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Edição #2 - Outubro de 2014 Ponta Delgada - São Miguel - Açores Distribuição Gratuita Travessias

Revista 2 edicao travessias

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Edição #2 - Outubro de 2014Ponta Delgada - São Miguel - AçoresDistribuição Gratuita

Travessias

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Inaugurados em 2003 e 2008, respetivamente, os CLAII´S de Ponta Delgada e Angra do Heroís-mo estão inseridos numa rede que integra quase uma centena de gabinetes distribuídos de norte a sul do país e ilhas, onde são presta-dos atendimentos personalizados aos utentes que procuram os nossos serviços.

O que são os CLAII?

Os CLAII são gabinetes de acolhimento, informação e apoio descentralizado, com ligação aos Centros Nacionais de Apoio ao Imigrante - CNAI, que visam ajudar a responder às necessidades que se colocam aos cidadãos imigrantes, nas áreas:

- Regularização da situação migra-tória; - Nacionalidade; - Reagrupamento Familiar; - Habitação; - Trabalho; - Segurança Social; - Retorno Voluntário; - Saúde; - Educação; - Formação Profissional; - Empreendedorismo; - Apoio ao Associativismo; - Outras

Qual a sua missão?

Com capacidade de interacção com estruturas locais, os CLAII têm como missão, ir além da infor-mação e apoiar o processo multivectorial do acolhimento e integração dos imigrantes a nível local.

Como funcionam?

Com o objectivo de promover uma integração de proximidade, os CLAII resultam de parcerias estabelecidas entre o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural - ACIDI, I.P. e autarquias ou entidades da sociedade civil (associações de imigrantes ou outras, IPSS, ONGs, centros paróquiais, entre outras), que, em cooperação, promovem um atendimento integrado.

No caso de Ponta Delgada, o CLAII resultou de uma parceria entre o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultu-ral - ACIDI, I.P., Associação dos Imigrantes nos Açores – AIPA, Governo Regional dos Açores, através da Direcção Regional de Solidariedade e Segurança Social.

Em algumas regiões, esse atendi-mento é prestado em regime de itinerância, fazendo chegar o serviço junto de cidadãos/ãs imigrantes que de outro modo não têm acesso a ele, seja por falta de mobilidade ou ausência de outros recursos.

Paralelamente, os CLAII dinamizam ainda actividades na área da “Pro-moção da Interculturalidade a nível Municipal”, fomentando assim uma integração cada vez mais plena dos cidadãos/ãs imigrantes na sociedade portuguesa, através do desenvolvimento de projectos que integram actividades nas áreas:

- Educação; - Mercado de trabalho; - Acolhimento inicial de imigran-tes;- Sensibilização da opinião pública; - Participação na vida local; - Outras actividades no domínio da Interculturalidade.

A 2ª edição da revista Travessias insere-se num conjunto de atividades desenvolvida no âmbito da acção I - Acolhimen-to, Integração e Valorização da Interculturalidade do Progra-ma, co-financiada pelo Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT).

Resultados Alcançados

Durante o ano de 2013, os CLAII´S de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo efetuaram 542 atendi-mentos aos cidadãos de mais de 29 países diferentes, traduzindo-se num aumento de 1,7% relativamen-te a 2012, na sua maioria cidadãos de Cabo Verde, Brasil, Guine Bissau e Ucrania, sendo que, 56,5% dos atendimentos foram efetuados aos cidadãos do sexo masculino e 43,5% do sexo feminino. Os atendimentos foram prestados maioritáriamente aos cidadãos com idade compreendida entre os 26 e 45 anos (61.4%). Contactos:

Ponta DelgadaRua do Mercado, nº 53H9500 – 326 Ponta DelgadaTel: 296 288 001296 286 365962 417 240Fax: 296 281 623e-mail: [email protected]

TerceiraRua Dr. Sousa Júnior, s/n(antigo edifício escolar da FreguesiaNª Srª Conceição)9700-070 Angra do Heroísmo)Tel/Fax: 295 213 139

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índice

Ficha Técnica Edição: AIPA - Associação dos Imigrantes nos Açores e CLAII de Ponta Delgada Ano: 2014 Coordenação: Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores Equipa Editorial: Ana Cristina Gil, Ana Teresa Alves, Dominique Faria, Leonor Sampaio da Silva, Madalena Teixeira da Silva Colaboradores: Ana Cristina Gil, Ana Teresa Alves, André de Medeiros Palmeiro, Cátia Couto, Cátia Miranda, Dilara Renkver, Dominique Faria, Gabriela Funk, Helena Mar, José Adriano Ávila, Leonor Sampaio da Silva, Madalena Teixeira da Silva, Margarida Moura, Mariana Vicente Barbosa, Matthias Funk, Rui Sampaio da Silva, Vítor Prata. Design Gráfico/Paginação: Luís Filipe Craveiro (www.craveirodesign.com) Fotografia: direitos reservados Capa: Pinturas de Martim Cymbron e Pedro Sousa Impressão: Nova Gráfica Tiragem: 500 exemplares - Distribuição gratuita.

Promotores: Financiadores:

EditorialUma travessia diferenteLeonor Sampaio da Silva

OpiniãoA outra dimensãoDilara Renkver

EnsaioConsenso e diferença na esfera públicaRui Sampaio da Silva

OpiniãoEstrangeiros na sua terra: os jovens e a sociedade Madalena Teixeira da Silva

EnsaioPensar o impensado: contradições docolonialismo portuguêsAna Cristina Gil

PoesiaO outroHelena Mar

EnsaioA escola como veículo privilegiadode integração culturalMargarida Isabel Moura

EntrevistaItalianos e portugueses são muitosemelhantes culturalmenteAna Teresa Alves

EnsaioTravessias da sabedoria popularMathias Funk e Gabriela Funk

OpiniãoMigração rumo à Cidadania globalJosé Ávila

EntrevistaJosé Bolieiro - «A nossa comunidade é umacomunidade integradora» Cátia Couto

EntrevistaJosé Viveiros dos Reis - «É da convivência e da amabilidade que nasce a integração.» Cátia Miranda

EntrevistaEntrevista Dr. Paulo Teves “ É necessárioapostar na formação das crianças e dos jovens”Ana Cristina Gil

ContoNotas de revoltasAndré de Medeiros Palmeiro

OpiniãoRoger Ballen,fotógrafo da diferençaMariana Vicente Barbosa

PerfilA Diva DilacVitor Prata

EnsaioA propósito da diferença na escritapós-colonial: o caso de Venenos de Deus,remédios do DiaboLeonor Sampaio da Silva

EnsaioConhecer o Outro através da ficçãoDominique Faria

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Uma travessia diferente

EDITORIAL

Leonor Sampaio da SilvaDiretora do curso de Comunicação Social e Cultura da Universidade dos Açores

Quando, no ano passado, o cur-so de licenciatura em Comunicação Social e Cultura da Universidade dos Açores respondeu favoravelmente ao repto que nos chegou do Centro Local de Apoio à Integração dos Imi-grantes (CLAII) e da Associação dos Imigrantes dos Açores (AIPA) para elaborarmos uma revista temática dedicada ao tema das Migrações e da Interculturalidade, entendemos que a proposta constituía uma oportu-nidade privilegiada para os alunos e docentes do curso se envolverem num projeto que lhes permitiria aliar as questões teóricas tratadas nas aulas à prática jornalística.

Mobilizámos recursos e concer-támos esforços, reunimos artigos de vários géneros e mostrámos olhares sobre um mundo globalizado e em mudança, que elegeu como uma das suas prioridades a reflexão sobre a identidade e onde se torna cada vez mais necessário discutir as relações entre povos e nações.

Este ano a equipa editorial deci-diu dedicar o número de 2014 a uma travessia diferente. E, para a concreti-zação deste objetivo, nada melhor do que desbravar terreno no interior da própria divergência. Propusemo-nos empreender uma viagem pelo mundo da diferença, palavra central no léxico contemporâneo, em virtude do ex-tenso caudal de reflexões que suscitou por parte de filósofos, sociólogos, poetas e escritores a partir de meados do século XX.

Num mundo multicultural e sen-sível à necessidade de conferir visibi-lidade às minorias, pensar a diferença

foi e continua a ser muito mais do que admitir a desconformidade, ou apren-der a respeitar opiniões contrárias e aceitar mudanças. A diferença cons-titui a entrada numa condição inter-minável de itinerância. Aquilo que é diferente – sujeito ou objeto de algum modo único ou original – deixará de o ser no momento em que perder a qua-lidade paradoxal, contraditória, que o define como exemplo de alteridade que surpreende e, nalguns casos, as-susta; deixará de o ser também assim que a singularidade se tornar a regra em vez da exceção.

Admitir a diferença é, por con-seguinte, não só caminhar por um território não cartografado como responder ao chamamento da deriva incessante. O quotidiano como errân-cia é particularmente familiar a todos quantos enfrentam o desafio colocado pelas migrações. Nas sociedades mul-ticulturais, a indefinição incubadora do imprevisto frequentemente arrasta consigo o medo do desconhecido. Por isso, ao longo do tempo, os diferentes foram uma minoria temida e margi-nalizada, se não mesmo reprimida e punida. No entanto, foi graças a eles que fomos acolhendo o novo e con-solidando um espírito dialogante e democrático.

Sob outro ângulo, a diferença esti-mula exercícios de pensamento pau-tados pela interdisciplinaridade e pela interdependência de todas as partes que coexistem num dado espaço. A existência em rede forja um entendi-mento do mundo como o resultado de múltiplas interações. Ao invés do trajeto que nos quer fazer ‘iguais’, a

travessia proposta pela barca da dife-rença aponta-nos um destino onde a multiplicidade atrapalha a confiança numa única visão hegemónica para encorajar a consideração de várias perspetivas e interpretações.

Foi este mapa que procurámos desenhar na presente edição da Tra-vessias. As páginas que se seguem iniciam-se com as linhas fundamen-tais deste conceito do ponto de vista filosófico. Fomos depois em busca da diferença em diversos espaços, textos, experiências de vida e imagens. Ofe-recemos leituras literárias e ensaísti-cas, reportagens, entrevistas e perfis de quem se deparou com a diferença, se sente diferente, conhece, imagina, canta e escreve diferentemente.

À semelhança da edição anterior, reunimos um conjunto diversificado de contributos, estimulando a parti-cipação dos alunos do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Quisemos divergir, nalguns aspetos, da edição de 2013: convidámos dois artistas açorianos a serem a capa desta diferença e associámos, em parceria com o CLAII e a AIPA, a publicação da revista a um concurso subordinado ao mesmo tema. Mas não mudou o empenho, o rigor e o entusiasmo que nos motivou no passado nem a von-tade de continuar a contribuir para a consciencialização das inúmeras tra-vessias de que é feito o nosso mundo.

A todos quantos integraram esta caminhada, o meu agradecimento. Dirijo uma palavra final de reconheci-mento à persistência dos nossos par-ceiros (CLAII e AIPA) em nos acom-panharem em mais uma travessia.

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Consenso e diferençana esfera pública

ENSAIO

Segundo uma antiga tradição, as so-ciedades humanas devem basear-se em consensos; na ausência de um conjunto partilhado de normas, valores e crenças, a fragmentação social daí resultante po-deria conduzir a uma situação de confli-tualidade permanente. Nas últimas dé-cadas, porém, a noção de consenso tem sido objeto de sérias críticas, as quais se agrupam em duas linhas principais de argumentação: por um lado, alega-se que há algo de repressivo no consenso, na medida em que os consensos não são compatíveis com o pluralismo caracte-rístico das sociedades modernas; por outro lado, e contra a tradição raciona-lista que culminou no Iluminismo, pode questionar-se o poder da razão humana em produzir consensos políticos, sociais e morais.

Para se apreciar devidamente este conflito entre consenso e diferença, ou entre consenso e pluralismo, convém recuar um pouco na história até à gé-nese da esfera pública moderna no séc. XVIII. O movimento iluminista defen-deu a existência de uma esfera pública a que todos tivessem acesso em princípio e na qual apenas prevalecesse o “uso público da razão” (Kant) ou a “força do melhor argumento” (Habermas). A esfera pública, assim concebida, seria capaz de formar consensos racionais e funcionar como instância fiscalizadora e legitimadora do poder político.

Todavia, a conceção iluminista da esfera pública é demasiado idealizada. Na prática, o acesso à esfera pública é li-mitado, não universal, e a ideia de que o debate público consiste numa discussão puramente racional negligencia o modo como relações de poder e de domina-

ção podem interferir com os processos comunicativos, distorcendo a formação de consensos – um ponto que a crítica marxista da esfera pública sempre desta-cou. Por último, o modelo iluminista do séc. XVIII pressupunha a existência de uma esfera pública relativamente unifi-cada e homogénea, ignorando assim a existência de esferas públicas específicas.

Apesar destes problemas, a ideia de que a esfera pública deve ser um espaço regido por uma discussão racional capaz de gerar consensos continuou a ter des-tacados defensores. Habermas, que na sua influente obra Mudança Estrutural da Esfera Pública descreveu a evolução da “esfera pública burguesa” desde o séc. XVIII ao séc. XX, criticando a sua decadência no plano político e cultural, manteve-se em larga medida fiel ao modelo do séc. XVIII, o que o levou a formular a sua noção de racionalidade comunicativa, entendida como aquela forma de racionalidade que respeita as idealizações ou pressuposições dos processos comunicativos, i.e., condições como: nenhum argumento relevante pode ser excluído; nada está imune à crítica; todos devem ter acesso ao debate público ou aos processos comunicativos.

Segundo Habermas, o exercício da racionalidade comunicativa permitiria formar consensos em torno das normas fundamentais da vida moral e social. Mas como conciliar esta defesa do consenso e de normas universais com o pluralismo que caracteriza as nossas sociedades? Habermas tem consciên-cia deste problema, e por esta razão recorreu a uma distinção entre ética e moral com o intuito precisamente de conciliar a sua defesa do consenso com

o reconhecimento do carácter pluralista da sociedade. A moral diz respeito a normas que devem ser universalmente válidas porque regulam a relação dos agentes entre si, ao passo que a ética diz respeitos a valores que exprimem conceções do bem, quer a nível indivi-dual, quer a nível da comunidade. Ao contrário das normas, os valores podem variar de indivíduo para indivíduo ou de comunidade para comunidade, salvaguardando-se assim o pluralismo cultural e social.

