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1 RODRIGO WOLFF APOLLONI “SHAOLIN À BRASILEIRA” ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL SÃO PAULO 2004

shaolin à brasileira

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RODRIGO WOLFF APOLLONI

“SHAOLIN À BRASILEIRA”

ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS

RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

SÃO PAULO

2004

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RODRIGO WOLFF APOLLONI

“SHAOLIN À BRASILEIRA”

ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS

RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL

Dissertação apresentada como requisito

parcial para avaliação do Curso de Pós-

Graduação Stricto Sensu (Mestrado), em

Ciências da Religião, da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo.

Orientador: Prof. Doutor Frank Usarski.

SÃO PAULO

2004

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Para meus pais, Carlos Antônio e Brigitte.

Para todos os praticantes de Kung-Fu.

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AGRADECIMENTOS

Para muitas pessoas, o “símbolo máximo” da marcialidade oriental é a figura do venerável

mestre. É representado como um indivíduo especial, capaz de derrotar um exército e, ao

mesmo tempo, de dedicar boa parte de seu tempo a coisas singelas, como brincar com

um cão abandonado ou tocar flauta à sombra de uma árvore. Durante a realização deste

trabalho, confesso, procurei simbolicamente por essa figura. A vida, porém, nem de longe

se aproxima das brumosas ermidas taoístas ou das notas cavas de uma venerável flauta

shakuhachi. Apesar disso, posso afirmar que a encontrei. Ela está presente, de uma

forma ou de outra, em todas as pessoas que possibilitaram a realização deste trabalho.

Gostaria de agradecer, inicialmente, a meu orientador, Professor Frank Usarski, que em

2002 teve a consideração de responder a um e-mail “esotérico” enviado por um

desconhecido e que, desde então, foi meu mestre na senda do conhecimento acadêmico.

Agradeço, também, aos pesquisadores Meir Shahar, Stanley Henning, Dian Murray e

Sônia Maria de Freitas, por suas preciosas informações; aos mestres e professores de

Kung-Fu Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh, Jorge Jefremovas, Rogério Leal Soares,

Dirceu Coelho e Eliane Pontes Cardoso, por mostrarem que, em pleno século XX, é

possível fazer da arte marcial chinesa um caminho de vida; a seus alunos, que tão

prontamente atenderam à solicitação de uma entrevista. Ao mestre acupunturista Pan Yi

Bo, por seu generoso auxílio na tradução de ideogramas e termos religiosos chineses.

Agradeço, também, aos amigos Clodoaldo e Helvânia, pela amizade dispensada ao

“forasteiro” de Curitiba. A minha família, pelo carinho e pela paciência de escutar,

centenas de vezes, as mesmas histórias sobre guerreiros e heróis das dinastias Ming,

Tang, Sui, etc. A Fernanda, com quem dividi impressões, preocupações, ira, amor e

surpresa diante do desafio de se fazer mestre - sem perder a vontade de tocar flauta.

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SUMÁRIO

RESUMO......................................................................................................................09

ABSTRACT..................................................................................................................10

1. INTRODUÇÃO - “Kung-Fu Brasileiro: Chutes à Moda Chinesa na Terra

do Futebol” ................................................................................................................ 11

2. DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: As Artes da

Guerra e a “Religiosidade Marcial” no Contexto Histórico Chinês.......................20

2.1 Considerações Preliminares...................................................................................20

2.2 Uma “linha do tempo” para a arte marcial chinesa.................................................20

2.2.1 Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes.......................................24

2.2.2 O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas...........................25

2.2.3 O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares..........................................29

2.2.3.1 Fundação, patrocínio e tensões políticas..........................................................30

2.2.3.2 Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin..................................................31

2.2.3.3 Expressões da marcialidade em Shaolin durante a passagem

Ming-Qing......................................................................................................................33

2.2.3.4 Considerações sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin

no período Ming tardio...................................................................................................34

2.2.3.5 O mosteiro de Shaolin como centro difusor de

sistemas marciais..........................................................................................................37

2.2.3.6 Qielan Shen – o bastão de guerra nas mãos da divindade...............................41

2.3 Dinastia Qing e séc. XX - outros estilos e a prevalência da "matriz Shaolin"..........45

2.4 Arte marcial chinesa e modernidade........................................................................49

2.4.1 A visão dos imigrantes chineses acerca dos “velhos métodos”............................51

2.5 Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte

marcial chinesa..............................................................................................................53

2.5.1 A verificação do elemento religioso nos termos identificadores da

marcialidade na China...................................................................................................55

2.6 Interpretação dos conteúdos do capítulo.................................................................57

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3. UMA ESPADA NA BAGAGEM: Imigração Chinesa e Transplantação do

Kung-Fu de Shaolin para o Brasil...............................................................................59

3.1 Considerações Preliminares.....................................................................................59

3.2 Fontes sobre Imigração Chinesa no Brasil...............................................................60

3.2.1 Imigrantes e Mestres de Kung-Fu..........................................................................61

3.2.2 Hipóteses para a Ausência do Elemento Marcial nos Trabalhos sobre os

Chineses no Brasil..........................................................................................................62

3.3 Panorama Histórico da Imigração Chinesa para o Brasil.........................................63

3.3.1 Expansão Colonial e Séc. XIX – Portugal como Ponte entre Brasil e China........67

3.3.2 Segunda Metade do Séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil......69

3.4 Interpretação dos Conteúdos do Capítulo...............................................................74

4. DE BRUCE LEE À INTERNET: Representação e Auto-Representação no

Kung-Fu Brasileiro......................................................................................................77

4.1 Considerações Preliminares...................................................................................77

4.2 Anos 70 do Séc. XX - O "Primeiro Sangue" do Kung-Fu no Brasil.........................78

4.2.1 "Tranqüilo e Infalível como Bruce Lee"................................................................78

4.2.2 “Kung-Fu” – A Televisão Brasileira como Porta de Entrada para os

Monges de Shaolin........................................................................................................80

4.2.3 "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao Cinema de Kung-Fu.............................82

4.2.4 Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental”……………….……………….……....83

4.2.5 Livros sobre Kung-Fu nos Anos 70.......................................................................84

4.2.5.1 "A Sabedoria Kung Fu"......................................................................................85

4.2.5.2 "Kung Fu - Curso Básico de Bastão".................................................................88

4.3 Produtos Culturais Recentes: Passagem para a Auto-Representação...................89

4.3.1 Revistas Especializadas.......................................................................................90

4.3.1.1 "Pragmatismo" x "Tradição" nas Revistas Especializadas Brasileiras..............90

4.3.1.2 “Oriente”............................................................................................................90

4.3.1.3 "Kiai", “Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!"...................................................93

4.3.2 Apostilas Publicadas por Academias...................................................................96

4.3.2.1 “Kung Fu: Versão Curta de uma História Muito Longa”....................................97

4.3.2.2 Apostila da Associação Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu

de Florianópolis..........................................................................................................101

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4.3.3 Livros Recentes sobre Kung-Fu Publicados no Brasil......................................104

4.3.3.1 "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati".........................105

4.3.3.2 "Os Segredos do Kung-Fu"............................................................................107

4.3.4 Sites Brasileiros sobre Kung-Fu........................................................................109

4.3.4.1 Sites Institucionais..........................................................................................111

4.3.4.2 Sites pessoais................................................................................................114

4.4 Interpretação do material apresentado................................................................118

5. OS BUDAS DA ACADEMIA: Interpretação Acadêmica da Iconografia

no Universo Semântico do Shaolin Do Norte.......................................................121

5.1 Considerações preliminares................................................................................121

5.1.1 Uma Aproximação Teórica...............................................................................121

5.1.2 A cor e a Moldura do Kung-Fu Praticado no Brasil..........................................122

5.2 "As 18 Câmaras De Shaolin": Construindo um Espaço para a Prática

de Kung-Fu...............................................................................................................124

5.2.1 Um Salão Para o Dragão.................................................................................125

5.2.2 Sobre o Pó e os Cheiros das Academias........................................................126

5.2.3 A Arca de Shaolin............................................................................................127

5.2.4 O Gabinete do Venerável Mestre....................................................................129

5.3 A Iconografia Religiosa.......................................................................................130

5.3.1 Vencendo a Barreira dos Ideogramas.............................................................131

5.4 Elementos Iconográficos de caráter Religioso encontrados em Academias......131

5.4.1 Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu...........................................132

5.4.1.1 A Frente da Camiseta: o Brasão...................................................................133

5.4.1.2 As Costas da Camiseta: o Dragão................................................................141

5.4.2 “Placa da Ética e da Ancestralidade”...............................................................144

5.4.3 O Altar..............................................................................................................151

5.4.3.1 Um Conjunto Semântico de Prevalência Confucionista................................154

5.5 Interpretação das Informações do Capítulo........................................................154

6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...”: Apresentação e Leitura dos

Resultados da Pesquisa de Campo......................................................................156

6.1 Considerações Preliminares...............................................................................156

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6.2 O Universo da Pesquisa....................................................................................156

6.3 O Modelo da Pesquisa.......................................................................................160

6.4 A Construção dos Questionários – Perguntas e Temas....................................161

6.4.1 Entrevistado de Primeira Geração – Grão-Mestre Chan Kowk Wai...............161

6.4.2 Entrevistado de Segunda Geração – Mestre Lee Chung Deh........................166

6.4.3 Entrevistados de Terceira Geração - Professores Brasileiros........................172

6.4.4 Entrevistados de Quarta Geração – Alunos Brasileiros.................................178

6.5 – Interpretação do material apresentado...........................................................184

7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA.................................................185

8. CONCLUSÃO......................................................................................................191

REFERÊNCIAS........................................................................................................206

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa procurou investigar as transformações observadas, ao

longo do tempo, nos conteúdos de natureza não-corporal (em especial, os religiosos)

pertencentes ao universo semântico de uma arte marcial oriental transplantada para o

Brasil. A arte marcial pesquisada foi o Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte, originária da

China e introduzida no país, em 1960, pelo mestre chinês Chan Kowk Wai. Seu principal

diferencial em relação às demais artes marciais orientais transplantadas para o Brasil se

refere à coexistência de aspectos fundantes étnicos e transculturais. Essa “transplantação

de dupla paternidade” – definida pelo ingresso de técnicas corporais tradicionais e de

elementos não-corporais transculturais – determinou características específicas

relacionadas à adoção, entendimento, representação e significação da História, dos mitos

de criação e da religiosidade envolvidos com a arte marcial.

Para investigar a evolução do “subuniverso Kung-Fu” em seus aspectos não-corporais,

buscamos trabalhar com duas linhas, uma de caráter teórico-bibliográfico e, outra, de

caráter empírico. A primeira linha relacionou os principais elementos que compõem o

“universo teórico” do Kung-Fu, em especial o do estilo Shaolin do Norte: História da arte

marcial; relação entre arte marcial e imigração; representação e auto-representação da

arte e dos praticantes; iconografia religiosa. A segunda linha se ocupou de investigar as

transformações no universo não-corporal do estilo a partir de entrevistas com quatro

gerações de praticantes, formadas por dois mestres chineses, dois professores brasileiros

e seis alunos brasileiros.

O cruzamento das informações permitiu concluir que a arte marcial chinesa praticada no

Brasil, principalmente em seu entendimento filosófico, ético e religioso, vem adquirindo

características cada vez mais locais. A fim de compreender o porquê dessa

transformação e de projetar um cenário futuro do nosso objeto de estudo, fizemos uso de

um constructo teórico baseado na chamada “Teoria da Transplantação Religiosa”, de

Martin Baumann, e na chamada “Construção Social da Realidade”, de Peter Berger e

Thomas Luckmann.

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ABSTRACT

This research investigated the transformations observed, through a time frame, the non-

physical contents (especially the religious) regarding the semantic universe of an oriental

martial art transplanted to Brazil. The martial art researched was Northern Shaolin Style

Kung-Fu, which had originated in China and was introduced in Brazil in 1960, by Chinese

master Chan Kowk Wai. The main difference regarding the other oriental martial arts

transplanted to Brazil is the coexistence of the founding ethnical and transcultural aspects.

This “double paternity transplant” – defined by traditional corporal techniques and non–

corporal transcultural elements – determined the specific characteristics regarding the

embracing, understanding, representation and meaning of History, creation myths and

religiosity involved in the martial arts.

To investigate the evolution of this “Kung-Fu subuniverse” in its non-corporeal aspects, we

worked in two lines, one of them theoretical-bibliographic and the other one empiric. The

first line listed the main elements that constituted the Kung-Fu “theoretical universe”,

specially the Northern Shaolin style: Martial Arts History; martial arts and immigration

relationship; representation and self-representation of the martial art and its martial artists;

religious iconography. The second line investigated the transformations of the style in the

non-corporeal universe, through interviews with four generations of martial artists, formed

by two Chinese masters, two Brazilian instructors and six Brazilian students.

The crossing of information allowed us to conclude that the Chinese Martial Art practiced

in Brazil, mainly in its philosophical, ethical and religious understanding, is getting more

and more local characteristics.

To understand why this transformation happens and project a future scenario of our study

aim, we used a theoretical construct based on Martin Baumann’s “Theory of Religion

Transplantation” and Peter Berger and Thomas Luckmann’s “Social Construction of

Reality”.

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1. INTRODUÇÃO – “KUNG-FU BRASILEIRO: CHUTES À MODA CHINESA NA

TERRA DO FUTEBOL”

“Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were fast as lightning In fact it was a little bit fright'ning, but they fought with expert timing (…)” (“Kung-Fu Fighting”, C. Douglas, 1973)1

Bruce Lee, Jackie Chan, “O Tigre e o Dragão”, “Matrix”, “Kill Bill”, “Tekken”. Nos últimos

quarenta anos, a arte marcial chinesa (conhecida no Ocidente como “Kung-Fu”) saltou

das telas dos cinemas de Hong Kong para conquistar o mundo. As pessoas podem até

não conhecer a fundo esse conjunto de práticas corporais e filosóficas – saber de onde

veio ou qual sua História, por exemplo – mas certamente já tiveram em mente o

“arquétipo Kung-Fu”: a figura de um oriental sorridente, franzino e conhecedor de uma

venerável e terrível arte que, vez por outra, lhe permite despejar socos e chutes “a torto e

a direito” contra facínoras de todos os gêneros.

