RESUMO DISSERTAÇÃO MEDEIROS SILVIA CORRÊA … · Em sua obra originalmente intitulada Liquid Modernity, publicada em 2000, o sociólogo constrói o panorama da modernidade líquida,

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CENTRO ESTADUAL DE EDUCAO TECNOLGICA PAULA SOUZA

UNIDADE DE PS-GRADUAO, EXTENSO E PESQUISA

MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTO E DESENVOLVIMENTO DA

EDUCAO PROFISSIONAL

Silvia Corra Guimares Raposo de Medeiros

A Educao Profissional na Modernidade Lquida: um estudo sobre o Curso Superior de

Tecnologia em Gesto Empresarial das Faculdades de Tecnologia do Centro Estadual de

Educao Tecnolgica Paula Souza

So Paulo

Junho/2018

Silvia Corra Guimares Raposo de Medeiros

A Educao Profissional na Modernidade Lquida: um estudo sobre o Curso Superior de

Tecnologia em Gesto Empresarial das Faculdades de Tecnologia do Centro Estadual de

Educao Tecnolgica Paula Souza

Dissertao apresentada como exigncia

parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

Gesto e Desenvolvimento da Educao

Profissional do Centro Estadual de Educao

Tecnolgica Paula Souza, no Programa de

Mestrado Profissional em Gesto e

Desenvolvimento da Educao Profissional,

sob a orientao do Prof. Dr. Darlan Marcelo

Delgado

So Paulo

Junho/2018

FICHA ELABORADA PELA BIBLIOTECA NELSON ALVES VIANA FATEC-SP / CPS

Medeiros, Silvia Corra Guimares Raposo M488e A educao profissional na modernidade lquida: um estudo

sobre o Curso Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial das Faculdades de Tecnologia do Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza / Silvia Corra Guimares Raposo de Medeiros. So Paulo: CPS, 2018.

193 f. : il., grafs.

Orientador: Prof. Dr. Darlan Marcelo Delgado Dissertao (Mestrado Profissional em Gesto e

Desenvolvimento da Educao Profissional) - Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza, 2018.

1. Educao profissional. 2. Modernidade lquida. 3. Curso

Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial. 4. Educao e trabalho. 5. Padro flexvel de produo. I. Delgado, Darlan Marcelo. II. Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza. III. Ttulo.

CRB8-8281

4

SILVIA CORRA GUIMARES RAPOSO DE MEDEIROS

A EDUCAO PROFISSIONAL NA MODERNIDADE LQUIDA: UM ESTUDO SOBRE

O CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM GESTO EMPRESARIAL DAS

FACULDADES DE TECNOLOGIA DO CENTRO ESTADUAL DE EDUCAO

TECNOLGICA PAULA SOUZA

Prof. Dr. Darlan Marcelo Delgado

Prof. Dr. Celso Luiz Aparecido Conti

Prof. Dr. Emerson Freire

So Paulo, 6 de junho de 2018.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeo Deus que, em sua imensa bondade e amor, guiou meus passos ao longo deste

trabalho e me garantiu a sade.

Agradeo ao corpo docente da Ps-Graduao do Centro Estadual de Educao

Tecnolgica Paula Souza, do Governo do Estado de So Paulo, Brasil, por ter me proporcionado

a chance de participar do Programa de Mestrado Profissional em Gesto e Desenvolvimento da

Educao Profissional, e por ter se ocupado to intensamente da formao acadmica e pessoal

de todos os seus alunos.

Agradeo ao meu professor orientador, Prof. Dr. Darlan Marcelo Delgado, por ter me

apresentado a pensadores mpares, por ter me orientado, questionado, criticado, sempre tendo

meu crescimento por objetivo.

Agradeo a todos os funcionrios administrativos da Ps-Graduao do Centro Paula

Souza, sempre gentis e solcitos, que auxiliaram em todas as questes de ordem prtica para a

concluso deste trabalho.

Agradeo aos familiares e aos amigos, especialmente aos amigos desta turma de

mestrandos, que juntos, formaram um ponto de apoio e de fora para a concluso desta pesquisa.

6

RESUMO

MEDEIROS, S. C. G. R. A educao profissional na modernidade lquida: um estudo sobre

o Curso Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial das Faculdades de Tecnologia do

Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza. nn [nmero de folhas] f. Dissertao

(Mestrado Profissional em Gesto e Desenvolvimento da Educao Profissional). Centro

Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza, So Paulo, 2018.

Esta pesquisa objetiva investigar se as temticas da modernidade lquida so abordadas em

disciplinas selecionadas do Curso Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial (Processos

Gerenciais), oferecido pelo Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza

(CEETEPS), no Estado de So Paulo, Brasil, analisando qual o teor desses debates e como so

realizados. Para atingir o objetivo proposto, desenvolve a fundamentao terica, com base nas

obras, principalmente de Zygmunt Bauman, mas tambm de Richard Sennett, Ulrich Beck,

Michel Maffesoli, Manuel Castells, Pierre Lvy, Ricardo Antunes e Danile Linhart, que

discutem aspectos contemporneos sobre as alteraes do ambiente, da produo, do trabalho,

do capital, da tecnologia, do Estado, do indivduo e da educao, e produz um questionrio de

questes abertas, aplicado aos docentes das disciplinas selecionadas. O resultado da anlise de

contedo realizada a constatao de que a modernidade lquida discutida parcial e

superficialmente, e que essa discusso carece de categorias de anlise teoricamente embasadas,

como referncia, que tornassem o debate no CST em Gesto Empresarial, robusto e

aprofundado. A pesquisa sugere a ampliao e o aprofundamento do tratamento das temticas

da modernidade lquida, especialmente daquelas relativas ao trabalho, no interior das

Faculdades de Tecnologia do CEETEPS, e no CST em Gesto Empresarial, no somente por

possveis modificaes e adies em Ementas de seu Projeto Pedaggico, mas pela utilizao

de novas formas, meios e instrumentos de construo do conhecimento na atualidade, como

sugeridos pelos autores da fundamentao terica.

Palavras-chave: Educao Profissional; Modernidade Lquida; Curso Superior de Tecnologia

em Gesto Empresarial; Educao e Trabalho; Padro Flexvel de Produo.

ABSTRACT

7

MEDEIROS, S. C. G. R. Vocational education in liquid modernity: a study of the Business

Management Undergraduate Technological Course (Management Processes) of Centro

Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza. nn [nmero de folhas] f. Masters Dissertation

(Professional Masters Course in Management and Development of Vocational Education).

Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza, So Paulo, 2018.

This research is aimed at investigating whether liquid modernity themes are discussed in

selected disciplines of the Business Management Undergraduate Technological Course

(Management Processes) offered by Centro Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza

(CEETEPS), in So Paulo State, Brazil, and at analysing the content of these discussions and

how they happen. In order to attain this objective, the research presents a theoretical framework

based mainly on the works of Zygmunt Bauman, but also on the thoughts of Richard Sennett,

Ulrich Beck, Michel Maffesoli, Manuel Castells, Pierre Lvy, Ricardo Antunes and Danile

Linhart, that debate the contemporary aspects of recent changes in the environment, production,

work, capital, technology, State, individual and education. It also produces a questionnaire of

open questions that is applied to the selected members of the faculties. The results of the content

analysis of the answers provided show that the liquid modernity themes are superficially and

partially discussed and that this discussion lacks the category analysis theoretically built as a

reference, that would be able to make the debate robust and deep. This research suggests that

the liquid modernity debate should be broadened and deepened, specially when it refers to work,

in the Technological Undergraduate Courses offered by CEETEPS and specifically at the

Business Management Undergraduate Technological Course, not only with changes and

additions to its Pedagogical Project but by using new shapes, means, and tools to build

knowledge, as they are suggested by the authors of this theoretical framework.

Key-words: Vocational Education; Liquid Modernity; Business Management Undergraduate

Technological Course; Education and Work; Flexible Production Standard

SUMRIO

1 INTRODUO ................................................................................................................... 9

2 A Modernidade Lquida .................................................................................................... 11

3 A Educao no contexto da Modernidade Lquida ......................................................... 25

3.1 A Educao Profissional na Modernidade Lquida ...................................................... 38

4 O Curso Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial das Fatecs do Centro

Estadual de Educao Tecnolgica Paula Souza ................................................................. 45

4.1 Apresentao do curso e dos procedimentos metodolgicos.........................................45

4.2 Apresentao e anlise dos dados....................................................................................57

5 Consideraes Finais .........................................................................................................117

REFERNCIAS .................................................................................................................. 124

ANEXO ................................................................................................................................. 127

APNDICES ........................................................................................................................ 128

9

1 INTRODUO

A educao profissional e tecnolgica, tanto no Brasil quanto no exterior, h algumas

dcadas tem sido utilizada como um instrumento de capacitao, com vistas ao aproveitamento

de seus egressos pelo mercado de trabalho. Forjada ao longo de anos de estreito vnculo entre

as suas instituies educacionais e a indstria, desenvolveu-se principalmente no bojo do

paradigma taylorista-fordista de produo, consolidado aps a II Guerra Mundial e hegemnico

at poucas dcadas antecedentes ao incio do sculo XXI. Segundo Zygmunt Bauman, um dos

expoentes da Sociologia contempornea, a chamada modernidade slida daquele perodo sofreu

transformaes profundas e importantes, a partir do final do sculo XX e durante este sculo

XXI, para se converter em uma modernidade lquida, cujos traos marcantes so a fluidez, a

mobilidade, a flexibilidade, as incertezas que recaem sobre as diversas facetas da vida social:

as formas de produo e acumulao de capital, o indivduo, o trabalho, a educao, dentre

outras.

A investigao de como os traos dessa nova modernidade lquida tm sido tratados nos

cursos de tecnologia, historicamente relacionados ao contexto da modernidade slida, constitui

o foco desta pesquisa. Partindo de uma reviso terica de algumas das obras de Zygmunt

Bauman, a discusso acrescenta as contribuies de autores por ele referenciados, seus

contemporneos, como Richard Sennett, Ulrich Beck e Michel Maffesoli, e traz ainda as

reflexes de Ricardo Antunes e Danile Linhart, Manuel Castells e Pierre Lvy, na tentativa de

descrever o cenrio lquido-moderno em suas nuances relativas ao trabalho e tecnologia. A

partir desse embasamento terico, prope-se a responder questo: as temticas relativas

modernidade lquida, e seus impactos sobre a vida profissional, so debatidos no interior do

Curso Superior de Tecnologia em Gesto Empresarial? Qual o teor desse debate? Opta-se,

assim, por limitar a pesquisa ao Curso Superior de Tecnologia (CST) em Gesto Empresarial,

oferecido pelas Faculdades de Tecnologia, vinculadas ao Centro Estadual de Educao

Tecnolgica Paula Souza, no Estado de So Paulo.