Esta solução levanta, porém, pro-blemas de ordem prática, porque os valores associados a uma determinada tradição cultural podem entrar em conflito com normas morais aceites por uma sociedade. Nestas situações, as normas deveriam prevalecer sobre os valores. A título de exemplo, imagine-se que uma comunidade imigrante residente num país ocidental reivindica o reconhecimento do casamento po-ligâmico alegando que tal instituição faz parte da sua tradição cultural e que, enquanto tal, deve ser aceite num mundo multicultural. Neste caso, os opositores do casamento poligâmico deveriam argumentar que esta forma

Rui Sampaio da SilvaDocente do Departamento

de História, Filosofia e Ciências Sociais

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de casamento violaria normas morais (como por exemplo normas relativas à igualdade entre aos sexos ou ao interes-se das crianças).

Tal como se disse inicialmente, a noção de consenso pode ser facilmente criticada pelo seu irrealismo. Figuras associadas ao movimento pós-moder-no, caracterizado por uma celebração do pluralismo e por uma particular sensibilidade às diferenças culturais que fragmentam as sociedades contem-porâneas, declaram abertamente o seu ceticismo perante o poder da razão na formação de consensos. Mas a crítica mais radical da noção de consenso consiste numa denúncia do seu carácter repressivo ou das consequências políti-cas e sociais perigosas que dela podem advir. Chantal Mouffe na sua defesa de um “pluralismo agonístico” contra o ideal de uma democracia deliberativa (defendido por Habermas, entre outros) constitui uma ilustração exemplar dessa crítica social e política do consenso.

De acordo com Mouffe, todo o con-

senso resulta de relações de dominação, ou mais precisamente, de hegemonia, e envolve necessariamente a exclusão de determinados grupos socais. A sua tese de que não há consenso sem exclusão condu-la ao reconhecimento do papel crucial que o conflito desempenha um na vida política e social, bem como na própria formação de identidades cole-tivas. Em vez de aspirarmos em vão a consensos racionais, deveríamos reco-nhecer a que a política é uma atividade necessariamente adversarial, orientada para a gestão (e não erradicação) dos conflitos entre diferentes grupos. A distinção nós/eles é fundamental na vida política e não pode ser apagada por consensos.

Nos debates que se eternizam ao longo dos tempos, acontece com fre-quência que cada uma das partes so-brevaloriza algumas intuições ou teses plausíveis ao mesmo tempo que desva-loriza o que há de plausível nas posi-ções rivais. O debate entre defensores e adversários do consenso ilustra esta

tendência. Há seguramente boas razões para se procurar consensos que permi-tam a coexistência não-conflitual dos diferentes grupos sociais. O que está em causa não é apenas a defesa da ordem social, mas o respeito mútuo entre os membros de uma sociedade que devem evitar impor perspetivas ou doutrinas particulares a outros grupos. Por outro lado, e à luz do pluralismo constitutivo da sociedade contemporânea, a forma-ção de consensos enfrenta sérias difi-culdades e encerra alguns perigos.

A lição que se deve extrair do de-bate em torno do papel do consenso e da diferença na esfera pública é a de que deve haver um esforço coletivo de construção de um consenso mínimo, que, por um lado, fixe as normas fun-damentais da vida social, à sombra das quais possam florescer diferentes for-mas de vida, e que, por outro lado, sirva de ponto de partida para alargamentos progressivos que o diálogo e a convi-vência entre os diferentes grupos sociais inevitavelmente favorecem.

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Eu nasci em İstanbul e morei lá durante vinte e dois anos. Istambul é uma cidade grande e superlotada. Eu sempre pensei que não podia morar numa cidade pequena, porque na cida-de grande posso encontrar tudo o que quero. No passado setembro, eu vim para Portugal como aluna Erasmus. No início foi uma aventura para mim. De-pois, os meus pensamentos começaram a mudar.

Eu moro em São Miguel há nove meses. São Miguel é menos lotado que Istambul e menor. Quando eu cheguei aqui, a primeira coisa que eu pensei foi: tudo é o mesmo. Apesar de a língua ser diferente, as pessoas são semelhantes e moram numa cidade semelhante.

Eu queria explorar cada parte da ilha. Fiz umas pequenas viagens, andei pela cidade (Ponta Delgada), comecei a aprender a língua e a cultura por-tuguesas. A Língua foi o meu maior problema porque eu não ouvi nada em português antes de aqui chegar. O Por-

tuguês é difícil e complicado, e o acento rítmico é muito diferente nos Açores. Eu vivia numa outra dimensão por não falar a mesma língua.

Depois, eu fui notando as diferen-ças, o melhor e o pior. Eu gosto muito de ler e estava tentando encontrar uns livros em inglês. E não conseguia. Não conseguia encontrar muitas livrarias também. Em Istanbul, temos muitas li-vrarias. Mas aqui a situação é diferente e esse foi o primeiro desapontamento que eu senti. Eu disse para mim mes-ma outra vez: ‘Acho que é muito difícil para mim morar numa pequena cida-de.’ As condições limitadas foram outra razão. À noite, não é possível escolher bares diferentes porque existe pouca oferta. Istanbul nunca dorme e tem muitas opções. Mas depois comecei a me acostumar com isso e já vi a parte melhor. Em São Miguel não temos trânsito; em Istanbul todos os dias tem que se gastar 1 a 2 horas no mínimo no trânsito. Eu, às vezes, passava mais

tempo ainda nas minhas deslocações. Em São Miguel, as pessoas são mais amistosas porque aqui não temos o caos, a cidade é menor, a vida não é stressante. Toda a gente se conhece, e por isso é fácil confiar nos outros.

Porque eu quero morar aqui? Porque eu gosto da cultura, eu estou a aprender a língua, eu sinto-me mais confortável. Pela primeira vez, não moro na grande cidade. Isto é muito di-ferente para mim. Se não posso encon-trar os livros ou as coisas que quero, eu posso encomendar ou tentar de outra maneira, não é impossível.

Ao mesmo tempo muitas coisas são diferentes e semelhantes. Eu gosto de Portugal e da Turquia, queria visitar o continente, mas São Miguel é espe-cial para mim também. Nunca se deve dizer nunca e deve-se sempre tentar, para dar uma hipótese ao que é novo e diferente. Porque quando se tenta, podem-se encontrar coisas boas que não se esperava.

OPINIÃO

A outra dimensão

Dilara RenkverAluna Erasmus / Departamento

de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade

dos Açores

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O sentimento de estranheza que re-sulta da integração num país estrangei-ro, numa nova comunidade, facilmente serve de figuração ao processo de tran-sição da infância para a idade adulta. O crescimento implica abandonar o rela-tivo conforto da infância, enquadrado por regras familiares que se apresentam com uma autoridade indiscutível e pela indiferenciação em relação ao outro; formada a consciência de si e adquirida a capacidade de relativização, adoles-centes e jovens lutam para se afirmar no seio de uma sociedade regulada por adultos, cujo funcionamento se apresenta como estranho. A forçosa adaptação a este novo paradigma impli-ca um investimento considerável, num

Estrangeiros na suaterra: os jovens e a sociedade

Madalena Teixeira da SilvaDocente do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores

Crescer para mim significa que apesar de saber que omundo é uma desgraça, um erro garrafal, neste erro também posso sentir algumas alegrias…Ana Meireles, Baunilha e Chocolate

OPINIÃO

processo quase sempre conflituoso e atribulado.

A esta fase da vida corresponde a criação de um cultura que, apesar de minoritária, tem sido reconhecida pela sua criatividade, rebeldia e originali-dade. Como outras minorias, a cultura juvenil obteve notoriedade crescente a partir das últimas décadas do século XX, quando começou a constituir fonte de inspiração para as artes institu-

cionalizadas, música, dança, pintura, cinema, influenciando também a moda ou promovendo novas formas de entre-tenimento e desporto. Apesar disso, ela mantém o traço de cultura periférica que lhe assegura a mobilidade suficien-te para não se subordinar a outras re-gras que não as suas e que lhe permite uma constante e rápida renovação.

A realidade vivida pelos adolescen-tes e jovens implica o sofrimento da

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integração no meio escolar, a discri-minação em função de traços físicos, da maneira de ser ou de vestir, dos resultados obtidos, em suma, de tudo o que possa servir de pretexto para a aparentemente natural crueldade da convivência em meio escolar. Enfren-tam também a incompreensão mútua entre a sua geração e a dos pais e a incomunicabilidade que a partir daí se instala – são dois idiomas distintos, com termos específicos, correspon-dendo a diferentes cosmovisões e re-alidades. Em busca da sua identidade, os jovens dificilmente se reconhecem numa sociedade onde não têm voz e que cada vez mais oferece instabilidade e ameaças mais ou menos veladas.

Estes temas são reiteradamente tra-tados na literatura juvenil que, apesar da sua condição periférica no sistema literário, tem conquistado cada vez mais leitores adultos, porque oferece um ponto de vista distanciado e críti-co, centrado no olhar de protagonistas jovens.

Um exemplo dessa literatura, de-signada pela expressão crossover, é Ilha Teresa, de Richard Zimler, escritor com créditos já firmados na escrita para adultos. Nessa obra, a protagonista, Teresa, analisa o mundo que a rodeia, mundo que se caracteriza por uma

quase excessiva complexidade. Imi-grante portuguesa nos Estados Unidos, a personagem enfrenta a integração num meio geográfico e social muito diverso, um ambiente familiar adverso, constituído por uma mãe alheada do meio familiar, por um pai doente que acaba por falecer, e por um irmão mais novo, cujo comportamento denota um perigoso isolamento do real. A isto se juntam as dificuldades de comunicação numa língua estrangeira, um novo sis-tema de ensino e a consequente solidão da personagem.

A perspetiva da personagem sobre a realidade é bastante crítica, criada com base num eu que se isola numa metafórica «ilha Teresa», que lhe serve de refúgio mas também como medida de todas as coisas. Esta opção por uma focalização ilhada, que ignora qua-se por completo a alteridade, traduz as mesmas dificuldades sentidas por todos os jovens em transição entre a infância, caracterizada pelo egotismo, e a rejeição crítica de uma sociedade de risco, que não se sentem preparados para enfrentar. A natural desorienta-ção que daí resulta revela-se quando a personagem oscila entre a indignação contra preconceitos e reage intempesti-vamente à forma injusta como é tratado o seu amigo gay e o modo como aceita,

de forma liminar, preconceitos da sua nova pátria, ao ver, por exemplo, em todo o adulto um potencial predador.

Esta obra, que tem como tema cen-tral a imigração, acaba por tratar temas semelhantes aos que são abordados por outros romances ou novelas cujos pro-tagonistas, também jovens, não passa-ram por essa experiência. Encontramos nas obras de Alice Vieira, Ana Salda-nha, Teresa Maia Gonzalez, Ana Meire-les, António Mota, entre outros autores, personagens que se confrontam com os mesmos dilemas na sua própria comu-nidade. A busca de sentido, de autoco-nhecimento, de integração e reconheci-mento social, de compreensão do outro encontram terreno privilegiado nestas narrativas juvenis, que pretendem, afinal, representar a realidade vivida pelos jovens na sociedade atual. Elas denotam, ao mesmo tempo, o debate, de base educativa, entre a defesa da necessidade de esperança admitida há muito como essencial ao crescimento e a urgência de preparar os jovens para se integrarem numa sociedade em cri-se, instável e injusta. E ao refletirem as vivências dos jovens concentram e tra-duzem toda uma série de dilemas que se colocam a todos os seres humanos que enfrentam a incompreensão, a dis-criminação e a intolerância.

Estrangeiros na suaterra: os jovens e a sociedade

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Conhecer o Outro através da ficção

ENSAIO

Muito do conhecimento de que dis-pomos sobre realidades com que nunca contactámos foi provavelmente adquiri-do através de obras de ficção, sejam elas escritas, audiovisuais ou outras. Apren-demos muito sobre o temperamento dos espanhóis ao vermos filmes do Pedro Almodovar, conhecemos um período importante da História da Rússia ao ler Guerra e Paz, compreendemos o pro-blema das favelas do Rio de Janeiro por termos assistido a telenovelas brasileiras, e até entendemos melhor a vivência da insularidade nos Açores no século XX ao lermos Mau tempo no canal.

Devido à capacidade que tem de nos permitir identificarmo-nos com as personagens e imaginar, por momentos, estarmos a viver as suas aventuras, a ficção convida-nos igualmente a colo-carmo-nos no lugar do Outro e a ver o mundo através dos seus olhos. Estas são qualidades únicas, de que nem sempre estamos conscientes.

A literatura tem a vantagem, com-parativamente com outras artes mais jovens, de ter desempenhado este papel ao longo de séculos. Não apenas através dos múltiplos e multifacetados relatos

Dominique FariaDocente do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores

« Le Déjeuner d’Huîtres », de Jean-François de Troy (1735)

Este quadro, encomendado por Louis XV para decorar as paredes do Palácio de Versalhes, representa aristocratas comendo ostras em louça de prata e bebendo champanhe. “À grande e à francesa”, portanto.

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de viajantes, mas também do mais co-mum dos romances, contos ou novelas, que permitem igualmente esse acesso indireto às culturas estrangeiras.

Apesar de este ser um papel inegável dos vários tipos de ficção com que nos vamos cruzando ao longo da vida, é fun-damental ressalvar que estamos a lidar com representações e não diretamente com a realidade. Entre a realidade e o recetor interpõem-se vários filtros, vá-rias camadas interpretativas. Antes de mais, a nossa perceção do Outro é de-terminada pelas versões mais ou menos estereotipadas de culturas estrangeiras com que contactamos, desde crianças. Estes estereótipos culturais chegam-nos através dos meios mais variados, alguns deles aparentemente inocentes, como os livros infantis, os desenhos animados, as lengalengas e, mais tarde as séries televi-sivas, a música, ou a fotografia.

Como exemplo, podemos indicar algumas expressões idiomáticas por-tuguesas, usadas diariamente sem que se tenha o hábito de questionar os seus pressupostos, mas que influenciam e perpetuam a forma como perceciona-mos os outros povos. Assim, os portu-gueses dizem “viver à grande e à france-sa”, que sugere que os franceses têm uma vida de luxo e ostentação, ou ainda “sair à francesa”, na qual está subentendida a ideia de que os franceses abandonam o local sem se despedirem. Não deixa de ser curioso que os próprios franceses têm uma expressão equivalente a esta última, “filer à l’anglaise” (“sair à ingle-sa”), que tem o mesmo sentido, mas atribui essa característica a outro povo.