Apesar de não possuir Chinatowns e nem uma colônia chinesa das mais expressivas em

termos numéricos,2 o Brasil conheceu o moderno Kung-Fu praticamente ao mesmo tempo

em que os demais países do Ocidente.3 Por aqui, como em quase todos os lugares fora

da China e da grande faixa histórica de concentração de chineses ultramarinos (Sudeste

Asiático), a aproximação entre sociedade e marcialidade chinesa se deu,

fundamentalmente, a partir da indústria do entretenimento do século XX (literatura

popular, cinema e televisão).

Quem, com mais de quarenta anos, não assistiu a pelo menos um episódio da série

televisiva “Kung-Fu” - aquela, em que um monge tristonho vagava pelo Velho Oeste

dando conselhos aos bons e “porradas” na bandidagem - ou foi convidado para as

famosas “sessões Faixa Preta” no cinema? Nos anos 70, o sucesso dos filmes de Bruce

Lee – ator sino-americano que viria a se tornar uma espécie de “James Dean da

pancadaria” – levou imigrantes chineses conhecedores da arte marcial de seu país a

1 Letra em <http://www.thesonglyrics.com/d_song_lyrics/carldouglas_lyric1.html> (c. 02.02.2003). 2 Acredita-se que, atualmente, vivam no Brasil entre cem mil e duzentos mil imigrantes chineses e descendentes (algo entre 0,05% e 0,11% do total da população do país). Em outros países americanos, como os Estados Unidos, Peru e Cuba, essa população é bem mais significativa. 3 Informações de caráter histórico, porém, apontam para um conhecimento “remoto” do termo Cong-Fu: jesuítas franceses o utilizaram para descrever exercícios físicos e respiratórios praticados na China do séc. XVIII.

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abrirem academias em cidades brasileiras como São Paulo. Hoje, apesar de não haver

um registro do número total de praticantes brasileiros, pode-se dizer que o Kung-Fu é

praticado em pontos tão remotos dos grandes centros urbanos quanto o Acre e Rondônia.

O que vai, porém, na cabeça dos praticantes brasileiros de Kung-Fu - além da técnica

marcial pura e de imagens inspiradoras - a respeito de sua arte marcial? É impossível

esquadrinhar todo o pensamento de um indivíduo, quanto mais de um grupo deles.

Podemos, no entanto, nos arriscar a examinar de perto o “dragão verde e amarelo” e

chegar a alguns resultados interessantes. Nossa área é a das Ciências da Religião: o que

dizer, pois, do pensamento religioso desses praticantes? A bem da verdade, não

desejamos saber se esse aluno é evangélico, aquele católico e um terceiro, judeu ou

budista. Buscamos, sim, saber como se dá o contato entre o conjunto semântico da

religiosidade brasileira – com sua peculiar característica de inclusão – e os elementos

religiosos chineses (taoístas, budistas e confucionistas) presentes na arte marcial.

Nossa atenção se voltou para um cenário que inclui uma base étnica - o mestre fundador

chinês - e alunos brasileiros. Normalmente, em suas academias, esses transmissores de

informações tradicionais oferecem, também, conteúdos ligados às religiões de seu país

de origem, principalmente através da iconografia e de histórias que são ouvidas e, com

maior ou menor fidelidade, replicadas pelos “jovens gafanhotos”. Que valor esses

praticantes dão aos elementos religiosos chineses presentes no Kung-Fu? Qual sua

leitura a respeito, por exemplo, dos altares, da queima de incenso e das placas votivas

encontradas nas academias? Eles chegam a superar a barreira semântica dos

ideogramas? De que forma se referem ao passado histórico da arte praticada? E os

mestres chineses, conseguem transmitir, em português, conceitos tão abstratos para a

mente ocidental quanto o do Tao e o da iluminação Chan? Essa “religiosidade ancestral”

é de corte popular ou erudito? Nossa proposta, nessa dissertação, foi buscar respostas a

esses questionamentos.

Para tanto, elegemos um grupo específico de praticantes de um estilo tradicional de

Kung-Fu nominalmente relacionado a uma religião chinesa, o Shaolin do Norte (Bei

Shaolin, ). Shaolin é o nome de um mosteiro budista fundado no ano de 495 d.C.

na província de Henan, no centro-norte da China. Introduzido entre nós pelo imigrante

chinês Chan Kowk Wai nos anos 60, o estilo é, atualmente, um dos mais praticados por

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brasileiros, com ramificações (a partir do Brasil) na Argentina, Estados Unidos, Canadá e

Espanha. A fim de se obter um quadro mais representativo do pensamento de

professores e alunos brasileiros, entrevistamos praticantes em Florianópolis (SC) e

Campo Grande (MS) – locais distantes da “base de operações” de Chan Kowk Wai, a

cidade de São Paulo. A captação de conteúdos semânticos originários da China e de uma

“visão étnica” se deu a partir de entrevistas com dois mestres chineses, um de São Paulo

(o próprio Chan Kowk Wai) e um de Curitiba (Lee Chung Deh, responsável direto pela

introdução do estilo na Região Sul).

Antes de chegar às entrevistas, porém, buscamos nos ocupar de quatro elementos que

julgamos indispensáveis para a investigação do universo semântico dos praticantes

brasileiros de Kung-Fu:

- O primeiro, uma História da arte marcial chinesa, construída a partir de bases

acadêmicas, com atenção especial ao “Kung-Fu de Shaolin” (vale observar que estudos

acadêmicos a respeito da marcialidade, principalmente os de caráter histórico - ainda são

relativamente tímidos no Brasil);

- O segundo, o papel da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o Brasil;

- O terceiro, as fontes de representação/auto-representação encontradas ao longo das

últimas três décadas no Brasil (filmes, revistas, sites, livros, músicas, jogos de

computador);

- E o quarto, um estudo mais aprofundado da iconografia encontrada nas academias

brasileiras de Shaolin do Norte.

A investigação das fontes acadêmicas nos permitiu estabelecer, inicialmente, os aspectos

do Kung-Fu considerados relevantes pelos pesquisadores, principalmente no que se

refere ao “mito de criação de Shaolin”, tema central no universo semântico não-corporal

dos praticantes, especialmente no estilo Shaolin do Norte. Essa investigação também

permitiu determinar o peso da imigração para o estabelecimento da arte marcial chinesa

no Brasil, bem como a relação entre a massa de imigrantes estabelecidos no país e o

Kung-Fu praticado nas academias.

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A investigação das fontes de representação/auto-representação, por sua vez, permitiu

desvendar o papel dos produtos da “cultura de massa” na formação do pensamento ético-

filosófico e religioso do Kung-Fu no Brasil. Esta leitura desvendou o contínuo processo de

recriação e institucionalização de conteúdos “milenares” – uma espécie de “reconstrução

do velho mestre” e de seus aforismos - uma vez que possibilitou observar como os

conteúdos de fontes populares influenciam os praticantes e, também, como os praticantes

participam na eleição, produção, entendimento e replicação desses conteúdos.

Já a pesquisa relativa à iconografia encontrada nas academias permitiu provar a presença

e a profundidade de elementos religiosos tradicionais ligados às três grandes religiões

que floresceram na China – Taoísmo, Confucionismo e Budismo. As informações obtidas

serviram como parâmetro de comparação com os dados sobre essa mesma iconografia

obtidos juntos aos professores e alunos brasileiros.

O trabalho se justifica, pois, tanto pelo aspecto histórico quanto pelo de observação de

como elementos culturais de uma determinada sociedade se comportam quando

transplantados para uma sociedade de características religiosas e de visão de mundo

muito diferentes. Há que se observar o trabalho, ainda, pelo viés da chamada

“religiosidade fragmentária”, isto é, pela análise de como elementos religiosos de uma

determinada cultura acabam “contrabandeados” para dentro de outra a partir de

atividades aparentemente não relacionadas a qualquer forma de religiosidade. Vale notar,

ainda, que o trabalho ajuda a abrir um filão, uma vez que em nosso país não há estudos

sobre a marcialidade originária da China dentro das Ciências da Religião e, de modo

geral, nas chamadas Ciências Humanas. Por fim, há que se considerar que a pesquisa

pode levar temas de reflexão aos próprios praticantes, uma vez que eles serão

confrontados com uma abordagem diferente da que estão acostumados, que é baseada,

sobretudo, em uma tradição oral enriquecida por informações externas de fontes que,

normalmente, não explicitam a origem de seus dados.

O universo de entrevistados desta pesquisa foi estabelecido com interesse de determinar

se e como os conteúdos religiosos orientais originalmente presentes no Kung-Fu se

transformaram no Brasil desde o primeiro contato entre mestres chineses e alunos

brasileiros. Para captar essa evolução, chegamos a um grupo de dez pessoas que

contempla, em um “microcosmo”, quatro gerações de praticantes: a primeira, formada

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pelo mestre chinês que introduziu a arte marcial no Brasil; a segunda, formada por outro

mestre chinês, formado no Brasil pelo mestre anterior e que foi o grande responsável pela

difusão do Shaolin do Norte fora de São Paulo; a terceira, formada por dois professores

brasileiros do mestre chinês de segunda geração; e a quarta, formada por seis alunos

brasileiros desses professores.

A fim de chegarmos às respostas, dividimos o problema de pesquisa em quatro blocos

distintos, dos quais três são de caráter bibliográfico e um de caráter empírico. Essa

divisão tomou como referência os elementos enunciados nos parágrafos anteriores.

Assim, o primeiro deles, formado pelos capítulos dois (“As artes de guerra e a

‘religiosidade marcial’ no contexto histórico chinês”) e três (“Uma Espada na Bagagem:

imigração chinesa e transplantação do Kung-Fu de Shaolin para o Brasil”), buscou

abranger, num primeiro momento, o desenvolvimento histórico da arte marcial na China e

suas relações com o Taoísmo e o Budismo. No segundo momento, buscou examinar o

papel da imigração chinesa para a difusão Kung-Fu no Brasil e determinar o papel do

elemento étnico nesse universo semântico e de relações humanas.

O segundo bloco, formado pelo capítulo quatro (“De Bruce Lee à Internet: representação

e auto-representação no Kung-Fu brasileiro”), buscou examinar produtos brasileiros

decorrentes da “invasão da arte marcial chinesa” verificada na primeira metade da década

de 70. Procuramos determinar a origem das primeiras informações “filosóficas” sobre arte

marcial chinesa que chegaram ao Brasil, assim como o momento de substituição de

conteúdos “alienígenas” sobre Kung-Fu por conteúdos locais, ou seja, informações

derivadas do entendimento de brasileiros que se tornaram praticantes. Ainda dentro

desse bloco, buscamos examinar o resultado da replicação de informações dentro do

universo brasileiro de Kung-Fu, procurando compreender como se dá a transmissão de

dados e também a consolidação de certos mitos e tradições da arte marcial chinesa.

O terceiro bloco, formado pelo capítulo cinco (“Os Budas da Academia: interpretação

acadêmica da iconografia religiosa encontrada no universo semântico do Shaolin do

Norte”), buscou identificar os elementos gerais e os de caráter religioso encontrados nas

academias brasileiras de Shaolin do Norte, conferindo a esses conteúdos uma leitura

acadêmica. Em um primeiro momento buscamos apresentar um “cenário médio” das

academias de Shaolin do Norte para, a seguir, identificar e “traduzir”, a partir de uma

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leitura acadêmica, os elementos religiosos orientais presentes nesses ambientes. Os

dados obtidos nessa parte da pesquisa funcionaram para identificar traços do Budismo,

Taoísmo e Confucionismo dentro da iconografia do estilo Shaolin do Norte e, também,

como um referencial para determinar o grau de transformação sofrido por esses

conteúdos dentro do universo semântico dos praticantes brasileiros.

O quarto bloco, formado pelo capítulo seis (“Para conhecer o filhote do tigre...” –

Apresentação e leitura dos resultados da pesquisa de campo), trouxe um conjunto de

informações obtido a partir da sistematização dos conteúdos das entrevistas; esse

conjunto foi construído a partir da apresentação e cruzamento dos dados obtidos junto

aos mestres chineses, professores brasileiros e alunos.

Estabelecidos os quatro blocos de desenvolvimento da dissertação, pudemos concluir o

trabalho determinando a validade das hipóteses iniciais (geral e particulares) de trabalho.

A conclusão também permitiu inferir, a partir do estilo que foi objeto de pesquisa, um

quadro futuro para o Kung-Fu brasileiro em relação a seus conteúdos não-corporais

(religiosos, históricos e filosóficos).

Em nosso projeto de pesquisa elencamos uma hipótese “geral” ou “fundamental” de

trabalho, que foi desmembrada em seis hipóteses “particulares”. Partimos da hipótese

geral de que

O Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico não-corporal condicionado

por fatores que implicaram em uma valoração e em um entendimento particulares, por

parte dos praticantes locais, dos elementos da religiosidade chinesa associados à prática

marcial original.

A formatação desse “Kung-Fu à Brasileira” decorreu de um processo que envolveu as

fontes, a forma de transmissão e a compreensão dos conteúdos religiosos, filosóficos e

históricos que compõem o universo semântico não-corporal da arte marcial chinesa.

Decorreu, também, do interesse dos mestres chineses e dos praticantes brasileiros em

difundir/valorizar tais conteúdos.

