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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS

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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS

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UNIVERSIDADE DE SÃO PUNIVERSIDADE DE SÃO PUNIVERSIDADE DE SÃO PUNIVERSIDADE DE SÃO PUNIVERSIDADE DE SÃO PAULOAULOAULOAULOAULO

Reitor: Prof. Dr. Flávio Fava de MoraesVice-Reitora: Profa Dra Myriam Krasilchik

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRASFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRASFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRASFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRASFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRASE CIÊNCIAS HUMANASE CIÊNCIAS HUMANASE CIÊNCIAS HUMANASE CIÊNCIAS HUMANASE CIÊNCIAS HUMANAS

Diretor: Prof. Dr. João Baptista Borges PereiraVice-Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert

DEPDEPDEPDEPDEPARTARTARTARTARTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAMENTO DE LÍNGUAS ORIENTAISAISAISAISAIS

Chefe: Profa Dra Aida Ramezá HananiaVice-Chefe: Prof. Dr. Alexander Chung Yuan Yang

Endereço para correspondênciaEndereço para correspondênciaEndereço para correspondênciaEndereço para correspondênciaEndereço para correspondência

Comissão EditorialComissão EditorialComissão EditorialComissão EditorialComissão Editorial

Departamento de LínguasDepartamento de LínguasDepartamento de LínguasDepartamento de LínguasDepartamento de LínguasOrientaisOrientaisOrientaisOrientaisOrientais – FFLCH/USP – FFLCH/USP – FFLCH/USP – FFLCH/USP – FFLCH/USP

Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 Cid. Universitária

05508-900 – São Paulo – SP – BrasilTel: (011) 818-4299 / FAX:818-4892

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© Copyright 1997 dos autores. Direitos de publicação da Universidade de São Paulo. março /1997

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Humanitas Publicações FFLCH/USPSão Paulo, 1997

Revista do Departamento de Línguas Orientais daFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Nº 1

REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS

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DIREÇÃO EDITORIALDIREÇÃO EDITORIALDIREÇÃO EDITORIALDIREÇÃO EDITORIALDIREÇÃO EDITORIAL

· Aida Ramezá Hanania (DLO – curso de Árabe)· Arlete Orlando Cavaliere (DLO – curso de Russo)· Chaké Ekizian Costa (DLO – curso de Armênio)· Jaffa Rifka Berezin (DLO – curso de Hebraico)· Madalena Natsuko Hashimoto (DLO – curso de Japonês)· Mário Bruno Sproviero (DLO – curso de Chinês)

CONSELHO EDITORIALCONSELHO EDITORIALCONSELHO EDITORIALCONSELHO EDITORIALCONSELHO EDITORIAL

· Alexander Chung Yuan Yang (USP)· Alexandre Jebit (Academia de Diplomacia-M.R. Ext. Moscou)· Ana Szpiczkowski (USP)· Antonio Kandir (UNICAMP)· Boris Schnaiderman (USP)· Franz Shumann (Univ. Califórnia)· Haquira Osakabe (UNICAMP)· Helmi Nasr (USP)· Homero Freitas de Andrade (USP)· Kate Windmüller ( Edit. Rev. Judaica)· Lídia Massumi Fukasawa (USP)· Milton Hatoum (Univ. Amazonas)· Richard Hovannisian (Univ. Califórnia)· Roshdi Rashed (CNRS – Paris)· Sakae Murakami Giroux (Univ. Strasbourg)· Saul Sosnowski (Univ. Maryland)· Sun Chia Chin (Univ. Normal de Taiwan)· Yessai Ohanes Kerouzian (USP)

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

EDITORIAL ....................................................................................................... 7

A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE ......................................................... 9Luiz Jean Lauand

O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO ........................ 25 Ruth Leftel

A LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIU ................................................ 33 Homero Freitas de Andrade

A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO ...................................................................... 55 Ana Szpiczkowski

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NAS NARRATIVAS SETSUWA

DO SÉCULO XII ..................................................................................... 63 Luiza Nana Yoshida

HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE ............. 73 Aida Ramezá Hanania

UM POETA DA CENA RUSSA MEYERHOLD E O TEATRO

RUSSO DE VANGUARDA .....................................................................93 Arlete O. Cavaliere

A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA

A CULTURA ARMÊNIA .................................................................... 105 Yêda de Moraes Camargo

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FORMAS E FORMATOS NAS ARTES PLÁSTICAS DO JAPÃO ..123 Madalena N. Hashimoto Cordado

AS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS ARMÊNIAS ............................ 141 Chaké Ekizian Costa

ÁRABE-PORTUGUÊS - ASPECTOS CONTRASTIVOS NO

PLANO FONOLÓGICO: ALGUMAS IMPLICAÇÕES

PEDAGÓGICAS ....................................................................................... 149 Safa Alferd Abou Chahla Jubran

A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO

PLURICULTURAl ................................................................................... 173 Eliana Rosa Langer

SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU ... 177 Sandra Maria Silva Palomo

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EDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIAL

O Departamento de Línguas Orientais da FFLCH-USP concretiza,com a publicação da Revista de Estudos Orientais, uma aspiração tãoantiga quanto legítima de seus docentes e pesquisadores, qual seja, a deapresentar, em veículo próprio, uma produção alicerçada no propósito dedar a conhecer – por meio de suas múltiplas culturas – o Oriente, tão pre-sente e, ao mesmo tempo, tão desconhecido em nosso meio.

Não estivéssemos no Brasil e particularmente em São Paulo – cida-de, como poucas, forjada pelo encontro de diferentes raças, povos e cultu-ras – é imponente o fato de estarmos hoje diante de uma pluralidade culturalobrigatoriamente em contacto, fruto do formidável processo de aproxima-ção mundial levado a efeito, de modo inapelável, pela revolução da tecnologia.

A pesquisa e a reflexão acadêmicas revelam-se imprescindíveis paraa mediatização das várias culturas, caracterizando-se, por isso, como im-portantes agentes catalizadores do multiculturalismo vigente.

Nessa linha de considerações, a Revista de Estudos Orientaispretende contribuir com trabalhos que resgatem e elucidem o patrimôniocultural oriental, com vistas a uma real integração Oriente/Ocidente, ondepontifique a mútua compreensão e um agudo senso de complementaridadede visões de mundo, eliminando-se o distorsivo enfoque “exoticizante”quefreqüentemente acompanha a interpretação da milenar realidade oriental.

O presente número publica artigos motivados pelo Curso de DifusãoCultural “O Oriente e suas Culturas”, ministrado pelo D.L.O. no segun-do semestre de 1996 e norteado pelos mesmos objetivos que inspiram aREO.

Incidindo em diversas temáticas – Arte, Ciência, Teatro, Literatura,História... – os textos aqui reunidos refletem o perfil das áreas que com-põem o Departamento e incluem os diversos Orientes: Próximo, Médio eExtremo.

Esperando contar sempre com os leitores e colaboradores para que aRevista de Estudos Orientais tenha bom êxito e vida longa, desejo agra-decer – e profundamente – em nome da Direção Editorial, o apoio funda-mental para esta realização, da parte do Prof. Dr. Francis Henrik Aubert,digno Vice-Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanasda USP que, com seu dinamismo intelectual e ampla visão humanística,soube reconhecer a importância dos Estudos Orientais na Universidade deSão Paulo e, muito particularmente, no âmbito da Faculdade de Filosofia,

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Letras e Ciências Humanas, concedendo ao Departamento de Línguas Ori-entais, espaço devido na HumanitasPublicações, que vem dirigindo comextrema competência.

São Paulo, novembro de 1996

Profa. Dra. Aida Ramezá HananiaChefe do Departamento de Línguas Orientais

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A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE 11111

Luiz Jean Lauand

1. A CA CA CA CA CIÊNCIAIÊNCIAIÊNCIAIÊNCIAIÊNCIA EEEEE SEUSEUSEUSEUSEU CONTEXTOCONTEXTOCONTEXTOCONTEXTOCONTEXTO CULCULCULCULCULTURALTURALTURALTURALTURAL

Neste estudo, analisaremos a Álgebra como ciência árabe. Comece-mos por antecipar alguns tópicos de discussão sobre que significado podeter falar em ciência desta ou daquela nação ou cultura – para além do merofato de indicar o estágio de desenvolvimento ou a produção dos cientistas deuma nacionalidade, como quando se diz: “a Física russa está bastante adian-tada e é detentora de diversos Prêmios Nobel” ou “só a Medicina america-na consegue fazer esse tipo de transplante” etc.

Ordinariamente tendemos a pensar que o conhecimento científicoindepende de latitudes e culturas: uma fórmula química ou um teorema deGeometria são os mesmos em latim ou em chinês e, sendo a comunicação oúnico problema – assim se pensa, à primeira vista –, bastaria uma boa tra-dução dos termos próprios de cada disciplina2 e tudo estaria resolvido.

Na verdade, sabemos que as coisas não são tão simples e não épreciso muito esforço para lembrar que a evolução da ciência está repletade interferências histórico-culturais, condicionando o surgimento de umadisciplina, o reconhecimento de um resultado ou a adoção de um procedi-mento científico...

É conhecido, por exemplo, o fato de que espíritos tão inovadores comoGalileu ou Descartes apegaram-se ao “dogma científico” do horror ao vá-cuo3; só Pascal – na mesma época e após muita relutância – superou esseerro. Descartes, em seu Princípios da Filosofia – mesmo tratado que

1 Originalmente, conferência “Cultura Árabe e Cultura Ocidental”, proferida em 28-8-96 nocurso de difusão cultural do DLO-FFLCHUSP “O Oriente e suas Culturas”.

2 Traduzindo, digamos – por exemplo, em Matemática –, conjunto por set ou ensemble.3 Para o episódio do “horror ao vácuo”, ver PIEPER, Josef “A tese de Pascal: Teologia e

Física – uma introdução ao Préface pour le traité du vide” Cuadernos de Cultura y Ciencia,Madrid – S. Paulo, Univ. Autónoma de Madrid/DLOFFLCHUSP, 1996, N. 2, pp.29 e ss.

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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.

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começa afirmando ser necessário duvidar radicalmente de tudo o que possaapresentar a mais ínfima incerteza –, toma como uma intuição irrefutável darazão a idéia tradicional de que a natureza tem horror ao vácuo...

Esses condicionamentos são de diversas ordens. Assim, ao dizer quea Geometria (geo-metria, em grego) é uma ciência grega ou que a Álgebra(al-jabr) é uma ciência árabe4, estamos afirmando algo mais do que a “ca-sualidade” de terem sido gregos ou árabes seus fundadores ou promotores.

Aproximamo-nos do sentido da expressão “ciência árabe” quandopensamos em casos paralelos. Diz-se, por exemplo, que a caligrafia é uma“arte árabe”, mas não se diz que a pintura ou o teatro sejam “artes árabes”.Nesses casos, não estamos aqui interessados no fato de haver muitos etalentosos calígrafos árabes (ou no da correspondente escassez de pinto-res), mas numa “conexão de sentido” entre a arte caligráfica e fatores como:a atitude árabe perante a escrita (e sua relação, digamos, com o modo comoo Alcorão considera os ayyat, os sinais de Deus); a desconfiança semitaem relação à imagem; a língua e a religião; etc.5

No caso da Álgebra, não foi por mero acaso que ela surgiu no califatoabássida (“ao contrário dos Omíadas, os Abássidas pretendem aplicar rigo-rosamente a Lei religiosa à vida quotidiana”6, no seio da “Casa da Sabedo-ria” (Bayt al-Hikma) de Bagdad, promovida pelo califa Al-Ma’amun7, umaciência nascida em língua árabe e criada por Al-Khwarizmi, pioneiro daciência árabe e “antagonista da ciência grega”8.

Certamente, o que a moderna matemática entende por Álgebra podeparecer uma fria e objetiva axiomática – constitutiva de uma sintaxe deestruturas operatórias e destituída de qualquer alcance semântico –, mas

4 Ao longo deste trabalho, estaremos nos referindo principalmente aos casos paradigmáticosde Os Elementos de Euclides e da Álgebra, tal como fundada por Al-Khwarizmi.

5 Uma análise desses fatores condicionantes da arte árabe da caligrafia encontra-se emHANANIA, Aida R. A Caligrafia como Expressão Cultural – A Arte de Hassan Massoudy,tese de Livre-Docência, FFLCH-USP, 1995.

6 ANAWATI, M-M e GARDET, Louis Introduction a la Théologie Musulmane, Paris, Vrin,1981, p. 44.

7 Não é de todo alheio a nosso tema, o fato de que esse califa fez de uma particular doutrinateológica, a mu’atazilita, a teologia oficial do Império.

8 E, como indicaremos, não são casuais as definições euclidianas de razão e proporção (e oslimites impostos a esses conceitos nos Elementos) nem tampouco a reação dos matemáti-cos árabes a essas definições.

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essa Álgebra de hoje é o resultado da evolução – em desenvolvimento con-tínuo – da velha al-jabr, forjada por um contexto cultural em que não sãoalheios, elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe à teo-logia muçulmana da época...

2. A A A A ALLLLL-----JABRJABRJABRJABRJABR EEEEE ALALALALAL-----MUQABALAHMUQABALAHMUQABALAHMUQABALAHMUQABALAH

Muhammad Ibn Musa Al-Khwarizmi foi membro da “Casa da Sabedo-ria”, a importante academia científica de Bagdad, que alcançou seu esplendorsob Al-Ma’amun (califa de 813 a 833). A ele, Al-Khwarizmi dedicou seu Al-Kitab al-muhtasar fy hisab al-jabr wa al-muqabalah (“Livro breve para ocálculo da jabr e da muqabalah”), o livro fundador da Álgebra.

Comecemos por observar que as palavras que nomeiam a nova ciên-cia, al-jabr e al-muqabalah, embora empregadas por Al-Khwarizmi emsentido técnico, eram (e ainda são) termos da linguagem corrente árabe.

O radical trilítere j-b-r9 está associado aos seguintes significados:- Força: por exemplo, o anjo Gabriel, Jibryl, é, literalmente, força-

de-Deus. No Alcorão (59, 23), Al-Jabar – o forte, aquele que faz valer suavontade – é um dos 99 nomes de Deus.

- Força que compele, que obriga: neste sentido, o Alcorão diversasvezes (11, 59; 14, 15; 28, 19; 40, 35; etc.) emprega o radical j-b-r para“tiranizar”, “tirano” etc.. Não por acaso, a corrente teológica muçulmanaque nega o livre-arbítrio do homem em favor de um inevitável destino pré-determinado foi denominada jabariyah. E também o serviço militar com-pulsório é ijbary...

- Restabelecer: pôr (ou repor) algo em seu devido lugar, restabeleceruma normalidade. Daí que tajbir seja ortopedia e jibarah, redução, nosentido médico: reconduzir (talvez forçando-o por tala, gesso etc.) o osso aseu devido lugar: na Espanha, no tempo em que os barbeiros acumulavamfunções, podia-se ver a placa “Algebrista y Sangrador” em barbearias10

“Álgebra” no sentido de “ortopedia” vigorou, por muito tempo, também nalíngua portuguesa11. 9 Como se sabe, o radical consonantal é, em árabe, o que é semanticamente decisivo: as

vogais, a prefixação etc. só fazem uma determinação periférica de sentido.10 KLINE, Morris. Mathematical Thought from Ancient to Modern Times, New York, Oxford

University Press, 1972, p. 192.11 Cfr. por exemplo NIMER, Michel. Influências Orientais na Língua Portuguesa, São

Paulo, s.c.p., 1943, vol. I, verbete Álgebra.

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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.

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Por que Al-Khwarizmi escolhe a palavra jabr para o procedimentofundamental de sua nova ciência? Precisamente porque - analogamente àortopedia – a Álgebra é “forçar cada termo a ocupar seu devido lugar”. Jáno começo de seu Kitab, Al-Khwarizmi distingue seis formas de equação,às quais toda equação dada pode ser reduzida (e, portanto, canonicamenteresolvida). Em notação de hoje:

1. ax2 = bx2. ax2 = c3. ax = c4. ax2 + bx = c5. ax2 + c = bx6. bx + c = ax2

Al-jabr é a operação que soma um mesmo fator (afetado do sinal +)a ambos os membros de uma equação para eliminar um fator afetado como sinal -.

Já a operação que elimina termos iguais ou semelhantes de ambos oslados da equação é al-muqabalah (que, por sua vez, deriva do radical q-b-l, cujo significado aponta para: estar frente a frente – daí a qiblah na mes-quita indicar a direção de Meca –; cara a cara – daí também que qabilaseja também beijar – ; confrontar; equiparar –”toma lá, dá cá” - etc.).

Seja, então, um problema em que os dados podem ser postos sob aforma:

2x2 + 100 - 20x = 58.

Al-Khwarizmi procede do seguinte modo:

2x2 + 100 = 58 + 20x (por al-jabr).

Divide por 2 e reduz os termos semelhantes:

x2 + 21 = 10x (por al-muqabalah).

E o problema já está canonicamente equacionado.

Feita esta digressão técnica, passemos a analisar (em alguns casos nãoserá possível superar a mera alusão indicativa...) as relações e conexões desentido que se dão entre a Álgebra e alguns aspectos da cultura árabe.

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3. 3. 3. 3. 3. A ÁA ÁA ÁA ÁA ÁLGEBRALGEBRALGEBRALGEBRALGEBRA NOSNOSNOSNOSNOS QUADROSQUADROSQUADROSQUADROSQUADROS DODODODODO I I I I ISLAMSLAMSLAMSLAMSLAM: : : : : OOOOO RELIGIOSORELIGIOSORELIGIOSORELIGIOSORELIGIOSO EEEEE OOOOO TEMPORALTEMPORALTEMPORALTEMPORALTEMPORAL

Comecemos pelos fundamentos das necessidades práticas da socie-dade.

Em seu estudo “L’Islam et l’épanouissement des sciencesexactes”12, Roshdi Rashed, para mostrar a conexão entre Alcorão, ciênciae vida prática, exemplifica precisamente com a Álgebra: ‘ilm al-fara’id(ciência da partilha, da herança). Os próprios juristas referem-se à Álgebracomo hisab al-fara’id, o cálculo da herança, segundo a lei corânica.

E aí temos já um primeiro condicionamento histórico-cultural, própriodo Islam, no qual o caso da herança é emblemático. Trata-se da sólida uniãoque se dá no Islam entre a ordem religiosa e a temporal.

Por coincidência, o mesmo problema da herança (que para o muçul-mano está sob a legislação direta de Allah) é proposto a Cristo. Cristo, quedeclara – algo impensável na visão muçulmana – “A César o que é deCésar; a Deus o que é de Deus”, recusa-se a estabelecer concretamente ostermos da herança.

Trata-se de um episódio evangélico aparentemente intranscendente: “umda multidão” aproxima-se de Cristo e lhe faz um pedido: que Jesus use Suaautoridade para convencer seu irmão a repartir com ele a herança (Lc 12, 13).

Para surpresa daquele homem (e contrariando a mentalidade antigae a oriental, que uniam o poder religioso a questões temporais...), Cristorecusa-se terminantemente a intervir nessa questão: “Homem, quem meestabeleceu juiz ou árbitro de vossa partilha?” (Lc 12, 14).

O máximo a que Cristo chega é a uma condenação genérica da cobi-ça, contando a esses irmãos a parábola do homem rico cujos campos havi-am produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação doslírios: “Olhai os lírios do campo...”.

Bem diferentes são as coisas no mundo muçulmano. Roger Garaudy,no capítulo “Fé e Política” mostra como a tawhid (unidade, dogma centralislâmico) muçulmana se projeta sobre a política, o direito e a economia:“Deus é o único proprietário e ele é o único legislador. Tal é o princípio debase do Islam em sua visão de unidade (tawhid)”13.

1 2 In Quatre conférences publiques organisées par l’Unesco, UNESCO, 1981, p. 152.1 3 GARAUDY, Roger Promessas do Islam, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70.

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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.

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Garaudy tem razão ao afirmar que não se dá no Islam (não há sacerdo-tes), uma teocracia clerical de tipo ocidental, mas é inegável, também, que avisão muçulmana tem favorecido uma forte e arraigada teocracia própria enão por acaso o chefe político se intitula ayyatullah, “sinal de Deus”14.

Seja como for, o fato é que, na questão da herança, o Alcorão (4, 11e ss.) diz concretamente: “Allah vos ordena o seguinte no que diz respeito avossos filhos: que a porção do varão equivalha à de duas mulheres. Se estassão mais de duas15, corresponder-lhes-ão dois terços da herança. Se é filhaúnica, a metade. A cada um dos pais corresponderá um sexto da herança,se deixa filhos; mas se não tem filhos e lhe herdam só os pais, um sexto épara a mãe. Etc., etc. (...)”.

E conclui: “De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quaisvos são os mais úteis. Isto compete a Allah. Allah é onisciente, sábio”.

Contrastemos com o cristianismo. Naturalmente, para um cristão, omundo é criação de Deus e obra de sua Inteligência: o mundo foi criado peloVerbum e, portanto, conhecer o mundo é conhecer sinais de Deus. E mais:cada criatura é porque é criada inteligentemente por Deus, participa do serde Deus. O Deus cristão é Emmanuel, Deus conosco, e pela Encarnação, aeternidade de Deus ingressa na temporalidade e Cristo en-cabeça, re-capi-tula (como diz o Catecismo da Igreja Católica) toda a realidade criada.

Daí que a Igreja defenda tenazmente a lei moral, lei natural da digni-dade do ser do homem, que lhe foi conferida pelo ato criador do Verbum.Mas, precisamente por essa mesma concepção teológica, o cristão podeafirmar a mais decidida autonomia das realidades temporais: porque o mundoé obra do Verbum, a realidade temporal tem sua verdade própria, suas leispróprias, naturais, descartando o clericalismo16.

Esta é mesmo a doutrina oficial da Igreja, que rejeita definitivamentetanto o clericalismo quanto o laicismo que pretende afastar Deus da realidadesocial. Assim, na mesma passagem (4, 36) em que a Lumen Gentium17 afirma:“nenhuma atividade humana pode ser subtraída ao domínio de Deus”, ajunta:14 Embora Garaudy, acostumado – pelo seu passado marxista – à distinção entre o socialismo

ideal e o “socialismo realmente existente”, uma e outra vez recorra à “distinção entre oensino corânico e a prática dos países muçulmanos...” (p. 70).

15 E se só há filhas...16 Tratamos mais amplamente do tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba-S. Paulo, PUC-

PR - GRD, 1993.17 Sugestivemnte no capítulo IV, dedicado aos leigos – a cuja iniciativa e responsabilidade de

cristãos compete a santificação da ordem temporal.

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“é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuida-dos temporais, se rege por princípios próprios”. E a Gaudium et Spes (1, 3,36): “Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisascriadas e as mesmas sociedades gozam de leis e valores próprios, a seremconhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é absoluta-mente necessário exigi-la. Isto não é só reivindicado pelos homens de nossotempo, mas está também de acordo com a vontade do Criador. Pela própriacondição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamento próprio,verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudoisto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte”18.

Em extremo sentido contrário, um Ayyatulah Khomeini19 pôde afir-mar: “Costuma-se dizer que a religião deve ser separada da política e que asautoridades religiosas não se devem imiscuir nos assuntos de Estado. (...)Tais afirmações só emanam dos ateus: são ditadas e espalhadas pelos impe-rialistas. A política estava separada da religião no tempo do Profeta? (QueDeus o abençoe, a Ele e aos seus fiéis)” (p. 27). “O Islam tem preceitospara tudo o que diz respeito ao homem e à sociedade. Esses preceitos pro-cedem do Todo-Poderoso e são transmitidos pelo seu Profeta e Mensagei-ro. (...) Não existe assunto sobre o qual o Islam não haja emitido seu juízo”(p. 19). “A instauração de uma ordem política secular equivale a entravar oprogresso da ordem islâmica. Todo poder secular, seja qual for a forma pelaqual se manifesta, é forçosamente um poder ateu, obra de Satanás. É nossodever exterminá-lo e combater seus efeitos. (...) Não temos outra soluçãosenão derrubar todos os governos que não repousam nos puros princípiosislâmicos, sendo, portanto, corruptos e corruptores (...) É esse o dever, nãosó dos iranianos, mas de todos os muçulmanos do mundo.” (p. 23)

O Islam, ao contrário do cristianismo, afirma uma absolutatranscendência de Deus (transcendência acentuada pela doutrinamu’atazilita) e uma revelação ditada20, “descida” (em árabe, o verbo nazala,que se aplica à revelação divina, significa também “descer”). A revelaçãode Allah e sua tawhid estão sinalizadas21 no mundo.

E o princípio da unidade não se aplica só à política, mas alcançatambém as ciências.

18 Cf. também Apostolicam Actositatem (II, 7).19 Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, 1980.20 E não meramente inspirada ao hagiógrafo, como no cristianismo.21 Ayyat, em árabe, significa não só sinal, mas também versículo do Alcorão.

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LAUAND, Luiz Jean. A ÁLGEBRA COMO CIÊNCIA ÁRABE.

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Em primeiro lugar, as ciências estão a serviço da fé22, também de ummodo prático: uma sociedade sob a forte e urgente necessidade de obede-cer à lei do Altíssimo, precisa operacionalizar as soluções dos graves pro-blemas de partilha. A Álgebra surge como uma ciência voltada para a reso-lução desse problema suscitado pelo Alcorão23 Cabe, nesse sentido, umasimples – porém, sugestiva – observação: a Álgebra de Al-Khwarizmi éinteiramente retórica e não emprega símbolos. Note-se que os númerossimples são designados por dirham, que é uma unidade monetária; a incóg-nita é designada pela palavra árabe xay’, coisa, e, se é de ordem quadrada,mal (riqueza, bens, fortuna).

Além disso, de um modo intrínseco: “o princípio da tawhid, o pontocapital da experiência islâmica de Deus, exclui a separação entre ciência efé. Tudo, na natureza, sendo ‘sinal’ da presença divina, o conhecimento danatureza torna-se (...) um acesso à proximidade de Deus. (...) A sabedoriada fé integra todas as ciências num conjunto orgânico, pois todas têm umobjetivo no mundo que, em sua totalidade, é uma ‘teofania’, uma revelaçãodos ‘sinais de Deus’. O universo é um ‘ícone’ no qual o Um se revelaatravés do múltiplo por mil símbolos”24.

22 “Deus, em sua misericórdia infinita, confiou o Alcorão a Seu profeta, para que o homempossa decifrar a natureza e, desta forma, transcendê-la. O estudo do Alcorão é uma inicia-ção ao estudo da natureza. O estudo da natureza é uma procura de Deus. Os fenômenosnaturais são cifras que significam Deus. O Alcorão fornece os testes de verificação para osesforços decifradores da pesquisa da natureza. O homem pode comparar a natureza aoAlcorão, porque sua mente participa do espírito divino. A origem divina da mente humanaé vivenciada justamente por sua capacidade de adequação do Alcorão à natureza. Por suacapacidade algébrica e decifradora, a mente humana tem a estrutura da mente divina”(FLUSSER, Vilém “A mesquita e a escrita”, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP,v. 1, n. 2, 1993, p. 33.

23 Este é um fato tão notório, que é destacado por todos os historiadores da matemática árabe.Citaremos aqui apenas três dos mais conhecidos: YOUSCHKEWITCH, Adolf P. Lesmathématiques arabes (VIII- XV siécles), Paris, Vrin-CNRS, 1976. DAHAN-DALMEDICO,A. - PEIFFER, J. Une histoire des mathématiques, Paris, Seuil, 1988. WAERDEN, B. L.van der A History of Algebra – From al-Khwarizmi to Emmi Noether, New York, SpringerVerlag, 1985. Note-se que precisamente a parte sobre problemas práticos de herança, aparte III do Kitab..., que ocupa mais da metade do livro de Al-Khwarizmi, é omitida nastraduções latinas de Roberto de Chester – feita em Segóvia em 1145 – e de Gerardo deCremona – falecido em 1187 –, em Toledo.

24 GARAUDY, op. cit. pp. 81, 84-85.

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Nesse sentido, um importante instrumento de ligação entre as ciênci-as é precisamente a Álgebra. Referindo-se à época em que surge a Álge-bra de Al-Khwarizmi, Roshdi Rashed diz: “O começo do século IX é umgrande momento de expansão da matemática helenística em língua árabe.Ora, é precisamente nesse período e nesse meio (o da “Casa da Sabedoria”de Bagdad) que Muhammad Ibn Musa al-Khwarizmi redige um livro comassunto e estilo novos. De fato, é nessas páginas que surge, pela primeiravez, a Álgebra como disciplina matemática distinta e independente. Talsurgimento – e já os contemporâneos se apercebem disso – foi de importân-cia crucial, tanto pelo estilo dessa matemática, como pela ontologia de seuobjeto (grifo nosso) e, mais ainda, pela riqueza de possibilidades que comela se abrem. O estilo é, ao mesmo tempo, algorítmico e demonstrativo e,com essa álgebra, imediatamente já se deixa entrever a imensa potencialidadeque impregnará a Matemática a partir do séc. IX: a aplicação das discipli-nas matemáticas umas às outras”25.

4. A ÁLGEBRA NOS QUADROS DO SISTEMA LÍNGUA/PENSAMENTO ÁRABE

Neste tópico resumiremos algumas características do sistema língua/pensamento, no sentido que essa expressão tem em Lohmann26 e as rela-ções entre seus dois pólos: língua e pensamento. Essa análise permitir-nos-á uma melhor compreensão de aspectos da Álgebra como ciência árabe ede sua evolução (em contraposição à Geometria, ciência grega).

Uma primeira observação sobre as relações entre língua e forma depensamento é a de que “o que nos interessa não são as línguas em si, mas aslínguas enquanto pré-determinam uma certa concepção de mundo para ofalante, ou como diz Heidegger, eine Erschlossenheit des Daseins”27. Em

25 “Modernidade Clássica e Ciência Árabe”, Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1,n. 1, 1993, p. 9.

26 LOHMANNN, Johannes. “Santo Tomás e os Árabes - Estruturas lingüísticas e formas depensamento”. Revista de Estudos Árabes, Centro de Estudos Árabes/FFLCHUSP, SãoPaulo, Ano III, n. 5-6, pp. 33-51. Tit. orig.: “Saint Thomas et les Arabes (Structureslinguistiques et formes de pensée)”, Revue Philosophique de Louvain, t. 74, fév. 1976, pp.30-44. Trad.: Ana Lúcia Carvalho Fujikura e Helena Meidani.

27 Art. cit. p. 38. Mesmo reconhecendo uma certa radicalização na posição de Lohmann, nãoresta dúvida de que há – senão uma determinação – pelo menos um forte condicionamento

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outras palavras, o alcance do pensamento condiciona-se pela linguagem.Não só pelo maior ou menor número e profundidade de conceitos e potenci-al expressivo dos vocábulos, mas também (e principalmente) pelas estrutu-ras peculiares de cada língua ou famílias de línguas.

Assim, cabe falar num sistema língua/pensamento, que, no caso dogrego, é justamente designado por logos e, no caso do árabe, por ma’na.“O conceito de ma’na, ‘intencionalidade’28, é tão característico da formaárabe de pensamento, como o é a noção específica do termo grego logos,em sua concepção original, para a forma de pensamento do grego clássico.E, além do mais, justamente por essas duas noções, ou, por assim dizer, sobos auspícios dessas duas noções, é que estas duas formas de pensamento,encarnadas, cada uma em uma língua determinada – o grego clássico e oárabe clássico – exprimiram-se como tais em uma filosofia”29 E, podería-mos complementar: exprimiram-se também em Álgebra e Geometria.

Pois o sistema grego, logos, busca estabelecer uma exata corres-pondência entre pensamento e realidade. Correspondência biunívoca jáprogramaticamente estabelecida por Parmênides quando afirma: Tò gàrauto noein estin te kaì einai (“Na verdade, pensar e ser são, ao mesmotempo, a mesma coisa”). Tal pretensão de pensamento é possibilitada pordiversos fatos de linguagem. Destacaremos dois para efeito de contraste como árabe.

1) Ao contrário do árabe, no centro semântico do sistema grego, “en-contra-se o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles, está implicitamentecontido em qualquer outro verbo”30 O verbo ser, característica central dosistema logos (e de todo o indo-europeu), permitiria o enlace exato entre arealidade em si mesma e o pensamento: pelo verbo ser o pensamento homo-loga o real.

Um exemplo ajudar-nos-á a compreender essa relação. Seja o casode especialistas em segurança contra incêndio que homologam um deter-minado edifício. Eles dispõem de um logos, um corpo de normas técnicasracionalmente estabelecidas e, inspecionando um prédio, verificam se a re-alidade (a presença de tantos extintores de incêndio, tais e tais mangueiras,

do pensamento pelas estruturas da língua. Talvez fosse melhor falar em interação dialética,na medida em que também o pensamento influencia a formação da língua.

28 No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann.29 Art. cit. p. 35-36.30 Art. cit. p. 35.

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portas corta-fogo, saídas de emergência etc.) daquele edifício está no mes-mo logos (homo-logação) da norma. Do mesmo modo, para o sistema gre-go, o pensamento está em homologia com a realidade.

2) A língua grega flexiona temas (enquanto a árabe flexiona a própriaraiz de uma palavra). No exemplo tradicional das gramáticas elementaresde latim (e, obviamente, o mesmo se dá com o grego), o radical ros de rosapermanece fixo, pois uma rosa é uma rosa; qualquer outro fator (seu relaci-onamento com o mundo exterior, com o pensamento humano ou com quali-dades que são nela): da cor da rosa (genitivo) ao mosquito nela pousado(ablativo), é refletido pelas desinências rosam, rosarum, rosae etc. O árabe,por sua vez, não tem radicais fixos: o radical trilítere é intra-flexionado:SaLaM; iSLaM; SaLyM; muSLiM etc. (correspondente à ousía, àsubstantia).

Lohmann interpreta este fato do seguinte modo: “O árabe, como osemítico em geral, de um lado, e o grego, de outro, estabelecem relações como mundo: um, principalmente pelo ouvido e o outro, pelo olho. Tal fato levou ofalante semítico a uma preponderância da religião, enquanto o grego tornou-se o inventor da teoria. Daí decorre (ou procede...?) uma diferença análogadas respectivas línguas, quanto a seu tipo de expressão. Cada um desses doistipos caracteriza-se por um procedimento gramatical específico: flexão deraízes no semítico e flexão de temas no indo-europeu antigo” 31.

A omnipresença do verbo ser e a flexão de temas, como agudamenteindica Lohmann, favorecem um sistema logos (“ocular”, “especular”) decorrespondência exata entre pensamento e realidade que, como veremos, écaracterística também da Geometria grega.

Já o árabe tende ao sistema ma’na – pensamento “auricular”, “pen-samento confundente”32 – pela ausência da amarra do verbo ser como ver-bo de ligação, pela indeterminação semântica de seus radicais trilíteres etc.Configura-se,assim, uma despretensão de atingir a ousía, a substantia.

Tal posicionamento é confirmado pela religião e, particularmente, peladoutrina mu’atazilita, que é o pensamento teológico imposto oficialmentepor Al-Ma’amun em Bagdad, à época de Al-Khwarizmi. Pode-se aplicar àÁlgebra as considerações de Lohmann sobre as “distorções” na recepçãoda filosofia grega pelos árabes e, particularmente, por Averróes: “(Um as-

31 Art. cit., p. 36.32 No sentido “técnico” que Ortega y Gasset e Julian Marías dão à expressão.

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pecto) que se deve conhecer para se compreender a intenção do Comentador(subjacente à sua interpretação de Aristóteles) é a noção de essentia (comotradução da palavra árabe dhat). Dhat – conceito profundamente arraiga-do no aristotelismo árabe na especulação teológica islâmica do século IX danossa era, em Bagdad – é a essência de Deus, em oposição aos atributos,por cuja mediação, fala-se de Deus no Alcorão. A essência de Deus, se-gundo a doutrina mu’tazilita – teologia oficial de Bagdad na primeira meta-de do século IX – é absolutamente transcendente em oposição a essesatributos. Essa transcendência absoluta de Deus – expressa pela noçãodhat e traduzida em latim por essentia –, em oposição a todas as noçõesdescritivas (sifat, em árabe), transformou-se em S. Tomás (e, de certamaneira, já no Comentador, considerado uma autoridade por S. Tomás) emuma transcendência da coisa real com relação ao intelecto humano –transcendência que conduziu, em seguida e enfim, ao Ding an sich de Kant”.

Junte-se a estas considerações, o critério – certamente não casual -da seleção de fontes de Al-Khwarizmi. Solomon Gandz, o moderno editorde Al-Khwarizmi, considera essencial, no fundador da Álgebra, seu caráteroriental, não-grego e mesmo anti-grego. Vale a pena transcrever sua intro-dução ao capítulo “Mensuração” do Kitab:

Al-Khwarizmi, o antagonista da influência gregaNa universidade de Bagdad, fundada por Al-Ma’amun (813-33), achamada Bayt al-Hikma, onde Al-Khwarizmi trabalhou sob o patrocí-nio do Califa, floresceu também um velho colega seu, chamado Al-Hajjaj ibn Yusuf ibn Matar. Este homem era o líder da corrente a favorda recepção da ciência grega pelos árabes. Dedicou toda sua vida atraduzir para o árabe as obras gregas. Já no califato de Harun al-Rashid (786-809), Al-Hajjaj tinha traduzido Os Elementos de Euclides.Quando Al-Ma’amun tornou-se califa, Al-Hajjaj tentou obter seu fa-vor para uma segunda edição de sua tradução de Euclides. Posterior-mente (829-830), traduziu o Almagesto. Ora, Al-Khwarizmi nuncamenciona seu colega nem tampouco suas obras. Euclides e sua Geo-metria, embora disponíveis pela boa tradução do colega, são total-mente ignorados por Al-Khwarizmi, quando ele escreve sobre Geo-metria. E mais, no “Prefácio” de sua Álgebra, Al-Khwarizmi claramen-te enfatiza seu objetivo de escrever um tratado popular que, ao con-trário da matemática teórica grega, sirva a fins práticos do povo emseus negócios de heranças e legados, em seus assuntos jurídicos,comerciais, de exploração da terra e de escavação de canais. Al-

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Khwarizmi aparece não como um discípulo dos gregos, mas muitopelo contrário, como o adversário de Al-Hajjaj e da escola grega. Eleé o representante das ciências populares nativas. Na Academia deBagdad, Al-Khwarizmi representa, antes, uma reação contrária à in-trodução da matemática grega. Sua Álgebra causa uma impressão deprotesto contra a tradução de Euclides e contra toda a tendência deacolhimento das ciências gregas”33.

5. Á5. Á5. Á5. Á5. ÁRABERABERABERABERABE XXXXX G G G G GREGOREGOREGOREGOREGO: : : : : OSOSOSOSOS CONCEITOSCONCEITOSCONCEITOSCONCEITOSCONCEITOS MAMAMAMAMATEMÁTICOSTEMÁTICOSTEMÁTICOSTEMÁTICOSTEMÁTICOS DEDEDEDEDE RAZÃORAZÃORAZÃORAZÃORAZÃO EEEEE PROPORÇÃOPROPORÇÃOPROPORÇÃOPROPORÇÃOPROPORÇÃO

A geometria grega é o modelo acabado do sistema grego34, de uma “línguade visão”, em correspondência, tanto quanto possível, bijetora com o real.

Esse “tanto quanto possível” impõe seus limites: na matemática gre-ga, não encontraremos o número zero (o zero não tem correspondente-logos com o real) e é conhecido o escândalo histórico produzido pela des-coberta da incomensurabilidade de grandezas (o número irracional – paraos gregos a-logos! –, entra em contradição com o próprio sistema de pen-samento grego). E, de um modo positivo, Euclides35 afirma que o um é arealidade e a unidade é aquilo pelo que cada uma das coisas que são échamada de um!

Já o árabe é diferente. Seu sistema língua/pensamento não é logos,mas ma’na: prevalece não a pretensão de a linguagem acompanhar paripassu o ente, mas o sentido mental (intentio, ma’na), independentementeda correspondência-logos com o real. Daí que a ciência árabe, por exce-lência, seja a Álgebra (com zero e números negativos). E o irracional, naincomensurabilidade geométrica, é aceito com total naturalidade pelo árabe.

Descreveremos neste tópico, sucintamente, a superação do sistemalogos no caso paradigmático da conceituação matemática de razão e pro-

33 Cit. por WAERDEN, B. L. op. cit., pp. 14-15.34 Já a geometria contemporânea, ligada à moderna concepção de sistemas axiomáticos,

aproximar-se-ia de uma outra forma de pensamento (derivada do sistema logos, mas jáindependente) – também discutida por Lohmann no artigo citado –, paradigmatizado peloinglês falado nos dias de hoje.

3 5 Livro VII, definição 1. Citaremos pela edição de HEATH, Thomas L. The Thirteen booksof Euclid’s Elements, translated from the text of Heiberg with Intr. and Comm. New York,Dover, 2nd. ed., s.d., vol. I-III.

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porção36 Essa superação tem um importante marco inicial no matemático epoeta Omar Khayyam37, que abre caminho para os números irracionais.

Para analisar os conceitos de razão e proporção nos Elementos, co-mecemos pela observação de Heath: “É digno de nota, o fato de que a teoriadas proporções recebe duplo tratamento em Euclides: refere-se a grandezasem geral, no livro V, e só ao caso particular de números, no livro VII”38.

Para Heath, Euclides teria seguido a tradição: reproduzindo a antigateoria de proporções (anterior à crise dos incomensuráveis) e também anova, atribuída a Eudoxo (a do livro V). Esta definição (V, def. 5) reza:“Diz-se que magnitudes estão na mesma razão – a primeira para a segundae a terceira para a quarta – quando: para quaisquer equimúltiplos que sejamtomados da primeira e da terceira comparados a quaisquer equimúltiplosque sejam tomados da segunda e da quarta, os primeiros equimúltiplos coin-cidem em superar (igualar ou inferar) os segundos equimúltiplos respectiva-mente tomados na ordem correspondente”.

Vuillemin observa que esta teoria permite eludir o problema dos irra-cionais39. Subtrai-se o conceito de razão ao âmbito da medida (e evita,portanto, o escândalo dos incomensuráveis). E é precisamente essa defini-ção de razão que será objeto de crítica por parte de Omar Khayyam: paraele, Euclides não teria atinado com o verdadeiro significado de razão, quese encontra no processo de medida de uma grandeza por outra40.

36 Para um estudo da recepção do conceito euclidiano de razão entre os árabes, veja-sePLOOIJ, E. B. Al-Djajjâni – Commentary on Ratio in Euclid’s conception of Ratio ascriticized by arabian commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950.

37 Omar Khayyam está tão distante do ideal grego de homologação do real e tão imerso nosamthal do sistema ma’na, que numa das Rubayyat – a de número XCIV (cito pela ediçãoLes Quatrains d’Omar Khayyam, trad. intr. et notes de Charles Grolleau, Paris, ChampLibre, 1980) – chega a escrever: “Para falar claramente e sem parábolas: / Nós somos aspeças do jogo, jogado pelo Céu / Que brinca conosco no tabuleiro da existência / E depoisvoltamos, um a um, para a caixa do Nada”.

38 Op. cit. v. II, p. 113.39 VUILLEMIN, Jules. De la Logique a la Théologie, Paris, Flammarion, 1967, pp. 12 e ss.40 Como observa Dirk J. Struik em “Omar Khayyam Mathematician” The Mathematicas

Teacher, April 1958: “Omar is here on the road to the extension of the number conceptwhich leads to the notion of the real number”.

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Assim, Omar Khayyam define A:B = C:D

Todos os múltiplos da primeira são retirados da segunda, até que setenha um resto menor do que a primeira e, igualmente, todos os múl-tiplos da terceira são retirados da quarta, até que se tenha um restomenor do que a terceira. E o número de múltiplos da primeira nasegunda é igual ao número de múltiplos da terceira na quarta. E mais:extraímos da primeira, todos os múltiplos do resto da segunda, atéobter um novo resto menor que o resto da segunda e igualmente,extraímos da terceira, todos os múltiplos do resto da quarta, até obterum novo resto menor que o resto da quarta. E o número de múltiplosdo resto da segunda é igual ao número de múltiplos do resto daquarta. Etc. E, assim, ad infinitum. Então, a razão entre a primeira e asegunda é necessariamente a que se dá entre a terceira e a quarta.Esta é que é a verdadeira proporcionalidade a modo geométrico.41

Este processo – já mencionado por Aristóteles – é o que os gregoschamam de antanairesis ou antiphayresis. A quantidade menor, digamosB, é subtraída de A, com resto R1. E assim, R1 = A - q1B. A seguir, R1 ésubtraído – tanto quanto possível – de B:

R2 = B - q2R1, e assim por diante...

Após afirmar a excelência da antiphayresis, Omar Khayyam levan-ta a questão decisiva para o estabelecimento dos números irracionais: se arazão deve ser entendida como um tipo de número.

Desprendidos do compromisso grego de correspondência pensamen-to/realidade, autores árabes como Nasir ad-Din at-Tusi não verão inconve-niente em considerar todas as razões (e os limites das antiphayresis) comonúmeros.

Um tal acolhimento só é possível no sistema ma’na...

41 Cit. por WAERDEN, B. L. van der. A History of Algebra – From al-Khwarizmi to EmmiNoether, New York, Springer Verlag, 1985, p. 30.

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O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITOBÍBLICO

Ruth Leftel

Um mito é uma estória sobre o universo, que é considerada sagrada.Osgregos denominavam mitos as estórias sobre os feitos dos deuses na anti-güidade. (gr.mythos: “a coisa falada”, “palavra”, “narrativa”). Estórias as-sim são encontradas, não apenas na literatura grega antiga, mas também naliteratura de outros povos da antigüidade, como os do Oriente Antigo e tam-bém na tradição de povos primitivos da nossa época. Podemos, então, dizerque os mitos são um fenômeno humano geral.

Estas estórias formam a base sacra da continuidade de instituições,costumes e cultos antigos e da sobrevivência de crenças antigas, ou daaprovação e ratificação de modificações nas mesmas. Tais estórias lidamcom um número de temas reduzido, como: a origem dos deuses (ou seunascimento), seus amores e acasalamentos, suas guerras, seus atos deheroísmo e suas criações1

Os mitos podem ser classificados, de acordo com o tema narrado,como: cosmogônico, quando relata como foi criado o mundo; teogônico,quando narra a origem de alguma divindade; antropogônico, quando relataa origem do homem e escatológico, quando conta sobre o fim do mundo, ouainda mitos sobre o paraíso, sobre o dilúvio, sobre heróis etc... Os feitos dosdeuses narrados nos mitos são, via de regra, semelhantes aos feitos doshomens.