Sendo um autor fruto da formação que recebeu, da época em que viveu, este contexto influencia geralmente a sua mundivisão. Assim, as representa-ções de povos estrangeiros com que foi contactando ao longo da vida vão con-tribuir para a formação da sua própria perceção dessa realidade (seja porque adota os modelos que chegam até ele, seja porque os recusa). Um dos fatores a ter em conta quando contactamos com uma ficção é portanto a perceção que o seu autor tem do povo e da cultura que retrata.

Um segundo elemento a ter em con-sideração é o conjunto das convenções do género com que o autor trabalha, pois estas condicionam o resultado final que chega ao recetor. Muitos dos relatos de viagens escritos antes do século XIX

incluem preconceitos e juízos de valo-res sobre o povo estrangeiro com que o viajante contacta. Se hoje nos sentimos chocados ao ler estes textos é porque as convenções do género se foram alteran-do e aquilo que era considerado natural, recomendável, é hoje criticado. Porque os autores reagem aos costumes da época em que vivem, as ficções acabam por fornecer tanta informação sobre o período histórico e a cultura nos quais foram criadas como dos povos que des-crevem.

Um outro filtro tendencialmente ignorado é a tradução. Uma obra pro-duzida no estrangeiro, noutra língua, representando o seu contexto sociocul-tural de origem, é uma fonte inigualável de informação e de experiências à dis-posição do recetor e à qual, frequente-mente, só se tem acesso graças à tradu-ção. Entre os dois documentos existe, no entanto, um indivíduo, o tradutor, que trabalha com as limitações naturalmente impostas pela sua língua, pelo conheci-mento que tem das culturas que põe em contacto e pelas regras do meio em que se move. Os tão criticados tradutores de

legendas, por exemplo, dispõem de um número muito reduzido de caracteres para registarem as falas das persona-gens, trabalham com prazos muito cur-tos, traduzindo por vezes sem ter acesso à imagem (devido ao secretismo que se pretende manter antes da estreia de um filme). Todos estes fatores influenciam as representações culturais constantes no documento traduzido, que nem sem-pre coincidem exatamente com as da versão de que se tinha partido.

Todas estas interpretações da reali-dade que determinam as representações culturais criadas no interior de uma fic-ção não são desvantagens ou motivo su-ficiente para se desvalorizar essa função das várias histórias que nos rodeiam. É, no entanto, importante que comecemos a pensar nas obras ficcionais que con-sumimos diariamente – nas telenovelas, nos filmes da Disney, na banda desenha-da… – como construções. E, como tal, a interpretá-las mais aprofundadamente, procurando deslindar os pressupostos que as sustêm, as opções que as deter-minam, em suma, o olhar sobre o Outro que nos propõem.

“Super Pierre Bros. Oui”, de Jon Defreest. (Reproduzido com a autorização do autor).

O artista norte-americano Jon Defreest criou esta versão do famoso Super Mário, substituindo os traços tipicamente italianos evocados originalmente pela personagem por estereótipos franceses.

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A escola como veículo privilegiado de integração cultural

ENSAIO

Margarida Isabel MouraMestre em Estudos Interculturais: Dinâmicas Insulares; Mestranda em Tradução e Assessoria Linguística

A escola tem vindo a assumir uma importância muito significativa na inte-gração dos jovens imigrantes, tornando-se num veículo cultural integrador de jovens imigrantes na sociedade portu-guesa. Com a crescente heterogeneidade da sociedade, a escola já não é encarada como um elemento uniformizador na sociedade, mas como um elemento de integração e mediação cultural.

Nas últimas décadas, o fluxo imi-gratório trouxe uma grande diversidade cultural à sociedade portuguesa, crian-do uma sociedade mais heterogénea, com populações de diferentes origens, culturas e religiões, dando origem a novas dinâmicas – a interculturalidade e a multiculturalidade.

A interculturalidade implica, pela sua etimologia, uma interação entre grupos de diversos contextos culturais. A partir das décadas de 70 e de 80, as-siste-se progressivamente a uma descen-tralização da cultura, começando-se a valorizar os diversos contextos culturais

dos diferentes grupos de imigrantes no território português assim como o seu impacte na sociedade. A interculturali-dade resulta, então, dos contactos que ocorrem entre as diferentes culturas, do conhecimento do “outro”, havendo uma absorção de elementos de ambas as par-tes, de forma a produzir novas potencia-lidades culturais mais enriquecedoras.

Ao falarmos das dinâmicas in-terculturais, não podemos deixar de mencionar o papel da multiculturali-dade. Inevitavelmente, o contacto entre diferentes culturas trouxe novos valores culturais, religiosos e a coexistência de diferentes etnias. Com a emergência de uma sociedade cada vez mais heterogé-nea, coloca-se a questão: como integrar estas pessoas na sociedade sem criar conflitos?

A mudança do paradigma da So-ciologia e da Cultura assim como o progressivo desaparecimento de uma visão etnocêntrica da cultura deram lugar a uma visão mais alargada. Neste

contexto, as minorias começam a afir-mar a sua identidade nas sociedades de acolhimento.

Na sociedade atual, o multicultu-ralismo já não é encarado com receio e desconfiança, mas como uma força potenciadora de riqueza cultural. Desta forma, podemos afirmar que a socieda-de moderna caminha progressivamente para a aceitação, respeito e tolerância da diferença do “outro”, dando-lhe uma voz própria.

Numa sociedade intercultural e mul-ticultural, o domínio da língua do país de chegada é uma condição necessária à integração linguística e cultural dos imigrantes. No entanto, a língua assu-me uma dualidade enquanto fator de aproximação e de afastamento. A língua é um veículo primordial da expressão da mundividência de um povo, da sua cultura e identidade. Apesar do seu con-tributo para a diversificação cultural, a existência de diversas línguas numa sociedade intercultural e multicultural

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torna-se um verdadeiro desafio para a integração de um determinado grupo na sociedade.

Neste contexto, a aprendizagem da língua do país de acolhimento é extre-mamente importante para a aceitação social dos cidadãos estrangeiros, pois esta é a primeira forma de comunicação com a nova realidade. O não-domínio da língua constitui, efetivamente, um grande entrave à integração dos imi-grantes, impedindo-os de interagirem ativamente na sociedade que os acolheu.

Tendo em consideração que uma língua constitui um veículo de ex-pressão de uma determinada visão do mundo, um dos grandes desafios da aprendizagem da língua de chegada prende-se com o facto de o imigrante não aprender apenas a língua na sua vertente lexical, gramatical e sintática, mas também na sua vertente cultural e histórica, estando, deste modo, a assimi-lar uma outra mundividência.

Face à emergência dos cenários mul-ticulturais, multiétnicos e multilinguís-ticos nas últimas décadas, a escola tem assumindo um papel vital na integração dos imigrantes, não só a nível social, mas também a nível linguístico, procu-rando dar uma resposta às dificuldades de integração que advêm de diversos

fatores, nomeadamente, de dificuldades linguísticas. Cada vez mais, a preocupa-ção do sistema educativo centra-se na construção de uma educação que pro-mova o contacto com alunos de diversas origens num contexto de tolerância e de respeito pela diferença.

A educação intercultural visa criar interações dinâmicas entre grupos dife-rentes no meio escolar, promovendo a inter-relação entre estes num diálogo de tolerância e igualdade.

Por seu turno, a educação multicul-tural procura promover atitudes que reconheçam, respeitem e valorizem a diversidade cultural da população escolar. Estas preocupações estão consa-gradas no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas.

Contudo, podemos constatar que os seus princípios estão centrados na cres-cente mobilidade entre países europeus, especialmente entre Estados-Membros, e na integração linguística e cultural das línguas europeias, não se fazendo refe-rência ao intenso fluxo migratório pro-veniente de países extraeuropeus nem à pluralidade de línguas extraeuropeias, cuja integração merece especial atenção.

Não obstante este facto, a escola tem procurado criar mecanismos para a promoção da interculturalidade e mul-

ticulturalismo através de um currículo assente no respeito pela diversidade cultural que ofereça condições para a igualdade de oportunidades educativas, respeitando e valorizando a diferença como elemento dinamizador e enrique-cedor num mundo marcado pelo plura-lismo cultural.

Por conseguinte, um dos principais objetivos da escola para esta área tem sido dotar os alunos de competências interculturais e multiculturais no intuito de incutir nestes uma identidade cultu-ral aberta e flexível, mitigando precon-ceitos étnicos e sociais.

A heterogeneidade sociocultural e a diversidade linguística dos alunos re-presentam uma mais-valia cultural que necessita de condições pedagógicas e didáticas adequadas à aprendizagem da Língua Portuguesa como elemento es-sencial à integração social e linguística dos jovens imigrantes.

Cabe à escola, então, criar con-dições de acolhimento e acompanha-mento no processo de aprendizagem, diversificando o currículo, promovendo experiências e métodos de aprendiza-gem interculturais num ambiente de tolerância e valorização da diferença, tornando a escola num veículo privile-giado de integração cultural.

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“É necessário apostar na formação das crianças e dos jovens...”

Paulo TevesENTREVISTA

Ana Cristina GilDocente do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores

É Diretor Regional das Comuni-dades desde 2013. Como caracteriza a ação da Direção Regional das Comu-nidades (DRCom) nos últimos anos?

A Direção Regional das Comuni-dades, departamento do Governo dos Açores responsável pelas migrações na dupla vertente da emigração e imigra-ção, tem desenvolvido, ao longo dos anos, uma ação que inclui diversas áreas agrupadas em dois grandes campos de trabalho: a integração e a preservação da identidade, numa promoção harmonio-sa da interculturalidade.

Temos consciência de que qualquer processo emigratório compreende uma complexa relação de fatores que deter-minam a partida, a escolha do destino e a forma de interagir com a comunidade e cultura locais.

Tendo em conta que a integração dos migrantes é um processo dinâmico e em constante mudança, resultante de influências bastante diversas ao nível das

Dr. Paulo TevesDiretor Regional das Comunidades

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macroestruturas económica, social, polí-tica e institucional dos países de destino e das especificidades singulares de cada sociedade recetora, a Direção Regional das Comunidades, atenta a este fenóme-no, tem vindo a adaptar a sua ação em conformidade com os desafios e anseios das comunidades migradas.

É, sobretudo, através da permanente comunicação com os nossos migrantes e instituições comunitárias que procura-mos satisfazer as suas aspirações e pro-mover a sua integração, bem como as suas potencialidades e capacidades com vista ao desenvolvimento das diversas sociedades e do incremento das relações institucionais entre os Açores, os países e regiões de origem e de destino.

A Direção Regional das Comuni-dades tem tido um papel fundamental na integração dos imigrantes nos Aço-res. Que iniciativas têm sido levadas a cabo neste âmbito?

A Direção Regional das Comunida-des desenvolve um leque de ações diri-gidas aos cidadãos imigrados residentes nos Açores.

A nossa ação, alicerçada nos do-mínios da integração, preservação e divulgação dos valores identitários dos imigrantes, corresponde a uma sinergia entre diversas instituições governamen-tais e não governamentais, através de protocolos de cooperação estabelecidos, designadamente com a AIPA – Associa-ção dos Imigrantes nos Açores e com o CCAI – Centro Comunitário de Apoio ao Imigrante, bem como no apoio a diversas iniciativas.

Uma das apostas é, sem dúvida, criar mecanismos que possibilitem a plena integração de quem elegeu os Açores como sua nova residência.

Neste sentido, e à semelhança do ano passado, iremos promover cinco cursos de Português para falantes de outras línguas, a partir de setembro, com um total de 70 formandos inscritos, de 17 nacionalidades, nas ilhas de São Miguel, Terceira, Faial e Flores.

Esta capacitação, com a certificação de conhecimento de Português do nível A2 de proficiência linguística, permite aos imigrantes cumprir com as exi-gências dos regimes para aquisição de nacionalidade portuguesa, concessão de autorização de residência permanente e estatuto de residência de longa duração, no que se refere ao requisito e prova de

conhecimento da Língua Portuguesa.De igual modo, a realização destes

cursos constitui um importante passo rumo à integração da comunidade imi-grante na nossa realidade arquipelágica e à valorização do diálogo e da inter-culturalidade na Região Autónoma dos Açores.

No âmbito da Portaria 14/2007 de 15 de março, que tem como finalidade apoiar  projetos de entidades individuais ou coletivas, que promovam atividades desenvolvidas na área da imigração, como a integração, a interculturalidade e o respeito pela diversidade nos Açores, temos satisfeito variadíssimos pedidos de apoio para a consecução de iniciati-vas com enquadramento na nossa área de competências.

Em relação a atividades organizadas pela Direção Regional das Comunida-des, destacaria algumas realizadas no corrente ano, nomeadamente o concur-so “Açores: mar de culturas”, dirigido a todos os jovens estudantes do ensino secundário da Região Autónoma dos Açores e o lançamento do DVD “Contos de Lá”, evento que juntou mais de 700 crianças, alunos do primeiro ciclo do ensino básico da ilha do Faial, que assi-nalou o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racional.

Segundo a sua experiência, quais as principais dificuldades sentidas pelos imigrantes nos Açores?

De uma forma geral, qualquer ci-dadão que se desloque da sua terra de origem para outro país tem como prio-ridade a sua plena integração aos níveis laboral, social, cultural, entre outros, dependendo o sucesso desta, dos siste-mas de acolhimento que cada país lhe oferece.

O cidadão imigrado poderá também sentir dificuldades ao nível do domínio da língua, na obtenção de documentos, legalização e reconhecimento de habi-litações, etc, sendo que estes obstáculos vão diminuindo paulatinamente com o decorrer do tempo de permanência no país recetor.

Vejamos o caso dos Açores, onde residem mais de 3600 cidadãos estran-geiros de cerca de 76 nacionalidades diferentes, em que uma grande parte é oriunda de países de língua oficial por-tuguesa, facto que, à partida, permite a esses imigrantes ultrapassarem, com maior facilidade, algumas barreiras

linguísticas e comunicacionais, quando comparados com outros provenientes da Ásia, como a China, ou da Europa de Leste, como a Ucrânia.

