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23/09/2015 Revista Cult O mundo condensado Revista Cult data:text/html;charset=utf8,%3Ch1%20style%3D%22margin%3A%200px%3B%20padding%3A%2010px%2010px%200px%3B%20fontsize%3A%2023p… 1/5 O mundo condensado Através do estudo de obras como a Bíblia e a Odisseia, o crítico alemão Erich Auerbach procura entender o sentido da história e da condição humana TAGS: Erich Auerbach O crítico Erich Auerbach (Foto: Divulgação) LEOPOLDO WAIZBORT Erich Auerbach (18921957) é conhecido por seu livro Mimesis: A realidade exposta na literatura ocidental (publicado em Berna no ano 1946) e podese dizer que seus outros trabalhos gravitam em torno dessa obra. O livro propõese a investigar nada menos do que a condição humana, mas a compreende como algo intrinsecamente histórico. Portanto, como algo que se altera ao longo do tempo, e o esforço de análise consiste em revelar essa historicidade, e em mesma medida revelar a condição humana tal como se apresenta em diferentes épocas e situações. Essa tarefa, bastante complexa e talvez mesmo pretensiosa, foi encaminhada por Auerbach de maneira extremamente original, lançando mão de sua formação como filólogo e estudioso de obras literárias. Se a condição humana não é algo transcendente e fixo, examinála consiste em acompanhar as suas transformações. Auerbach procurou responder a essa tarefa buscando compreender como, em diversas obras literárias, os seres humanos, de alguma maneira, figuravam e fixavam uma imagem do homem. Ou seja, ele entendia que as obras literárias expunham o modo como os seres humanos viam a si mesmos em um determinado momento e situação histórica.

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O mundo condensadoAtravés do estudo de obras como a Bíblia e a Odisseia, o crítico alemão Erich Auerbach procura entender osentido da história e da condição humana

TAGS: Erich Auerbach

O crítico Erich Auerbach (Foto: Divulgação)

LEOPOLDO WAIZBORT

Erich Auerbach (1892­1957) é conhecido por seu livro Mimesis: A realidade exposta naliteratura ocidental (publicado em Berna no ano 1946) e pode­se dizer que seus outrostrabalhos gravitam em torno dessa obra.

O livro propõe­se a investigar nada menos do que a condição humana, mas acompreende como algo intrinsecamente histórico. Portanto, como algo que se altera aolongo do tempo, e o esforço de análise consiste em revelar essa historicidade, e emmesma medida revelar a condição humana tal como se apresenta em diferentes épocas esituações.

Essa tarefa, bastante complexa e talvez mesmo pretensiosa, foi encaminhada porAuerbach de maneira extremamente original, lançando mão de sua formação comofilólogo e estudioso de obras literárias.

Se a condição humana não é algo transcendente e fixo, examiná­la consiste emacompanhar as suas transformações. Auerbach procurou responder a essa tarefabuscando compreender como, em diversas obras literárias, os seres humanos, de algumamaneira, figuravam e fixavam uma imagem do homem.

Ou seja, ele entendia que as obras literárias expunham o modo como os seres humanosviam a si mesmos em um determinado momento e situação histórica.

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Arrolando diversas imagens do homem que se alteram ao longo do tempo, ele escreveuuma espécie de história da condição humana, entendida como uma história dosdiferentes modos como os seres humanos viam a si mesmos e o mundo no qual viviam,figurando­os em obras literárias.

Pode­se argumentar que a condição humana não se confunde com a imagem dohomem ou com o modo como eles vêem a si mesmos. Mas a assunção do caráterintrinsecamente histórico da condição humana acaba por conduzir a essa aproximação,desde que se pretenda – como é o caso em Auerbach – evitar atribuir um conteúdoarbitrário ou extemporâneo à condição humana.

Por outras palavras: Auerbach procurou revelar como os seres humanos, em situaçõesdeterminadas, enxergavam a si mesmos e formulavam essa visão que tinham de si e domundo no qual viviam. E entende que a obra literária – assim como outras formasculturais – é uma espécie de depósito ou condensação dessa maneira de ver a si mesmoe o mundo.

Desse modo, sua tarefa converte­se em investigar como as obras literárias revelavamuma imagem do homem e de seu mundo. Não se trata de atribuir, pelo investigador, umconteúdo a elas, mas algo bem diferente: descobrir como, a cada momento, os sereshumanos viam e compreendiam sua condição humana, figurando­a em forma literária.