As aventuras dos deuses e os outros assuntos relatados nos mitos,ocorrem sempre na “antigüidade”2, num passado remoto e obscuro; época1 O mito é geralmente recitado, durante uma representação dramática do evento que ele

narra. Ex: “Enuma EliŠ”, o mito acádico da criação do mundo, era recitado no festivalbabilônico do Ano Novo, quando tinham que agradar ao seu deus principal Marduk, recor-dando como este criou o universo e o homem. Por intermédio do ritual, o homem torna-se contemporâneo do evento mítico e participa dos atos de criação dos deuses.

2 Na antigüidade dos que narram o mito. Esta está confusa e mais ainda o que ocorre antes deadorarem o deus principal da época do relato do mito. Ex: os mitos do Oriente Antigocontam que em épocas antigas, antes de dominar o deus que domina em seus dias, havia duasou três gerações de deuses antigos que dominavam uns após outros. Não há explicação dequantos estes eram, quando dominaram e como eram. Justamente estas estórias que tratamdo tema principal dos mitos (a descoberta da origem dos deuses), são características dosmitos e estão nas bases de religiões e culturas.

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LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.

na qual o mundo foi tomando a forma atual. Em outras palavras, o mitonarra sobre a origem das coisas que preenchem o espaço do mundo.

Os deuses estão envoltos numa bruma de medo e afastados da vidadiária do homem que acredita em sua existência. Por intermédio de suaestória concreta, o narrador do mito penetra pela bruma de medo e revelaum pouco da “verdade”; isto é, expressa sua fé sua visão e a da sociedade,no meio da qual vive.3

Poderíamos dizer que o mito está no lugar da teologia e da ciênciaracional atual. Não tem, é claro, a precisão destas, mas é “superior” emrelação a elas, em sua força de criar símbolos que podem ser compreendi-dos de várias formas.

Os estudiosos do Velho Testamento começaram a usar o termo mitono final do século XVIII, quando surgiram dúvidas quanto à veracidadeliteral de algumas das estórias da Bíblia e principalmente, na época, quantoà questão da estória da criação do mundo e da estória do paraíso. Os pes-quisadores de então alegaram que as estórias da Bíblia, expressam umaverdade filosófica que vestiu roupagens míticas (como a estória do paraíso),ou são estórias baseadas num núcleo de verdade histórica, envolto em rou-pagens míticas (como as estórias sobre os patriarcas).

O mito é, na opinião dos pesquisadores do final do século XVIII, amaneira de pensar da humanidade na época de sua “infância” e as narrati-vas bíblicas utilizam-se dessa forma de expressão, por não ter o narradorbíblico meios de expressar a verdade de outra forma.

A pesquisa bíblica da metade do século XIX em diante não estudamais a questão da veracidade literal dessas estórias bíblicas e a discussãosobre o mito dá-se em outras linhas:

a) corrente que opina que não existe mito na Bíblia. No seu modo dever, não há como separar mito de politeísmo (a divinização das forças danatureza e a crença de que o homem pode “forçar” a vontade divina), pois

3 Os pesquisadores modernos acreditam que nenhuma destas estórias pode ser o produto damemória humana, nem (em nenhum sentido moderno da palavra) relatos científicos sobrea origem e a constituição do mundo físico. O homem do Oriente Antigo no segundo milênioa.C (quando boa parte dos mitos é elaborada), apesar de seus indubitáveis dons intelectuaise espirituais, não fundamentava seus pontos de vista sobre o universo e suas leis, no usocrítico de informações empíricas. Ele ainda não havia descoberto os princípios e os méto-dos da pesquisa disciplinada, da observação crítica ou da experimentação analítica. “Seupensamento provavelmente era imaginativo e a expressão de suas idéias era concreta,pictórica, emocional e poética”. Em Sarna, Nahum: understanding gênesis. The Heritage ofBiblical Israel; 1966; First Schocken paperback edition; U.S.A; pág.3.

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o politeísmo é do pensamento mítico que é completamente diferente dopensamento bíblico. Por isso, acreditam que, se temos, no Velho Testamen-to, semelhanças ou resquícios de estórias, cuja origem provém do mito, elasnão têm mais nenhum significado mítico, pois a Bíblia anulou este significa-do, quando aboliu o pensamento mítico.4

b) esta escola alega que se o mito é um pensamento simbólico, pode-se concluir que a contradição entre o politeísmo e o monoteísmo não atingeo fenômeno do mito em si e grande parte da Bíblia pode ser denominadamito.5 Esta escola opina que, certamente, não há muita semelhança entre omodo de pensar dos homens do período bíblico e o modo de pensar daciência moderna.

Para distinguir entre o mito politeísta e o mito bíblico, denominam omito bíblico de “mito da história” ou “mito monoteísta”, ou seja, acreditamque na Bíblia encontramos, pela primeira vez, o mito ligado a uma crençaque não se fundamenta mais nas estórias dos feitos dos deuses e sim nacompreensão de Deus, a partir da Sua revelação e ações na história e nanatureza6.

Os relatos bíblicos que têm os mais surpreendentes paralelos com osmitos do Oriente antigo são os da criação do mundo e do dilúvio. Antes detraçarmos estes paralelos, devemos levar em consideração (quanto ao rela-to da criação) a ordem da criação nos capítulos 1 e 2 de Gênesis que sãoaparentemente semelhantes, mas provêm de regiões e períodos diferentes,como veremos adiante.

Em gênesis 1 e 2:3, quando Deus vai criar o céu e a terra, não hánada além do caos e do vazio. A face do abismo, sobre a qual pairava seuespírito, estava envolta em escuridão. Por isso, no primeiro dia da criação,Deus ordenou: “haja luz” e houve luz. No segundo dia, fez o firmamento,para separar entre as águas de cima (do firmamento) e as águas de baixo eo chamou de céu 7. No terceiro dia, juntou num mesmo lugar as águas debaixo e possibilitou o aparecimento da terra e depois de denominar a parteseca de terra 8 e a reunião das águas de mar, ordenou à terra para fazerbrotar ervas e árvores. No quarto dia, criou o sol, a lua e as estrelas. No

4 Representantes desta corrente são Y.Koifmann e H.Frankfort.5 O principal representante desta corrente é Martin Buber.6 O Deus bíblico não tem mito, isto é, não há estórias sobre eventos de Sua vida.7 Em todo o Oriente Antigo, acreditava-se que havia uma abóbada celeste que “segurava” as

águas de cima, para não inundarem a terra.8 Em Hebraico: YabaŠa = continente, provem do radical ybŠ=seco.

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LEFTEL, Ruth. O MITO DO ORIENTE ANTIGO – O MITO BÍBLICO.

quinto dia, criou os animais da água, os peixes e as aves. No sexto dia, criouos animais da terra, os répteis e o homem e no sétimo dia, satisfeito com suaobra, parou e descansou.

Já segundo Gênesis 2:4 - 23, após criar o céu e a terra, Deus fez comque um vapor umedecesse a terra seca, para que pudessem brotar ervas epastos; Em seguida, plantou um jardim em Éden e ali colocou um homemchamado Adão e fez crescer do solo, árvores; depois criou todos os ani-mais, as aves e os répteis e por fim, a mulher.

Durante muitos séculos, teólogos judeus e cristãos acreditaram queestes relatos sobre a origem do mundo em Gênesis não somente foraminspirados por Deus, mas também que nada tinham de outras escrituras 9.Esta opinião foi abandonada por todos, menos pelos fundamentalistas.

Desde 1876 foram descobertas em escavações e publicadas algu-mas versões da epopéia acádica (dos assírios e dos Babilônios) da cria-ção. Hoje supõe-se que a mais longa delas, denominada “Enuma EliŠ” 10,foi composta na primeira metade do segundo milênio a.C.11.

Esta epopéia sobreviveu quase intacta em sete tabuinhas cuneiformesque contêm 156 linhas aproximadamente, por tabuinha. Ela começa relatan-do12 que “quando nas alturas, antes de o céu ter recebido seu nome”, Apsu,o procriador, e a mãe Tiamat, misturaram-se caoticamente e produzirammuitos monstros parecidos com dragões. Muito tempo passou, e surgiu umanova geração mais jovem de deuses. Estes eram muito barulhentos e raivo-sos, Apsu e Tiamat planejaram matá-los. O plano perverso foi impedido porum destes deuses, o sábio Ea, deus da terra e da água que desafiou e matouApsu. Tiamat casou-se imediatamente com seu próprio filho Kingu, deu àluz monstros e criou-os e preparou-se para vingar-se de Ea. Os aliados deEa pediram a seu filho Marduk para liderá-los na batalha. Este aceitou,estipulando sua soberania sobre o universo após vencê-la .

Após uma batalha feroz, Marduk capturou Tiamat em sua rede, ar-rancou-lhe as entranhas, rompeu sua cabeça e cravou seu corpo de flechas.Então partiu Tiamat ao meio, como se fosse um marisco e utilizou umametade para criar o firmamento, para impedir que as águas de cima inun-dassem a terra e a outra metade serviu-lhe de base para a terra e o mar.

9 Escritos sagrados de outros povos.10 Enuma EliŠ: em acádico = quando nas alturas; são as duas primeiras palavras com as quais

começa a epopéia .11 Esta cosmologia é a mais importante para o tema que estamos abordando, pois foi preser-

vada quase intacta e pertence ao mesmo Oriente Antigo, do qual Israel fazia parte.12 Resumimos a epopéia, pois ela é muito longa.

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Assim começa a obra da criação, fixando Marduk os luzeiros do céu,cada um em seu lugar. Esta atividade está descrita na quinta tabuinha que,infelizmente, está fragmentada, mas do que segue, parece que os deusesreclamam que agora que cada um tem seu lugar e sua função no universo,passariam a ter um trabalho interminável. Então, Marduk decide criar ohomem para liberar os deuses do trabalho servil e isto ele faz, moldando umser humano do sangue de Kingu, o qual havia condenado à morte, comoinstigador da rebelião de Tiamat.

A epopéia termina com uma descrição de um grande banquete, ofe-recido pelos deuses a Marduk, no qual eles recitam um hino de louvor aomesmo que confirma seu domínio para toda a eternidade.

Este mito era solenemente recitado e dramaticamente apresentado,durante as festividades que comemoravam o Ano Novo na primavera, oponto máximo do calendário religioso babilônico. Era certamente o mito quesustentava a civilização babilônica e reforçava suas normas sociais e suaestrutura organizacional.

Vejamos agora, porque temos dois relatos sobre a criação em Gênesise o que estes têm em comum com o mito da criação dos babilônios.

O primeiro relato da criação em Gênesis 1 e 2:3, foi composto emJerusalém, provavelmente pouco após o regresso do exílio da Babilônia13.Nele, Deus é denominado “Elohim”.

O segundo relato, em Gênesis 2:4-22, também foi composto no Rei-nado de Judá e é possível que sua origem seja edomita e anterior ao exílio(como ficará mais claro adiante). Neste, Deus é denominado “YahvéhElohim”. Originalmente, Deus seria denominado neste último “Yahvéh” eteria sido acrescentado “Elohim”, para identificar o Deus de Gên.1 com oDeus de Gen. 2 e para dar às duas versões uma aparente uniformidade.Porém, o redator não conseguiu eliminar detalhes contraditórios na ordemda criação, como já descrevemos antes.

Estas contradições deixaram sempre perplexos estudiosos judeus ecristãos (antes da descoberta dos mitos acádicos da criação a partir de1876) que tentaram explicá-las de várias formas.

O plano de sete dias do primeiro relato (Gên.1), proporciona a “cartaconstitucional mítica” para a observância do sábado, pelo homem, já queDeus descansou no sétimo dia, abençoou-o e santificou-o 14. Para dar umexemplo, acrescentaríamos que alguns dos primeiros comentaristas rabínicos

13 O exílio à Babilônia e a destruição do Primeiro Templo ocorre em 586 a.C, logo a compo-sição deste primeiro capítulo de Gênesis dá-se no final do séc.VI a.C.

14 Isto aparece explicitamente numa versão dos 10 mandamentos em Êxodo 20:8-11.

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observam que os elementos principais foram criados nos primeiros três diase enfeitados nos outros três dias e que se pode discernir uma estreita sime-tria entre o primeiro e o quarto dias, o segundo e o quinto e entre o terceiroe o sexto dias:

1º dia 4º dia

criação da luz criação dos astrose sua separação da → → → → → para separar o dia da noiteescuridão e uma estação da outra.

2º dia 5º diacriação do céu criação das aves que voame separação entre as → → → → → no céu e dos peixes que nadamáguas de cima e as de nas águas de baixobaixo

3º dia 6º diacriação da terra seca criação dos animais,

→→→→→e das florestas e pastos dos répteis e do homem que

se movimentam pela terra.

Este plano e outros semelhantes demonstram o desejo dos estudiososde atribuir a Deus um pensamento sistemático na criação. Porém, estestrabalhos não seriam necessários, se lhes houvesse ocorrido que a ordem dacriação vinculava-se à ordem dos deuses planetários na semana babilônica15

e que Deus proclama, inequivocamente, a absoluta subordinação de toda acriação a Ele, que pode fazer uso das forças da natureza, para realizar suaspoderosas ações na história 16. Diferentemente de “Enuma EliŠ” na Babilônia,a criação em Gênesis é, em primeiro lugar, a recordação do evento queinicia o processo histórico e que assegura que há um propósito divino, portrás da criação que tem seus próprios planos, além da perspectiva humana.Explicando melhor, o que temos na 5ª tabuinha fragmentária de “EnumaEliŠ”, sobre os planetas na semana babilônica, podemos distinguir que Nergal,

15 Em conseqüência dos 7 planetas (divindades) da semana babilônica, temos os 7 braços daMenorá (o candelabro sagrado judaico). Tanto o profeta Zacarias, em sua visão (4:10)quanto Flávio Josefo em Guerras dos Hebreus (cap.5), fazem esta identificação do candela-bro sagrado com os 7 planetas.

16 Deus reclama todos esses poderes planetários para si mesmo.

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um deus pastoral, ocupava o terceiro dia na semana babilônica, assim comono primeiro relato da criação, em Gênesis, temos a criação dos pastos e daservas no terceiro dia; enquanto Nabu, deus dos astros, ocupava o quarto diana semana babilônica, tal como em Gênesis (1º relato), Deus criou os astrosno quarto dia.

O segundo relato da criação (Gên.2) é mais vago do que o primeiro,revela menos sobre o universo anterior à criação e sua estrutura é totalmen-te diferente de Gên.1. Na realidade, entende-se dele que a obra da criaçãofoi realizada em um dia apenas. Sua introdução recorda várias cosmogoniasdo Oriente Antigo, ao descrever o universo anterior à criação, em funçãodas diversas coisas que ainda não existiam. “Ainda não havia árvores sobrea terra, os pastos e as ervas ainda não haviam brotado, porque Deus aindanão enviara a chuva e não existia nenhum homem para lavrar a terra”(Gên.2:5) . Então, veio o grande dia no qual “Deus criou a genealogia do céue da terra: um vapor subiu da terra e regou-a”17 (Gên.2:6), podendo criar apartir dela o homem 18. Depois, plantou um jardim a leste de Éden e ordenouao homem que o cultivasse e cuidasse dele (Gên.2:6-9,15).

Gênesis 1, como descrevemos, é parecido com as cosmogoniasbabilônicas que começam com o aparecimento da terra a partir de um caosaquoso primitivo e todas são metafóricas sobre como a terra seca emergeanualmente das inundações invernais do Tigre e do Eufrates. Desta forma,a criação é representada, como a primeira aparição do mundo, após o caosaquoso primitivo: uma estação primaveral, na qual (após as inundações)acasalam-se as aves e os animais e brotam os pastos.

Gênesis 2 já reflete condições geográficas e climáticas encontradasem Canaã (O Reino de Judá). O universo anterior à criação está abrasadopelo sol; está seco e árido como no final de um verão prolongado. Quandofinalmente, aproxima-se o Outono, aparece o primeiro sinal da chuva: umvapor matutino, branco e denso que sobe dos vales 19. A criação, tal como édescrita em Gên.2, teve lugar, segundo a visão da época, num dia de Outonoassim.

A versão babilônica (Gên.1) que estabeleceu a primavera como aestação da criação, foi adotada no exílio da Babilônia e o primeiro dia domês de “Nisan” 20 seria o dia da comemoração do Ano Novo Judaico.

17 do original Hebraico “ed” = vapor.18 “Adamá”: em Hebr.= terra, a partir do que foi moldado: “Adam” (em Hebr.= homem.). A

palavra Adam que significa ser humano, foi colocada como o nome do primeiro homem.19 Este vapor é o indício, na região, da proximidade das chuvas outonais. Uma vez molhada a

terra, Deus pode moldar com ela o homem, segundo o cap.2.20 Provém do acádico “Nisan” = botão (de flor).

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Porém, a versão Outonal (de Canaã) exigia que o primeiro dia do mês de“TiŠrei” 21 fosse observado como o dia do Ano Novo e este prevaleceu.

A versão bíblica da criação deve muito às cosmogonias do OrienteAntigo, mas, simultaneamente, estes assuntos usados foram transformados,para serem o veículo de transmissão de idéias completamente novas.

Para respaldar o que afirmamos, gostaríamos de analisar adiante omito acádico do “Dilúvio” 22 e compará-lo ao seu análogo no relato bíblico,pois é a estória em Gênesis que tem o mais óbvio paralelo mesopotâmico eé a que revela o caráter do Deus de Israel e suas exigências éticas paracom o homem, diferenciando o relato significativamente (mesmo que quase“apenas” neste sentido) dos seus análogos mesopotâmicos, o que procura-remos fazer em breve oportunidade.

21 Provém do radical acádico “Seru” = começo (começar)22 O mito acádico do dilúvio encontra-se na epopéia de “GilgameŠ” que é a mais detalhada e

mais completa de todas as estórias sobre o dilúvio da Mesopotâmia.

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A LITERAA LITERAA LITERAA LITERAA LITERATURA QUE STÁLIN PROIBIUTURA QUE STÁLIN PROIBIUTURA QUE STÁLIN PROIBIUTURA QUE STÁLIN PROIBIUTURA QUE STÁLIN PROIBIU

Homero Freitas de Andrade

Eram os tempos da NEP1. Exaurida ao fim da guerra civil que seabatera sobre todo o território russo durante os últimos três anos (1918-1921), minguando ainda mais as já historicamente precárias condições desobrevivência do povo, agravadas também pelo comunismo de guerra insti-tuído logo depois de Outubro, a Rússia encontrava-se num beco sem saída.Nas grandes cidades, alimento e moradia eram os problemas cruciais. Afome consumia a jovem República. Em agosto, por não ter como seguir areceita do médico, que lhe tinha recomendado uma dieta à base de açúcar,milho, leite e limão, o poeta A.Blok morrera de inanição em Petrogrado.Quase um ano depois, seria a vez de Velimír Khlébnikov, o grande inspiradordo cubo-futurismo, partir desta, faminto e doente em Moscou. Como eles,milhares de pessoas.

A miséria generalizada, no entanto, era solo propício para apressar atransformação da sociedade. Concentrando esforços na tentativa de recu-perar as fontes econômicas do País e captar recursos externos para acele-rar o processo de industrialização e implementar as reformas básicas de-fendidas pelo Partido, Lênin acabara de proclamar, contra a vontade doscamaradas mais ortodoxos, uma espécie de retorno à economia capitalistaque, se não serviria para tirar a Rússia do atoleiro em que se achava, contri-buiu de modo positivo para o desafogo das tensões populares na medida emque criava a ilusão de um renascimento sócio-econômico cultural e dorestabelecimento da normalidade do cotidiano.

Como se apresentava o panorama da recém-nascida literatura russo-soviética à essa época? Já em l9l8, começara a faltar papel para impressão,as editoras particulares tinham sido proibidas de funcionar e as estatais,recém-fundadas, publicavam sobretudo obras de instrução básica e propa-ganda. Durante a guerra civil, privada de seus meios de difusão convencio-nais, a literatura chegou a ser divulgada em manuscritos. Remanescentesdo cubo-futurismo, liderados por Maiakóvski, adaptavam os programas daescola às palavras de ordem do Partido e preconizavam uma arte dirigida àmassa, funcional e utilitária, destituída do ranço estético dos padrões consa-grados em prosa e verso pela tradição positivista do século XIX, que fosse

1 Sigla soviética de Nova Política Econômica (Yjdfz "rjyjvbxtcrfz Gjkbnbrf).

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capaz de erigir-se num dos pilares da construção da nova cultura. Repre-sentantes do imagismo, do biocosmismo e de outros temporões do futuris-mo engalfinhavam-se em público entre si, e com os poetas da Proletkult 2 ,que os acusavam de praticar uma arte decadente e burguesa, ao mesmotempo em que reivindicavam o posto de legítimos representantes da verda-deira arte proletária.

Por toda parte haviam surgido “cafés poéticos” onde os artistas dapalavra apresentavam-se em recitais. Papel semelhante era desempenhadopor diversas entidades públicas, como a própria Proletkult, os sovietes mu-nicipais, as seções de literatura do Comissariado do Povo para a Instrução,a Casa do Jornalista, o Palácio de Belas Artes, a União dos Escritores einúmeras associações ditas de escritores proletários, que promoviam deba-tes, leituras e tertúlias, cujo tema era a literatura contemporânea e seusrumos e funções na nova ordem. Sobre o tablado os escritores transforma-vam-se em atores-leitores de suas obras enquanto que, afastados das pági-nas dos livros, os leitores tornavam-se espectadores-ouvintes: a literaturaescrita, para sobreviver, recorria agora à transmissão oral.

Por outro lado, a intelligentsia3, que se mantivera fiel às própriastradições humanísticas e liberais herdadas do século XIX e por isso mesmoaclamara em sua maioria a insurreição popular e o fim do absolutismo em1905, cindira-se depois de Outubro. Tsvetáieva, Guíppius, V.Ivánov, Búnin,Kuprín, A.Tolstói e outros autores emigraram, formando nichos de literaturarussa em Paris, Berlim, Xangai, e reduzindo drasticamente os quadros deescritores que já publicavam antes da Revolução e que tinham permaneci-do na terra natal. No capítulo de sua Storia della Letteratura RussaContemporanea, em que estuda as origens da literatura russo-soviética,Ettore Lo Gatto ressalta que “embora tivessem restado outros escritores damesma geração ou da mais jovem, porém ativa antes da Revolução, comoBlok, Gumilióv, Akhmátova, Mandelstam e Pasternak entre os poetas,Veressáiev, Serguéiev-Tsénski e outros dentre os prosadores, que tudo le-vava a crer fossem continuar a tradição a que pertenciam, os velhos qua-

2 Abreviatura soviética de Cultura Proletária (Ghjktnfhcrfz Rekmnehf), organização funda-da pelo revolucionário marxista A.A.Bogdánov e pelos críticos A.Lunatchárski eV.L.Poliánski, antes ainda da Revolução de 1917. Agrupava escritores e artistas ditosproletários e promovia espetáculos, debates, além de editar um grande número de jornais erevistas. Tinha como proposta dirigir o front cultural revolucionário, pretensão estacondenada por Lênin. Opunha-se às vanguardas literárias e artísticas russas e perdurou até1932.

3 A palavra era empregada na Rússia do século XIX para designar a elite intelectual deoposição ao tzarismo.

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dros literários pareciam como que esvaziados tanto de nomes como de sig-nificado, sobretudo os poéticos, que se tornaram ainda mais vazios em 1921com a morte de Blok, o fuzilamento de Gumilióv e a evidente não-corres-pondência de uma Akhmátova, de um Mandelstam e de um Pasternak àsexigências da nova atmosfera”4.

Em linhas gerais, a literatura que se produziu desde a Revolução deOutubro até o início da década de vinte caracteriza-se antes de tudo porexaltar os fatos de 1917 e seus desdobramentos. A literatura inspirava-sediretamente na história contemporânea, mas apresentava desta uma visãoum tanto idealizada. Escritores e críticos da época identificaram aí umaespécie de romantismo revolucionário, distante daquele realismo crítico quese tornara modelar na tradição literária russa e difícil de ser classificadodada a diversidade de suas nuances. Grosso modo, a realidade revolucio-nária passou a ser retratada de modo realista em literatura quando os escri-tores, servindo-se de procedimentos comuns ao jornalismo e à publicística,começaram a produzir obras que, embora ainda conferissem contornos ide-alizados ao novo homem em formação, tinham como fundo, ou mesmo comotema central, os acontecimentos relativos à guerra civil. Falava-se de umaliteratura do fato real (literatura fakta) que, se não chegou a constituir umaescola literária devidamente programada, imprimiu fortes marcas na produ-ção de vários escritores a partir de então.

Sobreviver da própria produção literária, nessa época, estava fora decogitação. Todos precisavam trabalhar, colaborar para a reestruturaçãosocial e econômica do País, muitas vezes em atividades não diretamenteligadas ao métier. Os escritores do proletariado, os simpatizantes, os “bran-cos” enrustidos, todos, além dos contos, novelas, crônicas, artigos e repor-tagens que publicavam nos inúmeros periódicos que começaram a circular,também desempenhavam funções meramente burocráticas nos vários de-partamentos dos Comissariado do Povo para a Instrução5.

No início de abril de 1922, os principais órgãos da imprensa diária doPaís investiam contra a visão apocalíptica em relação aos acontecimentossócio-econômicos e culturais da Rússia no momento e previam o cresci-mento da economia e a consequente melhoria dos padrões de vida da popu-

4 Op.cit., p.357 (traduzido do original em italiano).5 No artigo “Eu temo” (^Z ,j.cm^), Zamiátin ironizava:”Em nossos dias, Gógol correria ao

departamento de teatro com uma pasta; na Vsemírnaia Literatura (Literatura Mundial),Turguéniev, sem dúvida, traduziria Balzac e Flaubert; Herzen faria conferências na frota doBáltico; Tchékhov trabalharia no Comissariado do Povo para a Saúde. Do contrário, paraviver... Gógol seria obrigado a escrever mensalmente uns quatro O inspetor geral, Turguénievuns três Pais e filhos a cada dois meses, Tchékhov uma centena de contos por mês.”

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lação através da implantação definitiva do programa da NEP, referendadono XI Congresso do Partido, em 27 de março do mesmo ano. Na imprensa“nanica” pululavam feuilletons e artigos a respeito do tema. A maioriasaudando o advento da política salvadora da pátria. Algumas vozes desto-antes e pessimistas ficavam por conta de membros mais ortodoxos do Par-tido, que não viam nas medidas grande eficácia senão o perigo de novasinsurreições de caráter contra-revolucionário, além de um desvio de rumoda Revolução. Os escritores da Proletkult polemizavam, proclamavam aabolição total dos valores do passado “capitalista” – o que para eles signifi-cava a abolição de todo o passado.

Por outro lado, a vida e as experiências pessoais adquiridas duranteos anos da Revolução e da guerra civil tinham ensinado aos escritores for-mados nos ideais da intelligentsia do século XIX que não havia comotranspor esse abismo que se criava entre presente e passado. O importanteera não permitir, nessa ânsia avassaladora de destruição de todas as liga-ções com o passado, que o presente fosse tragado pelo abismo e o homemrusso perdesse sua verdadeira identidade cultural, transformando-se pura esimplesmente num clone da espécie homo sovieticus. Daí o intenso con-fronto em suas obras entre o velho e o novo, o russo e o soviético. Daítambém a explicitação de que não se mudam usos e costumes por decreto,nem se abate a tiros de fuzil a diversidade de pensamentos, sem que issoimplique a possibilidade de um processo que leve à mediocrização do indiví-duo e ao depauperamento das forças intelectuais do povo.

Através da leitura dos grandes mestres da literatura do século XIX,pertencentes à intelligentsia russa, esses escritores puderam assimilar oaxioma da indivisibilidade do ser humano em público e privado. Apreende-ram decerto que todos os escritores “estavam num palco como testemu-nhas, de modo que o menor lapso de sua parte, uma mentira, um engano, umato de auto-indulgência, a falta de zelo pela verdade, constituía um crimehediondo”; e que “falar em público, seja como poeta, romancista, historiadorou em qualquer outra condição pública, implicaria aceitar plena responsabi-lidade pela condução e liderança do povo. Se era esta a vocação, a pessoaestaria obrigada por um juramento hipocrático a dizer a verdade e jamaistraí-la, dedicando-se desprendidamente a seu objetivo”6.

A literatura agora tornava-se um negócio cada vez mais difícil para oescritor que pretendesse sobreviver isoladamente, livre do domínio dascorporações de artistas proletários. Por outro lado, aumentava a ingerênciado Partido na literatura e nas artes em geral. Em Literatura e revolução

6 Isaiah Berlin, Pensadores russos, cit., p.138.

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(1923), Trótski falava sobre o novo papel social do escritor nesse “períodode reconstrução”. Distinguia a importância dos escritores engajados no pro-cesso revolucionário para a educação das massas e ressaltava o trabalhodos artistas aos quais denominava popúttchiki (companheiros de jornada),isto é, aqueles que em suas obras demonstravam simpatia pelas questões doproletariado e certa proximidade ideológica com a Revolução de Outubro.

“A designação, – anota Boris Schnaiderman em seu A poética deMaiakóvski 7 – foi aplicada ora a um, ora a outro grupo. Consideravam-sepopúttchiki sobretudo os “Irmãos de Serapião” (nome tirado de uma obrade E.T.A. Hoffmann), que desejavam uma arte desvinculada das exigênci-as ideológicas, e que foram depois atacados como inimigos em potencial; oagrupamento Perevál (Desfiladeiro, Passagem), que afirmava a sincerida-de e o intuitivismo da criação literária autêntica; e alguns escritores que nãopertenciam a qualquer dos agrupamentos existentes.”

Embora desde o início os grupos que se consideravam a vanguarda doproletariado acusassem os popúttchiki de serem nacionalistas no plano políti-co, burgueses no social e espiritualmente místicos, além de notórios inimigos daclasse e da causa operária, a noção de “companheiro de jornada” iria ampliar-se de tal modo que, com o passar do tempo, todo e qualquer escritor, acusado eacusador, cabia em seus limites. Desde um Maiakóvski até um Bulgákov8.

Por volta de 1924, as garras da censura passaram a cravar-se indis-tintamente no arco-íris das ideologias, tentando uniformizar e orientar a pro-dução de literatura. Stálin firmava-se no poder e o próprio Trótski, defensordos escritores popúttchiki, já começara a cair em desgraça. Acelerava-seo processo rumo à unidade ideológica no discurso literário. Boatos insisten-tes sobre a detenção para averiguações de escritores e intelectuais volta-vam a circular em Moscou. Delações, perseguições. O controle burocráticoe policial sobre o cotidiano dificultava a vida dos artistas ainda renitentes,forçando-os a ingressar nas fileiras do exército das artes do proletariado. O“branco” arrependido A.Tolstói, ou nas palavras do escritor e dramaturgoMikhail Bulgákov, “o bufão porco e imoral”9, declarava para quem quisesseouvir que não era mais Alekséi Tolstói, mas o correspondente operário PotápMiérdov. O “vermelho” convicto D.Biédni reforçava sua origem humilde eproletária diante de uma platéia de soldados entusiasmados: “Minha mãeera uma puta...”10

7 Op.cit., p.210.8 Cf. Lo Gatto, “Il problema del ‘compagno di strada’”, in Storia della letteratura russa

contemporanea, op.cit., p.409 e seguintes.9 Anotação de 23/XII/1924, Diari inediti, op.cit., p.46.

10 Id.ib. anterior.

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Essa ambiência e as polêmicas que suscitava nos meios literárioseram registradas por Bulgákov em 26 de dezembro: “Acabei de voltar deum sarau na casa de Angárski, o diretor de Niédra. As mesmas coisas quesão ditas por toda parte. Falatórios sobre a censura, ataques contra ela,`discursos sobre a verdade do escritor’ e ̀ a mentira’. Estavam lá Veressáiev,K..., Nikándrov, Záitsev (P.N.), Liachkó e Lvóv-Rogatchévski. Não pudedeixar de intrometer-me algumas vezes com observações sobre como setornou difícil trabalhar agora, com ataques à censura e outras coisas queseria melhor evitar.

“Liachkó, escritor proletário, que nutre uma profunda antipatia (o ins-tinto) por minha pessoa, replicou-me com uma irritação indisfarçável:

“– Não entendo de que ̀ verdade’ está falando o továrisch Bulgákov.Afinal (...) por que deveria ser necessário exprimir tudo? Temos que ser`seletivos’, etc.

“Quando afirmei que a época atual é uma época de velhacos, retru-cou-me com ódio:

“– O senhor está falando bobagem...“Não consegui dar uma resposta a essa frase familiar porque na hora

levantamos da mesa. Não se escapa desses grosseirões.”11

Nesses primeiros anos pós-revolucionários, a sátira, que Górki de-fendera como um gênero necessário para o aprimoramento da literaturanascente, fora a arma literária utilizada por Bulgákov contra a confusão doperíodo da NEP, contra o burocratismo que comandava o novo estilo devida. Os fatos do cotidiano eram o material por excelência para sua práticapublicística e ficcional. Não se limitava a descrever as situações geradas apartir de um determinado fato, mas procurava expressar em seus textos asensação do homem comum ante o acontecido, reconstruir a ambiência domomento histórico, recriando a linguagem das ruas, os modismos e os novosícones da cultura soviética. Ridicularizou o discurso oficial e sua reproduçãoautomática na fala do homo sovieticus. Manifestou suas próprias impres-sões, vestindo a persona do narrador. Com a mesma virulência do comu-nista Maiakóvski, mas como um sofredor saudosista da intelligentsia, quesente na pele as novas contradições desse período nebuloso da história daURSS, combateu com humor ferino a mentalidade pequeno-burguesa re-nascente, a barbarização dos costumes, o banditismo, a trapaça, a especula-ção dos novos empresários e comerciantes, desnudando em seus escritosos contrastes entre a aparência e a essência do fenômeno NEP. E as máslínguas da crítica oficial não lhe davam sossego, como também não davam

11 Anotação de 26/XII/1924, Diari inediti, op.cit., p.47.

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aos demais popúttchiki que não se apressavam em seguir as diretrizestraçadas pelo Partido.

Uma resolução do Comitê Central do Partido, exarada na I Confe-rência Panunionista dos Escritores Proletários em 1925, conclamava à lutacontra todas as manifestações de ideologias burguesas em literatura. A re-solução não coibia a atividade dos popúttchiki, decerto porque isso impli-cava um empobrecimento das qualidades artísticas da literatura em forma-ção. Mas a recém-nascida RAPP (Rússkaia Associátsia ProletárskikhPissátelei – Associação Russa dos Escritores Proletários), que reuniasob a mesma sigla todos os agrupamentos de escritores do proletariadoantes dispersos, viu na medida a possibilidade de aumentar a pressão sobreaqueles que não pertenciam a seus quadros. Para eles criou-se o rótulopersecutório de escritor neo-burguês. Sob ataque cerrado, popúttchiki eindependentes, de vanguarda ou não, começavam a perder seus espaços.Uns aderiam, outros silenciavam ou eram silenciados aos poucos. A censu-ra contribuía para aparar as diferenças e promover a “seleção natural” dosescritores.

Depois da expulsão de Trótski das fileiras do Partido em 1927, daentrada em vigor do I Plano Quinquenal que pôs fim à NEP no ano seguinte,e do início do processo de coletivização e de liquidação dos kulaki12 em1929, as campanhas deflagradas pelos escritores proletários contra ospopúttchki atingiram seu auge. A NEP havia propiciado o renascimentoda vida urbana depois das agruras da guerra civil, mas, a partir das centenasde aventureiros, especuladores, traficantes e contrabandistas, surgidos naRússia durante o período, gerara também os népmani13, que, “recobrindo-se de etiquetas soviéticas e diluindo grotescamente as teses do comunismo,contaminavam com sua mesquinhez todos os aspectos da cultura e davida”14. Colaborara ainda para a difusão dos modos vulgares e do gostoartístico equívoco e rasteiro desses novos ricos. “Nos palcos aparecerammelodramas melífluos como os velhos filmes de Bauer, comédias adocica-das que pretendiam divulgar a ideologia soviética com os ultrapassados es-quemas do teatro de boulevard.”15

Numa conferência proferida no final de 1927 em Tbilíssi, Maiakóvskijá alertara sobre os prejuízos que representavam para a sociedade de mas-sas as novas modas ditadas pela NEP. “O orador citou exemplos que quali-ficavam a nova burguesia. Uma moça que trabalhava na fábrica envene-

12 Plural de rekfrrekfrrekfrrekfrrekfr (kulák), termo pejorativo para camponês rico.13 Empresário do período da NEP.14 Angelo Maria Ripellino, Maiakóvski e o teatro de vanguarda, op.cit., p.163.15 Id.ib., pp.163-164.

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nou-se por ter perdido o único saiote de seda, sem o qual não concebia aprópria existência. O operário Bória lê livros franceses, e descontente comseu nome faz-se chamar Bob. O poeta Moltchanóv numa epístola em ver-sos anuncia à amada que quer substituí-la por outra que tem o peito duro euma bela jaqueta’. A casa editora de músicas divulga romanças como Maso coração anseia pelo partido. Tais exemplos são testemunho de que osfilisteus estão se infiltrando no ambiente literário e operário.”16 Havia por-tanto que se retomar os rumos propostos pela Revolução, etc., etc.

O cerco fora se fechando. Sitiadas, a arte apolítica – incluindo-se aíalgumas manifestações remanescentes dos movimentos de vanguarda ocorri-dos nas duas primeiras décadas do século, – a arte pseudo-comunista dos assimchamados néo-burgueses e aquela contrária aos interesses do regime começa-vam a render-se ao controle estatal sob o fogo cerrado da crítica, ou sucumbiamàs perseguições da polícia política. Por enquanto, oferecia-se a derradeira opor-tunidade às ovelhas tresmalhadas de se integrarem ao rebanho.

Já em seu número de setembro de 1929, a revista Jizn Iskússtvaestampava que “Bulgákovs e Zamiátins convivem pacificamente na Uniãodos Escritores ao lado dos verdadeiros artistas soviéticos da palavra”17.Zamiátin acabara de publicar em Paris o romance fantástico Nós, que pin-tava um quadro terrível do futuro da URSS, e vinha sofrendo obombardeamento da crítica. Em outubro, ele se desligava da União Pan-russa de Escritores através de carta publicada na Literatúrnaia Gazeta (7/10/1929), alegando que a entidade colaborava na perseguição de seus mem-bros. Em sinal de solidariedade ao amigo e de protesto contra sua própriasituação, alguns popúttchiki também pediram seu desligamento. Para es-ses escritores o gesto correspondia praticamente a uma tentativa de suicí-dio. Afastados dos quadros da literatura oficial, seriam mais rapidamenteengolidos pelo silêncio.

Para ilustrar o desespero que se abatera sobre os popúttchiki reni-tentes e para se formar uma idéia mais clara de sua situação no contexto daépoca é interessante transcrever na íntegra a carta que Bulgákov dirigiu em1930 às instâncias superiores, no caso o maioral do Partido e “paizinho” detodas as Rússias, Ióssif Vissariónovitch Stálin18:

“1. Após todas minhas obras terem sido proibidas, começaram a eco-ar vozes entre muitos cidadãos dos quais sou conhecido como escritor, queme dão sempre o mesmo conselho:

16 Id.ib., p.170. Resumo publicado originalmente no jornal Pfhz Djcnjrf (Alvorada doOriente), Tíflis (Tbilissi), 13/XII/1927.

17 Cf. M. Tchudakóva, op.cit., p.323.18 Traduzida a partir do texto publicado em KU_Ljcmt (LG-Dossiê)5, cit., p.12.

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Escrever uma ‘peça comunista’ (cito entre aspas) e, além disso, diri-gir ao Governo da URSS uma carta de arrependimento, contendo a nega-ção de opiniões precedentes manifestadas por mim nas obras literárias, eassegurando que doravante hei de trabalhar como um escritor popúttchiki,fiel à idéia do comunismo.

Objetivo: escapar à perseguição, à miséria e à morte inevitável ao final.Não dei ouvidos a esse conselho. É pouco provável que lograsse

aparecer num aspecto favorável aos olhos do Governo da URSS, tendoescrito uma carta mentirosa, o que por si representa um podão político sór-dido e, ainda por cima, ingênuo. Nem mesmo ia tentar escrever uma peçacomunista, sabendo naturalmente que não conseguiria.

Amadurecido em mim o desejo de acabar com meus tormentos de escri-tor, vejo-me obrigado a dirigir ao Governo da URSS uma carta verdadeira. “2. Após uma análise de meus álbuns de recortes, descobri que du-rante esses dez anos de produção literária foram publicadas na imprensa daURSS 301 referências à minha pessoa. Delas, 3 eram elogiosas e 298 hostise ofensivas.

As últimas 298 representam por si uma imagem especular de minhavida de escritor.

O herói de minha peça Os dias dos Turbín, Alekséi Turbín, foi cha-mado em versos na imprensa de “FILHO DE UMA CADELA”, e o autorda peça apresentado como “Possesso de uma VELHICE CANINA”. Es-creviam sobre mim como um “FAXINEIRO literário” que cata as sobras decomida depois que “uma dúzia de convidados já SE REFESTELOU”.

Escreviam assim:“MICHKA Bulgákov, meu compadre, o ESCRITOR, DESCULPE

A EXPRESSÃO, vasculha o LIXO INFECTO... Pergunto: o que significaisso, maninho, que cara amarrada é essa?...Sou pessoa delicada, agarre-o ealém disso BATA NA NUCA DELE COM UM TACHO... Nós, sem osTurbín, somos para o pequeno-burguês semelhantes a um SUTIÃ PARACACHORRO, desnecessários... Foi encontrado, O FILHO DE UMA CA-DELA, FOI ENCONTRADO TURBÍN, QUE ELE NÃO ENCONTRENEM O PÚBLICO NEM O SUCESSO...” (Jizn Iskússtva, no44, 1927).

Escreviam “Sobre Bulgákov, o qual foi e continuará sendo um RE-BENTO NÉO-BURGUÊS, que espirra sua baba venenosa, mas inócua,sobre a classe trabalhadora e seus ideais comunistas” (KomsomólskaiaPravda, l4/X/1926).

Informavam que me agrada uma “ATMOSFERA DE CASAMEN-TO CANINO em torno da esposa ruiva de um certo amigo”(A.Lunatchárski,

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Izvéstia, 8/X/1926), e que minha peça Os dias dos Turbín “FEDE”(estenograma da conferência junto ao Aguitprop, maio de 1927), etc., etc...

Apresso-me a informar que não cito absolutamente para me queixarde uma crítica ou para armar qualquer polêmica que seja. Meu objetivo émuito mais sério.

Eu provo com os documentos em mãos que, no decorrer dos anos demeu trabalho literário, toda a imprensa da URSS e juntamente com ela to-das as instâncias encarregadas do controle de repertórios têm comprovadocom unanimidade e com uma sanha extraordinária que as obras de MikhailBulgákov não podem existir na URSS.

E eu declaro que a imprensa da URSS tem toda a razão.“3. Como ponto de partida desta carta utilizarei meu libelo A ilha

púrpura.A crítica da URSS em geral, sem exceções, acolheu a peça com a

declaração de que ela é “uma nulidade, inócua, deplorável” e que represen-ta um “pasquim contra a revolução”.

Mas a unanimidade geral foi rompida de modo inesperado e absoluta-mente surpreendente.

No no12 do Boletim do Repertório (1928) apareceu uma resenha deP.Novítski, onde se informava que A ilha púrpura “consiste numa paródiainteressante e espirituosa”, na qual “ergue-se a sombra funesta do GrandeInquisidor, que cultiva os CHAVÕES DRAMATÚRGICOSBAJULADORES-RIDÍCULOS SERVIS, que anula a personalidade do atore do escritor”, que A ilha púrpura aborda “a força sinistra e sombria queforma HILOTAS, ADULADORES E ENCOMIASTAS...”

Afirmou-se que “se tal força sombria existe, A INDIGNAÇÃO E OESPÍRITO MORDAZ DO CÉLEBRE DRAMATURGO DA BURGUE-SIA FORAM JUSTIFICADOS.”

Se é lícito perguntar, onde está a verdade?O que é A ilha púrpura afinal? – “Uma peça inócua e deplorável”

ou esse tal “libelo espirituoso”?A verdade está na resenha de Novítski. Não me proponho a julgar

até que ponto minha peça é espirituosa, mas reconheço que nela ergue-serealmente uma sombra funesta, a sombra do Comitê Central de Repertóri-os. É ele que forma hilotas, encomiastas e aterrorizados “obsequiadores”. Éele que mata a idéia criadora. Ele vem destruindo a dramaturgia soviética eacabará por aniquilá-la.

Eu não cochichava esses pensamentos pelos cantos. Eu os inserinum libelo dramatúrgico que levei à cena. A imprensa soviética, interceden-do em prol do Comitê Central de Repertórios, publicou que A ilha púrpura

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é um pasquim contra a revolução. Trata-se de uma fofoca desprezível. Napeça não há um pasquim contra a revolução por vários motivos, dos quais porfalta de espaço assinalo apenas um: um pasquim contra a revolução, devido àextraordinária grandiosidade desta, é IMPOSSÍVEL de ser escrito. Um libelonão é um pasquim, e o Comitê Central de Repertórios não é a revolução.

Porém, quando a imprensa alemã escreve que A ilha púrpura “é oprimeiro apelo à liberdade de imprensa na URSS” (Molodáia Gvárdia(Jovem Guarda), no 1, 1929), ela está escrevendo a verdade. Isso eu reco-nheço. Lutar contra a censura, qualquer que seja ela e decorrente de qual-quer espécie de poder, é meu dever de escritor, assim como apelar à liber-dade de imprensa. Sou admirador fervoroso dessa liberdade e creio que seum escritor cismasse em demonstrar que não precisa dela, ele seria compa-rável a um peixe afirmando em público que não precisa de água.

“4. Este é um dos traços de minha criação, e sozinho ele basta perfei-tamente para que minhas obras não existam na URSS. Mas ao primeirotraço ligam-se todos os demais que se destacam em minhas novelas satíri-cas: as cores sombrias e místicas (eu sou um ESCRITOR MÍSTICO) comque são apresentadas inúmeras monstruosidades de nosso modo de vida, oveneno de que se impregna minha língua, o ceticismo profundo em relaçãoao processo revolucionário desencadeado neste meu atrasado País, e acontraposição a ele da preferida Grande Evolução, e o mais importante: arepresentação de terríveis traços de meu povo, daqueles traços que bemantes da revolução faziam sofrer profundamente meu mestre M.E.Saltikóv-Schedrín.

Inútil dizer que a imprensa da URSS também não pensou seriamenteem mencionar isso, ocupada com informações pouco convincentes a propó-sito de que na sátira de M.Bulgákov reside a “CALÚNIA”.