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Essa hipótese geral só pôde ser confirmada/negada a partir da verificação das seis

hipóteses particulares, que são:

a) - A prevalência de uma tradição oral centrada no valor atribuído à informação do

“mestre” (chinês ou brasileiro), a ausência de obras acadêmicas sobre arte marcial

chinesa, a obtenção empírica de conhecimentos e, principalmente, a forte presença de

conteúdos não-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indústria cultural (a partir dos

anos 70), implicaram na formação de um universo semântico não-corporal sui generis,

moderno e de fulcro transcultural.

b) - A dificuldade de acesso a informações originárias da China, assim como de

entendimento dos dados culturais daquele país, levaram os praticantes locais a buscar

informações “extra-academia” - em livros, revistas, filmes e internet. Tais informações

teriam por fim sacramentar as atividades desenvolvidas nas academias como arte marcial

“de fato”,4 ou seja, como prática de agressão transformada em “caminho de vida” por meio

da inserção de fatores éticos e de caráter legitimador.

c) - As diferenças culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil

e os praticantes brasileiros (a começar pelo idioma) teriam criado uma “barreira

semântica” que dificultou a transmissão de valores religiosos e ético-filosóficos que,

originalmente, formavam o “substrato espiritual” do Kung-Fu.

d) – A ausência de uma colônia chinesa numericamente expressiva no Brasil e a falta de

interesse dos próprios chineses em conhecer a arte marcial de seu país de origem

implicaram em um “esvaziamento étnico” no Kung-Fu brasileiro. Esse esvaziamento teve

como principal conseqüência uma apropriação, por parte da população local, da arte

marcial chinesa, com conseqüências diretas para seus conteúdos não-corporais.

e) - Práticas rituais e ícones chineses associados originalmente à religiosidade no Kung-

Fu foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em símbolos de caráter

“cenográfico”, ou seja, de representação do universo marcial. Segundo essa visão, uma

4 Faz-se necessário, para o melhor entendimento da hipótese, observar que o conceito “arte marcial” não decorre mais apenas de um suposto “olhar oriental”. É, hoje, um conceito de caráter transcultural.

Page 18: shaolin à brasileira

18

estátua do espírito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu caráter devocional e

passaria à condição exclusiva de peça necessária à legitimação do ambiente marcial.

f) - A visão do Kung-Fu como atividade desligada de conteúdos que não os de caráter

puramente marcial ou de condicionamento físico fez com que os praticantes não

investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma

desvalorização dos mesmos no universo da arte marcial.

A verificação das hipóteses particulares foi feita a partir do cruzamento dos dados

bibliográficos e empíricos obtidos na pesquisa. A verificação da hipótese geral foi feita a

partir de uma leitura de conjunto, por uma lente derivada do constructo teórico adotado,

das respostas às hipóteses particulares.

O constructo teórico nasceu de um cruzamento entre a teoria de Martin Baumann sobre a

transplantação religiosa e as considerações de Berger & Luckmann a respeito da

construção social da realidade. A teoria de Martin Baumann acerca da transplantação

religiosa permitiu desvendar o desenvolvimento do Kung-Fu brasileiro a partir de suas

raízes étnica e não-étnica. Aplicamos à teoria, necessariamente, ligeiras adaptações (que

não implicaram em qualquer tipo de distorção metodológica), dado que o Kung-Fu não é

uma religião, mas uma prática marcial dotada de conteúdos religiosos. Pela aplicação, ao

Kung-Fu do Shaolin do Norte, das etapas de transplantação enunciadas por Baumann,

pudemos verificar de que forma o conjunto semântico histórico-religioso de uma cultura

alienígena se estabeleceu entre nós, e também como a mediação entre conteúdos

tradicionais, não-tradicionais e da sociedade local produziu o que nós chamamos de

“Shaolin à Brasileira”.

Essa mediação é a chave para a aplicação do segundo componente do constructo

teórico, a saber, o trabalho de Berger & Luckmann sobre a construção social da realidade.

Buscamos determinar se o elemento cultural decorrente da interação entre um produto

originalmente chinês o olhar brasileiro adquiriu um caráter de conformação ou de

confrontação em relação à realidade-padrão. No caso de conformação, a partir da

renúncia/ressignificação em relação a que valores originais; no caso de confrontação, a

partir do atrito entre que valores, e se as divergências semânticas implicaram em algum

Page 19: shaolin à brasileira

19

tipo de encapsulamento da realidade dos praticantes de Kung-Fu brasileiros dentro da

realidade-padrão local.

O acesso a fontes acadêmicas para a produção dos capítulos de fundamentação teórica

(dois, três, quatro e cinco) foi vital para uma apreensão mais precisa dos elementos

envolvidos com a arte marcial chinesa tradicional, tanto em terras chinesas quanto no

restante do mundo. O levantamento de dados históricos sobre a arte marcial na China e

em Shaolin foi possível principalmente graças aos trabalhos de Meir Shahar (Tel Aviv

University), Stanley Henning (pesq. independente, Havaí), Dian Murray (University of

Notre Dame) e Barend ter Haar (Leiden University). A definição do Kung-Fu como

“produto transcultural” foi possível graças aos trabalhos de Leon Hunt (Brunel University)

e de Wolfram Manzenreiter (University of Viena) & Sabine Frühstück (University of

California). Indicações sobre o significado tradicional e a tradução dos ideogramas

chineses presentes nos elementos iconográficos foram possíveis graças ao auxílio do

médico acupunturista chinês Pan Yi Bo, originário de Henan, que atualmente vive em

Curitiba.

Page 20: shaolin à brasileira

20

2 – DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: AS ARTES DE

GUERRA E A “RELIGIOSIDADE MARCIAL” NO CONTEXTO HISTÓRICO CHINÊS

2.1 – Considerações preliminares

As artes marciais ocupam um lugar especial na cultura chinesa. Praticadas há milênios -

com maior ou menor grau de sistematização -, elas formam um corpo de conhecimentos e

tradições de base oral que alcançou a literatura (com o gênero Wusia, reservado aos

“heróis combatentes das injustiças”),5 o teatro e o cinema. Elas oferecem um vasto campo

de trabalho e um desafio: diante da diversidade das lendas e mitos de criação – diante,

enfim, do "folclore marcial" - como chegar às suas raízes históricas? Um caminho é o da

pesquisa em fontes cronologicamente determinadas - livros, edifícios e monumentos - que

não padecem da “dinâmica transformadora” verificada na transmissão oral. E, ainda que

tais fontes possam sofrer influências como a do olhar de uma classe social sobre outra –

ou de uma linha predominante de pesquisa - mostram-se valiosas em aspectos que vão

da localização da nomenclatura marcial à compreensão das motivações que levaram um

grupo humano a se dedicar a práticas marciais. Essas fontes, bem como pesquisas feitas

por scholars chineses e japoneses, serviram como objeto de trabalho para os

pesquisadores ocidentais que, no século XX, passaram a considerar o tema como digno

de estudo.

2.2 – Uma “linha do tempo” para a arte marcial chinesa

Antes de iniciar o estudo específico do tema, é preciso determinar os períodos históricos

chineses com base na ascensão e queda das dinastias e no início do regime republicano.

Essa determinação é fundamental para a compreensão da História da China, vista como

matriz de todo o movimento marcial verificado naquela civilização (ver tabela 1).6 O

desenvolvimento tecnológico de armas, o aprimoramento das técnicas de combate e a

produção de um pensamento filosófico de viés marcial (seja em termos de estratégia, seja

em termos éticos) decorre, fundamentalmente, das épocas de transferência de poder. Há

que se observar que, no caso chinês (assim como em muitas outras civilizações), toda a

transferência de poder se deu a partir de confrontos nos campos de batalha. Alianças

5 Literatura Wusia em <http://edu.ocac.gov.tw/taiwan/kungfu/e/1-11.htm> (c. 10.06.2003). 6 Os dados da tabela se baseiam em <http://www-chaos.umd.edu/history/time_line.html> (c. 12.08.2004)

Page 21: shaolin à brasileira

21

entre reinos, intrigas palacianas e a capacidade de manter linhas de suprimento para as

frentes de batalha também participaram desse processo – elas estão ligadas,

fundamentalmente, ao princípio enunciado por Carl Von Clauzewitz no início do século

XIX (logo após a derrota de Napoleão Bonaparte), segundo o qual “a guerra é uma

simples continuação da política por outros meios”.7

Tabela 1 – Cronologia das Dinastias e do período republicano chinês*

Dinastia

Dinastia/Período Republicano

(1) Shang

1750 a 1050 a.C.

(8) Tang

618 a 907

(2) Chou

1050 a 221 a.C.

(9) Cinco Dinastias e Dez Reinos

907 a 960

(3) Ch’in

221 a 207 a.C.

(10) Song

960 a 1279

(4) Han

206 a.C. a 221 d.C.

(11) Yuan

1279 a 1368

(5) Três Reinos

221 a 280

(12) Ming

1368 a 1644

(6) Chin

280 a 420

(13) Qing

1644 a 1911

(7) Sui

420 a 617

(14) República da China

1911 a 1949

(15-a) República Popular da China

1949 ao séc. XXI

(15-b) República da China/Taiwan

1949 ao séc. XXI

7 CLAUZEWITZ, C., “Da Guerra”, 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1996, 921 p., p. 27. * Iniciamos a contagem de tempo por Shang, o período histórico mais antigo confirmado pela arqueologia. Em termos míticos, a origem da civilização chinesa se inicia cerca de 1.300 anos antes, com os imperadores “fundadores” Shen-nung, Huang Ti, Fu-hsi, Yao, Shun e Yü. Ver THORWALD, J., “O Segredo dos Médicos Antigos”, 10ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1990, 319 p., p. 224-225

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22

A partir de pesquisas mais específicas em relação ao nosso objeto é possível traçar uma

“linha do tempo” que representa a evolução histórica das artes marciais chinesas ao longo

dos últimos 30 séculos (tabela 2). Ela é composta por “grandes eventos” documentados

ou resgatados pela arqueologia. Para facilitar a aproximação e estabelecer uma unidade

temática, optamos por apresentar essa “linha do tempo” e, então, fazer a análise dos

dados. Como será possível observar, há uma forte presença, nessa cronologia, do

mosteiro budista de Shaolin (a tabela foi dividida nas fases “Pré-Shaolin”, “Shaolin” e

“Pós-Shaolin”). Ela se justifica pelo fato de que um estilo decorrente da “tradição Shaolin”

(o Shaolin do Norte) ocupa uma posição central em nosso objeto de pesquisa. Além

disso, há que se considerar que o mosteiro ocupou, de fato, um locus estratégico no

desenvolvimento marcial chinês, principalmente em relação à tradição do moderno Kung-

Fu. Procuramos não omitir, porém, outros desenvolvimentos marciais, principalmente em

relação ao período abrangido pelos sécs. XVI a XVIII, que é chave para a construção da

atual arte marcial chinesa.

Tabela 2 – “Linha do Tempo” das Artes Marciais Chinesas

Fase

Época Fato Relevante

1500 a

1122 a.C.

Dinastia Shang. Espadas, lanças, punhais e machados de bronze. Primeiros

registros de prática marcial na China.

1000 a.C. Dinastia Chou. Representações, em peças de bronze, de figuras humanas em

posturas de combate.

722 a

481 a.C.

Registro de práticas marciais no “Livro dos Ritos” e nos “Anais da Primavera e

Outono”. Lao Tzu escreve o clássico taoísta Tao-Te-Ching. Na obra, condena o uso

das armas.

403 a

221 a.C.

“Era dos Reinos Combatentes”. Sun Tzu escreve a obra “Os 13 Momentos”.

206 a.C. a

220 d.C.

Registros sobre o shoubo e jueli, formas de luta e pugilismo. Aproximação entre

conceitos taoístas, confucionistas e budistas nas práticas religiosas e corporais.

“Origem religiosa” do Kung-Fu.

64

Fundação do primeiro mosteiro budista chinês, o Bai Ma (“Cavalo Branco").

136 a 208 O médico taoísta Hua To cria os “Jogos dos Cinco Animais”.

Pré-

Shaolin

402 Fundação, segundo a tradição, da Pai-lien She (“Sociedade do Lótus Branco”).

Page 23: shaolin à brasileira

23

495 Fundação, próximo de Luoyang (Henan), do mosteiro de Shaolin.

610 a 621 Bandoleiros atacam Shaolin: início da relação entre os monges e a marcialidade. Os

monges de Shaolin participam da campanha de Li Shimin contra Wang Shichong,

que foi determinante para a implantação da Dinastia Tang.

1515 O scholar Du Mu redescobre a “Estela do Mosteiro de Shaolin”.

1553 Participação de “tropas monásticas” em campanhas antipirataria em Zhejiang.

1621 Cheng Zongyou publica a “Exposição sobre o Método Original de Bastão de

Shaolin”.

Séc. XVI Aparecimento de artistas marciais itinerantes na China.

Séc. XVII Desenvolvimento, em Chenjiagou (Henan), do estilo Tai-Chi-Chuan.

Shaolin

Séc. XVIII Desenvolvimento, em Henan e Shanxi, dos estilos Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan.

Criação da Tiandihui (“Sociedade do Céu e da Terra”). Disseminação da lenda dos

“monges fundadores da Tríade”. Segundo a tradição marcial, incêndios destroem os

mosteiros de Shaolin em Henan e Fujian.

1900 Rebelião dos Boxers. Derrota do movimento sectário chinês.

1917 Mao Tsé-Tung escreve o ensaio “Um Estudo sobre a Cultura Física”.

Anos 20 Movimento de resgate e institucionalização das artes marciais. Criação de institutos

e realização de competições. Em 1928, incêndio no Mosteiro de Shaolin.

1949 Comunistas chegam ao poder na China. Fuga de mestres do país.

1954 “Estandardização” dos sistemas marciais na República Popular da China. Criação

do moderno Wushu.

Anos 60

Revolução Cultural Chinesa. Nova debandada de mestres da China. Chega ao

Brasil o grão-mestre Chan Kowk Wai (1960).

1966 Chegada do mestre Lee Chung Deh ao Brasil.

Anos 80 Reforma e reocupação de Shaolin. Nomeação de um abade para o templo.

1990 O Wu-Shu é incluído entre os esportes de competição nos Jogos Asiáticos.

Pós-

Shaolin

Séc. XXI O governo da China inicia campanha para transformar o Wu-Shu em esporte

olímpico.