A importncia de responder a esse questionamento reside em sua contribuio potencial

aos policy makers e aos gestores da educao profissional, tcnica e tecnolgica, quando

fornece subsdios para compreender como tais temticas so tratadas e discutidas por docentes,

em sua interao com seus alunos, e como essas discusses refletem as preocupaes, as

10

percepes, os movimentos, as estratgias individuais ou coletivas que surgem explicitadas nos

contedos e nos discursos em sala de aula, para enfrentar a modernidade lquida, compondo um

reflexo, ainda que parcial, dos desafios e anseios desses indivduos.

O instrumento determinado, para a coleta de informaes, so os questionrios

semiestruturados, aplicados junto aos docentes das disciplinas de Sociedade, Tecnologia e

Inovao, Sociologia das Organizaes e Comportamento Organizacional, do CST em Gesto

Empresarial, sendo que a anlise de contedo de suas respostas pretende verificar se as

temticas relativas modernidade lquida so objeto de debate e, em caso positivo, como tal

debate tem sido realizado.

11

2 A MODERNIDADE LQUIDA

Um dos maiores expoentes a tratar das mudanas recentes da vida individual e social foi

o socilogo Zygmunt Bauman. Falecido em janeiro de 2017, esse pensador exprimiu com

clareza de detalhes as turbulncias recentes que desafiam a sociedade na atualidade. Bauman

caracteriza esse perodo como a modernidade lquida; fazendo uso da metfora que compara a

atualidade aos lquidos, ele se refere s condies instveis, mutveis, fluidas e incertas dos

dias de hoje. Em sua obra originalmente intitulada Liquid Modernity, publicada em 2000, o

socilogo constri o panorama da modernidade lquida, contrapondo-o modernidade slida,

momento de instaurao de uma ordem encabeada pelos empreendedores e seus negcios.

Embora as importantes contribuies de outros autores tambm corroborem com as reflexes

desta pesquisa, a linha mestra condutora da dissertao estende-se sobre algumas das

publicaes pertencentes extensa obra desse socilogo.

Bauman situa a modernidade slida como o perodo que [...] emergiu do derretimento

radical dos grilhes e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade

individual de escolher e de agir (BAUMAN, 2001, p. 12) e que [...] levou progressiva

libertao da economia de seus tradicionais embaraos polticos, ticos e culturais

(BAUMAN, 2001, p. 11), sedimentando [...] uma nova ordem, definida principalmente em

termos econmicos (BAUMAN, 2001, p. 11).

Tomando-se assim a Revoluo Industrial como marco ilustrativo do perodo descrito

pelo socilogo, destaca-se uma das caractersticas marcantes da modernidade slida como a

crena no progresso; a ideia de uma continuidade de vida, a crena de que o progresso seria o

caminho natural a ser traado, alavancado pelo planejamento e pela execuo ordenada, que

consequentemente promoveria a ascenso de condies de vida inferiores s superiores, o

aperfeioamento, a estabilidade. Para Bauman (2001) a iluso moderna era a [...] crena de

que h um fim no caminho em que andamos, um telos alcanvel da mudana histrica, um

Estado de perfeio a ser atingido [...] algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem

conflitos [...] (BAUMAN, 2001, p. 41, grifo do autor).

Na modernidade slida, os elementos de planejamento, execuo e resultado esperado

formavam uma corrente de elos bem conectados, de forma que o progresso constitua uma trilha

previsvel a ser percorrida. Esse encadeamento de etapas de desenvolvimento, portanto,

pressupunha uma grande capacidade de interferncia na direo e na velocidade dos

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acontecimentos, o futuro era visto como os demais produtos nessa sociedade de produtores:

alguma coisa a ser pensada, projetada e acompanhada em seu processo de produo

(BAUMAN, 2001, p. 165), produo essa, que a partir de ento, conferiria vida cotidiana uma

cadncia prpria.

Os anos seguintes Revoluo Industrial testemunharam uma organizao produtiva

com base em fbricas e maquinrio pesado, sobre os quais fileiras de trabalhadores se

debruavam em movimentos repetitivos nas linhas de montagem. Conforme os anos

avanaram, assim como o desejo de lucrar a partir da produo, o ordenamento sobre o trabalho

aumentou, passando-se a controlar tempos e movimentos, num padro de execuo a que se

convencionou chamar de taylorista-fordista, em referncia Taylor e Ford, que

materializaram suas preocupaes com aumentos de produtividade e reduo de custos.

Antunes (2009) observa que [...] o binmio taylorismo/fordismo, [...] baseava-se na produo

em massa de mercadorias, que se estruturava a partir de uma produo mais homogeneizada e

enormemente verticalizada (ANTUNES, 2009, p. 38, grifos do autor) e destaca a intensa

diviso do trabalho em vigor: esse padro produtivo estruturou-se com base no trabalho

parcelar e fragmentado, na decomposio de tarefas [...] (ANTUNES, 2009, p. 39, grifos do

autor).

A modernidade slida, vivida no capitalismo pesado, seguia assim a ordem, os guias, as

instrues, a rotina, a hierarquia e a submisso, os tempos e movimentos repetitivos. Essa

normatividade refletia-se na organizao do Estado, claramente delimitado em naes,

fronteiras e ordenamentos jurdicos visando soberania, cujo objetivo maior era o progresso.

Para Bauman (2001), a modernidade pesada foi a era da conquista territorial [...] a riqueza e o

poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra [...] (BAUMAN, 2001,

p.145, [sic]). As naes se constituam por conjuntos de indivduos, unidos sob a bandeira do

projeto nacional, e regidos por aparatos jurdicos abrangentes e detalhados. Sob esse Estado

soberano, a relativa falta de liberdade individual compensava-se pela garantia de segurana

originada a partir do ente nacional. Bauman (2001) destaca da modernidade slida a

reconfortante sensao das certezas, da despreocupao em relao trajetria futura, que j

estava determinada para o indivduo:

Padres e rotinas impostos por presses sociais condensadas poupam essa agonia aos homens; graas monotonia e regularidade de modos de conduta recomendados, para os quais foram treinados e a que podem ser obrigados, os homens sabem como proceder na maior parte do tempo e raramente se encontram em situaes sem sinalizao, aquelas situaes em que as decises devem ser tomadas com a prpria responsabilidade e sem o conhecimento

13

tranquilizante das consequncias, fazendo com que cada movimento seja impregnado de riscos difceis de calcular (BAUMAN, 2001, p. 31).

Da citao acima, observa-se alguns dos aspectos acerca da modernidade slida, como

as caractersticas de previsibilidade, monotonia, da certeza acerca da conduta, originria do

treinamento e da coero, da solidariedade envolvida na distribuio de responsabilidade pelas

decises, entre indivduo e Estado, e por consequncia, da diminuio dos riscos existenciais.

Nesse contexto de f no progresso, o trabalho exercia o papel fundamental de

ferramenta, de instrumento mediador e responsvel por elevar e melhorar as condies de vida.

Imbudo dessa responsabilidade de promover o avano da humanidade, o trabalho revestia-se

de uma nobreza particular; `para frente era o destino, o trabalho era o veculo que os

conduziria [...] (BAUMAN, 2001, p. 165). As relaes entre capitalistas e trabalhadores eram

de dependncia mtua; geograficamente presos s localidades em que produziam e residiam,

destitudos de seus meios de subsistncia, os operrios dependiam de seu salrio para

sobreviver; capitalistas, por sua vez, dependiam do conjunto de trabalhadores, a fora de

trabalho, para produzir mercadorias em srie.

Especialmente para a classe trabalhadora, a durabilidade de seu emprego1 era uma

consequncia natural daquele arranjo produtivo. A natureza divisvel do trabalho assegurava ao

trabalhador o exerccio de uma pequena frao da atividade total, previsvel e rotineira. Antunes

(2009) observa que esse processo produtivo caracterizou-se [...] pela mescla de produo em

srie fordista com o cronmetro taylorista, alm da vigncia de uma separao ntida entre

elaborao e execuo (ANTUNES, 2009, p. 39, grifos do autor). A mobilidade entre as

funes da fbrica era limitada pelo nmero de operrios e pelo tempo de permanncia na

prtica das atividades. A carreira, com o tempo, ganhou um planejamento prprio, semelhana

do percurso de progresso a ser percorrido pela humanidade. Nesse ambiente rotineiro, a

segurana em relao ao emprego prevalecia, bem como a supresso da [...] dimenso

intelectual do trabalho operrio [...] (ANTUNES, 2009, p.39).

Conforme explicitado por Bauman (2001) e Antunes (2009), a modernidade slida,

poca do capitalismo pesado, orientada pelo projeto de uma sociedade melhor a ser alcanada

com o progresso, tinha como caractersticas a fixao territorial, a clara distino nos papis

1 Danile Linhart (2007) distingue trabalho de emprego dizendo o trabalho representa o exerccio concreto da atividade profissional e remete, ento, ao contedo das tarefas e s condies em que estas so executadas; o emprego indica principalmente as condies de insero no mercado de trabalho e o modo de vida ao qual essa insero d acesso (LINHART, 2007, p. 13-14). Embora Linhart confira um carter de maior permanncia e durabilidade ao emprego, aparentemente mais vinculado ao emprego como conhecido na modernidade slida, Bauman enfatiza o carter cada vez mais transitrio e breve da categoria emprego na modernidade lquida.

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exercidos por capitalistas e por trabalhadores organizados em classes, o Estado-nao forte e

slido, os planos executados em prazos longos, distendidos, a segurana, a previsibilidade, a

rotina e as certezas.

Do final da II Guerra Mundial em diante, a produo fabril de mercadorias se sedimenta

e se amplia como arranjo produtivo padro; indstrias nascentes do sculo XIX tornam-se

empresas nacionais, maiores e mais complexas, internacionalizando paulatinamente suas

operaes, conforme a disponibilidade financeira e os incentivos disponveis no estrangeiro.

Linhart (2007), sintetizando pesquisas francesas sobre a evoluo do trabalho, chama o perodo

compreendido entre 1945 e 1975 de Trinta Gloriosos (LINHART, 2007, p. 15), dcadas

caracterizadas por crescimento econmico intenso2. David Harvey (2011) comenta que,

inundadas com capital excedente, as empresas norte-americanas comearam a expatriar a

produo em meados da dcada de 1960 [...] (HARVEY, 2011, p. 21). Os controles e a

engenharia sobre a produo, pensados por Frederick W. Taylor, em Princpios de

Administrao Cientfica (TAYLOR, 1982), originalmente publicado em 1911, disseminam-se

e aperfeioam-se na administrao burocrtica, aps o final da II Guerra, com procedimentos

tcnicos, alavancando a produtividade.