A criação de cursos de português para falantes de outras línguas teve em consideração esta necessidade que, para além de permitir ao imigrante cumprir com uma das exigências para aquisição da nacionalidade, tem como propósito promover a leitura, a escrita e a orali-dade em português, facilitando, deste modo, a sua comunicação na sociedade açoriana.

A DRCom dispõe de serviços de atendimento público e apoio jurídico a imigrantes em todas as ilhas dos Aço-res, os quais colaboram na obtenção de documentação, encaminhamento de processos para outros serviços e provi-denciam a ligação institucional entre o imigrante e a sua representação diplo-mática em Portugal.

Falemos da emigração. Há algum tipo de apoio para os cidadãos por-tugueses que queiram emigrar para outros países?

A DRCom possui um serviço de atendimento ao público direcionado para os cidadãos candidatos a emigran-te, emigrantes regressados e imigrantes, localizado nas ilhas de são Miguel, Ter-ceira e Faial. Nas restantes parcelas do arquipélago este trabalho é assegurado mensalmente, através da deslocação de técnicos deste departamento.

Neste caso, prestamos informações sobre as condições e os requisitos de emigração para determinados países, esclarecemos eventuais dúvidas que possam surgir nos processos emigrató-rios, disponibilizando a necessária in-formação sobre procedimentos e apoia-mos os utentes no preenchimento de documentação, em estreita colaboração com as entidades oficiais dos respetivos países, nomeadamente representações consulares.

De igual modo, existe um conjunto de organizações comunitárias – Casas dos Açores, organizações de serviços so-cial, entre outras, que são fundamentais no apoio à integração dos portugueses nas novas sociedades de acolhimento.

Após a partida do cidadão, a DR-Com continua, sempre que necessário, a prestar-lhe o devido apoio no enca-minhamento de assuntos para outras entidades, quer no país de origem, quer

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na Região Autónoma dos Açores.

Que balanço faz da atividade da Direção Regional das Comunidades no contacto com a diáspora?

Quando falamos de Açores e de aço-rianos não podemos, jamais, deixar de incluir os milhares que residem fora do espaço arquipelágico.

As comunidades açorianas espalha-das pelo mundo, não descurando os seus deveres e direitos, enquanto cidadãos de outros países, mantêm fortes laços familiares e culturais com os Açores aprofundando, deste modo, os valores que os identificam e lhes conferem uma identidade muito própria nas sociedades que escolheram para viver.

A estreita e sólida relação existente entre os Açores e a diáspora demonstra

que existem interesses comuns entre ins-tâncias culturais, políticas, económicas e sociais em diversas áreas, que merecem toda a nossa atenção e investimento.

A nossa ação tem sido pautada por uma permanente comunicação com as comunidades emigradas, quer através das centenas de organizações que as representam, quer dos açorianos que nos procuram.

Temos assistido à adaptação do modus operandi das nossas associações, através das respostas dadas pelas mes-mas às aspirações dos açorianos emigra-dos, bem como aos desafios colocados pela nossa Região, por forma a promove-rem uma maior integração dos açorianos nas sociedades de acolhimento, a enri-quecerem, cada vez mais, as comunida-des e a prestigiarem a Região.

É com base nesta dinâmica das nos-sas comunidades que definimos as nos-sas prioridades. Tem sido uma missão honrosa contribuir para o fortalecimento das relações entre os açorianos e os açor-descendentes e a sua terra de origem.

A nossa diáspora, priorizando a transmissão dos valores açorianos às gerações mais novas, contribui para o desenvolvimento da nossa terra e para a dinamização e preservação da nossa identidade no mundo.

É, também, através da participação dos jovens açordescendentes no mundo associativo e recreativo, na divulgação do destino Açores, nas suas múltiplas vertentes e no incremento do relacio-namento com os jovens dos Açores que vislumbramos um profícuo futuro para a nossa diáspora, facto que nos leva a

sermos sempre diligentes na constante procura de ações e respostas que vão de encontro às suas aspirações.

Há alguma ação a ser feita junto das escolas, com vista a sensibilizar crian-ças e jovens para o diálogo intercultu-ral? Que recetividade encontram junto dos alunos? E dos professores?

Entendemos que é necessário apos-tar, sempre e cada vez mais cedo, na formação das crianças e dos jovens, através da realização de iniciativas que promovam a diversidade e o diálogo intercultural.

As atividades que temos vindo a desenvolver junto das escolas permitem-nos constatar que existe uma grande recetividade e colaboração por parte dos  alunos e professores. Por exemplo,

no âmbito do trabalho desenvolvido pela DRCom ao nível da educação inclusiva e promoção do conhecimento da diversi-dade cultural existente nas nossas ilhas, lançamos, no início do presente ano, a I edição do concurso “Açores: Mar de Culturas”, a que concorreram 11 grupos de alunos de escolas das ilhas de Santa Maria, São Miguel, Faial e Pico.

Também, este ano, lançamos no dia 21 de Março, na ilha do Faial, o DVD “Contos de Lá”, no âmbito do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Este DVD, que compila cerca de meia centena de contos tradicionais de vários países de onde são oriundos os imigrantes residentes nos Açores, foi distribuído por todos os jardins-de-infância e escolas do ensino básico das nove ilhas.

Nós acreditamos que é prioritário promover a educação intercultural, não apenas junto dos mais jovens, mas também de toda a sociedade, a fim de darmos a conhecer a nossa cultura e identidade aos imigrantes que escolheram os Açores para viver e estarmos também disponíveis para receber os seus conhecimentos e partilharmos experiências uns com os outros.

Que projectos tem a DRCom em curso? E para os próximos tempos?

A DRCom pretende, acima de tudo, contribuir para o bem estar dos nossos migrantes, quer os açorianos emigra-dos, quer os cidadãos estrangeiros que escolheram os Açores como seu novo lar. Vencer este desafio, partilhado por dezenas de organizações existentes nos Açores e na diáspora, é condição sine qua non para termos comunidades sóli-das, empreendedoras e respeitadas.

É, também, nosso desígnio divulgar, cada vez mais, os Açores, de hoje, junto da nossa diáspora, numa perspetiva mais abrangente e em diversas áreas, que inclua também todos aqueles que, não sendo açorianos, partilham os mesmos espaços físicos.

A dinamização do associativismo, o fortalecimento da relação dos jovens açorianos com os das comunidades, a promoção da Região como local de con-fluência de culturas, história e moderni-dade, o estímulo à preservação e divul-gação da identidade cultural açoriana no mundo são, entre outras, algumas das ações que nortearão o nosso caminho.

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OPINIÃO

Mariana Vicente BarbosaAluna do 3º ano de

Comunicação Social e Culturada Universidade dos Açores

Roger Ballen nasceu em Nova Ior-que, mas vive em Joanesburgo e tem vindo a fotografar e documentar os habitantes de vários locais de África do Sul. O seu trabalho como fotógrafo pauta-se pela preferência pela criação de imagens a preto e branco, de grande contenção nos motivos, que evitam mimetizar o mundo ou a realidade tal como o olhar a apreende, para, em vez disso, nos proporcionarem visões trans-formadas da realidade que encorajam a nossa capacidade de interpretação visual.

A fotografia intitulada Concealed (2003) constitui um exemplo das prin-cipais tendências do seu trabalho. Pode ser encontrada num livro intitulado Bourding House, que integra diversas imagens em que se podem ver pessoas

a interagir com animais e objetos estra-nhos em espaços misteriosos. É uma oportunidade de viagem a outro local que nos é estranho e desconfortável. Além de não nos ser familiar, o local não é harmonioso; é frio e não procura apre-sentar-se como perfeito. Pelo contrário, na verdade, esta fotografia – bem como outras deste fotógrafo – desconstrói a realidade e a beleza canónica que espe-ramos da representação do humano e dos espaços. A escala de cinzentos sim-boliza a obscuridade e o ambiente pesa-do que nos é transmitido, onde abunda a sobreposição de camadas de tinta e de elementos desenhados e rabiscados.

Em relação às pessoas, há uma dis-torção das mesmas, por taparem ou esconderem a cara. A figura que está sentada no chão tem o seu rosto distor-

cido, formando uma espécie de más-cara. Normalmente, o mais comum na fotografia que retrata o ser humano é o contacto directo com o olhar e o acesso à expressão das pessoas fotografadas. Apesar disso, nesta fotografia não nos é permitido ver nada disto. Esta é uma representação um pouco dramática e desfigurada dos elementos representa-dos, não se notando a preocupação de transmitir uma imagem aperfeiçoada dos retratados. As personagens estão a posar de uma forma estranha para a má-quina fotográfica, parecendo não querer ver ou ser vistos.

Perante este tipo de imagens, apercebemo-nos do enorme potencial que rodeia a representação visual. Por um lado, é uma fotografia documental, que nos fornece informação sobre uma

Roger Ballen, fotógrafo

da diferença

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dada realidade. Ela põe-nos em contacto com uma realidade que desconhecemos, leva-nos até ao Outro, no seu próprio ambiente, assim se constituindo como documento cultural de uma diferença que nos ajuda a compreender-nos en-quanto distintos do elemento humano retratado; por outro lado, é artística, pois é fabricada de acordo com uma intenção estética, todos os objetos foram dispostos segundo rigorosos princípios de ocupação do espaço, permitindo-nos o conjunto ter a perceção de como interagem várias formas de arte, como a pintura e o teatro.

Roger Ballen oferece-nos imagens intrigantes e surreais que desencadeiam em nós respostas emocionais intensas. Ao conhecermos o Outro tomamos consciência de nós. E observamos os que são diferentes de nós de modo com-pletamente surpreendente. A imagem que construímos do Outro é, na genera-lidade, feita com a informação que acu-mulámos previamente. Estas fotografias subvertem-na.

É possibilitada uma troca cultural, uma experiência de contacto com novas realidades e paragens. O ambiente é primitivo, humilde e pobre. As figuras humanas estão parcialmente despidas, com os pés descalços e sujos.

O título sugere que as pessoas fi-cam na casa por pouco tempo, estão de passagem, apenas se poderão abrigar nela por algum tempo. Os desenhos que vemos nas paredes estão lá fixados, tal como os objectos e talvez o gato. Esbatem-se as fronteiras entre o real e o fictício.

Não é importante perceber a ima-gem, mas sim desfrutar dela como algo desconcertante e desconfortante. Aceitá-la como uma experiência visual. Posto isto, a nossa imaginação pode soltar-se e percorrer o espaço.

Não conseguimos identificar clara-mente o local onde a fotografia foi tira-da. Nada nos diz que se trata de África do Sul, nem o espaço nem as pessoas. O que ressalta é a diferença na representa-ção do humano (sem querer ver ou ser

visto, negando a própria natureza da representação visual) e do espaço (aqui um composto de interior e exterior, ce-nário, película e tela). Importa salientar a importância da cultura, das artes e do conhecimento como veículo de promo-ção da diversidade e da consciencializa-ção da diferença entre o “eu” e o “outro”. Deve haver uma educação multicultural para fomentar as capacidades humanas e criativas.

O objetivo é romper com a homo-geneidade cultural, promover a criati-vidade e afastarmo-nos do superficial e do conformismo típico das sociedades modernas. A diferença é, portanto, um aspeto fundamental num mundo cada mais intensamente multicultural. O re-conhecimento de uma identidade huma-na universal, de que o filósofo Charles Taylor nos fala, a ideia de sermos cida-dãos do mundo, não poderá eliminar a possibilidade da diferença.

Vem a propósito recordar a célebre frase de Anthony Giddens: “Unidade não é o mesmo que uniformidade”.

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ENSAIO

A propósito da diferença na escrita pós-colonial:

o caso de Venenos de Deus, remédios do Diabo

Leonor Sampaio da SilvaDocente do Departamento de

Línguas e Literaturas Modernasda Universidade dos Açores

O colonialismo e o pós-colonialismo têm-se imposto como temas com forte poder de atração junto da comunidade académica. Um dos últimos desenvol-vimentos no tratamento desta temática dá conta de diferenças na experiência europeia da colonização. Segundo esta perspetiva terão existido especificida-des no modo como as várias potências europeias atuaram nos seus territórios coloniais. O caso português, por exem-plo, ter-se-á demarcado do modelo anglo-saxónico de várias maneiras. Não só a experiência colonial portuguesa apresenta a especificidade de ter anteci-pado as características que viriam a ser definidoras do pós-colonialismo – a am-bivalência, a miscigenação e a hibridez – como se confundiam papéis nos am-bientes multiculturais, com os colonos portugueses a imitarem os africanos em vez de imporem neles a matriz a imitar.

A literatura que vai surgindo em contexto africano parece validar esta

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leitura do colonialismo português. To-mando como exemplo o livro de Mia Couto Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008), vários são os episódios pontuados por ambivalências, misci-genação e hibridez que se reportam ao período da presença portuguesa em Moçambique. Evidencia-se, em primei-ro lugar, a contaminação das duas épo-cas, a colonial e a pós-colonial. O peso do passado no presente, patente através do recurso anacrónico a sortilégios e feitiçarias, manifesta-se ainda por via da importância de memórias e de sím-bolos como a bandeira da Companhia Colonial de Navegação, que continua hasteada apesar de terminada a presença colonial portuguesa e de extinta a Com-panhia. Além disso, quer a indefinição do tempo em que decorre a narrativa quer a sobreposição de várias estórias e a convergência de gerações em persona-gens com idade incerta e múltiplas fun-ções familiares (Deolinda: filha-irmã; Sidónio: genro-amante) colaboram na impressão geral de ambivalência tempo-ral, que Edward Said identificou como sendo típica das nações coloniais.

As outras duas características ge-ralmente referidas como definidoras da consciência pós-colonial – a miscigena-ção e a hibridez – são também reportá-veis a momentos anteriores à descoloni-zação. A condição de mestiça de Dona Munda e o comportamento bizarro de Bartolomeu Sozinho, seu marido, que deseja ser morto às mãos de um branco para valorizar a sua morte, ou ainda a gratidão alternada de Suecelência, o Ad-ministrador de Vila Cacimba, pelos por-tugueses, ingleses, italianos, franceses e russos (sempre variando a nacionalida-de dos seus salvadores, mas mantendo-a dentro das fronteiras europeias), por o terem resgatado de morte certa no mar em criança – tudo isso contribui para encurtar a distância entre passado e presente, africanos e europeus.

