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Já está disponível, no site da Instituição, a 10ª edição da Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. O periódico, de edição quadrimestral, conta com artigos das mais diversas áreas do saber jurídico elaborado por Defensores Públicos, Advogados, Magistrados e demais operadores do direito. Esta edição conta com nove artigos distribuídos entre as áreas constitucional, cível, penal, fiscal, ambiental e tributária.
1
REVISTA DA DEFENSORIA PBLICA do Rio Grande do Sul
Porto Alegre/RS 2014
2
ISSN 2177-8116
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Revista da Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul [on line] /
Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul Ano 5, V.10 (setembro/dezembro.2014). Porto Alegre: DPE, 2014
Quadrimestral. Modo de acesso:< http://www.defensoria.rs.gov.br/revista > Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.
ISSN 2177 8116
1. Direito - Peridico I. Rio Grande do Sul (estado). Defensoria Pblica.
CDD 340.05
CDU 34(05)
Ficha Catalogrfica elaborada por Gilmara Gomes - CRB-10/1367
3
DEFENSOR PBLICO-GERAL DO ESTADO
Nilton Leonel Arnecke Maria
CORREGEDORA-GERAL DA DEFENSORIA PBLICA
Yara Nasario
COORDENADOR DA REVISTA DA DEFENSORIA PBLICA
Felipe Kirchner
CONSELHO EDITORIAL
Alvaro Roberto Antanavicius Fernandes
Gustavo Lindenmeyer Barbieri
Vivian Rigo
DEFENSORIA PBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Sete de Setembro, 666 Centro Histrico
CEP 90010-100 Porto Alegre/RS
Tel. 51 3211-2233
www.dpe.rs.gov.br/site/revista_eletronica.php
4
5
APRESENTAO
Com imenso entusiasmo chegamos dcima edio da Revista da
Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul.
O peridico, de edio quadrimestral, conta com artigos das mais
diversas reas do saber jurdico elaborado por Defensores Pblicos,
Advogados, Magistrados e demais operadores do direito.
A faceta multidisciplinar se revela na vasta gama de artigos j
publicados nas edies anteriores mas, para alm disso, reflete a alta
complexidade das demandas que chegam s mos dos Defensores(as)
Pblicos(as), verdadeiros de Direitos Humanos e da Cidadania.
Assim, esta edio conta com nove artigos distribudos entre as reas
do direito constitucional, cvel, penal, fiscal, ambiental e tributrio.
Os artigos iniciais refletem a importncia do Direito Constitucional nas
discusses atuais do sistema jurdico brasileiro. Como primeiro trabalho,
apresenta-se o artigo sobre os critrios de atendimento da Defensoria
Pblica, tema que merece especial ateno. Para tanto, os autores Marcelo
Costa Fernandes de Negreiros e Rodolpho Penna Lima Rodrigues,
Defensores Pblicos do Sergipe e Maranho respectivamente, abordam os
critrios de atendimento das Defensorias Pblicas com uma reviso dos
mais diversos aspectos da vulnerabilidade e hipossuficincia.
Tambm na rea constitucional apresenta-se o artigo da bacharela
em direito e servidora do estado, Mrcia Regina Zok da Silva, que analisa o
Municpio Brasileiro e seus interesses intrnsecos e as diversas conotaes
assumidas por este ente ao longo da Histria Constitucional de nosso Pas.
Seguem-se dois artigos com interseces no direito constitucional,
sanitrio e consumerista. O primeiro, de autoria de Cibele Mateus e Bruno
Siborski, Advogada e Conciliador Criminal, analisa o panorama
jurisprudencial sobre as cooperativas mdicas luz da legislao
constitucional e infraconstitucional vigente, demonstrando que as relaes
entre particulares tambm esto sujeitas aos efeitos irradiadores das
normas de direitos fundamentais sociais. O artigo A Responsabilidade Civil
das Operadoras de Sade Suplementar por Erro Mdico, de minha autoria,
6
objetiva o alcance da maximizao da pretenso do consumidor a partir dos
pressupostos da teoria sistmica, alcanando a legitimidade passiva das
operadoras.
J a rea do direito penal e processual penal vem analisada pelos
Defensores Pblicos lvaro Antanavicius Fernandes e Denis Sampaio,
respectivamente. O primeiro trata dos tipos penais incriminadores, em
especial aqueles que preveem elementos subjetivos especiais e discute a
suficincia do dolo eventual como resposta. O segundo artigo, por sua vez,
utiliza-se do direito comparado para analisar a investigao defensiva no
sistema processual penal brasileiro, na busca de um processo que seja
baseado no dilogo e no contraditrio.
Importante artigo na rea ambiental apresentado pelo Defensor
Pblico Claudio Luiz Covatti que discute a atuao da Defensoria nos litgios
e questes ambientais como principal instituio de concretizao do direito
ao meio ambiente equilibrado.
Na relao entre direito fiscal, tributrio e empresarial, apresentam-se
mais dois artigos, o primeiro do Advogado Mateus Mantovani Sorgatto que
traz tona a questo da teoria da desconsiderao da personalidade
jurdica na execuo trabalhista e fiscal. Outro importante ensaio sobre a
matria da tambm Advogada Fabiane Simioni, que discute a imunidade
tributria conferida constitucionalmente aos templos de qualquer culto com
base nas teorias de Rawls e Habermas.
Convidamos a todos para a ampla discusso trazida por este nmero
da Revista da Defensoria Pblica do Estado do Rio Grande do Sul, fazendo
votos de que tambm o leitor possa contribuir com a construo do saber
jurdico enviando seus artigos para este peridico.
Porto Alegre, dezembro de 2014.
FELIPE KIRCHNER
Defensor Pblico
Coordenador da Revista da Defensoria
7
SUMRIO APRESENTAO .......................................................................................... 4
A ASSISTNCIA JURDICA EXPANSIVA E AS FACETAS DA VULNERABILIDADE ..................................................................................... 9
Marcelo Costa Fernandes de Negreiros e Rodolpho Penna Lima Rodrigues
DO PECULIAR INTERESSE AO INTERESSE LOCAL: A CONTRIBUIO DO ART. 30, I, DA CRFB/88, NA MUNICIPALIDADE BRASILEIRA ................................................................................................ 33
Mrcia Regina Zok da Silva
AS COOPERATIVAS MDICAS E O ACESSO SADE: POR UMA VINCULAO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS ....................................................................................................... 67
Cibele Gralha Mateus e Bruno Prange Stiborski
A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS OPERADORAS DE SADE SUPLEMENTAR POR ERRO MDICO: IMPUTAO PELO PRISMA DA TEORIA SISTMICA .................................................................................... 82
Felipe Kirchner
TIPOS PENAIS INCRIMINADORES QUE PREVEM ELEMENTOS SUBJETIVOS ESPECIAIS: A (IN)SUFICINCIA DO DOLO EVENTUAL .................................................................................................................... 146
lvaro Roberto Antanavicius Fernandes
REFLEXES SOBRE A INVESTIGAO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO POSSVEL RENOVAO DA INFLUNCIA ITALIANA PS CDIGO ROCCO SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE. ................................................................................................ 187
Denis Sampaio
A ATUAO DA DEFENSORIA PBLICA NO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL ............................................................................................... 215
Claudio Luiz Covatti
A TEORIA DA DESCONSIDERAO DA PERSONALIDADE JURDICA E SUA APLICAO NA EXECUO TRABALHISTA E FISCAL .............. 237
Mateus Mantovani Sorgatto
A IMUNIDADE TRIBUTRIA AOS CULTOS E LIBERDADE DE CRENA EM UM ESTADO LAICO ........................................................... 265
Fabiane Simioni
8
9
A ASSISTNCIA JURDICA EXPANSIVA E AS FACETAS DA VULNERABILIDADE
Marcelo Costa Fernandes de Negreiros1
Rodolpho Penna Lima Rodrigues2
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade abordar a vulnerabilidade
nos seus mais variados aspectos. Os resultados e as concluses do
trabalho foram baseados em uma reviso de doutrina e casos concretos.
Entrevistas com pessoas atendidas pela Defensoria Pblica nos estados do
Acre, Maranho e Sergipe contriburam para esses resultados. Os critrios
de acesso Defensoria Pblica passam, inevitavelmente, pela anlise da
vulnerabilidade sob o enfoque da hipossuficincia econmica, jurdica e
organizacional. Sucede que, nos tempos hodiernos, a vulnerabilidade se
apresenta em outros campos, em especial na seara processual. Diante do
vcuo doutrinrio e jurisprudencial sobre a temtica, discute-se o processo
virtual e os dficits do sistema, defendendo-se a inadmissibilidade da
evoluo da tcnica quando em detrimento do direito, em especial quando
h violao s prerrogativas dos Defensores Pblicos. Alm disso, so
retratados os aspectos formais da carta precatria, a fim de resguardar o
devido processo legal e os consectrios do contraditrio e ampla defesa.
Discute-se, por fim, a hipossuficincia geogrfico-temporal e a
desertificao assistencial, envolvendo a temtica da (im)possibilidade de
atuao do Defensor Pblico quando a sua atuao transcende os limites
territoriais do estado. Defende-se a assistncia jurdica gratuita expansiva.
1Defensor Pblico no Estado de Sergipe. Ex-Defensor Pblico do Estado do Acre. Especialista
em Ministrio Pblico, Direito e Cidadania, pela Fundao Escola Superior do Ministrio Pblico do Rio Grande do Norte. 2Defensor Pblico de 1 Classe do Estado do Maranho. Especialista em Cincias Criminais.
Membro da Comisso de Prerrogativas da Defensoria Pblica do Estado do Maranho. Membro da Comisso Acadmica da ADPEMA Associao dos Defensores Pblicos do Estado do Maranho. Ex-Conselheiro do PROVITA - Programa de Proteo a Vtimas e
10
Com a Emenda Constitucional n. 80/2014, a Defensoria Pblica ganha
espao e fora para implementar, de vez por todas, a sua atuao. Assim,
temas como estes ganham espao e merecem discusso para assegurar o
direito constitucional assistncia jurdica, como ncleo irredutvel da
dignidade da pessoa humana, pertencendo ao mnimo existencial.