Antunes (2009) observa, contudo, que [...] o capitalismo, a partir do incio dos anos 70,

comeou a dar sinais de um quadro crtico [...] (ANTUNES, 2009, p. 31), e elenca algumas

causas impeditivas de seu crescimento, como custos mais altos relacionados mo de obra, e

consequente diminuio da lucratividade, conjugados ao excesso de capacidade produtiva e ao

consumo relativamente diminudo. Diz Antunes (2009) que [...] a crise do fordismo e do

keynesianismo era expresso fenomnica de um quadro crtico mais complexo [...] uma crise

estrutural do capital, em que se destacava a tendncia decrescente da taxa de lucro [...]

(ANTUNES, 2009, p. 33, grifo do autor).

A busca por retornos ao capital investido em processos produtivos ou financeiros, ou de

qualquer outra natureza, mais atrativos em relao aqueles do paradigma taylorista-fordista,

revolucionou a forma de operao e produo vigentes. Esse socilogo do trabalho observa que

o capital deflagrou [...] transformaes no prprio processo produtivo, por meio da

constituio das formas de acumulao flexvel, do downsizing, das formas de gesto

organizacional [...] em que se destaca o `toyotismo [...] (ANTUNES, 2009, p. 49). Esse autor

2 Linhart (2007) diz que, sobre os Trinta Gloriosos (LINHART, 2007, p. 15), as reas da sociologia e da economia do trabalho encontraram campo frtil para florescimento. A autora tambm justifica a nfase dos estudos sobre [...] a atividade produtiva do operrio em cada setor da fbrica [...] (LINHART, 2007, p. 16) como consequncia das repercusses intensas daquela organizao de produo sobre a vida dos trabalhadores.

15

(2009) conceitua o padro de acumulao flexvel como aquele derivado de uma organizao

produtiva tecnologicamente avanada, que faz uso de tcnicas de gesto associadas a controles

computadorizados e que compe:

[...] uma estrutura produtiva mais flexvel, recorrendo frequentemente desconcentrao produtiva, s empresas terceirizadas, etc. [...] O trabalho polivalente, multifuncional, qualificado combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada entre diversas empresas [...] (ANTUNES, 2009, p. 54).

Para Harvey (2011), o problema de uma demanda insuficiente foi resolvido com a [...]

exportao do capital e o cultivo de novos mercados ao redor do mundo [...] (HARVEY, 2010,

p. 24), momento em que a ligao de mercados financeiros mundiais exerceu papel

determinante: [...] o capital-dinheiro lquido podia vaguear mais facilmente pelo mundo

procura de locais onde a taxa de retorno fosse maior [...] (HARVEY, 2011, p. 25). David

Harvey (2011) situa esse momento no Big Bang de 1986: a conexo imediata de sistemas de

negociao financeira entre Nova York e Londres.

Castells (2016) nos informa que [...] foi durante a Segunda Guerra Mundial e no

perodo seguinte que se deram as principais descobertas tecnolgicas em eletrnica: o primeiro

computador programvel e o transstor [...] (CASTELLS, 2016, p. 95). Assim, a partir das

dcadas de 1960 e 1970, inmeros avanos nas tecnologias computacionais acontecem, os

hardwares so aperfeioados em curtos perodos de tempo, sendo que os computadores

pessoais passam a integrar o portflio de consumo de massa. Manuel Castells (2016) observa

que o advento do microprocessador em 1971, com a capacidade de incluir um computador em

um chip, ps o mundo da eletrnica e, sem dvida, o prprio mundo, de pernas para o ar

(CASTELLS, 2016, p. 98). Na dcada de 1990, a criao e a expanso da World Wide Web, a

Internet, propiciam o acesso indito comunicao e informao em tempo real, conectando

pessoas e naes ilimitadamente no tempo e no espao, por correio eletrnico, sistemas de

conversa e transferncia de arquivos. Os acontecimentos passam a se refletir de imediato no

cotidiano mundial, proporcionando um vasto campo para as reflexes e as estratgias

empresariais, nacionais e individuais.

Os desenvolvimentos de hardwares e softwares acontecem a uma velocidade e

intensidade surpreendentes, impactando profundamente a produo de bens e servios. Nesses

novos tempos, Bauman (2001) observa que o poder pode se mover com a velocidade do sinal

eletrnico [...], o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial [...], eliminando os laos de

dependncia entre [...] supervisores e supervisados, capital e trabalho [...] (BAUMAN, 2001,

16

p. 19). Castells (2016) enfatiza os impactos da digitalizao na vida social, comentando que a

lgica do funcionamento de redes, cujo smbolo a internet, tornou-se aplicvel a todos os tipos

de atividades, a todos os contextos e a todos os locais que pudessem ser conectados [...]

(CASTELLS, 2016, p. 107).

De fato, a linearidade presente anteriormente na modernidade, pela qual a racionalidade

ambicionava promover a sucesso de planejamento, execuo e resultado passa a ser substituda

pela simultaneidade de atividades e de acelerao desses processos. Na modernidade slida,

destacada pelo uso do vapor e do motor exploso, [...] o princpio operativo da civilizao

moderna [...] se centrava no desenho de realizar mais rapidamente as tarefas [...] (BAUMAN,

2001, p. 143), combinado ampliao da apropriao territorial, seja em Estados-nao,

cidades ou fbricas. Ao controle do tempo associava-se a grandeza de reas, edifcios,

territrios, nos quais durabilidade e imobilidade traduziam a fortaleza de projetos.

O socilogo alerta que tudo isso mudou, no entanto, com o advento do capitalismo de

software e da modernidade leve (BAUMAN, 2001, p. 148, grifo do autor). Seja pela

evoluo dos recursos fsicos envolvidos na tecnologia computacional, seja pela proliferao e

desenvolvimento de softwares para o atendimento de quaisquer demandas empresariais ou

individuais, a informao passa a viajar cada vez mais rapidamente, encurtando distncias,

antes muito custosas de serem percorridas. Essa ausncia de necessidade de deslocamentos

fsicos, pelo menos no tocante ao trfego de informaes, potencializa e intensifica a troca

informacional, tornando-a praticamente instantnea. Bauman (2001) observa que as pessoas

que se movem e que agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentneo do

movimento, so as pessoas que agora mandam (BAUMAN, 2001, p. 152). O autor enfatiza

que a leveza, a mobilidade e a instantaneidade tornaram-se cruciais na modernidade lquida,

constituindo condies essenciais sobrevivncia nesses tempos acelerados atuais. tambm

explcito ao dizer que so essas caractersticas a fonte das incertezas individuais: o capital pode

viajar rpido e leve, e sua leveza e mobilidade se tornaram as fontes mais importantes de

incerteza para todo o resto (BAUMAN, 2001, p. 154).

A velocidade das informaes traduz-se tambm no imediatismo da experincia.

Quando no h mais motivos para o planejamento em longo prazo, dado que h uma

imprevisibilidade enorme e um nmero elevado de intercorrncias em determinada trajetria,

resta viver o curtssimo prazo, usufruir do momento presente, extraindo dele o mximo possvel,

antevendo apenas a mudana vindoura, ainda que de natureza completamente desconhecida.

Para Bauman (2009) `lquido-moderna uma sociedade em que as condies sob as quais

agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessrio para a

17

consolidao, em hbitos e rotinas, de formas de agir (BAUMAN, 2009, p. 7). Nota-se, a partir

dessa afirmao, que Bauman enfatiza tanto a velocidade de mudanas no ambiente externo ao

indivduo, como ressalta tambm a falta de um perodo necessrio ocorrncia de um processo

de acomodao, isto , mal o indivduo toma cincia das alteraes que o afetam, e tenta agir

sobre o exterior para se acomodar, atirado ao epicentro de um novo terremoto, que lhe retira

as bases onde pretendia se fixar. Em suma: a vida lquida uma vida precria, vivida em

condies de incerteza constante (BAUMAN, 2009, p. 8).

Ulrick Beck (2011), a quem Zygmunt Bauman se refere com frequncia em sua obra,

defende que a evoluo da modernidade industrial produziu riscos crescentes sociedade,

passando de efeitos colaterais no to relevantes a fatores decisivos existncia individual e

social. Em suas palavras o acmulo de poder do progresso tecnolgico-econmico cada

vez mais ofuscado pela produo de riscos (BECK, 2011, p. 15-16) e ainda estabelece a relao

entre a exposio aos riscos e a renda, dizendo que a [...] interpenetrao [...] entre a [...]

produo de riqueza e produo de risco [...] faz surgir ameaas globais supranacionais e

independentes de classe (BECK, 2011, p. 15, grifos do autor). Bauman (2009), por sua vez,

enfatiza as graves consequncias que podem vir a ser enfrentadas pelos indivduos, caso se

exponham a riscos que ultrapassem sua capacidade de defesa: os suficientemente impetuosos

ou desesperados a ponto de tentar desafiar as probabilidades contrrias se arriscam a enfrentar

a sorte dos excludos e rejeitados [...] (BAUMAN, 2009, p. 13). Incerteza para Bauman e risco

para Beck so assim faces de uma mesma moeda, da condio lquido-moderna de existncia.

Nesse cenrio em que a incerteza e as mudanas so o que h para se esperar, tudo se

torna obsoleto da noite para o dia, sejam atividades, conhecimentos, relaes ou fatos. Viver

em um perodo em que no h tempo suficiente para interpretar os sinais emitidos pelo exterior,

alm do fato de que h sinais emitidos por uma infinidade de fontes, torna-se um desafio

extremo. As condies de ao e as estratgias de reao envelhecem rapidamente e se tornam

obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprend-las efetivamente (BAUMAN, 2009,

p. 7). Pierre Lvy (2011) refora a rpida obsolescncia do estoque de informaes e, portanto,

de referncia e de repertrio individual, no cenrio da vida digitalizada, ao informar que a

partir de um estoque de dados iniciais [...] um programa pode calcular um nmero indefinido

de diferentes manifestaes visveis, audveis e tangveis [...] (LVY, 2011, p. 41).