Page 24: shaolin à brasileira

24

2.2.1 – Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes

As mais antigas representações marciais chinesas possuem três mil anos: aparecem em

vasilhas de bronze datadas de cerca de 1000 a.C. (na passagem da Dinastia Shang para

Chou) e mostram homens em situação de combate.8 De acordo com Draeger & Smith,9 a

origem das artes marciais pode ser traçada até a Dinastia Chou (1122 a 255 a.C.).10

Referências às artes marciais praticadas pela nobreza – arco-e-flecha, esgrima e

pugilismo – aparecem no “Livro dos Ritos”, nos “Anais da Primavera e Outono” (722 a 481

a.C.) e em obras da chamada “Era dos Reinos Combatentes” (464 a 221 a.C.).

Escavações arqueológicas revelaram que os

guerreiros utilizavam machados, lanças, facas e

espadas confeccionadas em bronze (ver fig. 1 e 2),11

liga conhecida desde Shang (1500 a 1122 a.C.).12

Armas semelhantes aparecem nos modernos

sistemas de Kung-Fu, inclusive no Shaolin do Norte.

Se aceitarmos a hipótese de que a prática regular

determinou o surgimento de escolas e estilos

marciais, é possível relacionar o período estudado à

moderna marcialidade.13

O domínio do arco e da condução de carruagem era parte da educação dos nobres de

Chou; no caso do arco, ele se tornou um passatempo da nobreza já na época do filósofo

Confúcio (551 a 479 a.C.). Mêncio (372 - 289 a.C.) se refere a um modo de transmissão

das técnicas de arco-e-flecha semelhante ao adotado nas modernas academias de Kung-

8 Cf. HOLCOMBE, C., “Theater of Combat: A critical look at the Chinese Martial Arts”, in <http://www.sino.uni-heidelberg.de/FULLTEXT/JR-ADM/holcom.htm> (c. 25.08.2003). 9 DRAGER, D., & SMITH, R., “Asian Fighting Arts” (1ª ed., Tóquio: Kodansha International Ltd., 1973, 201 p.), p. 15. 10 Ver <http://www-chaos.umd.edu/history/ancient1.html#shang>, c. 29.08.2003) e PEERS & MCBRIDE, “Ancient Chinese Armies 1500 – 200 b.C.”, 1ª ed., Oxford: Osprey Publishing, Men-at-Arms Series, 1998, 48 p. 11 Imagens extraídas de: PEERS, C., & MCBRIDE, A., "Ancient Chinese...", p. 7 (punhal) e 11 (machado). 12 Ibid., p. 5 a 8. 13 MING, Y., “Ancient Chinese Weapons – A Martial Artist´s Guide”, 1ª ed., Boston: YMAA Publications, 1999, 140 p.

Page 25: shaolin à brasileira

25

Fu.14 Na “Era dos Reinos Combatentes”, as guerras entre os reinos de Chin, Chi, Wei,

Wu, Chu e Yueh aceleraram o desenvolvimento de tecnologias e do pensamento militar.

Foi o tempo de “A Arte da Guerra” (ou “Os Treze Momentos”), obra atribuída ao expert

militar Sun Tzu. “Livro de cabeceira” de executivos no século XXI, ficou conhecido no

Ocidente a partir 1772, quando foi traduzido para o francês pelo jesuíta Jean-Joseph

Marie Amiot.15

Ainda que a atividade marcial fosse exclusiva da nobreza até a Dinastia Han (206 a.C. a

220 d.C.), há referências à prática de pugilismo por outros grupos sociais. Essa

“democratização marcial” se configurou, aparentemente, como reflexo do aumento da

violência na sociedade chinesa durante a Era dos Reinos Combatentes, que implicou, em

um primeiro momento, na separação entre as figuras do “rei” e do “general”. A segunda

conseqüência – diretamente relacionada à evolução técnica da guerra – se refere ao

aumento da conscrição de civis. Henning cita o termo bo ou shoubo (palavras que,

durante a Dinastia Song - séc. XII – seriam substituídas por Quan ou Ch’uan)16 para

identificar um método conhecido na Dinastia Han Anterior (206 a.C. a 9 d.C.). Esse

método estaria descrito no manual Han Shu I Wen Chih (“Seis Capítulos a Respeito do

Combate de Mãos”, mencionado no “Livro das Artes de Han”).17 Praticado por militares e

civis, era diferente do pugilismo esportivo dos militares (jueli).18

2.2.2 – O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas

Na Dinastia Han Posterior (25 a 220 d.C.) houve uma aproximação entre Taoísmo,

Confucionismo e Budismo (que avançara para a Ásia Central a partir dos esforços de

Ashok, imperador indiano da Dinastia Maurya); ela teria sido favorecida pela crise

institucional na Dinastia Han e pelo descrédito com que os intelectuais de então viam o

Confucionismo. Ainda que não seja possível determinar o momento exato do contato, os

pesquisadores aceitam o ano de 64 d.C. como o da entrada “institucional” das primeiras

14 HOLCOMBE, C., "Theater of Combat...", op. cit., doc. eletr. 15 Cf. CARDOSO, A., “Os Treze Momentos – Análise da Obra de Sun Tzu” (1ª ed., Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1987, 158 p.), p. 4. 16 Cf. HENNING, S., “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, in Havaí: China Review International, Vol. 6, n. 2, 1999, p. 319 a 332, p. 320. 17 Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 16. 18 Cf. HENNING, "Academy Encounters...", p. 320.

Page 26: shaolin à brasileira

26

obras budistas na China.19 Nesse ano foi fundado em Luoyang (na atual província de

Henan)20 o Baima (“[Mosteiro do] Cavalo Branco”).21 Em termos marciais, o momento é

significativo: ele teria gerado práticas corporais decorrentes da fusão entre preceitos

budistas, hinduístas (através do Budismo) e taoístas. Essas práticas estariam na origem

das artes marciais chinesas. Segundo Holcombe, na Dinastia Han Posterior houve um

cruzamento entre as antigas práticas respiratórias taoístas (chinesas) e hindus (indianas):

A tradição chinesa taoísta de exercícios de prolongamento da vida se mesclou com o Yoga indiano introduzido na China nos primeiros séculos da era cristã. O interesse inicial no Budismo se concentrou nas aproximações para os mesmos problemas, e alguns dos primeiros textos traduzidos do sânscrito para o chinês eram devotados à meditação, ao controle da respiração e a segredos para atingir a imortalidade no outro mundo.22

Huard & Ling citam práticas medicinais

exportadas da Índia para a China; elas incluíam

exercícios físicos que relacionavam formas de

respiração, movimento e mentalização.

No século IV (...) Kumarajiva inundou a China com obras budistas. Desde essa época, os Budas e os Bodhisattvas, seres transcendentes, foram confundidos com sábios taoístas. Eles acabaram vencendo nas devoções populares; o budismo ensinou igualmente preceitos de higiene e as suas comunidades favoreceram os exercícios coletivos (...).23

É personagem desse período o médico taoísta

Hua To (136 ou 141 a 208 d.C.),24 tido como o criador dos "Jogos dos Cinco Animais"

(exercícios zoomorfos que imitavam os movimentos da grua, do urso, do tigre, do veado e

do macaco).

19 Cf. <http://www.cohums.ohio-state.edu/deall/jin.3/c231/handouts/h10.htm> (c. 15.09.03). 20 Província do centro-leste da China. Inf. em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan>, mapa em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/henan.html> (c. 18.11.2003). 21 Ver <http://www.chinaembassy.org.in/eng/52100.html> e <http://www.qigong.ru/Gallery/comments.e/White_Horse.html> (c. 15.09.2003). 22 HOLCOMBE, op. cit., "Theater of combat...", doc. eletrônico. Trad. livre do inglês. 23 HUARD & LING, "Técnicas e Cuidados do Corpo na China, no Japão e na Índia" (1ª ed., São Paulo: Summus Editorial, 1990, 317 p.)., p. 60 e 61. Kumarajiva (344 – 413) foi um dos principais tradutores de obras budistas para o chinês. Foi o responsável pela primeira tradução, para o chinês, do “Sutra do Diamante”. 24 Ibid., p. 64.

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27

De acordo com Needhan, Huard & Ling e Holcombe, esses exercícios são a base da arte

marcial chinesa (fig. 3).25 Segundo Holcombe, a inflexão saúde x arte marcial

provavelmente decorreu da popularização de obras como a de Hua To. A passagem teria

ocorrido a partir de seitas como Pai-lien She ("Sociedade do Lótus Branco", fundada em

402 pelo monge budista Hui-yuan), que fundiram a religião das elites com práticas

xamanísticas.26 Tais seitas seriam as grandes responsáveis pela manutenção da nota

religiosa na arte marcial chinesa:

Nos séculos XVIII e XIX, o repertório de técnicas ensinadas aos conversos ao Lótus Branco incluía encantamentos, controle respiratório, massagem terapêutica e exercícios de luta. Os seguidores do Lótus Branco se referiam a essas técnicas como kung-fu, mas a transcendência permanecia sendo seu principal fator de atração. Mesmo entre os boxers, mais recentes, (...) a função do kung-fu consistia, ainda, na obtenção religiosa de poderes sobrenaturais. 27

Ainda de acordo com Holcombe, o Tai-Chi-Chuan - arte marcial provavelmente criada no

século XVII em Henan, cujo nome pode ser traduzido como “Boxe do Grau Supremo” -28

seria a prova da "herança taoísta" das artes marciais. Segundo ele, a idéia de “Grau

Supremo” deriva do “Livro das Mutações” (I Ching) e as bases filosóficas do Tai-Chi, do

Taoísmo.29

Joseph Needham, autor da série “Science and Civilization in China” (obra em sete

volumes publicada em 1954 pela Cambridge University Press), afirmava que “o pugilismo

chinês provavelmente nasceu como um departamento dos exercícios corporais taoístas”.

Os métodos chineses de combate são tratados no volume II e V da obra.30 Draeger &

Smith são mais diretos em relação à proximidade entre Taoísmo e arte marcial: eles

afirmam que “esses métodos foram trazidos para dentro do moderno pugilismo e se

tornaram o núcleo do chamado Sistema Interno”.31

25 Ibid, p. 66 (imagem). 26 HOLCOMBE, "Theater of Combat...", op.cit. 27 Ibid, trad. livre do inglês. 28 Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”, art. publ. in Harvard: Harvard Journal of Asiatic Studies, v. 61, n. 2, dez. 2001, p. 359 a 413, p. 388; Tradução de "Tai-Chi-Chuan" cf. DERRICKSON, "Chinese for Martial Arts", 1ª ed., Rutland: Charles E. Tuttle, 1996, 40 p., p. 20. 29 HOLCOMBE, "Theater of combat...", op. cit. 30 Cf. HENNING, “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, p. 320 e nota 6. Biografia de Needham em <http://www.nri.org.uk/index.htm> (c. 09.09.2003). 31 DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 16. Ver tb. SHAHAR, “Ming-Period…”, op. cit.,apêndice.

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28

Henning se opõe a uma “ascendência religiosa” das artes marciais e atribui essa conexão

exclusivamente às sociedades secretas dos séculos XVII e XVIII. Segundo ele, o relativo

segredo em que esteve mergulhada a transmissão marcial contribuiu para cercar o tema

de “uma névoa de mito e mistério”.32 Para o pesquisador, muitos scholars erraram ao

supervalorizar “lendas populares, práticas japonesas e modernas, novelas chinesas de

cavalaria, mitos de criação das sociedades secretas do período Qing tardio ou dos Boxers

de 1900”.33 O pesquisador observa que a filosofia taoísta e a “Teoria dos Opostos” (Yin e

Yang) permearam a mente chinesa como um todo. “Ainda assim, as artes de combate

não eram necessariamente associadas com as técnicas de cultivo taoístas, alquimia ou

Taoísmo religioso em geral”.34 Em sua avaliação, os “Jogos dos Cinco Animais” não

guardam relação com o Tai-Chi-Chuan ou com qualquer outra forma de luta.35 Um dos

principais responsáveis por essa visão equivocada, para Henning, foi Joseph Needham:

Parece que Needham tentou conformar à força o boxe chinês em uma noção pré-concebida do papel do Taoísmo na cultura chinesa; conseqüentemente, o boxe chinês é discutido na narrativa sob [os temas] “Taoísmo” e “Alquimia Fisiológica” no volume dois e na terceira e quinta partes do volume cinco, mas apenas como curiosidade nas notas de rodapé da sexta parte do volume cinco, sobre pensamento e tecnologia militares – como uma atividade taoísta em um meio ambiente militar.36

Uma leitura do clássico taoísta Tao Te Ching pode fornecer argumentos religiosos para a

defesa do “desligamento” entre a prática taoísta e a marcial proposta por Henning. Para o

filósofo Lao Tzu, as armas não encontram lugar na vida de quem busca a transcendência:

"Armas afiadas são instrumentos do homem mau, e não instrumentos do homem superior;

ele os utiliza apenas na compulsão da necessidade."37

32 HENNING, "Academy Encounters...", p. 319. 33 Ibid. 34 Ibid., p. 321. 35 Idem, “Ignorance, Legend and Tai-Chi-Chuan”, disp. em <http//www.nardis.com/~twchan/henning.html> (c. 24.07.2003) 36 HENNING, "Academy Encounters...", p. 319. 37 LAO TZU, "Tao Te Ching", verso 31 (trad. para o inglês por James Legge, disp. em <http://classics.mit.edu/Lao/taote.html>, c. 10.09.2003). Trad. livre p/o português.

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29

2.2.3 – O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares38

Outro elemento poderoso na polêmica sobre a "religiosidade fundante" da marcialidade

chinesa é o Mosteiro de Shaolin (fig. 4 e 5).39 Ao analisar documentos, os pesquisadores

têm aberto novas possibilidades de interpretação para as tradições orais que ligam estilos

de Kung-Fu ao mosteiro de Henan e, também, para a conexão entre a arte marcial e a

religião. O assunto foi tratado por scholars orientais (chineses e japoneses) desde o

século XVI e, no século XX, teve no pesquisador Tong Hao (1897 - 1959) um de seus

principais investigadores. Seu trabalho serviu como base para a obra de Meir Shahar, que

colocou Shaolin no universo acadêmico ocidental. Até então, aparentemente, a

marcialidade de Shaolin não era vista como digna de nota pelos pesquisadores. Essa

desconfiança decorreria da “mitologia” estabelecida ao redor do tema na China, do

fechamento do país sob Mao-Tsé-Tung e da “apropriação pop” dos monges guerreiros no

final do século XX.

