

traz um fragmento do meu cotidiano como orientadora pedagógica, escrito na época em

que ocorreu. Esse episódio tematiza, justamente, a prática do registro na Educação

Infantil, permitindo múltiplas considerações e análises; sobretudo, a situação descrita

revela ações, interações, mediações cotidianas que implicam, em última análise,

processos formativos.

Do “Como você quer que eu faça?” à autoria: aprendizagem em processo

A situação que trago à discussão analítica é uma conversa entre eu e uma

professora ingressante em uma das escolas em que atuo como OP. A conversa

aconteceu no início do ano letivo e foi motivada pelo ingresso da professora em uma

nova unidade escolar e o seu interesse em conhecer os tipos de registros praticados

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naquela unidade escolar. Em meu caderno de registros, descrevi o episódio da seguinte

forma:

Numa das escolas em que atuo temos, nesse ano, uma professora que

veio removida de outra escola. Já é uma professora experiente, com

mais de 20 anos como docente, trabalhava há nove anos numa outra

escola e resolveu se remover. A professora me procurou com uma

pequena lista de dúvidas. Havia anotado para não esquecer. Queria

saber sobre algumas questões de funcionamento do cotidiano da

escola. Eram questões que tinham um caráter de “Como vocês

costumam fazer nesta escola”. E uma das questões era sobre registro.

Embora não tenha se expressado com essas palavras, senti que a

pergunta que ela gostaria de fazer era: “que registros você, como OP,

me cobrará?” Conversei com ela sobre as várias possibilidades de

registro que poderiam ser feitas: registro do trabalho desenvolvido

pela turma, registro do desenvolvimento e aprendizagem das crianças,

registro de suas reflexões como professora a partir do vivido no

cotidiano. Falei que ao final do primeiro e do segundo semestre eu

costumo solicitar que as professoras elaborem um relatório do

trabalho desenvolvido pela turma, que faz parte da avaliação do

Projeto Pedagógico e que pode ser enviado aos pais. Além disso,

havia professoras que faziam “Livro da vida” para registrar o trabalho

com a turma, mas que os registros não eram feitos como resposta a

uma demanda apontada pela OP, ou seja, o registro não era pra mim,

mas uma necessidade do próprio trabalho. Mostrei para ela alguns

registros feitos pelas professoras das escolas para que ela pudesse dar

concretude à minha fala e ela também me apresentou alguns de seus

registros do ano anterior. Fiquei pensando: se o registro escrito fosse

inerente à sua prática profissional, concebido como uma necessidade,

ela provavelmente daria continuidade ao que sempre havia feito e se,

posteriormente, houvesse necessidade, sua forma de registrar poderia

ser adaptada às formas de registro desta escola. Por que ainda temos

na escola, tanta dificuldade em se utilizar da escrita como instrumento

de registro da prática? Será que na prática desta professora o registro

escrito só existia por que havia uma cobrança da OP para que

houvesse? (Registros pessoais, 14 de fevereiro de 2013).

A compreensão da orientadora pedagógica (utilizo-me da forma feminina, tanto

ao referir à OP, quanto às professoras, porque faço referência ao grupo com o qual atuo,

onde somos todas mulheres) como aquela que determina a forma como o trabalho

pedagógico deve ser conduzido e converte o professor em mero executor de tarefas traz

um sentido da orientação pedagógica que circula nas relações do cotidiano da escola e

emerge em diversas situações e de diversas formas, entre as quais as mais recorrentes

são as perguntas “o que você quer que eu faça?”, “como você quer que eu faça?”,

dirigidas à orientadora.

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Essas perguntas me incomodam por trazerem ecos e lembranças da herança

tecnicista de minha atividade e de outros enunciados já constituídos sobre as relações de

poder dentro da escola, que legitimam uma posição de mando e de superioridade da

equipe gestora sobre o trabalho docente. No episódio transcrito acima, são esses os

sentidos que eu ouço nessas perguntas e é a eles que eu respondo. O incômodo

suscitado pela fala da professora e seus efeitos sobre o meu modo de escuta e de réplica

conduziram minha participação na conversa analisada. Seus indicadores ficaram

marcados em meus registros.

Como já haviam se passado duas semanas do início do ano letivo, nós duas já

vínhamos nos conhecendo. Nesse período tivéramos reuniões de planejamento e

reuniões de Trabalho Docente Coletivo (TDC) coordenadas por mim. E eu observara a

professora em seu processo de integrar-se ao seu novo grupo profissional.

Sentadas à mesa onde costumamos fazer as reuniões de equipe, iniciamos a

conversa solicitada por ela. A professora trouxe uma pauta escrita. Esse detalhe chamou

a minha atenção porque tenho o cuidado de trazer sempre digitada a pauta das nossas

reuniões semanais. Esse cuidado me aproximou dela. Interpretei a pauta como um

indicador da seriedade de que se revestia a nossa conversa para ela.

Na sua lista de perguntas, ela trazia dúvidas práticas acerca do funcionamento da

escola, e em especial uma das dúvidas mereceu a minha atenção. Era sobre os registros

e eu a ouvi nos seguintes termos: “que registros você, como OP, me cobrará?”.

Embora eu tenha documentado que a professora não me perguntou literalmente

“que registros você, como OP, me cobrará?”, minha compreensão foi essa, não só pelo

incômodo que me acompanha diante de perguntas com esse caráter, que coloca a OP na

função de determinar a prática docente, mas também porque, em alguns momentos da

conversa, ela havia feito referências à orientadora pedagógica da escola anterior e à

forma como ela cobrava alguns registros. Além de tematizar o papel atribuído à OP, a

professora fez uma pergunta sobre um tema que tem ocupado um espaço importante nas

minhas reflexões como orientadora pedagógica: a questão da escrita como forma de

registro do trabalho pedagógico.