Somente uma única vez, no começo de minha carreira, observaramcom laivos de altivo espanto:

“M.Bulgákov DESEJA ser o satírico de nossa época” (Knigonócha(O livreiro ambulante), no 6, 1925).

Infelizmente e em vão o verbo “desejar” é empregado no tempo pre-sente. Deve-se passá-lo para o mais-que-perfeito: M.Bulgákov DESEJA-RA SER UM SATÍRICO, e justamente num tempo em que toda sátiraautêntica (aquela que penetra em zonas proibidas) é absolutamente inad-missível na URSS.

Não tocou a mim a honra de manifestar na imprensa esse pensamen-to criminal. Foi expresso com extrema clareza no artigo de V.Blium(Literatúrnaia Gazeta, no 6), e o pensamento desse artigo cabemagnificamente bem numa única fórmula:

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TODO E QUALQUER SATÍRICO NA URSS ATENTA CONTRAO REGIME SOVIÉTICO.

Será que sou admissível na URSS?“5. E, finalmente, os últimos traços estão nas peças proibidas Os dias

dos Turbín, A corrida e no romance O Exército Branco: a imagem recor-rente da intelligentsia como a melhor camada em nosso País. De modoparticular, a representação da comunidade da intelligentsia aristocrática,que por caprichos de um destino histórico inexorável, durante os anos deguerra civil, atirou-se para o acampamento do Exército Branco, nas melho-res tradições de Guerra e paz. Tal representação é perfeitamente naturalpara um escritor intimamente ligado a intelligentsia.

Porém esse gênero de representação faz com que na URSS seuautor seja colocado em pé de igualdade com seus heróis, ele recebe – ape-sar de seus grandes esforços em PERMANECER IMPAVIDAMENTEACIMA DE VERMELHOS E BRANCOS – um atestado de inimigo Brancoe, tendo recebido, como todo mundo sabe, pode considerar-se um homemacabado na URSS.

“6. Meu retrato literário está completo e não deixa de ser também umretrato político. Não posso dizer de que natureza é o crime que se podeencontrar nele, mas peço um único favor: não procurem nada além de seuscontornos. Ele está perfeita e conscienciosamente delineado.

“7. Atualmente estou destruído.Essa destruição foi recebida com muita alegria pela opinião pública

soviética e classificada como um “ÊXITO”.R.Pikel, constatando minha destruição (Izvéstia, 15/X/1929), mani-

festou um pensamento liberal:“Não pretendemos dizer com isso que o nome de Bulgákov foi risca-

do do rol dos dramaturgos soviéticos”.E deu esperanças ao escritor degolado, dizendo que se referia “às

suas obras dramatúrgicas anteriores”.No entanto, a vida, na figura do Comitê Central de Repertórios, de-

monstrou que o liberalismo de R.Pikel carecia de qualquer fundamento.Em l8 de março de 1930, recebi do Comitê Central de Repertórios

um papel informando laconicamente que, não uma das anteriores, mas mi-nha nova peça A servidão dos hipócritas (Molière) NÃO FORA LIBE-RADA PARA EXIBIÇÃO.

Serei breve: por duas linhas de um papel foram enterrados o trabalhoem bibliotecas, minha fantasia, uma peça que recebeu de qualificados espe-cialistas em teatro inúmeras referências quanto a ser uma peça brilhante.

R.Pikel equivocava-se. Não só minhas peças anteriores foram con-denadas, mas as atuais e todas as futuras. E eu pessoalmente, com minhas

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próprias mãos, atirei no fogo o rascunho de um romance sobre o diabo,outro de uma comédia e o início do segundo romance O teatro.

Não há esperança para minhas obras.“8. Peço ao Governo Soviético levar em consideração que não sou

um político, mas um literato, e que destinei toda minha produção à cenasoviética.

Peço a atenção para duas referências sobre minha pessoa, aparecidasna imprensa da URSS.

Partem ambas de inimigos intransigentes de minhas obras, e por issosão muito valiosas.

Em 1925, escreveram:“Surge um escritor QUE NÃO COMBINA NEM COM AS CO-

RES DOS COMPANHEIROS DE JORNADA” (L.Averbakh, Izvéstia,20/IX/1925).

“Seu talento é tão evidente quanto o reacionarismo social de sua obra”(R.Pikel, Izvéstia, 15/IX/1929).

Peço levar em consideração que para mim a impossibilidade de es-crever equivale a ser enterrado vivo.

“9. PEÇO AO GOVERNO DA URSS ORDENAR EM CA-RÁTER DE URGÊNCIA QUE EU DEIXE O PAÍS EM COMPANHIADE MINHA MULHER LIUBÓV EVGUÉNIEVNA BULGÁKOVA.

“10. Apelo ao senso humanitário do poder soviético e peço paramim, escritor que não pode ser útil em sua terra natal, a generosidade dedeixar-me em liberdade.

“11. Se o que escrevi não convence muito e me condenarem ao silên-cio vitalício na URSS, peço ao Governo Soviético que me ofereça um traba-lho no ramo teatral e me empregue como diretor titular num teatro.

Eu, justamente, de modo preciso e específico venho solicitar UMAORDEM CATEGÓRICA, UM EMPREGO, porque todas as minhas tenta-tivas de encontrar trabalho neste único domínio em que posso ser útil àURSS, como especialista de excepcional qualidade, redundaram num fiascoabsoluto. Meu nome tornou-se a tal ponto odioso que minhas propostas detrabalho, apesar de meu conhecimento virtuosístico da cena ser bem conhe-cido em Moscou de uma imensa quantidade de atores e diretores, assimcomo de administradores de teatro, causaram PAVOR.

Proponho à URSS, sem qualquer sombra de sabotagem, um especia-lista em direção e ator da maior probidade, que se encarregará de encenarqualquer peça, das shakespearianas àquelas da atualidade.

Peço que me nomeiem auxiliar de direção no I Teatro de Arte deMoscou – a melhor escola, dirigida pelos mestres K.S.Stanislávski eV.I.Nemiróvitch-Dántchenko.

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Se não for designado diretor, solicito que o seja como figurante efetivo.Se figurante efetivo não for possível, solicito que o seja como operário de palco.

Se isso também não for possível, peço ao Governo Soviético que façade mim como achar necessário, mas que faça alguma coisa, porque a mim,dramaturgo de 5 peças, conhecido na URSS e no Exterior, restam no PRE-SENTE MOMENTO a miséria, a rua e a ruína.

Moscou, 28 de março de 1930M.Bulgákov.”Ao enviar essa carta simultaneamente aos maiorais Stálin, Molotóv,

Kagánovitch, Kalínin, Iágoda, Búbnov e F.Kon, Mikhail Bulgákov sentira-semais aliviado num primeiro momento. Sua derradeira sorte fora lançada.Depois, o suspense criado em torno de uma resposta (haveria uma?) afun-dou-o num estado semelhante ao de um doente desenganado pelos médi-cos. O Governo poderia desvirtuar o conteúdo da carta e usá-la como umaespécie de confissão de culpa, mandar detê-lo na calada da noite e montaralguma farsa quanto a seu desaparecimento. Poderia ainda não tomar co-nhecimento de suas reivindicações, deixando ao tempo e aos “verdugos” daimprensa a tarefa de resolver a questão. E daí também não haveria saídapara ele. Se agora até o próprio Maiakóvski, após a estréia de Os banhos,tinha se tornado a vítima mais recente das campanhas difamatórias promo-vidas pelos críticos “obsequiadores” do Comitê Central de Repertórios...19

Na melhor das hipóteses iriam arranjar-lhe uma colocação qualquer longeda capital e em desacordo com seus talentos profissionais e artísticos, o queequivaleria a continuar como um enterrado vivo.

A situação era trágica e prenunciava um desfecho correspondente.Por muito menos outros dissidentes do regime já haviam sido eliminados.Porém, um fato gravíssimo, trágico mesmo, pode ter sido o responsável pelasalvação do escritor. Na manhã do dia 14 de abril, após violenta discussão,a atriz do MKhAT Verónika V.Polónskaia, mulher do também atorM.M.Iánchin, e que à época mantinha um caso amoroso com Maiakóvski,preparava-se para sair do estúdio do Poeta num prédio da praça Lubianka.Foi quando, segundo relato da própria atriz20, “ouviu-se o estampido de umtiro. Minhas pernas amoleceram, gritei e fiquei desesperada naquele corre-dor; não conseguia forçar-me a voltar para o estúdio.

“Tenho mesmo a impressão de que muito tempo se passou antes queme decidisse a fazê-lo. Aparentemente, porém, devo ter entrado logo de-pois, já que ainda se via, no quarto, a nuvem de fumaça do tiro.19 Cf. “Intervenção no debate sobre Os banhos realizado na Casa da Imprensa em Moscou”,

in A poética de Maiakóvski através de sua prosa, op.cit., pp.257-259.20 In Djghjcs Kbnthfnehs (Questões de Literatura)5, 1987, cit., pp.152-198.

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“Vladímir Vladímirovitch estava estendido sobre o tapete de braçosabertos. Em seu peito havia uma minúscula mancha de sangue.

“Lembro que me atirei sobre ele, repetindo sem parar:“ – Que foi que você fez? Que foi que você fez?“Ele estava de olhos abertos, olhava fixamente para mim e tentava

levantar a cabeça.“Parecia querer dizer algo, mas seus olhos já estavam sem vida.“Seu rosto e seu pescoço estavam vermelhos, mais vermelhos do que

de hábito. Daí sua cabeça tombou novamente e ele começou a empalidecercada vez mais.”

Comoção geral. Bandeiras vermelhas a meio pau. Durante as ceri-mônias oficiais em grande estilo, boatos de que o Poeta não se matara so-mente por motivos passionais. Perplexidade. Parecia haver mais que isso.Maiakóvski fora corpo e alma de uma revolução, empenhara sua palavra esua vida nos objetivos dessa revolução que ademais perdia seus contornos;sua força literária e ideológica antes inabalável começava a ser posta emdúvida; depois de Os banhos a crítica não lhe dava sossego e o ComitêCentral de Repertórios chegara a apontar na peça elementos daquela cria-ção “neo-burguesa” que ele próprio tanto combatera; o público receberacom indiferença a exposição-aniversário em homenagem aos 20 anos daprodução artística do poeta oficial da Grande Revolução de Outubro...

Enfim, “Maiakóvski foi destruído pela destruição do futuro, daquelefuturo para o qual se lançara desde os tempos do futurismo. Ele, queesbofeteara o filisteísmo burguês pré-revolucionário, viu-se rodeado, depoisda Revolução, por um filisteísmo agigantado, que já não se deixava esbofeteare contratacava com uma agressividade cruel. Ele, que não fizera distinçãoentre ‘vanguarda’ artística e vanguarda revolucionária, viu-se esmagadopor uma ‘nova’ cultura retrógrada, que a Revolução tornara invencivelmenteforte. Ele, que buscava amor e liberdade, encontrou crescente desamor efalta de liberdade. E solidão.”21

Porém, no dia seguinte aos funerais de Maiakóvski, aos quais compa-recera em companhia de Katáiev, Ilf e Oliécha, como sempre fazia depoisdo almoço, Mikhail Bulgákov deitou-se para fazer a sesta, quando o telefo-ne tocou. Liuba, sua mulher, foi atender: era do Kremlin, Stálin queria falarcom Bulgákov. “M.A. não acreditou, pensou tratar-se de um trote (eramcomuns na época) e, nervoso, irritado, agarrou o fone e ouviu:

“– Mikhail Afanássevitch Bulgákov?“– Sim, sim.

21 V.Strada, “Perchè Majakovskji non poteva invecchiare”, in URSS/Russia, op.cit., p.154.

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“– Agora o camarada Stálin vai falar com o senhor.“– O quê? Stálin? Stálin?“E no mesmo instante ouviu uma voz com um nítido sotaque georgiano:“– Pronto, é Stálin falando. Boa tarde, camarada Bulgákov.“– Boa tarde, Ióssif Vissariónovitch.“– Nós recebemos sua carta. Li com os camaradas. O senhor vai

obter uma resposta favorável... Será que realmente devemos deixá-lo partirpara o estrangeiro? Nós o aborrecemos tanto assim?

“M.A. disse que não esperava absolutamente por essa pergunta (as-sim como não esperava o telefonema), que ficara desconcertado e demora-ra a responder:

“– Pensei muito nos últimos tempos se um escritor russo poderiaviver fora de sua terra. E me parece que não.

“– O senhor tem razão. Também penso assim. Onde quer trabalhar?No Teatro de Arte?

“– Sim, eu gostaria. Mas falei sobre isso e me recusaram.“– Entre com um requerimento. Acho que vão concordar. Precisa-

mos nos encontrar para uma conversa...“– Sim, sim, Ióssif Vissariónovitch, preciso muito conversar com o

senhor!“– Sim, é preciso arranjar tempo e teremos um encontro, sem falta. E

agora desejo-lhe felicidades.”22

Esse encontro nunca aconteceria. Mas quais teriam sido as razõesque levaram Stálin a ligar para Bulgákov e depois arranjar-lhe a colocaçãodesejada? O que representaria para a vida do escritor essa guinada em suarelação com o poder soviético? Quais seriam os novos limites de seu hori-zonte? No ensaio “Bulgákov e il suo rè Stalin”23, V.Strada apresenta a res-peito algumas pistas interessantes: “Para Bulgákov esse embate com Stálinfoi duplamente fatal: sua vida foi salva, mas na salvação que lhe fora conferidapelo tirano ele viu uma espécie de intervenção imperscrutável que a forçado mal fazia, operando involuntariamente o bem. A essa interpretação deviainduzi-lo também seu amor por Molière, do qual escrevera uma biografia eem cuja vida via quase uma cópia da sua (...). Como Molière, ele, Bulgákov,tinha sido a vítima das intrigas dos carolas (marxistas, para ele) e somente osoberano (Luís XIV no caso de Molière e Stálin, no caso dele) tivera o22 De acordo com relato do escritor a Eliena Serguéievna na noite de 18/IV/1930; cf. ^Bp

gjplys[ lytdybrjd^ (“Dos últimos diários”), in Lytdybr Tktys <ekufrjdjq (Diáriode Eliena Bulgákova), op.cit., pp.299-300.

23 In URSS/Russia, op.cit., pp.154-159. A citação traduzida encontra-se à p.157 do originalem italiano.

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poder de conceder algum sorvo de vida, uma vida amarga, mas tambémsempre suficiente não para simplesmente sobreviver, mas para criar e viverno futuro. No grande mecanismo da tirania, pululante de servos cegos pelacovardia e pela ideologia, dois seres apenas são livres: o artista e o sobera-no. O último pode excepcionalmente transformar o próprio poder de opres-sivo em liberador, quando concede ao artista, isento da ideologia do domínio,ser soberano a seu modo, isto é, testemunha verdadeira de um mundo dementira. Mas Stálin não era Luís XIV e sua intervenção salvadora, afora aparticular admiração por Os dias dos Turbín, era ditada, muito provavel-mente, por considerações bem práticas, como a inoportunidade política depermitir um novo suicídio literário depois daquele recentíssimo ( de 14 deabril) de Maiakóvski que sacudira a opinião pública soviética”.

Memórias, reminiscências, biografias entravam agora na crista daonda e faziam parte da estratégia propagandística do Partido, que começa-va a introduzir o culto da personalidade no cotidiano da cultura soviética. Apar dessa intenção não declarada, havia, de um lado, o objetivo educacionalque visava a massificação do conhecimento (sobretudo no que se refere abiografados estrangeiros) e, de outro, a necessidade de se elaborar docu-mentos que pudessem servir de fonte aos historiadores do mundo soviético(caso das obras que retratavam – e por vezes forjavam – a vida dos heróisda Revolução). Da Itália, Górki comandava para uma editora estatal sovié-tica a coleção Vidas Ilustres. A iniciativa parecia alvissareira especialmen-te para aqueles escritores caídos no ostracismo e que viam nela uma possi-bilidade de voltar a publicar. Entretanto, mesmo nesse gênero não escapa-vam da perseguição sistemática que a censura movia contra eles, e paraserem publicados deviam seguir à risca as orientações partidárias.

Tem-se em Bulgákov, novamente, um exemplo de como as coisas sepassavam nesse âmbito. Impedido de publicar sua obra de ficção, o escritorescrevera uma biografia de Molière. Tão logo o editor leu o material, escre-veu a Bulgákov, criticando o trabalho e comunicando que remetera o ma-nuscrito da obra, acompanhado de seu parecer, a Górki, em Sorrento. Oeditor atacava sobretudo o narrador inventado por Bulgákov, o qual nãomantinha com seus aforismos e frases de espírito o distanciamento desejá-vel em relação aos fatos narrados; que não era um “narrador marxista”,pois abordava e interpretava os materiais históricos e biográficos de seupróprio (e portanto discutível) ponto de vista; que não deixava claro a queclasse ou grupo social “servia” o teatro de Molière; que se permitia ambi-güidades narrativas que resultavam em inequívocas alusões à realidade so-viética, etc., etc.; para concluir, dizendo que o narrador escolhido devia tersido um “historiador soviético sério”. Górki, por sua vez, respondia ao editor:

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“Concordo plenamente com sua bem fundamentada avaliação do trabalhode M.A.Bulgákov. É preciso não só completá-lo com materiais históricos,bem como conferir-lhe uma dimensão social – deve-se mudar seu estilo‘brincalhão’. Neste aspecto, não se trata de um trabalho sério e o Sr. apontaisso corretamente – a obra será violentamente condenada”24. Dito e feito: aobra não foi publicada, uma vez que o autor recusou-se a modificá-la25.

Em maio de 1934, o Governo aboliu todas as associações de escrito-res proletários ou não, e criara uma nova e única União de Escritores, visan-do estabelecer um controle mais efetivo e rigoroso (!) sobre a produçãoliterária nacional, as polêmicas e dissidências de escritores. Era o penúltimopasso rumo à implantação da estética oficial do assim chamado “realismosocialista”. O I Congresso da União dos Escritores Soviéticos, realizado emagosto de 1934, dezessete anos após a Revolução de Outubro, representounão só um balanço do que se produzira desde então, como também o golpefatal desferido contra a literatura que teimava em sobreviver a contrapelodas orientações do Partido.

Se, em linhas gerais, numa primeira fase (1917-1927) a literatura rus-so-soviética em formação fora incitada a “despertar as massas” para aRevolução, e numa segunda (1928-1934) a priorizar a temática da forma-ção do novo homem, o homo sovieticus, nessa terceira, que ora se inicia-va, ela deveria exaltar a superioridade da estrutura social soviética. Paraisso, havia que se enxergar as coisas através dos olhos do Partido e consta-tar a realidade socialista que ele vinha criando.

A espinha dorsal das discussões desse I Congresso foi o tal “realismosocialista”, o realismo do Partido, como único método a ser aplicado para odesenvolvimento dessa nova etapa da política cultural, que previa “a criaçãode obras de alto valor artístico, impregnadas da luta heróica do proletariadomundial e da grandeza da vitória do socialismo, que refletem a grande sabe-doria e heroismo do Partido Comunista...”26, como rezava no estatuto daprópria União. Estava encerrada, portanto, a etapa mais criativa da literatu-ra soviética enquanto tal. A ênfase nos conteúdos propostos em detrimentoda experimentação formal, como se forma e conteúdo pudessem viverdissociados, levaria à produção, com raras exceções, de obras literáriasanódinas, distantes daqueles padrões de excelência artística aos quais aliteratura russa se habituara desde Púchkin.

24 Carta de 28/IV/1933. Cf. M. Tchudakóva, op.cit., pp.373-374.25 A vida do Senhor de Molière seria publicada apenas em 1962, durante o período do governo

Khruschóv, vinte e um anos após a morte do escritor.26 Citado a partir de “Il primo Congresso degli scrittori sovietici”, in Storia della letteratura

russa contemporanea, cit., p.538.

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Doravante, estava definitivamente proibida a liberdade de expressão ede criação na URSS. Não haveria mais escritores na verdadeira acepção dapalavra, mas burocratas da literatura. Aos contraventores e dissidentes,falaciosamente tratados como “inimigos do povo”, o “pai supremo da famíliasoviética”, o “sol da Rússia” responderia com a escuridão das masmorras e amorte. A partir de meados de 1936 foram instituídos os processos políticos detriste memória, conhecidos posteriormente como “processos de Moscou”, quedurante mais de dois anos mergulhariam a URSS no terror desenfreado eculminariam com o início do grande expurgo em 1938. O objetivo era varrerda face da URSS os elementos perniciosos à construção da sociedade do“socialismo real” e eliminar a mais leve oposição ao poder de Stálin.

Dois anos antes, para ocupar em larga escala os quadros dirigentescom pessoal de sua confiança e fortalecer a nomenclatura stalinista, o dita-dor precisara promover a limpeza desses quadros, formados ainda, em suamaioria, pela velha guarda leninista. Em 1929, ele conseguira expulsar Trótskipara o Exterior. Mas como aniquilar os velhos bolcheviques, destituí-los doscargos que ocupavam, se tinham posto toda sua vida a serviço da Revolu-ção? Fora necessário, antes de mais nada, desencadear uma campanhadifamatória capaz de destruir a autoridade moral de que gozavam. Trans-formar esses revolucionários de longa data em criminosos traidores dosideais de que eram os mais ferrenhos defensores. Mistificação. O assassí-nio de Kírov, secretário do Partido em Leningrado, (a mando do próprioStálin, segundo Khruschóv) em 1934, tinha sido o estopim. Responsabilizados,os velhos leninistas foram sendo presos, torturados nos porões da Lubiankaou da prisão de Lefórtovo, e, antes de morrer, obrigados a se retratar decrimes especialmente inventados para a ocasião. A cada “confissão”, ar-rancada por métodos de tortura que teriam feito inveja a Okhrana dostempos do tzar, surgiam novos nomes. Prisões em cascata.

“Inimigos do povo” passaram a ser caçados em todos os setores davida nacional: no Governo, exército, administração pública, universidades,imprensa, meios artísticos e científicos, e no próprio Partido. A exemplo doque já ocorrera, ainda que em escala menor, logo após a guerra civil e nosestertores da NEP, a delação tornava-se novamente a principal arma decombate à dissidência. Os olhos e ouvidos da onipresente polícia políticaestavam mais do que nunca atentos ao menor gesto, à menor palavra emdesacordo com a ideologia dominante. Ninguém estava livre das detenções,deportações e execuções sumárias. Não raro, os acusadores do início tor-nar-se-iam os futuros acusados nesses processos.

Primeiro, em agosto de 1936, as vítimas escolhidas tinham sido acu-sadas de um crime de alta traição: pertencerem ao “centro terrorista Trótski-

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Zinoviév”. Em janeiro de 1937, o expurgo concentrou-se ainda sobre rema-nescentes do trotskismo. Em janeiro de 1938, os acusados “reconheceriam”suas culpas como agentes de Hitler e de Trótski, como sabotadores, espi-ões, terroristas e partidários da restauração do capitalismo na URSS.

Escritores e artistas famosos desapareciam da noite para o dia semque ninguém ousasse protestar. Seus nomes eram simplesmente riscadosdo panteão das artes soviéticas, suas obras sumiam de circulação junto comeles. Judeus como Mandelstam27, Bábel, Meyerhold (dissidentes ou não),fiéis guardiães da ortodoxia comunista como Angaróv, os críticos Averbakhe Pikel, o publicista Koltsóv e outros, dramaturgos e escritores alinhadoscom o regime, como Pilniák, Kirchon, Afinoguénov, A. Efros, caíam indis-tintamente em desgraça. Ao mesmo tempo, os não perseguidos eram agra-ciados com a Ordem de Lênin, ou elevados à condição de artistas do povosoviético, além de gozarem de outras benesses outorgadas pelo poder. Eapenas o acaso talvez explique o fato de autores como Bulgákov, Pasternak,Akhmátova, Tsvetáieva, A.Tolstói e outros poucos terem escapado aos ri-gores da repressão cega, ainda que depois, e em épocas diferentes, fossemcondenados ao ostracismo. Somente após a morte de Stálin e depois deKhruschóv ter “denunciado” os crimes do ditador, iniciaram-se lentamenteos processos de reabilitação de alguns dos escritores condenados pelostalinismo.

27 Já nessa época, Nadiéjda Mandelstam memorizava toda a obra poética do marido. O mesmofazia uma amiga íntima de A.Akhmátova, a cada novo poema que ela escrevia, antes dequeimá-lo num cinzeiro.

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A EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMOA EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMOA EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMOA EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMOA EDUCAÇÃO NO JUDAÍSMO

Ana Szpiczkowski

Para se falar de educação no judaísmo, é importante entendê-la den-tro de um contexto mais amplo, que envolve a concepção de mundo, a inser-ção do homem nele e a compreensão que se tem do homem enquanto agen-te. A educação, ao longo dos tempos, tem sido percebida sob diferentesprismas, dependendo da cultura à qual está vinculada, e isso porque cadapovo possui princípios norteadores relacionados ao seu desenvolvimentoeducacional.

O povo judeu tem seu modo próprio de encarar a educação, a come-çar por sua definição.

Embora na língua hebraica seja feita uma distinção entre educação -Hinukh – e ensino – Limud, demonstrando uma diferença conceitual entreambos, é preciso salientar que há, no judaísmo, uma preocupação constantecom a transmissão dos conhecimentos e valores, partindo de um princípiobásico, que é o da associação da prática à teoria, baseada nos preceitosapontados na Bíblia.

Considerando-se que um dos preceitos básicos do judaísmo consisteem ensinar e estudar a Bíblia, essa transmissão de valores inicia-se aindaem casa, quando a criança é pequena, e estende-se aos mestres, quando oeducando já se encontra em idade escolar. Por sinal, essa idéia é encontra-da em Deuteronômio (6:7), no versículo: “E as intimarás a teus filhos”.Também Maimônides, no seu 11o mandamento refere-se a “Ensinar e es-tudar a sabedoria da Torá”, numa referência explícita à presença da Torádurante toda a vida da pessoa, uma vez que é atribuída aos idosos, a sabedo-ria adquirida pelo estudo iniciado ainda na infância e continuado no decorrerda vida . Nessa concepção, as meditações de um nonagenário têm por ob-jeto a mesma Torá que a criança de cinco anos começa a estudar.

Também em um dos tratados do Talmud (Lei oral) o Pirkei Avot(Ética dos Pais), é possível encontrar uma alusão à questão do amadureci-mento para o estudo, isto é, que considera o nível de desenvolvimento doestudioso, estabelecido pela faixa etária. Assim, a máxima: “Aos cinco anosé tempo de começar o estudo da Escritura; aos dez anos, o da Mischná:aos treze anos, o dos Mandamentos; aos quinze, o do Talmud; aos de-zoito anos é tempo de casar; aos vinte, é tempo de perseguir o traba-lho; aos trinta, plenitude da força física; aos quarenta, do entendimen-

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to; aos cinqüenta, do conselho; aos sessenta começa a velhice; aossetenta, as cãs; aos oitenta, se houver vigor; aos noventa começa oencurvamento; aos cem é como se estivesse morto, passado e extintodo mundo” (Avot:5:21(22)), nos permite entender que a idade do estu-dante deve ser considerada, por suas características intelectuais e emocio-nais, para um melhor aproveitamento e desenvolvimento. Também a expe-riência dos mais velhos é considerada essencial para o aprimoramento dasnovas gerações e para a longevidade dos conhecimentos. Por sinal, o 209o

mandamento de Maimônides “Honrar os eruditos e os idosos”, tambémressalva a importância de se deferir idosos e eruditos, porque a educação serecebe e se transmite por herança, como é possível encontrar emDeuteronômio, “Moisés nos deu também a lei por herança da congre-gação de Jacó” (33:4).

Cabe ao pai começar a ensinar a Torá ao filho, desde quando eleinicia as suas primeiras palavras, por meio da repetição de alguns versículosbíblicos, como vemos em:“Quando a criança começa a falar, seu pai lheensinará a Torá e a fará repetir o Schmá,”(Tratado de Sucá, na ordem deMoed, 42-a)

Toda cidade deverá ter obrigatoriamente um professor, cuja impor-tância é equivalente à de um médico, de uma sinagoga e de um tribunalrabínico, para que não haja a interrupção de estudos, por motivo algum, sobpena de ser colocada no ostracismo. Assim, aos seis ou sete anos, a criançacontinua sua educação com um professor remunerado.

O professor ou mestre é, muitas vezes, tratado pelo título de TalmidHakham – (discípulo do Sábio), associado ao estudioso litúrgico, que seocupa do estudo e do ensino da Torá, e que nunca acaba de aprender. Istoporque o dever do judeu consiste não somente em estudar, mas também emtransmitir seus conhecimentos à geração seguinte.

Os Eruditos – Talmidei Hakhamim (discípulos dos Sábios) – cons-tituem a elite na cultura judaica e representam um ideal que os outros ten-tam atingir.

Os Sábios são eternos estudantes, pois o mestre considera a si mes-mo como um aluno, como um Talmid Hakham. Trata-se de um grupoaberto, que sempre encoraja os outros a ingressarem em suas fileiras, desdeque demonstrem capacidade escolástica. Devem ser capazes de estudar eentender a Bíblia, o que requer alto grau de capacidade intelectual, e serdotado de qualidades espirituais e humanitárias para uma conduta moral eobservância estrita dos preceitos. O erudito simboliza não só o homem queestuda a Bíblia, mas a sua própria personificação. Seus conhecimentos de-vem ser profundos em Bíblia, Mischná e Talmud (Lei Oral), assim como

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nos vários métodos de aprendizagem, baseados principalmente na Guemará(Lei Oral). Necessitam ter familiaridade com certa quantidade de materialbásico, capacidade de analisar todos os métodos de estudo, capacidade es-pecial para lidar com problemas talmúdicos e entendê-los no contexto.

O Talmud é o pilar central da cultura judaica. É impossível abordar aexegese bíblica ou a filosofia judaica ou esotérica sem o conhecimento doTalmud, material de base para tudo. Possui importância sócio-histórica,pois nenhuma comunidade judaica poderia sobreviver por muito tempo, seperdesse a capacidade de estudar o Talmud, uma vez que ele constitui aespinha dorsal do multiforme conhecimento judaico e, ainda, da legislação –as normas legais a serem seguidas.

Seu estudo representa o cumprimento do Talmud Torá e pressupõediferentes respostas, exigindo agilidade e flexibilidade mental de seusinterlocutores.

A função da escola consiste em desenvolver as noções básicas que acriança adquiriu na infância, em casa, numa busca de integração harmonio-sa entre lar e escola e que favoreça o desenvolvimento educacional doaluno.

Há alguns tipos de instituições educacionais judaicas:Heder: responsável pela iniciação da criança aos três anos de idade,

muitas vezes marcada por uma festa ou jejum por parte dos pais. Os recém-nascidos são, muitas vezes, levados por suas mães à casa de estudos, paraouvir palavras da Torá desde a mais tenra idade.

Beit-Ha-Midrasch: casa de estudos – instituição aberta a todos osmembros da comunidade judaica sem distinção, ricos ou pobres, eruditos ouignorantes, que serve, também, como casa de orações.

O estudo da Bíblia permite ao judeu aprender a rezar. Enquanto aoração é a expressão dos sentimentos perante Deus, as palavras da Bíbliadirigem-se à inteligência, à mente. A combinação entre estudo e oração éque permite a sobrevivência do povo de Israel, fato comprovado nas épocasde exílio, quando a Casa de Estudo era seu único refúgio. A função exercidapelo Beit-Ha-Midrasch justifica a idéia de que a sua construção deveriaser o primeiro dever de todas as comunidades judaicas.

Yeschivá – escola superior onde se reúnem os professores comseus discípulos para estudarem a Lei, utilizando uma metodologia específicaque favorece o debate e as contestações.

Os métodos de estudo empregados na Yeschivá não se limitam àmemorização mecânica, embora em alguns casos ela possa também serutilizada. Eles requerem participação ativa e envolvimento emocional e inte-lectual dos estudantes, numa busca incessante da verdade por meio de

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questionamentos, sugestões, refutações, análise e crítica. E isso implica,certamente, um estudo grupal, onde cada um dos seus participantes trazsuas contribuições, quer seja através de perguntas, quer seja pelas hipóte-ses levantadas, em busca de soluções e respostas, na medida em que noTalmud as discussões não são conclusivas. A aquisição de conhecimentonão é vista como processo individual, isolado, mas dá-se, sempre, em con-junto com o outro, em um processo de busca e crescimento, que favorece odesenvolvimento do raciocínio lógico de alunos e professores.

O Pilpul, nome dado ao raciocínio dialético do Talmud, é utilizadocomo método de estudo e consiste na busca de evidências para comprova-ção de idéias. Ele exige a erudição quantitativa, para que os envolvidos noestudo possam participar efetivamente dessa busca, a partir de um repertó-rio já existente, como caminho para o crescimento.

A Havruta, por sua vez, consiste na parceria durante o estudo, e éamplamente utilizada nas Yeschivot (escolas superiores). Trata-se de ummétodo de estudo que estimula a troca de opiniões, o questionamento, aconsciência do outro, a revelação de diferenças e análise racional dos argu-mentos apresentados. Por sinal, no Pirkei Avot (3:6) encontramos palavrasque destacam a importância do estudo em grupo e, em último caso, o estudoindividual, como vemos a seguir:

“Rabi Haláfta ben Dossa de Kfar Hananyá diz: Quando dez ho-mens estão reunidos e ocupados com a Torá, o espírito divino pou-sa entre eles, pois foi dito: Deus está na assembléia do Eterno(Salmos,82:1). E em caso de cinco (também), pois foi dito: E estabe-leceu o seu ajuntamento na terra (Amós, 9:6). E em caso de três(também), pois foi dito: No meio (de Juízes) julga Deus (Salmos,82:1).E em caso de dois (também), pois foi dito: Então os que temem aoEterno falavam uns aos outros e o Senhor atentava e ouvia(Mal.,3:16). E em caso mesmo de um (também), pois foi dito: Emtodo lugar que eu fizer invocar o Meu nome, virei a ti e te abenço-arei” (Êx., 20:24).

É possível extrair daqui o conceito de Minián, nome dado ao númeromínimo de dez homens necessários para legitimar as orações coletivas, cujaforça atrai o espírito divino.

Considero importante ressaltar a questão do respeito atribuído ao alu-no na concepção judaica. Primeiramente, cabe explicar que o estudo doTalmud imprime um ritmo peculiar ao texto e a seus comentários, fato quepromove a participação do sentido auditivo das pessoas e conduz à fixação

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do conhecimento. Este fato demonstra que existe uma preocupação com amaneira de facilitar a apreensão do conteúdo por parte dos estudantes, alémde que a questão da consideração pela faixa etária representa uma visãodesenvolvimentista e humanista de educação.

Isso também pode ser observado pela maneira como são encaradosaqueles que têm maiores dificuldades para a aprendizagem. Encontramosem Avot (5:7) a seguinte máxima que vem corroborar tal idéia:

“Sete são os atributos do néscio (Golem) e sete os do sábio (Hakham):o sábio não fala diante de quem é maior do que ele em sabedoria (eidade) e não interrompe as palavras do seu próximo; não é afoitoem responder, pergunta segundo o assunto e responde de acordocom a regra; fala primeiro sobre o primeiro e por último sobre oúltimo; do que não ouviu, ele diz “não ouvi”, e confessa a verdade.O contrário disso é atribuído ao néscio.”.

A Bíblia possui uma só palavra para designar o Sábio. Por outro lado,dispõe de vários termos para caracterizar o homem que não possui sabedo-ria; por exemplo, Shote – idiota, tonto, Sakhal – imbecil, Evil – tolo,bobo, estúpido, Kessil – estúpido, tolo etc. Esta máxima, entretanto, em-prega somente o termo Golem – para designar o conceito oposto a Hakham.

Para captar exatamente o sentido do termo Golem é preciso sereportar ao tratado de Kelim (utensílios), onde se encontra o termo GolameiKelim, que significa utensílios de metal inacabados, isto é,que ainda nãoadquiriram sua forma definitiva. Assim, os sábios relacionam a Golem nãoo aluno estúpido e incapaz, mas aquele que, apesar de deter muitos conhe-cimentos, não sabe ainda comportar-se como um sábio, isto é, submeter-seà disciplina da Torá e colocar em prática os conhecimentos adquiridos. Épreciso realizar prolongados esforços de autodisciplina para converter-seem um Hakham. Aquele que não consegue atingir esse grau de perfeiçãoé chamado Golem, quer dizer, criatura inacabada, e não ignorante.

A questão da assiduidade no estudo é levantada por constituir eleuma segunda natureza para o povo judeu, como podemos observar, maisuma vez, em Avot:

“Há quatro tipos entre os que se sentam perante mestres: esponja,funil, filtro e peneira. Esponja é aquele que absorve tudo; funil, oque recebe de um lado e deixa escapar de outro; filtro, o que deixasair o vinho e retém a borra; peneira, o que deixa sair o farelo eretém a farinha”. (5:15).

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“Sentar diante de mestres” implica a participação ativa de alunos eprofessores em um debate que só se esgota quando todas as dúvidas estive-rem esclarecidas.

Essa participação pode dar-se de quatro modos distintos, conformeconsta nessa máxima. Falando do tipo que se assemelha a uma esponja, osSábios não se referiam ao indivíduo que absorve tudo, sem discernimento,mas àquele que, por sua imensa curiosidade, absorve avidamente tudo o queemana da boca do Sábio, seu mestre. Quando apontam para o segundo tipo,o funil, associam este objeto à sua capacidade de absorção, superior à suacapacidade de restituição, o que significa que o aluno que se assemelha aofunil restitui com dificuldade os conhecimentos absorvidos. A terceira cate-goria de alunos é comparada ao filtro, que retém os sedimentos e deixapassar o vinho, do mesmo modo que o bom aluno deve “sedimentar” o queaprendeu e transmitir aos seus próprios alunos um vinho claro, quer dizer, osconhecimentos, de acordo com sua capacidade de compreender. Por últi-mo, a comparação com a peneira, que serve para reter o melhor da farinha,corresponde ao aluno que é capaz de conservar o núcleo dos ensinamentose desfazer-se dos desperdícios.

Para finalizar, convém lembrar que o estudo da Torá e a prática deseus preceitos é, portanto, o único caminho a ser percorrido para o cresci-mento individual e grupal, em busca do aperfeiçoamento. A educação noJudaísmo preocupa-se com a formação do homem como um todo, onde osestudos contínuos, independentemente do papel exercido pelo homem nasociedade, levam ao aprimoramento do seu caráter e de seu “modus vivendi”.

O reconhecimento da vivência e experiência dos eruditos como fonteda qual emanam conhecimentos, ao mesmo tempo em que se renova com aexperiência e questionamentos da juventude, permite a transmissão do juda-ísmo de geração a geração e a sua continuidade no decorrer dos séculos.

Há uma máxima no Pirkei Avot que, no meu entender, concentra opensamento educacional judaico, e por isso, gostaria de citar aqui, para umafutura e oportuna reflexão:

“Que a honra do teu discípulo seja tão querida para ti como a tuaprópria, e a honra do teu companheiro como a reverência pelo teumestre, e a reverência pelo teu mestre como a reverência pelosCéus”. (4:12).

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HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NASHISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NASHISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NASHISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NASHISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS NASNARRANARRANARRANARRANARRATIVTIVTIVTIVTIVAS SETSUWAS SETSUWAS SETSUWAS SETSUWAS SETSUWA DO SÉCULO XIIA DO SÉCULO XIIA DO SÉCULO XIIA DO SÉCULO XIIA DO SÉCULO XII

Luiza Nana Yoshida

Na literatura clássica japonesa, existe um gênero narrativo, setsuwa,que denominaremos “narrativa setsuwa”, por não haver termo correspon-dente em nossa língua.

Setsuwa são narrativas breves, reunidas em coletâneas denomina-das setsuwashû (coletânea de narrativas setsuwa). Nihon Ryôiki (RelatosMilagrosos do Japão) é considerada a primeira coletânea de narrativassetsuwa e foi organizada, por volta de 822, por um monge budista chamadoKeikai.

As coletâneas de narrativas setsuwa podem ser classificadas emdois grandes grupos, conforme o tema abordado pelas narrativas que ascompõem: budista e/ou secular. Embora as narrativas setsuwa possam serincluídas nos dois temas gerais acima citados, não existe qualquer restriçãocom relação ao assunto, aos personagens ou ao espaço. Trata-se de narra-tivas que, estabelecidas como ocorridas no passado, são narradas comofatos verídicos ou que se acredita serem verídicos.

A obra que escolhemos como objeto de estudo é denominada KonjakuMonogatarishû. Trata-se de uma coletânea que comporta, no total, maisde mil narrativas, distribuídas em trinta e um tomos (os tomos VIII, XVIII eXXI encontram-se desaparecidos), divididos da seguinte maneira:

a) tomos I a V – narrativas budistas da Índiab) tomos VI a X – narrativas da China6 – 9 (budistas)

10 (secular)c) tomos XI a XXXI – narrativas do Japão 11 – 20 (budistas)

22 – 31 (secular)

O autor é desconhecido e, embora não se conheça a data exata dasua conclusão, baseados nos fatos comprovados pelas pesquisas, os especi-alistas estabelecem-na como uma obra do século XII.

O título da coletânea é composto por cinco ideogramas com o seguin-te significado:

KON – lê-se também ima e possui o sentido de “agora”, “presente”;JAKU – lê-se também mukashi e possui o sentido de “antigamen-

te”, “outrora”;

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MONO – isoladamente, tem o sentido de, “coisa”, “fato”;KATARI – isoladamente, pode ter o sentido de “palavra”, “narrativa”;MONOGATARI – juntos têm o sentido de “narrativa”; SHÛ e indi-ca “reunião”, “coletânea”.Daí, traduzirmos Konjaku Monogatarishû por “Coletânea de Nar-

rativas de Hoje e de Outrora”. O título possui estreita relação com a ex-pressão Imawa mukashi, “O agora é passado”, (expressão largamente uti-lizada pelas narrativas antigas) e que, em combinação com a expressãofinal tonan katari tsutaetarutoya, “conta-se que assim foi dito”, constituiuma forma fixa de Konjaku Monogatarishû.

Da obra Konjaku Monogatarishû , destacaremos o tomo XXVII quereúne quarenta e cinco narrativas extraordinárias.Cabe colocar que, em todasas narrativas, temos presentes seres sobrenaturais assim divididos:

1) espírito humano – 13 narrativas2) ogro – 13 narrativas3) raposa – 12 narrativas4) javali – 3 narrativas5) espíritos de objetos (água, vasilha de cobre) – 2 narrativas6) outros (coisa, divindade da montanha) – 2 narrativas

O tomo XXVII que descreve, portanto, as multifacetas do encontrohomem/seres sobrenaturais constitui um repositório de narrativas extraordi-nárias que implicam essencialmente a derrota (morte) ou vitória de um oude outro.

Nesse sentido, as narrativas divididas conforme os seres sobrenatu-rais apresentam a seguinte tendência:

a) vitória do ser sobrenatural (1) (2)b) derrota do ser sobrenatural (3) (4)c) narrativas que não implicam obrigatoriamente uma derrota/vitória

de um dos lados (5) (6)

Para o desenvolvimento do trabalho destacaremos duas narrativas,uma enfocando a vitória do ente sobrenatural e a outra, a sua derrota.

XXVII/8 Sobre o ogro que, tomando a forma de um homem, devorauma jovem, na Praça dos Pinheiros

O agora é passado, na época do imperador Kôkô, três jovenspassavam pela Praça dos Pinheiros, no Saguão das Artes Militares, a

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caminho da residência imperial. Sendo noite do dia 17 de agosto, alua refletia intensa claridade.

Foi então que, sob um pinheiro, surgiu um homem. Deteve umadas jovens que por lá passava e, debaixo do pinheiro, tomou-lhe amão e passaram a conversar. As duas outras jovens aguardavam-na,presumindo que a conversa fosse breve e que logo ela estaria de volta,mas nada de voltar. Não ouviam nem mesmo as vozes, e estranhandosobre o que teria acontecido, aproximaram-se do local, mas não haviaqualquer sinal dos dois. Procuraram com mais atenção, pensando ondeteriam ido, quando avistaram pernas e braços femininos espalhadospelo chão. Ao depararem-se com tal cena, as duas jovens fugiramapavoradas, correram para o posto dos guardas palacianos e relata-ram o ocorrido. Os guardas, também assustados, dirigiram-se ao lo-cal, onde não encontraram nenhum cadáver, restando apenas as per-nas e os braços da jovem. O local ficou lotado com a multidão que alíse aglomerou ao saber da notícia. “Foi o ogro que, transformando-senum ser humano, devorou essa jovem”, diziam.

A mulher não deve se aproximar, então, quando interpelada porum homem desconhecido, num local ermo como esse. Deve tomar muitocuidado. Conta-se que assim foi dito.

A época enfocada pela narrativa remonta aos tempos do 58º impe-rador Kôkô (830 - 887) que reinou no período de 884 a 887. O imperadorKôkô, cuja entronização ocorreu quando ele já estava com mais de 50 anos,foi uma espécie de imperador-títere do clã Fujiwara, que inicia sua ascen-são política em meados do século IX e detém o poder político por cerca dedois séculos, monopolizando o cargo de sesshô kanpaku (Regente Conse-lheiro), encarregado de cuidar dos documentos oficiais, mesmo antes dechegar às mãos do imperador, controlar as ordens emitidas pelo imperador ,chegando a interferir até mesmo nas nomeações de funcionários. A narra-tiva remete-nos, assim, a um tempo do passado, mas um passado estabele-cido numa realidade histórica, na medida em que é referente a um impera-dor histórico.

O acontecimento, então, ocorre no interior do palácio imperial, quan-do três jovens dirigiam-se para a direção da residência imperial, numa noitede lua cheia (do dia 17). Sabe-se que, desde antigamente, a lua cheia possuium significado bastante especial dentro da cultura japonesa, onde a cerimô-nia denominada chûshûkangetsu, “Contemplação da Lua”, faz parte docalendário de eventos anuais da Corte. Cabe lembrar também que, alémdesse significado ritualístico, a lua cheia constituía uma fonte de iluminaçãonatural de suma importância.

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No segundo parágrafo, um homem, que surge “sob um pinheiro”,interpela uma das jovens. Cremos não haver dúvida de que fosse um ho-mem, pois, como vimos, tratava-se de uma noite clara de lua cheia. O queacontece entre o momento da interpelação e o momento em que as duasjovens vão à procura da companheira que demorava para voltar, fica envol-to num completo mistério. Como por encanto, o homem desaparece e, dajovem, só restam seus membros espalhados pelo chão. Podemos dizer quenas histórias extraordinárias do tomo XXVII que envolvem o ogro, de modogeral, não existe a descrição do modo como as suas vítimas são mortas, masapenas do pós-morte, quando a pessoa já aparece morta ou descobrem-separtes do seu corpo e/ou seus pertences.