Um dos primeiros instantes em que nos deparamos com o fascínio pela diferença em contexto colonial ocorre logo no início da narrativa. Bartolomeu Sozinho recorda o dia em que o transa-tlântico português Infante D. Henrique chegou a Porto Amélia, no ano de 1962. O que mais o cativara havia sido a natu-reza híbrida do navio, criatura fronteiri-ça entre terra e água, meio peixe e meio ave, nem totalmente casa nem comple-tamente ilha. Naquele dia, o deslumbra-

mento causado por uma imagem radi-calmente diferente de tudo quanto havia contemplado já anunciava a atração pela mestiçagem que o levaria a encantar-se por Munda e que faria com que ele alte-rasse o seu nome africano, Tsotsi, pelo lusitano Sozinho, num momento de auto-colonização voluntária.

Miscigenação, hibridez e ambivalên-cia percorrem, assim, a temporalidade colonial ainda antes de se apresentarem com contornos reforçados em contexto pós-colonial. De facto, é mais tarde que a sobreposição de planos, de tempora-lidades e de linguagens se aprofunda. A chegada do português Sidónio Rosa (não por acaso, um quase médico que vai trabalhar no posto de saúde de Vila Cacimba antes de concluir o curso) intensifica a aproximação de dois mun-dos e de duas gerações. Especialmente atento ao estado de saúde de Bartolo-meu, pai da jovem mulata por quem se apaixonara em Lisboa, Sidónio mantém com ele e com sua mulher um contacto permanente que se salda, no fim, pela suspeita de que o velho africano poderá ter transmitido ao jovem português a doença que o mata lentamente.

Mas a contaminação é mais pro-funda do que a mera passagem do vírus de um corpo moçambicano para um corpo português. No meio de um denso emaranhado de mentiras e contradições, de espectros e de mistérios, as conversas acontecem numa linguagem surpreen-dente tanto ao nível formal como do conteúdo. À reformulação de provérbios e expressões idiomáticas portuguesas (calar-se pelos cotovelos, por exemplo) soma-se a estranheza instaurada por uma narrativa cujos factos variam con-forme as personagens que os relatam. Sem se saber exatamente qual a versão verdadeira, em que estórias acreditar, qual o tempo da diegese, em que latitude se situa a aldeia, se as personagens são o que dizem ser, fica apenas a certeza de que a carne da identidade é feita de cor-po e de palavras.

O motivo maior que preside aos en-contros multiculturais em Vila Cacimba desenvolve-se em torno do corpo. Tanto Bartolomeu como as pessoas da aldeia são atacados por doença desconhecida, debatem-se com a fragilidade física, expressam a necessidade de remédio, confessam a ameaça do veneno e verba-lizam o desejo de cura. É o sofrimento do corpo e da alma que aproxima o por-

tuguês dos africanos. É isso que precisa de ser corrigido, não a gramática. Esta, apesar de suficientemente diferente para suscitar no português riso e surpresa, não requer qualquer correção. A fragi-lidade física do africano é amplamente compensada pela sua superioridade linguística. Eloquente, criativo e per-suasivo, Bartolomeu supera Sidónio no confronto verbal.

Em Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto apresenta-nos, assim, um universo em que simultaneamente se sublinha o direito à diferença das antigas colónias como sendo uma plena conquista da soberania pós-colonial e se reconhece as marcas da propalada dife-rença colonial de Portugal no quadro do colonialismo europeu.

Não deixa, porém, de ser curioso que o interesse contemporâneo em transferir as desigualdades para o universo dos colonizadores possa vir a ter um efeito imprevisto e, de certo modo, perverso. Afirmar hierarquias no grupo dos países colonizadores, instituindo novas instân-cias subalternas – não já os colonizados, mas os europeus periféricos que, como Portugal, criaram especificidades des-viantes em relação ao padrão hegemóni-co anglo-saxónico – equivale a deslocar o foco das atenções novamente para os construtores dos impérios. O discurso comparatista do fenómeno colonial acaba por subverter a intenção essencial dos estudos pós-coloniais, convertendo o elemento colonizador no objeto de estudo principal. Se, no passado, recusar a diferença servia para expressar a su-perioridade do poder colonial, afirmar agora a diferença política no exercício do colonialismo poderá reativar o prota-gonismo ocidental.

Não sendo indiferentes a esta cor-rente, as literaturas africanas continuam a resistir ao poder de absorção do oci-dente, criando representações de África e dos seus povos como sendo capazes de uma reconciliação com o passado que nem esquece as origens nem abdica do direito à diferença. Parte significativa desta diferença situa-se no âmbito da língua: mais do que contar histórias, ela é a história principal de duas culturas e duas temporalidades que não devem cair no esquecimento. As flores brancas do cemitério de Vila Cacimba, semeadas para que os mortos não se lembrem de que um dia viveram, não deverão florir junto à morada dos vivos.

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ENSAIO

Pensar o impensado: contradições do

colonialismo português

Ana Cristina GilDocente do Departamento de

Línguas e Literaturas Modernas da Universidade dos Açores

“Tudo isto está de acordo com a nossa maneira de estar no mundo”. Com esta epígrafe do próprio autor começa a última obra de Eduardo Lou-renço (EL), intitulada Do Colonialismo como nosso impensado, na qual o en-saísta volta ao tema que o ocupa desde sempre: a identidade nacional, o modo como os portugueses a vivem e a sen-tem e os reflexos que esta tem no modo como percecionamos o Outro, desta feita numa reflexão que abarca desde o colonialismo português até à perda dos territórios ultramarinos e posterior integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia.

Publicada em abril de 2014, esta obra reúne 25 ensaios de Eduardo Lou-renço (muitos deles inéditos), escritos “no arco de 50 anos” – da década de 60 até ao século XXI –, como informam

os seus organizadores e prefaciadores, Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Não tendo sido todos escritos com o intuito de serem editados, os textos foram agora reunidos por estes professores – que têm atuado no âmbito da Cátedra Eduardo Lourenço na Uni-versidade de Bolonha –, sob orientação do próprio Eduardo Lourenço. A opção de apresentar os textos “com a forma elíptica do silêncio” (como diz EL na “Nota prévia”, p. 9) – ou seja, sem uma contextualização que certamente seria muito útil para situar o leitor no tempo da escrita – é justificada pelo espaço enorme que seria necessário para o fa-zer. Assim, é deixada ao leitor a liberda-de de retirar as suas próprias conclusões quer sobre as ideias quer sobre o tempo e os factos que as suscitaram: “deixar cada texto falar por si, levando a poeira

que o tempo aí depositou marcando a sua passagem inexorável” (p. 10).

Na senda do que fez em O labirinto da saudade. Psicanálise mítica do desti-no português – em que demonstra como vários momentos históricos e vários movimentos artísticos do século XX perpetuaram a autoimagem irrealista que os portugueses têm de si próprios –, em Do Colonialismo como Nosso Im-pensado Eduardo Lourenço desconstrói os vários discursos que persistem em mascarar a real identidade dos portu-gueses sob uma capa de colonialismo fraternal e missionário ou de um euro-peísmo forçado.

Assim, três grandes núcleos temáti-cos constituem esta obra, obedecendo a um claro fio cronológico: o colonia-lismo (parte I – “Crítica da mitologia colonialista (década de 60 até 1974)”, o

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fim do império (parte II – “No labirinto dos epitáfios imperiais (1974/75 e de-pois)”) e a integração na Europa (parte III – “Heranças vivas”). No primeiro, Eduardo Lourenço apresenta uma visão do colonialismo português que procura ultrapassar a tentação do maniqueís-mo, que vê o Bem do lado do branco e o Mal do lado do negro. Lourenço combate esta “mentira oficial” (p. 44) e põe em evidência a “cegueira oficial” instalada pelo Regime salazarista, que alimenta no povo a confusão “sobre a origem, causas e justiça” do que se passa em África (p. 49). E o que se passava em África nos anos 60 era o início da Guer-ra Colonial como consequência das rei-vindicações independentistas dos afri-canos, sublinhando o ensaísta “a suma habilidade do Regime [em] esconder a sua face real detrás desta providencial questão ultramarina” (p. 81).

Toda a reflexão de EL – feita em tom de denúncia e em muitos casos contem-porânea dos factos que comenta – parte do pressuposto de que a colonização portuguesa, que sempre se quis apre-sentar como uma “colonização-outra” (p. 254), especial, é semelhante a todas as outras, já que se define enquanto “exploração sistemática de terras e povos autóctones acompanhada da tentativa mais radical ainda da despossessão do seu ser profundo” (p. 66). Assim se tor-

nam evidentes as “contradições da mi-tologia colonialista portuguesa” (título, aliás, de um dos ensaios), cuja base é a ação civilizadora, pois civilizar consiste em o colonizador abolir a sua própria superioridade, constituir um “estado multirracial” e, portanto, neutralizar o seu “privilégio histórico e humano” (p. 72), ou seja, a sua razão de ser.

Os “epitáfios imperiais” ocupam a segunda parte desta obra, revisitando o processo da descolonização e o modo como este foi conduzido pelo Estado português, pondo em evidência a difi-culdade de Portugal em cortar o cordão umbilical que o unia às ex-colónias e a tentação metropolitana de encetar uma nova vida em comum com estes territórios. Segundo Eduardo Lourenço, esta resistência de Portugal em aceitar a diferença das novas nações africanas assumiu laivos de neocolonialismo. A única solução seria, então, uma mudan-ça de atitude, que permitisse “passar da falsa comunicação [...] à comunicação autêntica de diferentes que se aceitam na diferença por se saberem iguais em humanidade” (p. 211). Já em 1974 Eduardo Lourenço mostra a sua perple-xidade perante o modo nada dramático como foi encarada a descolonização em Portugal: é que o nosso era um “pseudo-império” (p. 190), real para os colonos, mas fictício para o cidadão

comum que vivia na metrópole, alheado da realidade africana.

É na parte final que o discurso se concentra na relação de Portugal com a Europa. Perdido o Império, Portugal entra na Europa, procurando ainda marcar a sua diferença: no bilhete de identidade luso figura sempre a im-pressão digital colonialista, visível, por exemplo, na elevação da questão de Timor (“a última terra do antigo Impé-rio”, p. 297) a causa nacional, em 1999. À entrada de Portugal na Comunidade Europeia a consciência nacional, diz EL em 1992, permanecera impávida, seja por não acreditar que a Europa conti-nuasse a existir, seja por considerar que esta entidade supranacional em nada iria alterar a identidade singular de cada país.

Sempre fiel ao seu estilo luminoso e poético, Eduardo Lourenço revisita assim nesta obra as últimas décadas da História portuguesa, permitindo-nos não só compreender como chegámos ao lugar onde estamos, como também equacionar o nosso futuro enquanto na-ção. E não deixa de ser sintomático que esta obra – que também problematiza en passant a experiência colonial eu-ropeia – chegue aos escaparates numa época em que se sente o acirrar dos nacionalismos na Europa. Mais uma razão para não deixarmos de a ler.

IOlhei-te sem te reconhecerComparei-te ao já vistoNão te encontreiTudo o que me rodeava Não me falava de ti

IINo meu mundo não erasNunca te deixei a porta entreabertaSó ao conhecido permitia entradaSem medos nem justificaçõesPela semelhança não estranhada

IIIA novidade era afugentadaNão fosse quebrar tradiçõesNovas roupagens ou novas lingua-gensTodos viam e condenavamPara a sociedade manterem

IVMas o mundo modificou-seTodos entram na casa de todosSem pedir licençaTrazem a sua língua e a sua culturaDeixando marcas profundas

VQuando voltasteTodos te reconheceramApesar de um ser diferenteJá não eras o outro estranhoE já ninguém te condenava

O outro

Por: Helena Mar

POESIA

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ENTREVISTA

«A nossa comunidade é uma comunidade integradora»

Em entrevista à TRAVESSIAS, o Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada fala-nos do Dia Municipal do Diálogo Intercultural

Como surgiu a ideia de a Câmara Municipal de Ponta Delgada come-morar o Dia Municipal do Diálogo Intercultural?

Consciente da multiculturalidade de Ponta Delgada e da sua condição rece-tora de imigração, esta administração camarária veio estabelecendo, nestes úl-timos tempos, um conjunto de parcerias reforçadas com várias entidades e forças representativas da diversidade identitá-ria e cultural dos nossos concidadãos.

Deste modo, quando foi proposta ao Município de Ponta Delgada, pelo Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes (CLAII) e pela AIPA (Asso-ciação de Imigrantes dos Açores) a insti-tuição de um Dia Municipal do Diálogo Intercultural, a ideia foi recebida com entusiasmo e, logo, encetamos conversa-ções com vista a oficiar a relação que já vínhamos a desenvolver com a comuni-dade imigrante.

Com que propósito foi fundado este dia?

Este dia foi fundado no sentido de sinalizar simbolicamente a integração dos imigrantes nas suas comunidades de acolhimento, a partir de Projetos Municipais para a Promoção da Inter-culturalidade.

Portanto, quando nos foi proposta a institucionalização de um Dia Munici-pal do Diálogo Intercultural, a Câmara

José Bolieiro

Dr. José BolieiroPres. da CM de Ponta Delgada

Cátia CoutoAluna do 2º ano de Comunicação Social e Cultura da Universidade dos Açores

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Municipal de Ponta Delgada, que já vinha a apoiar a AIPA e o CLAII nas diversas iniciativas que eram levadas a cabo no concelho, aceitou de imediato propor a sua consagração à Assembleia Municipal.

Ademais, quisemos acompanhar o incentivo do Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Ter-ceiros, com o propósito de conferir aos Centros Locais de Apoio à Integração de Imigrantes os recursos que lhes per-mitam, mais do que acolher e informar, desenvolver também atividades facili-tadoras de uma integração efetiva dos imigrantes na sociedade portuguesa.

Qual foi o motivo da escolha do

dia 15 de julho para chamar a atenção para esta realidade?

Na verdade, a data tem um significa-do simbólico. Foi proposta pelo coorde-nador do CLAII a esta autarquia, e de-corre no âmbito das comemorações do aniversário do Centro Local de Apoio à Integração de Imigrantes, que aconte-cem a 15 de julho.

De que modo tem a Câmara Mu-nicipal de Ponta Delgada assinalado este dia?Sempre em cooperação com o CLAII e a AIPA nas variadas iniciativas que são organizadas no sentido de promo-ver e sinalizar a diversidade cultural e a tolerância da sociedade açoriana em

geral, e de Ponta Delgada, em particular. Recenseamos e estimulamos práticas de convívio e inclusão.