Shahar produziu dois artigos a respeito do tema: “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial

Practice”, sobre a relação entre o mosteiro e as artes marciais no final da dinastia Ming, e

“Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin

Monastery”,40 que focaliza os registros sobre a participação de monges de Shaolin em

combate na passagem das dinastias Sui para Tang (séc. VII d. C.). Henning também

38 As fontes fundamentais de informação utilizadas para a investigação do tema “marcialidade em Shaolin” foram SHAHAR, M. (“Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”) e HENNING, S. (“Reflections on a Visit to the Shaolin Monastery", art. publ. em Journal of Asian Martial Arts, Vol. 7, n. 1, 1998, p. 90 a 101). A obra de SHAHAR foi traduzida por APOLLONI, R., com autorização do autor, e publicada em <http://www.pucsp.br/rever/i_shahar.html>. Para evitar a citação reiterada (e exaustiva) dessas obras, optamos por referir em notas apenas informações decorrentes de outras fontes. O leitor deve considerar todos os demais dados como extraídos dos autores supracitados. 39 Imagens extraídas de <http://www.shaolincuritiba.com.br> (c.17.06.2004) 40 SHAHAR, M., “Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin Monastery” (inédito, 21 p.), texto recebido do autor por e-mail em 21.07.2003.

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30

voltou a atenção para Shaolin: no artigo “Reflections on a Visit to the Shaolin

Monastery”,41 ele aborda o passado e, principalmente, o presente do mosteiro. Outros

estudos recentes foram feitos por Barend Ter Haar42 e Dian Murray.43 Ainda que não

tenham como elemento o mosteiro, estes trabalhos prospectaram as tradições dos grupos

sectários e revelaram seu papel na consolidação do “mito de Shaolin”. Em nosso estudo

vamos nos basear, fundamentalmente, nos textos acima relacionados. Buscaremos

observar as relações dos monges com a política e seus efeitos sobre a marcialidade; o

desenvolvimento de sistemas marciais em Shaolin; e a marcialidade e a tradição religiosa.

2.2.3.1 – Fundação, patrocínio e tensões políticas

O mosteiro de Shaolin foi fundado em 495 no sopé do pico Shaoshi, no monte Song

(Henan). O local já era reverenciado pelos imperadores como uma das “cinco montanhas

sagradas da China” antes da chegada do Budismo.44 Localizado próximo da cidade de

Luoyang (capital do império chinês a partir de 493, quando a Dinastia budista Wei do

Norte transferiu sua capital de Datong para lá),45 ocupava um lugar privilegiado em

relação à “geografia sagrada” e ao poder político.

Ainda que algumas vezes tenha sido patrocinado por imperadores devotos (caso de

Wendi - 581 a 604 d.C. -, representante da Dinastia Sui que doou ao mosteiro uma área

de 1.400 acres até hoje conhecida como “Gleba do Vale do Cipreste”), a instituição não

escapou da desconfiança de outros governantes. Essa desconfiança dizia respeito ao fato

de o Budismo ser uma religião “estrangeira” (em oposição ao Taoísmo) e à sua forma de

organização em mosteiros, vistos como potenciais focos de rebelião.46 Um acontecimento

histórico verificado no século VII, porém, permitiu que Shaolin sobrevivesse às

campanhas antibudistas imperiais que nos séculos seguintes destruíram mosteiros,

restringiram direitos de culto e assassinaram religiosos.

41 Publ. in "Journal of Asian Martial Arts", v. 7, n.1, 1998, p. 90 a 101. 42 TER HAAR, B., “Ritual & Mythology of the Chinese Triads”, 1ª ed., Leiden: Brill´s Scholars List, 1997, 577 p. 43 MURRAY, D., “The Origins of the Tiandihui – The Chinese Triads in Legend and History”, 1ª ed., Stanford: Stanford University Press, 1994, 350 p. 44 Sobre as montanhas sagradas da China, ver <http://www.gotheborg.com/glossary/data/mountains.shtml> (c. 29.09.2003). 45 Cf. <http://www.wikipedia.org/wiki/Luoyang> (c. 29.09.03) e <http://concise.britannica.com> (c. 29.09.03).

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31

2.2.3.2 – Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin

Os mais antigos registros da participação de monges de Shaolin em ações militares são

encontrados na “Estela do Mosteiro de Shaolin” (Shaolin si bei, erigida em 728), que traz

sete textos produzidos entre 621 e 728: “A História do Mosteiro de Shaolin”, do ministro

Pei Cui, de 728; a “Carta de Li Shimin”, de 26 de maio de 621; a “Doação do Príncipe”, de

625; a “Carta Oficial”, de 632; o “Presente do Imperador”, de 724 (dois textos); e a “Lista

dos Treze Monges Heróicos”, sem datação

definida.

A estela (fig. 6)47 é considerada o mais

importante documento sobre o tema

produzido nas dinastias Sui-Tang. Ela foi

redescoberta em 1515 pelo scholar chinês

Du Mu, que produziu um relato precioso

sobre as primeiras ações guerreiras dos

monges Shaolin. Ele também observou a

ausência dos feitos militares dos monges

na obra oficial “História [da Dinastia] Tang”

e dedicou sua obra a “retificar essa

omissão”. De acordo com a “História do

Mosteiro de Shaolin”, escrita pelo ministro

de Pessoal de Xuanzong (imperador Tang

que governou entre 712 e 755), Pei Cui, os

monges entraram em ação pela primeira

vez em 610,48 quando derrotaram bandidos que ameaçavam destruir o mosteiro. A

primeira ação de caráter político, porém, se deu em 621, quando eles estiveram

envolvidos com a chegada da Casa de Tang ao poder: com o fim da Dinastia Sui, no

início do séc. VII, nobres e militares lutaram pelo domínio do império. Em 618, Li Yuan

(566 - 635) fundou a Dinastia Tang. O início do governo não foi pacífico: em 619, um

general de Sui, Wang Shichong, fundou outra Dinastia (Zheng) em Luoyang.

46 Cf. <http://www.cohums.ohio-state.edu/deall/jin.3/c231/handouts/h10.htm> (c. 29.09.03). 47 Imagem (em negativo) extraída de SHAHAR, M., “Epigraphy...”, op. cit., p. 23. Estela é uma prancha de pedra com inscrições, fixada verticalmente no solo. Normalmente, funciona como marco funerário. 48 Ou entre 605 e 618. A primeira data é de SHAHAR; a segunda, de HENNING.

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32

O segundo filho de Li Yuan, Li Shimin (o futuro imperador Taizong) foi encarregado de

combater Wang. A guerra durou quase um ano. A ordem de Li Shimin aos seus generais

foi atacar o inimigo em Luoyang e cortar as rotas fluviais de abastecimento da cidade. Na

primavera de 621, por conta disso, as tropas de Wang Shichong passavam fome. Mesmo

cercado, Wang conseguiu firmar uma aliança com outro rebelde, Dou Jiande. Dou, que

havia mobilizado tropas entre Shandong e Hebei, resolveu lançá-las contra Li Shimin em

Luoyang. Numa atitude digna de Sun Tzu, Li Shimin antecipou-se ao ataque. Em maio de

621, em Hulao, a cem quilômetros de Luoyang, Dou Jiande foi derrotado e morto. Com

isso, Wang Shichong se rendeu - ele seria assassinado logo depois, quando seguia para

o exílio. No dia quatro de junho de 621, as tropas de Li Shimin entraram em Luoyang.

De acordo com Pei Cui, os monges participaram dos combates pouco antes da vitória de

Li Shimin em Hulao. Eles derrotaram soldados de Wang Shichong que ocupavam o monte

Huanyuan, em Baigu Zhuang (“Gleba do Vale do Cipreste”). Vizinho da sede do mosteiro,

o monte estava situado na passagem para Luoyang e formava um passo – cenário em

que poucos soldados poderiam vencer muitos inimigos. No local, a tropa de Wang

construíra uma torre que possibilitava o envio de informações para os sitiados em

Luoyang. Pouco depois de derrotar as tropas em Huanyuan, os monges capturaram o

sobrinho de Wang Shichong, Wang Renze. Em agradecimento, Li Shimin enviou aos

monges uma carta e doou ao mosteiro uma área de 560 acres e um moinho.

De acordo com um segundo documento da “Estela de Shaolin” - a “Carta Oficial de 632”,

escrita pelo vice-magistrado do condado de Dengfeng - um dos monges, Tanzong, foi

nomeado “general-em-chefe” do exército de Li Shimin. Outro registro da “Estela de

Shaolin”, a “A Lista dos Treze Monges Heróicos” (único texto não-datado), traz os nomes

dos monges que se destacaram nos combates de 621: Shanhu (deão), Zhicao (abade),

Huiyang (supervisor), Tanzong (general-em-chefe), Puhui, Mingsong, Lingxian, Pusheng,

Zhishou, Daoguang, Zhixing, Man e Feng.

O texto de Pei Cui, observa Shahar, não deixa claro se os monges foram convidados ou

coagidos a lutar. Ele acredita que a iniciativa pode ter nascido do desejo de vingança ou

da observação, pelos monges, das chances dos contendores. O fato é que a vitória

implicou em uma mudança no status do mosteiro junto à casa imperial: Shaolin não sofreu

grandes perseguições durante a Dinastia Tang.

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O favor imperial pode ser observado na “Carta de Pei Cui” e em outros textos da “Estela

de Shaolin”, como a carta de Li Shimin aos monges (datada de 26 de maio de 621), a

“Doação do Príncipe”, de 625 – que devolveu aos clérigos o domínio sobre o Vale do

Cipreste – e os “Presentes do Imperador”, de 724, que reforçaram o patrocínio ao

mosteiro. Sharar observa, porém, os limites dessa aliança: em um trecho da “Carta de Li

Shimin”, o futuro imperador Taizong exorta os monges a retomarem suas atividades

religiosas. O incômodo de Li Shimin diante da possibilidade de lidar com monges

lutadores é perceptível; além disso, avalia Shahar, a inscrição de documentos oficiais em

pedra é reveladora, mostrando que os monges se protegiam contra possíveis

“esquecimentos” do imperador.

2.2.3.3 – Expressões da marcialidade em Shaolin durante a passagem Ming-Qing

A busca pela presença marcial em Shaolin no período entre 717 e 932 anos49 que vai

da fundação de Tang até a fase final da Dinastia Ming (1368 - 1644) pode levar um

estudioso a crer que a exortação de Li Shimin aos monges foi tomada ao pé da letra: é

que não há registro de prática marcial dentro do mosteiro ou de envolvimento dos

monges de Shaolin com atividades guerreiras nesse período. Ainda que não se possa

descartar a possibilidade de que os monges tenham atendido à recomendação,50 é

preciso observar que uma leitura crítica recomenda prudência na avaliação desse

“silêncio marcial”. O período abrange momentos políticos distintos (a Dinastia Tang, o

período das chamadas “Cinco Dinastias e Dez Reinos”, a Dinastia Song, a Dinastia

mongol Yuan e parte da Dinastia Ming),51 que, provavelmente, implicaram em

orientações diversas na condução do diálogo imperial com o clero budista.

A situação mudou na última etapa da Dinastia Ming: de 1515 (ano da publicação do

trabalho de Du Mu) até a primeira metade do século XVIII, quarenta fontes atestaram a

ligação do mosteiro com a marcialidade! Com base nesses registros, é possível

49 SHAHAR indica 717 anos; HENNING, 932 anos. A diferença pode ser explicada pela utilização de datas de referência diversas: enquanto o primeiro toma como referência um indício de 798 e o ano de publicação dos ensaios sobre a “Estela do Mosteiro de Shaolin” (1515), o segundo parece comparar os episódios de 621 à campanha de 1553 dos monges de Shaolin contra a pirataria. 50 Segundo HENNING, não há registros da participação de Shaolin nos episódios marciais da Dinastia Song, quando monges do monte Wutai (Shanxi) e de outros mosteiros lutaram contra os invasores Jin. Shaolin foi arrasado em 1350, na “Revolta dos Turbantes Vermelhos”; os monges foram expulsos e só voltaram em 1359. "Turbantes Vermelhos" em <http://www.britannica.com/ebc/article?eu=401935> (c. 05.11.03). 51 Ver tabela 1.

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afirmar que aí se deu a fixação do “mito de Shaolin” e da figura do “monge boxeador”.

As fontes incluem manuais militares e de arte marcial, relatos de viagem, relatórios de

governo, poesias, estelas e inscrições tumulares na “Floresta de Stupas” de Shaolin. A

"Floresta" - que reúne um dos maiores grupos de stupas de toda a China - é um

cemitério de monges localizado em Shaolin.52 Tais registros são a prova da existência

dos monges guerreiros budistas: eles apontam sua participação em ações militares,

atestam que o mosteiro de Shaolin se transformou em um centro de difusão marcial e

indicam que os monges foram levados a adaptar sua prática religiosa às exigências da

prática marcial.

2.2.3.4 – Considerações sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin no

período Ming tardio

Shahar observa que, em Shaolin, a demanda pelo engajamento militar foi grave o

suficiente para fazer com que os monges incluíssem em seu dia-a-dia funções

"incomuns". Segundo ele, o papel militar de monges no século XVI53 tem como

explicações a deterioração da atividade militar, o esvaziamento institucional da Casa

de Ming, a depressão econômica e um aumento brutal da violência, especialmente em

Henan.54 Nesse contexto, observa, está incluído o próprio desenvolvimento das artes

marciais.