O mesmo acontece nas histórias extraordinárias do tomo XXVII, ondenão existe qualquer testemunha que tenha visto a figura do ogro, que apare-ce metamorfoseado em homem ou mulher, objetos, ou nem mesmo possuiuma forma definida. Mas a ele são atribuídos os desaparecimentos e asmortes misteriosas.

A narrativa 7/tomo XX, intitulada Sobre o fato de a imperatrizSomedono ter sido violada por um tengu (embora no título tenhamos tengu,um ente sobrenatural alado e com corpo de homem, na narrativa em si, encon-tramos o ogro), onde existe a descrição da figura do ogro que é a reencarnaçãodo monge que se apaixona pela imperatriz e, impedido de concretizar o seuamor, renasce como um ogro. Ele é descrito da seguinte maneira:

Era uma figura seminua, com o cabelo escorrido como o de umacriança. Tinha mais de dois metros de altura e a pele escura como quepintada de laca. Os olhos eram enormes e assustadores, lembrandoduas tigelas metálicas. Na gigantesca boca aberta, viam-se dentes afi-ados, tais como espadas, onde se destacavam as presas. Vestia-se comuma sunga vermelha e, na cintura, trazia um maço.

Trata-se de uma descrição que lembra a figura dos ogros retratadosnas narrativas ilustradas em rolo (emakimono), e que podem ser encontra-das em outras coletâneas de narrativas setsuwa com algumas variantescomo a cor da pele, a quantidade de olhos como no trecho a seguir:

...viu um grupo de ogros com aparências diversas: os de corpovermelho usavam sungas azuis e os de cor preta usavam sungas ver-melhas; havia uns com um só olho, outros sem boca. Eram seres mons-truosos, indescritíveis ...

(3/I Sobre o calombo que foi retirado pelo ogro)

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De qualquer forma, os ogros do tomo XVII aparecem diante do ho-mem metamorfoseado no próprio ser humano ou em outro objeto qualquer,conforme o seu objetivo ou a necessidade do momento. O que chama aatenção no que se refere ao espaço em que surge o ogro é que, na maioriados casos, ele surge na capital Heiankyô, ou em suas imediações, o quesignifica que o ogro encontra-se bem mais perto do que se imagina, não seintimidando a aparecer no interior do próprio palácio imperial.

Dessa forma, podemos concluir que as histórias extraordinárias queenvolvem o ogro enfatizam o seu aspecto apavorante, pois que ligado àmorte, transformando-o numa espécie de monstro que atemoriza e inibe aspessoas a tomar determinadas atitudes (“não falar com desconhecidos”)ou freqüentar determinados lugares (“lugar ermo”, “lugar desconhecido”).É interessante lembrarmos a colocação de Akiko Baba1 que, em seu estudosobre o ogro, observa que as pessoas não temiam a morte, mas temiam osogros. Na narrativa 18/XXIX Sobre o ladrão que vê cadáveres no PortalRaseimon, por exemplo, um ladrão que vê um vulto entre os cadáveresespalhados no Portal Raseimon apavora-se, não com o fato de encontrar-seno meio de inúmeros cadáveres, mas diante da possibilidade de estar peran-te um ogro.

Ressalte-se que o fato de o ogro aparecer freqüentemente na outrorapróspera Heiankyô, não deixa de ser o reflexo de sua decadência. Heiankyô,construída em 794, sob os moldes da capital Chang-An, da Dinastia Tang(618 - 960), foi a capital do Japão até 1869, quando o centro do governojaponês foi transferido para Tóquio (antigamente denominada Edo). Pode-se dizer que, Heiankyô, construída para ser o símbolo do poder centralizadona figura do imperador, foi em sua época áurea, não só o centro político,mas o berço de uma rica e requintada cultura promovida pela alta nobrezajaponesa.

Konjaku Monogatarishû foi compilada no século XII, ou seja, nofinal da época Heian (794 - 1185), quando a capital já não apresentava oesplendor de seus dias de glória. Assim, as histórias extraordinárias aqui pre-sentes não poderiam deixar de fazer alusão ao lado sombrio que, certamente,a capital possuía, escondido por trás da opulenta e luxuosa existência.

Prosseguindo, passaremos às considerações da segunda narrativa.

38/XXVII Sobre o fato de a raposa, metamorfoseada numa jovem, encon-trar-se com Harima no Yasutaka

1 BABA, Akiko. Onino Kenkyû (Pesquisa sobre o Ogro). Tóquio, San’ichi Shobô, 1975, p. 64.

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O agora é passado, havia um guarda palaciano chamado Harimano Yasutaka. Era filho de Sadamasa, um oficial da guarda palaciana.Servia como segurança a Fujiwara no Kaneie e, certa vez, quandoainda jovem, o senhor encontrava-se no palácio imperial, Yasutakatambém o aguardava ali, e como a sua casa ficava em Nishinokyô, aoeste da capital, pensou em ir até lá. Não encontrando nenhum deseus homens, saiu desacompanhado, passando por Uchinotôri, emdireção a sua casa. Encontrava-se justamente perto do vigésimo diado nono mês e a lua emitia intenso brilho. Já alta noite, quando seaproximou da Praça dos Pinheiros, caminhava à sua frente, umajovenzinha, trajando uma vestimenta denominada akome sobreposta,a de baixo em tom violeta escuro e textura bastante lustrosa e a decima, um belo brocado de seda num violeta mais suave. Iluminada pelaluz do luar, tanto seu aspecto, quanto seus cabelos, eram de uma bele-za indescritível. Yasutaka, que usava um tipo de calçado com canocurto, alcançou-a, com passos ruidosos e, ao ficar lado a lado, olhou-a, mas a jovenzinha não se deixava ver, escondendo o seu rosto comum leque onde se via uma pintura. O fato de alguns fios de cabeloestarem caídos desalinhadamente sobre a sua testa e rosto era de umagraciosidade sem par.

Quando Yasutaka aproximou-se, a fim de lhe tomar as mãos,sentiu o perfume do incenso que a sua roupa exalava. “Tão tarde danoite, quem sois e onde ides?”, indagou Yasutaka. “Vou até Nishinokyôa chamado de uma certa pessoa”, respondeu a jovenzinha. “Ao invésde irdes à casa dessa pessoa, vinde comigo para a minha casa”, pro-pôs Yasutaka, ao que respondeu a jovenzinha, com toda graciosidade:“Nem mesmo sei quem sois!” Assim conversando, adentraram o PortalInbumon. Foi então, que Yasutaka pensou: “Ouvi dizer que emBurakuin, existe uma raposa que vive a ludibriar os homens. Não se-ria esta mulher a tal raposa? Vou pregar-lhe um susto, para testá-la. Ofato de ela não mostrar nem um pouco o rosto é estranho!” Assim,tomando a manga de sua roupa, disse-lhe: “Ficai aqui um instante.Tenho algo para vos dizer.” A jovenzinha escondeu-se por trás doleque, mostrando-se envergonhada. Diante disso, Yasutaka, gritando:“Sou na verdade um salteador. Passai suas vestes!”, desatou a faixado seu kariginu , desvestiu um dos ombros, desembainhou uma longaadaga gélida e encostou-a na jovenzinha. E dizendo, “Corto-vos agarganta! Passai-me as vestes!”, segurou-a pelos cabelos e encostou-a na coluna, com a adaga encostada em seu pescoço. No mesmo ins-tante, a jovenzinha soltou uma urina com um cheiro extremamente de-

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sagradável. Quando Yasutaka afrouxou o seu braço, devido ao susto,a jovenzinha tomou imediatamente a forma de uma raposa, saiu corren-do pelo portal, regougando e fugiu para o norte, pela avenida Ômiya.Yasutaka , irritado e desconsolado pensou: “Não a matei, pensandoque talvez pudesse ser de fato um ser humano. Ah, se soubesse, eu ateria matado com certeza!”, mas nada mais podia fazer.

Depois desse dia, dirigiu-se várias vezes a Uchinodôri, tanto dedia, quanto de noite, mas nunca mais encontrou a raposa que, pelojeito, aprendera, de vez, a lição. A raposa viu a morte de perto, por terse transformado numa bela jovem e tentado ludibriar Yasutaka. Assimsendo, as pessoas, quando se encontram sozinhas em ermos descam-pados, não devem se dirigir levianamente às pessoas, mesmo tratando-se de uma linda mulher. Essa história mostra que Yasutaka não foiludibriado, devido à sua sensatez. Conta-se que assim foi dito.

Embora o local do encontro com o ser sobrenatural (Praça dos Pi-nheiros, nos recintos do Palácio Imperial) e a noite de lua clara sejam iguaisà situação apresentada no história anterior, a presente narrativa trata dofracasso de um ser sobrenatural em ludibriar o homem ( = vitória do homemsobre a raposa).

Segundo a crença japonesa, a raposa é tida como a mensageira dadivindade Inari, ligada às festividades de plantação e colheita do arroz. Poroutro lado, existe a crença de que a raposa pode tomar o corpo do homemou ainda transformar-se no próprio homem ou objetos , para ludibriar osseres humanos. Na sua transformação em seres humanos, a tendência ge-ral é a de transformar-se em jovens mulheres, como no caso do tomo XXVII.

No primeiro parágrafo da narrativa em questão, encontramos o per-sonagem, Harima no Yasutaka, apresentado como um guarda do Konoefu,Quartel-General da Segurança do Palácio, filho de Sadamasa, um oficial daguarda palaciana. Embora o nome de Sadamasa conste nos registros histó-ricos, nada há sobre Yasutaka. De qualquer forma, a narrativa refere-se àépoca em que Yasutaka, ainda jovem, servia a Fujiwara no Kaneie (929 -990), um poderoso político do século X. Durante a permanência de Kaneiena residência imperial, Yasutaka resolve ir até à própria casa que ficava nolado oeste de Heiankyô. Alta noite, sai desacompanhado já que não conse-gue encontrar seus subordinados. Iluminado pela luz do luar, vê à sua frentea figura de uma jovenzinha, quando alcança a Praça dos Pinheiros, localiza-da na parte oeste da residência imperial, onde havia uma área deserta. Tra-ta-se de uma cena que vai causar ao leitor um estranhamento, na medidaem que temos uma jovenzinha, longe de casa, às altas horas da noite.

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A jovenzinha é descrita como bela e bem trajada. Encontra-se traja-da com a veste casual própria da sua faixa etária denominada akome so-breposta, sendo a de baixo em “tom violeta escuro e textura bastante lus-trosa e a de cima, um belo brocado de seda num violeta mais suave.”

Desde que no século VII (603), o Príncipe Shôtoku instituiu os “dozegraus burocráticos”, medida que visava acabar com a hereditariedade doscargos e selecionar os funcionários, conforme a capacidade individual, osquais eram diferenciados pela cor de seu kanmuri (um adorno da cabeça)e suas vestes, a cor violeta mantém a tradição de ser uma cor nobre e fina,pois era a cor atribuída ao grau superior.

Lembrando o trecho da obra Makurano Sôshi (O Livro de Cabe-ceira), escrita pela dama da Corte Sei Shônagon, nos fins do século X, onde,por vários momentos, ela explana sobre o que considera ideal, temos comrelação à cor:

O séquito do Senhor Regente Conselheiro, a sua peregrinaçãoao santuário Kasuga. Tecido cor de violeta. Tudo que tiver a cor viole-ta é magnífico. Seja flor, seja linha, seja papel. ( 92 Coisas magníficas)

Quanto à beleza da jovem, a narrativa segue os moldes das narrati-vas clássicas da época Heian, quando se enfatizava, não tanto a belezafísica em si, mas o conjunto harmônico que incluía, entre outras coisas, opendor literário (conhecimento da poesia clássica waka) e musical, domí-nio das regras de etiqueta. Uma das partes físicas mais destacadas refere-se ao cabelo, que deveria ser longo (normalmente alcançando o chão), ne-gro e liso. Na presente narrativa, embora não se detalhe sobre o cabelo dajovenzinha, o fato de “alguns fios de cabelo estarem caídos desalinhadamentesobre a sua testa e rosto” é tido como algo indescritivelmente gracioso.

Dessa forma, o primeiro parágrafo apresenta as circunstâncias doencontro entre Yasutaka e a bela jovenzinha.

No segundo parágrafo, onde temos a aproximação entre Yasutaka ea jovenzinha, encontramos mais um elemento de sedução que vem reforçaro fascínio da jovenzinha: o perfume de sua roupa. Cabe lembrar que, nostempos antigos, havia o costume de se perfumar as roupas com o incenso.Normalmente, queimava-se o incenso num defumador que era coberto comuma espécie de cesto, sobre o qual se estendia a roupa para que ficasseperfumada com o aroma do incenso. Os incensos preparados com resinasvegetais eram, muitas vezes, combinados uns com os outros para a aquisi-ção de diversas fragrâncias prontamente reconhecidas por aquele que fos-se conhecedor do kodô (“caminho da fragrância”).

Desse modo, o encontro que parecia caminhar para um final feliz, vai

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no parágrafo seguinte, tomar rumo inesperado, coerentemente com o fatode que, tratando-se de encontro entre um homem e um ser sobrenatural, aunião seria impossível. Ao lembrar-se do boato que corria sobre a existên-cia de uma raposa, no interior do palácio imperial, Yasutaka, como um guar-da palaciano, coloca-se, imediatamente, na posição de defesa e conseguedesmascarar a raposa, fingindo ser um salteador, muito freqüente na épocade decadência de Heiankyô e muito temido pela população. A raposa des-mascarada e derrotada bate em retirada e desaparece para sempre.

Diferentemente da narrativa anterior, encontramos, aqui, a vitória dohomem sobre o ente sobrenatural. A vitória é atribuída essencialmente àsensatez de Yasutaka que não se deixou ludibriar pelos encantos da jovenzinha( = raposa).

Assim, podemos dizer que, embora exista uma determinada tendên-cia de este ou aquele ser sobrenatural mostrar-se mais ou menos destrutivoque o outro, percebemos também nesse tomo XXVII, a mesma coerênciaencontrada na obra Konjaku Monogatarishû como um todo, no que serefere à preocupação de não enfocar apenas um dos aspectos de um fato,mas destacar o seu caráter multiforme. Acreditamos que não foi ato gratui-to o compilador realizar uma exaustiva classificação que, de certo modo,busca apresentar ao homem a totalidade daquilo que se conhece ou daquiloque se comenta pelo mundo afora. As narrativas extraordinárias do tomoXXVII são uma parte desse imenso universo, onde o homem ora sai ileso,ora pode até perder a própria vida. Cada narrativa enfoca um aspecto davida, sobre o qual o leitor é levado a refletir, a questionar ou até mesmo adivagar.

Como uma obra surgida numa época de intensa transformação soci-al, política e cultural (declínio da nobreza e ascensão da classe guerreira), amultiplicidade de Konjaku Monogatarishû seja talvez a expressão maisnítida da conscientização de que o mundo não se resume somente na capitalHeiankyô e seus habitantes. Há o Japão e também a China e a Índia; há oimperador e os nobres, e também o lenhador, o salteador, o assassino. Há ohomem e também o animal; há as divindades e também os seres sobrenatu-rais; há o mundo em que vivemos e também o paraíso budista... É o homemdescobrindo o mundo e a si próprio.

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HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA HASSAN MASSOUDY E A ARTE DACALIGRAFIA ÁRABECALIGRAFIA ÁRABECALIGRAFIA ÁRABECALIGRAFIA ÁRABECALIGRAFIA ÁRABE11111

Aida Ramezá Hanania

Emblemática de um povo que viu no signo sua forma maior de mani-festação estética, a arte de Hassan Massoudy enraíza-se na tradição árabe,buscando incessantemente a universalidade que caracteriza a pintura con-temporânea.

Ao mirar a obra de Massoudy, a sensação primeira é a de surpreen-dente perplexidade, como se de antiga cepa, surgisse ramo novo e vigoroso,independente em seu desenvolvimento, mas inegavelmente alimentado pelaseiva ancestral (P.1).

Suas composições revelam a atitude milenar do calígrafo árabe, aomesmo tempo que o situam no patamar do mais atual dos pintoresabstracionistas. O aparente paradoxo, na verdade, dá-se pela síntese har-moniosa realizada pelo artista; síntese que atualiza o antigo e redimensionao novo, inscrevendo a caligrafia numa continuidade secular.

Perenidade e modernidade caminham juntas pela arte de Massoudy,a provar que nada será mais novo que o passado, quando sensivelmentereinterpretado pela ótica do presente.

Hassan Massoudy busca incessantemente um equilíbrio entre a fide-lidade à herança do passado e à pesquisa de caminhos novos. Por isso,volta-se de modo irremediável ao futuro, mas com a mesma intensidadecom que o faz em relação ao passado.

Àqueles que o acusam de excessiva preocupação modernista, o pró-prio artista confessou certa vez: “Estou com a caligrafia, mas, ao mesmotempo, contra ela. Tento sempre me colocar numa posição crítica emrelação ao que foi feito no passado”2. E, em outro momento, constata:“Eu diria até que é querendo-me moderno que permaneço fiel a meupassado”3.1 O presente artigo retoma, com ligeiras modificações, tema abordado na tese de livre-

docência A Caligrafia como Expressão Cultural – A Arte de Hassan Massoudy, apresenta-da por mim ao Departamento de Línguas Orientais em maio de 1995.Ao longo do texto, indicaremos, entre parêntesis, as pranchas pertinentes, contidas noAnexo que finaliza o artigo.

2 em entrevista a Alain Gorius, “Rencontre Avec Hassan Massoudy – Calligraphe et Peintre”Vision, nº 24, Paris, 1.992, p. 24.

3 Hassan Massoudy, Le Chemin d’un Calligraphe, Paris,Phébus, 1.991, p. 9.

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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.

Por vezes, aparentemente, Massoudy insurge-se contra a forma dis-ciplinada, descobrindo pelo arrojo do gesto e por seu envolvimento emocio-nal, uma forma nova, única, que pode provir do destaque de uma única letraou de uma palavra, às vezes incompreensível no emaranhado dos traços.Entretanto, letra e palavra procedem sempre de uma frase que não-raro seconstitui no pedestal do signo total, da peça artística, em estilotradicionalíssimo (inúmeras vezes representado pelo kufi), desnudando-lheum sentido e satisfazendo, assim, um princípio que é essencial para o calígrafoárabe, o da função social da arte, definida fundamentalmente pela convic-ção de que “os mestres do cálamo, por toda parte, sempre devem per-manecer como servidores do verbo”4. Aliás, como bem lembra Aziza, “osartistas árabes opõem-se de maneira absoluta à doutrina da arte pelaarte”, postura que, acredita, “parece ter suas raízes nos princípios bási-cos que regem o universo mental muçulmano (...) As conquistas políti-cas do Profeta que viu o triunfo de sua doutrina – continua o autor –levaram o Islão a um pensamento cheio de positividade histórica. Dondea constante preocupação de utilidade (grifo nosso) que não só os artis-tas, mas também os pensadores sempre reivindicaram para legitimarsuas produções. Esta preocupação, os artistas plásticos mantéminalterada no seio de seu ato criador”5.

Dividido entre o Oriente e o Ocidente, Massoudy não se afasta desuas raízes fundas no deserto.6 Estas permanecem vivas e prevalecemfreqüentemente em sua concepção de mundo, de vida e sobretudo na justi-ficativa de sua arte: “O ato de caligrafar consiste em dar um sentidomais alto, senão mais puro às palavras da tribo”7.

Para Massoudy, que realiza a transgressão fundamental do artista,qual seja, a de utilizar a seiva sagrada para sua criação profana (como sesacralizando-a...), há sempre a associação da arte com um conteúdo útilque possa operar uma mudança no interior dos homens. Nesse sentido,

4 idem, ibidem, p. 12.5 M. Aziza - L’Image.et l’Islam, Paris, Albin Michel, 1.978, p.97-98.6 Fato de que tem absoluta consciência ao afirmar que “ninguém escapa a seu destino. O

Beduíno, de algum modo, continua alerta dentro de mim” - Hassan Massoudy, Le Chemin...op. cit., p. 17.

7 Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit. Desde remoto tempo pré-islâmico, o signo, aescrita, notadamente a palavra que lhe dá origem é o distintivo da tribo árabe. Recorde-sea função do poeta que enaltecia sua gente, salientando-lhe os feitos e cantando-lhe osheróis por meio de seu poema. Com o advento do Islão, o signo colocou-se, como se sabe,a serviço da fé, mas sempre e ainda hoje, não se dissocia do homem em sua dimensãoindividual e social.

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transmite-nos mensagens de paz, liberdade e dignidade (palavras muitorecorrentes em sua obra), coragem, força, amor, integração, aproxima-ção, encontro, solidariedade, convocando para tanto, autores do Orientee do Ocidente, da antigüidade e da modernidade. É o próprio artista quemesclarece:

“Quis promover a evolução da Caligrafia, mas sem ruptura. Porexemplo, se realizo gestualidade sem conteúdo, isto é uma ruptura.Então anoto (...) frases que me tocam, poemas, provérbios que meagradem. Com freqüência, o que escolho é solene (...) como o foramas frases de outrora, lapidares, fortes. De toda maneira, quandotrabalho com uma frase, é porque adiro a ela”8.

A Caligrafia enquanto escrita deve resultar em uma informação con-tida nas palavras; e, como arte, deve promover uma estética resultante deseu ordenamento. Habitualmente, a informação pode ser ofuscada pelosefeitos estéticos mas, ainda assim, a Caligrafia é uma linguagem.

A primeira percepção, ao olhar uma caligrafia é, sem dúvida, a doaspecto plástico; depois, ocorre a do sentido. Refazendo o percurso da ArteCaligráfica Árabe, observamos que o processo de apreciação vem se repe-tindo através dos séculos. Observamos também que a rigidez formal e oconteúdo hierático coexiste hoje com a concepção e escolha individual doartista que se vale – do ponto de vista formal – da grande flexibilidade daletra árabe: para estirá-la ou encurtá-la, atingindo ritmos visuais inéditosque, sugerindo ora tensão, ora calma, violência ou paz, combinam-se com amensagem conceitual almejada. Entretanto, o objetivo de valorização e deengrandecimento da palavra permanece inalterado ao longo do tempo.

Guardadas as devidas proporções, parece-nos oportuna, aqui, a apro-ximação que faz Massoudy: “A Caligrafia inscreve-se na mesma práticaesotérica da linguagem que os mestres sufis ilustrarão na poesia. Nãose tratava de esconder a verdade aos olhos do ignorante mas, antes,de aumentar a carga de verdade contida numa sentença, de fazer di-zer à frase mais do que diria em uma leitura ordinária, de acrescentarao sentido manifesto a aura de um sentido mais elevado – e de incitaro adepto a elevar-se à mesma altura”9.

8 Cf. entrevista a Jocelyne Laabi, – “Hassan Massoudy Calligraphe – La Main Fertile”,Kalima, Maroc, Mars, 1988.

9 Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 12.

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HANANIA, Aida Ramezá. HASSAN MASSOUDY E A ARTE DA CALIGRAFIA ÁRABE.

Como bem define Lilas Voglimacci10, “a densidade de uma obra éa mais importante das noções”.

Quanto mais diversificados forem os níveis de percepção que pro-porciona, tanto maior a densidade da Caligrafia, da obra completa, do signoresultante do equilíbrio de forma e espaço, do ritmo, da constatação do sen-tido (básico e subjacente) das palavras.

Sobre a interpretação dos níveis, a partir dos quais se pode analisaruma obra de arte caligráfica, o próprio artista convoca-nos a atenção para ofato de que “a significação de um texto é uma coisa, sua caligrafia éoutra; às vezes, as duas estão intimamente ligadas. A Caligrafia não ésó a fixação de um texto, mas também uma composição abstrata queexprime uma concepção de mundo”11.

A composição está, pois, intimamente ligada ao saber e ao interior doartista. Espiritualista, o artista árabe busca a essência do que quer transmi-tir, a totalidade de uma expressão única, de um mundo particular tambémúnico. É compreensível, a partir dessa relação fundamental, que o artistaacompanhe sua época, que a interprete e avalie seu próprio envolvimentocom a visão que ela proporciona.

“Porque o calígrafo habita sua arte – diz Massoudy – ele se im-plica em sua gestualidade. Voa com a leveza de uma letra ou carrega opeso de outra. A expressão, para ele, pode ser um grande momento deliberdade. Ele urra o que tem a dizer e libera suas palavras”12.

Nesse sentido, o signo abstrato propõe a ampla realização, porqueconvida o espectador da obra de arte a dar uma resposta, a liberar suasemoções e sentimentos. Não se apóia na figuração do real que pré-estabe-lece uma resposta.

“A imagem de Miquelângelo ou da televisão – intervém Massoudy– é perfeita, mas, num dado momento, ela nos satura; é preciso procu-rar a evasão, o sonho13 num mundo que não se explica por inteiro,onde se deve fabricar e liberar as imagens”14.

10 Cahier Parl’ Image - (4), caderno-base de exposição de Hassan Massoudy e Djamel Farès.11 Hassan Massoudy, Calligraphe, Paris, Flammarion, 1.986, p. 27.12 idem, ibidem, p. 101.13 A profunda convicção do Oriente de que “a vida é um sonho” (cf. Gabriel Bounoure)

explicita, de certo modo, a afirmação de Massoudy e vê-se corroborada por Pierre Robin:“O sonho é em poucas palavras, sinal de alerta, despertar, desprendimento do sono denossa existência larvar; escape, talvez, ou ao menos, esperança de um escape para averdadeira vida” – cf. Hanania, Aida R. – “Sonho e realidade no teatro de Georges Schehadé”- Revista de Estudos Árabes, Ano II, nº 3, op. cit., p. 56.

14 Cf. entrevista concedida a Alain Gorius, op. cit., p.25.

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Em honra à majestade do signo, Hassan Massoudy promove a levezae a imponência, atingindo a simplicidade e a gravidade, as mesmas caracte-rísticas que no deserto – invadido permanentemente pela ausência e pelasolidão – consagraram o signo abstrato como única e preciosa referência domundo. Perfeita, ademais, porque não submetida à ilusão do sensível.

“O artista muçulmano (...) sabe que a fidelidade à percepção dossentidos confunde-se de certa forma com a traição dos sentidos (...)O sonho do calígrafo árabe é revelar, além da significação aparen-te, o ser secreto da palavra”15.

Estas afirmações de Massoudy, que recendem a um certo platonismo,levam-nos a examinar o conceito de arte abstrata para o árabe, explicitando-o, quando possível, pelo contraponto com o conceito ocidental16.

Ao contrário da arte abstrata ocidental que se inicia, praticamente,com o século XX, a Caligrafia é cultivada pelo árabe, desde os albores desua história. Extremamente abstrata, realiza-se em três dimensões: fonéti-ca, semântica e plástica (onde é grande sua autonomia). Como expressãode uma lei, manifestou unidade na multiplicidade.

Quanto à arte ocidental, tem Kandinsky como pioneiro e cujo precei-to básico é o “poder da emoção” que legitima a criação do artista. Não maisa figura, a representação do real. Fascinado com as possibilidades que ofe-rece a música à revelação do universo, busca na pintura, o que poderiaaproximá-lo desta relação e encontra na cor e na forma, os requisitos prin-cipais, os meios mais adequados à “necessidade interior”, os mais legítimosquanto à manifestação pictórica de uma emoção; expressando-se,pois, emdimensão exclusivamente plástica17.

Apesar dos matizes que ganha a arte abstrata em sua evolução aténossos dias, o princípio básico (seja, o afastamento da realidade objetivapara se atingir o máximo nível de emoção e de espiritualismo, isto é, derealidade subjetiva) na manifestação artística, continua a ser crucial.

Dora Vallier estabelece, com muita propriedade e simplicidade, a con-dição que dá origem à arte abstrata: “D’un côté le peintre, de l’autre laréalité. Entre eux, pour les unir, la perception. Or, l’art abstrait commenceà partir du moment où ce lien est brisé”18.

15 Hassan Massoudy, Le Chemin... op. cit., p. 11 e 12.16 Como para nós, este é um assunto meramente subsidiário, recolhemos aqui, para esse

efeito, apenas alguns pressupostos básicos de autores conhecidos nesse campo.17 cf. Kandinsky – Du Spirituel dans L’Art, Paris, Danoël, 1.954.18 L’Art Abstrait, Paris, Pluriel, 1.980, p. 281.

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E em outro momento, explica: “(...) c’est la réalité qui régit laperception. Seulement, celle-ci se trouve modifiée dans la mesure oùelle n’accepte plus le réel tel quel, mais le transpose”19.

A relação realidade/ruptura é como que o eixo da arte abstrata, im-pondo, naturalmente, para que ela se concretize, que o abandono da realida-de seja o escopo inicial do artista e não um ponto de chegada, onde a com-posição artística proporia meramente um modo de transformar a realidadeou de escondê-la.

Há uma diferença básica entre a abstração para o árabe muçulmanoe para o ocidental, embora, aparentemente, os meios de representá-la for-malmente possam ser os mesmos. Com relação à arte árabe, deve-se terem conta que a criação plástica apóia-se numa estruturação gráfica e emprecisa codificação: “Com os signos que a inspiram, o artista abstratoárabe não estabelece a mesma relação que o artista estrangeiro, paraquem o significado não coincide com o significante”20.

Encarada do ponto de vista ocidental, a mensagem artística árabeadquire relevo puramente visual. Aziza alude, para exemplificar, à conheci-da incursão que Paul Klee (1914) e antes dele, o próprio Kandinsky (1905)fizeram à Tunísia. Embevecidos com a arte islâmica, integraram seus signos“exóticos” e fascinantes a seu universo plástico, prescindindo totalmente dadimensão semântica das composições. O mesmo deu-se com Soulages quese encantou com as letras: ha, áin e alef e articulou todo um quadro comesse motivo21.

Na mesma linha de observação, um depoimento contemporâneo so-bre a arte de Massoudy salienta o impacto plástico que surpreende por suasuficiência:

“Quand on regarde les oeuvres de Hassan Massoudy, il n’importeplus de comprendre le sens des mots, on en reçoit la totalité (...)Chaque mot choisi est une référence au lexique de l’humanité”22.

Do ponto de vista árabe, a obra de arte – e, no caso, a Caligrafia –assenta-se na realidade, na medida em que o calígrafo tem a exprimir umconteúdo. Realidade que se interpõe como obstáculo entre o artista e ocálamo, constituindo-se no elemento propulsor de uma composição sempreúnica e original. É seu ponto de partida e também, o de chegada.

19 idem, ibidem, p. 281.20 Cf. M. Aziza - L’Image... op. cit., p. 79.21 idem, ibidem, p. 79.22 idem, ibidem, p. 78.

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Como diz Massoudy, “é preciso, às vezes, voltar as costas ao sen-tido, para reencontrá-lo mais longe, por caminhos que se ligam menosà razão discursiva que às do imaginário. As caligrafias que me impres-sionam são aquelas onde o sentido parece, de início, ‘esquecido’, masressurge (...) por alguma fonte inesperada. É que o calígrafo devefreqüentemente destruir a frase que lhe é confiada, para reconstruí-laà sua maneira. Mata-a, para ressuscitá-la: jogo de vida e de morte, emque o verbo em seus disfarces e metamorfoses, confessa o segredo desua essência – que é indestrutibilidade, inalterabilidade”23.

Excetuando-se, pois, os elementos que compõem a visão plástica, opercurso do artista árabe revela peculiaridades que o distanciamconceitualmente da abstração ocidental. O artista árabe persegue a realida-de verdadeira, ao abandonar a objetiva: aquela é uma realidade essencialcom raízes fundas na filosofia platônica, a quem muito deve o árabe emtermos da formação de sua mentalidade. É Massoudy quem expõe, de modoamplo, esta noção fundamental:

“Para um muçulmano, o mundo das imagens confunde-se com o dailusão: as imagens ditas ‘reais’ não são mais que o reflexo engano-so de uma Realidade maiúscula que escapa necessariamente à ar-madilha das aparências; afinal de contas, a idéia que guardamosem nós da realidade tem mais verdade que a aparência contingenteque nossos sentidos nos liberam dessa mesma realidade. Segundoesta visão, a palavra portadora da idéia, encarna a realidade maisdo que a simboliza. Sem querer levar mais adiante o paradoxo, eudiria que a figura pintada não é senão o ‘signo’ de uma realidadeque ultrapassa a representação e que, ao contrário, o signocaligrafado, encarregado de traduzir abstratamente as figuras domundo toma lugar, por sua vez, entre as figuras do mundo e por estarazão, adquire autonomia, vontade, carne”24. (P.2)

Curiosamente, o fulcro do processo criativo é o mesmo, tanto para ooriental como para o ocidental abstracionista: a emoção. Emoção contida,transformada em apelo de Deus entre os antigos calígrafos. Emoçãodescontraída e invocadora da plena e individualíssima realização do signo,entre os modernos.

23 Hassan Massoudy, Le Chemin..., op. cit, p. 138.24 idem, ibidem.

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É extremamente oportuno o depoimento de Massoudy a esse respeito:

“Antigamente, no Oriente muçulmano, o conteúdo da caligrafiaera ditado pelo sentido religioso ou imposto pelo poder político.Quando o trágico irrompia na escrita, o calígrafo não tinha queintervir para exaltar as angústias e os tormentos. Sua arte detinha-se no limiar das emoções individuais. Hoje eu me recuso a fugir aoapelo destas emoções. O drama do mundo e o de meu país singular-mente solicita, ao mesmo tempo, meu coração e meu cálamo”25.(P.3)

Conhecer a trajetória de Hassan Massoudy, percorrendo os mean-dros de uma obra emersa do Oriente e modelada pelo Ocidente, é tãoinstigante quanto obrigatório pelo relevo que apresenta entre nós uma arteautêntica e atual como há um milênio (P.4); ousada e dinâmica como seacabasse de nascer (P.5); atemporal, eterna, por atingir a sensibilidade pelohumanismo de seu pensamento e pela magnificência de seu traço.

25 idem, ibidem, p. 17.

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UM POETUM POETUM POETUM POETUM POETA DA CENA RUSSA:A DA CENA RUSSA:A DA CENA RUSSA:A DA CENA RUSSA:A DA CENA RUSSA:MEYERHOLD E O TEAMEYERHOLD E O TEAMEYERHOLD E O TEAMEYERHOLD E O TEAMEYERHOLD E O TEATRO RUSSOTRO RUSSOTRO RUSSOTRO RUSSOTRO RUSSO

DE VDE VDE VDE VDE VANGUARDAANGUARDAANGUARDAANGUARDAANGUARDA

Arlete O. Cavaliere

Até 1917, as tendências opostas do teatro russo estiveram represen-tadas por dois homens: Konstantin Stanislávski, reconhecido universalmen-te como chefe da tendência realista e psicológica, e Vsévolod Meyerhold,figura polêmica, muito discutido e desprezado pela maior parte dos críticos,mas que impressionava o público e os profissionais de teatro como um gran-de inovador que se preocupava, sobretudo, em criar um “teatro do espetá-culo”, onde a ênfase estava nos recursos externos, visuais e auditivos.

Meyerhold (1874-1942) iniciou sua carreira teatral como ator na Com-panhia criada por Nemiróvitch Dântchenko e Stanislávski em fins do séculoXIX. O Teatro Popular de Arte de Moscou (a palavra “popular” desapare-ceu anos depois) tornou-se, como se sabe, o templo do naturalismo cênico edo realismo psicológico e foi para Meyerhold uma grande escola. Mas maisdo que isso, teve importância fundamental para as inquietações estéticas deMeyerhold que o levariam a um posterior rompimento com a Companhia deStanislávski e a busca de novas vias na criação teatral. Contaminado, certa-mente, pelas novas correntes estéticas dos inícios do século XX, afirma-selogo como um antirrealista e passa a desafiar, não só através de sua práticaartística como encenador, mas também como teórico e pensador, oacademismo e o realismo-naturalismo na arte.

Vakhtangov, outro importante representante da vanguarda teatral russa,assim explicava a diferença essencial entre Meyerhold e o mestreStanislávski : “Para Meyerhold, uma representação é teatral quando oespectador não se esquece, nem por um segundo, que está no teatro e,a todo momento, tem consciência de que o ator é um homem de seuofício que está desempenhando um papel. Stanislávski exige o contrá-rio: que o espectador se esqueça que está no teatro, tornando-sesubmerso na atmosfera na qual existem os protagonistas de uma obra.”

É claro que o movimento teatral da vanguarda russa acompanhavaas últimas tendências artísticas do Ocidente e as novas correntes estéticasque desempenhavam um papel importante, sobretudo, para a renovação dasartes visuais em seu desafio ao academismo e ao naturalismo.

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Desde o início do século, Serguiéi Diáguilev (1872-1929) veicula, atra-vés de uma revista chamada “Mir Iskustva”(O mundo da Arte), o novoclima e as novas idéias de tendências artísticas como o impressionismo e,logo depois, o cubismo francês e, em menor grau, o expressionismo alemão.O grupo de “O mundo da Arte” iniciava, já nos inícios do século XX, umaverdadeira cruzada contra uma estética pragmática, materialista e criticavaabertamente uma pintura que prestava maior atenção às mensagens sociaisdo que à cor e à composição da obra.

Em todos os âmbitos das artes russas, cada vez mais se mesclavamas últimas investigações européias com uma exploração apaixonada do pas-sado nacional russo. Faziam-se, por exemplo, importantes descobertas acercado ícone russo. Esse interesse pelo passado artístico russo abriu novos hori-zontes à investigação estética e ao estudo aprofundado da arqueologia e dahistória da arte russa que se fez sentir até o período pós-revolucionário.

Todo o teatro de vanguarda russo, especialmente aquele que explodejunto à Revolução de 1917, está orientado para uma concepção abstratizanteda arte que vinha impressa também na pintura e na literatura russas dosinícios deste século.

A abstração teatral ocorreu tanto no texto dramático, quanto na lin-guagem cênica por ele modulada. Portanto, a ampla renovação que se veri-ficava nos diversos campos artísticos era como que tragada pela cena sovi-ética, numa perfeita simbiose de tendências que resultava numa profusãode novas propostas e experiências teatrais, as mais inusitadas e revolucio-nárias, segundo uma nova concepção do fenômeno teatral. Maiakóvski jáhavia escrito em 1913: “A grande transformação por nós iniciada em todosos ramos da beleza em nome da arte do amanhã, a arte dos futuristas, nãovai parar, nem pode parar, diante da porta do teatro.”

De fato, não seria exagero afirmar que todo o teatro de vanguarda doprimeiro decênio inspira-se nas invenções pictóricas com as tintas e os rit-mos do futurismo.

A primeira década da Revolução russa encontra-se, assim, sob osigno do anti-realismo no teatro e todas as tendências novas concebidas noperíodo pré-revolucionário desenvolveram-se e intensificaram-se depois de1917.

Na verdade, os artistas de vanguarda apresentam-se como represen-tantes genuínos da nova era proletária, numa combinação de extremismo naforma com uma acentuada propaganda política.

Os palcos da vanguarda exprimem com entusiasmo o ímpeto e ofervor da revolução. Mas isto não significa que todos os diretores tivessemnecessariamente compromissos políticos. Grande parte desses inovadores

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(Taírov, Granóvski, Radlov e outros) adere ao regime soviético como formaentusiasmada de experimentar novas possiblidades artísticas que poderiamdesencadear, nos palcos, o ritmo tempestuoso da revolução. Os seus acha-dos cênicos, com seus sons e luzes, aliados àqueles enredos visuais não-objetivos e que se desenvolvem através de uma série de arabescos mímicosna interpretação dos atores, pretendem, tão somente, infundir na cena sovi-ética, o espírito do grande furacão de Outubro.

Entre os anos de 1917 e 1924, qualquer teoria nova, qualquer propo-sição excêntrica, qualquer tentativa por mais estranha que pudesse parecer,encontrava sempre seguidores entusiastas. Em todas as correntes, haviasempre uma clara tendência de destruição da velha estética, pois a van-guarda interpreta a vitória do proletariado como a derrubada definitiva dorealismo e do tradicionalismo com seu “individualismo egoísta e burguês”.

Sem dúvida, o grande liberalismo dos primeiros anos da Revoluçãodeve-se à falta de uma linha teórica precisa. Desde o começo, o Partidoconsidera a transformação cultural como o resultado lógico das transforma-ções sociais e políticas. Mas há grandes divergências de opinião sobre esteproblema e, particularmente, entre os artistas e intelectuais que professamsimpatia com relação ao novo regime e se consideram seus aliados e cola-boradores.

A grande questão que se colocava era: como criar uma nova artesoviética? o que significava uma “arte verdadeiramente popular” como umdos resultados imediatos da Revolução?

A posição mais extremada foi adotada pelo grupo do Proletkult (Co-mitê Central das Organizações Culturais) que afirmava que o passado de-veria ser totalmente desprezado, para que se pudesse criar uma culturanova para o proletariado triunfante. O fato é que não sabiam exatamente oque oferecer como substituto do “velho” e, por isso, experimentavam dife-rentes direções.

No campo teatral, o Proletkult pretende substituir as velhas obrasburguesas por “espetáculos de massa” e para isso, contava com o apoio devários outros grupos de esquerda, inclusive do próprio Meyerhold que já eraconhecido por suas encenações simbolistas, mas cujo constante anseio deinovação impelia-o sempre para novas experiências e para as imensas pers-pectivas que abria a Revolução.

Esse foi um dos fenômenos mais interessantes do período: o Proletkultfoi claramente “sociológico”, lutava por um teatro de agitação e propagan-da, mas como desejava encontrar novas formas de conteúdo revolucionário,seus caminhos se cruzaram com os da vanguarda.

Todas as tendências esquerdistas em arte, nascidas e formuladas no

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CAVALIERE, Arlete O. UM POETA DA CENA RUSSA: MEYERHOLD E O TEATRO RUSSO DE VANGUARDA.

período pré-revolucionário, receberam novo ímpeto da Revolução e flores-ceram, de modo espantoso, principalmente entre 1918 e 1923 e ainda de-pois. Os anos da NEP (Nova Política Econômica) entre 1922 e 1928 tambémfavoreceram a liberdade das artes, a experimentação e a excentricidade.

Somente no final da década de 20, quando uma nova ofensiva emtodos os terrenos marcou a consolidação e o endurecimento do governo, avanguarda foi combatida e finalmente destruída por métodos policiais.

Os grupos que mais influíram no Proletkult e em outras formaçõesrevolucionárias durante a primeira década do regime soviético foram, semdúvida alguma, os cubistas, os cubo-futuristas, e por fim, os construtivistas.

Todo um período do teatro de vanguarda viveu sob o signo doconstrutivismo. Se a maior parte dos cubo-futuristas e grupos afins se incli-navam fortemente para o elemento urbano, a civilização da velocidade edas máquinas, exaltando o cinema como a forma artística mais sintonizadacom a precisão e a tecnologia moderna, os construtivistas retomam essasidéias depois de 1918, radicalizando o objetivo de fazer uma arte que fosse“filho harmonioso da cultura industrial”, compartilhando, assim, com as as-pirações industriais da sociedade soviética nascente. A arte tornar-se-iaconstrução de objetos, elaboração técnica de materiais, aproximando-se dasformas do artesanato, da experiência operária.

O construtivismo na Rússia tem sido considerado como um desenvol-vimento conseqüente do cubo-futurismo e das tendências pictóricas de van-guarda, e seu triunfo no campo do teatro foi uma das suas mais importantescontribuições.

Meyerhold figura também aqui como o diretor teatral que melhorsoube explorar as possibilidades da cena construtivista. Com efeito, não sepode compreender uma certa fase do trabalho teatral de Meyerhold sem oconstrutivismo. Da mesma forma que sem ambos não se pode pensar adramaturgia de Maiakóvski. A própria direção cinematográfica de Eisensteindeve muito a essa espécie de cálculo algébrico com que os construtivistaspretendiam estruturar suas obras de arte, seja literatura, pintura, arquiteturaou escultura.

O centro de gravidade do construtivismo passa a ser a revista LEF,“Liév Front Iskustv” (Frente Esquerda das Artes), fundada por Maiakóvskiem 1923. A LEF se propõe a tomar parte ativa no desenvolvimento dasociedade soviética, criando novas formas para a arte inspiradas na técnicae no industrialismo.

Meyerhold tinha sido nomeado em 1920 como chefe do Departa-mento Teatral do Comissariado de Educação e havia lançado o movimento“Outubro Teatral” onde proclamara : “chegou o momento de fazer uma

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revolução no teatro e de refletir em cada representação a luta da classetrabalhadora por sua emancipação.” Mas, era claro para ele, que somenteformas novas poderiam cumprir essa tarefa e a idéia foi aceita com entusi-asmo por seus jovens discípulos. Sua principal preocupação, nesse momen-to, foi a de dar vida a um teatro diretamente empenhado nas polêmicaspolíticas. Um teatro que refletisse as idéias do comunismo com o mesmorealce dos comícios e cartazes. Mas é bom frisar que, como os cubo-futu-ristas, a tendência política de seu teatro nunca impediu a experimentaçãoformal, pois, para ele, os acontecimentos de Outubro certamente valorizari-am as experiências mais inusitadas, sem reprimir a liberdade do artista naescolha dos meios e nas invenções.

Assim, o diretor russo, ao deixar as sutilezas estéticas da era simbo-lista, passa de modo apaixonado às extravagâncias irreverentes dos futuris-tas e empreende no campo do espetáculo uma ação análoga à que Maiakóvskidesenvolve no âmbito literário. Na verdade, assim como Stanislávski encon-trara nas peças de A.Tchékhov um terreno propício para suas investiga-ções, também Meyerhold experimentou muitas de suas propostas teatraisapoiado na dramaturgia de Maiakóvski.

O primeiro trabalho comum entre os dois marcou a história do teatrosoviético: “Mistério-Bufo”causou acesas polêmicas entre os críticos que,diante da radicalidade tanto do texto, quanto da encenação, afirmavam queo trabalho não era apropriado às massas operárias. Aliás, essa será a acu-sação que acompanhará tanto Meyerhold como Maiakóvski até seus últi-mos dias, assim como tantos outros artistas da vanguarda russa : o de seremininteligíveis paras as massas.

O fato é que essas “extravagâncias futurísticas” elevavam a lingua-gem do palco e a direção teatral a graus de experimentação jamais imagina-dos na cena soviética.

Os antigos telões pintados, o decorativismo excessivo e supérfluoforam substituídos, no palco, por armações abstratas, andaimes, escadasgiratórias, encaixes, enfim, todo um aparato cênico que aludia ao triunfo damáquina com suas engrenagens e dispositivos mecânicos, símbolo de umtempo veloz e extravagante.