Isso significava assumir a historicidade das formas de consciência, que se revela emmesma medida no modo como a condição humana é figurada na obra literária.

Por essa razão, o subtítulo da obra, que explica o que Auerbach entende por “mimesis”,fala da realidade exposta. A obra literária expõe uma realidade, intrínseca e interna àobra, convertida em linguagem e estilo, e revela assim o modo como os homens vêem simesmos e seu mundo.

Esse modo está articulado a formas de consciência, ou seja, à capacidade que elespossuem e à modalidade que desenvolvem de perceber e figurar tudo isso.

Em suma, Auerbach postula e procura desenvolver uma correlação enfática entre pelomenos três dimensões: o modo como se concretiza uma forma expressiva (no caso, aliterária), o modo como os homens vêem a si mesmos e uma determinada situaçãosocial­histórica.

Ademais, sua perspectiva é enfaticamente histórica e a correlação é pensada em termosprocessuais: transformações no modo como os homens figuram a si mesmos e o mundona obra literária estão conectadas a transformações no modo como vêem a si mesmos –portanto, a transformação nas formas de consciência, vale dizer nos próprios sereshumanos – e também a transformações na estrutura social, no mundo social­históricono qual esses homens vivem.

O resultado é que, investigando o modo como a realidade está exposta em umadeterminada obra literária (ou seja, como aparecem nela os homens e o mundo no qualeles vivem), Auerbach vê como os homens daquele tempo e lugar concebem umaimagem do homem e do mundo, e é isso a condição humana, tal como percebida poraqueles homens, naquela situação.

Se as formas de consciência estão vinculadas a situações histórico­sociais, as

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transformações na estrutura da sociedade implicam transformações nas formas deconsciência, que por sua vez implicam transformações no modo como os homens veem asi mesmos e seu mundo e, por fim, no modo como figuram isso em forma de literatura.

Auerbach não formula nem postula uma causalidade unívoca entre essas diversasdimensões, mas entende­as como uma totalidade social­histórica.

Nesse sentido, a obra literária oferece­lhe uma possibilidade, em virtude dessaarticulação complexa de diferentes dimensões, de acesso às formas de consciência e,portanto, ao modo como a condição humana é percebida pelos homens em diferentesmomentos e situações.“Realismo”

Auerbach empregou, na falta de termo melhor, a palavra (mas não o conceito)“realismo” para designar o modo como a realidade exposta aparece na obra literária.Mas empregou­a sempre adjetivando­a, de modo a especificá­la: não se trata de“realismo”, mas sempre de uma modalidade particular de realismo, ou seja, de umamodalidade de exposição da realidade.

Destarte, o problema do realismo é convertido no problema dos realismos, e do seguintemodo: às diferentes maneiras de como os seres humanos percebem a si mesmos e omundo no qual vivem correspondem diferentes modalidades de “realismo”.

Assim, o problema que apontei pode também ser formulado – desde que tenhamos emvista o que foi dito – como uma investigação acerca de diversas modalidades de realismoao longo da história.

O uso dessa ideia de realismo, ademais, foi direcionado para uma circunscrição maisdefinida, pois se Auerbach estava interessado na condição humana, era necessáriomobilizar a ideia para pensar o problema.

Isso significou que, ao longo do livro, realismo visa a designar o modo como o mundoconcreto é figurado como algo sério, problemático, e mesmo dramático. Ou seja,realismo aparece como a conjugação de cotidiano e seriedade trágica.

No fundo, mais importante do

que o realismo é o cotidiano, o mundo da vida, o mundo concreto no qual vivem oshomens de carne e osso. O cotidiano é tão importante para Auerbach precisamente porisso: é o lugar onde os homens vivem e, portanto, é onde, por assim dizer, está assentadaa condição humana, compreendida em sua historicidade intrínseca.

Por essa razão, sua investigação procurou focalizar como o cotidiano aparecia eocasionalmente desaparecia da realidade exposta na literatura. E também como, umavez presente, com que intensidade ele aparecia, ou melhor, o quão impregnado deseriedade, problematicidade e dramaticidade.

O destaque dado à seriedade, problematicidade e dramaticidade tem a ver com aelevação da importância dada ao cotidiano; por outras palavras, ele é consideradoimportante na medida em que aparece como algo sério e, mais importante ainda,quando aparece como algo impregnado de drama, como o ambiente no qual sedesenrola um drama: a existência humana.

