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23/09/2015 Revista Cult Labirintos da crítica literária Revista Cult
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Labirintos da crítica literáriaTrês lançamentos reúnem ensaios críticos que buscam recuperar a pertinência desse discurso polêmico sobre aliteratura contemporânea brasileira
TAGS: Crítica literária contemporânea, Iluminuras, O contemporâneo na crítica literária, O futuro peloretrovisor,Rocco, Susana Scramim
Reynaldo Damazio
Os impasses da crítica literária hoje e o declínio de sua relevância no debate público de ideiase de questões estéticas, em especial nas relações da obra com o entorno histórico, ou em seupapel na formação do imaginário social, são alguns dos temas que inspiraram trêsinteressantes coletâneas de ensaios lançadas recentemente. Mais que respostas prontas eteorias mirabolantes para o enquadramento de produções literárias que parecem escapar ageneralizações, os textos reunidos nos livros trazem questionamentos sobre o alcance e aslimitações da crítica no enfrentamento dos desafios impostos por obras de ficção.
Acadêmicos e escritores se revezam sob perspectivas diversas na tentativa de “repensar atarefa da crítica ante as demandas da arte e da sociedade contemporânea”, como escreveSusana Scramim no prefácio do livro O contemporâneo na crítica literária. O primeiroensaio, apresentado pelo crítico Raúl Antelo num seminário de pesquisa na UniversidadeFederal de Santa Catarina sobre as práticas críticas de sua obra, revela de saída o desconfortocom a instrumentalização da atividade do crítico profissional, sujeito aos rituais acadêmicos eaos requisitos de produtividade, eficiência e rigor metodológico. Não que o rigor sejadesnecessário, mas tornase acessório diante do prazer da leitura e de sua deriva designificados e experiências com a linguagem.
Antelo coloca em discussão o conceito de utilidade da crítica e de sua funcionalidade, queremete a uma tradição do pensamento positivo do século 19 bastante arraigado no meioacadêmico e que encontra respaldo em uma linhagem norte americana de pesquisauniversitária essencialmente quantitativa. O que talvez interesse averiguar, na perspectiva doautor, não é o valor de uso da crítica e por extensão da literatura, mas a dimensão subjetivado desejo e do estético como potência. Segundo Antelo, “ler é sempre mais além, justamenteporque o gozo, não sendo acessível nem finito, e sendo, por definição, impossível, nos impedeesgotar o todo do objeto”. O processo de fruição e de interpretação opera no limite dequalquer redução científica ou mesmo racional, como peça de resistência e de afrontamentoà realidade, às tramas da subjetividade e aos esquemas ideologicamente marcados pelaapropriação de sentidos, apontando, por sua vez, para a instância da ética.
O livro organizado por Scramim está dividido em quatro seções, que abordam “crítica edisciplina”, “polêmicas críticas”, “linguagens crítica” e, por fim, o trabalho crítico de RaúlAntelo. O espectro de temas é amplo e vai da história da teoria da literatura no Brasil, apartir de José Veríssimo, ensaísta pioneiro e contemporâneo de Machado de Assis, passa porpolêmicas mais recentes, como a do crítico Alcir Pécora sobre a inconsistência da atual ficçãobrasileira, por literatura latinoamericana e por Baudrillard e os dilemas da crítica de poesia,ensaio assinado pela organizadora do volume.
No ensaio “Utópica e funcional? Sobre a crítica de poesia em seus impasses”, Scramim retomaa análise de Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas sobre poesia de Carlito Azevedo, tentandodemarcar um território de exigências da crítica que, por vezes, se impõe à poesia pela forçade uma tradição, ou pela exigência desta, seja teórica ou literária, como se o poema devesseresponder às premissas do crítico, numa espécie de sabatina metodológica. As fragilidades dopoema, como as da prosa (para retomar a crítica de Pécora) são também o traço da relaçãoincerta e quiçá dialética com as incertezas do tempo e da própria fratura entre o dizer do
23/09/2015 Revista Cult Labirintos da crítica literária Revista Cult
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poeta e a história, ou entre a palavra como rasura de uma experiência e sua intelecção.