PALAVRAS CHAVE: Vulnerabilidade. Hipossuficincia. Assistncia Jurdica
Gratuita.
SUMRIO: 1. Introduo. 2. Critrios de acesso Defensoria Pblica. A
trade da vulnerabilidade (a hipossuficincia econmica, jurdica e
organizacional). 2.1. A Hipossuficincia Geogrfico-Temporal. Da
problemtica acerca da atuao da Defensoria Pblica em casos de cartas
precatrias interestaduais e peticionamentos extraterritoriais. 2.2. Aspectos
Formais da Carta Precatria Criminal. 2.3. Da ineficincia da Resposta
Acusao no Processo Penal: a absoluta ausncia de contato com o ru.
2.4. Processo virtual e os dficits do sistema: da inadmissibilidade da
evoluo da tcnica quando em detrimento do direito. 2.5. Do dficit na
quantidade de Defensores Pblicos e os consequentes reflexos processuais
e extraprocessuais. 3. Concluso. 4. Referncias.
1 INTRODUO
No existe esperana sem luta. Para que exista luta, deve haver ao. E com ao, existem resultados. Ento, nada em vo.
No poderia ser outro o logradouro a ser seguido e perseguido. A
Defensoria Pblica transps inmeros obstculos nos ltimos anos, obtendo
conquistas aptas a culminar no seu real valor. Em especial, aps
incessantes lutas, com a recente promulgao da Emenda Constitucional
n. 80/20143 que nasce o alicerce indispensvel para que a Instituio
Testemunhas do Estado do Maranho. 3 Art. 134. A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico,
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possa, de vez por todas, atingir o grau mximo de universalizao de
acesso aos necessitados. Reverencia-se, em sede constitucional, a
expanso e a exclusividade da assistncia jurdica gratuita. Deveras, a
promoo dos direitos humanos, notadamente no combate s injustias,
pobreza, enfim, aos riscos sociais espalhados nos quadrantes deste Brasil
ser realizada com mais eficcia, uma vez que a alterao potencializa a
Defensoria Pblica e traz a reboque o arsenal de armas para que os seus
objetivos institucionais sejam alcanados.
J dizia o Ministro Celso de Mello, em lapidar voto4, que
interpretaes de normas programticas no podem transform-las em
promessas constitucionais inconsequentes. Aps vinte e seis anos, enfim,
uma dvida histrico-constitucional quitada. A consequncia disso tudo
que, ao conferir iniciativa de lei Defensoria Pblica, a sua estrutura
funcional ser robustecida nos mais variados aspectos. Com tais mudanas,
o acesso justia ser ampliado e a vulnerabilidade combatida com mais
afinco.
Nada seria alcanado sem que houvesse o denoto e a humanidade
de muitos Defensores Pblicos, cnscios do dever de transmudar em aes
as demandas de um nmero cada vez maior de hipossuficientes, ainda
quando o estorvo estrutural e a ausncia de um corpo de funcionrios
capacitado aparentavam inviabilizar a atuao defensorial.
Por evidente que muito caminho ainda falta ser percorrido e que
abundantes so as dificuldades ainda existentes como, por exemplo, a
fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5 desta Constituio Federal. (Redao dada pela Emenda Constitucional n 80, de 2014)[...] 4 So princpios institucionais da Defensoria Pblica a unidade, a indivisibilidade e a independncia funcional, aplicando-se tambm, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituio Federal. (Includo pela Emenda Constitucional n 80, de 2014) 4 Recurso Extraordinrio n. 271286 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda
Turma, julgado em 12/09/2000, ACRDO ELETRNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENTA VOL-02013-07 PP-01409)
12
ausncia de estrutura fsica adequada, a carncia de funcionrios e de
Defensores Pblicos, a diferena oramentria entre as Instituies que
compem o Sistema de Justia, dentre outras que se manifestam em maior
ou em menor escala, muitas delas dificultando o acesso Defensoria
Pblica e no resolvendo ou agravando a situao dos hipossuficientes.
A luta no para.
2 CRITRIOS DE ACESSO DEFENSORIA PBLICA. A TRADE DA
VULNERABILIDADE (A HIPOSSUFICINCIA ECONMICA, JURDICA E
ORGANIZACIONAL)
Los pobres normalmente son los ms vulnerables en una sociedad, ya que estn ms expuestos al conjunto de riesgos y al mismo tiempo tienen menos acceso a instrumentos adecuados para enfrentar dichos riesgos.
5
Os critrios de acesso Defensoria Pblica passam, inevitavelmente,
pela anlise da vulnerabilidade, que se desdobra na anlise da
hipossuficincia econmica, jurdica e organizacional.
Vaticina o novel artigo 134 da Constituio Federal que a Defensoria
Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico,
fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos
e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos
individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na
forma do inciso LXXIV do art. 5 desta Constituio Federal.
Como se v, a prestao da assistncia jurdica est adstrita
clusula geral necessitados, o que torna imperativa a definio de
contornos jurdicos ao termo. Neste particular, leciona JUDITH MARTINS-
COSTA que considerada do ponto de vista da tcnica legislativa, a clusula
5 Serie de Documentos de Discusin sobre la Proteccin Social. Manejo Social del Riesgo: Un
nuevo marco conceptual para la Proteccin Social y ms all. Robert Holzmann. Steen Jrgensen. Febrero del 2000. Documento de trabajo No. 0006 sobre proteccin social. Unidad de la Proteccin Social. Red de Desarrollo Humano. El Banco Mundial.
13
geral constitui, portanto, uma disposio normativa que utiliza, no seu
enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou
vaga, caracterizando-se pela ampla extenso do seu campo semntico6.
Portanto, no af de delimitar a extenso do campo semntico, de rigor
a anlise da vulnerabilidade e da hipossuficincia. Com efeito, a primeira
evidencia uma frmula geral, ao passo que a segunda traduz a frmula
especfica de vulnerabilidade no caso concreto. Explique-se.
A anlise da vulnerabilidade conditio sine qua non para deflagrar a
atuao institucional da Defensoria Pblica. Trata-se de uma situao de
fato, em carter provisrio ou permanente, que condiciona a pessoa a uma
situao de carncia.
Numa primeira anlise, a fim de dar concretude s normas gerais
estatudas na Constituio Federal e na Lei Complementar Orgnica n.
80/1994, as Leis Estaduais preveem os critrios de acesso Defensoria
Pblica. guisa de exemplo do critrio de hipossuficincia econmica, a
Lei Complementar do estado do Maranho n. 19 de 1994, em seu art. 1,
1, aduz que se considera necessitado o brasileiro ou estrangeiro,
residente ou em trnsito, no estado, cuja ineficincia de recursos,
comprovadamente, no lhe permita pagar as custas processuais e os
honorrios advocatcios sem prejuzo do sustento pessoal e de sua famlia.
Vale como comprovao, para os efeitos do referido artigo, a prova
de uma das seguintes condies: ter renda pessoal inferior a trs salrios
mnimos mensais, ou pertencer entidade familiar, cuja mdia da renda per
capita, mensal, no ultrapasse a metade do valor acima referido.
Conquanto vrias legislaes estaduais optem por fixar um
determinado valor, a verdade que qualquer indexador abstrato que
propenda decidir quem necessitado ou quem deve ser atendido pela
6 MARTINS-COSTA, Judith. A boa f no direito privado: sistema e tpica no processo
obrigacional, cit., p. 303.
14
Defensoria Pblica arbitrrio, sendo incapaz de antever e abarcar os
inmeros casos que abrolham nas mos dos Defensores Pblicos. Qualquer
critrio matemtico falha pela generalidade. No se quer, contudo, refut-
los in totum, por despiciendos. No se discorda acerca da possibilidade da
utilizao dos valores fixados como um norte, mas de maneira alguma se
admite que esses parmetros obstem o atendimento de pessoas
necessitadas, porquanto muitas vezes os parmetros legais evidenciam-se
desconexos com a realidade ftica, casos em que devero ser
desconsiderados. Devem funcionar, portanto, como um piso, em que sero
necessitados todos que se encontrarem abaixo do valor fixado. Jamais
como teto, pois nesses casos imperiosa uma anlise casustica, no
obstante motivada.
Nesse diapaso, FREDIE DIDIER JNIOR obtempera que o Direito
passa a ser construdo a posteriori, em uma mescla de induo e deduo,
atento complexidade da vida, que no pode ser totalmente regulada pelos
esquemas lgicos reduzidos de um legislador que pensa abstrata e
aprioristicamente7.
Assim, cabe ao Defensor Pblico, a despeito da omisso legislativa
ou da inadequao dos parmetros abstratamente fixados, aferir a
necessidade econmica no caso concreto, por meio de deciso
devidamente motivada.
Alm da anlise do perfil socioeconmico, mister registrar que a
hipossuficincia no se resume to somente a esse aspecto. H
determinados casos em que a hipossuficincia deriva diante de uma relao
jurdica. Cite-se, a ttulo ilustrativo, o exemplo da defesa em processo penal,
em que o acusado est em posio de vulnerabilidade frente acusao.
Emerge, assim, a denominada a vulnerabilidade sob o enfoque da
hipossuficincia jurdica.
7 http://www.frediedidier.com.br/pdf/clausulas-gerais-processuais.pdf
15
ADA PELLEGRINI GRINOVER, a esse respeito, j advertia que no
cabe ao Estado indagar se h ricos ou pobres, porque o que existe so
acusados que, no dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, no
podero ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais uma
faceta da assistncia judiciria, assistncia aos necessitados, no no
sentido econmico, mas no sentido de que o Estado lhes deve assegurar as
garantias do contraditrio e da ampla defesa8.
A doutrina de vanguarda, alm disso, enuncia a existncia da
hipossuficincia organizacional para albergar todos aqueles que so
socialmente vulnerveis: os consumidores, os usurios de servios pblicos,
os usurios de planos de sade, os que queiram implementar ou contestar
polticas pblicas, como as atinentes sade, moradia, ao saneamento
bsico, ao meio ambiente etc. no campo da hipossuficincia
organizacional que a Defensoria Pblica deflagra as aes coletivas.