Scholars observaram o papel da violência endêmica para a História das artes marciais nas planícies do Norte da China. A economia predatória transformou as artes marciais em um elemento integral da sociedade rural em boa parte de Henan e nas províncias vizinhas. A prática marcial no nível dos vilarejos serviu como pano de fundo para rebeliões como a de Wang Lun (1774), dos Oito Trigramas (1813) e a dos Boxers (1898 - 1900) (...)55

Boa parte dos registros da participação de monges em batalhas56 se refere às

campanhas antipirataria deflagradas em Zhejiang.57 Nas décadas de 1540 e 1550, as

52 A stupa é uma estrutura arquitetônica típica do Budismo. Ver <http://www.stupa.org> (c. 29.07.03). 53 Não só de Shaolin, mas de Emei (Sichuan), Wutai (Shanxi) e Funiu. As fontes de SHAHAR para as indicações são o Jiangnan jing lüe, de Zheng Ruoceng (1568), e o Mingshi (doc. oficial de 1739), que cita as tropas monásticas como “milícias locais”. 54 A província de Henan é uma das áreas mais povoadas do mundo. A tensão decorrente da superpopulação é visível atualmente, quando a província conta com 110 milhões de habitantes e problemas graves como o de disseminação do vírus HIV entre a população rural. 55 SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 389, trad. livre do inglês. 56 Wobian shilüe, de Cai Jiude (1558), Zhejiang Tongzhi (1561) e Jiangnan jing lüe (1568, de Zheng Ruoceng), Wusong jia yi wo bian zhi (1604, de Zhang Nai), Shaolin Seng Bing (1670, de Gu Yanwu) e Mingshi (1739, por Zhang Tingyu e outros). Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 408 a 413.

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províncias vizinhas do Mar da China foram assaltadas por piratas conhecidos como

wukou. Eles agiam na costa, em rios e canais,58 e chegaram a capturar áreas como

Songjiang (Xangai); além disso, minavam o poder Ming pela corrupção de governantes

locais. Na tentativa de solucionar o problema, o governo resolveu mobilizar os clérigos de

Shaolin e de outros mosteiros budistas.59 O responsável pelo engajamento teria sido Wan

Biao, vice-comissário em chefe na Comissão Militar em Nanjing (capital da província de

Jianxi).

As fontes identificam quatro batalhas que tiveram a participação de tropas monásticas:

em 1553, quando derrotaram piratas em Hangzhou (Zhejiang); em Wengjiaigang (julho de

1553), Majiabang (primavera de 1554) e Taozhai (outono de 1555), na rede de canais do

delta do rio Huangpu. Na última batalha, os monges teriam sido derrotados. Quatro deles

- Chetang, Yifeng, Zhenyuan e Liaoxin - morreram e foram sepultados na “Stupa dos

Quatro Monges Heróicos”, no monte She, perto de Xangai (esse monumento foi

destruído). A maior vitória nessa campanha teria sido obtida entre 21 e 31 de julho de

1553, em Wengjiaigang. Segundo o relato do geógrafo e conselheiro militar Zheng

Ruoceng, 120 monges derrotaram um grupo de piratas, tendo perseguido e exterminado

os sobreviventes. Mais de cem pessoas teriam sido assassinadas, boa parte delas a

golpes de bastão de ferro. O comandante da tropa nessa vitória teria sido um clérigo de

Shaolin chamado Tianyuan, apontado como expert em artes marciais e estratégia militar.

Ainda que a campanha de Zhejiang seja um acontecimento importante, também há

relatos da participação de monges em combates em outras províncias. Em 1552,

cinqüenta monges de Shaolin liderados por Zhufang Cangong teriam auxiliado o governo

de Henan a derrotar o bandido Shi Shangzhao (as informações são do “Epitáfio de

Zhufang Cangong”, na stupa funerária do próprio Zhufang. O monumento, de 1575, está

na “Floresta de Stupas” de Shaolin); em 1510 - num momento anterior, portanto, à

redescoberta da “Estela do Mosteiro de Shaolin” por Du Mu -, teriam combatido um certo

Liu Liu e, em 1520, teriam participado da campanha contra outro bandido de Henan,

57 Província vizinha de Fujian, Jiangxi, Anhui, Jiangsu e Xangai. Ver <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan> e <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/zhejiang.html> (c. 18.11.2003). 58 Uma das “portas de entrada” era o rio Yangtze, que nasce no Tibete e deságua em Xangai. O rio tem 5.500 km de extensão. Mapa em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/country/country009.html> (c. 19.11.2003).

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36

Wang Tang.60 Inscrições na “Floresta de Stupas” também se referem ao engajamento

militar individual: o epitáfio do monge Sanqi Yougong (1548) informa que ele teria

ocupado postos militares na fronteira de Shanxi e Shaanxi, e que teria participado de uma

expedição militar em Yunnan. Os epitáfios dos monges Wanan Shungong (1619) e Benda

(1625) informam que ambos se distinguiram em combate (as inscrições não informam as

batalhas de que teriam participado). Em 1630, monges de Shaolin teriam sido

contratados por um magistrado de Shanzhou (Henan) para treinar uma milícia e tentar

conter a crescente anarquia. A tropa teria obtido muitas vitórias contra grupos rebeldes,

até que acabou derrotada pelo líder rebelde Ma Shouying, conhecido como Lao Huihui

(“Companheiro Muçulmano”).61

Um dado revelador da importância dos monges guerreiros no cenário institucional chinês

do século XVI está nas discussões oficiais sobre as vantagens e riscos de seu

engajamento. Enquanto alguns militares e burocratas da época os louvavam, outros os

acusavam de sedição e banditismo. Entre os que viam vantagens está o supracitado

Zheng Ruoceng:

Nas artes marciais não há, nesta terra, quem não se renda a Shaolin. [O mosteiro de] Funiu [em Henan] pode ser colocado em segundo lugar. (...) Em terceiro lugar vem Wutai [em Shanxi]. (...) Juntos, esses três [centros budistas] compreendem centenas de mosteiros e incontáveis monges. Nossa terra é sitiada internamente por bandidos e externamente por bárbaros. Se o governo lançar uma ordem para o recrutamento [desses monges], irá ganhar todas as batalhas de que participar.62

Em 1625, o grande coordenador para a região de Henan, Cheng Shao, escreveu um

poema (Shaolin Guan Wu) citando a contribuição dos monges para a “defesa nacional”;

em 1670, Gu Yanwu produziu o poema Shaolin si, no qual manifestava o desejo de ver

os monges combatendo os fundadores da Dinastia Qing.

Opinião contrária teve o burocrata Wang Shixing, de Henan. Na obra Yu Zhi (“Notícia de

Henan”, de 1595), ele acusa os monges de falsidade, propensão ao banditismo e à

revolta:

59 O registro mais completo dessa mobilização está em “A Primeira Vitória dos Exércitos Monásticos” (“Seng

bing shou jie je”), de Zheng Ruoceng (1568). 60 Inf. na estela “Dengfeng xian tie”, de Shaolin. 61 As informações sobre a contratação de monges em Shanzhou estão em “Mingshi” (1739). 62 Zheng Ruoceng, in “Seng bing shou jie je”. Cf. SHAHAR, p. 384. Trad. livre do inglês.

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Os monges de Henan nunca obtêm certificados de ordenação (dudie). Hoje eles cortam seus cabelos e se tornam monges; amanhã, deixam [o cabelo] crescer e voltam à laicidade. Eles fazem o que lhes apraz. Bandidos (dao) também freqüentemente raspam suas cabeças, mudam de aparência e se unem à ordem monástica. Assim que os problemas acabam, eles voltam à laicidade. Não importa que sejam sedentários ou itinerantes, você não encontra um monge em cem que não beba vinho ou coma carne.63

Como se pode observar, de acordo com Wang, os clérigos de Shaolin eram meros

“escroques” que sequer se davam ao trabalho de ocultar suas intenções (um bom

exemplo disso está na inobservância dos preceitos dietéticos budistas). Segundo ele, a

condição monacal servia muito mais como "fachada" em tempos de perseguição do que

como caminho religioso. Outra prova apresentada por Wang seria o desconhecimento,

por esses "monges", dos gritos e golpes de bastão utilizados como facilitadores dos

insights místicos (a “Iluminação”) no Budismo Chan.

2.2.3.5 – O mosteiro de Shaolin como centro difusor de sistemas marciais

Um dado comum à tradição das academias de Kung-Fu diz respeito ao cotidiano de

Shaolin: para muitos praticantes, o mosteiro foi uma “grande academia de artes marciais”

- a literatura Wusia64 e o cinema confirmam essa imagem. Henning “joga um balde de

água fria” nos entusiastas da tese: ele observa que, em Shaolin – como em qualquer

mosteiro budista – a prática religiosa e as demandas de sobrevivência institucional

(construção e manutenção de prédios e pátios, assim como cultivo de alimentos)

ocupavam lugares centrais. Especificamente sobre as artes marciais, ele afirma que

Eram mais como uma diversão para um percentual relativamente pequeno de monges, que haviam trazido esse conhecimento para dentro do mosteiro. Além destes monges, uns poucos clérigos – que encontravam tempo, dentre as muitas tarefas do dia – se tornavam seus alunos e acabavam por auxiliar na defesa do complexo religioso. A realidade era muito distante da apresentada pelas novelas populares, que descreviam a existência, em Shaolin, de um programa altamente desenvolvido de treinamento marcial, coroado por uma “prova final” que consistia em superar os golpes de bonecos inteligentemente construídos.65

A abordagem de Henning carrega boa dose de irritação contra a moderna representação

de Shaolin (seu artigo mostra como, no século XX, o mosteiro se transformou em uma

espécie de "Disneylândia" para aficcionados em artes marciais) e, por conta disso, deve

63 Wang Shixing, in “Notícia de Henan”, cit. por SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 386 e 387. Trad. livre do inglês. 64 Para o significado de “Wusia”, ver nota 5. 65 HENNING, “Reflections on a Visit...”, p. 95. Trad. livre do inglês.

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ser vista com o devido cuidado. Em sua análise das fontes primárias, Meir Shahar mostra

que, em determinado período, a prática marcial em Shaolin foi algo mais do que uma

“diversão” ou atividade marginal.

O próprio Stanley Henning parece admitir isso, ao tratar da evolução marcial em Shaolin.

Ele observa que, no século XVI, os monges praticavam, de fato, arte marcial. Mesmo

assim, em sua avaliação, grande parte da fama do mosteiro decorre do apelo patriótico

feito pelo historiador Huang Zongxi (1610 – 1695), autor do “Epitáfio para Wang

Zhengnan” (1669). O “Epitáfio” é uma obra de resistência à dinastia Qing que, segundo o

pesquisador, moldou o imaginário marcial chinês. Henning conclui seu raciocínio citando

autores de obras militares. Ele defende a tese de que os monges praticavam sistemas

marciais comuns a outros grupos chineses e que, por conta disso, nada tinham de

extraordinário:

Escritos Ming sobre o assunto, produzidos por Tang Shunzi (1507 – 1560), Qi Jiguang (1528 – 1587), He Liangchen (cerca de 1591) e Zheng Ruozeng (1505 – 1580) não mencionam o pugilismo de Shaolin em suas listas de estilos de Kung-Fu conhecidos nas respectivas épocas. Cheng Zongyou (1561 - ?), que afirma ter vivido 10 anos no mosteiro estudando técnicas de luta com bastão, informa que, durante sua estada, os monges enfatizavam as técnicas de “mãos livres” para tentar chegar ao nível alcançado pela do afamado “bastão de Shaolin”; ainda assim, Cheng não oferece nenhuma descrição do conteúdo de tais técnicas. O manual de luta de Zhang Kongzhao, “Luta Clássica: A Essência do Pugilismo” (cerca de 1784), que pretendeu registrar as técnicas ensinadas por um monge de Shaolin, Xuanji, é, primeiramente, um discurso sobre os princípios básicos que poderiam ser facilmente aplicados às técnicas de luta em geral.66

Shahar faz outra leitura: para ele, técnicas marciais originárias do mosteiro apareceram

regularmente em enciclopédias militares do período Ming Tardio, mesmo nas obras de

Tang Shunzi e Qi Jiguang. A razão para esse “descompasso de leituras” pode estar nos

limites adotados para “arte marcial”: aparentemente Henning se limita ao pugilismo,

enquanto Shahar inclui as técnicas de bastão. Em nosso estudo adotamos a segunda

postura, uma vez que tal generalização reflete um aspecto do Kung-Fu atual, quando os

estilos possuem tanto rotinas de mãos livres quanto com armas.

Boa parte das obras do século XVI, segundo Shahar, louva as técnicas de Shaolin; pelo

menos uma - o “Tratado de Preparações Militares”, do scholar Mao Yuanyi (1549 – cerca

de 1641) - afirma que elas teriam servido como “fonte de todos os demais estilos de

bastão”. No Zhenji ("Registro de Técnicas Militares", de 1565), o comandante militar He

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Liangchen afirma que os monges de Shaolin teriam ensinado sua técnica de bastão para

outros monges, do “monte Niu” (o autor se refere, provavelmente, ao mosteiro budista do

monte Funiu, em Henan).

O levantamento de Shahar não inclui apenas obras elogiosas às artes do mosteiro, mas

também as de “opositores” das técnicas de Shaolin e, mesmo, as que colocavam em

dúvida a fama dos monges. O principal trabalho dessa última tendência é o Jianjing

("Clássico da Espada"), de Yu Dayou (1503 – 1579). Especialista em um método de

bastão (sua obra, apesar do título, reúne técnicas de luta com esta arma), Yu teria

visitado o mosteiro em 1560, onde encontrou monges praticando técnicas que considerou

medíocres. Teria, então, convidado dois monges a aprenderem com ele sua técnica.

Shahar acredita que Yu Dayou superestimou a própria contribuição e afirma que o

mosteiro já possuía técnicas consolidadas antes da visita do general. Ele cita o Shou bi lu

("Registro de Mãos e Armas”), obra de 1660 do mestre lanceiro Wu Shu. Wu se refere a

técnicas ensinadas por Yu Dayou e a técnicas cujos nomes aparecem em obras

anteriores ao Jianjing. Para SHAHAR, a referência mostra que os monges receberam

instrução de fora e mantiveram as próprias técnicas no período Ming tardio.