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Por outro lado, quando o cotidiano, o mundo da vida, aparece de forma irônica,satírica, idílica ou similar, isso significa que a ele não se atribui a maior importância: háoutras coisas mais sérias.

Mas como Auerbach vê?

Uma tal investigação acerca das transformações históricas da condição humana ou,formulando de outro modo, da autopercepção da condição humana, pressupõe umsujeito cognoscente que seja capaz de compreender o que é outro e diferente.

Auerbach professa um “relativismo perspectivista” (a expressão é dele), segundo o qual oconhecimento está inextricavelmente enraizado no presente do sujeito cognoscente.

Não obstante, tal sujeito é capaz de um esforço de conhecimento, por meio do qual podeacessar outras épocas e outros povos – em última instância, porque todos os homenspartilham de uma humanidade comum e porque o mundo histórico é o mundo criadopelos homens e, portanto, possui uma raiz comum.

Auerbach utilizou­se muito de Vico para fundamentar sua prática do conhecimentohistórico – muito menos uma teoria do que uma prática –, retomando a idéia de que omundo histórico é sempre uma configuração das possibilidades do ser humano, doespírito humano.

Sobre um terreno comum erguem­se as experiências específicas, que, contudo, sempreretém um resto, ou melhor, uma camada do que é comum a todos os seres humanos –sua humanidade – e que estabelece um canal para o ato de compreensão, que é o atocognitivo.

Há, pois, uma humanidade comum, que se concretiza, contudo, apenas historicamente:a condição humana.

Assim, o objeto de investigação primeiro volta­se ao próprio investigador; também eleestá imerso em uma situação histórico­social concreta, em uma determinada forma deconsciência, revelando uma determinada visão do homem e do mundo no qual ele vive.

A escrita da história

O objetivo de Auerbach foi sempre escrever história. Pode­se afirmar que, em Mimesis,pretendeu escrever uma história das transformações no modo como os homens viam a simesmos, utilizando para tanto a literatura: nesta, procurou desvelar a imagem dohomem e do mundo.

O livro constitui­se de análises de variados textos literários, que se iniciam por volta dosséculos 9º a.C. – 8º a.C. (a Odisseia e o Antigo Testamento) e chegam até o seupresente, o momento em que escrevia o livro (1942­45).

Nesse arco histórico de longuíssima duração, Auerbach selecionou alguns poucos textos– cerca de meia centena – e, lendo­os, buscou compreender e expor como a realidadeneles aparecia, perseguindo variadas modalidades da conjugação (ou disjunção) decotidiano e seriedade.

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Separação e mistura de estilos

Para operacionalizar analiticamente o problema da unificação (ou separação) decotidiano e seriedade (que por sua vez é o modo de perceber como a condição humanaera percebida e figurada em variados momentos e situações), Auerbachinstrumentalizou a “regra da separação dos estilos”, uma proposição da poética clássicasegundo a qual os assuntos sérios e sublimes exigem uma linguagem elevada etranscorrem em um mundo elevado, enquanto os assuntos de pouca importânciadeixam­se vazar em uma linguagem simples e são os assuntos do mundo comum, isto é,cotidiano.

Entre o estilo elevado (do drama) e o estilo baixo (da comédia), há ainda um estilointermediário, que nunca é plenamente sério, mas também não é completamentesatírico: ocasionalmente tocante, sentimental, idílico etc.

A regra da separação dos níveis de estilo tem como contraparte a sua ausência ouquebra, quando as coisas mais sérias e sublimes podem aparecer entranhadas no mundocotidiano e ser expressas em uma linguagem comum.

E é isso, precisamente, o que interessa a Auerbach: uma vez que procura investigar amencionada conjugação de cotidiano e seriedade, interessa­lhe a quebra da regra, amistura de estilos. Ou seja, a investigação da condição humana pode ser conduzidautilizando como marco de orientação (mas não exclusivo) o rompimento da regra daseparação dos níveis de estilo, uma vez que, enquanto operante, essa regra separa ocotidiano do sério, do trágico e do sublime: estes referem­se, então, a um mundo extraou supra­cotidiano.

Leopoldo Waizbort é professor no Departamento de Sociologia da FFLCH­USP eautor deAs Aventuras de Georg Simmel (Editora 34)