O carter precrio da nova condio humana representado, nas obras Modernidade

Lquida (2001) e Vida Lquida (2009), de Bauman, na pessoa de Bill Gates, que preferia [...]

colocar-se numa rede de possibilidades a paralisar-se num trabalho particular (BAUMAN,

2001, p. 157). Emprestando a descrio de Bill Gates da obra de Richard Sennett, A Corroso

18

do Carter (2015), diz Bauman que o executivo [...] marcado pela disposio de destruir o

que j fez, tolerncia fragmentao, confiana de viver na desordem, florescimento em

meio ao deslocamento [...] (BAUMAN, 2009, p. 11).

A obra do socilogo americano Richard Sennett, A Corroso do Carter (2015), traz

luz as preocupaes mais ntimas de vrias personagens conhecidas pelo autor ao longo de

alguns anos, em sua interpretao de relatos de fracassos e de dificuldades profissionais,

enfrentados nas condies moderno-lquidas. O trao comum das personagens de Sennett a

perplexidade diante de uma realidade avassaladora e transformadora das condies de trabalho

at ento conhecidas, que costumavam fornecer o eixo central, o suporte, a narrativa

organizadora e justificativa de uma vida. Observa Sennett (2015) que:

O sinal mais tangvel dessa mudana talvez seja o lema No h longo prazo. No trabalho, a carreira tradicional [...] est fenecendo; e tambm a utilizao de um nico conjunto de qualificaes no decorrer de uma vida de trabalho. Hoje, um jovem americano com pelo menos dois anos de faculdade pode esperar mudar de emprego pelo menos onze vezes no curso do trabalho, e trocar sua aptido bsica pelo menos outras trs durante os quarenta anos de trabalho. (SENNETT, 2015, p. 21-22).

Sennett, assim como Bauman e Beck, tambm se preocupa com os riscos crescentes. O

socilogo destaca que, nas organizaes atuais de trabalho, em que os funcionrios so

convocados a trabalhar em times, a autoridade anteriormente existente transfigurada em

liderana, o que por sua vez, facilita a transferncia de responsabilidades a cada participante,

tanto pelo resultado coletivo como pelo resultado individual. Esse novo arranjo produtivo em

rede, em que as movimentaes e as experincias adquiridas contam muito, enfraquece os laos

de compromisso entre contratantes e contratados, favorecendo mudanas constantes de pessoal;

o carter do trabalho passa a ser transitrio, incerto; incerteza essa que contamina a organizao

familiar, vista de mudanas frequentes de local de residncia, estudo, e assim por diante. Diz

Sennett (2015) que permanecer num estado contnuo de vulnerabilidade a proposta que [...]

os autores de manuais de negcios fazem quando celebram o risco dirio na empresa flexvel

(SENNETT, 2015, p. 97); e diz ainda que a moderna cultura do risco peculiar naquilo que

no se mexer tomado como sinal de fracasso [...] (SENNETT, 2015, p. 102).

Bauman e Sennett compartilham a centralidade da natureza cada vez mais incerta da

atividade laboral, da insegurana acerca das condies objetivas da vida material, do

desencantamento em relao a qualquer planejamento, da exigncia crescente de flexibilidade

e de adaptao, do desenraizamento e do descompasso de velocidade entre ao e reao.

velocidade e mobilidade extrema das informaes, na modernidade lquida,

19

somaram-se as evolues e aperfeioamentos de trnsito de pessoas e de mercadorias. Estando

limitados unicamente em razo de custos de deslocamentos, e de poucas exigncias

internacionais, os indivduos dispem atualmente de hubs, pontos de conexo a intervalos cada

vez menores, permitindo-lhes inclusive inmeras variaes de trajeto, conforme se faam

necessrias. Tal encurtamento de distncias promove um trnsito intenso intraterritorial, mas

seu impacto maior recai sobre a natureza crescente de extraterritorialidade, vinculada s

atividades de trabalho. Bauman (2001) ressalta que a velocidade de movimento se tornou um

fator importante, talvez o principal, da estratificao social e da hierarquia da dominao

(BAUMAN, 2001, p. 190). Antunes (2009) tambm nota que assim como o capital um

sistema global, o mundo do trabalho e seus desafios so tambm cada vez mais transnacionais

[...] e destaca as incertezas sobre as decises de investimentos produtivos comentando que

novas regies industriais emergem e muitas desaparecem [...] (ANTUNES, 2009, p. 115).

No sculo XXI, atividades rotineiras passam a ser absorvidas por rotinas

computacionais, e com elas, postos de trabalho antes seguros e durveis no sculo XX, so

extintos. Pierre Lvy (2011) comenta os efeitos do processo de virtualizao recente sobre o

exerccio profissional, em sua obra O que Virtual:

Hoje [...] as pessoas no apenas so levadas a mudar vrias vezes de profisso em sua vida, como tambm no interior da mesma profisso, os conhecimentos tm um ciclo de renovao cada vez mais curto (trs anos, ou at menos, em informtica, por exemplo). Tornou-se difcil designar as competncias de base num domnio. (LVY, 2011, p.54).

O ingresso de tecnologias digitais, utilizando dados gerados sistematicamente por

computadores, e a crescente insero de programas de interpretao desses dados para gerar

novas atividades no interior das fbricas, bem como para proporcionar relatrios de

acompanhamento e de desvios na produo passa a compor sistemas flexveis de produo. As

novas tecnologias permitem a transformao das linhas de montagem tpicas da grande empresa

em unidades de produo de fcil programao que podem atender s variaes do mercado

[...] (CASTELLS, 2016, p. 220).

Operrios so substitudos por robs, gerentes so substitudos por sistemas de

gerenciamento, a logstica passa a ser mecanizada, em pouco tempo, o prprio transporte das

mercadorias no interior e no exterior da fbrica tambm o ser. Linhart (2007) afirma que [...]

pela primeira vez o trabalho est em condies de ser relativizado, graas aos progressos

tecnolgicos que, ao permitirem enorme economia de mo-de-obra, esto na origem de um

ndice de desemprego cada vez maior (LINHART, 2007, p. 50). Embora a posio de Linhart,

20

acerca do impacto negativo da tecnologia sobre o emprego, seja discutvel sob o ponto de vista

de alguns autores, o recente relatrio da Organizao Internacional do Trabalho, World

Employment and Social Outlook 2015: the changing nature of jobs (OIT, 2015), aponta para

mudanas significativas nos padres de emprego nos ltimos anos, observadas em 180 pases,

em etapas de desenvolvimento diversas. O relatrio destaca que menos de um quarto dos

empregos globais so de natureza estvel e alerta para a reduo de ganhos e provvel impacto

negativo a ser gerado sobre a demanda agregada por bens e servios. Verifica a tendncia

decrescente, tanto em pases desenvolvidos como em desenvolvimento, do trabalho contratado

de carter permanente, aquele que remunera melhor o trabalhador, contra o aumento de

contrataes de natureza temporria, de trabalho parcial, de horas trabalhadas fora do perodo

regular e do trabalho autnomo, todas categorias que pior remuneram. O documento da OIT,

de 2015, expe os impactos de inovaes tecnolgicas e de sua adoo sobre os empregos da

seguinte forma:

Em dcadas recentes, a inovao tecnolgica, e particularmente a automao avanada tm substitudo cada vez mais os empregos altamente qualificados e a realizao de tarefas complexas, processo esse que apresenta poucos sinais de arrefecimento. Nos ltimos anos, por exemplo, a tecnologia digital erodiu visivelmente os empregos nos setores manufatureiros e no varejo, tendo tambm alto impacto sobre servios altamente qualificados, nas esferas financeira, mdica e legal. (OIT, 2015, p. 24, traduo minha).

A digitalizao de informaes, contudo, no se restringiu s questes produtivas

materiais, mas rapidamente inundou os pases com fluxo intenso de capitais; um de seus

impactos mais profundos foi a interligao de bolsas de investimento internacionais e bancos,

favorecendo a movimentao de recursos financeiros para naes onde possam obter os maiores

retornos sobre o investimento. Essa velocidade e mobilidade de capitais, conhecida como

financeirizao dos mercados, foram intensificadas com a publicao de balanos e anlises de

desempenho das indstrias, relatrios e informaes imediatas sobre as condies bsicas de

investimento nos pases, a exemplo de exigncias legais e tributrias, disponibilidade de mo-

de-obra e infraestrutura, riscos polticos e civis, que proporcionam aos investidores uma viso

estratgica e abrangente sobre quais seriam suas prximas iniciativas. O Relatrio Anual da

BM&F BOVESPA, de 2015, sobre o mercado de aes e derivativos de aes, informa que

com relao participao dos grupos de investidores [...], os no residentes permaneceram

como os mais representativos, com 52,8% do volume total negociado, seguidos dos

institucionais locais, com 27,2% (BM&F BOVESPA, 2015, p. 36). Como jogadores de xadrez

experientes, acompanham a movimentao das peas distantes do tabuleiro, e usufruindo de

21

uma viso completa e precisa, traam estratgias de defesa e de ataque em relao a seus

concorrentes, antes mesmo de sua movimentao. Sobre isso, diz esse mesmo Relatrio: Os

investimentos feitos em estrutura tecnolgica permitem que o risco dos clientes comece a ser

monitorado antes mesmo que os negcios sejam realizados, na etapa de pr-negociao [...]

(BM&F BOVESPA, 2015, p. 5).

No se restringindo s empresas, entretanto, a digitalizao passou a ser parte integrante

da vida individual. A crescente incerteza sobre onde investir, em que nao ou local produzir

bens e servios, associada insero crescente das tecnologias na vida privada, inundao de

informaes, notcias, bancos de dados, aumentaram o sentimento de vulnerabilidade sobre o

futuro. O indivduo, atropelado por uma avalanche de informaes, passou a sentir-se mais e

mais impotente diante dos acontecimentos e do volume de informaes disponveis na Internet.

Ameaas a sua subsistncia surgem por toda a parte, seja pelo advento de novas tecnologias

suprimindo postos de trabalho, pelo fechamento e abertura de empresas e negcios, por fraudes

em balanos e fundos previdencirios, mudanas de poltica nacional e internacional.

O indivduo do sculo XXI, inundado e arrastado por uma corrente de gua que flui por

caminhos tortuosos, difere do homem do sculo XX, ao observar o comportamento errtico da

realidade, pelo qual o planejamento se desvanece rapidamente, tal qual fumaa arrastada pelo

vento. Ulrich Beck comenta que se no sculo XIX foram os privilgios estamentais e as

imagens religiosas do mundo que passaram por um desencantamento, hoje o entendimento

cientfico e tecnolgico da sociedade industrial clssica que passa pelo mesmo processo [...]

(BECK, 2011, p. 13). Se antes havia um projeto coletivo para o avano da humanidade, hoje

restam indivduos ilhados, cuja ao pouco capaz de interferir em sua prpria condio.