A par de tais consideraes, os critrios de acesso Defensoria
Pblica passam necessariamente pela anlise detida da frmula geral
vulnerabilidade, que se desdobra na anlise especfica da trade da
hipossuficincia econmica, jurdica e organizacional.
2.1 A HIPOSSUFICINCIA GEOGRFICO-TEMPORAL. DA
PROBLEMTICA ACERCA DA ATUAO DA DEFENSORIA PBLICA
EM CASOS DE CARTAS PRECATRIAS INTERESTADUAIS E
PETICIONAMENTOS EXTRATERRITORIAIS
A vulnerabilidade no s se resume na anlise da hipossuficincia
econmica, jurdica e organizacional. Na prestao da assistncia jurdica
gratuita surgem diversas indagaes de ordem de direito material e
processual, alm dos limites das atribuies dos Defensores Pblicos.
Dentre elas, exsurge a celeuma no que toca prestao de assistncia
8 GRINOVER, Ada Pellegrini, Assistncia Judiciria e Acesso Justia, in Novas Tendncias
do Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense Universitria, 2 ed., 1990, p. 246.
16
jurdica quando a atuao defensorial transcende os limites do estado.
Certo que a falta de atuao da Defensoria Pblica de determinado
estado em unidade jurisdicional situada em outro estado da federao pode
provocar repercusso de gravidade irreparvel, principalmente em relao
ao assistido intimado ou citado por meio de carta precatria.
Com efeito, a apresentao da pea processual cabvel no juzo
deprecante, pode ser analisada sob, no mnimo, dois aspectos, abaixo
referidos.
O primeiro deles concerne hipossuficincia do assistido que buscou
a Defensoria Pblica aps sua intimao por carta precatria. Em sendo
hipossuficiente, tem o direito de ser assistido pela Instituio. Exatamente
por esse motivo, a regra que no possua condies de se deslocar at o
local de onde partiu a carta precatria. Por conseguinte, o Defensor Pblico
elabora a pea processual e a encaminha ao juzo deprecante, a fim de
garantir o direito constitucional assistncia jurdica (qualificada).
O segundo aspecto, contudo, choca-se com o acima mencionado.
Refere-se existncia ou ausncia de atribuio do Defensor Pblico de
um determinado estado para atuar em outro, ainda que de forma
espordica. acerca desse assunto que reside um grande vcuo
doutrinrio e jurisprudencial.
nessa vereda que se descortinam algumas questes nevrlgicas,
mormente diante da desrtica produo literria acerca do assunto: qual a
legitimidade de um Defensor Pblico de um dado estado interpor uma pea
processual em outro estado da federao? O princpio da Unidade que rege
a Defensoria Pblica abrangeria tal prerrogativa ou apenas nessa hiptese
haveria uma exceo justificada pela necessidade do assistido? E se o
magistrado do estado de onde partiu a precatria adotar uma postura
legalista-restritiva, no ser maior o prejuzo para o assistido, por ter perdido
um prazo processual ao se entender que o Defensor Pblico no poderia ter
17
apresentado aquela pea naquela Comarca? Seria uma soluo a
ratificao da pea pela Defensoria Pblica do estado de onde partiu a
precatria? Se o prazo j escoou, como efetivar essa ratificao?
Como consabido, o Defensor Pblico, rgo de execuo da
Defensoria, presta assistncia jurdica integral e gratuita aos
hipossuficientes que residem na Comarca em que exerce suas atribuies.
Eis o algoritmo: em regra, o cidado muncipe comparece Defensoria
Pblica e, enquadrando-se no perfil socioeconmico (na acepo literal do
termo: hipossuficiente), ser assistido pela Instituio.
Parece ser simples, mas no o .
A ttulo de ilustrativo, transmudando as indagaes abstratas acima
mencionadas em questes concretas, abrolham as seguintes
indagaes: (1) Seria possvel ao Defensor Pblico do estado do Maranho
elaborar a petio inicial e protocolizar no estado de Sergipe? (2)
Como solucionar o caso de assistido que, residente no municpio de So
Lus/MA, local onde h a prestao de assistncia jurdica gratuita pela
Defensoria Pblica Estadual, citado por meio de carta precatria expedida
de processo originrio da Comarca de Lagarto/SE, onde tambm h
atuao da Defensoria Pblica Estadual, para que apresente a pea
processual adequada? O Defensor Pblico pode demandar diretamente no
juzo deprecante?
Para responder a tais questionamentos, preciso enfrentar os limites
conceituais do que vem a ser a assistncia jurdica gratuita.
A assistncia jurdica integral e gratuita prevista na Carta
Constitucional, no art. 5, LXXIV, como dever do Estado aos que
comprovarem insuficincia de recursos. Com efeito, trata-se de direito
pblico subjetivo que tutela aquele que comprovar que a sua situao
econmica no lhe permite pagar honorrios advocatcios e despesas
processuais, sem prejuzo de seu prprio sustento e o de sua famlia,
18
situado no mnimo existencial9 como ncleo irredutvel da dignidade da
pessoa humana.
Deveras, como direito subjetivo que , o Defensor Pblico Estadual,
no cumprimento de sua atividade-fim, deve prestar a assistncia jurdica
integral queles que se enquadram como hipossuficientes, mesmo que a
eventual demanda tenha de ser protocolizada em Comarca situada em outro
estado da federao, sob pena de assim no o fazendo, violar o
reconhecimento constitucional de uma metagarantia, riscando o direito
fundamental assistncia jurdica integral e gratuita.
A pretexto das atribuies estarem limitadas a uma determinada
Comarca, o direito vindicado pelo assistido jamais poder ser obstado se a
propositura da demanda recair em outra Comarca situada em diferente
estado da federao. Isso porque no se aplicam aos Defensores Pblicos
os regramentos atinentes Magistratura, no que toca aos limites da
competncia, e ao Ministrio Pblico, em relao s atribuies limitadas a
uma Comarca.
Neste aspecto, sobreleva destacar que a capacidade postulatria ex
constitucionis nsita prestao de assistncia jurdica do Defensor
Pblico, diferente das demais carreiras jurdicas. dizer, a pretenso do
assistido, respaldada na anlise jurdica do Defensor, com base na
independncia funcional, deflagra e propulsiona a atuao da Instituio em
qualquer unidade jurisdicional, a fim de dar concretude ao direito
fundamental assistncia jurdica.
Comboiando por esse crrego, insta aludir que a Carta Altior, ao
prever a integralidade da assistncia jurdica gratuita aos hipossuficientes,
no infligiu limites para a execuo da devida prestao assistencial, tanto
9 Para ANA PAULA DE BARCELLOS, o mnimo existencial composto de quatro elementos,
trs materiais e um instrumental, a saber: a educao fundamental, a sade bsica, a assistncia aos desamparados e o acesso Justia (BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 258.)
19
que entalhou no Pergaminho Constitucional, alm da gratuidade, a
integralidade da assistncia. Nessa senda, pertinente referir que s haver
a to aclamada integralidade, se inexistirem obstculos aptos a burlar a
efetivao dos direitos das pessoas hipossuficientes, sejam esses estorvos
de qualquer ordem, inclusive territorial. Em escrita solar: demarcaes
geogrficas no podem impedir a atuao do Defensor Pblico que, por sua
natureza, postulador por essncia.
Ainda nessa linha de raciocnio, convm rememorar a Teoria dos
Poderes Implcitos, que teve seu nascedouro na Suprema Corte Norte-
Americana, especificamente no caso McCulloCh vs. Maryland, h quase
dois sculos, tempo insuficiente para desatualizar seus dogmas,
permanecendo coeva no ordenamento vigente. Em concisa definio, a
Teoria estabelece que ao ser concedida, pela Constituio, uma funo
para certo rgo ou Instituio, tambm esto implicitamente outorgados os
meios para a implementao dessa funo. Amoldando a Teoria ao caso
em estudo, percebe-se que para a prestao da assistncia jurdica integral
e gratuita - o que realizado pela Defensoria Pblica -, no possvel
fixao de limites territoriais para a Defensoria, por dois motivos: o assistido
no possui condies financeiras de buscar a Defensoria Pblica de estado
diverso do seu (estado de onde partiu a carta precatria), alm de tal
exigncia potencializar, de forma inadmissvel, o risco de decurso do prazo
processual para manifestao, caracterizando aqui o que denominamos de
vulnerabilidade geogrfico-temporal, capaz de inviabilizar a assistncia
jurdica integral e gratuita por parte da Defensoria Pblica.
Na mesma quadra, oportuno mencionar que Constituio Federal, ao
mencionar a integralidade da assistncia jurdica gratuita, no faz ressalvas,
nem permite que sejam impostas limitaes ao texto Constitucional. Em
assim sendo, como efetivamente o , qualquer limitao de ordem
infraconstitucional afronta diretamente o texto maior. Nesse diapaso, a
20
norma Constitucional goza de plena eficcia, configurando limitao
indevida, por violao a integralidade da prestao assistencial, qualquer
entendimento que restrinja a atuao da Defensoria Pblica em Comarcas
de outros estados, sempre que houver o interesse de pessoas
hipossuficientes.
Noutra linha de raciocnio, pertinente esclarecer que a limitao
quantitativa de peas previstas no Estatuto da OAB no se aplica
Defensoria Pblica, por ter regramento prprio. A norma do Estatuto apenas
refora a ausncia de limitao territorial para a atuao da Defensoria
Pblica, pois se permitido ao advogado atuar em determinado nmero de
processos fora da localidade em que possui sua inscrio junto OAB, com
maior razo pode atuar o Defensor Pblico, pois opera em defesa de
pessoas hipossuficientes, devendo ser a prestao gratuita e integral, nos
termos da Carta Cidad, tornando-se impossvel pensar em integralidade
quando impostas barreiras territoriais, conforme j sobredito.
preciso ir alm. A variada gama de relaes jurdicas que travada
no Estado contemporneo faz com que, naturalmente, surjam conflitos.
mais do que comum o cidado ser demandado em um Estado por onde
jamais passou. E, quando procura a Defensoria Pblica verdadeira gide
protetora de seus direitos , no pode receber a resposta de que no
possvel a referida atuao, porque o processo tramita em Comarca na qual
o Defensor no exerce suas atribuies.