Meyerhold, servindo-se desse novo espaço, investiga também um novosistema para a interpretação do ator. Os tablados e andaimes da cenaconstrutivista servem de base para a exploração do virtuosismo cinético deum novo ator. A teoria da “biomecânica” oferece, ao invés de “emoçõesverdadeiras”, um conjunto de saltos, flexões, simulações, golpes, enfim, todauma linguagem corporal que pretende substituir o ator da intuição, do“perejivánie” (da experiência interior) por um ator-ginasta, um ator-acroba-

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ta que, em última análise, simbolizaria, com seus dotes físicos, o homemideal da época.

A premissa de Meyerhold era que a verdade das relações e da con-duta humana, a essência do homem se expressa não por palavras, mas porgestos, passos, olhares, ações. Dizia: “A muda eloqüência do corpo podefazer milagres e a palavra não é mais que um bordado sobre o tecidodo movimento”.

A biomecânica de Meyerhold que coloca os atores, vestidos commacacões de trabalho, girando por entre as peças daqueles dispositivos cê-nicos, aproxima, certamente, o teatro das cadências da produção e o ator,numa exatidão extremada de movimentos, assume o aspecto de um operá-rio diante das máquinas.

Mas a agilidade dos atores de Meyerhold impedia-os de caírem numcerto esquematismo de gestos como se fossem bonecos vazios. A esserigoroso abstratismo tanto da biomecânica quanto do construtivismo, junta-va-se uma teatralidade repleta de humor “clownesco”, onde os atores, comobufões da commedia dell’arte, pareciam improvisar truques, surpresas epiruetas.

Na verdade, essa alegre comicidade repleta de brincadeiras que lem-brava os teatros de feira com suas cambalhotas, perseguições e arlequinadas,nunca desapareceu dos espetáculos de Meyerhold e sempre fez parte dasinvestigações estéticas do diretor, mesmo em muitos dos espetáculos ante-riores à Revolução. Isso explica também o seu desejo, principalmente nosanos que se seguiram à Revolução, de transferir o teatro a espaços abertos,às praças públicas e chegar, enfim, a um espetáculo “extra-teatral”, isto é,com a abolição da cena, do cenário e dos figurinos, os atores, a peça e suarepresentação poderiam ser substituídos por um jogo livre de trabalhadoresque consagrariam uma parte de seu tempo livre a um jogo teatral improvisa-do no próprio local de trabalho e num cenário inventado por eles.

É claro que todas essas experiências provocaram aferradas discus-sões sobre o futuro da arte teatral e calorosos debates se realizaram entãocontra ou a favor da nova direção teatral. Maiakóvski participou de nume-rosos debates, onde se colocava em defesa dos trabalhos de Meyerhold. Eo próprio encenador, muitas vezes, teria que ir a público fazer a defesa desuas propostas estéticas.

É preciso imaginar também a atmosfera de excitação e aventura quereinava durante aqueles anos pós-revolucionários. A miséria e a devasta-ção que assolaram a Rússia com a gerra civil não impediam as centenas denovas empresas teatrais e de grupos amadores que surgiram por todo oterritório soviético. Até 1927, havia 24.000 círculos teatrais. As escolas dra-

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máticas estavam inundadas de alunos. Enquanto os clubes de trabalhadorese camponeses promoviam o movimento amador, os grupos maisintelectualizados das grandes cidades repetiam os lemas futuristas ou doProletkult, aclamavam Meyerhold como líder mais representativo do teatrorusso e faziam toda espécie de experimentos para encontrar a linguagemteatral adequada à nova sociedade. O interesse pelo teatro parecia epidêmi-co. Os teatros atraíam enormes auditórios e o mesmo acontecia com osgrupos dramáticos e as plataformas cênicas improvisadas

É claro que a distribuição gratuita de entradas entre trabalhadores esoldados era um fator importante, mas, certamente, isso se aliava ao desejode diversão naqueles duros tempos de fome e miséria, quando o teatro ofe-recia alguma forma de canalização de energias. Havia, sem dúvida, comoque uma explosão do instinto criador, um desejo de auto-expressão e a mul-tiplicação de atividades artísticas, o que explica o aparecimento de gruposde teatro nas fábricas, nas aldeias, no Exército e na Marinha Vermelha.

No entanto, dentro dessa febril atmosfera, quando nada parecia de-masiado radical ou impossível e as artes se orientavam por uma livre expe-rimentação de formas e estilos, forças hostis também se uniam como resis-tência a este amplo movimento. Aquela multidão popular e os auditóriosmaciços levavam a determinados setores do Partido, a questão do repertó-rio e do nível das representações teatrais. Os setores mais ortodoxos nãoestavam tão interessados em encontrar uma nova forma artística revolucio-nária, mas, antes de tudo, em utilizar o teatro como plataforma política ecomo meio de “ilustração” do povo. Por isso, estavam perfeitamente satis-feitos com o realismo e não lhes interessavam as inovações de Maiakósvski,Taírov ou Meyerhold. O choque entre as diferentes tendências era inevitá-vel, mas só se tornou agudo em fins da década de 20. Nos primeiros dezanos da revolução, os mais frutíferos e coloridos, a vanguarda ocupou umaposição dominante e seu chefe universalmente reconhecido foi, sem dúvidaalguma, Meyerhold que teve a liberdade para promover e realizar os proje-tos mais extravagantes.

Apesar da oposição a toda espécie de formalismos da vanguarda apartir de 1923 e dos violentos ataques de certas facções da imprensa, aposição de Meyerhold era muito forte. Além de possuir uma grande popula-ridade entre a juventude, contava também com importantes defensores dentrodo próprio governo, entre os quais o próprio Lunatchárski, o Comissário daInstrução Pública.

Nos anos mais auspiciosos de sua diversificada carreira artística,Meyerhold ocupou-se da montagem de clássicos da dramaturgia russa.Respondia, assim, ao slogan “Voltar a Ostróvski!” que Lunatchárski havia

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lançado com o objetivo de resolver o decantado problema do repertório aser levado por esse novo teatro que surgia.

Muitos diretores dispuseram-se a reelaborar as velhas comédias doséculo XIX em tom moderno. E no entanto, não ocorria exatamente umretorno aos clássicos, mas uma tentativa de aplicar também à dramaturgiado passado os novos procedimentos artísticos da vanguarda, mostrando, soba ótica do presente, autores vinculados à tradição acadêmica dos teatrosimperiais.

Não só Meyerhold, mas também Eisenstein, Kózintzev e Traubergcausaram muita indignação com seus espetáculos que eram classificadoscomo uma “deformação dos clássicos”, um “arbitrário” retalhamento e umadecomposição das obras dramáticas de Ostróvski, Gógol e Griboiédov, masque resultavam em verdadeiras restaurações baseadas, muitas vezes, emminuciosas pesquisas histórico-filológicas. Dissecavam-se os textos do sé-culo passado como se fossem objetos de um quadro cubista, desmontando-os em pedaços, como faziam os lingüistas do “Opoiaz”(Sociedade de Estu-do da Linguagem Poética) em suas análises estruturais.

Apesar de terem sido tachadas de “deturpações sacrílegas dos clás-sicos”, essas reconstituições correspondiam ao gosto da época e estavamem voga entre todos os diretores da vanguarda que, com aquelas bizarrascolagens, entremeadas de números circenses e expedientes do music-hall,pretendiam fazer eco às circunstâncias da época.

Meyerhold projetava nessa época, por exemplo, realizar o que eledenominava “Kinofikátsia tiatra”, isto é, adaptar o teatro à sintaxe do cine-ma. Foi o que ele empreendeu com a montagem de “Liés” (A Floresta) deOstróvski ou de “ Revizor” (O Inspetor Geral ) de Gógol, onde a habitualsubdivisão em atos longos foi substituída pela fragmentação do texto emquadro/episódios que se sucediam com ritmo rápido e dinâmico, como queimitando a linguagem cinematográfica. Além disso, entre os anos de 1922 e1928, o interesse pelo Ocidente era ainda muito grande e os intercâmbiosculturais com a Europa e a América sintonizavam as artes com a tendência“urbanista”. Meyerhold e toda a vanguarda inspiravam-se nesse chamado“urbanismo” para, mesmo que fosse para retratar a desilusão moral e adecadência da cultura burguesa, tingir seus espetáculos com os tons de umcerto americanismo, do fox-trot, do cinema e do romance policial que em-prestavam à cena russa as imagens febris e sedutoras das metrópoles oci-dentais com seus cabarés e suas figuras noturnas e misteriosas.

Em vários espetáculos, como por exemplo em “Óziero Liul”( O LagoLiul)) de Faikó ou em “D.E.” (“Daióch Ievrópu” - Dê-nos a Europa),Meyerhold exibirá vultos estranhos movimentando-se pelos tablados

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construtivistas com uma mímica convulsiva, ao som do “jazz” e dos sonsestridentes do “corrupto” Ocidente. Desfilavam, assim, diante do públicosoviético, com uma rapidez cinematográfica, a moda e as danças da época,o “charleston” e o smoking dos cavalheiros que simbolizavam uma Europaem declínio, mas refinada e elegante.

A tudo isso deve-se acrescentar aquela comicidade “clownesca”,achados e procedimentos da comédia popular que imprimiam aos espetácu-los um clima audacioso e excêntrico.

Chegou-se até mesmo à criação de um movimento chamado“excentrismo” (“ekstzentrism”), a partir da publicação em 1922 de umalmanaque com o mesmo nome, onde alguns diretores expunham as tesesde um credo teatral que transformaria a cena numa dinâmica fragmentaçãodesconexa e numa seqüência de “truques fulminantes”. Quanto ao ator, oalmanaque pregava um movimento mecanizado: “o ator não tem sapatos,mas rodas, não tem máscara, mas um nariz que acende e as corcundas quesurgem de repente, as barrigas que incham, as perucas vermelhas que searrepiam na cabeça dos clowns são o fundamento do traje cênico moder-no”.

Tudo isto nos leva diretamente ao campo futurístico e não há comonegar que o excentrismo provinha claramente das fórmulas de Marinetti.Também Eisenstein, desligando-se cada vez mais do teatro “figurativo”,chegava à sua “montagem de atrações” e à idéia futurista de criar um espe-táculo não-objetivo, fundado na extravagância e no movimento puro. A idéiade um espetáculo transformar-se numa montagem livre de atrações autôno-mas, escolhidas ao acaso, tinha, certamente, muito que ver com a idéia deum teatro agressivo que irritasse o público e que já fora expressa pelo poetaitaliano em seus manifestos de 1915.

É oportuno lembrar que Eisenstein foi discípulo e profundo admiradordo mestre Meyerhold, tendo freqüentado, em 1922, os seus cursos de dire-ção e assimilado então, a biomecânica e o construtivismo.

E, sem dúvida, ambos os diretores compartilhavam da proposta futu-rista de que o teatro deveria colaborar com a destruição das obras-primasimortais, “plagiando-as, parodiando-as, apresentando-as de qualquer manei-ra, sem aparato e sem compunção, como um número qualquer de atração”.

Não é difícil perceber que todo o programa da vanguarda era anima-do por esse espírito irreverente e alegre que dava aos espetáculos a aparên-cia de um caleidoscópio vertiginoso, onde as extravagâncias mais variadasuniam-se como que ao acaso num jogo incessante de armadilhas, bufonadas,canções de café-concerto, exercícios de prestidigitação e procedimentoscircenses. O que havia de comum entre esses diretores era uma espécie de

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aversão polêmica por todos os aspectos da arte burguesa de orientaçãopsicológica e a proposta de substituir o teatro literário por um gênero deespetáculo repleto de números extravagantes que sujeitassem o espectadora uma ação sensorial ou psicofísica.

Ao mesmo tempo, como vimos, todas essas manifestações da vida eda arte ocidental foram condenadas oficialmente como típicas da corrupçãoe decadência capitalista e isso acabava por criar uma situação ambíguacada vez que se representava a vida européia ou norte-americana no palco.

Em sua última fase, o humor e a sátira de Meyerhold dirigiam-se, cadavez mais, no sentido de estigmatizar a estreiteza mental e a limitação própriasdo burocratismo que, então, se intensificava depois da morte de Lenin.

O entusiasmo e a alegria, tão típicos das criações de Meyerhold nosanos revolucionários começavam a desaparecer. O mecanismo alegre do“Outubro Teatral” parecia muito distante e um novo estado de ânimo iria serefletir nos seus últimos espetáculos. Quase negando o dinamismo daquelasfiguras irreverentes dos trabalhos anteriores, surge agora, no palco, umafixidez alucinada. Como que aludindo à burocracia soviética e ao temor queo regime agora inspirava em vários setores da sociedade soviética, os seusespetáculos apresentavam uma atmosfera um tanto sombria, enigmática,substituindo o alegre tumulto anterior por figuras, cujos movimentos indolen-tes, divididos por pausas longuíssimas numa espécie de pantomima em ritmoretardado, lembravam personagens de Hoffman, imagens diabólicas e gro-tescas que pareciam saídas de um delírio. Certas cenas, por exemplo, deseu espetáculo “O Inspetor Geral” de 1926, impregnadas de uma atmosferade alucinação, apresentavam os intérpretes como fantoches típicos do sim-bolismo, vultos misteriosos e assustadores que criavam a imagem demonía-ca da loucura no caráter tragi-cômico daquele ajuntamento de autômatos esonâmbulos, em que se haviam transformado os heróis gogolianos.

Aquela vida fervilhante de outrora povoava-se, agora, de bonecosestranhos, um tanto entorpecidos e que darão conformação também aospersonagens satíricos das últimas comédias de Maiakóvski. Em “OPercevejo”de 1928 e “Os Banhos” de 1929, tanto o dramaturgo, quanto odiretor, mostrariam que, após o entusiasmo retumbante dos primeiros anos,só lhes restava oferecer ao público aquelas sátiras grotescas e um tantoamargas que, ao mesmo tempo que soavam como um desafio polêmico aorealismo e ao mau gosto que então começavam a se impor na cena soviéti-ca, marcavam o final de um rico período de experimentalismo nas artes queparecia se evaporar agora junto às utopias das vanguardas.

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A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DEA IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DEA IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DEA IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DEA IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DEGOGHTEN PGOGHTEN PGOGHTEN PGOGHTEN PGOGHTEN PARA A CULARA A CULARA A CULARA A CULARA A CULTURA ARMÊNIATURA ARMÊNIATURA ARMÊNIATURA ARMÊNIATURA ARMÊNIA

Yêda de Moraes Camargo

As origens da literatura armênia perdem-se no tempo. É importanteobservar que as criações literárias armênias, de que se tem informação,foram transmitidas pela expressão oral, bem antes de Cristo. O que se sabeé que, no milênio que antecedeu a cristianização (301 d.C.), existiu e flores-ceu uma criatividade literária em versos, transmitidas de geração a geração,de teor mitológico, histórico- épico, dramático e, também, humorístico.

Foi nos Cantões de Goghten (ou Gogh), província de Siunik, da regiãode Shirak, próximo da atual Erevan, que as famílias ali moradoras, por meiode CANTOS, expressavam, transmitiam, propagavam os feitos dos heróisda época, as façanhas dos reis; divulgavam o folclore e os mitos do paganis-mo cristão. Historicamente, ficaram conhecidos como os CANTOS DEGOGHTEN. Essa província era famosa pelos seus campos férteis, produ-ção vinícola e costumes alegres de seus habitantes. Estes, plantavam e co-lhiam os alimentos para sua sobrevivências embalados pelos cantos. Bardoseram cantores ou trovadores que utilizavam um instrumento de corda –bambir ou bandir – semelhante a violas.

É desconhecida a autoria desses cantos, assim como a época de ela-boração.

De acordo com a divisão dos períodos históricos armênios, pode-seinferir que, na época dos Cantos de Goghten, muitas escritas eram utiliza-das.

Observe a divisão estabelecida:

1º) Pré- histórico: desde cerca do 5º milênio até o séc. X a.C.;2º) Pré- armênio: do séc. X a VI d.C.;3º) Armênio: do séc. VI a. C. ao séc. V d.C.

É exatamente no período armênio (3º) que a nação se utiliza dessesdiversos tipos de escritas, as quais eram mal adaptadas à fonética do idiomaarmênio e sujeitas a influências externas. Diante disto, revelam-se meiosinadequados para criar uma literatura de alcance nacional, tampouco paratransmitir algo em idioma genuíno dos antepassados.

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CAMARGO,Yêda de Moraes. A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.

Foi graças a alguns historiadores armênios medievais que preciososversos de poemas de um passado distante foram recolhidos, analisados epreservados, obtendo uma coletânea de 24 cantos. Estes cantos são consi-derados vestígios literários da antigüidade, fragmentos poéticos de cunhonarrativo, transmitidos pelos trovadores (ashugh) e compilados, após algunsséculos, por estudiosos.

Movsés Khorenatsi, tido como Pai da Historiografia Armênia, do séc.V d.C., juntou os excertos, organizou-os, conservando a evocação aos mi-tos do passado e heróis da cultura armênia tão presentes na transmissãooral, abrigados pela memória popular.

Outros estudiosos colaboraram intensamente: séc. IV- Agathângelo(historiador); séc. VII – Hovanês Mamikonian (historiador); séc. X – GrigorMakistros (gramático); séc.V – Faustos Biuzandatsi ( historiador); séc. V-Eliseu ( religioso); séc.VII – Sebeu (historiador); séc.VII – Anania Shirakatsi( matemático- astrólogo- geógrafo).

Movsés de Khoren cita, uma única vez, o nome de um certo“VRUYR”– homem sábio e poeta – como se supõe ser o autor dessescantos, devido a ter sido responsável pelos negócios da corte de muitos deseus amos (A.C.): o rei Artashes; a rainha Satenik; Artavazd I ( filho deSatenik e Artashes, sucessor deste); Simbat- um velho general.

Os cantos foram classificados em 2 grupos, a saber: grupo A- trans-mitidos por título e enredo; grupo B- fragmentos em versos.

Os recolhedores referem-se aos cantos, pelo seu tom, como: TSUTSK(exibição): alegre, executado por jovens de ambos os sexos e;MRMUNTCHK: sepulcrais, recitativos em voz baixa, executado por vir-gens cantadoras e mulheres profissionais, carpideiras. As dançascomplementavam.

Pode-se perceber, nos cantos, o registro da mentalidade e tradiçõesdo povo armênio, seus costumes, suas crenças, assim como a evidência decontatos com outros povos antigos, pelo teor mítico comum (gregos, persas,hindus, assírios), o que lhes confere valor documental como fonte de infor-mação histórica e cultural, ao lado dos aspectos lingüístico e literário.1

GRUPO A: Cantos transmitidos por títulos e enredo

1 “Krapai”: língua dos textos, em uso, aproximadamente, até o séc. X d.C., começando daíem diante a transformar-se em “armênio moderno”, atravessando uma fase intermediária(armênio médio). Atualmente, o clássico é reservado para os ofícios eclesiásticos.Armênio moderno- Ashkarapar: língua do povo. A partir do séc. X, alcançando sua perfei-ção literária na segunda metade do séc. XIX.

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CANTO DE HACANTO DE HACANTO DE HACANTO DE HACANTO DE HAYKYKYKYKYK: Este canto, de acordo com SAPSEZIAN,exalta o herói ancestral HAYK, descendente direto de Noé, que teria co-mandado vitoriosamente a chegada dos pioneiros armênios ao planalto doArarat. HAYK quer dizer armênios. Em termos geográficos, esta forma ésinônimo de Hayastan ( hay + a + stan: lugar dos armênios).

É, portanto, um mito e tradicional fundador do povo armênio que,dizem, chamaria a si mesmo de “hay”.

Esta lenda é a mais importante relativa à origem da nação, transmiti-da por bardos, em que a Assíria quer a submissão do povo armênio.

LENDA: “Hayk, descendente de Jafet, filho de Noé, revolta-secontra o titã Bel, chefe e semi-deus da Assíria. Isto ocorre devido àdestruição da Torre de Babel. Bel invade as possessões armênias, ondeestavam estabelecidos familiares e descendentes de Hayk. Convida-osà submissão, contudo, o grupo tribal não aceita tal imposição. Haykjunta sua família, mais de 300 pessoas e os leva para a “Terra deArarat”, tomando posse da localidade. Aproveita a ocasião e distribuiterras aos familiares e descendentes, estendendo, portanto, a área desua jurisdição. Fundou cidades, entre elas, a noroeste, Haykashen edenominou o país de Hayk.

Bel percebe a desobediência de Hayk e de seu povo e envia oseu filho, com uma mensagem, intimando-o a obedecer suas ordens.Hayk recusa-se. Então, Bel, juntando suas forças, marcha contra osarmênios. O reencontro deu-se junto ao Lago de Van lago de águasalgada onde houve uma luta épica entre dois exércitos de titãs. Haykera um excelente besteiro: ataca uma seta em Bel e esta atravessa opeito dele.

Com a morte do comandante do exército assírio, os soldadosfogem.”

ANÁLISE: Esta lenda é a narração das origens do povo armênio ede sua terra. Estes, vindos do continente europeu (Balcãs), nos fins do 2ºmilênio a.C., permaneceram algum tempo nas fronteiras do desaparecidoImpério Hitita e, no séc VI a.C., chegam às terras do Reino de Urartu. Aí,mesclam-se com os autóctones urartus e hays, recebendo, nessa época, onome de Hayastan pelos seus habitantes e Armênia pelos estrangeiros.Não se sabe pormenorizar quem foram os comandantes da migração dos“armênios”. Pode ser que um deles tenha sido Hayk.

2) CANTO DE ARAMCANTO DE ARAMCANTO DE ARAMCANTO DE ARAMCANTO DE ARAM: O príncipe Aram é filho de Harma,neto de Hayk e seu sucessor, na época em que os armênios, vindos do

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CAMARGO,Yêda de Moraes. A IMPORTÂNCIA DOS CANTOS DE GOGHTEN PARA A CULTURA ARMÊNIA.

oeste, encontravam-se nos arredores da Capadócia. No séc. VI a.C., aArmênia defendia suas fronteiras contra os medos ( ao sudeste) e assírios(ao sul).

Era o 7º chefe da Armênia e como seu nome era “Aram”, levanta-sea hipótese dele ser o 1º rei de Urartu, pois foi um Aram quem combateuvitoriosamente contra Salmanasar II da Assíria (860- 825 a.C.).

Movsés de Khoren menciona acerca de Aram:“Dele narram-se mui-tas proezas em feitos de armas”; “nas lendas de avós”; “nos contos trans-mitidos pelos cantos bardos”; “contam-se os feitos de sua bravura”, etc.Advém daí que Aram preferia morrer em defesa de sua pátria a vê-lapisoteada pelos estrangeiros. Foi ele quem expandiu as fronteiras da Armêniaem todas as direções, obrigando todos os habitantes do país a estudar oidioma armênio.

LENDA: “Aram luta contra os descendentes do gigante Titã, damitologia grega, em Cesaréia- na Capadócia. Luta, também, contraBra-Sham, descendentes dos gigantes e semi-deus da Assíria entre asmontanhas de Korduk e a planície da Assíria. Guerreia, também, con-tra “Payapis- o Gigante”, um tirano que dominava terras entre os maresPôntico e o Oceânico, expulsando-o para uma ilha no mar Asiático.”

ANÁLISE: Tanto o canto “1” quanto o canto “2” mostram vestígiosdo folclore e da mitologia dos gregos e assírios que os urartu-armênios trou-xeram para as suas lendas, no período de sua instituição em reino já conso-lidado na Terra de Ararat.

3) CANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELOCANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELOCANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELOCANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELOCANTO DE SEMÍRAMIS E DE ARA- O BELO:Ara, no séc. VI, era filho e sucessor de Aram no trono da Armênia.Semíramis era rainha da Assíria-Babilônia, mulher do rei Nino, um mito do2º milênio a.C. Surge, no canto, também em outra época, em 823-810a.C.,como mulher do rei assírio Shanshi-Adad V.

Esta é uma das lendas mais populares do folclore armênio.

LENDA: “Semíramis, adúltera, recebe informações sobre a bele-za de Ara. Fica muito atraída e pretende seduzi-lo de qualquer forma.Contudo, enquanto seu marido estivesse vivo, isso seria impossível.Nino tinha intenção de exterminar todo o povo armênio com o objetivode vingar a morte de Bel, seu ancestral.

Após algum tempo, Nino desaparece. Não se tem dados sobre semorreu ou se fugiu para a ilha de Creta. Agora, portanto, Semíramissente-se em liberdade. Envia emissários, com muitos presentes e pro-

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messas, à Armênia. O intuito era convidar o rei da Armênia, Ara, paraque fosse ao seu encontro, em Nínive, capital da Assíria. Caso ele con-cordasse, poderia, inclusive, apossar-se do trono da Assíria- Babilônia.Em contrapartida, também poderia vir satisfazer os seus desejos e, emseguida, regressar ao seu país com muita paz e presentes. Mas, aspropostas foram rejeitadas.

Semíramis fica furiosa e invade a Armênia, com todo o seu exér-cito. Dá ordem ao general para atacar o acampamento das forças deAra, porém, deveria poupar a vida do rei. As tropas de Ara são derro-tadas e ele, mortalmente ferido, cai no campo de batalha. O corpo deAra foi procurado, entretanto, só encontrado pelo exército assírio elevado ao terraço do palácio real. Os armênios voltam a atacar aAssíria, objetivando vingar a morte de seu rei.Semíramis, preocupadacom o ataque, transmite-lhes a mensagem de que deu ordens aos seusdeuses para que lambessem o corpo de Ara e, assim, restituir-lhe-iam avida. Embora sua feitiçaria não tenha vingado, o corpo do rei armêniocomeçou a entrar em decomposição e, às ocultas, foi enterrado.Com afinalidade de apresentar uma solução ao povo armênio, prepara umde seus pretendentes, disfarça-o como se fosse Ara e divulga a mensa-gem: “Os deuses, lambendo as feridas de Ara, restituíram-lhe a vida e,portanto, Ara vivo, satisfez os seus desejos.”

Comprovado o reviver do rei, foram erguidas estátuas dos deu-ses, prestando-lhes homenagens e sacrifícios, já que o paganismo eraidolatrado, nessa ocasião. Os armênios viram-se convencidos, acre-ditaram na força dos deuses assírios e, assim, bateram em retirada dasterras assírias”.

ANÁLISE: Entre uma época e outra, lutas se sucederam. As guer-ras pela posse de terras eram freqüentes. Embora a lenda registre, nessaépoca, lutas entre armênios e assírios, por motivos diversos, a Armênia ex-pandia obras de grande envergadura, nos arredores do lago de Van. Foramconstruídos palácios com jardins suspensos; canais com 80 km de extensão– um aqueduto –; conjunto de templos com tesouraria e hospedaria, escava-dos nos rochedos; fortes e muralhas, com inscrições misteriosas. Incenti-vou-se a plantação de uva e pomares foram organizados.

Ainda existem, na Armênia atual, os canais, as cavernas, parte dasmuralhas e das inscrições em cuneiforme.

4) CANTO DE SANACANTO DE SANACANTO DE SANACANTO DE SANACANTO DE SANATRUKTRUKTRUKTRUKTRUK: Sanatruk é de filiação des-conhecida. A tradição atribui-lhe o martírio do apóstolo Tadeu e da própriafilha, Sandukht. Foi rei da Armênia entre os anos de 75 a 110. Contudo,

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recebe expressões elogiosas por parte dos historiadores estrangeiros, quan-to à sua ação militar, rigor na justiça, físico bem cuidado e seu comporta-mento levando-o à comparação do melhor grego ou romano.

Construiu a cidade de Nisibis, ao norte da Mesopotâmia, erguendosua estátua. Também foi esculpida, na mão dessa estátua, a única peça dedinheiro que lhe sobrara do tesouro público.

LENDA: Num dia de tempestade e neve, quando criança de colo,viajava com sua mãe e ama-de-leite, atravessando as passagens dasmontanhas de Korduk (Corduena), no sul do país. Por três dias, aama-de-leite, com ele no colo, ficou enterrada sob a neve, até quedeuses enviam-lhe uma fera estranha, de cor branca, que os salva.

ANÁLISE: O historiador narra que a fera estranha era um cão bran-co que junto a homens do grupo de salvação estavam a sua busca, a mandoda corte.

5) CANTO DE YERWCANTO DE YERWCANTO DE YERWCANTO DE YERWCANTO DE YERWANDANDANDANDAND: A tradição literária expõe que,nos séculos IV e III a.C., YERWAND foi rei (36 a.C.) ou governador (37 a.C.) da Armênia. Ele construiu YERWANDASHAD e YERWANDAKERT(= construção de YERWAND); e BAGARAN (= cidade dos deuses); par-ques de caça e diversões; obras de canalização.

LENDA: “ Sua mãe era uma mulher fortíssima e gigante. Nin-guém ousava desposá-la. Mas ... dá a luz (em 40 a.C.), por uniõesilícitas, a dois meninos: YERWAND e YERWAZ. YERWAND participa dacorte de Sanatruk e, após a sua morte, sucede-o. Indica seu irmão-YERWAZ- para o cargo de “Sumo Sacerdote”, em 41 a.C.

Em seu olhar havia uma excepcional força mágica. Quando demau humor, os seus funcionários diziam que seu olhar era tão forteque vinha carregado com a força dos deuses e, mesmo cobertos osrostos com tábuas de sílex, estas se rompiam somente com a intensida-de da energia de seu olhar, sempre que desejasse punir alguém”.

6) CANTO DE MAM KUN:CANTO DE MAM KUN:CANTO DE MAM KUN:CANTO DE MAM KUN:CANTO DE MAM KUN: Mam Kun é de família chi-nesa e tornou-se ancestral da mais renomada família armênia:MAMIKONIAN. Os MAMIKONIAN auxiliaram a Armênia, com de-dicação e bravura, pois na condição de comandantes do exército, ocor-rendo a vacância do trono, eles assumiam a direção da nação.

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LENDA: “MAM KUN, chinês, ministro do rei Arbok, é incriminadopor Bel Tokh- irmão do rei. E, MAM KUN, com toda sua família, deixao país, refugiando-se na corte da Pérsia. A China solicita sua extradi-ção. É acolhido na Pérsia e faz um juramento pelo Sol, salvaguardan-do sua vida. Sua extradição é autorizada. MAM KUN encontra asilojunto ao rei Tridat III da Armênia, em fins do séc. III d.C. Demonstrafidelidade e agradecimento ao rei da Armênia. Luta juntamente com aArmênia e vence os atacantes. Um decreto real promove a família MAMKUN à classe de nobreza, destinando-lhe o cargo de Ministro da Cor-te, recebendo vastas extensões de terras. A grafia de seu nome foialterada de MAM KUN para MAMKUNIAN e consagrado, mais tarde,para MAMIKONIAN. Pouco se sabe a partir desse episódio, sabe-seapenas que a família dos MAMIKONIAN permaneceu, até o séc. IX,respeitada pelos feitos e foi consagrada pela tradição”.

GRUPO B:

1) CANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VAHAGNAHAGNAHAGNAHAGNAHAGN (Mitológico- nascimento do deusVahagn)Este canto é considerado o mais belo entre os demais, por suas figu-

ras de linguagem e poeticidade. É dedicado ao deus do Fogo, do Sol e daForça. A imaginação e o universo unem-se para homenagear Vahagn, hajavisto o momento culminante que é o seu nascimento, simbolizando-o como odeus “protetor” da antiga Armênia, sendo invocado pelos reis armênios, emtempos de guerra.

Vahagn é filho de Tigran I. Tem como irmãos Bab e Tiran.

Canta-se a lenda:

“Paria o céu, Saíam chamas do oco do cálamoparia a Terra, e através das chamasparia o Mar purpúreo, corria um menino louro;também o cálamo, no mar, paria tinha cabelos de fogo,Saía fumaça do oco do cálamo, tinha barbas de chamas

e seus olhos eram sóis”.

ANÁLISE: Este poema trata do nascimento de Vahagn no qual par-ticipa toda a natureza, com dores de parto, analogamente a uma mulherparturiente. A natureza funciona como mãe, personificada pela figura lite-

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rária ou poética do animismo: o céu, a terra, o mar, as plantas, elementosnaturais, adquirem atributos humanos. Em um outro sentido, o ser humano,comparado às características do fogo, do sol, metaforicamente, ganha adimensão de um semi-deus, considerando-se a conexão do natural e dosobrenatural. Observa-se, também, a presença do elemento pagão compon-do o canto mítico.Vahagn, na história, é conhecido como herói; na religiãopagã, um semi-deus e na poesia, um personagem mítico. O povo pedia-lheamparo nos perigos. Em situações como o susto dos dragões (cobras, feras,monstros), Vahagn lutava e sagrava-se campeão. Como semi-deus, come-tia até “roubo”, que foi convertido em lenda, conhecida como “Via Láctea”:“ Nas lendas de nossos avós, conta-se que num inverno dos mais duros,Vahagn, um de nossos ancestrais, foi roubar palhas gramíneas dos curraisde Bar Sham, ancestral da Assíria. O fato consagrou-se, mais tarde, pelofenômeno celestial da Via Láctea.”

Entende-se que Vahagn, ao voltar da Assíria por via espacial, deixoucair no caminho parte das palhas roubadas que, por estarem brancas, devi-do à neve, deixaram luminosas as pegadas de sua passagem.

Os elementos fundamentais do universo são bem pronunciados: océu, a terra e o mar. As dores do parto são interligadas a estes elementos,marcando o nascimento do herói-redentor, aquele que conduz o combatevitorioso contra as forças do mal (os Vishaps) e cuja potência é a do astro-rei, cuja morada terrestre são os altos picos da Armênia.Assim se manifesta:

O céu com dores de partoA terra com dores de partoTambém com dores de parto o mar purpúreocom as mesmas dores agitam-se no mar as varas rubrasVaras que fumegamQue se consomem em chamasChamas ardentes de onde surge fulgurante jovemCabeleira de fogoBarbas incandescentesOlhos de sol radiante.

2) CANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VCANTO DE VARDKES – O JOARDKES – O JOARDKES – O JOARDKES – O JOARDKES – O JOVEM.VEM.VEM.VEM.VEM. Filho de umadas muitas “mulheres” da corte (séc. III- II a.C.); acredita-se que pertençaà nobreza armênia, talvez à linhagem real.

Seu nome aparece junto ao de Vagarsh (116- 140), quando se men-ciona sobre a construção de Vagarshavan ( cidadezinha de Vagarsh).

“O rei Vagarsh construiu muralhas em torno da renomada cidadezi-nha de Vardkes, sobre o rio Kasaga, cantada nas lendas. ” Assim:

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“Vardkes, o jovem, perto da cidae de Artimedda região de Touha, às marges do rio Kasagh,deixando sua moradia, para pedirrumou, a mão da filhaao longo do rio Kasaga, da corte do rei Yerwand.”para a colina de Shresh,

As localidades citadas- Touha, Kasaga, Shreshi, Artimed,Vardkesavan- pertencem à atual República da Armênia. O que levou Vardkesde Touha às margens do rio Kosagh, onde construiu uma cidadela –Vardkesavan – era a vontade de morar perto do futuro sogro, rei Yerwand,para pedir a mão de sua filha em casamento. Vardkesavan, mais tarde, comfortes e muralhas, transforma-se em Vagarshshabad ( cidade de Vagarsh) econhecida como Cidade- Nova. Torna-se capital do país, substituindoArtashad que fora quase que destruída totalmente.

3) CANTO DE TORK – O GIGANTECANTO DE TORK – O GIGANTECANTO DE TORK – O GIGANTECANTO DE TORK – O GIGANTECANTO DE TORK – O GIGANTE. Foi um dos netosdo patriarca Hayk. Khorenatsi descreve-o: homem de aspecto horrendo egigantesco, grosseiro, com nariz chato, olhar astuto e maligno e de físicoforte e alto. Devido à sua feiura, recebeu o apelido de anguegh ( = nãobonito). Eis um fragmento do canto:

“Arranca blocos de sílex outros pequenos;maciços, com as unhas os aplaina,sem rachaduras, grava nelesquebra-os em fragmentos, figuras de águias.”uns grandes

Inúmeras lendas e histórias foram a ele destinadas. No entanto,Korenatsi, ao apresentar este canto, menciona: “Lendas e nada mais quelendas. Mas para que indignar-se com isto? Deixe-se a gente falar; pois,pela grandeza de sua força, o gigante merece essas lendas.”

4) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTASHES IASHES IASHES IASHES IASHES I (Vitória sobre os alanos)Artashes I reinou nos anos 190 a 161 a.C. É o personagem de desta-

que da história armênia por diversos motivos: liberta o país das influênciasgreco-selêucida e persa-aquemênida; reconquista a soberania política-territorial do país; resgata regiões perdidas; impõe o uso de um mesmo idio-ma em todo o território de sua jurisdição; estimula a agricultura; incentiva,ao mesmo tempo, a cultura grega; funda a cidade de Artashad, com tem-plos, teatros, jardins, pomares, parque de caça e diversões.

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Os seus feitos são revestidos de uma aura quase mitológica. É difícildistingüir por essa literatura épica que apresenta raízes ainda mais profun-das no tempo, adentrando por eras lendárias, o histórico do mítico.

O ditado popular que comprova tais feitos é:“Nos tempos de Artashesnão havia, na Armênia, um palmo de terra inculta, quer nos campos, quernas montanhas.”

Os cantos de 4 a 8 referem-se exclusivamente ao monarca; os de 9a 15 à sua família e seus colaboradores.

Acredita-se que esta coletânea somente foi possível pela presençana corte do inteligente poeta VRUYR- assessor do rei.

Canto: Apelo à paz

“Digo-te, nobre Artashes Não convém a um povo valente,que venceste mandar matar por vingançaa valorosa nação dos alanos, os herdeiros da heróica naçãoacede aos pedidos ou, mantendo-os em cativeiro,da filha de olhos lindos, tratá-los a par dos escravos,dos alanos, gerando eterna inimizadee liberta o jovem entre ambas as bravas nações’.

Alanos: povo eslavo que em bravas hordas invadiu a Gália(séc. V) e a Península Hispânica,sendo aniquilado pelos visigodos.

ANÁLISE: Ocorre uma expedição dos alanos, ao norte da Armênia.Artashes comanda as tropas e os expulsa além do rio Kura e os armêniosficam na margem sul. Nesse combate, o filho do rei dos alanos é preso pelosarmênios. Pedem a paz a Artashes com a libertação do herdeiro alano;contudo, o rei a recusa. Então, além-rio, mediante intérpretes, a irmã doprisioneiro apela a Artashes, como no canto.

5) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTASHES ( I ) ASHES ( I ) ASHES ( I ) ASHES ( I ) ASHES ( I ) (pedido de casamento)

“O que para compensaro nobre Artashes pode oferecer, a mão da nobre virgem,por muitos mil milhares filha dos alanos?”.e, mais ainda,

O rei Artashes ficou encantado com a inteligência e também com abeleza da irmã do herdeiro preso.

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Chama seu velho general, Simbat, e expressa-lhe o desejo de pedi-laem casamento, garantindo aos alanos a paz e a libertação do herdeiro. Simbatatravessa o rio, pede a mão da filha dos alanos, Satenik, ao seu rei e acor-dam a paz, tão desejada. Artashes recompensa em dinheiro e presentes osfuturos sogros.

6) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I ) (casamento “à oriental”)

“Montou, e lançou: a correnteo valente rei Artashes de couro vermelho,o seu fogoso corcel preto; de argolas douradas,tirou a corrente sobre a filha dos alanos;de couro vermelho, lançou-a por detrás,de argolas douradas; magoando com forçaatravessou o rio, as costas de delgada virgem,impetuoso com águia nos céus, e voltou rápido ao seu quartel”.

ANÁLISE: Artashes cumpre com o prometido: leva muito ouro, cou-ro vermelho e laica. Munido da arma tradicional – as correntes – vai aoacampamento dos alanos e conduz pessoalmente a noiva Satenik para a suacasa.

Este fragmento registra tanto o momento histórico como o cultural.A poesia lembra o estilo de novelas de cavalaria, sobressaltando a

valentia e o determinismo altivo e nobre do seu cavalo, conectando-os àdignidade do seu montador.

A agressividade explicita como o herói conquista a princesa alana, adama inimiga, e dela se apropria: reflete a virilidade do personagem masculi-no, contrastando com a submissão do personagem feminino. A corrente decouro representa a posse, o poder. As argolas de ouro são valorizadas pelasmulheres orientais, pois é um metal precioso usado em noivado e casamento.

7) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I )ASHES ( I ) (núpcias)

“ Chovia ouro chovia pérolasno casamento de Artashes; nas núpcias de Satenik”.

ANÁLISE: O fragmento traduz o quanto havia de luxo e de pompano casamento real. Esse esbanjamento de certa forma é intencional e hámuito de cultural. Na época, em casamentos ou à chegada do casal no

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templo, distribuíam moedas aos presentes, pérolas à chegada da rainha, naporta de sua residência.

O luxo e a pompa dos casamentos reais, caracterizado pelo exagerode uso das pedras preciosas, bem como da simbologia contida no ouro (po-der) e pérolas (a relação com o puro, com a virgindade da mulher e até, arespeito da quantidade numerosa de filhos como votos de felicidade deseja-dos aos noivos).

8) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTASHESASHESASHESASHESASHES ( I ) (tempos felizes:)

“Quem me daria a fumaça das chaminés, Nos tocávamos trombetasa alvorada de Navasard, e tambores,o galopar dos veados, segundo os costumes do

galopar dos veados. nossos reis”.

ANÁLISE: Este excerto parece mais com um “adeus” do monarca,em momentos de lembranças, àqueles que antecedem sua morte, motivadospor doença. A nação tributou-lhe um enterro solene, com muita pompa, emcarros reais. O féretro era todo de ouro; o trono e a cama eram de seda; omanto estendido no corpo era recamado de muito ouro. Em sua cabeça,fora colocada uma coroa dourada e, em seus pés, armas, também douradas.

Ao seu redor estavam seus filhos, familiares, oficiais de arma, chefesde famílias, destacamentos das regiões e divisões do exército nacional, ar-mados como em combate.À frente, marchavam os trombeiros com trombe-tas em bronze; atrás, virgens cantadoras de preto e carpideiras e, no final, amultidão. No túmulo, ocorreram imolações suicidas de mulheres e servido-res do monarca.

9) CANTO DE SA9) CANTO DE SA9) CANTO DE SA9) CANTO DE SA9) CANTO DE SATENIKTENIKTENIKTENIKTENIK (namoro)

“Satenik com ervas mágicas,a Primeira Dama, escondidas no travesseiro,almeja ardentemente seduzir Argavan”.e procura,

ANÁLISE: Satenik era primeira mulher de Artashes I e mãe do her-deiro, Artavazd I.

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Este fragmento relaciona-se aos namoros de Satenik com os chama-dos “descendentes dos dragões”, ou seja, com os descendentes do reiAstíages – da Média – que moravam próximos ao Ararat. Khorenatsi inter-preta o nome “Astíages” como “dragão”, no idioma dos medos e, conse-qüentemente, a expressão “descendentes dos dragões” é empregada pelosfamiliares e descendentes do rei Astíages. Os medos eram elementosperturbadores e tinham como chefe um certo Argavan. Era com este chefe( o dragão) o idílio de Satenik.

Diz-se de uma conspiração, no “Templo dos Dragões”, contra a vidado rei Artashes e, também, contra a vida do herdeiro Artavazd. A rainha-mãe era cortejada e como elo entre armênios e medos, Satenik bem quedeveria servir de instrumento para uma dupla traição político-sentimental.

10) CANTO DE SACANTO DE SACANTO DE SACANTO DE SACANTO DE SATENIKTENIKTENIKTENIKTENIK (conspiração- esclarecimento datrama)

“Certa vez contra quem tramavamArgavan deu um grande banquete no Templo dos Dragões”.em homenagem ao rei Artashes,

ANÁLISE: Argavan -chefe medo- utilizando-se da rainha Satenik,conspira contra a corte armênia. Os “descendentes dos dragões” preparamuma pseudo-comemoração, destinada ao rei Artashes. Era uma trama queenvolvia jogo político e emocional.

11) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTAAAAAVVVVVAZDAZDAZDAZDAZD (infância)

“Os dragões o menino Artavazd,da corte de Astíages, colocando um gênio demoníacoroubaram de seu berço no seu lugar”.

ANÁLISE: Filho de Satenik e de Artashes I. Desde o dia de seunascimento, mostrou-se com gênio aventureiro. Como comandante do 4ºdestacamento oriental, reprimiu os desordeiros, colonos medos, que cons-piravam contra Artashes I e contra ele mesmo, Artavazd. Preservava araiva no peito contra os “descendentes dos dragões” desde que soube quetal povo pretendia matá-lo quando era criança de colo.Sucedeu ao trono,espalhando ciúmes e desordens na corte, por causa das mulheres. Os dra-gões medos conviviam com mulheres envolvidas por mil e uma feitiçarias.

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12) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTAAAAAVVVVVAZDAZDAZDAZDAZD ( I ) (fundação de Marakert)

“Artavazd, da cidade de Artashad,filho do nobre Artashes, foi para a região dos Medosnão encontrando lugar e construiu lá,para sua residência, nas planícies de Sharour,na hora da fundação a cidade de Marakert“.

Artashes I escolheu um dos mais atraentes locais para a construçãoda capital, Artashad: na confluência dos rios Arax e Medzamor, rodeado deflorestas de “cedro”. Ficava no sopé do monte Ararat, reduto dos colonosmedos ( os “descendentes dos dragões”), seus inimigos jurados. Em lutacom os armênios, todos foram eliminados, inclusive seu chefe Argavan.

Artavazd constrói, ali, a cidade Marakert. O nome Marakert estáligado aos medos porque “medo” é “mar” e, portanto, Marakert quer dizer“ construção ou cidade dos medos”. Assim, Artavazd demarca o triste fimde um povoado, pela construção daquela cidade. Se pretendesse deixar ummarco seu, denominaria a cidade de Artakert.

13) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTAAAAAVVVVVAZDAZDAZDAZDAZD ( I ) (no enterro do pai)

“Na hora de partir, poderei eulevaste contigo todo o mundo; sobre ruínas reinar?”.como

ANÁLISE: Neste canto, Artavazd sente-se só, vazio no trono, poisherdou a cidade em ruínas. Invoca ao pai a situação calamitosa da cidade,apresentando-se “sem saída” para governar.

14) CANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTCANTO DE ARTAAAAAVVVVVAZDAZDAZDAZDAZD ( I ) (resposta do pai)

“Quando cavalgares para caçar do monte Massis;nas veredas do soberbo monte Masis, aí fiquesque te levem os bravos espíritos sem ver a luz”.para os abismos

ANÁLISE: Os bravos espíritos, mencionados neste fragmento, sãoos maus gênios que, na crença popular, moravam nas grutas profundas domonte Masis. Artashes I amaldiçoa, do túmulo, o filho, mostrando toda suaindignação pela postura de Artavazd.