A importância do registro na Educação Infantil vem sendo amplamente pautada

entre os educadores brasileiros, inicialmente com as contribuições de Madalena Freire

(1983) e, posteriormente, com a difusão da abordagem Reggio Emilia para a educação

infantil, que traz como um dos seus princípios fundamentais a documentação

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pedagógica. Nesta abordagem, a concepção de documentação insere-se em uma

proposta pedagógica que considera a importância da escuta e da observação e vê as

crianças como portadores de “cem linguagens” (Malaguzzi, 1999). O que se denomina

documentação pedagógica envolve os registros escritos, mas não se restringem a eles,

ampliando as formas de documentar as práticas.

A expressão documentação pedagógica tem sido utilizada para

registrar e problematizar essa forma de acompanhar e potencializar o

desenvolvimento de um trabalho pedagógico e as aprendizagens das

crianças pequenas. Ao documentar pedagogicamente o dia-a-dia na

escola, vão sendo criados elementos de memória, recuperação de

episódios e de acontecimentos. Nesse processo, os adultos

(educadores, pais e administradores) e as crianças vão construindo a

historicidade, vivenciando processos coletivos e, ao mesmo tempo,

preservando a singularidade e os percursos individuais (BARBOSA,

2008, p.94).

Em tempos em que a tecnologia faz parte do cotidiano, as máquinas digitais e os

celulares que fotografam e filmam costumam estar sempre à mão de todos na escola. A

fotografia, antes utilizada para registrar ocasiões especiais, festas e eventos passou a

fazer parte do dia a dia. Fotografa-se tudo e todos na escola, centenas de imagens são

produzidas, mas poucas vezes são utilizadas para uma reflexão sobre o trabalho

pedagógico. Na experiência com o grupo de professores com o qual trabalho, vejo que

vários deles têm utilizado as imagens para compor o relatório da turma ou até mesmo

como recurso da memória para resgatar os acontecimentos de um determinado período.

Acredito na potencialidade do registro como um recurso utilizado para documentar as

histórias vividas, com o intuito de não perder as riquezas do cotidiano com as crianças e

potencializar o processo de construção do trabalho pedagógico.

Compartilho com Shiohara (2009) a ideia de um registro amplo, que inclua

apontamentos, esboços que ajudam o professor a ir além daquilo que é percebido de

imediato e que contribua para o planejamento, o acompanhamento, a retomada e

redefinições de rumos do trabalho pedagógico a ser desenvolvido com as crianças. O

registro, como destaca Ostetto (2012), pode se transformar num instrumento valioso no

trabalho do professor da Educação Infantil e para sua contínua formação, na medida em

que se converte em espaço-tempo de reflexão:

Por meio do registro, travamos um diálogo com nossa prática,

entremeando perguntas, percebendo idas e vindas, buscando respostas

que vão sendo elaboradas no encadeamento da escrita, na medida em

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que o vivido vai se tornando explícito, traduzido e, portanto, passível

de reflexão (OSTETTO, 2012, p.14).

Assumindo esses pressupostos acerca do registro, várias questões sobre sua

prática nas escolas e sobre meu papel no seu fortalecimento entre os professores têm me

ocupado. Quais práticas de registro compõem a atividade docente na Educação Infantil?

O que mobiliza estas formas de registro? De que formas esses registros mediam a

relação das professoras com sua própria prática profissional e com outros sujeitos

(outros professores, famílias, orientadora pedagógica, gestores da escola, Secretaria

Municipal de Educação?). Qual o papel da orientadora pedagógica no fortalecimento da

escrita como registro pedagógico? Como transformar o registro escrito como prática

cotidiana na escola de Educação Infantil?

Através do registro: professoras e orientadora pedagógica tecendo sentidos

Tenho buscado, como orientadora pedagógica, fortalecer junto ao grupo algumas

ações que tem, entre outros, o objetivo de contribuir para o fortalecimento da prática do

registro entre as professoras. Entre elas destaco: o estudo de textos que abordam a

temática, o fortalecimento da prática da escrita através de relatórios individuais das

crianças e de relatórios de turma através de discussões coletivas sobre as diversas

possibilidades de construção deste gênero textual, a socialização dos relatórios depois

de prontos, assim como a possibilidade de cada professor relatar seu percurso de escrita,

explicitar dúvidas e dificuldades, possibilitando a circulação de saberes construídos na

prática. Além disso, coloco-me como interlocutora durante o processo da produção

escrita, trazendo subsídios e contribuindo na própria escrita.

Com práticas dessa natureza, envolvendo a leitura e o exercício da escrita, tenho

reunido indicadores de que aprendizagens diversas estão sendo construídas e que os

sentidos nelas elaborados nem sempre correspondem a compreensões por mim

esperadas.

Mesmo que muitas professoras não questionem mais a necessidade da escrita

dos relatórios de turma, ainda assim, ao final do semestre, quando todos já espreitam as

férias com um olhar cheio de vontade de desacelerar e os pensamentos já se conectam

com os planos das viagens a serem realizadas e o corpo já pede descanso, acaba sendo

difícil reavivar a lembrança de que avaliar o trabalho realizado com a turma é

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fundamental. Cabe à orientadora pedagógica essa empreitada de retomar e relembrar

essa necessidade. É muito comum ouvir, nessas condições, falas como as que se

seguem: “Mas eu preciso mesmo fazer esse relatório?”; “Eu passei o final de semana

com você. Meu marido perguntava por que eu não saía do computador e eu dizia – a

culpa é da minha OP. Tenho que terminar esse relatório”. (Registros pessoais)

Por outro lado, após o desafio vencido, não é raro encontrar na fala de várias

professoras o reconhecimento do valor da escrita e da apresentação do trabalho para o

grupo: “a gente reclama, mas é muito bom retomar o que fizemos no semestre. A gente

fez tanta coisa...”; “Nessa foto a Manu está chorando para não ir para casa. Ela queria

ficar na escola. Isso é tão significativo para uma turma que teve tanto choro na

adaptação.”. As falas revelam uma aparente contradição entre a relutância em fazer os

registros e o reconhecimento da potência, das possibilidades que eles guardam em si.