A prestao da assistncia jurdica gratuita expansiva. O Defensor
Pblico no s pode, como deve, nos limites e possibilidades estruturais,
elaborar a pea processual adequada, remeter ao Juzo competente,
suscitar a incompetncia do juzo, requerer a oitiva do assistido na Comarca
em que domiciliado, entrar em contato com o Defensor Pblico titular
local, se houver Defensoria Pblica naquela localidade, enfim, adotar as
medidas judiciais pertinentes para assegurar o direito fundamental
21
assistncia jurdica gratuita e integral.
Eventuais atos processuais e audincias podem ser acompanhados
pelo Defensor Pblico titular local. Note-se e anote-se que, conquanto
repreensiva, a persistente omisso estatal na implementao estrutural da
Defensoria Pblica, desde 1988, no justifica a supresso da prestao da
assistncia jurdica integral e gratuita, a quem dela necessitar.
luz de tais premissas, necessrio ponderar que essa assistncia
jurdica gratuita expansiva ou ampliada, retratada aqui na possibilidade de
atuao do Defensor Pblico de um estado em outro estado da federao,
alm de resguardar os direitos do assistido, objetiva lhe assegurar a Justia,
sem delongas capazes de prejudicar seu direito, pois Justia atrasada no
justia, seno injustia qualificada e manifesta10
, na erudita frase cunhada
por RUI BARBOSA.
Nesse sentido, exsurge a necessidade de serem firmados Convnios
de Cooperao de Assistncia Jurdica Interestaduais entre as respectivas
Defensorias Pblicas para regulamentar situaes deste quilate. Um Cdigo
de Normas a ser elaborado pelas Defensorias Estaduais, padronizando a
forma de atuao do Defensor Pblico nos casos mencionados, uma das
solues viveis, evitando possveis conflitos e entendimentos divergentes,
descambando em irreparveis prejuzos para os hipossuficientes.
Magistrados devem ser sensveis a essa situao, sem obstar o
direito dos assistidos aplicando entendimento interpretativo restritivo. De
lege ferenda, contudo, o ideal a normatizao legal do assunto, atribuindo,
de forma clara e literal, poderes ao Defensor Pblico para atuar nas
situaes acima especificadas, uniformizando a temtica, evitando assim a
sujeio da Defensoria Pblica e, consequentemente, do assistido, s
interpretaes antagnicas dos rgos do Poder Judicirio.
10
In:
22
2.2 ASPECTOS FORMAIS DA CARTA PRECATRIA CRIMINAL
A vulnerabilidade processual se manifesta com nfase nos processos
atinentes s cartas precatrias criminais que, com frequncia, so instrudos
de forma insuficiente.
A ttulo ilustrativo, imagine-se a carta precatria para oitiva de
testemunha/acusado que contm to somente a denncia. Como o
Defensor Pblico ir formular as perguntas sem possuir prvio
conhecimento de eventuais depoimentos prestados no processo originrio e
at mesmo a linha defensiva traada na resposta acusao? De qual
forma possvel o respeito aos princpios do contraditrio e da ampla
defesa no Processo Penal, quando o juzo deprecante deixa, verbi gratia, de
enviar cpia da prpria denncia para o juzo deprecado?
Evidente que o processo padece de nulidade, eis que h violao a
direito fundamental bsico ao contraditrio e ampla defesa. A esse
respeito, note-se que o artigo 354 do vetusto Cdigo de Processo Penal
omisso em relao aos documentos essenciais que devem compor a
precatria. Malgrado a lacuna legislativa no referido Cdigo, de todo
possvel aplicar por analogia o art. 202, 1, do Cdigo de Processo Civil,
sempre requerendo as peas imprescindveis para o exerccio da defesa,
sejam elas quais forem.
Nesse diapaso, AURY LOPES JNIOR leciona que a comunicao
dos atos processuais so todos instrumentos a servio da eficcia dos
direitos fundamentais do contraditrio e da ampla defesa. No se pode mais
pensar a comunicao dos atos processuais de forma desconectadas do
contraditrio, na medida em que, como explicamos anteriormente, ele o
direito de ser informado de todos os atos desenvolvidos no iter
procedimental 11
.
11
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9 Edio. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 737
23
Cumpre observar que em determinados estados12
, a fim de contornar
a lacuna legislativa processual, o Poder Judicirio regulamenta os aspectos
formais das cartas precatrias criminais, o que digno de elogios. Neste
particular, evidente que o ato normativo jamais poder restringir as peas
de forma a vulnerar a ampla defesa e, por conseguinte, o direito dos
hipossuficientes.
De qualquer sorte, a anlise acerca da vulnerao dos diretos do
assistido, em uma primeira oportunidade, cabe Defensoria Pblica e no
ao Poder Judicirio, porquanto aquela a Instituio que exerce a defesa
tcnica constitucional do assistido, o que demonstra ser a mais apta para
equacionar o que e o que no imprescindvel para o exerccio da ampla
defesa.
Assim, dvidas no h de que cabe ao Defensor Pblico suscitar
questo de ordem no af de requerer a suspenso do ato processual para
que os autos sejam devidamente instrudos em tempo hbil, reverenciando,
dessa forma, o devido processo legal e os consectrios do contraditrio e
ampla defesa.
2.3 DA INEFICINCIA DA RESPOSTA ACUSAO NO PROCESSO
PENAL: A ABSOLUTA AUSNCIA DE CONTATO COM O RU
Demonstrao ecoante da dificuldade de acesso Defensoria Pblica
est evidenciada, de forma incontestvel, na maioria dos casos em que a
Defensoria Pblica intimada para apresentar resposta acusao no
Processo Penal, mormente nas inmeras hipteses em que o ru est
preso.
nessa pea processual, de evidente importncia, que o acusado
pode suscitar preliminares, bem como alegar qualquer matria que possa
interessar sua defesa, alm de ser o momento processual adequado para
12
A esse respeito, ver o art. 293 do Cdigo de Normas da Corregedoria do Tribunal de Justia do Estado do Maranho.
24
arrolar testemunhas. De to essencial, o legislador tornou a resposta
acusao pea obrigatria, prevendo que em caso de inrcia do acusado,
deve a Defensoria Pblica ser intimada para apresent-la.
Ocorre que, intimada a Defensoria Pblica, normalmente o contato
com o acusado resta inviabilizado, seja diante da ausncia de estrutura,
seja em decorrncia da agigantada demanda.
Na prtica, a resposta acusao uma das mais importantes peas
processuais em prol da defesa , transmuda-se em mera formalidade,
funcionando como singela pea de indicao de testemunhas, quando
muito.
Algumas prticas cotidianas tentam contornar a problemtica, mas
ainda se mostram por demais incipientes. Um exemplo constar do
mandado de intimao do acusado a determinao para que o oficial de
justia indague ao ru se possui testemunhas, bem como qual o seu
telefone (quando no estiver preso). Outro exemplo a relativizao do
momento processual para indicao de testemunhas, com a aceitao da
oitiva de testemunhas em banca, ainda quando no arroladas no momento
legalmente previsto, o que inmeras vezes no admitido pelo rgo
julgador, mormente quando h manifestao contrria do Ministrio Pblico,
o que se verifica com indesejvel frequncia, vergastando a ampla defesa.
As tcnicas, portanto, so paliativas auto-ilusrias. Deveras, o acusado
continua sem ter o devido acesso Defensoria Pblica, restando vulnerado,
como dito, seu direito ampla defesa.
Inovaes so de rigor. A implantao da audincia de custdia 13
j prevista na Conveno Americana de Direitos Humanos , atenuaria, sem
sombra de dvidas, a problemtica, porque haveria o contato pessoal ab
13
Consiste, basicamente, no direito de (todo) cidado preso ser conduzido, sem demora, presena de um juiz para que, nesta ocasio, (i) se faa cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, tambm, (ii) para que se promova um espao democrtico de discusso acerca da legalidade e da necessidade da priso. In.:
25
ovo entre o Defensor Pblico e o assistido. No mesmo sentido, os pedidos
de requisio de presos para apresentao na Defensoria Pblica devem
ser atendidos pelas autoridades do Sistema Penitencirio e, bem assim,
quando necessrio, deferidos pelo Poder Judicirio, que deve ser sensvel
situao de vulnerabilidade processual. De igual importncia, por fim, a
certificao nos mandados de intimao para constar o endereo e telefone
da Defensoria Pblica Estadual, com a advertncia de comparecimento.
2.4 PROCESSO VIRTUAL E OS DFICITS DO SISTEMA: DA
INADMISSIBILIDADE DA EVOLUO DA TCNICA QUANDO EM
DETRIMENTO DO DIREITO
So notrios a evoluo e os constantes avanos na rea
tecnolgica, o que se evidencia em vertiginosa velocidade, impossibilitando
o adequado acompanhamento pela sociedade.
Tambm sabido e ressabido que para que o Sistema Jurdico
Nacional funcione de forma satisfatria o que se objetiva, conquanto o
ideal esteja em dimenso diversa e longnqua da nossa , torna-se
necessrio o acompanhamento da tecnologia, sob pena de inviabilizar as
demandas existentes, porquanto sempre crescentes e a cada momento
mais complexas.
Malgrado a evoluo configurar o nico logradouro a ser percorrido,
imperioso que o progresso da tecnologia no restrinja ou suprima a
evoluo no campo do direito.
Depreende-se, ento, que no possvel violao a regras e
princpios bsicos em nome da evoluo.
Ocorre que, conquanto lugar-comum a constatao
supramencionada, a prtica vem revelando inmeras burlas s normas
vigentes, verificando-se que, em situaes peculiares, a evoluo da
tecnologia atrelou-se indevidamente ao retrocesso do direito.
o que vem ocorrendo, em alguns estados, com a intimao do
26
Defensor Pblico. Alguns entes federativos procederam a chamada
virtualizao dos processos, consistindo na eliminao dos autos fsicos,
passando a documentao processual a constar apenas do sistema virtual.
Sucede que em alguns locais, como acontece, exempli gratia, no estado do
Acre, o Defensor Pblico intimado e com a numerao do processo pode
acessar o sistema virtual, para se manifestar nos autos processuais. No
entanto, apesar de poder consultar o processo, visualizando os documentos
que o integram, no tem o Defensor Pblico acesso aos udios e vdeos
porventura constantes do sistema.