Para Scramin, “a consequência disso é que visitar o passado, como se ele estivesse disposto emprateleiras de um grande bazar de novidades antigas, não tem o sentido de interrupção Oproblema do dizer não é um problema restrito ao poeta moderno, é, ao contrário,umproblema da modernidade, da modernidade pensada enquanto crise – crise da linguagem,da representação e do tempo”. A tradição, o passado e a crítica são vetores de tensão nopoema, mas não como plano de voo e sim como vertigem da queda. O palpite da autora, queparte em seu argumento da crítica de Benjamin a Goethe, é que “escapar ao silêncio, escaparao mito que nos funda de que não há mais nada a ser dito, essa é a tarefa da poesia e do mitohoje”.
Rubricas ambiciosas
Numa outra chave, mas ainda mantendo com o anterior certas afinidades, o livro O futuropelo retrovisor – inquietudes da literatura brasileira contemporânea, organizado porStefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal, reúne ensaios pontuais sobredeterminados escritores e obras, agrupados por rubricas ambiciosas, que incluem alteridade,vida e cena literária, reescritas do moderno, profanação, citação, encenação e cânone, pararesumir.
Escritores de idades e estilos diferentes são analisados de acordo com certo enquadramentotemático e formal, como marcas de sua intervenção no contexto e no tempo histórico, oucomo cicatrizes de seu diálogo inconcluso com o corpo, a psique, o cotidiano, a tradição, arealidade e a própria narrativa. Lado a lado estão autores que já têm reconhecimento dacrítica, ganharam prêmios, foram traduzidos e têm bom desempenho no mercado, comoChico Buarque, Milton Hatoum, João Gilberto Noll, Sérgio Sant’Anna, Bernardo Carvalho,Rubens Figueiredo, Luiz Ruffato e jovens escritores que consolidam suas trajetórias, comoMichel Laub, Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Daniel Galera, Carola Saavedra, entre outros.Há também casos de autores mais refratários a enquadramentos, seja pela experimentaçãomais radical, como Valêncio Xavier, ou por migrar de gêneros, dos quadrinhos para a ficção,como Lourenço Mutarelli.
A proposta aqui é mapear tendências, definindo os pontos de contato e de fuga da literaturabrasileira contemporânea com a realidade fragmentada e instável em que vivemos, enfocandoa prosa. Como no livro organizado por Scramim, as análises não objetivam definir sistemas,aportando a literatura
de fora, mas montar um quebracabeça possível a partir dos elementos suscitados pelaescrita, o que vale dizer pela proposta ou risco, de cada escritor. Na opinião dasorganizadoras do livro, “parte expressiva da atual literatura brasileira está caminhando nestemomento para uma releitura das tradições da modernidade, saqueando ou revisitando opassado”. As referências literárias, o cânone, as provocações modernistas e até o romance deformação (modelo fundamental da prosa no século 20, reapropriado pelas vanguardas numviés metalinguístico) são triturados em procedimentos narrativos híbridos, cambiantes,irreverentes e, por vezes, corrosivos, como acontece na obra de Valêncio Xavier.
O caminho proposto pela antologia é o de romper as fronteiras entre uma reflexão voltadapara a valorização simples e simplificadora do novo, como impossibilidade de apreender essaliteratura caracterizada pela multiplicidade, e as abordagens comparativas com “os modeloscanonizados”, que se furtam a investigar o que haveria de específico na produção atual. Oque há de saída louvável nessa investida é justamente evitar os mecanismos pacificadores dacrítica, que reduzem toda incerteza e exploração criativa dos textos a esquemas ideais de
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registro ou transfiguração do real pela literatura. Procurase, de modo salutar, a superaçãodas polarizações redutoras, que servem para demarcar terrenos na academia, mas que dizemmuito pouco, ou superficialmente, a respeito do objeto em questão, isto é, a próprialiteratura. A crítica aqui é discutida a partir de sua prática, no enfrentando a autores e obrasque se tornam relevantes, na medida do possível, no contexto da reflexão sobre o país, dacirculação de ideias e dos ditames de mercado.