Ao longo da produção deste texto sobre a pesquisa que realizei, eu mesma

rememorei a minha relação contraditória com o registro escrito do meu trabalho. A

utilização da escrita no contexto de trabalho da orientadora pedagógica é uma constante.

Escrever é uma ação diária. Escrevem-se as atas das diversas reuniões, relatórios e

outros documentos que fazem parte do nosso cotidiano. Com isso, poderia se supor que

a escrita não representasse nenhuma dificuldade, mas não é assim que acontece.

“Escrever é duro como quebrar rochas”, sugere Clarice Lispector (1999). Em função das

dificuldades da escrita, o registro livre da obrigatoriedade acaba sendo esparso, eu

mesma vivenciei essa experiência no processo da pesquisa, tendo dificuldade em manter

o ritmo do registro, necessário para a produção dos dados empíricos.

Na atuação como orientadora pedagógica, é fundamental o incentivo e a reflexão

com as professoras sobre a importância do registro e as variadas formas de fazê-lo.

Conforme documentado em relato do dia 14/02/2014, compartilhado anteriormente, na

conversa com a professora, inicialmente eu elenquei “várias possibilidades de registro

que poderiam ser feitas”. Ao fazê-lo, não só não respondi diretamente à pergunta feita,

como também sinalizei que a escolha seria dela. Em seguida, respondendo à questão

mais específica que ela me colocava, disse-lhe que, “ao final do primeiro e do segundo

semestre eu costumo solicitar que as professoras elaborem um relatório do trabalho

desenvolvido pela turma, que faz parte da avaliação do Projeto Pedagógico e que pode

ser enviado aos pais.” Minha cobrança foi explicitada no contexto da avaliação do

Projeto Pedagógico e da comunicação com a família. Ao situar a cobrança no contexto

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desses dois aspectos, eu sinalizava que a solicitação feita não nascia em mim. Eu

intermediava a cobrança de uma tarefa que atendia a interesses da escola.

Na sequência da descrição da conversa, anoto que retomei o leque de

possibilidades de registro com a professora e reiterei que essa atividade não era feita

para responder a uma demanda da orientadora pedagógica.

Nos segmentos analisados, foi se caracterizando um modo de me enunciar como

orientadora pedagógica que antecipava para a professora o que esperar de mim nas

relações profissionais que nos articulam na escola. A orientadora pedagógica que

prefigurei para minha interlocutora caracteriza-se por não definir tarefas, nem modos de

fazer a serem cumpridos pelas professoras. Conforme o meu registro, coerentemente

com essa imagem, mostrei à professora alguns registros feitos pelas professoras da

escola.

Durante o processo de análise, flagro contradições na imagem de orientadora

pedagógica por mim enunciada. Ao mesmo tempo em que insisto em apontar que as

possibilidades de registro são diversas, indico que uma dessas formas, por fazer parte de

uma prática consolidada na escola, seria solicitada. E mais, ao tomar distância do vivido

na escola em relação à prática do relatório semestral de turma, fui-me dando conta de

que sua incorporação foi impulsionada por mim e que minha participação poderia ter

sido mais significativa do que aquela que eu vinha sugerindo à professora.

Do ponto de vista de minhas intenções como educadora, meu objetivo ao propor

a incorporação dos registros de trabalho era trazer a concretude das aprendizagens

docentes e discentes para o texto do relatório de avaliação do semestre, era dar

visibilidade a outras vozes neste documento, aproximando-o da diversidade e

complexidade dos modos de fazer e pensar a prática concreta no cotidiano escolar.

Outro objetivo contido nessa proposta era o de transformar a avaliação semestral em

uma possibilidade efetiva de diálogo das professoras comigo, com as famílias e entre

elas mesmas. O que fiz foi uma proposição e não a imposição de uma prática, pois não

queria que esta se transformasse em uma obrigatoriedade, em mais uma tarefa a ser

realizada pelas professoras.

No entanto, o lugar social por mim ocupado mediou a adesão das professoras a

essa proposta. Porque a atividade de orientação pedagógica se produz entre sujeitos que

ocupam lugares sociais hierarquicamente distintos - o lugar de orientador/a e o lugar de

professoras – e, por mais "democráticos" que sejamos em nossas intenções, a posição

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hierárquica ocupada pela orientadora configura suas intervenções e sugestões como

"uma fala de autoridade" e antecipa a possibilidade de que suas propostas sejam levadas

em conta pelos professores. Nesse sentido, a tradição instaurada na escola passou por

minhas ações e intenções, mesmo que eu avaliasse que sua incorporação à rotina do

grupo fora mediada pelas experiências de professoras, que contribuíram para o

reconhecimento de sua importância.

Essas considerações me trouxeram de volta à interlocução registrada. Embora eu

não me enunciasse como autoridade dentro da escola, essa era uma dimensão

constitutiva de minha atividade que eu vinha tentando desconstruir em minha

interlocução com a professora que chegava à escola. No meu registro evidencia-se o

interessante movimento da nova professora, de incorporação ao grupo, de desejo de

conhecer “como se faz aqui nesta escola”. Ao agendar a conversa e se preparar para ela,

organizando por escrito as perguntas que queria fazer e trazendo os registros que fizera

no ano anterior, a professora indicia seu interesse em conhecer a „memória social do

trabalho‟ do grupo ao qual se integrava.

Embora essa “memória do trabalho”, como sinaliza Clot (2007), esteja

disponível para os sujeitos na ação, os iniciantes precisam de tempo para apreender o

que é reconhecido, esperado, valorizado ou interditado em um meio profissional dado.