Na modernidade lquida, impera a desiluso com o projeto de desenvolvimento global,

nacional e individual. Enquanto as condies da modernidade slida possibilitavam a

previsibilidade e o planejamento de longo prazo para a construo de algo, as condies da

modernidade lquida so imprevisveis, passveis de mudanas tanto abruptas quanto profundas,

causando instabilidades que impedem e alteram as menores trajetrias de curto prazo. Bauman

observa que todos aprendemos s nossas prprias custas que mesmo os planos mais cuidadosos

e elaborados tm a desagradvel tendncia de frustrar-se [...] (BAUMAN, 2001, p. 171),

complementando que [...] nossos ingentes esforos de por ordem nas coisas frequentemente

resultam em mais caos, desordem e confuso [...] (BAUMAN, 2001, p. 171). Sennett taxativo

ao elencar as qualidades necessrias ao enfrentamento dos novos tempos da acumulao

flexvel:

22

Um eu malevel, uma colagem de fragmentos em incessante vir a ser, sempre aberto a novas experincias essas so as condies adequadas experincia de trabalho de curto prazo, a instituies flexveis e ao constante correr riscos (SENNETT, 2015, p. 159).

Assim, se na modernidade slida, o trabalho tinha o papel central de ser o motor do

desenvolvimento, e tinha importncia garantida pelo fornecimento dos recursos para

subsistirem as grandes massas operrias, dotadas de sindicatos que as protegessem, na

modernidade lquida, a transmutao do papel do trabalho o leva a ganhar relevncia quando

eleva a produtividade, quando aumenta a lucratividade, quando suprime a atividade rotineira.

A presso para o constante aperfeioamento faz com que trabalhadores compitam entre si para

ocupar as poucas vagas remanescentes; sem organizao coletiva, cada qual tenta cuidar do que

restou de um frgil horizonte, sujeitando-se com frequncia a trabalhos de prazos cada vez mais

curtos, quando no totalmente precrios e temporrios.

Bauman destaca que, na modernidade lquida, no mundo labirntico, os trabalhos

humanos se dividem em episdios [...] (BAUMAN, 2001, p. 174), considerando a

imprevisibilidade e a incerteza que passam a incidir sobre eles, bem como seu tempo cada vez

mais curto, notando que cada obstculo deve ser negociado quando chegar a sua vez [...]

(BAUMAN, 2001, p. 175), e que [...] o trabalho [...] [...] mais o resultado de agarrar a

oportunidade que o produto de planejamento e projeto (BAUMAN, 2001, p. 175).

O fio condutor explorado por Zygmunt Bauman sobre a modernidade lquida, conectado

s contribuies dos autores selecionados para esta fundamentao terica, fornece um quadro

de vulnerabilidade enfrentado por qualquer indivduo, em qualquer lugar do globo terrestre. O

fato de a economia haver se tornado verdadeiramente global, ressaltando-se que ocorre de

formas extremamente desiguais em funo da renda disponvel, gera efeitos polticos e

econmicos que incidem sobre cada famlia e cada indivduo. Os autores observam que essas

foras supra e transnacionais promovem riscos de muitas naturezas, ambientais, financeiros,

polticos, individuais, apenas para dar alguns exemplos. As movimentaes de capitais, sempre

em busca de maiores retornos aos acionistas, alteram dramaticamente as condies e locais de

produo e de emprego, o que afeta as formas de subsistncia de muitas famlias, no se

restringindo a redues em uma cesta bsica de consumo, no caso de famlias ou indivduos de

renda inferior, mas arrochando as condies de vida da classe mdia, que atualmente sofre uma

diminuio de importncia relativa em vrias economias ao redor do globo.

O ambiente de investimentos instveis, combinado flexibilizao das formas de

produo, em novos arranjos produtivos, gerenciados de maneiras diferentes, e ainda

intensificado pelo desenvolvimento e implementao de tecnologias sofisticadas, em ritmo

23

mais e mais acelerado, terminam por provocar exigncias extremas sobre os trabalhadores, que

devem ser capazes de exercer um leque diferente e nem sempre correlato de atividades, de

aprender sobre novos equipamentos, processos, e habilidades pessoais para o trabalho em

grupo, devem estar dispostos a horrios e locais flexveis, devem sugerir alteraes, melhorias

e inovaes que gerem aumentos de produtividade e lucratividade, devem bater metas a cada

dia mais ambiciosas, enfim, devem ser flexveis, plsticos, resilientes e incansveis.

vulnerabilidade, aos riscos, s exigncias de flexibilidade e produtividade sempre

crescentes precisam ainda, para que se trace um quadro mais fiel dos desafios atuais, serem

somados processos de acelerao tanto externa quanto interna. Acelerao externa que se reflete

na obsolescncia e aparecimento de novas tecnologias e produtos, nas notcias instantneas,

novos modismos, trnsito intenso de mercadorias e fluxos migratrios mais intensos. A

acelerao externa converte-se em acelerao interna, essa necessidade de estar sempre em

movimento, sempre conectado, sempre transformado por novos acontecimentos, contatos ou

informaes, alm da necessidade de se fazer visvel, de promover-se a si mesmo, sob o risco

de cair no obscurantismo.

Nos ltimos vinte anos, o desenvolvimento tecnolgico intensificou-se, seu ritmo de

alterao e de melhoria sofreu uma acelerao, a produo robotizada uma realidade em

muitas operaes produtivas e tambm na prestao de servios. reas que costumavam

empregar indivduos extensivamente, como as linhas produtivas de montadoras de automveis,

centrais de atendimento telefnico a clientes, depsitos logsticos para armazenamento e

movimentao de mercadorias e mais recentemente motoristas de transportes comerciais esto

sendo rapidamente substitudos por robs ou programas computadorizados. A inteligncia

artificial ganha terreno, o big data, a anlise e o tratamento estatstico de um nmero gigantesco

de dados ameaa as atividades feitas rotineiramente por profissionais das reas de diagnsticos

mdicos, pareceres jurdicos, contabilidade, auditoria, marketing, determinao de perfis

pessoais em recursos humanos, dentre outras funes profissionais conhecidas do paradigma

taylorista-fordista.

Embora esteja claro que atualmente coexistam formas de trabalho anteriormente

existentes com as novas atividades da revoluo digital, a tendncia rumo sofisticao de

anlises e inteligncia computacionais parece um caminho sem volta. O contingente de pessoas

removido das empresas, segundo as estatsticas da OIT (2015), migra para atividades

temporrias, precrias, sem vnculo empregatcio, de natureza autnoma ou em pequenos

empreendimentos, quando no engrossa o ndice de desemprego. Mesmo em pases

desenvolvidos, com baixo desemprego, jovens que se formam em cursos superiores, para os

24

quais desembolsaram quantias considerveis, num endividamento comprometedor de muitos

anos de trabalho vindouro, encontram dificuldades para se inserir no mercado de trabalho, em

razo de sua especializao. Em casos mais graves, como na Frana ou na Espanha, os jovens

simplesmente no conseguem se inserir em emprego algum.

Diante dessa realidade brutal, torna-se evidente que a qualidade da formao e da

preparao de qualquer pessoa para o enfrentamento de condies agudas deva ser a melhor

possvel. Em verdade, sob quaisquer circunstncias, sempre deveu e dever ser a melhor

possvel, independentemente das condies existentes ou inexistentes. Deter um ferramental e

instrumental, alm de mapas de navegao, a capacidade de ler as variveis, enfim, deter o

arcabouo necessrio anlise das condies, inferncia das mudanas possveis, anlise

dos recursos disponveis e criao de dispositivos capazes de suprir necessidades, o estudo de

rotas e trajetrias alternativas, a considerao e ponderao de riscos e a constante releitura e

ajuste de todas essas variveis combinadas, podem auxiliar a superar o que Sennett (2015)

colocou como capacidade exclusiva de anlise de acontecimentos j ocorridos, quando em

verdade, o exerccio de futurologia e de antecipao vem a se tornar um requisito essencial

sobrevivncia na modernidade lquida. Sobre essa falta de recursos de anlise do futuro possvel

diz Sennett que [...] esses homens [...] no encontraram meios de ir em frente. No presente

flexvel e fragmentado, talvez parea possvel criar narrativas apenas sobre o que foi, e no

mais narrativas previsivas sobre o que ser (SENNETT, 2015, p. 161).

Nesse ambiente de incerteza, a educao como ferramenta que leva ao exerccio

profissional, precisa, segundo Bauman, ser de natureza generalista, uma vez que a vida lquida

uma sucesso de reincios [...] (BAUMAN, 2009, p. 8).

25

3 A EDUCAO NO CONTEXTO DA MODERNIDADE LQUIDA

Zygmunt Bauman, em artigo de 2003, intitulado Educational Challenges of the Liquid

Modern Era, explora a questo das mudanas externas sobre o aprendizado. Ao apresentar os

experimentos laboratoriais com animais conduzidos por Pavlov, resultante na teoria dos

reflexos condicionados, e por psiclogos americanos, a exemplo de Skinner, culminante na

teoria do reforo, Bauman destaca que, em ambos os experimentos, as condies externas aos

animais eram mantidas constantes. No experimento de Pavlov, um sino era tocado antes de os

ces serem alimentados. Os ces, antes de receberem a rao, comeavam a salivar, o que

passou a acontecer de forma antecipada, a cada vez que ouviam o sino, mesmo que no

houvessem tido contato visual ou olfativo com a rao. J no experimento comportamental de

Skinner, ratos colocados em um labirinto, expostos a um processo de tentativas e erros

sucessivos, aprendiam que caminho tomar, a fim de alcanar o alimento depositado em uma

das cmaras existentes. O socilogo polons destaca que, nos dois processos de aprendizado

produzidos em laboratrio, partia-se do [...] axioma do mundo como quadro referencial

imutvel para o aprendizado [...] (BAUMAN, 2003, p. 17, traduo minha); um mundo

imvel, regrado, e previsvel, que deveria ser descoberto e mapeado. Diz o socilogo que:

O mundo e suas regras pareciam durveis, a um ritmo mais duradouro do que o de nossa prpria vida mortal e limitada, o que nos fazia acreditar que o que quer que aprendssemos sobre o mundo teria uma boa chance de nos servir para o resto da vida. Espervamos que nunca chegaria o momento em que o aprendizado pareceria, em retrospecto, uma perda de tempo, uma receita para o fracasso em responder adequadamente aos desafios da vida. (BAUMAN, 2003, p. 18, traduo minha).