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Este sofre um incidente, numa caça com javalis, próxima das planíci-es do monte Masis. Precipitou-se num abismo, perdendo-se ali, sem deixarvestígio algum.

Segundo as gerações, Artavazd continua vivo, cativo numa gruta epreso por cadeias. Dois de seus cães lambem dia e noite suas cadeias, como intuito de libertá-lo. Ao sair, será o fim do mundo. O estrondo das batidasnas bigornas, pelos ferreiros, faz engrossarem as cadeias, evitando a chega-da de tal dia.

15) CANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBAT BAGRAT BAGRAT BAGRAT BAGRAT BAGRATUNTUNTUNTUNTUN (o velho ge-neral)

“A bravura condizia com seu porte; Cuidadoso por temperamentocondecoravam-no para consigo e para com todos;as virtudes de sua alma, mais que todos se distinguindoa nobreza de suas cãs. pelo dom deQual drakontikon vencer nos feitos de armas”.brilhavam-lhe nos olhosmanchas de sangue entre ouro e pérolas.

Filho de Biurat, da família dos Bagratidas.

Simbat sempre serviu o trono com bravura e lealdade.

Drakontikon: bracelete em forma de serpente, ornado de pedras preciosas.

Em três momentos, apresenta-se como “salvador”: no reinado deSanatruk, é instrutor do herdeiro Artashes I, salvando-o do morticínio deseus irmãos; quando Yerwand é derrotado e deixa o trono a Artashes, estesolicita ao grande general que peça a mão da filha dos alanos em casamen-to; a Armênia é atacada por romanos e Simbat salva a vida de Artavazd,expulsando os romanos para além das fronteiras.

16) CANTO DE TIGRAN II- O GRANDECANTO DE TIGRAN II- O GRANDECANTO DE TIGRAN II- O GRANDECANTO DE TIGRAN II- O GRANDECANTO DE TIGRAN II- O GRANDE

“Loiro, nos festins, comedimento;penugem e cabelos delicados, nos prazeres mundanos, moderação;Yerwandian Tigran mostrava mestria na arte de falar,faces ardentes, inteligência e justiça,olhos azuis; ponderação em tudo,forte e viril a constituição; para com todos,\

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alta a estatura, com venturososnobre o andar; e com humildes”.no comer e beber, sobriedade;

ANÁLISE: Tigran II reinou nos anos 95 a 55 a.C.: era o mais inteli-gente e valoroso dos reis da Armênia e o maior vulto de sua história. Todohomem de verdade, com real coragem e inteligência, desejaria ser comoele, contribuindo para a expansão das fronteiras do país. Seu império duroutanto quanto sua vida: 85 anos. Há muitas moedas em ouro, prata e bronzecom a inscrição em grego: “Tigran-rei dos reis”.

Tigran II organiza as forças de defesa do país, destinando-as aos 3 filhos:Artavazd, Zareh, Trian e ao velho general Simbat. Incentiva a cultura, tendo sábi-os gregos na corte; constrói a cidade- fortaleza de Tigranakert (= Tigranocerta),cercada de muralhas, torres e fossos de água, deslocando para ali núcleos degregos e judeus, com a finalidade de incentivar a cultura e o comércio.

17) CANTO DE TRIDACANTO DE TRIDACANTO DE TRIDACANTO DE TRIDACANTO DE TRIDAT IIIT IIIT IIIT IIIT III

“Destemido secando-lhes o leito,como o rei Tridat e intrépido, lutouque, no seu arrebatamento, com as ondas do mar”.arrasou as barragens dos rios,

ANÁLISE: Tridat foi rei da Armênia nos anos 287 a 336 d.C. Foi em301, em seu reinado, que o Cristianismo foi estabelecido como religião ofici-al de estado, com a colaboração de Gregório – o Iluminador – o apóstolo danova religião.O destino, por meio de fatalidades, aproximou o rei de Gregório.“Anak, pai de Gregório e agente da Pérsia sassânida, matou o pai de Tridat.Guardas da corte armênia recebem ordens para matar toda a família doassassino. Apenas salva-se um filho, de nome Gregório, que é enviado aCesaréia para instruir-se no Cristianismo. Tridat, ainda criança, é levadopara Roma, recebe instrução militar e se sobressai pela sua bravura.Voltaao trono do país. Demonstra sua fama guerreira e mão firme nas ações,favorecendo o país em 40 anos de relativa paz e reconstrução.O tempera-mento de Tridat, sua forma de agir, sua bravura resplandece em metáforase retóricas que inibem, simbolicamente, até as reações da Natureza, oumodificam-nas.

18) CANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBACANTO DE SIMBAT MAMIKONIANT MAMIKONIANT MAMIKONIANT MAMIKONIANT MAMIKONIAN

“Feras do Monte Varz O Urso, por esvaziar quanto comia, comeram cadáveres morreu de fome.

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e ficaram gordas. Os Abutres, por serem sôfregos,O castor comeu e engordou quedaram agachados como o Urso. e não puderam erguer-se.A Raposa ensoberbeceu-se Os Ratos, por terem transportado mais do que o Leão. demais,O Lobo estourou, de tão voraz. para os celeiros,

ficaram de pé esfolados”.

ANÁLISE: Nos séculos V a VI são travadas lutas guerrilheiras en-tre defensores armênios e atacantes persas.Hovan Mamikonian narra a“Batalha de Taron” que são lendas populares, tratadas com humor que seutiliza da fauna em lugar de personagens. Os comandantes dos armêniossão da família Mamikonian, grupo esperto em malícias guerrilheiras, culmi-nando com a derrota dos persas. É em Varazablour (monte de Varaz) queos cadáveres dos persas são empilhados. Após a vitória sobre os persas, osarmênios são recebidos com cantos e danças do povo, entre outras, a humo-rística canção, única no gênero.

CONCLUSÃOCONCLUSÃOCONCLUSÃOCONCLUSÃOCONCLUSÃO

A trajetória destes fragmentos de uma epopéia nacional sempre tes-temunhou a consciência de que um povo pode ter de si mesmo. Elaboradapor anônimos poetas de épocas diversas. As lendas voltam-se a mitos querelatam as origens do povo armênio. Os heróis, no decorrer dos tempos,consolidaram sua existência histórica: demonstrando a coletânea poética designificância nacional; refletindo as mentalidades de diferentes povos, ligan-do o passado ao presente.

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FORMAS E FORMAFORMAS E FORMAFORMAS E FORMAFORMAS E FORMAFORMAS E FORMATOS NAS ARTESTOS NAS ARTESTOS NAS ARTESTOS NAS ARTESTOS NAS ARTESPLÁSTICAS DO JAPÃOPLÁSTICAS DO JAPÃOPLÁSTICAS DO JAPÃOPLÁSTICAS DO JAPÃOPLÁSTICAS DO JAPÃO

Madalena N. Hashimoto Cordado

O presente trabalho visa deter-se em algumas especificidades for-mais das artes plásticas do Japão. Poderíamos nos debruçar sobre umainfinidade de aspectos na longa história da arquitetura de templos, monastérios,palácios, prédios governamentais, traçar a importância estética de suas in-venções formais e seus modelos exteriores. Poderíamos nos debruçar so-bre a não menos longa história das imagens tridimensionais búdicas, numaanálise estilística e de investigação filosófica das várias doutrinas introduzidasno Japão através dos tempos e teríamos também um rico panorama deformas e formatos. Ou, ainda, poderíamos tentar traçar na cerâmica dosvários períodos, a pertinência entre a forma pura dos objetos e seu momentohistórico.

Elegemos, no entanto, enfocar aqui a arte bidimensional, a qual, tam-bém complexa em sua longa história, revela uma variedade muito grandeem suas formas, formatos e temas.

Descoberta apenas no ano 47 da era Shôwa (1973), a construçãomortuária (kôfun1) de Takamatsu revelou ao mundo um aspecto pouco co-nhecido na arte da pintura: a forma mural (hekiga). A cultura da época,sofrendo grande afluxo cultural da China da dinastia T’ang, por meio demensageiros enviados especialmente à região continental hoje referente àCoréia, é visível nos traços físicos e no vestuário das três mulheres retrata-das de pé, os olhos fixos no observador.

É curioso observar que, embora se tratar de obra somente descober-ta recentemente, seu estado de conservação não é dos melhores. Isso nosindica uma primeira característica do tratamento da produção cultural japo-nesa: a cópia, ou reprodução de originais. Muitos dos templos que hoje seapresentam a nós foram reconstruídos uma, duas ou mais vezes, devido adestruição pelo fogo, terremoto ou simplesmente pelo tempo. Assim como aarquitetura foi e ainda é reconstruída seguindo o mesmo projeto original,

1 Kôfun: grande tumba mortuária. A era dessas construções vai do século III ao VII, eencontramos ainda hoje vários formatos e tamanhos: de chave, quadrado, retangular,arredondado. Takamatsu encontra-se na província de Nara e tem 16 metros de extensãopor 5 de altura e formato arredondado.

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também as pinturas e gravuras foram e ainda são reproduzidas em diferen-tes épocas por diferentes motivos. Assim, a reprodução de xilogravuras deUtamaro, por exemplo, ainda hoje é manualmente executada, e esses exem-plares devem ser considerados como gravuras originais pois sua realizaçãoainda segue o mesmo procedimento de quando o pintor as idealizou, com aressalva de que se deve estar atento para a qualidade do atelier do impres-sor atual.

Ainda da antigüidade, temos uma obra do ano de 756, era Nara noJapão, também de influência de padrões de beleza de T’ang (o estilo docabelo, a maquiagem pesada nos lábios vermelhos, o formato cheio arre-dondado do rosto, o vestuário): o biombo de seis divisões Torige Ritsujo(136 x 56 cm cada divisão), onde seis beldades são representadas, trêsdelas de pé, as outras três recostadas em rochas. Indicações mostram quehavia penas de aves grudadas nas imagens, na região do vestuário, mos-trando um curioso procedimento de colagem de elemento natural na pinturabidimensional.

Entituladas comumente de “Beldade sob a Árvore”, o que notamos, eque é importante para a nossa investigação, é que a beldade, a mulher boni-ta como pura existência, é um tema da mais remota antigüidade. A mulher,não importa em qual classe social (ou casta, se preferirem) tenha nascido,sefor bonita terá sua reputação e futuro transformados, pois os deuses apredestinaram para tal. O culto à beleza e à juventude pode ser rastreadodesde já na arte japonesa. A lendária Ono no Komachi, de beleza ímpar ehabilidade poética inigualável é, além de uma existência histórica, um arqué-tipo da cultura: se se somar à beleza natural o atributo do exercício da com-posição poética, teremos um ideal feminino que foi incansavelmente perse-guido durante o período Edo (1615-1868), na figura das gueixas e mulheresdo mundo dos prazeres.

Compreender o desenvolvimento da arte visual no Japão é também,como bem notou o estudioso Shûichi Katô2 em relação à literatura, estaratento para o fato de que um estilo ou tema ou técnica, uma vez introduzidoe assimilado no Japão, é imorredouro; quando se pensa que determinadavertente perdeu toda a vivacidade e se exploraram todas as suas possibili-dades, eis que ela renasce como uma fênix, com uma nova disposição emtemas, formas e técnicas que foram uma vez já conhecidas e apreciadas.

Uma grande contribuição da arte japonesa para o mundo, e que, da-das a fragilidade de manuseio e a privacidade necessária para usufruí-la,quase não são do conhecimento do grande público, são os rolos iluminados.

2 Shûichi Katô, em sua obra História da Literatura Japonesa.

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Originariamente um formato da China – todas as formas e formatos artísti-cos, técnicos, políticos e culturais como um todo da antigüidade ou foramimportados diretamente do continente, ou, se originados em outras terras, seencontravam já transformados pela visão chinesa –, os emakimono servi-ram a vários propósitos. Existem rolos profanos de significação puramenteestética, tais como a ilustração de romances (Genji Monogatari Emaki, eMakura no Sôshi), de narrações históricas ou folclóricas (Shigisan Engi,Eshi no Sôshi), de obras poéticas (Shokunin Uta Awase) e de romancesmilitares (Heiji Monogatari Emaki). Existem rolos profanos de uso práti-co, particularmente documentários (Moko Shurai Ekotoba – Rolos daInvasão dos Mongóis) e rolos de significação religiosa (ilustração de sutra,rolos dos enfermos, histórias dos grandes patriarcas ou fundadores de no-vas religiões, histórias de templos).

Em realidade, estamos nos referindo, em última instância, a uma dasformas primeiras do livro: os rolos, primeiramente veículo para os ideogramas,tornaram-se também veículo para desenhos e pinturas até que as imagensdispensaram a presença do texto. Tanto assim que após o declínio desseformato, o universo do qual se nutria anteriormente encontrou novo hospe-deiro na forma do otogi-zôshi, livros quase tal qual os conhecemos no oci-dente: folhas que se viram, imagens que ocupam um local e dimensão fixos.Justamente uma das características inerentes dos rolos é a temporalidadedo desenrolar-se das imagens e a possibilidade de montagem e corte ao sedesenrolá-los mais, ou menos. Além da temporalidade real do observador acontemplar o trabalho, como formato artístico a possibilidade de se relacio-nar diferentes cenas torna o rolo um meio narrativo por excelência ondetambém a descrição e a visualização do tempo e do espaço através de umaatividade física visível e tátil se perderam e se tornaram apenas virtuais coma montagem das folhas costuradas em um livro. A técnica do manuseio dosrolos, também, auxiliava no ritual de apreciação e fazia de sua fruição umaexperiência a mais. É verdade, no entanto, que a montagem em forma delivro tornou a leitura mais rápida e o manuseio mais fácil.

Os rolos ilustrados do Romance de Genji revelam características quese manterão quase que inalteradas durante muitos séculos na história dapintura japonesa: a perspectiva “olho de pássaro” de cima para baixo com aretirada do teto para se revelar os personagens em meio aos espaçosarquitetônicos dos palácios (fukinuki yatai) será utilizada com variações erecriações desde então, ora mantendo-se o teto, ora se mostrando pontosprincipais de toda uma cidade, ora iniciando-se com o vôo rasante e termi-nando com a elevação da vista. Assim também, a estilização da figura hu-mana com seus ícones de beleza sofrerá ligeiras modificações. Se a beleza

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das damas da corte de Genji respondem ao cânone “olho puxado-nariz emgancho”(hikime-kagibana) de síntese no traçado – e todas elas são igu-ais –, a exuberância das várias camadas de quimonos (e todo um complica-do sistema de combinação de cores, motivos pictóricos nas sedas e acessó-rios necessários) e a sinuosa elegância do cabelo que se alonga até o chãorevelam de modo certo suas posições sociais. O vestuário evidencia tam-bém toda uma adequação simbólica às sutis mudanças sazonais, um dostemas mais caros da poesia japonesa desde sua origem.

Obra de 1120-1140, supõe-se ter sido pintado por Fujiwara Takayoshi.Dos supostos dez rolos contendo de oitenta a noventa cenas ilustrativas doscinqüenta e quatro capítulos da obra literária, hoje somente restam dezenovecenas de treze capítulos, no Museu Tokugawa em Nagoya e no MuseuGotô de Tóquio. A utilização de pigmentos sobrepostos de tonalidades for-tes acrescidas de linhas de sumi é conhecida como técnica tsukuri-e (“pin-tura construída”). Akiyama bem analisou o uso simbólico da cor na criaçãode atmosferas, numa tentativa de corresponder à narrativa de MurasakiShikibu3, no que chamou de onna-e: pintura de gosto feminino, ou melhordizendo, pintura do mundo feminino das damas da corte de Heian, imersasem seus poemas, em seus quimonos de seda, em seus sonhos e amores4.Dessa obra memorável podemos também observar o tema pessoas-entre-quatro-paredes que vai ser uma constante futuramente, onde se mostramalguns poucos detalhes dos objetos pessoais – a casa japonesa quase nãoutiliza móveis – e certas relações entre os personagens retratados, onde anoção de privacidade não encontra lugar.

Também de uma beleza notável e definidora de padrões estéticosposteriores são os vinte e três rolos de caligrafia do Romance de Genji, ondeo papel foi ricamente decorado com motivos florais delicados, de nuvens, depássaros, de ervas, de ouro e prata, fragmentados, retalhados, esmigalhadose colados, de sutil colorido e fluida caligrafia feminina em hiragana5. Pos-teriormente, no século XVI, quando do surgimento de editoração de livros,Saga-bon, ou livros da região de Saga, o procedimento de tratamento decolagens no papel de suporte para caligrafia será ricamente explorado.

3 Murasaki Shikibu (?973?-1014?), dama da corte da Imperatriz Shôshi e filha de Fujiwara noMichinaga (966-1027).

4 Nunca é demasiado se enfatizar que o Romance de Genji foi a primeira grande obra literáriade fôlego produzida pelo Japão, e por uma mulher, e num silabário criado por elas e para elas.

5 Hiragana, silabário fonético japonês, invenção das damas da corte; chamado de onna-ji(alfabeto das mulheres), opunha-se aos ideogramas (kanji, alfabeto da dinastia Kan) impor-tados do continente, que eram ensinados aos homens. Entendemos aqui onde Akiyama seinspirou para classificar o estilo pictórico dos rolos de onna-e.

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Os rolos que se dedicam a narrar a fundação de templos e/ou de seusfundadores foram em geral encomendados pelos próprios templos e produ-zidos por monges pintores, formando um gênero em si: os engi, dentre osquais os mais famosos são os de Kitano Tenjin Engi Emaki e o ShigisanEngi Emaki. O primeiro narra a vida de Sugawara Michizane e a origem dotemplo xintoísta de Kitano Tenjin, em Quioto, produzido na primeira metadedo século XIII. As Origens Miraculosas do Monte Shigi, do século XII,narram como o monge Myôren reavivara a seita dois séculos antes. O pri-meiro rolo trata de como a tigela de arroz de Myôren se apodera do depósitocheio de arroz de um homem rico. O segundo mostra como Myôren cura oimperador Engi mandando-lhe uma deidade guardiã. No terceiro a irmã monjade Myôren o procura e descobre seu paradeiro quando se encontra emfrente ao Grande Buda de Tôdaiji. Seus três rolos são muito ricos naamostragem da vida do povo comum da época: os camponeses, alguns ani-mais, os nobres, vários detalhes arquitetônicos e de vestuário do períodoHeian tardio. O que é interessante é que, se no Romance de Genji as ilustra-ções eram cenas entremeadas de textos, aqui as imagens se desenrolamsem interrupção, numa série engenhosa de composições, o que evidencia ocaráter fluido do formato emakimono, que alcançam , nos rolos que narrama vida do monge Ippen6, uma criatividade sem par: ilustração totalmenteautônoma de qualquer texto. Outro aspecto interessante é que, se o Roman-ce de Genji mostra a vida palaciana, os rolos de narrativas religiosas mos-tram a vida do povo comum.

Ainda de fins da era Heian (794-1185) os dezessete Rolos das Festi-vidades do Ano (Nenjû Gyôji Emaki), vieram até nós através de cópia de1662 de Sumiyoshi Gokei, já que os originais foram destruídos pelo fogo. Oimportante desses rolos é que a temática, festividades sazonais, continuarásendo um motivo perpétuo para os pintores do futuro, abrangendo descri-ções do povo comum, seus hábitos, moradias, costumes e particularidades.Supõe-se que o pintor tenha sido Fujiwara Mitsunaga (ou Fujiwara Tokiwa,segundo Akiyama), membro da corte, pela acuidade na descrição da nobre-za da era Heian, em seus trajes e em sua arquitetura palaciana.

A produção de pintura budista também foi muito numerosa, tendo-seutilizado vários formatos: pintura sobre madeira, sobre seda, sobre papel,rolos verticais e horizontais, mandalas em tapeçaria e rolos verticais,retratos.Destacamos pinturas vistas como objetos devocionais, sagrados, eobjetos encarados mais didaticamente.

6 Ippen Hijiri-e, 1299, doze rolos, tinta e pigmento sobre seda, Kankikôji, Quioto. Ippen(1239-89) foi um monge itinerante que fundou a seita do Budismo da Terra Pura.

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Em suma, originando o chamado Yamato-e, “pinturas de estilo pura-mente Yamato, i.e., japonês”, o período Heian produziu sua primeira grandeobra literária narrativa Genji Monogatari, sua primeira grande coletâneapoética, Man’yôshû (Coletânea das Dez Mil Folhas) e engendrou seus maisimorredouros temas: meisho-e (imagens de locais famosos), tsukinami-e (ima-gens de costumes e hábitos) e shiki-e (imagens das estações do ano). Emtermos de arte budista, temos os Retratos dos Sete Patriarcas da Seita Shingon,datada de 805 pelo artista chinês Li Chen ou uma cópia japonesa de 824.

Uma obra muito curiosa do século XIII, do templo Kôsan-ji de Quioto,é Chôjû Giga (Representação Satírica de Animais) onde, utilizando-se ape-nas do pincel para desenhar7 animais (macacos, lebres, sapos), fez-se umaparábola humorística do mundo do sumô, da música, das competições dearco-e-flexa, dos templos mesmos. Segundo especulações de Akiyama, comoos quatro rolos não contêm nenhum texto, não têm unidade temática ouestilística, sendo, portanto, difícil atribuir-lhes se alguma intenção em parti-cular, a obra poderia ser interpretada ou como uma sátira social que indica odeclínio da aristocracia ante o levante dos samurais – há uma cena ondemacacos vestidos de samurais atacam castelos –, ou como uma representa-ção irônica do mundo clerical. De qualquer forma, ocupa um lugar ímpar naprodução dos rolos ilustrados e, pelo poder metafórico de suas imagens,capta, até hoje, a atenção de um público mais atento.

Eventos históricos encontraram também um lugar privilegiado no for-mato: os rolos que versam sobre a rebelião de Heiji (1159), hoje no Museude Boston, mostram cenas onde as curvas violentas das chamas no incêndioao palácio Sanjô, do Imperador Goshirakawa, dominam a composição, trans-mitindo um impacto psicológico muito grande no público. A representaçãodo fogo em espirais, as cores fortes, a composição em ebulição fazem deHeiji Monogatari Emaki uma obra-prima que prenuncia a era Kamakura,quando os guerreiros militares se estabeleceram a norte de Honshû e fun-daram a cidade de mesmo nome.

O chamado “realismo de Kamakura”, mais referente à escultura doque à pintura, se bem que a esta também se lhe associe, encontrou expres-são no rolo Gaki Zôshi (Rolo dos Demônios Famintos), onde se retrata ossofrimentos da grande fome de 1230 a 1232. Sem espaço para os temaslíricos das estações do ano, ou sem interesse para idéias mais transcenden-tes de um budismo mais especulativo e transcendente, o rolo retrata corposhumanos em luta contra a fome, sua decomposição física: é a vida no mun-do de Shura, abreviação de Ashiyura, deus mau e belicoso. Libelo pungente

7 Estilo chamado hakubyô-ga (“representação branca, ou limpa”).

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contra o sofrimento, esses rolos podem ser associados também a uma novabusca espiritual que culminou na introdução de um novo budismo, o da TerraPura, mais simples, de assimilação popular.

A era Kamakura, em sua busca por um novo equilíbrio social, encon-trou nas novas seitas budistas Jôdo e Zen um certo alívio espiritual e umanova vertente de produção artística: a introdução do suibokuga (“pinturascom tinta sumi e água”) pelos monges Zen por via das dinastias Song eYuan continentais do séculos XIV a XVI e das dinastias Ming e Chingdurante a era Edo. Num primeiro momento, as aguadas se concentraramsomente em temas religiosos, em retratos de observação dos patriarcasfundadores (retratos de Shinran que introduziu o Jôdo Shinshû e Hôzen, queiniciou o Jôdo, por exemplo, ou em retratos de imaginação de personagensbúdicos (várias aguadas ilustram o monge excêntrico zen Kazan, por exem-plo), ou em visões alegóricas de ensinamentos religiosos.

Os retratos que almejavam retratar com fidelidade as individualida-des foram chamado de nise-e, “pinturas semelhantes” e foram produzidasdurante o fim da era Heian e inícios de Kamakura (também na escultura);alguns foram executados diretamente de observação, como o auto-retratode Shinran, e atraíram o interesse de muitos guerreiros que também se fize-ram retratar. São imagens em corpo inteiro, estáticas, geralmente em sedamontadas em rolos verticais.

Shûichi Katô8 discute sobre as razões da individualidade nessa repre-sentação de retratos, chamando a atenção para o fato de que, na escultura,a produção foi muito maior. Segundo ele, a instabilidade política com a mu-dança do poder político da nobreza de Heian para os guerreiros de Kamakurafez com que o espírito grupal (os personagens retratados como “tipo”) seperdesse, numa busca de novo equilíbrio e afirmação de cada indivíduo emsi; assim, as novas seitas budistas, que eram uma religião comunitária, co-meçam a apelar mais para o indivíduo e sua salvação pessoal: a explicaçãodo “mecanismo de se purgar os males pessoais” da seita Jôdo Shinshû sebaseia apenas em apelar para Amida Butsu, no zen a iluminação se atingetrilhando solitariamente o caminho da meditação.

A pintura aguada introduzida por esses monges zen que tratam dire-tamente de temas doutrinários tematizou a história da iluminação de deter-minados monges ou os procedimentos para tal. O monge Mokuan, por exem-plo, produziu na metade do século XVI obras onde ilustra monges em meioa atividades cotidianas, num tratamento delicado de pincéis à maneira dopintor chinês Muxi. Rolos verticais tematizaram a doutrina Zen: o Shaka

8 No capítulo “Du Monde Réel à la Terre Pure”. In Japon - La Vie des Formes.

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descendo das Montanhas (obra do monge Gukei), a deusa Kannon vestidade branco (Gukei); as atividades zen; Monge-Costurando-sob-o-sol-da-ma-nhã (Kaô), Monge-Lendo-sob-a-luz-da-lua (Kaô), os-quatro-adormecidos(Mokuan), e também, diferentemente da China, introduz temas não direta-mente relacionados à doutrina zen, tais como bambu e pássaro (pelo mongeKaô), ou orquídeas, bambus e rochas.

Em relação à pintura Yamato-e, a introdução da aguada passa tam-bém por esse primeiro momento de “estrangeirismo”. As montanhas retra-tadas são as montanhas da China, abruptas, contrastantes, ricas em miné-rios e texturas; os rios são os rios da China, caudalosos, como o atestam aobra do monge Sôami, Shôsho Hakkei-zu, por volta de 1513, que se encon-tram em Daisen-in, templo em Quioto. Importa-se nessa época o tema das“oito vistas famosas” (hakkei); ao monge Shûbun (ca.1423-1460) do tem-plo de Shôkokuji é atribuído um par de biombos de seis divisões: As OitoVistas de Hsiao e Hsiang. É importante notar que as “vistas famosas” nãotinham o intuito de revelar apenas as peculiaridades topográficas, mas antesrevelar o aspecto búdico de sua essência; ou ser um caminho para a ilumi-nação; ou ilustrar os locais onde os grandes monges encontraram a ilumina-ção em peregrinações; ou ilustrar os locais onde os monges eremitas seinstalaram. O tema da morada do poeta ou eremita que se retira do convíviosocial em meio a montanhas e pinheiros ou bambuzais vai ser um arquétipovisual e poético dali em diante.

Não podemos deixar de citar aqui também a importância das pintu-ras-escrituras de fundo zen que produzem frutos e mais frutos: a caligrafiareveladora que é a um tempo conceito e visualidade, como por exemplo apintura em rolo vertical do monge da seita Rinzai, Hakuin (1685-1768), doideograma mu (nada, o vazio, não, a inexistência).

As pintura a aguada introduzidas pelos monges zen encontraram narepresentação das chamadas “paisagens”, ou mais apropriadamente, “mon-tanhas-e-rios”, “praias-e-pinheiros” e “vistas famosas”, seu ponto criativomais nitidamente japonês: Sesshû estudou na China de Song em 1467-9,perambulou por dez anos em sua terra natal até se fixar em Yamaguchi. Suaobra prima, do ano de 1486, Sanzui Chôkan-zu, “Rolo Comprido de dese-nhos de montanhas-e-rios”, mede 39,7 cm de altura por 15,86 metros: trata-se do rolo mais longo da pintura japonesa e retrata o tema das estaçõessazonais numa descrição sem descanso, iniciando-se no verão até atingir oinverno, mostrando, ao mesmo tempo, a adequação do homem às mudançasdo ambiente.

Uma outra obra-prima de Sesshû, Amahashi-no-date-zu, de 1502,retrata uma das três vistas mais famosas do Japão e a perspectiva nos faz

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lembrar os olhos-de-pássaro que observavam o palácio de Genji. A preocu-pação em rotular, definir, mostrar a exatidão da representação – os locaissão “etiquetados” com seus nomes – nos mostra também que a idéia de quea aguada não se presta a detalhes descritivos é uma generalização nãopertinente em nosso estudo. Por certo a “imagem sintética” da interioridadeessencial zen foi uma vertente muito difundida e ainda hoje é assim pratica-da, mas a apropriação das técnicas da aguada pelos pintores japoneses deoutras famílias, como por exemplo, a Kanô-ha e a Bunjinga (pintura dospintores literatos), transformou o meio: uma vez introduzido, o suibokugasofreu grandes transformações. As imagens singelas retratando mongesexcêntricos em nada lembram os grandes biombos em quatro ou oito divi-sões produzidos durante a era seguinte. Kanô Masanobu, pintor oficial dobakufu de Muromachi9, assim, ao juntar ao estilo Yamato-e as técnicas daaguada, japonizou de forma diferentemente de Shûbun e Sesshû a “pinturade Kan”, como era referida o suiboku da dinastia chinesa Kan.

A era Momoyama (1586-1615) foi a grande época de ouro da pinturaem grandes dimensões para decorar os grandes castelos construídos pelosnovos governantes, os samurais. A família Kanô10, fundada por Masanobu(1434-1530) encontrou na segunda geração o inovador Motonobu (1476-1559) já referido e na terceira geração o prolífico Eitoku (1543-1590), pintoroficial de Oda Nobunaga, que acrescentou ao estilo do pai as grandes di-mensões e tratamentos diferenciados para a grandiosiodade e para a meti-culosidade, num contraste eficaz de composições sintéticas e retumbantes,bem ao gosto de seus patronos.

Na produção da família Kanô se destacam os grandes temas já nos-sos conhecidos, seja das estações-sazonais, de locais-famosos, de usos-e-costumes-do-povo. O que se lhes acrescenta, nesse momento, é, por umlado, uma grandiosidade de concepção composicional e ao mesmo tempo,sem ser incoerente, uma incansável meticulosidade na descrição de cadaárea em detalhe, como por exemplo, quando Kanô Eitoku tematizou a “cida-de-e-seus-arredores” (Rakuchû-rakugai-zu). As festividades do ano, suasespecificidades, o local onde elas ocorrem, o carater físico do povo que asfreqüentam e suas atividades, a estação quando ocorrem, são temas simul-

9 Bakufu é o nome que se dá ao sistema de organização militar que dominou a política em doisperíodos do Japão: Muromachi (1336-1573) e Tokugawa (1615-1868), este último maisconhecido como era Edo.

10 O sistema piramidal de organizações profissionais, no Japão, é encontrado em todas asáreas. Utilizo aqui o termo família, preterindo o anteriormente escolhido “escola” emestudo sobre a organização e produção dos pintores Kanô publicado anteriomente, ressal-vando que, por família, entendo também os discípulos “adotados” como filhos e/ou herdeiros.

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tâneos numa só composição que, logicamente, sé poderia ser de carátergrandioso e muralístico e só poderia ter sido produzida por uma família bemestabelecida e sólida, como era o caso da Kanô, já em sua terceira geraçãoservindo aos mesmos patronos. Em seu biombo de oito divisões Hinoki-zuByôbu, o ciprestre japonês é uma presença maciça com seus galhos emdireções variadas e as cores utilizadas, de pigmentos minerais, são fortes eeconômicas; na composição, sem espaço para os delicados pássaros-e-flo-res, notamos todo o vigor e o poder da imagem.

Cabe aqui, talvez, uma observação quanto à produção de biombos.Quando vemos as imagens em reprodução, ou mesmo os próprios biombosem exposição nos museus, os vemos geralmente dispostos em uma só linha,como se fossem grandes páginas tridimensionais. Da mesma forma que osrolos ganhavam uma dimensão a mais ao serem manuseados, os biombos,utilitários para a separação dos espaços na casa japonesa têm, por nature-za, a função de serem dobrados e manipulados, o que ocasiona a modifica-ção da composição das imagens. Assim, os galhos do cipreste de KanôEitoku literalmente podem se estender em direção a nossos olhos, criandoum jogo tridimensional riquíssimo.

Certamente esses aspectos tridimensionais na fisicalidade dos biom-bos não foram desprezados pela família Kanô, hajam vistas a duração e aramificação de sua organização, que chegou a possuir várias casas secun-dárias, entre as quais a de Quioto, chamada Kyô-Kanô, na figura dos discí-pulos Tan’yû, Sanraku e Sansetsu, que produzirão enormemente, principal-mente biombos magníficos de pássaros-e-flores com fundos dourados deli-cados, ricamente detalhados e de um colorido multifacetado.

Mas grandes dimensões na pintura não significaram somente poderiomilitar e cores fortes em fundo dourado; o trabalho de Hasegawa Tôhaku(1539-1610) e sua família bem o demonstram: também na decoração11 deportas corrediças e biombos, as grandes composições de Tôhaku que quasenão se utilizaram da cor e suas aguadas mais características falam de nebli-na-em-meio-a-pinheiros ou pinheiros-em-meio-a-neblina, de granizo-na-ve-getação-do-alvorecer-nas-montanhas, num certo desdobramento das vistasde Sesshû, mais preocupado, no entanto, com atmosferas do que comacuidade toponímica descritiva. Trabalhou também no formato dos biombosde fundos dourados com pigmentos fortes tematizando flores e árvores sa-zonais com uma delicadeza ímpar.

Assim, se a era Momoyama parece ter sido monopolizada pela famíliaKanô e sua estética grandiosa, a presença da família Hasegawa, embora menosespraiada e de menor longevidade, serve-se-lhe como contraponto estético.

11 O termo não tem qualquer conotação pejorativa.

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Uma obra curiosa, Nanban Byôbu, “Biombo dos bárbaros do sul”,que porta o selo de Kanô Naizen, mostra os navios dos portugueses quandode sua chegada à ilha de Kyûshû, atracando com seus pertences; vemos aícomerciantes vestidos de gibão, padres de batina, negros escravos, cavalose cachorros. A obra, do século XVI-XVII, encontra-se no Tôshôdaiji, emNara, mas existem cinqüenta cópias no Japão e no exterior, o que mostra apopularidade do tema. Nanban-ga, “pintura dos bárbaros do sul”, então,será a denominação da arte produzida sob influência jesuítica portuguesa.Consta, desse rol, imagens sacras de madonas e santos copiadas de mode-los ocidentais. Após a proibição ao cristianismo nos anos de 1530, evidente-mente, a produção escasseou.

Para percebermos a evolução na pintura japonesa, podemos seguiraqui uma imagem, adaptada, do estudioso Sasaki Shôhei12: um jogo de biom-bos13, de quatro divisões cada, mostrando uma cidade, digamos, a capitalQuioto e seus arredores: nuvens douradas cobrem toda a superfície numefeito bidimensional voluptuoso e por entre suas curvas vemos em descri-ções minúsculas ora o castelo Nijô com seus moradores e servidores, ora ocentro de comércio em Shijô-Kawaramachi, ora a festividade de Gion comseus carros alegóricos e suas procissões coloridas, ora as montanhas deArashiyama com seu conjunto de templos, ora os templos nos ermos dasmontanhas Hiei. Aproximemo-nos ainda mais e podemos observar apenasuma dessas cenas, aumentada à dimensão de um biombo de seis divisões,constando, por exemplo, uma apreciação de mudança de cores nas folhasde bordo (momiji) em Takao14, sítio renomado em Quioto para tal atividade.Aí encontramos mulheres conversando, crianças mamando, saquê sendoservido em meio à montanha de outono, onde a presença da água, uma linhasinuosa, não deve ser olvidada. O vestuário das mulheres é cuidadosamentedesenhado, o colorido forte e as linhas vigorosas. Aproximemo-nos aindamais, e vemos uma cena ainda mais aumentada à dimensão de um biombode seis divisões, desta vez retratando somente as personagens e suas ativi-dades, ora tocando o shamisen, ora jogando go, ora compondo poemas, oradançando15. Sempre com um cuidado acuradíssimo nas estampas dos12 A Pintura no Período Edo I, Coleção de revistas especializadas em artes plásticas do Japão

Nihon no Bijutsu, vol. 209.13 Para perfeição da imagem, tomemos como exemplo “a-cidade-e-seus-arredores”, Rakuchû-

rakugai-zu Byôbu, de Kanô Eitoku.14 Obra de Kanô Hidenori, segundo filho de Masanobu, no século XVI. Nota-se que, a par da

leveza e sinuosidade Yamato-e no desenho das águas e das folhas de bordo, as linhas fortese o colorido rico revelam uma influência da pintura da dinastia Kan.

15 Podemos muito bem imaginar Hikone Byôbu, da família Kanô, de ou Matsuura Byôbu,autoria desconhecida. Ligada ao tema chinês dos “entretenimentos”, a representação decenas interiores mostra preferencialmente figuras femininas.

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quimonos de seda, nos penteados da moda. Nessa evolução da visão estra-tégica do olho-de-pássaro, de longe, para até onde a vista alcança, até anossa plena participação na cena pela aproximação em escala e tema, noaqui-e-agora, de personagens conhecidos, de objetos cotidianos, de transito-riedade admitida, encontramos as “imagens do mundo flutuante”, ukiyo-e.

Os novos formatos engendrados no período Edo (1615-1868), con-trariamente ao período Momoyama de grandes conquistas guerreiras e pin-turas de grandes dimensões, foram a xilogravura, a produção em massa delivros ilustrados e as pinturas de menores dimensões. Iniciador da famíliaHishikawa, Moronobu se debruçou sobre a nova cultura que viu nascer nacidade de Edo, atual Tóquio, tendo se concentrado nos novos modos-e-modas, nas beldades dos quartéis do prazer de Yoshiwara16 e se dedicado amostrar a vida naquele “mundo-à-parte”, naquele “lugar-ruim”, com seusfreqüentadores, servidores, administradores e suas famosas yûjo17, inicial-mente na pintura, depois nos álbuns xilográficos temáticos, depois nas es-tampas independentes, tendo sido também um prolífico ilustrador de livros,eróticos e outrossim.

Compreendendo a linhagem da qual fazia parte, Hishikawa Moronobuassinava seus trabalhos como Yamato-eshi, “pintor do estilo japonês”, emoposição, primeiramente, à produção continental – referia-se, em primeirainstância, à produção da aguada de fundo zen. Os temas que trabalhou –beldades, vistas e guias de Edo, personagens e freqüentadores de Yoshiwara,cenas eróticas, além de temas históricos e versões do Romance de Genji –vão ser utilizados até a exaustão nos próximos quase dois séculos que se lheseguem. O meio técnico que introduziu, a xilogravura, vai ser o meio porexcelência da imagem consumida pelos citadinos e, sofrendo um processode aperfeiçoamento e inovação constante, vai ser uma contribuição técnicapara a gravura internacional. Opôs-se também, em segundo lugar, aos pin-tores de inspiração Kanô, com toda sua eloqüência compositiva e brilhoretumbante.

Em termos de organização profissional, quando do advento do Ukiyo-e, não mais podemos falar em família ou escola, mas sim em estilo ou meiotécnico. Deve-se, isso, também, ao fato do desenvolvimento das cidadesque originou uma população urbana e possibilitou o aparecimento dos machi-

16 Kuruwa, os quartéis do prazer foram assim definidos e delimitados durante o xogunatoTokugawa com o intuito de melhor controlar as áreas de prostituição que resultaram em,ironicamente, incorporar todo o sistema piramidal da sociedade como um todo, com acriação de todo um sistema hierárquico na classificação das mulheres-entretenimento.

17 Yûjo, “mulher-entretenimento”, é o nome geral dado às mulheres que eram o centro dosquartéis do prazer, treinadas para entreter e agradar.

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eshi, “pintor-da-cidade”, significando um profissional sem filiação familiardefinida que não a estética. Assim também os pintores-literatos (bunjin)não se organizaram em pirâmides familiares, mas em grupos que se reuni-am esporadicamente.

Embora tenha havido uma certa progressão na evolução do meio daxilogravura, desde a estampa em branco-e-preto, iniciando-se pela aplica-ção de cores a mão (beni-e), depois aplicando-se essa cor através de umamatriz beni-zuri-e), passando-se pela introdução de duas outras matrizespara o vermelho e o verde (tanroku-e), depois adicionando-se mais matri-zes até a plena coloração “em-forma-de-brocado” (nishiki-e), esse pro-cesso foi aperfeiçoado constantemente e as inovações não ficaram sendoum segredo e monopólio de determinada família. Uma vez que Harunobuutilizou pela primeira vez o método da “pintura-brocado”, tanto Utamaroquanto os artistas posteriores puderam se utilizar da técnica. Na verdade, agrande novidade em termos de organização social foi a divisão do processode construção da imagem. Para a estampa exposta na saída do teatro Kabuki,ou na loja da cidade-baixa de Edo, um editor contratava um pintor e produ-zia a imagem contratando gravadores e impressores que trabalhavam emconjunto.

Aliada à literatura ukiyo-zôshi, a produção de ilustração de livros foiimensa e abrangeu uma vasta gama temática, muitas delas tradicionais,trasvestidas, no entanto, de modernidade. Como foi notado anteriormente, olivro substituiu o rolo. Todos os pintores de uma forma ou de outra dedica-ram-se também à ilustração de livros, ligados ou não a textos e/ou temasdefinidos. A produção de livros eróticos, note-se, foi enorme e tem sidomuito estudada recentemente.

Os artistas especializaram-se em determinados temas, embora amaioria tenha produzido um pouco de cada. Moronobu é associado ao iníciodo Ukiyo-e, com suas pinturas de beldades e suas estampas em branco epreto de cenas de Yoshiwara; Sugimura Jihei e Kiyonaga à representaçãodas mulheres de Yoshiwara em procissões e em seus recintos; Torii Kiyonobue Kiyonaga à representação de atores e cenas do teatro Kabuki; OkumuraMasanobu a vistas em perspectiva de teatros e a beldades de Yoshiwara;Suzuki Harunobu a seus personagens esguios e assexuados liricamente en-voltos em poemas nostálgicos; Kitagawa Utamaro a suas beldades dos quar-téis do prazer e de outros sítios, em suas atividades cotidianas e suas cenaseróticas; Tôshûsai Sharaku a seus bustos de atores de kabuki; Andô Hiroshigee Katsushika Hokusai a suas vistas famosas de Edo, de Quioto, da estradaTôkaidô,do Monte Fuji, do Japão como um todo; Utagawa Toyokuni eToshiyoshi, com suas imagens doentias de mulheres pernósticas.

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É oportuno notar aqui que o período Edo, quando o Japão se fechouao contato com o exterior, com exceção dos comerciantes holandeses echineses confinados na ilha artificial de Deshima em Nagasaki, foi um perí-odo de grande maturação cultural que originou uma arte dita essencialmen-te japonesa, como são conhecidos o teatro kabuki e a pintura e gravuraUkiyo-e. No entanto, Masanobu inventa as “gravuras-perspectiva” sob ins-piração do método da perspectiva renascentista com um ponto de fuga eHokusai, tentando adequar esse método do-longe-e-do-perto à sua produ-ção das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, adaptou-a com a adição de umgrande primeiríssimo plano. Curiosamente a perspectiva da estampa japo-nesa que influencia os pintores impressionistas europeus já era uma varia-ção da perspectiva ocidental.

As novas técnicas têxteis e de tingimento vão ser extremamente apre-ciadas – o quimono adquire o patamar de obra artística, como atesta a produ-ção do grupo conhecido como escola Rinpa18, composta por Tawaraya Sôtatsue Hon’ami Koetsu em Quioto e pelos irmãos Ôgata Kôrin e Kenzan em Edo.A produção de leques, a pintura em cerâmica e objetos variados recobertoscom laca vão ser os novos formatos para esse novo tratamento plástico queutilizou vastas cores planas obedecendo composições verticais ou horizontaisprincipalmente, e altamente geometrizadas. Os biombos produzidos por Sôtatsuvão ser pura estilização sobre fundo dourado, de dançarinos no Bugaku-zuByôbu (desenho-de-dança-e-música estilo bugaku), de nobres da era Heianem um espaço irreal no biombo Genji Monogatari Sekiya Miotsukushi-zu. O Biombo do Deus do Vento e do Deus do Relâmpago (Fûjin Raijin-zuByôbu) tem uma grande liberdade dos espaços vazios típica.

Mas é com Kôrin que se atinge o grau de estilização em seu graumáximo, onde o aspecto decorativo é explorado com a maior sensibilidade.As flores de íris, os pássaros, as esguias ervas, as minúsculas flores docampo, as elegantes linhas sinuosas estilizando rios imaginários, as folhas debordo em profusão, serão elementos utilizados incansavelmente na decora-ção de leques, vasos e objetos de cerâmica, lacas, biombos, livros, inspiran-do de modo nítido a obra de Gustave Klimt, do Art Nouveau, de MauriceDenis e dos nabis, de Bonnard e seus biombos.

Ainda em termos de formas e formatos, é interessante notar como aprodução cultural no período Edo foi rica e díspar esteticamente. Ao mesmotempo em que tivemos um grupo de pintores concentrados na representa-ção de seu tempo presente e suas personagens, reais ou fictícias; ao mesmo

18 Rinpa, “ao-modo-de-Kôrin”, tambem conhecida como Sôtatsu-Kôrin-ha. Aqui também, aressalva ao termo “escola”.

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tempo em que tivemos um aprimoramento do que hoje denominamos designou desenho industrial nos objetos do cotidiano, tivemos também o desenvol-vimento de um grupo de pintores amadores, cuja produção compunha-se deimagem e poesia combinadas em rolo vertical utilizando a técnica da aguada– note-se, portanto, mais uma forma de renascimento e inovação do suiboku-ga. Ikeno Taiga (1723-1776) foi seu mais ilustre representante, Yosa Buson(1716-1783) o mais famoso como poeta. O tema do poeta eremita em suacabana, numa longínqua região montanhosa numa determinada estação doano vai se mostrar imorredouro. Tomioka Tessai (1836-1924) produziu imen-samente nessa mesma linhagem: texto na parte superior da imagem, quesegue o formato-pilar, e ilustração em preto e branco abaixo.