Tempo, durante o qual, o conhecimento das regras que compõem essa memória social

faz falta, uma vez que ela funciona como um conjunto de recursos graças ao qual a ação

individual se organiza, se realiza e tem sentido para o próprio sujeito e para seus

interlocutores.

Ao perguntar sobre a memória de trabalho do grupo, a professora pede à

orientadora que a “ensine a olhar”, tal como dissera o menino a seu pai, no conto de

Eduardo Galeano (2002), que a ajude a compreender os signos relevantes para o grupo

em que se inseriu. O sentido da orientação pedagógica que ela privilegia ao solicitar a

conversa é o de formação, o de intervenção no processo de vir a ser em que ela se inicia.

Esse movimento, todavia, é minimizado em meu relato. A ele sobrepus minha

dúvida acerca de suas práticas e de suas intenções: Fiquei pensando: Se o registro

escrito fosse inerente à sua prática profissional, concebido como uma necessidade, ela

provavelmente daria continuidade ao que sempre havia feito e se, posteriormente

houvesse necessidade, sua forma de registrar poderia ser adaptada às formas de registro

desta escola. Por que ainda temos na escola, tanta dificuldade em utilizar da escrita

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como instrumento de registro da prática? Será que na prática desta professora o registro

escrito só existia por que havia uma cobrança da OP para que fosse feito?

Embora eu não tenha feito apontamentos sobre o que suscitou em mim tais

dúvidas, nem consiga reconstruir os indícios que me levaram a elas, no momento da

análise reconheço indícios de uma desatenção aos processos de constituição profissional

da professora. Meus apontamentos se referem à imagem que fiz da professora e não ao

que ela me mostrou. Registrei minha réplica a uma imagem idealizada do que “deveria

ser” a prática docente, com o registro incorporado à sua rotina. Do mesmo modo,

idealizo a relação professora/orientadora. Com isso, deixei de lado os processos do “vir

a ser” indiciados no episódio.

Registro: da memória a outras histórias

Para finalizar, importa ressaltar que toda a discussão e análise empreendidas, ao

longo da pesquisa e escrita da dissertação, assim como no âmbito do artigo aqui

apresentado, foram possibilitadas pela prática da documentação, da memória marcada

na escrita, feito história. História que, como discuti, permite a apreensão de múltiplos

sentidos, visualizando e dando visibilidade às vozes em interlocução, a enunciados e

réplicas, que no contexto da escola são potentes oportunidades formativas.

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PERCURSOS DE APRENDIZAGENS DOCENTES: PRÁTICAS DE REGISTRO

E FORMAÇÃO CONTINUADA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Luciana Esmeralda Ostetto - UFF

Resumo:

O presente artigo, resultado de pesquisa realizada com um grupo de educadoras

(professoras e outros profissionais) de uma instituição pública de educação infantil de

Niterói-RJ, discute a prática do registro diário e da documentação pedagógica enquanto

caminho potente e profícuo de reflexão, de produção de autoria docente, caracterizando-

se como um espaço contínuo de formação. Compreende-se que o professor, à medida

que escreve e reflete sobre o conteúdo registrado, pode tomar sua prática nas mãos,

redimensionando conquistas e desafios, articulando velhos e novos conhecimentos.

Desta forma, realimenta e fortalece a essencial relação entre teoria e prática. A dinâmica

de registrar possibilita o alargamento do olhar, contribuindo para significar e melhor

compreender as tramas do cotidiano e da prática pedagógica que protagoniza. Neste

movimento, articulando passado e presente na intencionalidade reflexiva do registro, o

professor amplia possibilidades de projetar o futuro, ou seja, de formular (por vezes

reformular) o planejamento. O registro apresenta-se, pois, como um dispositivo que

fertiliza o processo de formação continuada. A partir do traçado teórico que apresenta

concepções de registro e documentação, especialmente no âmbito da prática pedagógica

na Educação Infantil, o artigo dá visibilidade a percursos de aprendizagens das

professoras e da instituição (campo da pesquisa) como um todo, privilegiando o diálogo

com as experiências construídas pelo coletivo de educadoras, narrando e discutindo o

observado. Seja compondo quadros imagéticos e/ou descrevendo fatos, atividades,

aprendizagens e comportamentos do professor e das crianças, seja analisando o vivido,

pensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado, quando intencionalmente

produzido e coletivamente partilhado, o registro transforma-se em documentação das

histórias construídas no espaço educativo, reconhecido e validado entre profissionais,

crianças e famílias. Para tanto, professores precisam ser apoiados em suas práticas,

valorizados em suas tentativas e criações para que cresça os sentidos e os significados

da prática.

Palavras-chave: registro; documentação pedagógica; formação continuada.

Ponto de partida: tramas da formação

Que um professor se faz sob a influência de diferentes fatores que perpassam as

dimensões pessoal e profissional, assim como história de vida, formação e prática

docente tramam e tecem percursos docentes, são premissas amplamente discutidas e

confirmadas no âmbito da pesquisa sobre formação de professores, didática e docência

(NÓVOA, 1992; PIMENTA, 1999; FARIAS et. al., 2011, entre outros). Também é

consenso afirmar que na trama da profissionalidade docente, considerando-se fios e

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matizes diferenciados que constituem cada pessoa-professor como tal, há uma linha que

dá o tom, que firma a tessitura da identidade: o trabalho docente. Como dizem Farias et

al (2011, p.70), “É no trabalho e pelo trabalho que o professor se define como um

profissional”. Envolvendo-se no contexto da escola o professor vai formando e sendo

formado na cultura docente e, pelo “patrimônio simbólico” compartilhado pelos pares,

em conjunto, vai constituindo sua identidade como um coletivo (FARIAS et. al., 2011).