Em consonncia com a crena de que, uma vez que o funcionamento e a organizao do

mundo tivessem sido compreendidos, haveria um arcabouo de conhecimentos teis a serem

aplicados pela humanidade, no caso de haver problemas que retirassem o cotidiano desse

comportamento previsvel, semelhana de modelos estatsticos que traduzem

comportamentos mdios e de desvio em relao mdia, Bauman (2003) observa o papel da

educao na modernidade slida: a educao [...] deveria ser uma atividade, cujo objetivo era

o de entregar um produto que, como todos os demais bens, poderia e deveria ser possudo para

sempre (BAUMAN, 2003, p. 19, traduo minha). Assim, o valor da durabilidade, to prezado

na modernidade slida, fosse o dos bens, da linhagem familiar, dos negcios, aplicava-se

26

tambm ao conhecimento. O bom conhecimento, a boa educao deveria durar, resistir ao

tempo, apresentar regras, leis explicativas e imutveis de fenmenos, de conduta e de vida.

O socilogo tambm observa que a educao, concebida como produto, apresentava a

vantagem de que, uma vez que a cincia houvesse avanado o suficiente para cobrir o maior

espectro possvel de fenmenos e de leis, uma vez que esse conjunto de conhecimentos

houvesse sido conquistado, bastaria ento, para promover o desenvolvimento global, transmitir

todo esse arcabouo ao restante da populao mundial, por meio da educao. Bauman (2003)

ento prossegue elucidando que, quanto maior o avano da cincia, maior tambm a sensao

de ignorncia e de lacunas de entendimento; o plano de racionalizar todos os cantos obscuros

do universo desfaz-se a cada nova descoberta e o prprio conjunto de dados e de explicaes

no para de aumentar, de forma que os indivduos se tornam, paradoxalmente, cada vez mais

ignorantes.

Acrescente-se ignorncia crescente, o fracasso global em promover a igualdade e a

prosperidade, e se tem a receita para o descrdito do acmulo de conhecimentos. A educao,

tanto quanto qualquer outro produto passvel de consumo, torna-se descartvel, vlida somente

enquanto no houver nova mudana. O que se esfacela, na modernidade lquida, a crena de

que o tempo dedicado, o acmulo de conhecimentos, enfim, o investimento realizado no estudo,

por meio da educao, retornar ao indivduo na forma de qualidade de vida melhor ou de maior

bem-estar. Inseridos em um mundo miditico, onde so valorizadas as experincias, as

sensaes, os estmulos, mais do que a posse de bens, a concentrao e a dedicao temporal

da educao do sculo XX contrastam com a efemeridade das experincias do sculo XXI3. O

conhecido discurso paternal, como destacado por Bauman (2003) de que [...] o que voc

aprendeu, nunca ningum retirar de voc [...] (BAUMAN, 2003, p. 20, traduo minha)

envelhece e se decompe na contemporaneidade; a educao deixa de ser atrativa, ao menos no

que tange motivao antiga de que, uma vez educado, o indivduo passaria a acessar as

condies de uma vida melhor do que aquelas vividas anteriormente.

De fato, a lgica do investimento/retorno, do custo/benefcio tambm se desmonta em

um ambiente global, de imprevisibilidade e de riscos crescentes. Conforme os indivduos esto

expostos a variveis cada vez mais distantes de sua existncia local, em outras palavras, so

afetados por polticas localizadas em pases distantes, guerras e fluxos migratrios a milhares

de quilmetros, por informaes e movimentos produzidos do outro lado do planeta, tanto mais

os modelos explicativos de uma relao direta entre investimento e retorno, ou de uma relao

3 Christophe Trcke aborda a crescente necessidade social de excitao e de renovao de sensaes e de experincias em Sociedade Excitada: filosofia da sensao (2010).

27

inversa entre custo e benefcio, tornam-se incuos. A capacidade de gerar cenrios, de

considerar variveis, vai se tornando campo de estudo de experts, de inteligncia artificial. Para

um grande nmero de pessoas, mirar o universo de informaes disponveis na web, com vistas

a incrementar seu arcabouo de conhecimentos, torna-se uma experincia confusa e frustrante,

tanto quanto olhar para fora de si, observar a intensa concentrao de recursos financeiros e as

barreiras entrada, em inmeros campos de atuao profissional e, apesar de tudo isso, almejar

a melhoria de suas condies de vida45. A educao moldada no sculo XX, cujo lastro se

encontrava na perspectiva de uma vida melhor, perde brilho e atratividade, em tempos de

trabalho temporrio, parcial, precrio e de desemprego avassalador.

Confrontados com grandes restries, tanto de compreender, como de absorver um

grande volume de informaes e de conhecimentos, e impotentes diante de alteraes globais

que lhes trazem impactos locais, alguns indivduos tomam a iniciativa de ingressar em grupos

de interesse comuns, alavancados pelos encontros virtuais possibilitados pela internet. Pipocam

as notcias sobre grupos de escambo, de aproveitamento de mercadorias usadas, de economia

solidria, de crowd-funding, de fruns de discusso, de espaos compartilhados. Para Michel

Maffesoli, socilogo francs e contemporneo de Zygmunt Bauman, autor da obra A ordem das

coisas: pensar a ps-modernidade (2016), surge uma contracultura, a do pensamento

pluriforme, [...] o questionamento adogmtico, o do conhecimento comum, que sabe aliar a

reflexo e a experincia, o bom senso, por essncia plural, e a razo aberta (MAFFESOLI,

2016, p. 51). Para o socilogo, a ligao visceral do pensamento realidade deixa de pensar

sobre o mundo como deveria ser, sobre o mundo propalado pelo ideal de progresso, para

entender o mundo como ele . Na viso desse socilogo, o conhecimento assim, necessita

desmontar, questionar os conceitos, os modelos, tudo aquilo que a cincia sedimentou,

congelou, imobilizou:

4 Joseph E. Stiglitz em Globalizao: como dar certo (2007) observa: A comisso (Comisso Mundial sobre as Dimenses Sociais da Globalizao) examinou 73 pases em todo o mundo. Suas concluses foram chocantes. Em todas as regies do mundo, com exceo da sia Meridional, dos Estados Unidos e da Unio Europia (U.E.) as taxas de desemprego aumentaram entre 1990 e 2002. Quando o relatrio foi publicado, o desemprego global havia alcanado um novo recorde de 185,9 milhes de pessoas. A comisso tambm concluiu que 59% da populao mundial vivia em pases com desigualdade crescente, com apenas 5% em pases com desigualdade em declnio (STIGLITZ, 2007, p. 68). 5 Guy Standing em O Precariado: a nova classe perigosa (2015) diz que o precariado consiste em pessoas que tm relaes de confiana mnima com o capital e o Estado [...] (STANDING, 2015, p. 25) e complementa afirmando que na Itlia, o termo precariato tem sido empregado para significar mais do que apenas pessoas cumprindo tarefas casuais e com baixas rendas, indicando a existncia precria como um estado de vida normal [...]. Na Alemanha, o termo tem sido usado para descrever no apenas trabalhadores temporrios, mas tambm desempregados que no tm esperana de integrao social. [...] No Japo, o termo tem sido usado como sinnimo de trabalhador pobre[...] (STANDING, 2015, p. 26-27).

28

porque, de facto, existe uma tal dialogia entre o um e o mltiplo, porque est em ao um policulturismo galopante, porque o multilateralismo, em todos os domnios, renasce em formas serenas ou exacerbadas, porque o mosaico ps-moderno se torna a expresso de um Real que salta aos olhos e coerente, ao mesmo tempo, em funo de tudo isso que necessrio colocar em jogo, alm de nossas disciplinas acadmicas algo estagnadas e infecundas, uma nova episteme de acordo com a nova atmosfera mental no momento (MAFFESOLI, 2016, p. 55-56).

Michel Maffesoli critica as escolhas fechadas, o finalismo nico, questionando at

mesmo o [...] projeto poltico, econmico, educativo e outras bobagens da mesma espcie que

consideram que no h sentido seno se h sentido (MAFFESOLI, 2016, p. 59, grifos do

autor). O socilogo descreve a sociedade atual como aquela das tribos, que busca o que ldico,

mtico, prazeroso, que contm uma [...] atitude de esprito feita de ironia e de independncia

[...], e que [...] relativiza o saber absoluto e algo abstrato, em proveito de um conhecimento

que privilegia as singularidades concretas (MAFFESOLI, 2016, p. 57). Para o autor, as

relaes entre as tribos e os territrios passam a ser orgnicas, multilaterais, as redes sociais,

os sites comunitrios favorecem essa interao e suscitam uma contaminao de que se comea,

apenas, a medir os efeitos, promovendo [...] um verdadeiro enraizamento dinmico

(MAFFESOLI, 2016, p. 78). Em sua viso, essa leveza, transitoriedade e instabilidade da vida

lquida so contrapostas s iniciativas de ligao em rede, de enraizamento dinmico, de

tribalismo nmade. Maffesoli ainda afirma, sobre tais mudanas, que as jovens geraes no

entendem mais perder a vida para ganha-la. [...] Os fruns de discusso filosfica e outros

sites comunitrios mostram que a autonomia da vida do esprito uma realidade incontornvel

(MAFFESOLI, 2016, p. 119). O socilogo francs afirma:

Em tal mudana de paradigma, o saber no pode mais impor-se a priori, mas participa de um processo de acompanhamento a posteriori. Na noosfera wiki, a esfera de um esprito coletivo, o saber no mais tarefa individual, mas, sim, coisa coletiva. Alm disso, ele no eterno, e no pode ser dogmtico. Por isso, ele se transforma em questionamento, surpresa (MAFFESOLI, 2016, p. 197, grifos do autor).

A percepo acerca de consensos e dvidas debatidos coletivamente tambm central

na obra de Pierre Lvy, A Inteligncia Coletiva: por uma antropologia do ciberespao (2015).

Definindo o saber para alm das fronteiras do conhecimento cientfico, diz o filsofo que cada

vez que o ser humano organiza e reorganiza sua relao consigo mesmo, com as coisas, com os

signos, com o cosmo, ele se envolve em uma atividade de conhecimento, de aprendizado

(LVY, 2015, p. 123). O aprendizado e seus pacientes, antes massificados, pouco expressivos,

no sentido de ser sua opinio pouco considerada, anteriormente imobilizados na palavra escrita,

29

destacam-se hoje no ciberespao como agentes, promotores expressivos de mudanas,

difusores de linguagens e de signos mltiplos, construtores de uma inteligncia coletiva. Lvy

(2015), adicionalmente, argumenta que essa organizao promove uma engenharia social que

faa trabalhar o conjunto, que faa as criatividades, a capacidade de iniciativa, a diversidade de

competncias e as qualidades individuais entrar em sinergia, sem encerr-las ou limit-las [...]