Segundo Shahar, a fonte essencial para a confirmação dos sistemas marciais "nativos"

do mosteiro é Shaolin gunfa chan zong (“Exposição sobre o método original de bastão de

Shaolin”), de Cheng Zongyou (1610). A obra é tida como o primeiro “manual de técnicas”

de Shaolin. Seu autor foi um scholar de Xiuning (Anhui) que dedicou a vida a estudar as

artes marciais. O próprio Cheng resume sua relação com a arte marcial:

Desde minha juventude eu estive determinado a aprender as artes marciais. Sempre que ouvia falar de um professor famoso, não hesitava em viajar para longe para ganhar sua instrução. Portanto, arrecadei o valor necessário às despesas de viagem e segui para o Mosteiro de Shaolin, onde despendi, no total, mais de dez anos.67

De acordo com Cheng, o complexo do monte Song seria o lugar onde, ao lado das

técnicas do Budismo Chan, cavalheiros podiam aprender as técnicas de bastão dos

monges. A idéia de escrever um livro, justifica, teria nascido de uma cobrança de seus

pares:

66 HENNING, p. 97 e 98, trad. livre do inglês. 67 Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, cit. por SHAHAR, p. 367. Trad. Livre do inglês.

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(...) ilustres cavalheiros de toda a região começaram a elogiar os supostos méritos do meu trabalho. Então me censuraram por mantê-lo em segredo, privando-os [de tais conhecimentos]. Então finalmente eu encontrei algum tempo livre, reuni as doutrinas a mim transmitidas por professores e amigos, e combinei esse conhecimento com o que eu havia aprendido em minha própria experiência.68

A obra fornece indícios de que os monges desenvolveram sistemas marciais. A começar

pelo título: o termo seng (“original”) marca um desejo de diferenciação, por parte do autor,

em relação a outras obras que se referiam a técnicas derivadas de Shaolin.

Cheng também se refere ao método como

“técnica budista”. Outro elemento está na

transmissão, feita por clérigos (segundo o

scholar, exclusivamente pelos monges,

oralmente e, até sua chegada a Shaolin,

essencialmente “de um mestre budista para

outro”). Dois de seus mestres – Hongzhuan

e Guang’an (os outros seriam Hongji,

Zongxian e Zongdai) - guardavam entre si

uma relação marcial hierárquica: Guang’an,

apontado por Cheng como seu grande

mestre, teria herdado os conhecimentos de

Hongzhuan, que, na época da chegada do

autor ao mosteiro, já era bastante idoso.

Essa relação que indica a existência de uma

genealogia marcial.

Um quinto elemento está na identificação da origem de sistemas marciais: Cheng

Zongyou identificou cinco métodos de bastão criados por monges. Os métodos da

“Exposição” tinham os nomes de Xiao Yecha, Da Yecha, Yinshou, Pai gun e Chuansuo

(respectivamente, “Pequeno Espírito Yaksa”, “Grande Espírito Yaksa”, “Mãos Ocultas”,

“Bastão que Empurra” e “Bastão de Aplicação Compassada”). Eles eram formados por 53

posturas individuais (shi) colocadas em seqüências (lushi). As seqüências – a exemplo

68 Ibid., trad. livre do inglês.

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41

do que ocorre hoje nas academias de Kung-Fu – formavam os métodos ou sistemas (fig.

7).69

Ainda que Shahar destaque o bastão como "arma padrão" dos monges, há registro de

uso de outras armas e métodos de combate. Henning relacionou os monges a práticas

como a do “boxe do macaco”. Wu Shu afirmou que eles usavam lanças (Qian). Já Zheng

Ruoceng observou que, além do bastão, eles também combatiam com tridentes

(Gangcha) e lanças com ganchos (Gouqian).

O próprio Cheng Zongyou observou que os clérigos treinavam técnicas de pugilismo. Em

um conjunto relativamente amplo de habilidades marciais, porém, o bastão foi a arma de

maior destaque, como indica sua presença nas fontes dos sécs. XVI, XVII e XVIII. Ele

possuía uma "ligação natural" com o Budismo através do Vajra (em chinês, Jingangchu)

e da figura do monge caminhante. O Vajra - representado por um bastão, espada ou

cetro - indicava poder espiritual;70 no caso do monge itinerante, o bastão servia como

ferramenta de apoio, tendo se tornado (junto com a tigela) um símbolo do ascetismo

errante Chan. Essas ligações parecem ter sido estratégicas em um movimento verificado

dentro de Shaolin no período Ming: a partir do bastão, os monges estabeleceram uma

ponte para a inclusão dos conteúdos marciais na prática religiosa.

2.2.3.6 – Qielan Shen – o bastão de guerra nas mãos da divindade

A prova definitiva da marcialidade em Shaolin não está nos relatos de guerra, mas,

paradoxalmente, em suas tradições religiosas. De acordo com Shahar, o elemento

marcial se tornou tão relevante para o cotidiano dos monges que os levou a incluir uma

vigorosa “nota marcial” em seus mitos e rituais. Até onde as fontes permitem identificar,

essa inclusão teria ocorrido antes do século XVI. Ela se caracterizou pelo

estabelecimento do culto ao qielan shen (“espírito guardião”) Jinnaluo (em sânscrito,

Kimnara) e pela criação de uma lenda referente à origem divina das técnicas de bastão.

Segundo Shahar, as transformações religiosas em Shaolin tiveram por fim conciliar os

69 Imagem 7 em SHAHAR, p. 397 70 Ver DUKES, T., “The Bodhisattva Warriors – The Origin, Inner Philosophy, History and Symbolism of the Buddhist Martial Art within India and China” (1ª ed., York Beach: Samuel Weisner Inc., 1994, 527 p.), p. 65 e 66.

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42

preceitos budistas referentes à não-violência e à prática marcial dos monges e, com isso,

reduzir um foco de tensão religiosa.

Pelo menos cinco fontes - o “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou, o Song

Shu (“Livro sobre o Monte Song”, com prefácio de 1612), uma listagem do condado de

Dengfeng (1652), uma lista oficial da área administrativa de Henan (1661) e uma

inscrição na estela Naluoyan shen hufa shiji (“O Espírito Naluoyan protege a Lei e mostra

sua Divindade”, de 1517), de Shaolin - se referem à lenda da transmissão divina das

técnicas de bastão. De acordo com a lenda, no século XIV uma divindade (identificada

em Naluoyan shen hufa shiji como Naluoyan/Narayana e, nas demais fontes, como

Jinnaluo/Kimnara) teria impedido a destruição do mosteiro por bandidos usando um

bastão ou um atiçador de fogueira. Esse ser sobrenatural ingressara no monastério como

um humilde monge e revelou sua real identidade apenas quando do ataque dos fora-da-

lei: ele então se transformou em um gigante que, zurzindo um bastão, os afugentou. Em

agradecimento, os monges o teriam eleito como sua divindade tutelar (qielan shen) e

começado, a partir de então, a praticar técnicas de bastão.

Como observa Shahar, a lenda não é desprovida de uma base histórica: o mosteiro de

Shaolin foi atacado no ano de 1351, durante a chamada “Rebelião dos Turbantes

Vermelhos”.71 Os monges teriam sido obrigados, inclusive, a abandoná-lo, voltando

71 Ver nota 50.

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43

apenas nove anos depois, quando os rebeldes já haviam sido derrotados por tropas da

Dinastia Yuan.

A aproximação entre os monges e Naluoyan (fig. 8 e 9),72 segundo Shahar, pode ter

como base o aspecto marcial da divindade. Originária dos panteões hindu/budista e

reverenciada em Shaolin pelo menos desde o século XII, Naluoyan tem como principais

características o semblante aterrador e o fato de portar o Vajra.

A mudança de protagonista na lenda, para Jinnaluo, não é bem compreendida pelos

pesquisadores. Shahar observa que os Jinnaluo não possuíam características ligadas a

um poder divino destrutivo - originalmente, os Kimnara não portavam bastões. Eram

identificados no Budismo indiano como semideuses ou músicos celestiais; na China,

foram identificados com os oito tipos de seres que integravam o séquito de Buda. Para o

scholar, a "troca de protagonista" na lenda foi provocada, provavelmente, pela

semelhança entre os nomes das divindades (Naluoyan - Jinnaluo) e por um engano dos

monges. Graças à troca, em Shaolin Jinnaluo não só ganhou um bastão e uma índole

vingadora como, também, teve seu status modificado no panteão budista. Na versão da

lenda registrada por Cheng Zongyou,73 por exemplo, ele é alçado à condição de

Bodhisattva74 e ligado à deusa Guanyin. A deusa, também conhecida como Kuan Yin P’u-

sa ("Bodhisattva que ouve os lamentos") é uma das divindades maiores do panteão

budista; associada à compaixão, pertence ao grupo dos "Cinco Bodhisattvas" e é

reverenciada na China desde o séc. III.75

A importância do culto a Jinnaluo em Shaolin pode ser observada, fundamentalmente,

pelo fato de a divindade não gozar do mesmo prestígio em outros mosteiros budistas. De

modo geral, segundo Shahar, a divindade tutelar genérica dos mosteiros budistas é Kuan

Kung (Guangong, Kuan Yü ou Kuan Ti), personagem histórico da chamada "Era dos Três

Reinos" (221 a 280 d.C.) alçado à condição de "super-herói" pela literatura e à de

semideus pela religiosidade popular: ele goza de prestígio nos mosteiros, junto a famílias,

a comerciantes e a praticantes de artes marciais (fig. 10). O personagem histórico teria

72 Imagens 8 e 9 em SHAHAR, p. 397 e p. 402. 73 Na “Exposição sobre o Método Original de Bastão de Shaolin”. 74 "Os conceitos de bodhisattva nas seitas budistas do Theravada e do Mahayana são distintos; ainda assim, o papel último do bodhisattva, em ambas, é guiar a humanidade para a iluminação." Inf. de KING, M., in <http://web.presby.edu/~gramsey/bodhisattva.html> (c. 04.12.2003). Trad. livre do inglês. 75 Cf. STEVENS, "Chinese Gods – The Unseen World of Spirits and Demons", 1ª ed., Londres: Collins & Brown, 1997, 192 p., p. 89 e 90.

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44

sido decapitado; sua cabeça foi enterrada em Luoyang, num local onde, atualmente, há

um templo em sua homenagem. Em Shaolin há uma réplica da "Serpente Verde",

alabarda associada ao personagem.76

Segundo uma tradição surgida na Dinastia Song, Kuan

Kung se tornou protetor dos mosteiros budistas depois de

ter a sua alma salva pelo monge histórico Zhiyi (que viveu

entre 538 e 597). O fato é que, em Shaolin, foi apeado de

tal posição, sendo substituído por Jinnaluo. O culto ao

novo guardião tutelar implicou na construção de uma

estátua de vime (destruída em 1928) e de um espaço

específico de culto; o santuário foi reconstruído em 1984 e,

de acordo com Shahar, é palco de renovada devoção.

Além de Jinnaluo, outros seres sobrenaturais também parecem ter sido colocados a

serviço da causa marcial em Shaolin. São eles os Luohan (ou Lohan, em sânscrito

Arhat), na tradição budista indiana "veneráveis" ou "iluminados". O termo é aplicado aos

seres que se salvaram para a eternidade. Normalmente, eles são representados como

monges dotados de poderes extraordinários.77 Em Shaolin, aparecem em uma pintura

mural no Qianfo dian ("Salão dos Mil Budas"). O Wubai Luohan ("Painel dos 500 Arhats")

foi produzido por volta de 1630 – no período áureo da marcialidade no mosteiro - e

mostra alguns de seus personagens portando bastões em atitudes explicitamente

marciais.

No caso dos Luohan, observa Shahar, o bastão não representou um "acréscimo

iconográfico", posto que ele já era associado, primitivamente, ao personagem. Tal

associação tem por base o fato de os Luohan serem representados como monges: um

dos símbolos básicos do clérigo budista é o bordão de caminhante ou, então, o xizhang

(em sânscrito, kakkara), bastão dotado de anéis. A diferença, pois, não é iconográfica,

mas de atitude: alguns dos Luohan do “Salão dos Mil Budas” não estão usando o bastão

76 Ibid, p. 147 (Fig. 10 extraída da mesma p.). O modelo de alabarda de Kuan Kung é conhecido, no meio marcial, como Kuan Tao, expressão que pode ser traduzida como “Espada de Kuan” (Dao = espada pesada ou facão). 77 Cf. STEVENS, "Chinese Gods...", p. 95.

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45

como apoio caminhar e nem têm rostos amigáveis. A bem da verdade, se parecem com

“santos guerreiros” tentados a rachar os crânios de “inimigos da fé”.

2.3 - Dinastia Qing e séc. XX - outros estilos e a prevalência da "matriz Shaolin"

Shaolin não foi a única “linha mestra” da marcialidade chinesa entre os séculos VII e XIX.

Nesse período surgiram outras expressões marciais. Como explicar, então, a menor

participação de tais expressões na memória marcial recente, dominada por Shaolin? A

resposta está na identificação da matriz temporal dos atuais estilos: eles não nasceram

há “milhares de anos”, como quer a tradição oral marcial, mas entre os séculos XVI e

XX.78 Os fundamentos técnicos e as conexões religiosas já existiam há muito, mas só

então é que os estilos se configuraram para formar o atual “Kung-Fu”. A ausência de

referências a estilos “modernos” antes do século XVI pode estar ligada ao domínio

institucional até então exercido pelos militares profissionais sobre as artes de guerra ou,

então, ao fato de que técnicas foram desenvolvidas por milícias interioranas,

normalmente formadas por camponeses iletrados e, portanto, incapazes de registrar as

informações por escrito.

A estagnação tecnológica e militar verificada a partir do séc. XV (provocada por fatores

como a ausência de inimigos, a desmobilização de tropas e a aversão das autoridades

por novas tecnologias),79 o crescimento da miséria nas áreas mais populosas da China e

o espírito de rebelião motivado pela ascensão da Dinastia "estrangeira" Qing (ou Tsing,

originária da Manchúria, região situada no nordeste da China) parecem ter aberto a porta

para um desenvolvimento mais intenso da marcialidade junto a outros grupos sociais.