O que é feito para divulgar as ati-vidades associadas à comemoração do dia?

Há um trabalho de divulgação que é feito pelo CLAII a que a Câmara se associa, divulgando, também, junto dos meios de comunicação social, externos e internos à edilidade, a proximidade da data, o seu objetivo e como ela será assinalada.

Esta data é, quase sempre, assinala-da depois das Grandes Festas do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e, nesta altura, a mensagem da fraternidade e da

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integração é elevada a todos os quadran-tes da comunidade, seja ela local, seja ela imigrante.

Como tem sido a adesão das pes-soas?

Boa. A nossa comunidade é uma comunidade integradora e a comuni-dade imigrante envolve-se muito nestas iniciativas.

Além das iniciativas realizadas a 15 de julho, o que é feito para promover a consciência intercultural dos muníci-pes ao longo do ano?

A via sociocultural é, sem dúvida, a mais eficaz quando se trata da promo-ção de uma consciência social e inter-cultural.

Esta via tem sido fomentada através da divulgação de grupos culturais lo-cais, com raízes em países de imigração. Veja-se o caso do programa de anima-ção Noites de Verão, que são palco de promoção da música do mundo.

Os quiosques de artesanato e de venda de comes e bebes das Grandes Festas do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde há espaço para as associações de cariz intercultural de que somos parceiros.

As próprias geminações da cidade de Ponta Delgada com outras cidades do mundo, incluindo cidades de imi-gração para os Açores, como é o caso da Praia em Cabo Verde.

A recuperação da Sinagoga de Ponta Delgada é, também, uma ação que ficará, pela sua perenidade, como

referência de Ponta Delgada da promo-ção de uma a consciência social para a interculturalidade.

Existem dificuldades na integra-ção dos imigrantes que vivem em Ponta Delgada? Se sim, quais as mais salientes?

Não seria correto dizer que não existem dificuldades, pois todos sabe-mos, até por povo imigrante que somos noutros destinos, que há sempre difi-culdades de integração, mais não sejam de natureza afetiva.

A mais evidente e gravosa é agora a referente ao desemprego, que é para todos, imigrantes e locais, o maior pro-blema de integração e de estabilização social.

Existe algum projeto futuro para diversificar e aprofundar os encontros interculturais no município de Ponta Delgada?

Estamos abertos a todo o tipo de iniciativas que se refiram a esta matéria. Aliás, estamos a trabalhar no sentido de, num futuro próximo, nos associarmos, como Parceiro Privilegiado, a uma ação mediática que terá repercussões junto da comunidade imigrante.

Temos um marco que afirma a nos-sa multiculturalidade, o Dia Municipal do Imigrante e do Diálogo Intercul-tural. É por isso que temos em estudo uma eventual candidatura para a con-ceção de um Plano Municipal para a integração dos Imigrantes.

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OPINIÃO

Migração rumo à Cidadania global

José ÁvilaAluno do 2º ano de Comunicação Social e Cultura da Universidadedos Açores

Charles Taylor define a democracia como a política de reconhecimento do outro, portanto da diversidade. Por ou-tro lado, segundo Edward Said, as cul-turas estão todas envolvidas umas com as outras, todas híbridas, heterogéneas, diferenciadas, nenhuma é pura e singu-lar ou monolítica.

Na nossa realidade europeia do sé-culo XXI, vemos crescer movimentos de pessoas que vão assumindo o prota-gonismo do seu destino, fenómeno que tem sido potenciado pela globalização e pelos avanços dos meios de comunica-ção. A vulgarização dos transportes, por sua vez, tem favorecido a deslocação em busca de melhores condições de vida, formando um grande contingente de migrantes.

Os fluxos migratórios originam frequentemente processos híbridos ou de mestiçagem cultural em cujos inter-câmbios de comunicação intervêm na-turalmente códigos de mediação inter-pretativa para diferenças de linguagem inerentes às dimensões de grupo étnico.

A renovação do tecido étnico com os novos grupos de imigração transformou a paisagem cultural, social, religiosa e económica. Também em Portugal, também nos Açores, país e região mar-

cados, até aos fins do século passado, por influências na linguagem e nos cos-tumes, provocadas pelos movimentos emigrantes.

Esta interação permite às minorias étnicas a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da sua cultura, especialmente língua e religião, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade e sem a maioria se sentir agredida na sua identidade

Não deixa de ser contraditório que estejamos hoje em dia mais abertos a conviver com estes fenómenos, mas façamos a sua análise descodificada por uma cultura eurocentrista, mesmo quando inseridos num contexto em que a fusão se consuma a partir de experiên-cias históricas específicas, no exercício da cidadania, nos padrões de consumo, no acesso às tecnologias, nas formas de cuidados próprios.

Há que ter presente que os próprios conceitos de cultura, multiculturalismo, direitos e cidadania estão marcados pelo seu cunho ocidental. Alguns teóricos consideram atualmente que não é preci-so institucionalizar as diferenças, como nos Estados Unidos, mas antes torná-las

visíveis na vida social, contribuindo para instaurar uma nova aprendizagem democrática que facilite a comunicação intercultural.

Apesar da nossa cidadania europeia e dos nossos sentimentos hospitaleiros, não deixam de se notar ainda entre nós alguns tiques conservadores, sinónimos de rejeição da diferença. Afinal, não somos completamente imunes à infor-mação quotidiana sobre os fenómenos xenófobos existentes até no mundo ocidental.

A simples coexistência entre os membros de uma sociedade não é sufi-ciente para a garantia dos seus direitos fundamentais. O sentimento de perten-ça, o respeito pelas leis em prol do bem comum e a solidariedade entre todas as pessoas constituem pré-requisitos para o sucesso de toda uma comunidade.

Procurando indicar um exemplo concreto, no nosso quotidiano portu-guês, atente-se no caso da constituição de movimentos homossexuais, e na sua luta pela liberdade de orientação sexual e pelos direitos das minorias sexuais, por um lado, ou na relação entre iden-tidades associadas à diferença sexual e as identidades étnicas, e constataremos que têm matriz eurocêntrica mas têm,

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por isso mesmo, uma integração ligada, modelada, por organizações e movi-mentos sociais – partidos, organizações sindicais ou associações cívicas, que, ou se traduzem em exemplos de sucesso da ação coletiva em defesa dos direitos humanos à escala global, ou catalisam processos de tolerância, aceitação da diferença e assimilação da mestiçagem cultural.

Estudiosos, como Boaventura Sou-sa Santos, afirmam que a diversidade de qualquer coletivo produz formas diversas de ver o mundo; que distintas noções de cultura e diversas conceções de dignidade humana exigem o desen-volvimento de formas de diálogo que promovam a ampliação dos círculos de reciprocidade; que a invenção de novas cidadanias se joga no terreno da tensão

entre igualdade e diferença. No início do século XXI, essa diver-

sidade, essa reciprocidade e essa tensão têm de percorrer uma multiplicidade de escalas locais, nacionais e globais e têm de abranger movimentos e lutas contra diferentes formas de marginalização ou exclusão.

Afinal, o mundo é de todos e todos interagimos nele.

ENTREVISTA

Italianos e portugueses são muito semelhantes

culturalmente

Ana Teresa AlvesDocente do Departamento de

Línguas e Literaturas Modernasda Universidade dos Açores

Vittorio Zanon veio para a Universidade dos Açores frequentar um programa de pós-doutoramento na área da Vulcanologia. Acabou por casar com uma

açoriana e por ficar cá. O seu olhar sobre o arquipélago e suas gentes não dis-pensa a comparação com os comportamentos e os valores de Itália.

Quando e por que razão veio para Portugal?

No início de 2006, recebi um e-mail que publicitava bolsas de pós-doc nos Açores. Naquela época, não tinha emprego e participava em todos os concursos que apareciam fora do meu país natal, a Itália. Rapidamente preen-chi os formulários e apresentei o meu pedido de participação. Quando, em junho, recebi uma resposta positiva, já quase tinha comprado um bilhete só de ida para a Cidade do México, para um outro emprego e já tinha pago um curso de Espanhol. Alterei o curso para Por-tuguês e comecei a trabalhar em Ponta Delgada em agosto do mesmo ano. Já agora, sou vulcanólogo e trabalho no Centro de Vulcanologia e Avaliação de Riscos Geológicos da Universidade dos Açores. A minha especialização é em petrologia e, por isso, basicamente, es-tudo as características dos magmas para

melhor compreender o comportamento dos vulcões dos Açores.

Ambientou-se bem a Portugal? Qual foi a parte fácil e qual foi a parte mais difícil?

Ambientei-me muito bem desde o início, sem quaisquer problemas em particular. Devo admitir que tal se deve em grande parte à boa disposição do povo dos Açores, à ajuda dos meus colegas e, em especial, à contribuição fundamental da minha amada mulher jorgense. Esta contribuição externa faci-litou muitíssimo a minha aprendizagem da língua portuguesa, que, por isso, nunca foi um problema. Por outro lado, o que é uma coisa muito engraçada, a parte mais difícil para mim foi, e é ainda hoje, perceber a pronúncia dos falantes de algumas partes de São Miguel. Uma coisa que não consigo suportar são os foguetes a qualquer hora do dia ou da

noite.Acha que há barreiras culturais

intransponíveis ou que todas se podem ultrapassar com as estratégias certas?

Não encontrei barreiras culturais intransponíveis, pelo menos para mim, que venho de um país muito similar. Pelo menos no que respeita às pessoas com quem convivo, há uma boa predis-

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posição para o convívio com estrangei-ros, independentemente da sua naciona-lidade, raça, língua ou religião.

Diferentemente, num plano mais geral, acho invasiva a forma como parte da população vive alguns aspetos da religião, com exibicionismo frequente de símbolos, procissões e manifestações pseudorreligiosas (Impérios). Os turis-tas acham tudo isso divertido, colorido, barulhento, ou, numa palavra, folclórico. Mas quem não é daqui e não é católico acha tudo isso um pouco opressivo.

Já viveu noutros países estrangeiros ou apenas em Portugal/Açores?

Já vivi por causa de trabalho alguns meses em Amesterdão, na Holanda, e seis meses em Paris, França.

Acha que há diferenças importan-tes entre a cultura portuguesa e a ita-liana? E semelhanças? Quais?

Italianos e portugueses são muito semelhantes culturalmente. Afinal, as origens são as mesmas. Os dois países baseiam-se muito na família recolhida à volta da televisão que transmite futebol. Esta é uma descrição muito generalista, claro. Contudo, em ambos os países, ainda se nota muito uma tendência para atribuir o poder aos homens, enquanto as mulheres ficam com a educação das crianças e com as tarefas domésticas. Certamente que nas gerações mais re-centes esta tendência tem vindo a dimi-

nuir, mas ainda se nota.Os dois países encontram-se, do

ponto de vista económico, em decadên-cia e com pouca esperança de mudança. Em ambos os países há a filosofia de as pessoas se acomodarem e esperarem que alguém resolva os problemas. Esta crise de personalidade e de valores manifesta-se desde logo na escola, onde há muito facilitismo. Os programas televisivos, comuns também a ambos os países, são em muitos casos de baixo nível cultural. Penso que em Portugal deveria haver mais programas produzidos integral-mente no país e que refletissem a verda-deira cultura do povo. Os portugueses estão acostumados ou mais predispostos para aprender uma nova língua, o que é facilitado, por exemplo, pelos programas de televisão na língua de origem.

Ambos os povos vivem o futebol de forma apaixonada, mas, em minha opinião, com algumas diferenças re-lativamente ao relacionamento com a seleção nacional. Para os portugueses, a seleção é uma questão visceral. Eles têm o sentimento de ser um povo único desde há muito tempo e a seleção é mais importante do que o clube individual de cada um. Os italianos não são um povo unido, talvez porque se trata de uma nação com pouco mais de um século de vida. Por isso a “Nazionale” (a seleção italiana) é secundária no confronto com os clubes da Série A. Há mais um

dado curioso: cada um dos 60 milhões de italianos é o melhor selecionador de futebol de sempre para a “Nazionale”. Assim, o grupo de jogadores oficiais enviados para o campo representa ape-nas uma dos 60 milhões de combinações possíveis. Claro que o selecionador de futebol oficial, segundo os italianos, não tem competência para o cargo pois não percebe nada de futebol e, mesmo que ganhe, é por pura sorte!

A gastronomia é geralmente con-siderado um aspeto importante da cultura de um país. Concorda com esta afirmação?

Não é por acaso que os países “la-tinos” da Europa são aqueles onde se come melhor. O Sul da Europa, ao longo da história, tem sido objeto de várias misturas de raças e culturas, e isso refle-te-se na gastronomia variada e no culto dos sabores. Mas esta é uma caracterís-tica própria do sul da Europa, que não encontrei noutros lugares.

Quais os seus pratos portugueses pre-feridos?

Polvo à micaelense, sem dúvida.

Quer dar uma receita de um prato italiano?

Modéstia à parte, acho que sei co-zinhar muito bem qualquer receita de vários países do mundo. Mas a comida italiana é claramente aquela em que consigo dar o meu melhor. Proponho, portanto, um menu de peixes constitu-ído por:

Entrada ¾ Salada de polvo com aipo e limão; crostini com creme de anchovas e queijo mozzarella; cocktail de cama-rões ou gambas.

Primeiro prato ¾ lasanha caseira de Rocaz.

Segundo prato ¾ filete de atum com molho de laranja e ervas aromáticas mediterrânicas com acompanhamento de legumes gratinados.

Sobremesa ¾ granita de amêndoa afogada em café.

Quer saber como preparar tudo isso? As receitas são os segredos dos melho-res cozinheiros e por isso não as posso revelar! Fora de brincadeira, na internet encontram-se todos estes pratos e a cada um deve juntar a própria imaginação e um toque individual! Talvez um dia eu faça o meu próprio livro de culinária, nunca se sabe!