(LEVY, 2015, p. 59).

Contudo, Bauman no se mostra to otimista quanto propenso individual a se engajar

e a se envolver. No mundo lquido-moderno, em que mais importa a seduo temporria do

consumo e do descarte, do que a estabilidade montona da durabilidade, o socilogo distingue

turistas de vagabundos, em sua obra Globalizao: as consequncias humanas (1999). Turistas

so aqueles consumidores com capacidade de consumir bens, servios, emoes e experincias,

so os que viajam frequentemente a negcios ou a passeio, esto sempre ocupados, que se

deleitam com os prazeres da viagem e que usufruem de uma vida cosmopolita e global,

voluntria ou involuntariamente, se esto se movendo porque ficar em casa num mundo

feito sob medida para o turista parece humilhante e enfadonho [...] (BAUMAN, 1999, p. 100-

101); os vagabundos so as pessoas que desejam, mas no podem consumir, [...] so

esmagadas pela carga de uma abundncia de tempo redundante e intil [...] (BAUMAN, 1999,

p. 96), alguns vagabundos simplesmente desistem de se tornar turistas, mas [...] h uma grande

parcela [...] que no est bem certa de onde se encontra no momento [...] (BAUMAN, 1999,

p.105). O socilogo alerta que a linha que os separa tnue, e que do dia para a noite pode-se

estar de um lado ou outro.

Abraar o projeto educacional do sculo XX, progressivo e disciplinar, numa sociedade

na qual o indivduo se alterna como turista ou vagabundo, num horizonte inalcanvel de

informaes disponveis, parece desanimador. Como diz o socilogo em algum ponto [...] se

perdeu a promessa de equiparar as oportunidades por meio de uma educao universal, capaz

de promover uma vida feliz [...] (BAUMAN, 2013, p. 38), e destaca que em nenhum outro

ponto inflexivo da histria humana os educadores se defrontaram com desafios comparveis

aos contemporneos. Ns simplesmente nunca estivemos em uma situao semelhante

(BAUMAN, 2003, p. 25). A educao passa a ser uma obrigao, um passivo, muito mais do

que um ativo a ser levado para a vida. O socilogo apresenta um dos maiores desafios postos

educao em tempos de modernidade lquida, proveniente da [...] natureza essencialmente

imprevisvel e errtica da mudana contempornea [...] (BAUMAN, 2003, p. 20), que

questiona incessantemente o modelo de conhecimento como explicao da realidade e que

constantemente surpreende os [...] mais bem informados [...] (BAUMAN, 2003, p. 20).

30

Os anos de educao, que proporcionavam o entendimento de nveis de complexidade

crescentes, e que forneciam um arcabouo cada vez maior de informaes, so desafiados pela

cultura da fragmentao, do imediatismo, da simplificao, da superficialidade. A educao

fragmentada, se por um lado proporciona uma satisfao temporria ao consumidor

educacional, por outro lado apresenta uma capacidade explicativa limitada; o conhecimento que

capacita e instrumentaliza deve, muitas vezes, ser aprofundado, refletido, questionado,

ampliado; ampliao que est progressivamente delegada responsabilidade individual.

Viver em um perodo em que no h tempo suficiente para interpretar os sinais emitidos

pelo exterior, alm do fato de que h sinais emitidos por uma infinidade de fontes, torna-se

desafiador. O uso de um leque de instrumentos interpretativos da realidade se faz necessrio.

H evolues lineares ou em saltos de conhecimento e de tecnologia em muitas reas do saber.

H alteraes na importncia dos atores responsveis pela elaborao de polticas em nvel

nacional e internacional, bem como no estabelecimento de prioridades dessas agendas. H

movimentos imprevistos, tambm nacional ou internacionalmente, a exemplo de catstrofes

naturais, ataques terroristas, desastres energticos, que so capazes de afetar milhares de

pessoas. Evidentemente, embora haja tentativas de se estabelecer relaes entre essas variveis

para a inferncia de cenrios vindouros, a capacidade de antecipao de eventos, e portanto, de

um adequado posicionamento individual ou coletivo em face de mudanas vindouras, encontra-

se limitado por inmeros fatores, tais como assimetria de informaes, disponibilidade de

arcabouo intelectual e tcnico de compreenso dos fatos, capacidade de ponderar

relativamente a importncia das variveis, para estabelecer a possvel extenso de seu impacto,

por interferncias de formadores de opinio, entre outros. Sobre isso Bauman (2009) comenta:

[...] a maioria das variveis das equaes (se no todas) desconhecida, e nenhuma estimativa

de suas tendncias pode ser considerada [...] confivel (BAUMAN, 2009, p. 8).

Na obra Sobre Educao e Juventude (2013), Zygmunt Bauman compara a estratgia

de enfrentamento da realidade mutvel estratgia utilizada por msseis balsticos inteligentes

para atingirem seu alvo. Uma vez que muitas informaes e dados so processados por msseis

balsticos inteligentes, Bauman destaca que a capacidade de coletar, interpretar e decidir sobre

essas informaes, quando esto em pleno voo, permite a tais msseis avaliar quais seriam os

alvos preferveis a serem atingidos, dadas as informaes constantemente atualizadas e dadas

suas prprias caractersticas tcnicas. Assim [...] os alvos so selecionados enquanto o mssil

avana, e so os meios disponveis que decidem qual fim ser escolhido (BAUMAN, 2013,

p. 20). Para Bauman, a flexibilidade de processar informaes novas, conforme so recolhidas,

combinadas s capacidades desses msseis, possibilita alteraes de percurso em curtos espaos

31

de tempo, promovendo a velocidade de adaptaes; o socilogo polons prossegue dizendo que

a [...] inteligncia do mssil e sua eficcia se beneficiaro se seu equipamento for de natureza

generalista ou indeterminada, sem foco numa categoria especfica de objetivo [...]

(BAUMAN, 2013, p. 20).

Como o socilogo (2013) descreve, aquele ou aquilo que tiver mais recursos a sua

disposio, for dotado de conhecimentos abrangentes, tanto quanto da capacidade de se

aprofundar em determinadas rotas, quando necessrio, mantendo constantemente a avaliao e

anlise das condies do ambiente, quando se trata de variveis que venham possivelmente a

alterar seu destino, provavelmente realizar uma trajetria satisfatria no atingimento de seus

objetivos mveis, sem maiores danos em sua estrutura. Quando o que real, tambm voltil;

quando os slidos se liquefazem, preciso mudar de ideia ou revogar decises anteriores

sem remorsos nem reconsideraes (BAUMAN, 2013, p. 21). Para esse autor, incerteza

significa risco, companheiro inseparvel de toda a ao e espectro sinistro a assombrar os

compulsivos tomadores de deciso e escolhedores que nos tornamos (BAUMAN, 2013, p. 23).

vista de mudanas ininterruptas, seja em circunstncias em que agente de mudana,

muda de atividade remunerada, de local, de teor ou de ferramentas de trabalho, ou paciente das

alteraes, quando, mesmo em trajetria minimamente planejada, sofre ataques externos a sua

situao de equilbrio momentneo, o indivduo necessita fazer revises constantes de seu

entorno. Tal exigncia se assemelha experincia de um viajante ou de um imigrante, que

precisa se inteirar da organizao cultural distinta do local que visita. Antes relativamente

homognea e previsvel, a variedade de circunstncias atuais a que o indivduo exposto

enorme, fazendo dele um estrangeiro a cada nova mudana, seja de ambiente de trabalho, de

residncia, de grupo de interao social. Para tornar concreta sua condio objetiva de

subsistncia, num mundo em que a maioria est desprovida de meios de garantir as condies

bsicas de alimentao, para dizer o mnimo, exige-se do indivduo que seja como um

camaleo, capaz de observar, perceber e acima de tudo, aprender os valores, as normas, as

relaes de poder, as tcnicas, os tempos, as sutilezas do novo ambiente, isto , das

circunstncias inditas em que se insere. Conforme explicitado por Bauman (2013), cada

mudana rompe parcialmente ou totalmente, dependendo de sua profundidade e de sua

intensidade, um arcabouo temporariamente constitudo de conhecimentos e de interpretao

da realidade. Para a nova experincia, leva-se na memria e no aprendizado o que foi

compreendido e sedimentado da experincia anterior; ocasionalmente a maior parte do

repertrio necessrio adaptao precisa ser construdo do zero, exigindo esforo, resilincia,

pacincia e humildade.

32

Richard Sennett, em seu livro El extranjero: dos ensayos sobre el exilio (2014), retrata

as impresses de Aleksandr Herzen, um jovem exilado russo, que perambula por capitais da

Europa ocidental, terminando seus dias em Londres, nos anos seguintes a 1800. O autor extrai,

dos comentrios de Herzen, vrias reflexes acerca dos processos internos, conflituosos, pelos

quais um estrangeiro passa; ressaltando, por exemplo, que a necessidade de assimilao em

uma nova cultura pode vir a ser um processo de grande exigncia interior; diz Sennett: Herzen

era demasiadamente civilizado para considerar que esses estrangeiros que procuravam

assimilar-se haviam sido moralmente corruptos por necessidade. Melhor, via-os como pessoas

que haviam embarcado em uma espcie de amnsia voluntria [...] (SENNETT, 2014, p. 105,

traduo minha). A condio de estrangeiro, assim, exige uma tenso entre esquecimento e

lembrana, entre abrir mo do que se , ou da imagem que se faz de si mesmo, em prol da

assuno de formas novas de viver, de se comportar, de novos valores. Ao mesmo tempo

desconfortvel e instigante, a experincia de observar o mundo a partir de outros ngulos,

acrescenta ao indivduo, que pode vir a sentir-se pessoa de parte alguma; j no se reconhece

no espelho, como muito bem descrito por Sennett a respeito da pintura El bar del Folies-

Bergre de douard Manet, de 1882 (SENNETT, 2014, p. 69-75).

Os desafios inerentes adaptao s terras estrangeiras podem ser transpostos queles

enfrentados pelos indivduos da modernidade lquida. Convocados constantemente a entrar em

contato e a compreender contextos, assuntos e grupos diferentes, o indivduo chamado a ler,

interpretar, interagir e desenvolver sobre bases s quais estava completamente alheio. Esse

desafio exige abertura ao novo, mas tambm exige repertrio, arcabouo e assim,

sucessivamente exposto, forma-se um ser humano que uma colagem de fragmentos, alguns

harmoniosos, outros nem tanto. A resistncia e a inflexibilidade, em terras estrangeiras,

certamente levam excluso; sobre isso Sennett (2014) comenta que nesse espelho de

deslocamento, espelho deformante, o ritual, a crena, o hbito, os signos de linguagem se

mostrariam completamente diferentes daqueles do pas de origem [...] (SENNETT, 2014, p.