De outra forma, o fazer do professor não é linha reta, rígida, imutável.

Pressupõe um percurso de necessárias transformações e crescimento pelas

aprendizagens do ofício, como pessoa e como profissional. A ampliação de saberes e a

mudança de fazeres implicam movimentos de reflexão-ressignificação da prática

docente. Vai assim o professor, experimentando o infindável processo de formação: à

medida que ousa afrontar a segurança do já conhecido (e, por vezes, rotineiramente

feito), questionando as verdades estabelecidas e arraigadas no processo ensino-

aprendizagem cotidiano, em diálogo com o real que se lhe apresenta; à medida que

busca, interroga criticamente sua própria prática, refletindo sobre a teoria que lhe deu

sustentação até então. Pois formar-se é continuamente rever percursos, ampliando

aprendizagens, afirmando autoria.

Comungando de tais pressupostos e possibilidades, a pesquisa aqui apresentada

discute a prática do registro diário e da documentação pedagógica enquanto caminho

potente e profícuo de reflexão, de produção de autoria docente, caracterizando-se como

um espaço contínuo de formação. Desenvolvida na interlocução com a Unidade

Municipal de Educação Infantil (UMEI) Rosalda Paim, da rede pública de Niterói-RJ, a

pesquisa contou com a participação de vinte e dois profissionais, sendo dezoito

professoras, uma diretora, uma diretora adjunta e duas pedagogas (em virtude da

presença de diferentes profissionais, quando me referir ao conjunto das participantes,

utilizarei “educadoras”, e não apenas “professoras”). Localizada na região central da

cidade, a instituição recebe 157 crianças com idades entre 2 e 5 anos, em turno integral,

organizadas em Grupos de Referência de Educação Infantil (GREI) por faixa etária,

sendo que em cada GREI trabalham duas professoras. Durante um ano letivo vivi a

dinâmica da UMEI, convivendo semanalmente com seus protagonistas, participando de

encontros de planejamento e de estudos, conversando em momentos não estruturados,

observando tempos, espaços e atividades cotidianamente organizados, tomando notas e

fotografando.

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No presente artigo, privilegiando o diálogo com as experiências de

documentação construídas pelo coletivo de educadoras daquela UMEI, os aspectos

conceituais apresentam-se como fios que atravessam o texto e articulam a reflexão

proposta. A narrativa aqui constituída busca dar visibilidade aos percursos de

aprendizagens das professoras e da instituição como um todo, os quais falam de

experiências, caminhos, reinvenção de práticas; histórias, enfim, de sucessivas

aprendizagens, contínua formação.

Movimentos: observar, registrar, refletir

No contexto da prática pedagógica na Educação Infantil, para que serve um

registro? Eis uma pergunta que admite respostas múltiplas: mapear questões envolvidas

no cotidiano educativo para dar visibilidade ao percurso; recolher e sistematizar

observações sobre o dia a dia, sobre o proposto e o realizado; anotar dúvidas e

descobertas; organizar ideias e reflexões sobre a prática pedagógica, alimentando o

planejamento e apoiando o prosseguimento da jornada educativa; traçar memória; tecer

autoria; documentar o trabalho e reunir subsídios para avaliação da proposta

desenvolvida.

A contribuição do registro diário – refiro-me essencialmente à escrita do

professor, àquela escrita marcada em seu caderno de registro, como um diário –, para a

qualificação do trabalho pedagógico e para a contínua formação docente já foi apontada

e discutida, no contexto brasileiro, por vários autores (entre outros, cito: FREIRE, 1983,

1996; WARSCHAUER, 1993; MAGALHÃES e MARINCEK, 1995; OSTETTO et.al.,

2001; OSTETTO, 2008). Uma ideia mobiliza tais estudos: à medida que escreve e

reflete sobre o conteúdo registrado, o professor pode tomar sua prática nas mãos,

alimentando a ligação entre teoria e prática, entre os velhos e os novos conhecimentos,

entre as conquistas e os desafios.

[...] o registro ajuda a guardar na memória fatos, acontecimentos ou

reflexões, mas também possibilita a consulta quando nos esquecemos.

Este “ter presente” o já conhecido é de especial importância na

transformação do agir, pois oferece o conhecimento de situações

arquivadas na memória, capacitando o sujeito a uma resposta mais

profunda, mais integradora e mais amadurecida, porque menos

ingênua e mais experiente, de quem já aprendeu com a experiência.

Refletir sobre o passado (e sobre o presente) é avaliar as próprias

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ações, o que auxilia na construção do novo. E o novo é a indicação do

futuro. É o planejamento (WARSCHAUER, 1995, p. 62-63).

O registro configura-se, assim, como instrumento por meio do qual o professor

marca seu olhar sobre sua própria prática docente e sobre o grupo de crianças; portanto,

espaço privilegiado de reflexão, de (auto)formação. A dinâmica de registrar possibilita o

alargamento do seu olhar – que olha para o trabalho que realiza, para si e para o grupo –

, podendo então significar e melhor compreender as tramas do cotidiano e da prática

pedagógica que protagoniza. Neste movimento, articulando passado e presente na

intencionalidade reflexiva do registro, o professor amplia possibilidades de projetar o

futuro, ou seja, de formular (por vezes reformular) o planejamento.

Em diálogo com as experiências italianas (em especial aquelas desenvolvidas

nas regiões da Emilia-Romagna e da Toscana), a discussão sobre as funções, objetivos e

formas de registro na Educação Infantil pode ser ampliada. Em tais experiências

encontramos o conceito “documentação” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999;

GANDINI; EDWARDS, 2002; DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003; FORTUNATI,

2009; RINALDI, 2012; entre outros). Compreendida como um dispositivo pedagógico

que vai além do registro diário escrito, a documentação incorpora outras linguagens,

como pequenos vídeos, fotografias, slides de crianças e professores em atividades,

gravações em áudio de diálogos das crianças entre si, além da reunião e organização das

produções das crianças e fotografias dessas produções (GANDINI; GOLDHABER,

2002).