Vittorio ZanonImigrande de Itália

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ENSAIO

Travessias da sabedoria

popular

Gabriela Funk Docente do

Departamento de Línguas e Literaturas

Modernas da Universidade dos

Açores

Matthias Funk Docente do

Departamento de Matemática da

Universidade dos Açores

Após décadas de integração política, a União Europeia vive agora um mo-mento de crispação entre os que exigem uma maior aproximação dos países comunitários (para que se transformem num bloco homogéneo capaz de com-petir com outras grandes zonas eco-nómicas) e aqueles que apelam a uma reorientação de acordo com as raízes e costumes nacionais ou regionais. Neste contexto, torna-se importante ponde-rar até que ponto estas tradições são divergentes ou convergentes no espaço europeu.

O caráter de qualquer povo manifes-ta-se indubitavelmente na sua memória coletiva, expressa, entre outros aspetos, no património oral, nomeadamente nos provérbios como fórmulas de aconselha-mento herdadas dos antepassados. Os textos populares, com a sua simplicida-de e implantação profunda no cidadão comum, dão-nos uma visão global da mentalidade de um povo, constituindo, assim, um ponto de referência privile-giado para comparações interculturais.

Para o efeito, podemos analisar

os dados da coletânea de provérbios europeus transversais, realizada pelo paremiógrafo húngaro, Gyula Paczolay, em 1997, com base num estudo dos adagiários de 55 línguas europeias. Escolhemos, destes provérbios pan-eu-ropeus com ocorrência na maioria dos referidos idiomas (pelo menos, 28 dos 55), 98 exemplares totalmente distintos. Há, no centro da Europa, aparentemente um fundo paremiológico comum, dado que, em nove línguas (alemão, holandês, francês, inglês, checo, húngaro, italiano, eslovaco e russo), são conhecidos todos os provérbios pan-europeus.

Nos adagiários portugueses não se encontram 10 destes textos proverbiais, no entanto, estão registados no nosso país todos os 13 provérbios universais identificados por Gyula Paczolay e que se definem pelo facto de, para além de serem pan-europeus, figurarem igualmente nos registos das principais línguas do continente asiático (nos res-tantes continentes, as línguas oficias são o árabe ou uma língua europeia).

Se apenas cerca de 13% dos pro-

vérbios mais divulgados na Europa são universais, então parece que a cultura não é essencialmente determinada pela condição humana, mas por traços específicos deste continente. Dos pro-vérbios exclusivamente pan-europeus, os adagiários portugueses registam aproximadamente 88%, o que demons-tra uma notável confluência em muitos aspetos culturais. Porém, uma margem significativa de exemplares incluídos em adagiários são conceitos desatualizados, que, durante séculos, foram acumula-dos em coletâneas, mas nunca revistos. Nos finais do século XX, realizámos um estudo baseado nos métodos da demoscopia, recorrendo a cerca de 1000 informantes açorianos, com o objetivo de determinar a taxa de conhecimento de 25.000 provérbios portugueses nas nove ilhas do arquipélago dos Açores. Concluímos que apenas 15% dos tex-tos proverbiais patentes nos adagiários nacionais e regionais se encontram efetivamente ancorados no pensamento coletivo do povo.

Para podermos relacionar os pro-

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PERFIL

A Diva Dilac

Vitor PrataEstudante do 3.º ano de Comunicação Social e Cultura da Universidade dos Açores

Era um habitual domingo em Mo-çambique. Os raios de Sol faziam desper-tar Quelimane e os seus habitantes, um ‘obrigado’ ao novo dia que começara e mangas arregaçadas para trabalhar a ter-ra. A colheita do chá era a prática agrícola predileta e sustentava muitas famílias que

dependiam dos frutos que a terra dava. O astro maior não veio diferente dos ou-tros dias e pôs-se na hora planeada pelos astros, como de costume. Nada de invulgar

vérbios pan-europeus com os homólo-gos regionais realmente conhecidos, é necessário um termo de comparação. Escolhemos, por isso, dois conjuntos de aproximadamente 100 idiomatismos com maior divulgação quer na totalida-de das ilhas do Grupo Central, quer em São Miguel, sendo o elemento menos popular deste corpus reconhecido por 82% dos informantes micaelenses e por 77,5% dos inquiridos no Grupo Central, o que nos permite observar que mesmo num espaço limitado, mas linguistica-mente uniforme, nem todos os conceitos são do conhecimento geral.

As duas coletâneas dos cem provér-bios mais conhecidos nas localidades em questão coincidem em menos de metade (=47,5%) dos exemplares, sur-preendendo esta heterogeneidade es-pecialmente se pensarmos que, por um lado, os provérbios mais conhecidos em ambas as zonas são essencialmente de um fundo nacional comum e que, por outro lado, S. Miguel constitui o princi-

pal destino da imigração interilhas. Esta última observação justifica o facto de os provérbios da referida ilha englobarem, melhor do que os de qualquer outra, os adagiários das demais ilhas do arquipé-lago dos Açores.

Para obtermos uma base comum dos provérbios açorianos, selecionámos o menor conjunto dos exemplares mais conhecidos em São Miguel e que con-tém, pelo menos, 95% dos cem provér-bios de maior difusão no Grupo Central. A coletânea com este requisito inclui perto de mil exemplares com uma taxa de reconhecimento superior a 44%.

Verificamos que, nessa coletâ-nea, se encontram 56 dos 98 (=58,3%) dos provérbios pan-europeus, mas 11 dos 13 (=84,6%) provérbios universais. Na comparação mais atualizada, a con-vergência cultural entre a zona periféri-ca e o espaço central da Europa parece muito mais reduzida do que na análise simplista do adagiário pan-europeu de Gyula Paczolay, contudo, não devemos

esquecer que uma das riquezas da Euro-pa é a sua diversidade, expressa também num reduto insular e linguisticamente confluente como os Açores.

Por isso, tendo em conta o enqua-dramento diferenciado de cada povo europeu e a diversidade linguística, a herança cultural comum é considerável, uma vez que a maioria dos provérbios pan-europeus é conhecida mesmo nas ilhas periféricas, nas quais a ocorrência dos textos proverbiais exclusivamente pan-europeus ultrapassa, em termos numéricos, 4 vezes o valor dos congé-neres universais. Se há variações num espaço limitado, muitas mais serão de esperar num enquadramento maior, como a Europa, onde, na verdade, iden-tificamos mais elementos comuns do que diferenças. E como a união faz a força, a política europeia deve aproveitar os consensos existentes e respeitar as idiossincrasias nacionais, procurando centralizar sinergias e regionalizar a diversidade.

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naquela terra moçambicana, para além de ter nascido mais um habitante. Naque-le ameno domingo de dezembro de 1980 nasceu Vânia Câmara.

Com três anos e com um quarto da sua altura física de agora, Vânia veio para São Miguel com os seus pais e os seus três irmãos. Era mais uma família africana como outras tantas no mundo - de malas juntas ao corpo e um coração cheio de es-perança e melancolia.

Como uma flor que se embeleza ao crescer, a Vânia também passou por este processo de fotossíntese. O chapéu de lado e sapatilhas meio rotas das brinca-deiras de infância deram lugar ao salto alto vistoso e às muitas tranças africanas no seu cabelo. Brincava na rua até ao tri-nar das trindades ou quando alguém sol-tava um grito ruidoso, ordenando o seu regresso a casa. Este grito soava-lhe fami-liar: era a mãe. A mãe que a embalava nos braços, ao som do seu murmúrio meló-dico, algumas vezes improvisado. A mãe que lhe disse que os dias em Moçambique são maiores e não têm 24 horas.

A Vânia foi buscar Dilac ao sobreno-me do avô e muitas vezes recorda – de bri-lhozinho nos olhos - o pai a tocar viola de forma apaixonante. Era sempre um moti-vo de festa e convívio: aliás, que poderí-amos esperar das nossas famílias? Ainda adolescente, juntou-se ao grupo coral da Igreja Evangélica e, logo depois, criou um grupo gospel com os amiguinhos com quem passava horas a fio. A paixão pelo canto fê-la sentir que tinha nascido para isso. Outro clichê, bem sei. Estamos cansados de clichês, mas não fossem es-tas frases repetidas de forma exaustiva, e não teríamos lições de alguém que viveu e decidiu expressar um sentimento, um momento.

“Gostava de ser professora de Educa-ção Física”, dizia Vânia com toda a certe-za. Cativava-a a forma como os corpos se mexiam e o bem-estar que a prática de exercício físico provocava nas pessoas. Não ficou por aí e sonhou mais alto. A menina maria-rapaz ansiava mexer com algo maior: o âmago das pessoas. Era a alma das pessoas que queria tocar sem ter que se aproximar. E como? Pela sua voz. Queria tocar no âmago do Ser humano com a sua voz.

Dedicou-se à música de corpo e alma. Ouviu e contemplou a Etta James. Sonha-va ser como ela: uma cantora de blues, jazz, R&B e gospel. Inspirar-se na cantora californiana era fácil, pois ambas gosta-

vam do mesmo estilo musical e partilha-vam o facto de terem nascido no grande continente africano. Os pósteres da Tina Turner na parede do seu quarto eram co-midos pela humidade e pelo passar do tempo. Nem isso foi capaz de apagar o fascínio que sentia por esta artista. Vânia lançava ao divino a vontade de ter uma carreira de artista com base no que a diva ensinara: Turner sugeria-lhe que tivesse sempre muito gosto em ser mulher e, aci-ma de tudo, mostrava que a mulher pode ser poderosa não estando apenas cingida aos sombrios autoritarismos masculinos

traçados na história social do mundo. Assim foi: os cabelos compridos atira-dos para trás das costas, o lápis e papel na mão. Surgiram alguns rabiscos nas folhas machucadas, outras um tanto ou quanto molhadas, como reflexo da sua entrega e alma à composição. A Vânia com a sua viola conseguia criar músicas que podiam ser consideradas como hinos mundiais do amor, da paz, da família, da tristeza, da amizade e da Vida. Foram os ziguezagues das subidas e descidas da sua montanha-russa - a que muitos cha-mam de Vida - que lhe serviram de pano de fundo para a criação das mais lindas canções que guarda no seu coração. Sur-ge a moça meio-negra no palco, canta, agradece e desce do palco. Repetiu este processo vezes sem conta. Quem já teve o privilégio de assistir aos seus espetácu-los, pode comprovar. As subidas ao palco somam-se às centenas. Mudam-se as for-mas, as estruturas e as cores dos palcos, mas a base é a mesma: o seu palco é como o céu azul de São Miguel. Num voo ligei-ro e seguro, a Vânia passeia no seu planar tão belo sobre uma floresta de pessoas di-ferentes mas unidas pela mesma vontade: a vontade de ouvir o seu cantar. Lá vem

Vânia a cantar, encantando e tocando a todos pela sua alegria e boas vibrações. É uma coisa típica dos artistas africanosjus-tifica a Vânia a quem lhe pergunta como consegue cativar tanto os espetadores.

Passaram seis anos desde que se de-dicou inteiramente à música e aos espe-táculos. Nunca tinha pensado ser uma fada-madrinha, mas sempre que fecha o estojo da maquilhagem no fim de cada espetáculo, a Vânia espera ansiosamen-te por uma nova oportunidade de trazer brilho ao coração dos micaelenses.

A menina moçambicana fez da maior ilha açoriana o seu palco. Mesmo que seja no improviso de um jantar com amigos, ela sabe ouvir e, melhor ainda, cantar. O público, embebido quer pelo tinto do Pico, quer pela sua voz forte como vulcão, aprecia em silêncio o canto da diva luso-moçambicana. Imagino eu, do meu paca-to ser micaelense, soar a algo semelhante ao canto das ninfas de Camões.

Como todo o conto de fadas tem uma parte triste, a história de Vânia ganha uma cor mais amargurada quando o seu grande olhar mira o chão e os seus om-bros se levantam. A pena invade-lhe o coração quando vê a exploração dos mú-sicos, por parte de muitos contratantes. Quando estamos doentes e precisamos do colo da nossa mãe, perdemos todo o espetáculo maravilhoso que a Mãe Natu-reza nos preparou: a água que corre doce e fresca na ribeira, o canto das aves e o acordar dos girassóis em cada amanhe-cer. A Vânia sente-se similar quando vê o panorama musical regional e desabafa com a letra de criança no seu singelo di-ário: estamos a perder grandes músicas e músicos, grandes poetas e artistas a cada dia que passa. Mas é uma ideia que quer deixar de escrever ou, até mesmo, de pen-sar. A Vânia acredita que é possível dar a volta, mas de boas intenções está o Inferno cheio.

Ainda no amanhecer de hoje, a Vâ-nia sente a batucada moçambicana que acompanha a batida do seu coração. É o apelo das suas raízes africanas. Não vive em contradição, mas sim em harmonia entre a sensualidade africana e a me-lancolia da ilha de bruma que abraçou. Num compasso descompassado, eis que ela acorda com o verdejante cenário do ilhéu ao seu redor. Quer nas melodias do cancioneiro regional, quer pelas músicas dos ritmos quentes africanos, a Vânia transformou-se na perfeita fusão de uma espécie de chamateia moçambicana.

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Cátia MirandaEstudante do 2.º ano de Comunicação Social e Cultura da Universidade dos Açores

«É da convivência e da amabilidade que nasce a integração.»

José Viveiros dos Reis

José dos Reis viajou muitas vezes para fora do seu país natal em missões militares. Atualmente reformado, com 82 anos, reside em São José e, numa conversa com a Travessias, partilha as suas vivências,histórias e recordações dos locais por onde passou.

ENTREVISTA

Sei que tem uma experiência de vida em Angola e Goa. Qual a sua idade quando foi para estes lugares e em que contexto se deslocou para tão longe?

Fui fazer 20 anos a Goa. Fui fre-quentar o curso de sargento miliciano mais cedo porque saí do seminário e não arranjava emprego. Fui fazer comissão de serviço por imposição. Fui mobilizado na cidade da Guarda, com a companhia que lá estava. Tinha sido promovido. Às ordens do Ministério da Defesa fomos mobilizados para fazer parte da companhia que foi para Goa. Fiz lá os meus 20 anos. Para Angola fui depois, o meu filho Carlos já tinha 8 meses. Estive uns meses na Guarda e depois fui para Goa. Fiz serviço de sec-retaria também e todos os movimentos e trocas de dinheiro que havia entre as

companhias e as provincias ultrama-rinas de Moçambique , Guiné e Timor passavam pela minha mão porque eu fazia o movimento com a agência militar que era uma espécie de banco militar.

Como reagiu à ideia de ir trabalhar para lugares tão afastados e diferentes do local em que nasceu?