Noutros termos, o sistema possibilita a visualizao processual, mas
apenas de forma parcial, impossibilitando o Defensor Pblico de ouvir os
udios ou de visualizar os vdeos que deveriam estar disponveis no
sistema.
Semelhante deficincia faz com que o Defensor Pblico, para ter
efetiva carga dos autos, tenha que buscar o cartrio judicial para obter os
udios e vdeos, o que indubitavelmente viola a norma que prev a
intimao pessoal com carga dos autos ao Defensor Pblico, alm de
dificultar o contraditrio e a ampla defesa. Exsurge mais uma face da
vulnerabilidade processual.
A situao se agrava em algumas comarcas interioranas, como
ocorre em Cruzeiro do Sul/AC, em que parte dos juzes entende que o
Defensor Pblico quem deve levar o CD ou pen-drive para gravar os udios
e vdeos, deixando de fornec-los, o que desvirtua todo o sistema vigente.
Ou seja, alm de no estarem disponveis no sistema virtual os udios e
vdeos, ainda se tenta fragilizar a Defensoria Pblica obrigando a Instituio
a fornecer material fsico, suprindo obrigao que deve ser do Poder
Judicirio.
Essa falha possui reflexos de significativa monta na seara processual,
pois a depender do entendimento, pode ocasionar modificaes expressivas
27
na contagem do prazo processual, o que de grande relevo para a
Defensoria Pblica, diante da desmedida demanda processual e do
infindvel contingente de hipossuficientes que carece do devido
atendimento pela Defensoria Pblica.
Nessa tessitura, entendemos que, enquanto no houver a intimao
com a devida carga dos autos para o Defensor Pblico e aqui foroso
apreender que a carga dos autos deve ser completa e no parcial,
abrangendo udios e vdeos , no ter incio a contagem do prazo
processual, pois, apesar da intimao, inexistiu a devida carga.
E no se queira argumentar que a carga parcial suficiente para
fazer decorrer o incio do prazo processual, pois o devido processo legal
no permite semelhante interpretao, alm do que esse entendimento
terminaria por vulnerar, ainda mais, os direitos das pessoas
hipossuficientes.
Repise-se exausto: o incio do prazo processual para o Defensor
Pblico s se verifica quando devidamente intimado, com carga dos autos, o
que abrange tanto udios quanto vdeos.
Ad argumentandum tantum, cabe realizar a ilustrativa indagao:
possvel considerar o Defensor Pblico intimado para apresentar Alegaes
Finais ou algum recurso iniciando-se o decurso do prazo processual ,
ainda que lhe seja dado acesso, de forma virtual, apenas a parte do
processo, sem que constem os vdeos das audincias realizadas? Retumba
ecoante a rplica: por ululante que no, sob pena de solar violao ao
devido processo legal, fragilizando a defesa e prejudicando, em primeira e
ltima anlise, os hipossuficientes.
De outro bordo, h inmeras outras violaes com a virtualizao
processual, algumas de maior repercusso, outras de menor gravidade,
mas todas hbeis a dificultar o acesso dos hipossuficientes aos rgos do
Judicirio, agravando a vulnerabilidade.
28
Com o processo virtual, muitos Tribunais passaram a admitir o envio
de peties apenas pelo meio virtual, o que para muitos evidencia notria
vexata quaestio, por impossibilitar o peticionamento fsico. No entanto, no
essa a crtica que se faz no momento, mas sim a forma de preenchimento
para o envio de peties. O sistema virtual exige para o envio de peties
iniciais o preenchimento de diversos dados da parte requerente, alm do
seu nome, como data de nascimento, CPF, endereo, CEP, dentre outros,
atravancando o peticionamento, sobrecarregando a Defensoria Pblica e
transformando a assistncia ao hipossuficiente em uma prestao mais
deficitria, pois o Defensor Pblico ao invs de realizar atendimentos e
elaborar peties, coagido a consumir parte do j escasso tempo
preenchendo dados cartorrios para o envio de petio.
Cuida-se, em verdade, de indevida e abusiva transferncia de
servios do Poder Judicirio para a Defensoria Pblica, uma vez que o
preenchimento dos dados no sistema virtual funo do Judicirio e no de
Defensoria Pblica, j que a legislao vigente exige a observncia pelo
peticionante dos requisitos da petio inicial, o que j consta da pea
enviada e no o preenchimento de dados no sistema de peticionamento.
Em anlise superficial e incipiente, os argumentos alinhavados podem
aparentar de andina tessitura axiolgica; nada obstante, um maior exame
faz concluir o inegvel: o Defensor Pblico envia, semanalmente, dezenas
de peties iniciais, e quando obrigado a preencher dados do sistema de
peticionamento para poder enviar a petio (formalmente perfeita), consome
significativa parte do tempo que teria para fazer atendimentos e elaborar as
respectivas peas processuais, sendo obrigado a restringir a assistncia
prestada aos hipossuficientes, vulnerando assim o acesso dos
hipossuficientes Defensoria Pblica. Tamanho prejuzo, como alhures
mencionado, decorre da indevida e arbitrria transferncia de obrigaes do
Poder Judicirio para a Defensoria Pblica, o que no h como perdurar.
29
Agravando a situao, percebe-se com indesejada frequncia que em
incontveis ocasies o sistema virtual, deficitrio, impossibilita o
peticionamento, exigindo, por exemplo, a colocao do CPF do requerente,
em casos de ao de registro tardio de nascimento, ou do CEP, mesmo
quando em local incerto a pessoa. Tais problemticas, em decorrncia da
indevida inverso j sobejamente mencionada, recaem sob a Defensoria
Pblica e, por conseguinte, sob o hipossuficiente.
Robustea-se o que j afianado, a evoluo tecnolgica uma
passagem sem volta, porm necessria, mas no se deve admitir que em
nome da evoluo da tcnica, seja o direito e as normas vigentes relegadas
ao segundo plano. Isso sim, inadmissvel.
2.5 DO DFICIT NA QUANTIDADE DE DEFENSORES PBLICOS E OS
CONSEQUENTES REFLEXOS PROCESSUAIS E EXTRAPROCESSUAIS
Empreende-se, nesse tpico, imperativa abordagem acerca da
insuficincia do nmero de Defensores Pblicos nos estados da federao,
bem como de funcionrios de apoio, o que reflete nos hipossuficientes de
forma direta e indireta.
Primeiramente, a escassa quantidade de Defensores Pblicos
Estaduais provoca, em vrios municpios, o que denominamos de
desertificao assistencial, em que milhares de pessoas necessitadas
deixam receber o devido atendimento e, indefesas, se submetem a
arbitrariedades ou sucumbem diante da cotidiana burla aos seus mais
basais direitos.
Noutros municpios, efetivamente h um Defensor Pblico, mas sua
atuao delimitada pela ausncia de estrutura fsica ou pela carncia de
um corpo de funcionrios capacitado. Nesses casos, no h a desertificao
assistencial, pois existe um Defensor na localidade; no entanto, o dficit em
sua atuao inegvel, pois a agigantada demanda, associada mngua
de funcionrios e deficincia de estrutura, sobrecarrega o Defensor
30
Pblico, reduzindo a qualidade do trabalho produzido, alm de impossibilitar
o atendimento acertado de todos os hipossuficientes que dele necessitam.
Verifica-se, portanto, duas conjunturas: na primeira, no h Defensor
Pblico na localidade; na segunda, h Defensor Pblico, mas sua atuao
faticamente cingida diante dos inmeros entraves existentes. Em uma ou
em outra situao, a interseco a mesma: o hipossuficiente v-se
prejudicado, com poucas possibilidades de solucionar seus problemas, o
que aumenta sua vulnerabilidade, desestruturando, em ltima anlise, a
sociedade.
Urge assentar que com a reforma da Carta Maior, a tendncia que
os interiores sejam preenchidos por Defensores Pblicos, mas essa
perspectiva deveras, determinao Constitucional! , s ser possvel com
a criao de mais cargos, pois o nmero insuficiente de Defensores
Pblicos uma realidade em quase todos os estados14
do pas.
Enquanto o comando Constitucional no se concretiza, dezenas de
milhares de pessoas so lesadas diariamente; algumas tm a liberdade
tolhida e, sem a possibilidade de buscar amparo na Defensoria Pblica,
permanecem encarceradas de forma indevida, por mais tempo que o
devido; outras, enfermas, so submetidas s omisses abusivas do Poder
Pblico e, sem o auxlio da Defensoria Pblica, fenecem diante do descaso
retumbante e nocivo. Em maior ou menor grau, todos sofrem.
luz dos argumentos apontados, ecoa solar a urgncia no
aparelhamento da Defensoria Pblica, criando-se uma estrutura fsica
consentnea com as necessidades da Instituio, ampliando-se o nmero
de Defensores Pblicos e expandindo-se a quantidade de funcionrios,
14
Em Sergipe, por exemplo, a Comisso dos Aprovados no Concurso para o cargo de Defensor Pblico Substituto do Estado de Sergipe do ano de 2012, elaborou um Mapa da Defensoria Pblica, em que se constata que em Sergipe a Defensoria Pblica est presente em apenas 21,6% das Comarcas, sendo tambm possvel se extrair a necessidade da criao de 79 novos cargos de Defensor Pblico, objetivando adequado atendimento aos hipossuficientes (Disponvel em . 26/08/2014)
31
objetivando com isso cumprir o disposto na Carta Altior, assegurando e
respeitando os direitos dos hipossuficientes.
3 CONCLUSO
A Defensoria Pblica objetiva assistir pessoas necessitadas que,
apesar de privadas de seus mais basais direitos, persistem nos trilhos da
esperana, arrogando Instituio fidcia na resoluo de seus problemas.
Outorgam Defensoria Pblica o destino de suas vidas, visualizando-a
como o ltimo instrumento capaz de por fim s suas aflies, sejam sociais
ou econmicas.
Conquanto as expectativas dos hipossuficientes suplantem quaisquer
barreiras, a verdade que no universo ftico a esperana e a realidade
ainda habitam dimenses distintas e longnquas.