Na proposição e prática do registro-documentação está a incorporação da ideia

de uma criança competente: todas as situações das quais as crianças participam são

momentos potencialmente significativos para seu desenvolvimento e aprendizagem;

sendo assim, para além daquelas atividades organizadas e dirigidas pelo adulto,

precisam ser observadas com cuidado e atenção à multiplicidade de ações, interações,

gestos, silêncios, expressões enfim, protagonizadas pelas crianças em tempos e espaços

diversificados, reconhecendo os valores e conteúdos nelas envolvidos (TOGNETTI,

2003). O que importa, portanto, não é a tipologia dos registros, mas o que é registrado,

seu foco: as crianças, seu protagonismo na cena pedagógica.

A principal razão da documentação, dizem-nos a experiência e a literatura sobre

o tema, é revelar cada vez mais as crianças e seus modos próprios de conhecer, se

relacionar com o mundo e se expressar. Os educadores-observadores, registrando

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através de formas variadas, podem construir um entendimento compartilhado sobre “as

maneiras como as crianças interagem com o ambiente, como elas se relacionam com os

adultos e com outras crianças e como constroem o próprio conhecimento” (GANDINI;

GOLDHABER, 2002, p.151).

Como um meio que contribui para ampliação da compreensão dos conceitos e

das teorias sobre as crianças, a documentação é ferramenta para que os educadores

observem, registrem e analisem os acontecimentos cotidianos que envolvem

experiências, descobertas, construções e hipóteses que meninos e meninas formulam

sobre/com o mundo; é também canal de comunicação com as famílias. Nesta

perspectiva, a documentação cumpre três funções decisivas:

[...] oferecer às crianças uma “memória” concreta e visível do que

disseram e fizeram, a fim de servir como um ponto de partida para os

próximos passos na aprendizagem; oferecer aos educadores uma

ferramenta para pesquisas e uma chave para melhoria e renovação

contínuas; e oferecer aos pais e ao público informações detalhadas

sobre o que ocorre nas escolas, como um meio de obter suas reações e

apoio (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p.25).

A documentação nasce da observação, mas observar não é um ato neutro, que

simplesmente espelha ou reproduz a realidade. É um ato interpretativo, que revela

intenções, compreensões, valores, expectativas e representações do observador. Por isso

requer reflexão e discussão crítica (FORTUNATI, 2009). Sendo assim, é importante

destacar que a documentação “não representa um relatório final, uma coleção de

documentos, um portfólio que apenas ajuda com a memória, avaliações, arquivos; é um

procedimento que sustenta a ação educativa (o ensino) no diálogo com os processos de

aprendizagem das crianças” (RINALDI, 2012, p.109). Ou seja, não contempla apenas o

levantamento e recolhimento de dados, mas, sobretudo, exige a análise coletiva do

observado, pressupõe a interpretação junto com outros educadores e crianças – é

processo e conteúdo (DAHLBERG; MOSS; PENCE, 2003).

Na base de tal concepção de observação e documentação, é necessário assinalar,

está a ideia de um educador que em seu ofício de educar respeita a identidade das

crianças, escuta e reflete sobre o que testemunha, sem simplificar ou desqualificar os

gestos, as palavras, as expressões de meninos e meninas com os quais convive

(FORTUNATI, 2003).

Interlocução de saberes, pesquisa-formação

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Com um movimento investigativo que parte da observação e identificação das

formas e conteúdos dos registros produzidos no interior da UMEI e se expande no

compartilhamento e discussão de narrativas do vivido, a pesquisa problematizou as

práticas e alimentou o diálogo que aponta para a teorização coletiva dos princípios da

documentação pedagógica. O objetivo principal foi identificar os caminhos das

professoras, sua compreensão e prática de documentação, suas escolhas – gestos,

palavras, formas, expressões, materialidades e suportes utilizados –, por meio das quais

o processo vivenciado se revela.

Buscou-se um fazer investigativo participativo, traçado junto às educadoras, no

convite à interlocução de saberes, assumindo uma dinâmica relativa aos processos de

pesquisa-formação: o exercício da narrativa fertilizada na aventura-apropriação da

experiência-palavra das participantes foi privilegiado, procurando evidenciar a

necessidade e importância de o educador ver-se como autor e narrador do seu fazer-

saber educativo.

Na abordagem da documentação pedagógica, tal como já apontado, a observação

carrega a qualidade da escuta (MALAGUZZI, 1995; HOYUELOS, 2006; DAHLBERG,

MOSS; PENCE, 2003; RINALDI, 2012; FORTUNATI, 2003) impulsionada pelo

compromisso, desejo e disposição de conhecer cuidadosa e atentamente os contextos e

as maneiras próprias das crianças se relacionarem e construírem conhecimentos sobre e

no mundo. Como assinalou Carla Rinaldi (2012), a curiosidade, o desejo, a dúvida, o

interesse, a emoção estão normalmente por trás do ato de escuta.

Nesta direção, esse mesmo procedimento de observação, constitutivo da

abordagem da documentação pedagógica, fundou o caminho metodológico assumido na

pesquisa: estar junto com as educadoras, escutar com todos os sentidos a multiplicidade

de formas e sinais que falam sobre o que está acontecendo no cotidiano educativo e

revelam maneiras de ser educadora. Escuta que não é tão somente acionada para a

recolha de dados, ou para a apreensão de respostas certas às questões formuladas; ao

contrário, a escuta como abertura para a constituição de um campo de significações que

poderão ser produzidas no processo.