Embora não tenha sido mencionado anteriormente, é evidente que aprodução de papel artesanal foi fundamental nesse processo todo de produ-ção pictórica. A produção da pintura sobre seda, mais cara e de resultadosvisuais mais sutis e delicados, não foi a regra. A adequação do papel, suavariedade na combinação de fibras, tratamento, colorido, maneiras de fabri-cação, vão ser fundamentais no delineamento visual da imagem a lhe sertrabalhada. O papel utilizado para caligrafia e aguada, pouco ou nadaencolado, se transforma, com a absorção da tinta sumi, numa superfícieaveludada e ricamente matizada.

Em termos de formatos, a abertura dos portos ao ocidente apresen-tou aos japoneses a pintura a óleo, juntamente com um certo realismo euro-peu. A presença de professores estrangeiros na Escola Técnica de Arte emTóquio foi sintomática, dentre os quais o italiano Fontanesi se encontra en-tre os mais renomados. Takeuchi Yûichi (1828-1894), inspirando-se no gê-nero natureza morta criou o seibutsu-ga, “pintura-de-coisas-calmas”, ten-do utilizado como base o tratamento pictórico do Ukiyo-e, mas recobrindo-o com a materialidade da tinta a óleo; seus peixes diferem dos de Utamarojustamente na camada exata e densa da tinta que utiliza. Seguindo o natura-lismo de Shiba Kôkan, por sua vez inspirado pela pintura que aprendera comos “estudos holandeses” em Nagasaki, Takeuchi inicia uma vasta correntena arte contemporânea do Japão, a que se chama hoje mais simplesmentede Yôga, “pintura ocidental”, em oposição a Nihonga, “pintura japonesa”,ligada em suas origens a Yamato-e e reagindo contra a ocidentalização daarte japonesa. Entre eles, destaca-se Kanô Hôgai (sim, ainda da famíliaKanô), Ernest Fenellosa, professor de História da arte japonesa na Escolade Artes de Tóquio; Hashimoto Gahô (1835-1908) e Yokoyama Taikan (1868-1958), Uemura Shôen (1875-1949), Hirota Tazu (1904~), Kayama Matazô(1927~) e Higashi Kaii (1908~) encontram-se entre os mais famosos doséculo XX.

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Asai Chû (1856-1907), aluno de Fontanesi, no entanto, foi o pintor deYôga mais representativo da era Meiji (1868-1912) que logrou transformara pintura a óleo em mais um formato japonês. Ao se centrar não na formaexterior das novas técnicas ocidentais (claro-escuro, composição, textura,pincelada), questionou-se sobre a substância da pintura ocidental e abriucaminho para o trabalho de Okada Saburô (1868-1939) que produziu umapintura a óleo japonesa. Entende-se, por isso, não apenas a adequaçãotemática – por exemplo, mulheres japoneses vestidas com quimonos tocan-do instrumentos musicais japoneses –, mas o próprio tratamento da superfí-cie. Opôs-se ao gaikô-shûgi “teoria-do-brilho-exterior” advocado porKuroda Seiki (1866-1924), seu professor, que viveu muitos anos em Paris efoi o mais influente artista de sua geração.

Assim, se a abertura dos portos do Japão ao ocidente em 1868 influ-enciou a arte ocidental na composição, na exploração de novas temáticas enovos pontos de vista, com a circulação das estampas ukiyo-e colecionadaspor Monet, Manet, van Gogh, Whistler, Boudin, para somente citar alguns,sua influência também se fez sentir no Japão, como o atesta a introdução dapintura a óleo.

A gravura de Munch, tentativa de recriação e adaptação dos méto-dos colorísticos japoneses, é uma prova no nível técnico do intenso inter-câmbio visual de fins do século XIX. Assim também o movimento ShinHanga, “Nova Gravura”, onde os pintores japoneses tentaram se apoderardo processo todo da gravura, eles mesmo cortando a matriz e imprimindo,ou buscando novas formas de impressão, com resultados toscos no início,mas abrindo novas qualidades plásticas.

O internacionalismo, especialmente após a II Guerra Mundial faz-sesentir, naturalmente, em todos os aspectos artísticos: à xilogravura e gravu-ra em metal, essa última introduzida por Shiba Kôkan no século XVIII,somam-se a serigrafia, a litogravura, os processos foto-mecânicos e atual-mente a videoarte e a arte por computador. Em termos formais, temas tra-dicionais como “vistas famosas”, “beldades” são ainda encontradas, princi-palmente em estilo Nihonga. Muitos artistas renderam-se às questões con-temporâneas da arte surrealista, dadaísta, expressionista, construtivista, abs-trata, conceitual, concreta, povera, geométrica, tachista, informal, metafóri-ca, pós-moderna. Outros continuam tentando encontrar uma nova japonizaçãodas formas e dos formatos contemporâneos. O trabalho de Munakata Shikô(1904-1976) é um testemunho deste embate perene.

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AS MANIFESTAS MANIFESTAS MANIFESTAS MANIFESTAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICASAÇÕES ARTÍSTICASAÇÕES ARTÍSTICASAÇÕES ARTÍSTICASAÇÕES ARTÍSTICASARMÊNIASARMÊNIASARMÊNIASARMÊNIASARMÊNIAS

Chaké Ekizian Costa

A arte armênia apresenta-se na atualidade como decorrência de duasvertentes: alguns elementos deixados pelos invasores; outros trazidos pelofluxo migratório dos intelectuais e artistas, fazendo convergir para a artearmênia elementos europeus que são colhidos, no início do século, tanto emMoscou, como na Europa Latina. Nos primórdios de sua história, quando seconfigura como um conjunto de estados conhecido como ConfederaçãoNairiana, a Armênia se revela como uma ponte, de travessia para o Oriente,para os conquistadores romanos e gregos, persas e árabes. As cruzadas eos mercadores europeus conhecem-na como corredor para as terras san-tas. Estas passagens e invasões, no território original, não só possibilitam ofortalecimento do espírito dos armênios que têm se mostrado, no decorrerde sua história, como um fênix que sobrevive às tragédias, como também oenriquecimento de sua cultura, por essas influências, como por exemplo,khatchkar1 que tem, originariamente, a função de fechar as criptas funerá-rias, apresentando-se trabalhada em ricas filigranas, a partir do século IX,período da civilização árabe, na Armênia.

Ainda, conhecida como o primeiro país a adotar, no IV século, o Cris-tianismo como religião de Estado, a Armênia mostra como acervo igrejasornamentadas, em sua arquitetura, pela frontalidade de águias ou pelasleoas aladas que se confrontam: são marcas mesopotâmicas, em todo terri-tório. A arquitetura aponta linhas para o gótico, ficando patente também aprodução das miniaturas que tomam configurações diferenciadas entre si,indicando repertório que se estende em enfileiramentos e divisões islâmicos,em composições mandálicas e na frontalidade da figuração bizantina.

Além das influências deixadas pelos estrangeiros e trazidas pelosnativos, que não são excludentes entre si, há os aspectos históricos, quetambém colaboram para a manifestação de uma arte contemporânea queprocura a diferenciação e a singularidade em múltiplas soluções pictóricas.

A obra de vários artistas modernos e contemporâneos nos fazemconstatar a afirmação de que há uma destacada produção plástica no país.Oprocessamento se manifesta pela reflexão de sua herança, ainda viva, esobre a necessidade de agarrar as rédeas da autonomia, no presente.

1 Estelas verticais em cruz.

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COSTA, Chaké Ekizian. AS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS ARMÊNIAS.

Martiros Sarian é um exemplo palpável desta premissa, pois ele apre-senta, em sua obra, um processo construtivo narrando as marcas de sua longavida enquanto a registra visualmente. Isto o distingue como um artista experi-mental, arrojado e autônomo, em relação às informações sobre as vanguardasmodernistas européias. Biografa-se, inicialmente, habitante da Rússia, de umafamília de camponeses armênios, como atento documentarista que testemunhatoda a paisagem como beleza. Maravilha-se diante da visão do horizonte e daausteridade e solidão da estepe, a se perder de vista, em casa de seus pais.

Sarian refere-se, em suas memórias, e os desenhos deste tempo oconfirmam, que se exercita muito, com qualquer material: lápis preto ou emcores, papel colorido ou branco, em pedaços de papel somados agregadosou não. Em 1898, ao voltar para o rio Sambek, na estepe de Azov,em seu lardesenha tudo o que vê. Os desenhos são referentes aos objetos e instru-mentos usados na casa: carroças e enxadas, foices para uso no trabalho docampo, as pessoas e seu cão. Aí parece estabelecer uma via de interesseque pontilha a trajetória da totalidade de sua obra: as pessoas armênias,suas figuras, seus perfis, sua indumentária. É também aí que codifica, grafi-camente, seu afeto pelos animais que o acompanham em suas telas. Asistemática verificação destas presenças parece refletir que Sarian recorreà fauna, não somente por significar afetuosamente a lembrança de sua in-fância, mas ainda mais, porque parece ser observada convivendo com aausteridade da vida rústica armênia, onde os domesticados e os selvagensestão presentes. Aí que vê, como pintor agora, a paisagem panorâmica,observando o ritmo minimalista da natureza, em sutis transformações, dotempo contínuo e silencioso, para eclodir em formas e cores múltiplas. Sarianrecebe a luz da Armênia como elemento precioso e a cultiva como soluçãonova e adequada para seu trabalho. Apega-se aos cenários da região; ascores lhe dão alegria e os costumes o surpreendem; as moças com seusolhos e cabelos negros dançam sobre o telhado das casas, com sapatos demadeira e o habitual figurino. Esse encantamento eclode em 1902, quando orepertório pictórico de Sarian se embebe de tais movimentos. A disponibili-dade de Martiros abre-lhes horizontes de uma experiência armênia, que setraduz nas constante modificações em sua arte: novos gestos, novos ângu-los de visão, novas cores.

O monumental que Sarian experimenta na Armênia concretiza-seem sua pintura, que caminha por metamorfoses do olhar; manifesta-se naescolha do local para observação do objeto ou cena; as ondulações dosmontes da Transcaucásia possibilitam-lhe a observação de um plano eleva-do, ângulo que aparece em seus quadros, como em Makravank2, que docu-

2 1902, óleo sobre tela, 36x46cm., acervo do Museu M. Sarian, Erevan-Armênia.

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menta o empenho de Sarian em procurar novos referenciais. Há, nesta tela,a denúncia de experiências com os novos ângulos do Cáucaso e a verifica-ção de novos gestos.

Terminado o período escolar, afirma ter começado a sua fase maisdifícil. Refere-se ao desejo de encontrar uma linguagem que o introduza nocompromisso com a arte, que o leve a reconhecer as impressões deixadaspela infância, que lhe permita expressar seus pensamentos sobre seu país, ahumanidade e o universo. Entende que os primeiros exercícios gráficos epictóricos são insuficientes para vivificar essas imagens. Nos últimos mesesda Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou pinta quadros queretratam a natureza, os animais e o homem de maneira fantástica. Valorizan-do a imaginação, Sarian designa os trabalhos deste período, de Contos e So-nhos. Durante este processo de trabalho, concentra-se sobre o Cáucaso, aTranscaucásia e, finalmente, a Armênia. Rememora as caravanas de came-los com guizos, os nômades de rosto bronzeado, descendo dos montes comrebanhos de ovelhas, vacas, búfalos, cavalos, jumentos, cabras; os bazares, avida da população multicor; o passo leve das mulheres muçulmanas com véusnegros e rosados, em calças negras e tamancos de madeira, a espiar dostelhados planos de casas quadradas; os olhos grandes, escuros e amendoadosdas armênias. Assim é a cena com que sonha desde a infância.

CCCCCONTOSONTOSONTOSONTOSONTOS DEDEDEDEDE F F F F FADASADASADASADASADAS EEEEE S S S S SONHOSONHOSONHOSONHOSONHOS S S S S SIMBOLISTIMBOLISTIMBOLISTIMBOLISTIMBOLISTASASASASAS

O simbolismo da Europa espalhou-se pelas artes visuais e penetrouna Rússia que o incorporou, nos caminhos vários e diferenciados de trans-formação da produção artística, no período pré-revolucionário.

Para compreendê-lo em Sarian, é preciso recorrer às fontes históri-cas armênias, que se localizam na poesia, cantada por bardos no séculoXVI. As analogias aparecem quando se lê a Canção deliciosa de GrigorNarekatsi3 e a Canção de Amor de Grigoris Akhtamartsi (séc. IX).NaapetKutchak, ashug4 que tem canções que traduzem a contemplação sutil, a3 Grigor Narekatsi, in Kamenski, 44 . “Je suis une ville sans tours et sans portes./Je suis une

maison où il n’y a pas de feu l’hiver./Je suis une eau amère, et de ceus qui la boivent, / Je peuxétancher la soif./ Je suis un jardin desséché./Je suis un champ envahi par les mauvaisesherbes./ Je suis la terre préparée par Dieu,/Mais c’est le Diable qui la lbouré ce sol.” Xº siècle.

4 Sarafian, Jorge, Armenia atraves de sus poetas “Essas canciones son compuestas por losashugh, ( da palavra árabe ashik) bardos errantes, pero muchas veces, el pueblo mismo lasimprovisa. Las mujeres tomam parte y una parte brillante en la creación de esas canciones.Canciones contienen todos lo géneros: canción de amor, de cuna, coplas satíricas, oraciones,motivos de danza, canciones de boda, de inmigrantes, cantos históricos nacionales y otrasglorificando la naturaleza, alabando los trabajos de la campiña, etc.

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beleza do mundo, a celebração cavaleiresca ao amor, o erotismo e a alegriade viver. Em uma das narrações líricas de Kutchak, o herói conta que suabem amada “bebe em uma taça azul, sentada sob a árvore e celebra asdelícias das carícias e do vinho com palavras armênias.”5 O intrometimentono território da literatura registra alguns pequenos contos de fadas, atestan-do o envolvimento de Sarian com uma Armênia simbolista que ecoa, a queele vê e pinta.

LAGARTIXA6

Lagartixa, que gostas do beijo do sol. Enlangueces-te docemen-te nos seus raios e tens sonhos feitos de raios cerúleos, em que vês opríncipe dos lagartos em cavernas de âmbar. Em traje versicolor, eledeixa os seus palácios e, por entre flores multicolores, vai para umapedra branca a banhar-se nos raios dourados do sol.

Os seus escritos se espelham nos antecedentes poéticos da literaturaarmênia. Mais do que nos escritos é em sua pintura que se pode localizarsignos, cuja ancestralidade está nas antigas miniaturas persas do séculoXVI, que indicam abordagens que Sarian mantém com seus trabalhos. Pa-rece ser fundamental, nesta incursão simbolista de Sarian, a apreciação dopintor por estas miniaturas onde se mira, para em várias ocasiões, resolvera atuação de seus personagens. É com o simbolismo que Sarian rompe comas práticas pictóricas da Escola de Moscou. Não valoriza somente o aspec-to imaginário e temático das miniaturas persas, mas também o seu visual.Comparando-as à obra de Sarian entre 1901 e 1908, reconhecem-se asmarcas com que resgata esses documentos: as transparências violáceas eazuladas da paisagens constroem a leveza que foge à realidade, dura eacinzentada, como da rochosa paisagem armênia; o artista explicita recur-sos raros de composição, de localização inusitada de personagens, e deruptura conseqüente com as referências acadêmicas do claro-escuro. Vê-se que as trocou pela transparência das aguadas da aquarela, encarregadasdas leves e etéreas paisagens. São cenas que não conseguimos colher emnossas mãos porque nos escapam como vapores e são vulneráveis ao ventoque, a qualquer momento, pode dissipá-las. É em seu período simbolista, quelocaliza os elementos das miniaturas islâmicas do século XVI, que se mani-festam pincelagens que não permitindo reconhecimento imediato da figuraexigem um olhar de adivinhação, assombrado. Propõe-se aqui a possibilida-5 Sarafian, J. op. cit.6 Tradução Nóe Silva

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de de que o fantástico é reforçado, na obra de Sarian, quando se verificamseus contos introduzindo na visualização do irreconhecível:

A PEDRA LUZ ( história fantástica)Há uma pedra branca em um bosque sagrado e, sobre ela, uma

pedra-luz. A esse souto sagrado iam pessoas escutar as histórias fan-tásticas da terra, atentos ao estranho farfalhar das folhas e à pálidaluz da pedra. Ao caírem as trevas da noite, à pedra luminosa iam sa-cerdotes brancos e entregavam-se a danças loucas e mágicas. Ao caí-rem as trevas da noite, iam sacerdotes negros. Eles compreendiam aquelaluz. Ficavam simplesmente calados.

O homem representa uma partícula microscópica do Universo, oEu, encerrado nele, constitui o próprio Universo; somente por meio dohomem, a Natureza tomará consciência da sua grandeza e insignifi-cância. Para cada pessoa existe uma beleza a ela peculiar, que elacompreende e de que ela vive. O mundo é belo.

Na década de 30, Sarian ainda recorre aos índices islâmicos das mi-niaturas. São trabalhos que apontam o ritmo e a dinâmica da miniatura persa,com seu colorido intenso e uniforme. A divisão da superfície da tela emmuitos e movimentados planos, de alto a baixo, é trabalhada porenfileiramentos da mesma figura. Também não é de todo impossível que osanimais da miniatura armênia sejam igualmente referência para inúmeraspinturas do artista, pois em seu trabalho insere no mesmo plano todos osseres: animais e vegetais compartilham os mesmos momentos. Encontra-mos vicunhas, camelos, cachorros etc.

O percurso de Sarian no simbolismo pressupõe os registros gráficosanteriores, realizados entre 1897 e 1902, desde que, estudando em Moscou,de volta para Sambek em férias, descobre a Armênia. Estes desenhos são abase observacional da elaboração dos personagens das aquarelas simbolis-tas, entre 1903-1908. Não sendo fortuito o sinal deixado por sua infância nocampo, prefere-se considerar que os registros observacionais são os princi-pais indicativos da presença de animais na futura pintura de MartirosSergueievitch, que emenda pedaços de papéis vários, denotando uma atitu-de flexível e íntima com a arte visual, permitindo-lhe aceitar qualquer supor-te para exercitar-se. Esses desenhos configuram-se como um arsenal derecursos em que o artista conduz ao campo do imaginário, trazendo situa-ções narrativas, muitas vezes fantásticas, onde não fica esclarecida a se-qüência, mas situam o observador no simbolismo. Transforma-as em expe-riências que também lhe possibilitam refletir sobre a técnica: em algumas

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telas, a cor da aquarela é colocada a lápis após o esboço, cujos riscos seevidenciam como contornos das casas, dos personagens e das figuras, mui-tas vezes, colaborando também com um outro plano: o da construção do espaço.

A aquarela, que permite fluidez e flexibilidade, contempla a mudançamais importante de Sarian: o claro-escuro dá lugar ao cromatismo. A utiliza-ção das cores se multiplica e torna-se um recurso poderoso em sua obra,pois ele as usa de maneira intensa, confrontando os contrastes e extrapolandoa realidade. Explicita-se assim, um processo que inicia esta construção:neste período de Sarian, há o cruzamento de várias referências, que atuamsubvertendo a expectativa , desterritorializando o olhar, provocando um sal-to no olhar, que é lançado ao território visionário. Constata-se uma atitudeinvestigadora que surpreende pelos resultados que constrói na plasticidadede sua obra. Na totalidade da obra de Sarian, explicita-se que são descritosmomentos de costume, da arquitetura e da paisagem armênia, assim comoela está sendo sempre visualizada.

Outro nome pronunciado com grande respeito na Armênia é o deMinas Avetissian. Durante quinze anos, Minas criou uma pintura fovistaarmênia. Discípulo de Sarian, trabalhou uma temática urbana, que retrata orompimento dos laços seculares do modo de vida e a ansiedade que tomaconta das pessoas frente às mudanças contínuas nas relações homem/mu-lher, introduzindo em sua pintura uma condição dramática. A saturaçãocromática na obra de Minas faz vibrar as formas, que, sem contorno, vivifi-cam-se em sintonia de cores.

George Yakulov, nascido em Tiblissi, na Georgia, expressa-se primei-ramente no teatro, como cenógrafo. Revoluciona os espetáculos de Diaghilev,com seus cenários. Em suas viagens à China e à Itália, o pintor Yakulovassimila a arte oriental e da alta renascença, manifestando-se por linhasmelodiosas e pela composição espacial. Espalhando suas figuras sobre ummesmo plano e trabalhando meticulosamente toda a superfície da tela, oartista consegue grande movimento em suas pinturas e as satura cromatica-mente.

Na apresentação deste três pintores ficam explícitas as premissaslevantadas anteriormente: a arte armênia apresenta, modernamente, as ver-tentes herdadas dos povos antigos e outras aceitas pelo nomadismo intelec-tual dos artistas da atualidade armênia. Fica patente que não há o naturalis-mo, nem o realismo. Mantidos os legados, há uma fiel dedicação aos recur-sos que a própria Armênia lhes dá: a luminosidade, a cor e a liberdade de seutilizar de um recurso plástico de forma pessoal e singular.

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ÁRABE-PORTUGUÊS – ASPECTOSÁRABE-PORTUGUÊS – ASPECTOSÁRABE-PORTUGUÊS – ASPECTOSÁRABE-PORTUGUÊS – ASPECTOSÁRABE-PORTUGUÊS – ASPECTOSCONTRASTIVOS NO PLANOCONTRASTIVOS NO PLANOCONTRASTIVOS NO PLANOCONTRASTIVOS NO PLANOCONTRASTIVOS NO PLANO

FONOLÓGICO: ALGUMASFONOLÓGICO: ALGUMASFONOLÓGICO: ALGUMASFONOLÓGICO: ALGUMASFONOLÓGICO: ALGUMASIMPLICAÇÕES PEDAGÓGICASIMPLICAÇÕES PEDAGÓGICASIMPLICAÇÕES PEDAGÓGICASIMPLICAÇÕES PEDAGÓGICASIMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Safa Alferd Abou Chahla Jubran*

1. INTRODUÇÃO

Dado o caráter de artigo, pressupõem-se conhecidos:

a) os postulados estruturalistas no que se refere à língua, tais como:a língua é um sistema, em que os elementos funcionam conforme leis e demodo sincrônico; é um meio de comunicação, um fenômeno social.

b) os conceitos de língua, articulação, fonema, distinção, traço per-tinente, comutação, neutralização e outros termos relacionados com a aná-lise fonológica.

A descrição de ambas as línguas procurou submeter os elementosde cada uma aos mesmos critérios e técnicas. Isto posto, selecionaram-se,para fins de artigo, as características relevantes a respeito dos fonemas, deseus traços pertinentes, dos alofones, da distribuição, da neutralização, dasílaba e da base articulatória de cada língua.

2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO2. SÍMBOLOS UTILIZADOS NA TRANSCRIÇÃO

2.1 vogais: A posterior, aberta, orala central, aberta, oral F posterior, semi-fechada, orala˘ central, aberta, oral, longa å central, aberta, orali anterior, fechada, oral 2.2 semivogaisi˘ anterior, fechada, oral, longa w velar, oralu posterior, fechada, oral y palatal, oralu˘ posterior, fechada, oral, longa. 2.3 consoantesã central, semi-fechada, nasal p oclusiva, bilabial, surda, oraliÚ anterior, fechada, nasal b oclusiva, bilabial, sonora, oral

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u posterior, fechada, nasal t oclusiva, linguodental, sonora,oral, não enfática

e anterior, semi-fechada, oral t8 oclusiva, linguodental, surda, oral, enfá-tica1

o posterior, semi-fechada, oral d oclusiva, linguodental, sonora,oral, nãoenfática

e anterior, semi-fechada, nasal d8 oclusiva, linguodental, sonora,oral, enfática

o posterior, semi-fechada, k oclusiva, velar, surda, oralnasal

E anterior, semi-aberta, oral g oclusiva, velar, sonora, oralç posterior, semi-aberta, oral q oclusiva, uvular, surda, oralQ anterior, semi-aberta, oral f fricativa, labiodental, surda, oralˆ central, fechada, oral v fricativa, labiodental, sonora,orall lateral, alveolar, sonora, oral m oclusiva, bilabial, sonora, nasall8 lateral, alveolar, sonora, oral, n oclusiva, dental, sonora, nasal

enfática… lateral, velar, sonora. oral n fricativa, palatal, sonora, nasalr vibrante simples, alveolar, S fricativa, palatal, surda, oral

sonora, oralr* vibrante múltipla, alveolar, Z fricativa, palatal, sonora, oral

sonora, oralr8 vibrante, alveolar, sonora, T fricativa, interdental, surda, oral

oral.“ vibrante múltipla, apico- D fricativa, interdental, sonora, oral, não-en-

alveolar, oral fáticas fricativa, alveolar, surda, D8 fricativa, interdental, sonora, oral, enfática

oral,s8 fricativa, alveolar, surda, h fricativa, laríngea, surda, oral

oral, enfáticaz fricativa, alveolar, sonora, ˙ fricativa, faríngea, surda, aspirada

oralz8 fricativa, alveolar, sonora, ƒ fricativa, velar, sonora, oral

oral, enfática¥ lateral, palatal, sonora, oral fricativa, faríngea, surda, oral

1 A ênfase é uma característica articulatória comum nas línguas semíticas. Consiste numarredondamento da raiz da língua, ocasionando um deslocamento da laringe mediante adilatação da passagem. O fenômeno aparece na literatura com outros nomes, tais como:Velarização ou faringalização enfática. Em árabe é um traço distintivo.

Ú

Ú

Ú

Ú

Ú

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dZ africada x fricativa, velar, surda, oraltS africada ÷ fricativa, faríngea, sonora, oral

/ oclusiva, laríngea, surda, oral

3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE3. DESCRIÇÃO DO ÁRABE

3.1 S3.1 S3.1 S3.1 S3.1 SISTEMAISTEMAISTEMAISTEMAISTEMA VOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICO

É composto de seis vogais: /a/, /i/, /u/, /a˘/, /i˘/ e /u˘/. Note-seque o traço breve/longa é que diferencia os três primeiros elementos dostrês últimos; fato este estabelecido pela quantidade ou duração da vogal.No que se refere à distribuição das vogais, todas podem ocorrer no meio ouno final de sílabas e palavras, mas nunca no início dessas.

3.1.1 A3.1.1 A3.1.1 A3.1.1 A3.1.1 ALOFONESLOFONESLOFONESLOFONESLOFONES

/a/ [a] ocorre sempre quando contígua às consoantes enfáticas, ex:[s8aff] ‘classe’

[Q] ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáti-cas, ex:[mQn] ‘quem’

/a˘/ [a˘] ocorre sempre quando contígua às consoantes enfáticas, ex:[t8a˘ra] ‘voar’

[Q˘] ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfá-ticas, ex: [lQ˘] ‘não’

/i/ [i] ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáti-cas, ex: [min] ‘de’

[ˆ] ocorre sempre, quando contígua às consoantes enfáticas, ex:[d8̂ rs] ‘dente’

[e] variante livre, em posição final da palavra./i˘/ [i] ocorre sempre, exceto quando contígua às consoantes enfáti-

cas, ex: [fi˘l] ‘de’[ˆ˘] ocorre sempre, quando contígua às consoantes enfáticas, ex:

[s8̂ :n] ‘China’

/u/ [u] ocorre sempre.[o] variante livre, em posição final da palavra.

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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS – ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.

3.1.2 N3.1.2 N3.1.2 N3.1.2 N3.1.2 NEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃO

A neutralização vocálica em árabe é muito rara e inclui-se no campomorfofonológico. Deixa de ser mencionada aqui, pela irrelevância a estadescrição -por não ser uma característica puramente fonológica.

3.1.3 G3.1.3 G3.1.3 G3.1.3 G3.1.3 GRUPOSRUPOSRUPOSRUPOSRUPOS VOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOS:::::

Existem em árabe seqüências vocálicas expressas por ditongos de-crescentes e crescentes e tritongos. Os ditongos decrescentes restringem-se a dois, /aw/ e /ay/, como em /nawm/ ‘sono’ e /zayt/ ‘azeite’, quanto aoscrescentes aparecem em número maior, como segue:

/wa/ /walad/ ‘menino’/wu/ /wuju˘h/ ‘rostos’/wi/ /wifa˘q/ ‘acordo’/wa˘/ /iwa˘r/ ‘diálogo’/wi˘/ /takwi˘n/ ‘formação’/wu˘/ /t8a˘wu˘s/ ‘pavão’/ya/ /yati˘m/ ‘órfão’/yu/ /yuqa˘lu/ ‘diz-se’/yi/ /sayyid/ ‘senhor’/ya˘/ /baya˘n/ ‘declaração’/yu˘/ /buyu˘t/ ‘casas’/yi˘/ /tamyi˘z/ ‘diferenciação’

Embora raros, nota-se a ocorrência de alguns tritongos, como /yay/em /yay asu/ ‘desesperar-se’ e /wa˘w/. Frise-se que o árabe não apresentahiatos.

3.2 SISTEMA CONSONANT3.2 SISTEMA CONSONANT3.2 SISTEMA CONSONANT3.2 SISTEMA CONSONANT3.2 SISTEMA CONSONANTALALALALAL

O árabe apresenta 27 fonemas consonantais. São eles: /b/, /f, /m/, /n/, /t/, /d/, /t8/, /d8/, /T/, /D/, /D8/, /s/, /s8/, /z/, /S/, /Z/, /r/, /l/, /l8/, /h/, //, /ƒ, /x/, /k/, /q/, ///, /÷/.Note que /p/ e /v/ não existem em árabe, mas em contrapartida, re-

gistra-se a presença de vários fonemas não existentes em português, comoas enfáticas e as chamadas, genericamente, de guturais.

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3.2.1 A3.2.1 A3.2.1 A3.2.1 A3.2.1 ALOFONESLOFONESLOFONESLOFONESLOFONES

/t/ [t] ocorre sempre, exceto nas situações descritas abaixo.[th] (aspirada)2 ocorre somente no começo da sílaba tônica e na

posição final do vocábulo: /tu˘t/ [thu˘th] ‘amora’./k/ [k] ocorre sempre, exceto nas situações descritas abaixo.

[kh](aspirada) ocorre somente no começo da sílaba tônica e naposição final do vocábulo: [khQQf] ‘letra ‘; [sQmQkh]‘peixe’.

/b/ [b] ocorre sempre, exceto na situação descrita abaixo.[p] ocorre somente antes de consoantes surdas ex:

/abs/[Qps] ‘prisão’./r/ [r] ocorre quando seguida de /i/.

[r8] ocorre quando seguida pelas vogais /a/ e /u/, ex:/rabb/ [r8abb], /ruddu˘/ [r8uddu˘] respectivamente,‘Senhor’ e ‘devolvem’; e quando próxima às enfáti-cas, ex: /d8araba/ [d8ar8aba] ‘bateu’.

/Z/ [Z] ocorre sempre[g] variante regional, ocorre no falar do Cairo (Egito).[dZ] variante regional, ocorre em algumas regiões do Lí-

bano, da Tunísia, do Marrocos e no Sul da Algéria.

/D8/ [D8] variante regional, ocorre no Egito e em algumas re-giões do Levante.

[z8] variante regional, ocorre em algumas regiões do Egi- to, da Síria e do Líbano.

3.2.2 N3.2.2 N3.2.2 N3.2.2 N3.2.2 NEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃO

Não ocorre a neutralização de consoantes em árabe.

3.2.3. G3.2.3. G3.2.3. G3.2.3. G3.2.3. GRUPOSRUPOSRUPOSRUPOSRUPOS CONSONANTCONSONANTCONSONANTCONSONANTCONSONANTAISAISAISAISAIS

Embora todas as consoantes árabes possam ocupar posição inicialem sílabas ou palavras, jamais teremos encontros consonantais no iníciodessas. Ao passo que, tanto no meio, quanto no final da palavra, todas asconsoantes podem formar grupos de duas, produzindo combinações diver-sas.

2 A Aspiração é um sopro em nível laríngeo; normalmente é surda.

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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS – ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.

Vale ressaltar, ainda, que as consoantes que constituem grupos mediaisserão sempre pertencentes a sílabas contíguas, enquanto aquelas que cons-tituem grupos finais pertencerão à mesma sílaba3. Veja exemplos de ambasas ocorrências:

/zr/ /mazra÷at/ ‘fazenda’/s8r/ /mas8s8s8s8s8rif/ ‘banco’/m/ /muSSSSSmis/ ‘ensolarado’/kt/ /maktktktktktu˘b/ ‘carta, escrito’/ƒf/ /naƒfƒfƒfƒfƒfuru/ ‘perdoamos’/k/ /makkkkkamat/ ‘tribunal’/rT/ /arTrTrTrTrT/ ‘arar’/rZ/ /marZrZrZrZrZ/ ‘campo’/r// /mar/r/r/r/r// ‘sujeito’/rq/ /barqrqrqrqrq/ ‘relâmpago’/bz/ /xubzbzbzbzbz/ ‘pão’/sb/ /kasbsbsbsbsb/ ‘lucro’

Em termos distribuicionais, embora todas as consoantes possam ocor-rer em todas as posições da palavra e participar de seqüências – exceto eminício de palavra e de sílaba – nota-se que algumas combinações não ocor-rem no árabe padrão, tais como: grupos envolvendo /b/ e /f/ como /bf/,/bm/, /fb/, /fm/, mas /fh/ pode ocorrer medialmente, como em /mafhuùm/. Omesmo acontece com relação a grupos como /nr/, /nl/, /rl/ e /lr/. Os fonemas/k/ e /q/, /Ä/ e /x/ não formam grupos consonantais entre si, e nem com /h/, /ð/ e /Ö/.

3.3. GEMINAÇÃO3.3. GEMINAÇÃO3.3. GEMINAÇÃO3.3. GEMINAÇÃO3.3. GEMINAÇÃO

Em árabe, a geminação é relevante por distinguir signos. Teorica-mente, todas as consoantes árabes podem sofrer redobro. Ressalte-se que

3 Esses grupos poderão tornar-se mediais se as palavras às quais pertencem forem marcadaspelo caso. Lembramos que: -u(n), acrescentado a cada uma delas, representa a marca donominativo em árabe, kalbun e assim por diante, -a(n) e -i(n) marcam, respectivamente,os dois casos acusativo e genitivo. a uso do (n) mostra que o nome em questão é indeterminadoou indefinido. Note-se, no uso que omite a vogal do caso, o aparecimento de uma vogalepentética, que separa os elementos do grupo consonantal, por exemplo: /kalb/ > /kal(i)b/e /ðumq/ > /ðum(u)q/. Isto leva a crer que a ocorrência de grupos consonantais no final dapalavra é instável.

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tal fenômeno distingue-se da consoante longa pela tensão: a consoantegeminada dá sempre a impressão de dualidade; a longa possui uma tensãoúnica. Os exemplos abaixo evidenciam a relevância do fenômeno:

/jama˘l/-/jamma˘l/ ‘beleza’- ‘condutor de camelo’/kasara/-/kassara/ ‘quebrar’- ‘triturar’

Note-se que a geminada em árabe ocorre em contexto intervocálico;as duas vogais que a ladeiam podem ser de natureza diferente, como em:/muÖallim/ ‘professor’.

3.4. NA3.4. NA3.4. NA3.4. NA3.4. NATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICA

São oito padrões silábicos, em árabe: CV, CVC, CVCC, V5V, CVV 5,V 5VC, CVV5C e V 5VV5, como em: /kataba/, /na˘r/, /÷ilm/, /yati˘m/, /na˘y/,/xiyaùr/, /zayt/ e /yay/asu/;4 respectivamente, ‘escreveu, fogo, ciência, ór-fão, flauta, escolha, azeite e desesperar-se’.

3.5. BASE ARTICULA3.5. BASE ARTICULA3.5. BASE ARTICULA3.5. BASE ARTICULA3.5. BASE ARTICULATÓRIATÓRIATÓRIATÓRIATÓRIA

O conjunto de hábitos articulatórias que caracteriza cada língua mol-da-se nessa base. Ressalte-se que esse aspecto tem um papel significativo,num processo de ensino/aprendizagem. Destarte, pode-se dizer que, no sis-tema fonético do árabe:

a) a base articulatória é tensa;b) a zona de articulação gutural é importante;c) o ponto de articulação das consoantes enfáticas é importante;d) as fossas nasais não são solicitadas na articulação de vogais;e) a distinção da duração das vogais é importante.

4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS4. DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS

4.1 S4.1 S4.1 S4.1 S4.1 SISTEMAISTEMAISTEMAISTEMAISTEMA VOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICOVOCÁLICO

São 12 os fonemas vocálicos em português, 7 orais e 5 nasais: /a/,/e/, /i/, /E/, /o/, /ç/, /u/,/ã/, /e‚/, /iÚ/, /o‚/, /u‚/.

4 Em todos os padrões descritos acima, a vogal tanto pode ser breve ou longa, exceto nospadrões: CVCC e CVV 5C, em que somente a vogal breve pode ocupar o lugar de V.

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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS – ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.

4.1.1. A4.1.1. A4.1.1. A4.1.1. A4.1.1. ALOFONESLOFONESLOFONESLOFONESLOFONES

/a/ [a] em sílaba tônica diante de fonema oral.[A] em sílaba átona, diante de fonema oral.[å] em sílaba átona final (enunciado reduzido, mais fraco

de que o anterior) Exemplo: /batata/ > [bAtatå]

[F] diante de consoante nasal da sílaba seguinte, ex: [Fmu]

4.1.2 N4.1.2 N4.1.2 N4.1.2 N4.1.2 NEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃOEUTRALIZAÇÃO EEEEE ARQUIFONEMAARQUIFONEMAARQUIFONEMAARQUIFONEMAARQUIFONEMA

Esse fenômeno ocorre em português, atingindo as seguintes vogais:

/e/ e /i/→ /I/, em posição átona final. Ex: /some‚tI/;/o/ e /u/→ /U/, em posição átona final. Ex: /estadU/;/E/ e /e/→ /E/, em posição átona. Ex: /lEvadU/;/ç/ e /o/→/O/, em posição átona . Ex:/ZOgaR/.

4.1.3 G4.1.3 G4.1.3 G4.1.3 G4.1.3 GRUPOSRUPOSRUPOSRUPOSRUPOS VOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOSVOCÁLICOS

Existem em português ditongos – crescentes e decrescentes – e tritongos:

a) ditongos crescentes orais: /wa/, /we/, /wE/, /wi/, /wo/, /wç/, /ya/,/ye/, /yE/, /yo/, /yç/ e /yu/, com flutuação de pronúncia.b) ditongos decrescentes orais: /aw/, /Ew/, /ew/, /iw/, /ow/, /ay/,/E, ey/, /çy/, /oy/, e /uy/.c) ditongos crescentes nasais: /wã/, /we‚/, /wi‚/, /yã/, /ye‚/, /yõ/ e /yu‚/.d) ditongos decrescentes nasais: /ãw/, /ãy/, /o‚y/, /e‚y/ e /u‚y/.e) tritongos orais: /way/, /wey/, /waw/, /wiw/ e /wow/.f) tritongos nasais: /wãw/, /we‚y/ e /wõy/.

5. SISTEMA CONSONANT5. SISTEMA CONSONANT5. SISTEMA CONSONANT5. SISTEMA CONSONANT5. SISTEMA CONSONANTALALALALAL

São 19 fonemas consonantais:/b/, /p/, /t/, /d/, /k/, /g/, /f/,/v/, /m/,/n/,/s/, /z/, /Z/, /S/, /l/, /r/, /r*/, /ñ/ e /¥/.

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5.1 A5.1 A5.1 A5.1 A5.1 ALOFONESLOFONESLOFONESLOFONESLOFONES55555

/k/ [k][k1] ocorre diante de uma vogal anterior, como em [k1ilU] e

[g1ia].[k2] ocorre diante da vogal /a/, como em [k2arU].[k3] ocorre diante de vogal posterior, como em [k3usta].

/g/ [g][g1] ocorre diante de uma vogal anterior, como em [g1ia].[g2] ocorre diante da vogal /a/, como em [g2alU].[g3] ocorre diante de vogal posterior, como em [g3ula].

/d/ [d] ocorre sempre exceto diante de /i, i‚, y/, como em [dadU].[dZ] ocorre diante de /i, i‚, y/, como em: [dZireytU].

/t/ [t] ocorre sempre exceto diante de /i, i‚, y/, como em [tasa].[tS] ocorre diante de /i, i‚, y/, como em [tSira].

/l/ [l] ocorre diante de vogal em posição inicial, como em[lata].

[…] ocorre após qualquer vogal, em posição final, como em[a…tU].

5.2 NEUTRALIZAÇÃO5.2 NEUTRALIZAÇÃO5.2 NEUTRALIZAÇÃO5.2 NEUTRALIZAÇÃO5.2 NEUTRALIZAÇÃO

Ocorrem, em português, alguns casos de neutralização consonantal,veja os exemplos:

/r/ e /r*/→ /{*/— em posição inicial ou final da sílaba, porém, nunca,intervocálica. Ex.: /{*atU/ e /pasta{*/;

5 Deixamos de mencionar aqui as inúmeras variantes livres e regionais que existem emportuguês, por não serem características à descrição fonológica, registramos, contudo –porserem mais freqüentes –, algumas variantes do /r*/: [x], [“] e [˙].

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/r*/ e /r/ → /R/ — em posição medial na sílaba, formando grupo com outraconsoante. Ex.: /pRatU/;/s/ e /z/→/S/ — em posição final absoluta ou em final de sílaba internafechada. Ex.: /maS/ e /deStI/;/l/ e /w/→ /W/— em posição final absoluta, ou em final da sílaba internafechada (posição pós-vocálica). Ex: /brasiW/ e /aWtU/.

5.3 GRUPOS CONSONANT5.3 GRUPOS CONSONANT5.3 GRUPOS CONSONANT5.3 GRUPOS CONSONANT5.3 GRUPOS CONSONANTAISAISAISAISAIS

Ocorrem, em português, grupos consonantais iniciais formados deuma oclusiva ou uma fricativa, mais uma lateral ou vibrante, como em:/briza/ e /klima/.

No meio da palavra, existem grupos separados por sílabas contíguas,como em: /kar-ta/, e outros pertencentes à mesma sílaba, com em: /li-vro/, /pers-pikaS/.

No final de palavra e sílaba, raros são os grupos consonantais, con-quanto existam, como em : /bisepS/ e /torakS/.

Note-se ainda o aparecimento, em nível de grafia, de alguns grupos;referimo-nos aqueles que ocorrem separados por um [i] átono, como em/afita/, ritimo/ e /adivogado/.

5.4 NA5.4 NA5.4 NA5.4 NA5.4 NATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICATUREZA SILÁBICA

20 padrões silábicos foram registrados no português: V, CV, VC,CVC, CCV, CVCC, CCVC, V 5V, VV 5, V 5VV,VV 5C, V 5VC, CVV 5, CV 5V,CVV 5C, CV 5VC, CCVV 5, CV5VV5, CCVV5C, CV5VV 5C, como em, respectiva-mente:/a/, /na/, /oS/, /for-na-da/, /kla-vI/, /perS-pi-kaS/, /treS/, /yo-yo/, /ey-SU/, /waw/, /aws-tra-lya/, /yo-yoS/, /kay/, /a-gwa/, /pawS/, /kwar-tU/, /Klaw-dyU/, /sa-gwãw/, /grawS/ e /kwayS/.

5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO5.5 BASE DE ARTICULAÇÃO

A base de articulação do português apresenta as seguintes caracte-rísticas:

a) mais ou menos tensa; as consoantes tendem a uma articulaçãofraca;

b) a zona gutural não é importante; a zona palatal, sim;c) as fossas nasais são solicitadas na articulação de vogais.

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6. QUADRO CONTRASTIVO6. QUADRO CONTRASTIVO6. QUADRO CONTRASTIVO6. QUADRO CONTRASTIVO6. QUADRO CONTRASTIVO

Antes de estabelecer um quadro contrastivo que privilegiará as dife-renças, registram-se as seguintes semelhanças:

a) fonemas existentes nas duas línguas: /a/, /i/, /u/, /b/, /f/, /m/,/n/, /t/,/d/, /l/, /r/, /k/, /Z/, /z/, /S/, /w/ e /y/.

b) traços pertinentes: oclusiva, fricativa, lateral, vibrante, nasal; bilabial,labiodental, linguodental, alveolar, palatal, velar; central, média, aberta, fe-chada, semi-fechada; surda, sonora e oral.

c) Padrões silábicos existentes nas duas línguas: CV, CVC, CVCC,V 5V, CVV 5 , V5VC e CV5VV.

ÁRABE PORTUGUÊS

a) INVENTÁRIO: a) INVENTÁRIO:Fonemas totais: 35 Fonemas totais: 3327 consoantes, 6 vogais e 2 semivogais. 19 consoantes, 12, vogais e 2

semivogaisb) FONEMAS EXISTENTES EM ÁRABE E NÃO b) FONEMAS EXISTENTES EM EM PORTUGUÊS: PORTUGUÊS E NÃO EM ÁRABE:

/ƒ/ /r*//÷/ /p//d8/ /g//T/ /v//D/ /ñ//D8/ /¥//h/ /ã/// /e//x/ /E//s8/ /o//t8/ /ç//// /õ//q/ /i‚‚// l8 / /u‚//a˘//i˘//u˘/

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c) TRAÇOS PERTINENTES EXISTENTES c) TRAÇOS PERTINENTES EXISTENTES EM ÁRABE E NÃO EM PORTUGUÊS: a EM PORTUGUÊS E NÃO EM ÁRABE: duração da vogal é pertinente. _____________________.

_____________________. é pertinente o traço nasal para a vogal. são pertinentes os traços

_____________________. semi-aberta e semi-fachada para a distinção dos signos.

.a ênfase é um traço pertinente. .a geminação é pertinente.d) ALOFONES: d) ALOFONES:combinatórios combinatórios/t/: [t], [th]. /k/: [k], [k1], [k2], [k3]./k/: [k], [kh]. /g/: [g], [g1], [g2], [g3]./b/: [b], [p]. /d/: [d], [dZ]./r/: [r]. [r8]. /t/: [t], [tS]./a/: [a], [Q]. /l/:[l], […]./a˘/: [a˘], [Q˘]. /a/: [a], [A], [å], [F]./i˘/: [i˘], [ˆ˘].