No se descura que a ltima dcada foi prspera para a Defensoria
Pblica, no aspecto da efetiva aproximao da Instituio adequada
dignitatis que lhe Constitucionalmente reconhecida e assegurada. No
entanto, assim como as expectativas dos hipossuficientes e a realidade
ftica esto em confins diversos, a distncia entre o atual e o ideal acerca
da Defensoria Pblica troveja ainda abissal.
luz de tais constataes, a consequncia a burla constante de
direitos dos hipossuficientes, muitos dos quais sequer chegam ao
conhecimento do Defensor Pblico, seja diante da ausncia de Defensor na
localidade, seja em decorrncia da excessiva demanda, associada
contumaz e danosa limitao de recursos e de estrutura, representando
verdadeira cifra negra de hipossuficientes com direitos vulnerados e sem o
devido atendimento.
Noutro diapaso, percebe-se o empenho grandioso da maioria dos
Defensores Pblicos, o que diuturnamente contribui para o fortalecimento da
Defensoria Pblica e, como corolrio lgico iniludvel, diminui a detestvel
cifra negra acima mencionada, proporcionando aos hipossuficientes a
32
amortizao de suas vulnerabilidades, quando no as extirpando por
completo.
Por tudo que foi exposto, objetiva-se que a descrena da populao
na justia e o sentimento de que ela funciona apenas para os ricos, ou
antes, de que ela no funciona, pois os ricos no so punidos e os pobres
no so protegidos15
, diminua em apressada marcha, por intermdio da
atuao constante dos Defensores Pblicos no deslinde dos problemas
cotidianos que tanto atormentam os necessitados.
4 REFERNCIAS
BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios
constitucionais: o princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 258.
CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3
ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 215.
DIDIER, Fredie. Clusulas Gerais Processuais. Disponvel em
http://www.frediedidier.com.br/pdf/clausulas-gerais-processuais.pdf. Acesso
em 26 de junho de 2014.
GRINOVER, Ada Pellegrini, Assistncia Judiciria e Acesso Justia, in
Novas Tendncias do Direito Processual, Rio de Janeiro, Forense
Universitria, 2 ed., 1990, p. 246.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9 Edio. So Paulo:
Saraiva, 2012. p. 737
LOPES JR. Aury. Audincia de Custdia. Disponvel em
http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao
processo-penal. Acesso em 21 de agosto de 2014.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa f no direito privado: sistema e tpica
no processo obrigacional, cit., p. 303.
15
CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p. 215.
33
DO PECULIAR INTERESSE AO INTERESSE LOCAL: A CONTRIBUIO DO ART. 30, I, DA CRFB/88, NA MUNICIPALIDADE
BRASILEIRA
Mrcia Regina Zok da Silva1
RESUMO: O Municpio Brasileiro e seus interesses intrnsecos o tema
cerne do presente Trabalho, cujo plano de fundo est nas diversas
conotaes assumidas por tal instituto ao longo da Histria Constitucional
de nosso Pas, as quais se encontram combinadas com o modelo de
federalismo ora adotado. O ponto de partida de tal desenvolvimento reside
nas municipalidades no Brasil Colnia e se estender at os dias atuais,
contexto no qual o Municpio brasileiro, ento parte da Estrutura Federalista,
encontra-se vinculado a princpios como a Subsidiariedade. A partir desse
ponto, observa-se a mudana de paradigma existente, ao constatar-se que
o termo peculiar interesse, at ento presente ao longo das Constituies
anteriores, na condio de sinnimo de assuntos peculiares, passa a
receber uma carga semntica diversa da at ento tida, atravs do termo
incorporado redao do art. 30, I, da CRFB/88, o interesse local.
PALAVRAS-CHAVE: Municpio. Subsidiariedade. Competncia Comum.
Interesse Local. Dignidade da Pessoa Humana.
SUMRIO: 1. Introduo. 2. O Brasil Colnia Introduo histrica do
surgimento do municpio. 3. O municpio na vigncia da constituio de
1824. 4. O peculiar interesse municipal na primeira repblica: A
constituio de 1891. 5. A constituio de 1834 e a adaptao do modelo de
federalismo: Influncia na municipalidade. 6. A constituio de 1937 e o
municpio. 7. A teoria municipalista na constituio de 1946. 8. A supresso
dos interesses do municpio na constituio de 1967, incluindo a EC 01/69.
1 Mrcia Regina Zok da Silva bacharela em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
34
9. A mudana de paradigma das municipalidades na constituio cidad: de
peculiar interesse para interesse local. 10. Concluso. 11. Referncias.
1 INTRODUO
Este trabalho possui por escopo a apresentao de um panorama
geral (sem intenes de esgotar o assunto proposto) acerca de um instituto
ao qual, embora existente desde o perodo colonial de nossa Histria, ainda
no lhe dado o devido valor: est-se falando da autonomia local,
representada, ora pelo termo peculiar interesse, quando de sua origem,
ora pelo termo interesse local, aps a promulgao da Constituio da
Repblica Federativa do Brasil de 1988, doravante CRFB/88. A exposio
das nuances da Forma de Estado Federal, assumidas por nosso Pas por
ocasio de cada uma das oito Constituies federalismo pendular - ser
de vital importncia para um completo entendimento da proposta deste
trabalho, visto que alternam perodos de abertura e fechamento os quais
tiveram influncia direta na autonomia do ente local. Para fins de ilustrao,
ser feita a anlise de um Agravo de Instrumento envolvendo a ACEL
(Associao Nacional das Operadoras Celulares) e o Municpio de Porto
Alegre, cujo objeto consistia em um suposto conflito da Lei Municipal N
8896/02, com a Lei Geral de Telecomunicaes Lei Federal N 9.472/97,
e outros diplomas legais; tal Agravo no restou exitoso, pois, dentre os seus
fundamentos, esto a Subsidiariedade e o Interesse Local, os quais,
mediante argumentao jurdica, justificaram porque o interesse local
deveria ser a premissa maior neste caso concreto, afastando a regra da Lei
Geral de Telecomunicaes. Ao final da exposio, de forma a trazer a
compreenso do porqu da mudana de paradigma nas municipalidades,
nas quais o chamado peculiar interesse termo constante at a Carta
Magna de 1967/1969, na condio de sinnimo de assuntos intrnsecos ao
ente local passa a figurar na Constituio atual como interesse local,
tentar-se- definir se este conceito mais amplo, mais restrito ou se
35
equivalente quele.
2 O BRASIL COLNIA INTRODUO HISTRICA DO SURGIMENTO
DO MUNICPIO
O ponto de partida das municipalidades est no perodo colonial de
nossa Histria, o que se deu cerca de 30 anos aps o Descobrimento.
Contudo, tal estrutura poltico-administrativa consistia em uma espcie de
transplante das instituies de Portugal. A sistematizao da supracitada
estrutura, conforme assinala Cezar Saldanha2, foi instituda por meio do
Regimento de 1548 e era constituda por trs nveis de poder: o central,
soberano, centralizado nos moldes do Estado Nacional Moderno; o regional,
constitudo pela diviso em Capitanias, sistema pouco efetivo por razes
as quais sero adiante expostas; e o local, representado pelos Municpios
(Cidades e Vilas), organizao transladada do modelo de Portugal e aqui
implantada pelas Ordenaes portuguesas.
Dessa forma, possvel vislumbrar que Metrpole portuguesa no
interessava as aspiraes dos povoados locais das terras sul-americanas,
comunidades as quais apesar da relativa autonomia experimentada em
algumas franquias restaram, na maior parte do perodo, paralisadas diante
do centralismo das Capitanias Hereditrias e dos Juzes de Fora, sendo que
esses ltimos se constituam em uma espcie de mandatrios dos
interesses da Coroa Portuguesa. Dessa maneira, apesar de existir um
relativo grau de autonomia, no havia peculiar interesse ou interesse
local, da forma como hoje conhecemos, em relao aos vilarejos e cidades
ento existentes, visto que era Portugal quem decidia quais competncias
cabiam ao Municpio.
A presena desses magistrados na poltica local segundo Francisco
Ribeiro da Silva - constituiu-se em uma tentativa, por parte da Corte
Portuguesa, de sufocar as liberdades municipais, providncia a qual restou -
36
em parte - bem sucedida, na medida em que, para o Juiz de Fora, nada do
que interessasse gesto municipal lhe era estranho. Sendo um magistrado
de carreira, empenhava-se, logicamente, mais em defender os interesses e
objectivos do Poder central do que em preservar as liberdades municipais.3
Esses magistrados, aqui representados pela percepo de um de seus
representantes, se viam perante a municipalidade colonial como uma
espcie de mandatrios da Coroa Portuguesa. Esse entender sintetizado
na fala de Jorge da Silva Mascarenhas, um desses magistrados: menistro
de sua magestade e asy sogeito as suas ordens e mandados para os
executar e fazer executar.4
Apesar do controle que a Metrpole exercia sobre o Municpio, devido
necessidade, esse ente acabou por superar o centralismo das Capitanias,
ao se auto-incumbir de um rol de atribuies - por meio das Posturas e das
Franquias - as quais se referiam a todo tipo de assunto: desde a fixao de
impostos at a destituio de Governadores Gerais de suas funes,
situaes as quais, muitas vezes, chegaram a serem discutidas em juntas,
ou seja, em Assembleias nas quais contava com a participao popular
quando das deliberaes.5 Contudo, o advento da Lei Regulamentar de
01/10/1828, j no Brasil Imprio, suprimiu a autonomia das Cmaras,
conferindo-lhes carter meramente administrativo.6
3 O MUNICPIO NA VIGNCIA DA CONSTITUIO DE 1824
Com a Constituio Imperial, em 1824, de incio a estrutura poltica
em nada se alterou, visto que a Carta assegurava s Cmaras Municipais a
administrao local, conforme dispe o texto do art. 167.7 No entanto, em
2 SOUZA JNIOR, Constituies ..., p. 16-17.
3 SILVA, Francisco Ribeiro da. Autonomia municipal e centralizao do poder durante a Unio
Ibrica: o exemplo do Porto. Revista da Faculdade de Letras. Histria, Porto, v. 4, 1987. p. 139. 4 AHMP. Cofre. L. 5. fls nn (Assento de 02/03/1621). (Ibid. p. 139).