O princípio metodológico adotado pode ser assim definido: pesquisar a

documentação por meio de observações e registros que contam histórias e, de certa

forma, as fecundam, haja vista que a documentação é um “processo: dialético, baseado

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em laços afetivos, e também poético; não apenas acompanha o processo de construção

do conhecimento como, em certo sentido, o fecunda” (RINALDI, 2012, p.134).

Compreendendo que documentar é contar histórias, testemunhar narrativamente as

práticas, as ideias e as diversas formas de pensar das crianças, no caso da pesquisa é

testemunhar as diversas formas de fazer e de dizer das professoras – como inventam

tramas, narram e poetizam os acontecimentos, dão sentido à existência, constroem

canais de ruptura com a linguagem “escolarizada”, tradicionalmente cinzenta, rígida,

enquadrada, que tantas vezes silencia adultos e crianças. Documentação é autoria, é

criação (HOYUELOS, 2006).

Modos de fazer, olhar e dizer: aprendizagens docentes

No encontro com a UMEI Rosalda Paim – o cotidiano educativo, o trabalho

pedagógico dos educadores, a organização administrativo-pedagógica –, percebe-se que

o registro está pautado no seu Projeto Político-Pedagógico. É evidente o

direcionamento/convite para que as professoras registrem: todas possuem seus cadernos

de registro, nas salas de referência dos grupos existem os blocões (blocos grandes de

folhas A3 para anotações, desenhos e outras marcas coletivas) e, especialmente, nas

reuniões pedagógicas e de planejamento estudam e discutem formas de observar e

escrever o cotidiano vivido com as crianças.

As paredes dos espaços coletivos, na entrada, nos corredores, também falam da

preocupação com o registro, com a dimensão estética dos modos de dizer e compartilhar

o vivido: as paredes comunicam os objetivos do projeto pedagógico. Nos murais

existentes, além das imagens (às vezes fotos, às vezes produções originais das crianças)

encontram-se títulos e pequenos quadros explicativos, narrando o processo que deu

origem ao que o espectador está vendo. Nota-se o cuidado com o interlocutor, os pais

potencialmente, oferecendo informações que situam os fazeres das crianças e revelam a

proposta educacional.

Diante do volume de dados produzidos na pesquisa e considerando os limites

formais do presente artigo, detenho-me às notas que captaram o percurso de criação de

uma particular forma de registro, sistematização de outros registros: uma experiência de

elaboração de um folder explicativo/informativo sobre a organização e montagem de

um aquário na sala de um determinado grupo. A história, contada a partir de anotações,

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observações e conversas com os envolvidos, pretende revelar percursos de

aprendizagens das professoras – mudanças de atitudes, na ampliação de olhares para as

crianças e suas produções.

Tudo começou na sala de atividades do GREI 3, constituído por dezessete

crianças na faixa etária dos três anos e duas professoras. A proposta, encaminhada

como desdobramento do projeto de trabalho que desenvolviam sobre a região nordeste,

em especial sobre o Ceará (estado de procedência das famílias da maioria das crianças

daquele grupo), era montar um aquário. Houve muita participação na empreitada,

crianças, professores, direção, pais, todos entraram na roda para materializar o projeto.

Depois de efetivado, surgiu a ideia de apresentar o aquário às outras turmas e aos pais.

Essa é uma prática da instituição: projetos desenvolvidos são compartilhados entre os

grupos. Como não seria um mural, recurso costumeiro, mas a obra-instalação montada

na sala de referência do GREI, impôs-se a questão: como fazer tal apresentação? A

diretora adjunta, que estava em interlocução direta com as professoras daquele grupo,

dando apoio e incentivando a experiência argumentou em forma de pergunta: o que a

gente recebe quando visita um museu, ou uma exposição? E sugeriu a produção de um

folder. Folder? Questionaram as professoras. Como fazê-lo? As professoras mostravam-

se abertas a novas ideias e propostas, mas o questionamento revelou um

desconhecimento sobre o “objeto”.

Depois de conversas e apropriação do significado de um folder, o ponto de

partida foi a documentação produzida até então: o texto que haviam elaborado sobre o

projeto e os desenhos das crianças que mostravam aspectos do aquário e do mar,

assinalando diferenças entre um e outro. O texto e os desenhos foram produzidos com

tranquilidade, pois esses dois instrumentos já fazem parte da proposta da instituição

(ainda que a escrita das professoras não seja tão fluida ou estruturada com clareza e

densidade analítica). Na dinâmica de interlocução com a equipe gestora-pedagógica, o

texto inicialmente produzido foi analisado e problematizado: onde estavam as vozes das

crianças? A escrita trazia marcadamente as vozes das professoras, de maneira mais

protocolar, com informações sobre todo o projeto, o Ceará, os costumes e tradições, o

mar; falavam também de aquários, tipos de peixes, etc. De outra forma, era muito

extenso para ser incorporado a um folder.

Com relação aos desenhos, ao contrário, pareciam abreviados. Notava-se uma

produção gráfica esquematizada, com linhas tênues, meio apagadas, parecendo esboços

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em grafite. Por que não cultivar aqueles desenhos, propor às crianças-autoras o

aprofundamento da linguagem, uma espécie de revelação das imagens?

Com novas indicações, a partir do processo reflexivo compartilhado, o texto foi

revisado e adequado ao material que seria divulgado naquele específico formato.

Também os desenhos foram revistos com as crianças: como poderiam ser realçados,

haja vista que agora seriam as “figuras” para o folder que apresentaria o aquário para as

outras turmas e para os pais?

Importante destacar a atitude das professoras, sua empolgação e alegria

estampadas em seus olhos, que sorriam com a possibilidade de enriquecimento do

trabalho, que se sentiam valorizadas no percurso da proposta que nascera com elas, com

o grupo de crianças, resultado de um processo, de um projeto vivo que recebera

acolhida.