Aceitei, porque quando fui para militar já sabia que estava sujeito a isso. Não sabia que estava sujeito a ir para o ultramar, mas sabia que ia para outras unidades. Não contava era que fosse tão cedo destacado para ir para esses locais.

Como foi a adaptação a estas socie-dades? Quais as principais dificuldades que sentiu?

A adaptação foi boa, nunca senti

dificuldades. Depois acabei por fazer muitas messes de sargentos e oficiais. Era destacado muitas vezes para fazer os menus.

Quais foram, a nível cultural, as diferenças que mais lhe desagradaram ou agradaram?

Tinha dificuldade em compreender as pessoas que falavam o cocanim e não o português. Apenas uns poucos fa-lavam português. Depois aprendi meia dúzia de palavras do cocanim. A nível de alimentação, nós é que fazíamos a nossa própria comida.

Tínhamos umas vacas que matá-vamos e mandávamos para um talho, porque na Índia a vaca é sagrada. Eles não comiam carne de vaca.

Em Goa assisti a um funeral. Eles têm uns rituais próprios. Queimam o

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TRAVESSIAS // 31

CONTO

Notas de revolta

André de Medeiros PalmeiroEstudante do 3.º ano de

Comunicação Social e Culturada Universidade dos Açores

Ajusto o espelho da casa de banho minúscula acantonada num quarto imundo. A porta do quarto, entreaberta, dá para todo o lado, dá para lado nenhum. Eu não dou para lado nenhum. Uma clandestina, sem passaporte, identidade cassada, uma só centelha de vida poupada e servida a clientes bem-pagantes, alguns bem-falantes; buscam na nossa carne a alma amputada das suas vidas, comem-nos peça a peça num ritual que lhes escapa. Alguns choram, adormecem nos nossos

ventres, outros implodem em nós numa fúria primitiva. Afinal, somos a carne que lhes sacia a gula.

Houve um tempo em que, na nossa aldeia, se fabricavam sonhos, ilusões, ideias bonitas, como a minha mãe dizia. Francis, o meu irmão, partia para o “el dorado”, para a Bélgica dos francos cintilantes, Um dia, tu e a mãe virão também para cá. Viveremos sãos, donos do nosso destino.

Batem à porta. Dois calmeirões dizem-me que cheguei ao país do papa

morto. Riem alto, escancarando dentes onde refulgem ouro e platina. No lusco-fusco do extenso corredor de madeira rangente instala-se a confusão. De uma vintena de portas avultam rostos de raparigas, umas assustadas, outras resignadas, duas ou três ensaiando uma sensualidade postiça que as livrará de mais problemas. Imito-as, acariciando as faces de um dos meus cicerones, esta parece ter o que é preciso, di-lo-á pron-tamente. Uma noite mais na homérica luta pela sobrevivência. Algumas de nós

corpo com lenha e à vista das pessoas.Como foi interagir com estas dife-

renças culturais?Convivi com muitas. A primeira

vez foi na Praça da Aguada quando tomava conta dos presos politicos.

Como foi recebido pelas pessoas dos locais que visitou?

Na selva angolana, havia quem fu-gisse de mim, com medo, por nunca ter visto um branco. Mas aqueles que tinham convivência comigo ou com as tropas davam-se bem connosco.

Que impacte teve esta experiência

em si? Aprendeu algo novo?Foram vivências completamente

diferentes. Tive a possibilidade de ver reações de pessoas, na mesma situação que eu, diferentes da minha. Havia em mim um certo franciscanismo, antes de ir para a tropa estive no seminário, não queria mal a ninguém, tive sempre o intuito de ajudar.

Se pudesse fazer tudo de novo, voltaria a passar pela mesma experiên-cia?

Gostava, hoje, de voltar a Goa. Era muito linda a cidade de Goa.

Ajudei a salvar várias pessoas lá.

São histórias e coisas que vivi muito bonitas. Até batizámos o “António”, uma criança que andava sempre connosco. Foram vivências tão bonitas!

Vivemos numa época em que mui-tos jovens voltam a a ter necessidade de ir trabalhar para fora. Que consel-hos lhes dá?

A primeira coisa muito importante é a lingua. E quando chegarem lá fora têm que tentar inserir-se na comuni-dade, tentar viver e conviver com as pessoas de lá. É também da convivência e da própria amabilidade que nasce a integração.

Reprodução livre em tapeçaria de uma pintura africanaImagem da autoria de Carla Seno Figueiredo, retirada de: cor-e-vontade.blogspot.pt

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nunca daqui sairão; estas serão as suas “europas”.

Alucinação. Drogam-nos até as faces se prostrarem em lençóis conspurcados de manchas. Cavalgam-nos noite den-tro, sem nisto residir qualquer epopeia. Rostos acabados os destes homens quando, nus, entrevemos o que lhes sobra de alma. As fatiotas de assinatura dependuradas nos cabides expõem-nos à miséria do corpo. Dir-se-ia que se desforram de um rosário infindável de frustrações. Nada mais incerto: Quando acabam o serviço deixam-nos, nas covas do dorso já domado cinco e seis vezes numa só noite, maços de notas donde sobressaem rostos poderosos e distin-tos, marcas de civilização, do logro que nos aconteceu. A culpa nasceu órfã.

Europa miragem, Europa imagem, as luzes da ribalta transmudadas em sombras, a barca de Caronte à espera. Francis foi encafuado com centenas de outros iludidos nos contentores da nova escravidão, Preto não quer trabalhar, era a frase por ele mais ouvida, dia após dia, logo pelas cinco e meia da manhã, as carrinhas de transporte de gado humano engalfinhando nigerianos, guineenses, moldavos, toda uma sorte de bárbaros da contemporaneidade no eterno suplício da sobrevivência, labu-tando. Mãe Chiwazunda inventando do que comer no fogaréu, eu estendendo roupa ao vento e ao sol da nossa aldeia, Chiwazunda falando de Francis, da glória de Francis, do dinheiro escor-rendo como mel dos favos da terra prometida, eu cochichando com os meus botões a falta de notícias, quase três meses depois e nada, teria o Francis enchido os bolsos, casado com uma branca e esquecido dos seus, É só um pouquinho mais de paciência, minha filha, que a fome vai acabar.

Dizem-me que posso sair à rua, mas sinto-me vigiada, como se controlassem todos os meus passos, monitorizassem os meus olhares, adivinhassem os meus gestos. Na montra de uma loja, tudo aq-uilo que uma mulher precisa para ficar bonita. É o ponto de honra, ficar bo-nita… E pensar na morte todos os dias, num meio de escapar a tudo isto. O folheto, quando saí de Zwellu, a minha aldeia natal, prometia os melhores fotó-grafos, ser contratada pelas melhores agências, Antuérpia, Milão, Paris, Nova Iorque… Sete meses volvidos e nada do Francis, mãe Chiwazunda abastecendo

de achas o lume, o cheiro a madeira virgem incensando o espaço em volta, os olhos reluzindo uma lágrima ligeira, vais ver, não tarda está aí uma carta a falar de maravilhas nunca antes vistas…

Ainda ontem, num dos quartos contíguos ao meu, enforcou-se uma rapariga, outra foi levada para lugar incerto e não mais regressou. Penso na morte, congemino uma fuga. Talvez um desses homens, plangendo nos nossos ventres, decida ajudar-me. Talvez não… Recordo-me que não existo; se amanhã me encontrarem, corpo rasgado de alto a baixo, num poço seco e fundo, quem irá investigar? Uma preta mais, uma clandestina desafiando a sorte num continente que ameaça rebentar pelas costuras. Uma a mais, uma a menos, a quem importa?!

Regresso, sentindo-me transportada por mãos diligentes que me empurram de novo para o meu quarto. Logo mais, nas andanças da noite, estrearei o ves-tido novo, o coração gemendo de medo, sorriso rasgado implorando atenção.

Embonecadas, saímos em grupos de três para não atulhar a escadaria que conduz ao nosso palco. Tatiana, uma bielorussa recém-chegada, exibe ainda as marcas de um olho maltratado, en-feitado a cremes e pó-de-arroz. Arrisca o varão até que uma das mãos se lhe resvala e cai de borco. A parca clientela entreolha-se; um ainda se prontifica a ajudar, mas de imediato Tatiana é re-conduzida por mãos ásperas e braços tatuados para o anonimato dos quartos; os nossos covis. Não voltarei a ouvir falar dela…

O cliente voluntarioso fita-me com alguma condescendência. Esboço, timi-damente, um breve sorriso; ele meneia levemente a cabeça, mantendo, no entanto, o contacto visual. Transparece-lhe nos lábios aquilo que creio ser um sorriso bondoso. Desde o meu irmão Francis nunca mais ninguém me sorrira assim. Prudentemente, mantenho-me à distância.

A noite prossegue, espadas revol-vendo-me as entranhas uma e outra vez, a dor sossegada pelos vícios que entorpecem o espírito, e aquele sorriso, aquele estranho sorriso envolto em piedade, alentando o discorrer vagaroso das horas. Tê-lo-ei imaginado?

Mãe, e as “ideias bonitas”, o viver-mos sãos e juntos num mundo novo, a promessa de matar a fome com trab-

alho, os livros que falavam da gente do lado de lá (de cá) como boa gente, que sabe receber, melhor, que sabem receber e pagar, abrir as portas cominadas com o sonho… Eles aqui dizem-me que eu já não preciso de mãe nem de pai, que agora são eles que cuidam de mim, pelo menos enquanto a mercadoria estiver no prazo. Escrevo-te esta carta sabendo que nunca a irás ler, mas mesmo as-sim… Mãe, sabias tu que encontraram restos do nosso Francis numa vala co-mum, num sítio chamado la Louvière, na Bélgica dos “francos cintilantes”? Há um homem que me quer ajudar, o sor-riso como o do Francis com o lado es-querdo da face irrompendo numa doce cumplicidade. Quem sabe, um dia…

Beijar-te o rosto que imagino já mirrado pelo tempo, pelas agruras, sur-preender-te num abraço caldo, tão doce e profundo como aqueles que nos davas quando eramos crianças e o pai nos ral-hava por tudo e por nada, rescendendo a álcool de cana, sempre tão prestes a castigar-nos com o varapau.

A tua mãe morreu, resmoneia um dos carcereiros espreitando para dentro do quarto. Sorrio-lhe de esguelha, en-quanto agarro a punho firme num lápis pontiagudo e me abeiro da vil criatura. Num movimento expedito trespasso-lhe o cérebro com o lápis através da mem-brana ocular. Estranhamente calma, arrasto o corpo inerme até à casa de banho minúscula, encostando-o à san-ita. Aposso-me de um molho de chaves que dá acesso às traseiras do edifício. Lá fora, Woisczik, o do sorriso envolto em piedade, aguarda-me.

Pode, mesmo o interlocutor mais distraído, fazer uma ideia de como tudo se processou. Sobressaltada, imaginei que me cruzava com mil e um vilões, os quais se encarregariam de me devolver às masmorras da inexistência; puro engano. Vigilante, palmilho corredores, átrios, vãos de escadas, oiço berros lan-cinantes, prantos soluçados, gemidos de ocasião, um ou outro vulto insinua-se nas paredes sem que, contudo, alguém me veja passar. Uma porta que se fecha, um grupo de meninas que nem quinze anos devem ter escoltadas por dois en-ergúmenos, empunhando metralhado-ras. Uma lágrima desce-me pelo rosto.

Diviso a porta das traseiras, rodo a chave, não muito distante, Woisczik, no interior de uma viatura. Talvez, um dia, a vida me seja devolvida.

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A nossa MissãoA AIPA é uma plataforma repre-sentativa dos imigrantes residen-tes na Região Autónoma dos Açores e assumimos como missão contribuir para a integração das comunidades de imigrantes na sociedade açoriana.

O nosso PercursoA AIPA foi formalmente criada em Março de 2003 na convicção de que os imigrantes podem e devem ser um agente activo na procura e implementação de políticas promotoras de integra-ção. Actualmente, a AIPA é uma associação reconhecida pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultu ral (ACIDI), membro do Conselho Consultivo Regio nal para os Assuntos da Imigração e do Conselho Munici-pal da Cidadania de Ponta Delga-da.

Os nossos Objectivos• Contribuir para a integração social dos cidadãosimigrantes na sociedade açoriana;• Promover a dignificação e igualdade de oportunidades, direitos e deveres junto da popu-

lação imigrante;• Contribuir para a formação de uma opinião pública positiva, face ao fenómeno da imigração;• Combater a xenofobia e todas as discriminações baseadas na nacio-nalidade, origem étnica, cor ou religião;• Contribuir para o reforço de laços de amizade e solidariedade entre os diversos povos.

As nossas Áreasde actuaçãoA AIPA tem, fundamentalmente, 4 áreas de actuação:1- Disponibilização de Serviços de Apoio e Informação aos Imigrantes;- Centro Local de Apoio à Integra-ção dos Imigrantes - CLAII – em Ponta Delgada e na Terceira;- Clube de Emprego, Bolsa de Habitação e Clube de Serviços;- Espaço TIC;- Apoio Jurídico;- Formação

2- Promoção da interculturali-dade, combate ao Racismoe sensibilização da população açoriana para o fenómeno da imigração;- Realização de actividades cultu-

rais – Festival “O Mundo Aqui”;- Programa de Rádio “O Mundo Aqui”;- Suplemento no Jornal “Açoriano Oriental” – Rumos Cruzados;- Realização de Seminários, Confe-rências e Workshops;

3- Pressão, Denúncia e Diálogo com as AutoridadesA terceira dimensão de actuação alicerça-se na vigilância perma-nente dos problemas e transmiti-los às autoridades e, por conse-quência, incentivar à alteração do quadro legal. Esse objectivo tem sido concretizado a partir de um diálogo permanente com os diferentes actores a nível regio - nal e nacional.

4- Contribuir para o fortaleci-mento de cooperação entre os Açores com os países de origem das comunidades de imigran-tes.

Contactos:

Ponta DelgadaRua do Mercado, nº 53H9500 – 326 Ponta DelgadaTel: 296 288 001 / 296 286 365 / 962 417 240Fax: 296 281 623e-mail: [email protected]

TerceiraRua Dr. Sousa Júnior, s/n(antigo edifício escolar da FreguesiaNª Srª Conceição) - 9700-070 Angra do Heroísmo)Tel/Fax: 295 213 139

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