93), complementando mais a frente que o feito de fazer-se estrangeiro implica um

deslocamento a respeito das prprias razes (SENNETT, 2014, p. 97). Embora possa haver

circunstncias nas quais os exilados devam escolher entre os valores e normas de suas razes e

aqueles dos horizontes novos, sua relutncia em fazer-se malevel pode tornar-se extremamente

custosa; cabe ento, a cada indivduo certificar-se de conhecer seus prprios valores ticos

fundamentais.

Em um artigo intitulado Education in the World of Diasporas (2010), Bauman tambm

discute como contingentes crescentes de pessoas deixam seu pas de origem; observa que os

33

fluxos migratrios globais h tempos no seguem mais as direes colnia-colonizador e vice-

versa, fazendo dos destinos apenas localidades temporrias de permanncia. Esse fenmeno

transforma as cidades em aglomerados multiculturais, nos quais no mais possvel pensar em

processos de [...] evoluo cultural (BAUMAN, 2010, p. 399, traduo minha). Para Bauman

(2010) as formas de vida flutuam, encontram-se, confrontam-se, colidem, agarram-se,

fundem-se e agrupam-se com gravidades iguais (BAUMAN, 2010, p. 399, traduo minha).

Para o autor, no cabe mais pensar em retirar do estrangeiro o que lhe faz estrangeiro, em

praticar polticas de assimilao cultural, ou mesmo de adotar uma postura de resistncia fuso

ou interao cultural. A mudana paradigmtica a de que, na modernidade lquida, no [...]

h pessoas a cultivar (BAUMAN, 2010, p. 400, traduo minha). Essa lgica, ento,

proporciona espaos para que os indivduos vivam perodos de continuidade, aleatoriamente

enlaados a perodos de descontinuidade; esses indivduos lanam suas ncoras e permanecem

flutuando local e temporariamente. Completamente diferente da organizao populacional em

Estados-nao, de caractersticas culturais singulares e de trnsito limitado, Bauman descreve

disporas, populaes inteiras residentes de locais distintos de sua origem, que no

necessariamente abandonam seus traos culturais nicos, mas que, por outro lado, adaptam-se

a um ambiente completamente diferente. Tal qual Sennett, o socilogo polons no condena

essa insero estrangeira, ao contrrio, traduz-na como insight para uma organizao coletiva

possvel. A lgica do respeito, da tolerncia e do conhecimento mtuo extensiva educao;

uma lgica que no impe uma cultura dominante, ao contrrio, em que a cultura permevel

e mutvel.

Em sintonia com o profundo estrangeirismo em que o indivduo se encontra em relao

aos demais e em relao ao conhecimento, Pierre Lvy enfatiza a necessidade de se praticar a

escuta:

A escuta consiste em fazer emergir, em tornar visvel ou audvel, a mirade de ideias, argumentos, fatos, avaliaes, invenes, relaes que constituem o social real, a massa do social, em sua mais profunda obscuridade: projetos, competncias especficas, modos originais de relao ou de contratualizao, experimentos organizacionais, etc. Em situao de mobilidade, as lnguas oficiais ou as grades fixas s alcanam confuso, ocultao e desorientao (LVY, 2015, p. 71).

Almeida, Gomes e Bracht escrevem, em sua obra Bauman e a Educao (2016), a

respeito da escolarizao na modernidade slida, que a tese de Bauman [...] a de que o

mundo do lado de fora das escolas cresceu diferente do tipo de mundo para o qual as escolas

estavam preparadas a educar nossos alunos (ALMEIDA, GOMES e BRACHT, 2016, p. 65),

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afirmando tambm que, para o socilogo polons, a formao impensvel de qualquer outra

forma que no seja uma reformao permanente e eternamente inconclusa [...] (ALMEIDA,

GOMES e BRACHT, 2016, p. 66). Os autores enfatizam o fato de que a educao, praticada

nos termos de precariedade do conhecimento, e sempre sujeita a revises, inevitavelmente

provoca angstia e desconforto; conseguem sintetizar uma nova forma de compreender a

educao, proposta por Bauman: [...] um tipo de aprendizado capaz de romper com a

regularidade, flexvel o bastante a ponto de permitir liberar-se de velhos hbitos e com uma

enorme capacidade de reorganizar experincias episdicas e fragmentrias em pautas

anteriormente pouco familiares (ALMEIDA, GOMES e BRACHT, 2016, p. 71).

Os mesmos autores observam tambm que, a partir das constataes de Bauman sobre

o perfil consumista e imediatista da sociedade atual, todo aquele conhecimento que no

apresenta utilidade, isto , cuja aplicao no passvel de traduo em recursos financeiros,

visto com desconfiana (ALMEIDA, GOMES e BRACHT, 2016). O fato que a lgica de

investimento e consumo vigente no modelo de educao de mdio e longo prazo da

modernidade slida, pelo qual os anos de educao primria, secundria e terciria eram

convertidos em carreiras slidas, em empresas ou profisses liberais estveis, simplesmente

no existe mais. Da infere-se que a realidade concreta contempornea insiste em contrariar as

expectativas da mentalidade ainda reminiscente do sculo XX.

Em ambiente voltil, onde o vento sopra erraticamente em direes diferentes, a

intensidades variadas, quanto mais abrangente, ou melhor, quanto menos especfica, tanto mais

utilizvel a educao. A cada nova exigncia, num mar de informaes, dados e

possibilidades, a responsabilidade pelo aprofundamento cabe ao indivduo, do qual se exige a

maturidade para tal. Preocupado com os dficits crescentes na formao de grandes massas

humanas, o socilogo polons ressalta as deficincias existentes em sistemas educacionais:

Agora a hora do pnico diante da perspectiva de crescer o nmero de pessoas pouco instrudas (pelos padres mundiais cada vez mais estritos), inadequadas para laboratrios de pesquisa, oficinas de design, salas de conferncias, estdios de arte ou redes de informao, em consequncia de reduo dos recursos das universidades e do nmero decrescente de formandos das instituies de alto nvel (BAUMAN, 2013, p. 48).

O mero controle sobre determinada extenso de conhecimentos h muito no

suficiente como explicao da realidade; diante de um mundo interconectado, que produz

informaes incessantemente, Manuel Castells afirma:

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O que caracteriza a atual revoluo tecnolgica no a centralidade de conhecimentos e informao, mas aplicao desses conhecimentos e dessa informao para a gerao de conhecimentos e de processamento/comunicao da informao, em um ciclo de realimentao cumulativo entre a inovao e seu uso (CASTELLS, 2016, p. 88).

Extrapolando-se a afirmao de Manuel Castells para outras esferas, alm do campo

tecnolgico, a complexidade originada pela produo intensiva de informaes e pela rede de

relaes entre conhecimentos e variveis, exige do indivduo uma capacidade de

processamento, isto , de interpretao e de reflexo, se houver tempo para tanto, semelhante

de processadores digitais, que minimamente lhe proporcionem insumos para tomadas de

deciso e de ao mais adequadas. Como se depreende tambm da afirmao acima, a

retroalimentao parte intrnseca desse processo de anlise ininterrupta da realidade, cujo

tempo de execuo torna-se cada vez menor, aproximando-se da instantaneidade.

A lgica da gesto da informao em rede pode ser entendida por uma afirmao de

Pierre Lvy (2011) sobre a mobilidade: [...] em vez de seguirmos linhas de errncia e de

migrao dentro de uma extenso dada, saltamos de uma rede a outra, de um sistema de

proximidade ao seguinte (LVY, 2011, p. 23). Esse autor usa a imagem do caleidoscpio para

ilustrar como o processamento de textos, antes realizado de forma linear, em buscas de pginas,

volumes, e bibliotecas virtuais passa a ser feito em frentes de conexo, facetas diferentes, em

velocidade e simultaneidade crescentes. Em suas palavras inventa-se hoje uma nova arte da

edio e da documentao que tenta explorar ao mximo uma nova velocidade de navegao

em meio a massas de informao que so condensadas em volumes a cada dia menores

(LVY, 2011, p. 45). semelhana dos desafios envolvidos na edio de textos digitalizada,

os indivduos tambm precisam, na modernidade lquida, fazer a leitura de informaes, sinais,

tendncias e correlao entre variveis num processo de anlise e organizao de cenrios, mais

e mais globais, de forma semelhante produo de imagens no caleidoscpio. A organizao e

a interpretao do conhecimento tornam-se assim um desafio impressionante, no sentido real

de exercer presso para sua realizao, sob o risco de imploso ou de excluso da vida

individual no ambiente social. Essa capacidade analtica dos seres humanos v-se muito atrs

da revoluo informacional, promovida pela inteligncia artificial, na corrida pela apreenso

das defesas necessrias s situaes de risco informadas por Beck (2011). Para Bauman (2013):

Os recursos escassos bsicos de que feito o capital e cuja posse e gerenciamento fornecem a principal fonte de riqueza e poder so hoje, na era ps-industrial, o conhecimento, a inventividade, a imaginao, a capacidade de pensar e a coragem de pensar diferente [...] (BAUMAN, 2013, p. 48).

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O debate se a inteligncia humana ser em breve suplantada pela inteligncia artificial

faz parte de um campo que extrapola as discusses desta dissertao6. Ainda assim, caso fosse

possvel imaginar uma evoluo tecnolgica tal que milhares de computadores interligados

passassem a aperfeioar algoritmos cada vez mais sofisticados, em aprendizado contnuo, a fim

de obter um grande nmero de dados e resultados ou cenrios provveis, poder-se-ia imaginar

que os seres humanos ainda seriam necessrios operao e ao desenvolvimento desses

equipamentos e softwares. Nesse cenrio, de dependncia crescente em relao s tecnologias,

aqueles que estiverem mais bem preparados para as produzir, entender, alterar, estaro em

posio mais vantajosa em relao aos demais, possivelmente, para o acesso a bens materiais,

e a condies de vida mais desejveis.

Por outro lado, ainda que a tecnologia produza meios objetivos para servir

humanidade, sero ainda meramente meios e no necessariamente o contedo, a essncia, a

experincia ou o valor do que, e como se vive, isto , mesmo que a tecnologia extrapole sua

funo ferramental e passe a ganhar espao na mediao com a experincia, ainda no