As crianças também estavam eufóricas. Antes mesmo que o folder ficasse

pronto, não se furtavam de explicar a cada pessoa que por ventura fosse à sala, sobre a

construção do aquário: como fizeram, como conseguiram os peixinhos, do que precisa

para manter os peixinhos vivos e o aquário limpo.

Neste clima de participação e alegria, próprio de um processo coletivo

expressivo, o trabalho continuou. O texto para o folder foi revisto, tendo sido resumido

nas informações, dando destaque para as falas das crianças; os desenhos foram

vivificados, por assim dizer, pois na nova versão notava-se a exploração das cores e dos

traços, que enriqueceu sua forma final. Enquanto o grupo trabalhava, a diagramação do

folder ia sendo esboçada no computador, com o apoio da diretora adjunta. Com a

aprovação do grupo, desenhos e texto foram transportados para o folder projetado no

computador. E pronto. Era só imprimir e compartilhar.

Como observadora, acompanhando o processo, vendo a proposta tomar forma e

se concretizar, testemunhei elementos de um percurso criador. Tão simples e tão

complexa produção! Um olhar rápido poderia taxar: elementar. Todavia, no exercício de

escuta atenta do pesquisador em diálogo, revela-se a qualidade do experimento: singelo,

comum, mas ao mesmo tempo tão forte no significado pedagógico e pessoal, sobretudo

para aquelas professoras, mas para as crianças igualmente.

A forma foi se constituindo e se mostrando, na mesma proporção em que as

professoras iam pesquisando e ampliando sua compreensão sobre os modos de dizer.

Por fim, ficou estampado claramente que a forma escolhida para divulgar o projeto, para

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comunicá-lo, amplificou tanto o conteúdo quanto o processo documentado. Mas,

quando não se conhece possibilidades, fica-se restrito ao padrão, em regra cinzento, de

textos formais, escolarizados, didatizados, onde se ouve apenas a voz do professor.

Quando se trata de documentação, na perspectiva que vimos discutindo, não

basta dizer. É preciso escolher como dizer. É preciso dizer com beleza. E o belo, como

valor estético, já afirmou Hoyuelos (2006), não é um adorno vazio, mas a condição que

nos leva a melhorar nossa sensibilidade interpretativa e criativa.

A experiência observada revelou que quando os professores são acolhidos em

suas iniciativas e compreendidos em seus limites, o trabalho se transforma e ganha

maior qualidade. Tal como afirmara o pedagogo italiano (MALAGUZZI, 1999), é

fundamental não abandonar os professores a si mesmos e seguir, ao contrário, apoiando-

os em suas inciativas e processos de trabalho: neste caso, está em jogo não apenas a

produção de boas experiências pedagógicas cotidianas, mas a intensificação de

processos autorais, que pressupõem transformação de papéis, assumindo a centralidade

da reflexão critica sobre as práticas produzidas.

Nota-se, pois, a importância do acompanhamento e da interlocução com a equipe

gestora-pedagógica, confirmando a aprendizagem coletiva das professoras no processo,

participativo e dialógico, que é marca do trabalho da UMEI Rosalda Paim. Por trás do

percurso aqui documentado, no que concerne às ações das professoras em diálogo

constante com a equipe gestora-pedagógica, está a observação e a escuta, que “é

premissa de qualquer relação de aprendizado – aprendizado que é determinado pelo

sujeito aprendiz e toma forma na mente desse sujeito por meio da ação e da reflexão,

que se torna conhecimento e aptidão por intermédio da representação e da troca”

(RINALDI, 2012, p.125; grifo do original).

De outro modo, mostra que o processo de documentação pode ser potencializado

no diálogo, no apoio ao que as professoras já fazem, ampliando as possibilidades de

atuação e construção de interpretações, na medida mesma em que ampliam seu

repertório no fazer.

No âmbito da pesquisa ficou evidente esse movimento de diálogo e apoio,

percebido em atitudes que revelam intencionalidade e o compromisso de toda a equipe

na condução de práticas que buscam a qualidade no desafio de educar e cuidar meninas

e meninos no coletivo da Educação Infantil. Por exemplo, o estudo sobre registro e

documentação está na pauta da instituição, e vai ganhando densidade compreensiva e

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interpretativa pari passu com as tentativas das professoras de dizer o vivido, revelando

as crianças e suas aprendizagens, revelando a crença nas crianças, mas com um

diferencial: partindo da crença em seus próprios saberes-fazeres como docentes-autoras.

Assim, com coerência, competência e responsabilidade, a teoria vai sendo nutrida pela

prática, pelas questões advindas da prática, num intenso movimento de formação

continuada.

Há nisso um longo exercício, fertilizado no coletivo, admitindo idas e vindas,

articulando prática-teoria-prática. Por meio de tal dinâmica, ação e reflexão vão sendo

dialeticamente incorporadas, encorajando o professor a ocupar um espaço privilegiado

de pesquisador e produtor de teorias, e não simplesmente um “consumidor da certeza e

da tradição” (EDWARDS, 1999, p.164).

Seja compondo quadros imagéticos e/ou descrevendo fatos, atividades,

aprendizagens e comportamentos do professor e das crianças, seja analisando o vivido,

pensando e refletindo sobre o acontecido e o testemunhado, quando intencionalmente

produzido e coletivamente partilhado, o registro transforma-se em documentação das

histórias construídas no espaço educativo, reconhecido e validado entre profissionais,

crianças e famílias.

Para tanto, professores precisam ser apoiados e reconhecidos em suas práticas,

valorizados em suas tentativas e criações para que cresça os sentidos e os significados

da prática. É preciso ouvir os professores com todos os sentidos, para acolher os

percursos de aprendizagem, acionar outras dimensões do ser professor. É fundamental

dialogar, cultivando sensibilidade.

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