Passado em ruínas
O terceiro volume de ensaios, Crítica literária contemporânea, organizado por Alan FlávioViola, apresenta uma visão mais historiográfica em seu conjunto, a começar pelo famosoartigo de Machado de Assis, “O ideal do crítico”. Críticos, escritores e jornalistas participamdo livro, abordando desde questões amplas, como história literária, poesia contemporânea,crônica como gênero, genealogia da literatura brasileira, até o confronto entre teóricos depeso, como Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima, ou a relação entre Antonio Candido, SilvianoSantiago e o modernismo.
No ensaio do crítico italiano Ettore FinazziAgró, o problema da origem ganha umadimensão dramática na constituição de uma linhagem interrompida na literatura brasileira,sempre em busca de um início fundador inexistente, ou precário, que envereda “numpercurso caótico e emaranhado que se reflete e encontra a sua possível razão de ser só numdiscurso novo e outro, oblíquo em relação a qualquer lógica historicista, suspenso entre averdade e o desejo, entre a coisa e a palavra que a diz, entre a memória e o esquecimento”.
A tradição com que nos defrontamos, e que parece ter um peso desmedido tanto paraescritores como para os críticos, além de recente e inconclusa, é uma construção de muitasfacetas contraditórias e sobre um passado em ruínas, que, muitas vezes, a crítica procuraresolver arbitrariamente, como se o traçado de parâmetros mínimos, ancorados numa outratradição (estrangeira), fosse suficiente para explicar as idiossincrasias de escritas tão dísparesno tempo e na forma.
Os impasses expressos pela literatura são eles também parte da trama narrativa ou daestrutura do poema, do modo como autores se apropriam da linguagem e testam seus limites,não apenas formais. Resta ao crítico entrever nas fragilidades do texto os sinais de umareconstrução, de um deslocamento, de um gesto de rebeldia, que pode ser criativa,provocadora ou ingênua. Os parâmetros não estão dados antecipadamente, ou talvez nãosejam o porto seguro que a tradição, sempre ela, parece oferecer aos navegantes perdidos,sem mapa e bússola. Talvez porque sejam necessários novos parâmetros e mapas.
Nos três volumes de ensaios sobre crítica, percebese o movimento positivo em reiterar, ourecuperar, a pertinência desse discurso enviesado, polêmico e questionador por excelência,que está cada vez mais distante da imprensa, do debate público, e se encastela, literalmente,nos departamentos de teoria literária das universidades. O distanciamento do leitor e doprodutor de literatura faz com que os críticos falem para si mesmos, ou quase, num circuitofechado de provas e contraprovas, disputas acadêmicas de fato inócuas para os rumos daliteratura. Por outro lado, notase igualmente desde a edição dos livros, e nas justificativasdos organizadores, a preocupação em demonstrar que a ambiguidade e os riscos são latentese constitutivos da atividade crítica e de sua inserção no espaço público.
Assim como poetas e prosadores, o crítico também caminha por solo movediço, e seu olhar éconduzido, em grande medida, pelos rastros deixados pelas obras, em geral sem acompletude ou o acabamento de que gostariam os profissionais e acadêmicos, zelosos de suamissão funcionalista. Parece, no entanto, que a tarefa de explicar a literatura a um leitorideal e catalogála, num modelo mais próximo do arquivístico do que o hermenêutico, paralembrar um palavrão fora de moda, cede lugar ao diálogo problematizador, uma vez que a
23/09/2015 Revista Cult Labirintos da crítica literária Revista Cult
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própria literatura, nos melhores casos, parte da autoconsciência do escritor de que seu objetonão está dado, de que não há balizas para orientálo, nem resultados previsíveis a atingir.Escritores e leitores estão num labirinto sem o fio redentor de Dédalo.
Toda essa discussão teórica, que precisa ela também justificarse como parte do problema enão como solução definitiva, de nada vale se o crítico não tiver paixão desmedida por seuobjeto, se não encarar a literatura a partir de sua intimidade, como num ato amoroso mesmo.Assim, talvez o apelo à tolerância de que falava certeiramente Machado de Assis em seuartigo de outubro de 1865 seja hoje traduzido por generosidade.
Reynaldo Damazio é editor, crítico e poeta, autor de Horas perplexas (Editora 34), entreoutros