5 MEIRELLES, Direito municipal... p.34-35.
6 MEIRELLES, op. cit., p. 35.
7 Art. 167. Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se
37
1828, uma Lei Regulamentar, a chamada Lei das Cmaras, cassou a pouca
autonomia local de at ento, de maneira a transformar as Municipalidades
em simples diviso territorial8. Durante o Perodo Regencial, na tentativa de
contornar a crise poltica existente e conceder maior autonomia aos
Municpios, foi promulgado o Ato Adicional, Lei N 16, de 12 de agosto de
1834, providncia a qual, no entanto, restou inexitosa, diante da
subordinao direta dos Municpios s Assembleias Provinciais, fato o qual
acabou por limitar o tratamento dispensado s questes locais (franquias).
Tavares Bastos, de orientao federalista, entende que a supresso
da referida autonomia municipal no teve como causa nica o Ato Adicional
- diploma o qual atrelou os assuntos locais ao mbito de atuao das
competncias geral e provincial - mas tambm a influncia do que ele
chama de vcio da uniformidade,9 advinda por meio da Lei das Cmaras.
Com a Lei de 1 de outubro de 1828, Tavares Bastos sustenta que houve
uma espcie de engessamento do modelo de Municpio, o qual passou
ento a compreender um s tipo para todas as circunscries locais do
Pas, de maneira a desprezar suas diversidades: eram as chamadas leis
regimentais10
.
A Lei de Interpretao do Ato Adicional Lei 105, do ano de 1840 -
tentou corrigir estas restries, concedendo para no dizer restituindo
algumas dessas franquias antes suprimidas pela Lei das Cmaras, ao
Municpio. Porm, no houve xito, visto que as circunscries locais de
ento eram ainda desprovidas de Poder Executivo Prprio, alm de
continuarem na condio de assunto interno das Provncias s quais
crearem haver Camaras, s quaes compete o Governo economico, e municipal das mesmas Cidades, e Villas. 8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 1997. p.
33-34. 9 BASTOS, Aureliano Cndido Tavares. A provncia: estudo sobre a descentralisao no
Brazil. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1870. p. 143. 10
Ibid., p. 150.
38
pertenciam, conforme texto do art. 10 do citado diploma legal, 4 ao 7,11
situao a qual perdurou durante o restante do segundo Imprio brasileiro.
4 O PECULIAR INTERESSE MUNICIPAL NA PRIMEIRA REPBLICA:
A CONSTITUIO DE 1891
A Proclamao da Repblica, promovida no ano de 1889, e
consequente promulgao da Constituio, ocorrida em 1891, consistem no
prximo ponto da evoluo histrica do instituto central do presente
trabalho. Com a Repblica, houve a adoo do chamado Federalismo de
Competio - modelo tipicamente norte-americano Forma de Estado a
qual influenciou negativamente a municipalidade brasileira, visto que foi uma
estrutura imposta de cima para baixo, pois foi por uma deciso poltica e
no fruto da necessidade12
, visto no surgir via deliberao comum. Apesar
da expressa previso do art. 6813
, da Constituio de 1891, cujo texto
concedia aos Municpios, autonomia para cuidar de assuntos de seu
peculiar interesse, no houve uma descentralizao propriamente dita, em
virtude de dois fatores: a continuidade das velhas estruturas polticas e o
11
Art. 10: Compete s mesmas Assemblas legislar: 4 Sobre a polcia e economia municipal, precedendo proposta das Cmaras. 5 Sobre a fixao das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos sobre ellas necessrios, com tanto que estes no prejudiquem s imposies geraes do Estado. As Cmaras podero propor os meios de occorrer s despezas dos seus municpios. 6 Sobre repartio da contribuio directa, pelos municpios da Provncia, e sobre a fiscalisao do emprego das rendas pblicas provinciaes e municipaes, e das contas da sua receita e despeza. As despezas provinciaes sero fixadas sobre oramento do presidente da provincia, e as municipaes sobre oramento das respectivas cmaras. 7 Sobre a creao, suppresso e nomeao para os empregos municipaes e provinciaes, e estabelecimento dos seus ordenados. So empregos municipaes e provinciaes todos os que existirem nos municipios e provincias, excepo dos que dizem respeito arrecadao e dispendio das rendas geraes, administrao da guerra e marinha, e dos correios geraes ; dos cargos de presidente de provincia, bispo, commandante superior da guarda nacional, membro das relaes e tribunaes superiores, e empregados das faculdades de medicina, cursos juridicos e academias, em conformidade da doutrina do 2 deste artigo. 12
VILA, Marta Marques. O municpio frente ao federalismo na Argentina e no Brasil. Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. p. 56. 13
Art 68 - Os Estados organizar-se-o de forma que fique assegurada a autonomia dos Municpios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.
39
forte coronelismo existente.
Esse modelo de Forma de Estado ento transladado possua uma
peculiaridade, a qual viria a repercutir na doutrina constitucional desse
perodo, a saber, a referncia expressa, no texto, autonomia municipal14
,
premissa cristalizada no texto do art. 68 da Carta de 1891. O supracitado
dispositivo veio a concretizar a revogao da Lei das Cmaras, de maneira
a conceder s ex-Provncias15
a competncia para que essas pudessem
estabelecer parmetros gerais acerca da configurao estrutural dos
Municpios segundo os cnones do tipo de Federalismo ora adotado de
maneira que as municipalidades pudessem tratar de seus assuntos
conforme o seu peculiar interesse. Verifica-se que, na origem, a inteno do
Constituinte de 1891 foi a de retirar da competncia do ente regional a
deliberao no tocante aos assuntos locais das circunscries, limitando
esses mesmos Estados-membros a estabelecer apenas os parmetros
gerais de organizao. Na prtica, porm, tal procedimento restou mal
sucedido, a ponto de Joo Camilo de Oliveira Torres expressar o
entendimento de que a Carta de 1891 no entrou em vigor. 16
Nesse contexto, a competncia municipal era delegada pelos
Estados-membros s municipalidades de maneira implcita17
por meio de
estatuto bsico ou lei ordinria, de forma que possvel entender que as
franquias eram concedidas s circunscries locais de maneira assimtrica,
ou seja, de acordo com o interesse do Estado-membro, em virtude da
prerrogativa concedida pela Constituio, no sentido de criar, suprimir,
14
SOUZA JNIOR, Constituies ..., p. 40. 15
Nesse sentido se encontra o art. 2 da Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de Fevereiro de 1891: Art 2 - Cada uma das antigas Provncias formar um Estado e o antigo Municpio Neutro constituir o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da Unio, enquanto no se der execuo ao disposto no artigo seguinte. 16
TORRES, Joo Camilo de Oliveira. Interpretao da realidade brasileira: introduo histria das idias polticas no Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1969. p. 249. 17
COOLEY, Thomas. A treature on the constitucional limitations. apud MAXIMILIANO, Carlos. Comentrios Constituio Brasileira de 1891. Braslia: Senado Federal, 2005. p. 663-664.
40
estabelecer e alterar limites ou at mesmo, anexar Municpios. 18
Assim, o
Estado brasileiro - at ento Unitrio19
- com a Repblica passou a ser
Federal, e o modelo ora transplantado o Norte-Americano foi implantado
por deciso poltica20
, desconsiderando a realidade das instituies de
nosso Pas, visto que a Unio concedeu competncias desacompanhadas
da respectiva ajuda financeira para o trato adequado e eficiente de tais
funes.
Destarte, restou s municipalidades adaptarem-se por conta prpria a
fim de que pudessem tratar de seus assuntos conforme seu peculiar
interesse. A referida adaptao, a saber, o coronelismo, atenta a alguns
elementos e, predominantemente, ao sistema de voto vigente at ento, os
quais, conforme expe Victor Nunes Leal21
, j se faziam presentes em
nossa estrutura desde o Brasil Colnia e Imprio, sendo que esses citados
elementos eram definidos como o conjunto de convenes, praxes,
convenes e expedientes costumeiros. 22
Desses, a doutrina concede
especial ateno ao voto, porquanto no existia ainda a Justia Eleitoral;
assim, era possvel a manipulao do processo de eleio, nos trs planos
(local, regional e nacional), de maneira a garantir um resultado no plano
local - o qual estivesse em conformidade com os interesses daquele
Municpio. Destarte, apesar do sufrgio universal masculino, introduzido
com a Lei Saraiva em 1889,23
a poltica coronelista exercia influncia de
forma a conduzir o resultado das eleies.
O surgimento do coronelismo foi resultado da diversidade de
18
Ibid., p. 665. 19
A doutrina tambm chama de Estado Unitrio Descentralizado. (FERREIRA FILHO, Manuel Gonalves. Curso de direito constitucional. 29. ed. So Paulo: Saraiva, 2002. p. 53). 20
FERREIRA, Aloysio Nunes. Desafios atuais do federalismo no Brasil. In: HOFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, Jos Mrio Brasiliense. Federalismo na Alemanha e no Brasil. So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001. p. 51. 21
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipio e o regime representativo no Brasil. 2. ed. So Paulo: Alfa-Omega, 1975. p. 254. 22
SOUZA JNIOR, Cezar Saldanha. Consenso e constitucionalismo no Brasil. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 79. 23
BONAVIDES, A constituio..., p. 363.
41
interesses peculiares que caracterizavam os Municpios, circunscries as
quais eram historicamente imbudas de forte tradio autonomista24
, fato o
qual, no entender de Bonavides, constitua-se em um forte hbito, seno
uma realidade.25
5 A CONSTITUIO DE 1934 E A ADAPTAO DO MODELO DE
FEDERALISMO: INFLUNCIA NA MUNICIPALIDADE
A Constituio de 1934 destacou-se por adaptar o modelo de
Federalismo realidade brasileira, por meio da adio de pressupostos de
cooperao, os quais ainda estavam sob contornos de carter autoritrio.
Tal ajuste influiu decisivamente no que tange aos interesses do Municpio,
passando este a experimentar uma autonomia que at ento no tivera. A
contribuio da Carta de 1934 reside principalmente na concesso, ao
mbito local, da prerrogativa de gerncia de suas finanas, na forma do art.