Livres ou regionais: os mais Livres ou regionais: os maiscaracterísticos característicos

/Z/: [Z], [g] e [dZ]. /r*/: [r*], [˙], [“] e [x]./D8/: [D8], [z8]./i/: [i] e [e]./u/: [u] e [o].e) ARQUIFONEMA: e) ARQUIFONEMA:Não existente. /I/, /U/, /E/, /O/, /R/, /{*/, /S/, /W/.

f) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS f) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS CONSONANTAIS: CONSONANTAIS:

Em palavras: Em palavras:posição inicial: todas em posição inicial: todasposição medial: todas em posição medial: todasposição final: todas em posição final: /R/, /l/e /S/.Em sílabas: Em sílabas:posição inicial: todas. posição inicial: todas.posição medial: nenhuma. posição medial: nenhuma, exceto /l/

e /r/ como o segundo elemento de

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um encontro consonantal.posição final: todas. posição final: /R/, /l/ e /S/.

g) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS g) DISTRIBUIÇÃO DOS FONEMAS VOCÁLICOS: VOCÁLICOS

Em palavras: Em palavras:posição inicial: nenhuma. em posição inicial: todas.posição medial: todas. em posição medial: todas.posição final: todas. em posição final: todas.Em sílabas: Em sílabas:posição inicial: nenhuma. posição inicial: todas.posição medial: todas. posição medial: todas.posição final: todas. posição final: todas.

h) GRUPOS CONSONANTAIS: h) GRUPOS CONSONANTAIS:todas as consoantes podem bom número de consoantes formarformar grupos. grupos inseparáveis constituídos de

uma oclusiva ou fricativa seguidaspor uma lateral ou vibrante. Encon-tros com /rs/ e /ls/ são possíveis.

i) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS i) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS CONSONANTAIS: CONSONANTAIS:

Em palavras: Em palavras:posição inicial: nenhum. posição inicial: /bl/, /dl/, /kl/, /gl/,/pl/,

/vl/, e /br/, /dr/, /kr/, /gr/, /pr/ e /tr/numa posição pré-vocálica. Alémdisso observa-se a ocorrência, em-bora rara, de /pt/, /pn/, /ks/ e /ps/.

posição medial: todas as posição medial: alguns encontrosconsoantes podem formar dênticos ao que ocorrem na posi-grupos, porém sempre ção anterior, além de /tl/ e /vr/, alémseparáveis. dos existentes em sílabas contínuasposição final: todas as consoantes posição final: /pS/, /kS/ como empodem formar grupos. /bisipS/ e /torakS/.

Em sílabas: Em sílabas:posição inicial: nenhum. posição inicial: os mesmos que ocor-

rem na mesma posição em palavras.

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posição medial: nenhum. posição medial: nenhum.posição final: todas as consoantes posição final: existem dois grupospodem formar grupos inseparáveis /rs/ e /ls/, como em /perspektiva/ eem sílabas dentro de palavras não /solstisyU/ que ocorrem numa po-marcadas pelo caso. Em caso sição pós-vocálica.contrário, não existirão.j) GRUPOS VOCÁLICOS: j) GRUPOS VOCÁLICOS:Apenas ditongos orais. Existem ditongos e tritongos orais e

nasais2 decrescentes: /aw/ e /ay/. 11ditongos,decrescentes orais:/aw/,

/Ew/, /ew/, /iw/, /ow/, /ay/, /Ey/,/ey/, /çy/, /oy/, e /uy/. Podendoacrescentar ainda /çw/e /uw/ queocorrem apenas com a vocalizaçãodo /l/ pós-vocálico.

_________________. 5 ditongos decrescentes nasais/ãw/,/ãy/, /õy/, /eÚy/ e /uÚy/.

12 crescentes: /wa/, /wa˘/, /wi/, 12 ditongos crescente orais: /wa/,/wi˘/, /wu/, /wu˘/, /ya/, /ya˘/, /yi/, /we/, /wE/, /wi/, /wo/, /wç/, /ya/, /yi˘/, /yu/ e /yu˘/, sem flutuação /ye/, /yE/, /yo/, /yç/ e /yu/, comde pronúncia. flutuação de pronúncia.

7 ditongos crescentes nasais:_________________. /wã/, /weÚ/, /wiÚ/, /yã/, /yeÚ/, /yõ/

e /yuÚ/.existem 3 tritongos, embora raros: 5 tritongos orais: /way/, /wey/,/yay/, /way/ e /wa˘w/ /waw/, /wiw/ e /wow/.

não existem. 3 tritongos nasais: /wãw/, /weây/e /wõy/.

não ocorrem hiatos. ocorrem hiatos.k) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS k) DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS VOCÁLICOS: VOCÁLICOS:

Em palavras: Em palavras:posição inicial: os crescentes. posição inicial: ocorrem vários.posição medial: ambos os tipos posição medial: ocorrem vários.podem ocorrer. posição final: ocorrem vários.posição final: os decrescentese alguns crescentes, cuja vogal éa breve.

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Em sílabas: Em sílabas:posição inicial: os crescentes. posição inicial: ocorrem.posição medial: os decrescentes. posição medial: ocorrem.posição final: os decrescentes. posição final: ocorrem.

l) A SÍLABA l) A SÍLABAPadrões silábicos:8 Padrões silábicos: 20Padrões existentes em árabe e Padrões existentes em português enão em português: apenas um: não em árabe:V5VV 5 — não estamos consider- V, VC, CCV, CCVC, VV 5,VV 5C,ando o caso da interjeição uau do CV5V, CV 5VC, CCVV, CV 5VV 5, português. CCVV5C e CV5VV 5C.

As consoantes e a sílaba: As consoantes e a sílaba:Seqüência de consoantes iguais Não são possíveis seqüências deem sílabas contínuas são possíveis. duas consoantes iguais na mesma

sílaba nem mesmo em sílabas con- tínuas.

Os fonemas /m/ e /n/ são possíveis Os fonemas /m/ e /n/ não são possí-em posições pós-vocálica. veis numa posição pós-vocálica fi-

nal. Ocorrem graficamente nessa posição para indicar a nasalização da vocal precedente.

Todas as consoantes podem travar Apenas /l/, /r*/ e /S/ podem travar aa sílaba. sílaba.

As vogais e a sílaba: As vogais e a sílaba:Não iniciam sílabas. Iniciam sílabas.são influenciadas pela consoante não são influenciadas pela consoan-adjacente (principalmente pelas te adjacente. Nota-se o contrário,enfáticas) provocando ocorrência como no caso da consoante /l/ que de alofones. se vocaliza quando antecedida por

vogal, numa posição final de pala-vra.

m) BASE DE ARTICULAÇÃO: m) BASE DE ARTICULAÇÃO:muito tensa. pouco tensa.nenhuma ação das fossas nasais ação das fossas nasais na articula-na articulação das vogais. ção das vogais.importância da zona gutural. extinção da zona gutural.

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importância do modo de articulação importância da zona palatal.das consoantes enfáticas.

7. 7. 7. 7. 7. ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

As implicações pedagógicas a serem mencionadas aqui não devemser entendidas como radicalmente prescritivas, pois não se pode desconsiderara ocorrência de outros fatores, igualmente importantes no processo de ensi-no/aprendizagem da língua árabe por alunos brasileiros. Frise-se que os da-dos registrados aqui foram resultados da análise contrastiva teórica, o queacarreta a necessidade de serem testados; enquanto não se faça isso, ficamno campo da predição.

Isto colocado, tais implicações levam em conta tanto a produçãoquanto a emissão.

a) quanto à percepção:O aluno de língua estrangeira configura-se como um mau ouvinte,

principalmente nos primeiros estágios da aprendizagem, uma vez que ossons estrangeiros com que o aluno depara serão processados em termosdas unidades fonêmicas de sua língua nativa e não nas da língua alvo. Destaforma, consideram-se difíceis todos os fonemas árabes que não encontramequivalência na língua portuguesa (verifique o quadro contrastivo, item b).

b) quanto à emissão:O contraste indica que, ao efetuar seqüências fonológicas, o aluno

brasileiro deve aprender 1) a produção da consoante geminada, 2) a articu-lação das consoantes enfáticas e que essas condicionam o modo de articu-lação das vogais adjacentes, aprender e exercitar a utilização da zona gutu-ral, 3) a articulação dos fonemas laríngeos, faríngeos e o fonema uvular,e a diferenciar, nos dois primeiros casos entre surda/sonora, 4) a articula-ção da oclusiva laríngea surda ///— a hamza do árabe — seguida por vo-gal, 5) a diferenciar entre o fonema laríngeo /h/ e faríngeo //; além de nãoconfundir esse último com [˙] — um dos alofone do /r*/ em português, 6) adiferenciar entre /q/ e /k/; /ƒ/ e /x/— lembrando que apenas o /k/ existe emportuguês, 7) a aplicar o traço de duração das vogais longas, 8) a nãovocalizar o /l/ pós-vocálico, final de sílaba, 9) a não nasalizar as vogaisseguidas das consoantes nasais /m/ e /n/ (sílaba travada) e a empregar umatensão mais elevada.

Deve-se, contudo, registrar que os resultados colocados até o mo-mento enfatizam as diferenças. Seria ingenuidade, porém, supor que apenasestas são sinônimos de dificuldade e que as semelhanças não provocam

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interferência no processo de ensino/ aprendizagem. Aproveitando os pres-supostos de Jim Meyer6 a respeito da análise contrastiva, alguns aspectospodem ser sublinhados como indicadores de transferência.

a) quanto à percepção:Em princípio, os casos de proximidade fonética e de distribuição

diferente são considerados como os mais difíceis. Ressalta-se, porém, queos dados observacionais é que definirão mais precisamente as ocorrênciase as dificuldades.

b) quanto à emissão:Percebe-se que entre os fonemas árabes que não encontram equiva-

lência em português – /T/, /D/, /ƒ/, //, /h/, /÷/, /q/, /x/, ///, /l8 /, /t8/, /d8/, /D8/,/s8/ –, há alguns que parecem ser mais candidatos à interferência de que osoutros. Entre esses, todos os enfáticos, exceto /D8/ podem ser articuladospelos estudantes brasileiros como /l/, /t/,/d/ e /s/, uma vez que a ênfase é oúnico traço que diferencia os dois grupos – traço esse inexistente em portu-guês. No caso do /D8/, que não encontra em português nem o correlativonão-enfático – /D/ – , a dificuldade de articulação tende a ser maior e ainterferência manifestar-se-ia na produção de /z/, como veremos mais adi-ante.

Se se analisar /T/ e /D/, fonemas cuja zona de articulação é ainterdental, percebe-se que o papel da língua durante a articulação dessesdois fonemas é o de pressionar os dentes incisivos. Não existindo essa zonaarticulatória no português, a língua pode passar para o ponto de articulaçãomais próximo, tocando, assim, os incisivos por trás, o que resulta na articu-lação do /s/ e do /z/ – as duas alveolares surda e sonora, respectivamente– visto que a única diferença entre esse par e /T/ e /D/ do árabe estaria nazona de articulação (alveolar/interdental). Disso decorre, também, a ten-dência de articular /D8/ com /z/ ou até como [z8], ou seja, uma realizaçãoenfática do /z/, por não encontrar uma correlativa não-enfática em portugu-ês, como no caso das outras consoantes enfáticas.

Com relação aos outros fonemas inexistentes em português, excetu-ando as enfáticas e o par interdental discutidos acima, pode-se dizer que asdificuldades manifestam-se diferentemente nos dois níveis: parece que //, /÷/, /q/ e /// apresentarão dificuldade maior no nível perceptual do que asoutras /ƒ/, /h/ e /x/.Essas, no entanto, além de não existirem em português,

6 Ver “Contrastive phonology: Particle, Wave, Field”. IRAL, v. XXV/3, 1987, p.214. Nesteartigo, o autor tenta mostrar que se se aplicar a teoria tagmêmica à análise contrastiva,pode-se estar construindo uma base teórica mais sólida do contraste, o que levará de um ladoa uma compreensão melhor das diferenças e semelhanças entre fonemas da mesma língua,e do outro a resultados mais completos ou pelo menos a conclusões menos limitados.

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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS – ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.

mostrarão grande dificuldade em nível de produção, o que pode ser explica-do pela proximidade fonética.

É preciso, também, aludir aos fonemas e traços existentes em portu-guês mas não em árabe, que a princípio não deveriam causar dificuldades emuito menos interferências. Mas estudando melhor, por exemplo, o fato daexistência de vogais nasais em português e sua ausência em árabe, aventa-se que tal fato pode levar a algum tipo de interferência – se a análise forfeita em termos distribucionais. As vogais árabes correm o risco de sernasalizadas pelos estudantes brasileiros quando seguidos pelas consoantesnasais /m/ e /n/, fonemas existentes em ambas as línguas, mas cuja distribui-ção apresenta-se diferentemente na sílaba – lembrando que, em português,essas consoantes não travam sílabas como o fazem em árabe. Portanto, épossível que ocorra uma nasalização de vogais árabes sucedidas por fonemasnasais; tal ocorrência pode ser observada no exemplo seguinte:/bayta˘n/ ‘duas casas’ > /baytã/.

Um fonema existente em português, mas não em árabe é o /r*/, que sedefine como vibrante múltipla opondo-se a /r/, vibrante simples. O /r/árabe divide com o /r/ português todos os traços exceto o simples, obvia-mente pela ausência de um outro múltiplo. Mas, se se analisar, em termosdistribucionais, o fato do aparecimento da geminada em árabe, que se dásempre em contexto intervocálico – o mesmo contexto em que aparece o /r*/ em português – e pelas próprias características articulatórias da geminada,que dão a impressão de uma ‘realização múltipla ou dupla’, presume-se quetal característica distribucional dos dois erres pode levar a uma dificuldadede percepção da geminada /rr/, e até a sua confusão, em termosarticulatórios, com o /r*/.

Fazem-se necessárias, portanto, algumas considerações a respeitode determinados casos que a análise contrastiva pode indicar – inclusiveaos casos descritos acima –, tentando verificar suas implicações para oprocesso comunicativo.

· Com relação à ênfase:Sabe-se que a ênfase é uma característica articulatória inexistente

em português. Dessa forma, numa fase inicial, trará ao aluno brasileiro difi-culdades tanto de percepção quanto de articulação. Todavia, como a ênfaseé um traço pertinente em árabe e distingue signos, a intenção de se comuni-car em língua árabe fará que o aluno brasileiro se esforce para sanar taldificuldade rapidamente.

· Com relação à nasalização das vogais árabes:O inverso do descrito acima deve ocorrer com relação à dificuldade

em ‘não-nasalizar’ as vogais árabes que antecedem os componentes nasais(/m/ e/ /n/). Em árabe, o traço nasal não existe como traço pertinente ou

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7 Palavras constituídas de duas ou três sílabas breves tem o acento na primeira sílaba.8 Sendo o acento um traço supra-segmental, não entraremos um detalhes, pois a nossa

pesquisa estudou apenas o nível segmental. Entretanto, uma vez que esta questão envolve– do lado árabe – um traço segmental (a duração da vogal), cremos oportuno fazer mençãoa este tipo de transferência possível que a AC pode indicar, apesar de estar tratando – dolado do português – de um fato supra-segmental.

distintivo; o aluno brasileiro, ao pronunciar as vogais orais do árabe comonasais, no referido contexto, não estaria criando um novo signo, no máximo,estaria realizando uma pronúncia errônea. Vê-se que sanar tal tipo de difi-culdade será mais demorado, uma vez que não oferece graves prejuízos àcomunicação. Observa-se, ainda, que /m/ e /n/ não representam dificulda-des articulatórias para o aluno brasileiro, que os emitirá perfeitamente quan-do não estiverem em posição pós-vocálica.

Vale ressaltar que, neste caso, a interferência do sistema gráfico dasduas línguas pode ser responsável pela falha na nasalização das vogaisorais do árabe antes do elemento nasal. Sabemos que, numa posição pós-vocálica final de sílaba, /m/ e /n/ não existem em português, e que seusrespectivos grafemas – m e n – funcionam como índices de nasalização davogal precedente. No árabe, tais elementos existem numa posição pós-vocálica e as letras que as representam também. Disso, aventa-se que aprovável nasalização das vogais árabes seja decorrente de uma transferên-cia em nível de sistema de escrita. Para ilustrar o fato, escolhemos os exem-plos seguintes: o m na palavra portuguesa selim indica apenas a nasalizaçãoda vogal /i/, transcrevendo-se fonologicamente /seli/; enquanto o m da pala-vra árabe sali˘m trava a sílaba e não afeta a vogal anterior, representando-se assim: /sali˘m/. Note-se que nessa posição o /m/ existe em árabe, masnão em português, o que leva a crer que o aluno brasileiro, ao ‘transferir’ anasalização para as vogais árabes pode articular a palavra do exemplo aci-ma como /saliÚ/, o que constituirá uma pronúncia errônea, porém não preju-dicial ao processo de comunicação.

· Com relação à duração da vogal.A duração da vogal em árabe é um traço pertinente, enquanto em

português não é pertinente, conquanto exista. Vimos que isto pode levar aalgumas confusões da parte do aluno brasileiro. Em português, as vogaissão longas onde a sílaba é tônica, enquanto o acento, em árabe, é condicio-nado essencialmente pelas vogais longas.7 Uma transferência de regras doacento português pode ocorrer e ser aplicada aos vocábulos árabes, o quena maioria dos casos causará prejuízo à comunicação, uma vez que o traçode duração da vogal é pertinente em árabe.8 Essa previsão pode ser verificada

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JUBRAN, Safa Alferd Abou Chahla. ÁRABE–PORTUGUÊS – ASPECTOS CONTRASTIVOS NO PLANO FONOLÓGICO.

em casos deste tipo: no vocábulo português /ka»nal/, o acento cai na segun-da sílaba, enquanto na palavra árabe /»jamal/ ‘camelo’, o acento cai na pri-meiro sílaba. Se o aluno brasileiro transferir as regras de acentuação carac-terísticas da língua portuguesa correrá o risco de produzir um outro signo/jaÈmaùl/ ‘beleza’. Neste sentido, então, dizemos que esta transferênciapode prejudicar a comunicação.

· as semelhançasA introdução de um [i] átono para separar os elementos de um grupo

consonantal, como em /pineu/ também pode ser considerado um tipo desemelhança que leva a dificuldades. Ocorre que grupos consonantaisinseparáveis em árabe existem apenas em final de palavra – e quando estanão estiver marcada pelo caso – podendo ocorrer, às vezes, a inserção deum [i] átono entre os dois elementos provocando assim a separação dosdois elementos em sílabas contíguas. O aluno brasileiro, desta forma, pro-nuncia [kalib] em vez de /kalb/ ‘cão’.9 Nesse caso, a comunicação não seráprejudicada, uma vez que tal desvio não leva ao surgimento de um novosigno na língua.

Contudo, a nosso ver, o caso mais importante que se destaca dentre asdificuldades causadas por semelhança e decorrentes da proximidade fonéticaé o caso do /r*/ do português e, mais especificamente, suas variantes livres10.

Os traços o velar do [x] e o aspirado do [˙], que também sãocomuns a alguns fonemas do árabe que não existem em português como /x/e /h/, acabam configurando, de certo modo, semelhanças que podem trazerinterferências. Disso decorre que fonemas árabes serão confundidos comvariantes portuguesas e, conseqüentemente, com o próprio fonema que acusatais variantes. Em resumo, o estudante brasileiro pode se deparar com oseguinte problema: perceber o /r/ árabe da mesma forma como [˙] do por-tuguês e /x/ e /h/ do árabe como variantes do /r*/ do português, pois a articu-lação ‘garganteada’ do [x] (variante do /r*/) é semelhante aos sons guturais[x] e [h] do árabe.

Tal confusão representa uma interferência decorrente de semelhan-ças fonéticas parciais e comuns a fonemas, de uma lado e a variantes, dooutro. Cremos que esse exemplo pode servir de alerta para o ensino delíngua estrangeira em geral, uma vez que semelhanças entre fonemas oualofones também podem indicar dificuldades e que o processo de aprendi-zagem pode sofrer interferências provenientes dessas semelhanças.

9 A vogal pode também ser [u] se a primeira vogal da palavra for /u/, como em /qut8b/ >[qut8uuuuub] (pólo).

10 Ver nota 5

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Outro fato envolvendo fonemas semelhantes deve ser mencionado.Referimo-nos à expressão fonética e ao conteúdo fonológico dessesfonemas. Se analisarmos o fonema /t/, constatamos que sua expressão fo-nética é interlingüística em ambas as línguas. Todavia, a definição de /t/,isto é, seu conteúdo fonológico, suas oposições frente aos demais fonemasde cada um dos dois sistemas é intralingüístico, variando em cada umadas línguas citadas.

Em árabe, que conhece oclusiva, linguodental, surdas e sonoras e ain-da enfáticas e não enfáticas, o conteúdo fonológico do /t/ é a sua diferençaem relação à oclusiva, linguodental sonora /d/ e à oclusiva, linguodental surda,enfática / t8/. Em português, que só conhece oclusiva, linguodental e surda,/t/ não há outro conteúdo fonológico além de sua diferença em relação àoclusiva, linguodental e sonora /d/. O mesmo ocorre com relação ao /d/ que,em árabe, se opõe tanto ao /t/ quanto ao /d8/. Em português, /d/ opõe-seapenas ao /t/.

Com relação às fricativas, temos, em árabe, o /s/ opondo-se ao /z/ eao /s8/, enquanto, em português, essa oposição se restringe ao /z/. Contudonota-se que o /l/, em português, tanto se opõe ao /r/ e /r*/ como também ao/¥/; em árabe, o /l/ opõe-se ao / l8 / e /r/.

Presume-se, portanto, que esse fato deve ser levado em conta, porestar envolvendo elementos com expressão fonética semelhante, porémconteúdo fonológico diferente, o que pode servir também de alerta duranteo processo de ensino/aprendizagem da língua árabe por alunos brasileiros,principalmente em termos articulatórios.

Parece que a maioria das dificuldades não reside na presença de umelemento numa língua e sua ausência em outra, mas sim, na proximidadefonética entre fonemas ou sons e na distribuição diferente de fonemas esons iguais nas duas línguas, como ainda, nas oposições que envolvemesses fonemas em relação aos outros do mesmo sistema.

Deve-se, enfim, fazer algumas referências à parte que toca o docen-te no processo de ensino/aprendizagem. O primeiro ponto importante a res-saltar é o seguinte: deve-se ter consciência que o melhor meio de ensinarum sistema fonético ou fonológico de uma língua estrangeira é fazê-lo atra-vés de contrastes. As pesquisas sobre este aspecto têm indicado eficiênciae resultados positivos. Dessa forma, considere-se importante que o docentede língua árabe tome algumas atitudes durante o processo de ensino/apren-dizagem:

· ensinar sempre os fonemas por meio do contraste entre os elemen-tos das duas línguas e entre os elementos da mesma língua;

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· ensinar tais fonemas dentro de vocábulos ou ao menos na sílaba;· fazer que o aluno ouça várias vezes a mesma pronúncia;· fazer que o aluno repita várias vezes a mesma pronúncia até chegar

mais próximo da articulação desejada;· mostrar ao aluno a diferença que há entre fatos interlingüísticos e

intralingüísticos (expressão fonética e conteúdo fonológico);· insistir, sobretudo, no contraste enfático/não enfático;· insistir, no caso das vogais, em pares contrastivos que evidenciem a

duração;· fazer que os alunos repitam os fonemas dentro de sílabas ou pala vras logo após o professor;· fazer com que o aluno tenha acesso – quando possível – à fala

nativa;· ter consciência de que não só as diferenças podem provocar difi-

culdades mas também as semelhanças.

C C C C CONCLUSÃOONCLUSÃOONCLUSÃOONCLUSÃOONCLUSÃO

O contraste efetuado entre os traços fonológicos em nível segmentalpode indicar algumas áreas problemáticas no processo de ensino/aprendi-zagem da língua árabe por alunos brasileiros, além de alertar para certasinterferências que possam ocorrer, provocadas não só pelas diferenças, mastambém pelas ‘falsas semelhanças’ que se configuram através da distribui-ção diferente dos fonemas ‘comuns’ e pela proximidade fonética. O con-traste, da forma que foi efetuado, pode – apesar de teórico – resultar emalgumas sugestões práticas que tanto possibilitariam a composição de ummodelo lingüístico-pedagógico para a melhoria do ensino dos aspectos foné-tico-fonológicos, quanto a elaboração de materiais didáticos que orientem aatividade docente no processo, oferecendo bases mais firmes na utilizaçãode técnicas associativas e contrastivas.

BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIA

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Vozes, 1988.

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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p.149-171, MARÇO,1997

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A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UMA MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UMA MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UMA MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UMA MÚSICA POPULAR ISRAELENSE – UMPRODUTO PLURICULPRODUTO PLURICULPRODUTO PLURICULPRODUTO PLURICULPRODUTO PLURICULTURALTURALTURALTURALTURAL

Eliana Rosa Langer

A música não é um mero arranjo de sons baseados em intervalosdefinidos. A música é, também, a linguagem do sentimento e também oreflexo de experiências culturais.Todo povo possui canções que o acompa-nham ao longo de sua história, algumas das quais podem nos revelar even-tos reais e situar-nos no tempo em que os mesmos se deram.

O povo judeu, em especial, tem uma ligação profunda com a música.Esta tradição musical aparece nos diversos segmentos da mesma, passandopela música litúrgica, seguindo pela clássica e alcançando a popular.

O canto litúrgico tem um papel muito importante na vida dos judeusdesde os tempos mais remotos, haja visto os instrumentos musicais descri-tos na Bíblia, utilizados nos serviços religiosos do Templo Sagrado. Estamusicalidade religiosa é parte integrante do culto da sinagoga e estas liturgiasfazem parte da vida de todos os judeus, inclusive dos não religiosos, servin-do-lhes de fator de integração e de identificação.

Todo músico traz consigo o espírito de seu tempo e de seu ambiente,sendo o elemento mais importante de sua criação artística, a sua bagagemcultural trazida do lar de seus pais. As primeiras gerações em Israel trouxe-ram consigo o peso da cultura que os havia nutrido, apreciavam seus valorese procuravam dela extrair a substância. Nos anos que precederam o estabe-lecimento do Estado de Israel (1948) até o início do século, os meios de comu-nicação ainda não haviam se desenvolvido, portanto a cultura vinda com cadaimigrante era o ingrediente mais importante para a criação artística.

Os israelenses são conhecidos pelo seu grande amor à música. Diz-se que basta colocar um violão nas mãos de um “sabra”1 ou oferecer-lheum “khalil”2 ou um acordeon, e fazer com que todos se sentem ao redor deuma fogueira na praia ou no campo, ou numa sala elegante, ou num refeitó-rio coletivo de um “kibutz”3 ou ainda num barzinho de Tel-Aviv, numa sexta-feira à noite, para que o ambiente se encha de canções.

1 Pessoa nascida em Israel. É o figo da índia, fruta que possui espinhos por fora e é doce pordentro, símbolo do temperamento do nativo israelense.

2 Flauta doce, instrumento muito popular em Israel.3 Colônia agrícola coletiva, criada em Israel para a ocupação e cultivo do solo. É um tipo de

assentamento peculiar ao estado judeu.

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LANGER, Eliana Rosa. A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO PLURICULTURAL.

A música desempenhou um papel muito importante na cultura israe-lense quando esta buscava uma identidade. Nos anos 20, a vida musical deIsrael apenas começava e havia indagações a respeito do rumo que deveriatomar e das formas a serem adotadas, pois o povo que chegara ao país eraproveniente de locais bastante distintos com culturas muito diferentes.

Os artistas deveriam ser os porta-vozes da sociedade, expressandoseus sofrimentos, suas alegrias e seus costumes. Através de melodias judai-cas, litúrgicas e os “nigunim”4, a identidade nacional seria expressada. Amúsica de Israel deveria ser a ponte entre as diversas culturas musicais queali chegaram e se amalgamaram. O povo judeu, ao retornar a seu país apósmilênios de exílio, deveria desenvolver uma música que retratasse os paísesda dispersão.

Inicialmente, procurou-se integrar os elementos da música do orientee do ocidente. Esta integração porém, deu-se de forma artificial. Músicosque não haviam se formado na cultura oriental decidiram compor em línguahebraica para conjugar sua composição com o oriente. Em outros casos,músicos de origem oriental compunham música ocidental que, por sua vez,era interpretada por cantores cuja origem étnica geralmente era oriental.

Tivemos também a unificação da música yemenita, trazida pelos ju-deus provenientes do Yêmen, com a de outros grupos étnicos com a inten-ção de formar um estilo israelense. O resultado foi uma canção yemenita deinfluência européia, sendo que somente a pronúncia se manteve.

As técnicas modernas e uma linguagem de movimento integrado fo-ram combinadas com temas e conteúdos tomados da vida yemenita e deoutros grupos étnicos: a bíblia, o deserto, o cultivo de terra e outros temas.

Porém, como já dissemos, a música é a linguagem do sentimento, e aadoção de uma cultura musical no lugar de outra implica a adoção de umasérie de valores e símbolos e não apenas alguns retoques externos.

Hoje em dia, esta fusão de elementos orientais e ocidentais já fazparte de forma espontânea da criação dos artistas. As melodias orientais, oscantos litúrgicos sefaraditas, os “nigunim” da Europa Oriental deixaram deser algo exótico para o povo nascido e criado em Israel, não se constituindoem fontes para serem citadas, tornando-se parte inseparável da experiênciado povo israelense.

Não podemos ignorar os motivos ideológicos que envolvem os laçosentre o passado do povo judeu e o seu retorno à língua ancestral, o qual, semdúvida, proporcionou a muitos compositores meios especiais de expressão.

4 Melodias judaicas tradicionais da Europa oriental.

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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 173-176, MARÇO,1997

A canção hebraica, segundo Hirshfeld5, especialista em literaturahebraica, é uma mistura de elementos de música popular e de música artís-tica, pois seus compositores tinham uma formação clássica e eram ouvintese apreciadores de Bach, Beethoven e outros.

Para aqueles que não conhecem bem a história de Israel, o fato damaioria das canções israelenses terem por tema a “ânsia pela paz e a triste-za pelas perdas advindas de guerras” poderá causar certa estranheza, po-rém, isto se deve à história de Israel se basear na luta pela existência. Ocotidiano do povo israelense, desde sua criação, tendo sido pautado porcrises, fez com que a música tenha sempre representado um refúgio parasua alma.

Tais canções são conhecidas por cantos da “velha e boa terra deIsrael”. É a nostalgia que enche os corações, cantos entoados na juventude,que retratam os esforços dos primeiros anos de colonização, como tambémos amores da adolescência. Muitos deles retratam a terra e sua natureza, asestações do ano, os campos, ovelhas com seus pastores e flautas.

É difícil definir o que caracteriza a canção israelense. Há quem dis-tinga dois tipos:

1. “Canção hebraica” – que remete aos “cantos da velha e boa Isra-el”, cujas melodias são geralmente uma adaptação das melodias eslavastrazidas pelos primeiros compositores do país. Através desta canção canta-da em conjunto, revive-se a camaradagem dos tempos passados, e cultua-se a fraternidade. A Bíblia, a qual ajudara na preservação da peculiaridadedo povo judeu por milênios, servia agora de fonte para o lirismo e para o usoda língua hebraica, tornando-a carregada de sofrimento e santidade.

Uma vez que os judeus viviam realmente em Israel, eles alegravam-se e entristeciam-se no país, amando-o. Surgiu então, a necessidade real decantar sobre assuntos seculares em um idioma cotidiano, o hebraico israe-lense. Durante a Guerra da Libertação (1948), cantava-se o heroísmo, oamor à pátria, a memória de camaradas caídos. Enfatizava-se a melodia e amensagem do texto.

2. “Canção em hebraico” - que são as músicas cantadas em hebraico,embora sejam adaptação de melodias e ritmos derivados da música popular

5 Ariel Hirshfeld, professor de literatura hebraica na Universidade Hebraica de Jerusalém.Alusão à palestra proferida no Workshop sobre “As camadas lingüísticas na nova cançãohebraica: usando a música no ensino de hebraico”, o qual foi realizado na Universidade deJerusalém em julho de 1996.

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LANGER, Eliana Rosa. A MÚSICA POPULAR ISRAELENSE - UM PRODUTO PLURICULTURAL.

importada da cultura ocidental. Quando não havia melodias acessíveis deimediato, eram tomadas por empréstimo melodias francesas. Mais tarde, àmedida que os meios de comunicação foram se desenvolvendo, os músicosforam absorvendo as influências exteriores, os Beatles e a música america-na. Os músicos utilizavam então, melodias já conhecidas e a elas juntaramseu toque pessoal.

A canção hebraica tomou vários rumos divergentes. Quanto mais omundo se torna uma aldeia global, tanto maior é a variedade de estilos mu-sicais adotados em Israel, sendo que quase todos esses estilos, uma vezgravados neste país, possuem também elementos orientais.

Nos últimos vinte anos a noção de pluralismo cultural e musical pro-grediu, permitindo que diversos grupos culturais se expressem da maneiraque julgarem mais apropriada. Isto se dá tanto em meio aos grupos étnicos,como em composições artísticas musicais. Pode-se dizer, portanto, que amúsica contemporânea israelense soube perceber a brecha entre o orientee o ocidente criando uma ponte entre ambos, tornando possível umaintegração de todos os elementos das culturas musicais que se encontramem Israel: oriente, ocidente, branco, negro, clássico, popular, antigo, moder-no, secular e religioso.

BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIA

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Anotações provenientes de Workshop realizado em Julho de 1996 na Universidade Hebraicade Jerusalém - “As Camadas Lingüísticas na Nova Canção Hebraica: utilizando a cançãono ensino de hebraico.”

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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997

SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIOSOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIOSOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIOSOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIOSOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIODENTRO DO INDO-EUROPEUDENTRO DO INDO-EUROPEUDENTRO DO INDO-EUROPEUDENTRO DO INDO-EUROPEUDENTRO DO INDO-EUROPEU

Sandra Maria Silva Palomo

A língua armênia faz parte do grupo lingüístico indo-europeu. Consti-tui importante campo de estudo para a Lingüística Comparativa Indo-Euro-péia e, também, importante campo de estudos lingüísticos-históricos, relaci-onados com a lingüística e história dos povos do Oriente Próximo e Médio.

O armênio é um ramo independente dentro da família das línguasindo-européias e não possui derivados. Pertence ao grupo asiático dessafamília e configura-se como um tipo particular, entre o grego e o irânico. Emvárias tábuas genealógicas das línguas, o armênio é qualificado como “gru-po isolado” dentro do grupo indo-europeu.

O problema da posição do armênio como um ramo especial na famí-lia indo-européia surge com os trabalhos do lingüista alemão H.Hübschmann.Por muito tempo, tomou-se o armênio por um dialeto indo-irânico, devido aogrande número de palavras e sufixos persas existentes no seu vocabulário.Hübschmann foi o primeiro a ir contra esta opinião, demonstrando que oarmênio é um idioma independente e distinto.Suas teorias são aceitas pelamaioria dos lingüistas. Segundo elas, a base do armênio é indo-européia,estando, do ponto de vista fonético, no centro do ramo europeu dessa famí-lia lingüística, entre o eslavo-lituano e o albanês; quanto ao vocabulário,entretanto, oferece semelhanças com o grego.

A. Meillet considera que se deva colocar o armênio no grupo orientaldo indo-europeu, mas que está relativamente próximo do grupo ocidental.Segundo este autor, o armênio preservou características do indo-europeu,como os casos gramaticais e a flexão dos substantivos; por outro lado, reco-nhece em sua estrutura , tanto fonética quanto morfológica, forte influênciacaucásica.

Para o professor Y.O.Kerouzian, a posição do armênio dentro dafamília indo-européia é de um membro isolado, devido aos laços étnicos deseu povo com o mundo ocidental e a sua integração definitiva no mundooriental do Oriente Próximo. Diz o autor que, pelo seu vocabulário, seme-lhanças fonéticas e pelas leis gramaticais (derivação e formação de pala-vras, sistema de declinação dos substantivos e de conjugação de verbos ), oarmênio apresenta afinidades com o sânscrito, o frígio, o urartur, o gre-go, o latim e o germano-báltico.

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PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.

Até hoje, há muitas discussões sobre a posição do armênio dentro doindo-europeu. As causas do armênio ser considerado um idioma tão “parti-cular” podem estar baseadas em fatos históricos, através dos quais é possí-vel analisar as várias conexões lingüísticas entre ele e os diversos povos queparticiparam de sua existência, através dos tempos.

Vários cientistas consideram que as particularidades do idioma pro-vêm da localização geográfica da Armênia.

Até os anos setenta, a opinião geral, orientada pelos etnólogos oci-dentais, colocava o berço dos indo-europeus fora da Ásia Menor. Estudosmodernos de pesquisadores armênios, georgianos e russos, realizados emtorno de algumas centenas de línguas, chegaram a localizar e estabelecer aregião do Cáucaso como o verdadeiro berço dos indo-europeus. Foi daí queeles se dispersaram rumo ao Ocidente (continente europeu) e ao Oriente(continente asiático-Índia). A Armênia constitui componente geográfico desteberço; donde o caráter indo-europeu de sua língua e a afinidade desta como grego, o latim, o alemão, o inglês, o eslavônico e o longínquo sânscrito.Mas a Armênia, além de sua vizinhança com o oeste da Anatólia, é fronteriçatambém com o mundo iraniano, no leste e com o semítico, no sul. Desteconvívio resultou, no armênio, a formação de um conjunto vocabular “ para-lelo”, não indo-europeu, e uma fonética abrangente.

O cientista soviético T.H.Toporov, em sua tese “O antigo armênio àluz da reconstrução indo-européia,” considera paradoxal a situação doarmênio no grupo indo-europeu. Como ele, muitos pesquisadores vinculamo interesse investigativo pelo idioma armênio à busca da protopátria dosindo-europeus.

A gramática comparativa histórica das línguas indo-européias, e, porconseguinte, a reconstrução da protolíngua, por muito tempo contentou-seapenas em discutir no armênio os elementos indo-europeus e indicar suascorrespondências. Isto deixava obscuros e incompreensíveis muitos dadosmanifestados nas várias teorias que explicavam a origem do armênio.

Tal incompreensão tem sua lógica e história. Durante longo período,a indoeuropeística baseou-se no sânscrito, segundo o qual se definia o graude antigüidade de um ou outro fato lingüístico.

Mas quando, no século XX, descobriram e estudaram muitas línguasmortas da Anatólia antiga, como o hitita e o lúvio, estas se revelaram maisantigas que o sânscrito. Agora já se pode falar com certeza que o própriosânscrito mudou muito em comparação com a protolíngua indo-européia.Por outro lado, o hitita e o lúvio fizeram os estudiosos ver o armênio de umamaneira nova. É que foram descobertos no armênio, fenômenos, por suanatureza, mais antigos que em qualquer outra língua indo-européia atual-

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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS, n.1, p. 177-183, MARÇO,1997

mente existente e inclusive em algumas línguas mortas, como o própriosânscrito. Por exemplo, o sistema das consoantes conservou no armêniomuitas particularidades da protolíngua indo-européia. É interessante o grupode sons indo-europeus, chamados guturais, que se conservaram nos dialetosarmênios contemporâneos. Desse modo, o caráter exclusivamente arcaicodo armênio fica comprovado pelo fato de que nele o sistema de fonemasantigos do indo-europeu permaneceu mais completamente e por mais tem-po, sendo que o quadro inicial das oclusivas nem ao menos sofreu mudançasfonológicas consideráveis.

Não menos interessante é o caso das vogais laringais. Ainda no sé-culo passado, as laringais, teoricamente, foram reconstruídas pelo lingüistasuíço Ferdinand Saussure. A teoria influiu enormemente na lingüística indo-européia, mas durante muito tempo não se confirmou nas línguas conheci-das. Só passados cinqüenta anos de sua publicação, essas vogais foramdescobertas no idioma hitita, então decifrado, e logo no armênio. É surpre-endente que a língua armênia seja a única das línguas indo-européias vivas,na qual estes sons ainda hoje existam.

Todos estes fatos demonstram a importância da compreensão de queo armênio conservou em si uma profunda antigüidade. Por isso, não se pa-rece tanto ao sânscrito e é visivelmente mais isolado na família das línguasindo-européias. Pelo mesmo motivo, as pesquisas sobre o armênio adquiri-ram, na atualidade, uma significação particular.

T.Gramkrelidzé e V.Ivanov, co-autores da obra “Os indo-europeus eseu idioma.”, em russo, publicada em 1980, pela Universidade de Tiflis,citam provas convincentes de que os portadores da protolíngua indo-euro-péia habitavam o norte da Ásia, precisamente entre as atuais regiões daTurquia Oriental (região da antiga Armênia), norte da Síria, norte do Iraque,noroeste do Irã, entre os lagos Van e Urmia, ou seja, parte do território doqual a Armênia foi elemento geográfico.

Próximas à protopátria, permaneceram as tribos que falavam em di-aletos anatólios ( hitita, lúvio, palayo) e também em língua protoarmênia. Jánas inscrições hieroglíficas lúvias, há menção do homem do país de Hay, enos textos hititas cuneiformes, fala-se do país montanhoso “ Hayasa”. Ambasas referências dizem respeito à região onde veio a se constituir o EstadoArmênio. Junto à protoarmênia integram, dentro da língua indo-européia,num mesmo grupo dialetal, a protogrega e a protoiraniana.

Desta maneira, naquele passado remoto, o armênio estava ligado aosantigos dialetos indo-europeus e é evidente que novas investigações de suahistória são muito importantes para resolver várias questões não aclaradas dalingüística indo-européia, assim como as da própria história dos indo-europeus.

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PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.

O jovem cientista F.Cortland, em sua exposição sobre a origem dadeclinação armênia, examinou quinze etapas do desenvolvimento dasdesinências de caso da protolíngua indo-européia no armênio clássico. De-monstrou que , em alguns casos, o armênio serve de eslabão na reconstru-ção das desinências de caso de outras línguas protoindoeuropéias, tais comoa protogrega e a protoindoiraniana.

O estudo do idioma permite comprovar com quem se avizinhavam osarmênios no transcurso de sua história antiga. Além dos hititas, iranianos,etc., entre os seus vizinhos figuravam também povos não indo-europeus,hurritas eurartianos, o que é testemunhado pelos empréstimos destas lín-guas ao armênio. Por sinal, recentemente, vários empréstimos do urartianoforam descobertos por G.B.Dzhahukian e apresentados em sua obra “Gra-mática Comparativa da Língua Armênia.”

No livro escrito por Gramkrelidzé, dedicado à busca da protopátriados indo-europeus, está apresentada uma espécie de enciclopédia da vidados indo-europeus, elaborada com base numa análise do vocabulário daprotolíngua, referente a três grupos nacionais importantes: meio de habita-ção, cultura material e espiritual e organização social, comentada com da-dos de outras ciências, tais como a arqueologia, antropologia, história, etc...Existem entre estes dados, testemunhos materiais encontrados no territórioda Armênia.

Percebe-se a necessidade urgente de que os cientistas estudem oarmênio em toda a trajetória de sua história, desde a comunidade indo-euro-péia, data de V-IV milênios a.C.

Torna-se imprescindível, aqui, a referência a G.B.Tchahuguian, lin-güista armênio, que tratou profundamente da questão sobre a posição doarmênio dentro do indo-europeu.

Segundo ele, ao falar sobre a posição do armênio, os indo-europeístasconfundem duas coisas: de um lado, o lugar do dialeto armênio primitivo noindo-europeu primitivo, na época da unidade; de outro, o relacionamento doarmênio, na qualidade de língua separada e formada, numa de suas fasesdeterminadas ( geralmente a do armênio antigo clássico, dispondo de escritaprópria ), com outras línguas indo-européias.

No primeiro caso, precisam ser determinados os elementos arcaicos,características dele no período da unidade; enquanto que, no segundo caso,devem ser consideradas, junto com as características arcaicas, as novascaracterísticas, surgidas devido aos contatos do armênio no passado.

Por outro lado, ainda de acordo com Tchahuguian, não se podedesconsiderar que o armênio não se tornou independente num prazo rápido,mas permaneceu num complexo lingüístico, o ariano (indo-iraniano) - grego

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Outra falha das pesquisas até agora, conforme Tchahuguian, é o fatoconstante de não se levar em consideração as afinidades entre as línguas.

Entre os seus trabalhos, há um – sobre paralelismos fonológicos –onde procura mostrar os graus de afinidade entre o armênio e quinze diale-tos indo-europeus. As características consideradas por Tchahuguian dizemrespeito a consoantes, vogais e soantes, levando-se em conta fatos lingüísticosreferentes ao mais antigo e notório representante de cada grupo. De acordocom a quantidade de características fonéticas e fonológicas gerais, os gru-pos lingüísticos envolvidos apresentam graus variados de afinidade com oarmênio, aqui apresentados do mais próximo ao mais distante:

1º) grego2º) frígio3º) trácio4º) eslavônico5º) iraniano6º) báltico7º) céltico8º) germânico9º) hitita10º) tocário11º) ilírico12º) albanês13º) indiano14º) vêneto15º) itálico

Tal resultado difere dos apresentados por G.R.Solta, que desenvol-veu estudo com o mesmo objetivo e com os mesmos dialetos, porém emrelação a paralelismos lexicais. Cumpre notar, também, que se reavaliarmos,em cada grupo, as características que para Tchahuguian trouxeram dúvi-das, teremos algumas diferenças como, por exemplo, a aproximação dotocário e do ilírico e o distanciamento do céltico em relação ao armênio.Além disso, o frígio ficaria em primeiro lugar e o grego, em segundo.

Esta breve exposição demonstra, sem dúvidas, que os estudos sobreo idioma armênio devem continuar tratando de duas questões interessantís-simas, entre outras: 1) o papel dos dados lingüísticos armênios para os estu-dos indo-europeus e 2) a situação particular do armênio dentro do indo-europeu.

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PALOMO, Sandra Maria Silva. SOBRE A POSIÇÃO DO ARMÊNIO DENTRO DO INDO-EUROPEU.

BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA

KEROUZIAN,Y.O. A Literatura Armênia nas primeiras décadas do século XX. In YeeghishéTcharenz e a Moderna Literatura Armênia. Tese de livre docência apresentada ao Depar-tamento de Lingüística e Línguas Orientais da FFLCH-USP. São Paulo, ediçãomimeografada, 1972.

MEILLET,A. Esquisse d’une Grammaire Comparée de l’Arménien Classique. Vienne,Imprimerie des pp. Mekhitaristes, 1936.

TCHAHUGUIAN,G.B. História da Língua Armênia : Período Pré- Escrita. Yerevan,Publicação da Academia de Ciências da Armênia. ( em armênio ), 1987.

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Título REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS Nº 1

Normalização Técnica Margarida M. de Souza - SBD/FFLCH-USP

Editoração Eletrônica Walquir da SilvaCaligrafia da Capa Hassan Massoudy

Revisão dos Autores / Simone Zaccarias

Arte-final e Capa Erbert Antão da Silva

Secretaria Gráfica Eliana Bento da Silva Amatuzzi Barros

Divulgação Humanitas Livraria – FFLCH/USP

Formato 16 x 22 cm

Mancha 11,5 x 19 cm

Papel off-set 75 g/m2 (miolo)

cartão branco 180 g/m2 (capa)

Impressão da capa Quadricomia

Impressão e Acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP

Número de páginas 184

Tiragem 500