13, II.26
Assim, o peculiar interesse da municipalidade desse perodo passou
a estar atrelado autonomia tributria ( 2, incisos I a V, art. 13)27
e
eletividade do Chefe do Poder Executivo local ( 1, mesmo artigo)28
.
A referida tcnica de ajuste, denominada competncia prioritria,
tambm conhecida como competncia privativa, ou ainda, concorrente,29
primava pela diviso da matria em nveis de gerncia, de maneira a
preservar sempre o Reich (a Unio) na condio de ente superior perante
24
Ibid., p. 363. 25
Ibid., p. 363. 26
Art 13 - Os Municpios sero organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse; e especialmente: II - a decretao dos seus impostos e taxas, a arrecadao e aplicao das suas rendas; 27
2 - Alm daqueles de que participam, ex vi dos arts. 8, 2, e 10, pargrafo nico, e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municpios: I - o imposto de licenas; II - os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de dcima ou de cdula de renda; III - o imposto sobre diverses pblicas; IV - o imposto cedular sobre a renda de imveis rurais; V - as taxas sobre servios municipais. 28
1 - O Prefeito poder ser de nomeao do Governo do Estado no Municpio da Capital e nas estncias hidrominerais.
42
os Lnder (os Estados-membros), sendo que a estes entes cabia legislar
to somente na hiptese de o ente nacional no exercer essa prerrogativa.
Consequentemente, firma-se o entendimento de que essa tcnica restringiu
o poder dos entes regionais em prol da esfera nacional.30
Aplicado no
federalismo brasileiro, o referido procedimento adquiriu contornos
extremamente autoritrios31
, dada a centralizao promovida pela Unio, a
qual ocorrera custa da compresso das autonomias dos Estados-
membros, como uma tentativa de evitar os problemas ocorridos em 1891.
Como consequncia imediata, as Assembleias Legislativas Estaduais
foram ignoradas na sua condio de instituies.32
Ainda assim, verifica-se
que com a promulgao da nova Carta, iniciou-se a paridade entre
normativismo e realidade, expostos no perodo anterior, de maneira a tornar
a Constituio Jurdica e a Constituio Real uma s Carta.
Tal mudana de paradigma, segundo Slvia Faber Torres, ocorreu por
meio da adio da ideia de cooperao33
aos clssicos princpios
federativos de autonomia e de participao. O Federalismo de 1934
assentava-se no surgimento das competncias concorrentes,
consubstanciada em uma tcnica vertical de repartio, de maneira que ao
Municpio foi possvel a Unio delegar o trato de assuntos de seu peculiar
interesse, desde que condicionada observncia de normas gerais editadas
pelo ente federal.34
Dessa forma, depreende-se que no houve substituio
propriamente dita de tcnicas, mas sim a adoo de mais de um tipo de
29
ALMEIDA, Competncias ..., p. 49. 30
Ibid., p. 50. 31
Nesse sentido, afirma Paulo Bonavides: [...] de ndole centralizadora e compressiva das autonomias estaduais, vulnera o princpio democrtico e ignora as casas do Congresso e as Assemblias dos Estados-Membros como instituies do poder, com as quais o cidado mais de perto se sente identificado e sobre as quais deposita a mais alta parcela de confiana. (BONAVIDES, Paulo. A constituio aberta: temas polticos e constitucionais da atualidade com nfase no federalismo das regies. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 434. 32
BONAVIDES, A constituio aberta..., p. 434. 33
TORRES, Slvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 219-220. 34
ALMEIDA, Competncias..., p. 55-56.
43
procedimento ao j existente, de maneira a no suprimir as competncias
enumeradas e remanescentes, mas apenas acrescentar-lhes a competncia
concorrente - mescla de tcnicas a qual se faz presente at hoje com isso
abrindo espao para aes conjuntas entre Unio, Estados e Municpios.35
Assim, a ideia de Cooperao pretendida pelo Constituinte de 1934 de
conotao diversa da ideia dos moldes atuais, em virtude da no figurao
do Municpio na estrutura federalista e da concomitante necessidade de
observncia por parte dele aos parmetros redigidos pelas esferas federal
(no nacional, como se explicar oportunamente) e estadual.
Contudo, apesar do reconhecimento constitucional de um campo de
autonomia prpria aos Municpios36
, essas circunscries permaneceram na
condio de instituio interna dos Estados-membros.
6 A CONSTITUIO DE 1937 E O MUNICPIO
A concentrao de poderes nas mos do Executivo e a consequente
cassao da autonomia municipal consistiram nas principais caractersticas
da Carta Magna de 1937, cuja redao sofrera profunda influncia da Carta
Constitucional da Polnia de 1933. Tal retrocesso, segundo a opinio da
doutrina dominante, aqui representada por Hely Lopes Meirelles, ocorreu
custa da colocao de interventores nos Estados, cujo interesse suprimia
toda e qualquer soberania municipal, visto que eram esses interventores
quem nomeavam o Prefeito, conforme o art. 2737
, apesar da manuteno do
texto do art. 2638
, dispositivo o qual assegurava autonomia local quanto aos
assuntos de peculiar interesse.
O contexto de tal perodo determinou que o Estado brasileiro, embora
teoricamente federado, na prtica fosse Unitrio. No tocante ao Municpio, o
35
SOUZA JNIOR, Constituies..., p. 47. 36
ALMEIDA, Competncias ..., p. 42. 37
Art 27 - O Prefeito ser de livre nomeao do Governador do Estado. 38
Art 26 - Os Municpios sero organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e, especialmente:
44
referido autor entende que no regime de 1937, as municipalidades foram
menos autnomas se comparadas s do centrismo imperial, porque, na
Monarquia, os interesses locais eram debatidos [...].39
Dessa forma, resta
claro o entendimento de que houve cassao da autonomia das
municipalidades, percepo ainda corroborada pelo Decreto-Lei Federal
1202 de 08/04/1939, instrumento normativo o qual substituiu a Lei Orgnica
dos Municpios, dada a elevao do Interventor condio de rgo da
Administrao do Estado40
, fato o qual terminou por cassar a pouca
autonomia municipal existente at ento.
Assim, depreende-se que a forma federativa foi apenas nominal, a
qual foi posteriormente abolida pelo Decreto Lei n 1202, de 8 de abril de
1939. Tal dispositivo legalizou a forma de Estado Centralizada (ou Unitria),
fato o qual, na prtica, j vinha ocorrendo, apesar da previso do art. 3. 41
Machado Pauprio42
considera que a Constituio de 1937 no teve
vigncia nos Estados-membros e Municpios, pois essas esferas no foram
por ela contempladas. Tal decreto era uma espcie de Lei Orgnica
Unificada, dada a uniformidade imposta no concernente auto-organizao
dos mbitos regional e local. A fiscalizao centrou-se na Unio, sendo
exercida pelo Interventor em nvel regional e pelos Conselhos de
Administrao, s municipalidades.
7 A TEORIA MUNICIPALISTA NA CONSTITUIO DE 1946
O Municpio voltou a adquirir independncia no trato das matrias de
39
MEIRELLES, Direito municipal..., p. 33-34. 40
LOUREIRO, Jos Sanso. O impeachment dos executivos nomeados no direito constitucional brasileiro. Artigo Disponvel em: http://64.233.169.104/search?q=cache:_tfVujbXvCkJ:calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewFile/8772/6088+decreto+lei+1202+de+1939+leis+org%C3%A2nicas+municipios&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=9&gl=br > Acesso em: 10 jan 2008. 41
Art 3 - O Brasil um Estado federal, constitudo pela unio indissolvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territrios. mantida a sua atual diviso poltica e territorial. 42
PAUPRIO, Arthur Machado. O municpio e seu regime jurdico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 66.
45
finanas e de eletividade, com o advento do art. 28, inciso II, alnea a43
, e
inciso I, 44
salvo situao prevista no 245
- respectivamente, da CF de
1946. Com a entrada de um Federalismo de Cooperao (Democrtico) de
contornos diversos do modelo at ento experimentado no qual o
autoritarismo era a pedra de toque, o Municpio passou a ser prestigiado
como nenhuma Constituio at ento o fizera. 46
Esse prestgio ocorreu
custa da concesso ao Municpio de autonomias poltica, administrativa e
financeira, cumuladas com mudanas significativas no tocante ao instituto
da Interveno Federal, previsto no art. 7, VII, alnea e, da Constituio
de 1946,47
de modo a viabilizar o surgimento da Teoria do Estado
Municipalista. 48
O modelo de repartio de competncias49
, implantado em 1934 foi o
que deu sustentabilidade restaurao do Federalismo. Seguiu-se a tcnica
mesclada de outrora, mediante a (re) implantao de competncias
enumeradas Unio, de remanescentes aos Estados-membros, e da
concorrente preenchendo de maneira supletiva e complementar o trato de
determinadas matrias, estas ltimas mediante Lei Complementar -
autorizada pela Unio. Vide que as competncias concorrentes no
legislativas ainda no haviam sido introduzidas nesse perodo.
Em nvel local, a autonomia (re) estabelecida atravs do texto do
43
Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: II - pela administrao prpria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) decretao e arrecadao dos tributos de sua competncia e aplicao das suas rendas; 44
Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: I - pela eleio do Prefeito e dos Vereadores; 45
2 - Sero nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos dos Municpios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de Segurana Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional importncia para a defesa externa do Pas. 46
SOUZA JNIOR, Cezar Saldanha. Constituies do Brasil. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002. p. 59. 47
Art 7 - O Governo federal no intervir nos Estados salvo para: VII - assegurar a observncia dos seguintes princpios: e) autonomia municipal; 48
OLIVEIRA, Yves de. Curso de direito municipal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958. p. 69.
46
art. 28:
Art 28 - A autonomia dos Municpios ser assegurada: I - pela eleio do Prefeito e dos Vereadores; II - pela administrao prpria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) decretao e arrecadao dos tributos de sua competncia e aplicao das suas rendas; b) organizao dos servios pblicos locais. 1 - Podero ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municpios onde houver estncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela Unio. 2 - Sero nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territrios os Prefeitos dos Municpios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de