Shahar observa que estilos “não-Shaolin” do atual cenário de Kung-Fu, como Tai-Chi-

Chuan, Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan (respectivamente, “Boxe do Grau Supremo”,

“Boxe dos Punhos e do Pensamento” e “Boxe dos Oito Trigramas”),80 nasceram na

mesma época em que a técnica monástica ganhava relevo. O Tai-Chi teria surgido no

78 O mesmo vale para os estilos desenvolvidos na matriz Shaolin. 79 Ver PEERS, C. & SQUE, D., “Medieval Chinese Armies 1260 – 1520” (1ª ed., Londres: Osprey Publishing, 1992, 48 p.), p. 23 a 34, e DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 14 e 15. 80 Trad. dos termos cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 20.

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46

século XVII em Chenjiagou, Henan; o Hsing I e o Pa Kua teriam surgido em Shanxi no

século XVIII.81

O aparecimento de artistas marciais errantes,

fundamentais para a fixação da marcialidade na

cultura popular chinesa, também data desse

período. Segundo Shahar, esses personagens

estavam entre o grupo social conhecido como

jiangshi (“rios e lagos”), formado por milhões de

pessoas que, sem ter ocupação fixa, circulava

pelo país. No caso dos artistas marciais, a

mobilidade estaria ligada, também, ao

aprendizado e a testes de habilidade. Muitos artistas se abrigavam em templos budistas,

onde se apresentavam e ministravam aulas; esse fato teria reforçado os laços entre a

marcialidade e Budismo na China.

Estabelecida a gênese da moderna marcialidade, pode-se refazer a pergunta: o que

levou à prevalência da chamada “tradição de Shaolin” no cenário marcial chinês? Alguns

autores relacionam cerca de 400 estilos à tradição de Shaolin!82 Ela atingiu todo o país e

foi, mesmo, matriz de um poderoso mito marcial sulista referente a um suposto mosteiro

“Shaolin do Sul” (Nan Shaolin si) que teria sido construído em algum lugar de Fujian83 e

dado origem a vários estilos de luta.84

Nossa conclusão é de que a tradição de Shaolin foi fixada em mitos de origem de grupos

e não, aparentemente, na transmissão em grande escala de técnicas marciais. Esses

mitos estavam relacionados ao movimento sectário chinês, nascido há séculos e

reforçado, durante a Dinastia Qing, por grupos que mesclavam auxílio econômico mútuo,

arte marcial, religiosidade e intenções sediciosas. Essa tradição pode ter origem, por

exemplo, em obras nacionalistas relacionadas aos monges, como o “Epitáfio para Wang

Zhengnan”, de Huang Zongxi.

81 SMITH & DRAEGER (“Asian Fighting…”, p. 18) se referem a Shantung como berço de estilos marciais. 82 DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 13. 83 Inf. sobre Fujian em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan> e <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/fujian.html> (c. 15.12.2003). 84 Ver DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 45 e 46.

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47

Draeger & Smith notam a presença de um mito de origem ligado a Shaolin na chamada

“Tríade” ou Tiandihui, a "Sociedade do Céu e da Terra":85 criada em 1761 ou 1762 no

Guanyinting (“Pavilhão de Guanyin”)86 de Gaoxi, Fujian (província apontada como berço

do “Shaolin do Sul”), foi a mais importante das "sociedades de ajuda mútua" chinesas

(fig. 11). No período anterior ao da “Guerra do Ópio” (1839 – 1842), seus integrantes

teriam atuado em pelo menos 74 localidades. Características: fraternidade, segredo e

participação em crimes e rebeliões.87 De acordo com o mito da Tríade (do qual existem

várias versões, dentre elas sete produzidas nos séculos XIX e XX e compiladas por

Murray),88 monges do mosteiro de Shaolin - localizado em Henan ou Fujian - teriam sido

traídos e, depois, massacrados por um imperador Qing, provavelmente Kangxi (1662 -

1723);89 jurando vingança e apoiados pelo Céu – que se manifestou materializando um

miraculoso queimador de incenso - os sobreviventes teriam se unido para criar a primeira

Sociedade do Céu e da Terra.

A lenda relativa à destruição do mosteiro por ordem da Dinastia Manchu também é

corrente na tradição do Kung-Fu, como se pode observar, por exemplo, em um manual

publicado em 1998 pela Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, de São Paulo, que cita o

incêndio da unidade de Henan em 1736 e o de Fujian em 1768.90 Segundo os

pesquisadores, é difícil provar a veracidade desses fatos: Shahar, por exemplo, diz

desconhecer um incêndio no século XVII e, tampouco, a existência de um segundo

mosteiro de Shaolin em Fujian;91 Ter Haar questiona o local de instalação do mosteiro de

Fujian, observando a ocorrência, em nossos dias, de uma disputa entre os governos de

Putian e Quanzhou pelo status de “cidade-sede do mosteiro de Shaolin em Fujian”.

Apesar de construída a partir de pesquisas arqueológicas, essa disputa tem um objetivo

essencialmente econômico: um segundo mosteiro de Shaolin poderia representar um

significativo aporte de recursos do "turismo marcial".92 Henning, por sua vez, classifica de

“espúria” toda informação sobre o mosteiro em Fujian: ele afirma que as confusões a

85 Trad. do termo por MURRAY, “The Origins...”, op. cit.; ver, tb., TER HAAR, “Ritual & Mythology...”. 86 Imagem extraída de MURRAY, “The Origins...”, p. 2. 87 Cf. MURRAY, “The Origins...”, p. 5. 88 Ibid., Apêndice B, p. 197-228. 89 Cf. DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 45. Kangxi foi o principal imperador Qing, conhecido por sua inteligência e por seu interesse em demover os chineses de seu preconceito contra os manchus. 90 “Kung-Fu – Versão curta de uma história muito longa” (publ. da academia: São Paulo, 1998, 26 p.), p. 13. 91 Cf. inf. repassada através de e-mail em 10.10.2003. 92 TER HAAR, “Ritual & Mythology...”, p. 44.

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respeito surgiram com a publicação da obra “Segredos do Boxe Shaolin” (1915), escrita

por um patriota chinês sob o pseudônimo de “Mestre do Gabinete do Amor Próprio”.

Pelo menos no que se refere ao mosteiro de Shaolin em Henan, as fontes colocam em

dúvida a ocorrência de uma destruição completa nos séculos XVII-XVIII. Henning, por

exemplo, se refere a dois relatos: o primeiro, “A Miscelânea de Zhonzhou”, de 1659,

afirma que apenas dois monges mendicantes viviam no mosteiro naquele momento; o

segundo, de uma visita ao mosteiro pelo oficial manchu Lin Qing em 1828, traz um

quadro diferente, mostrando que no início do século XIX vários monges viviam lá e

praticavam artes marciais. Segundo Lin Qing, em uma demonstração de habilidades

marciais os monges se mostraram “ágeis como um pássaro e poderosos como um urso”.

Shahar se refere a uma data mais recente de ocupação e de destruição de Shaolin:

segundo ele, em 1928 - na esteira da chamada “Era dos Senhores da Guerra”, período

entre 1917 a 1927 caracterizado por violentos combates entre milícias locais - os clérigos

fizeram uma opção política desastrada, que acabou por implicar na redução do mosteiro

a ruínas. Eles apoiaram Fan Zongxiu (1888 – 1930), que foi derrotado por Shi Yousan

(1891 –1940). Em represália, Yousan incendiou o mosteiro em 15 de março de 1928. Um

relato de 1936, feito por um visitante ocidental, confirma o esvaziamento do mosteiro.93

Shaolin só viria a ser reconstruído no início dos anos 80 do século XX, quando o governo

de Beijing se apercebeu do potencial turístico do lugar. O primeiro passo foi a instalação

de um “Comitê de Gerenciamento do Templo Shaolin” por Beijing, que em 1985 nomeou

um novo abade, Yongxin, para o mosteiro.94 Em 1995, o departamento postal chinês

emitiu uma série de quatro selos comemorativa dos 1.500 anos de fundação do templo.

Atualmente, como observa Henning, Shaolin se tornou uma espécie de “parque temático”

para praticantes de Kung-Fu, configurado para alimentar a fantasia dos turistas: em 1999,

por exemplo, visitantes chineses e ocidentais gastaram o equivalente a US$ 66 milhões

em visitas ao mosteiro! Em 2000, o mosteiro empregava nada menos que dois mil guias

turísticos.95

93 O relato está presente em “The sacred mountains of China: Song Shan, the deserted”, de HERS, J., The China Journal, 24 (2), 76-82. 94 <http://stonelionkungfu.0catch.com/external/beishaolin3.html> (c. 16.12.2003). 95 Inf. extraídas de “Ancient Buddhist Temple Untouched by Modern Tourism”, publ. pelo “Diário do Povo” (Beijing) em 28.12.2000 e disp. em <www.china.org.cn/english/DO-e/5836.htm> (c. 17.12.2003).

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49

As artes marciais praticadas atualmente na encosta do monte Song fogem às de

qualquer “velha tradição”, seguindo as orientações da “nova arte marcial chinesa” ditada

por Beijing. Atualmente, o mosteiro dispõe de 180 “monges guerreiros” que fazem

demonstrações do moderno Wushu na China, Europa e América do Norte.96 O Budismo,

controlado pelo Estado, parece não encontrar guarida para qualquer relação séria com

“espíritos guardiões guerreiros”, apesar da observação de Shahar sobre o renascimento

do culto popular a Jinnaluo. Os monges administradores, por sua vez, travam novas

batalhas, como, por exemplo, a referente à exploração comercial da marca “Shaolin” por

estrangeiros97 ou à inscrição do complexo religioso na lista de patrimônios da

humanidade da ONU.98

2.4 - Arte marcial chinesa e modernidade

Assim como Shaolin, também o conjunto da arte marcial chinesa foi batido pelos “ventos

da contemporaneidade”. Essa mudança se deu em duas ondas, na instalação da

República (1911) e na chegada dos comunistas ao poder na China continental (1949). A

primeira etapa se caracterizou por uma tentativa de institucionalização e resgate dos

estilos; teve como âncoras entidades como o “Instituto Central de Boxe Nacional e

Cultura Física de Nanking” (de Sichuan), a “A Associação de Boxe Chinês” (de

Chungking), a “Associação Provincial de Boxe de Kiangsu” e a “Associação Central de

Kuo-Shu” (Guandong). Nos anos 20 foram organizadas várias competições nacionais e,

em 1929, o governo republicano emitiu um documento determinando a criação, em todo o

território chinês, de institutos para o ensino das artes marciais. Esse desenvolvimento foi

barrado pela invasão japonesa à China, que colocou tais práticas na clandestinidade.99

96 Ver “Pilgrimage to Mecca of Kung-Fu”, em “China Daily” (10.08.2003), disp. em <http://www.china.org.cn/english/TR-e/39125.htm> (c. 17.12.2003) 97 O artigo "Monks Battle Use of ‘Shaolin’ as Trademark” (publ. em 25.09.2002 pela agência Xinhua e disp. em <http://www.china.org.cn/english/Life/43987.htm>, c. 17.12.2003), conta a batalha legal travada pelo governo chinês para manter o controle sobre as marcas “Shaolin” e “Shaolin Temple”. Em todo o mundo existiriam 117 produtos registrados com esses nomes. 98 O pedido de inclusão foi formalizado em 2002. A justificativa é de que o complexo abriga o maior conjunto de stupas funerárias do mundo (600), na “Floresta de Stupas” de Shaolin. Cf. “Shaolin Temple Pagodas to Apply for World Heritage Listing”, publ. pelo “Diário do Povo” (Beijing) em 22.07.2002 e disp. em <http://www.china.org.cn/english/TR-e/37325.htm> (c. 17.12.2003). 99 A institucionalização do Kung-Fu no início do século XX é explicada por RAVIGNAT, M., em “External System – Modern Development”, disp. em <http://stonelionkungfu.0catch.com/external/beishaolin3.html> (c. 17.12.2003)

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50

A segunda etapa de transformação das artes marciais chinesas se deu a partir do final da

Segunda Guerra Mundial e, principalmente, com a chegada de Mao Tsé-Tung ao poder,

em 1949. Como observam Draeger & Smith, o “Grande Timoneiro” tinha plena

consciência do valor “revolucionário” dessas artes,100 e tratou de moldá-las de acordo

com sua visão de mundo: no primeiro artigo que publicou, “Um Estudo sobre Cultura

Física” (1917), Mao criticou duramente a atitude da nação em relação às atividades

físicas e ao corpo. Segundo Mao, “o principal ponto da educação física é o heroísmo

militar”. Em 1951, a Federação Chinesa para Todos os Esportes começou a discutir o

futuro das artes marciais e, em 1954, deu início à “estandardização” das rotinas, que

implicou numa aproximação em relação a esportes ocidentais como a ginástica rítmica

desportiva e, também, na supressão de muitos dos velhos elementos “subversivos” –

entre eles os de caráter religioso.101

As primeiras competições dentro do novo formato – dividido nas categorias Chuan Chu

(“formas de mãos livres”), Wu Shu (“formas com armas”) e Chang Chuan (“formas do

punho longo”) – foram realizadas em 1957 e 1958. As lutas (San Shou) passaram a ser

realizadas com equipamentos de proteção semelhantes aos usados no boxe e em

“esportes marciais” como o Tae-Kwon-Do; também ganharam ainda uma

“ocidentalíssima” divisão em categorias, de acordo com o peso dos competidores.102 Em

1990 o Wu-Shu foi incluído, pela primeira vez, entre os esportes oficiais dos Jogos

Asiáticos e, atualmente, os campeonatos mundiais da modalidade reúnem atletas de 56

países.103 No início do século XXI, um dos principais pleitos do Comitê Olímpico Chinês é

transformar o Wu-Shu em esporte olímpico.

As transformações na arte marcial chinesa durante o regime comunista não nasceram

apenas nos gabinetes da burocracia. As guerras e, nos anos 60, a Revolução Cultural

Chinesa, aceleraram o processo e implicaram em uma “disseminação forçada” do Kung-

Fu tradicional pelo mundo. Muitos mestres seguiram para Hong Kong, Taiwan, América e

100 Cf. SMITH & DRAEGER, “Asian Fighting...”, p. 20 e 21. 101 Cf. RAVIGNAT, M., in “External System...”, op. cit. 102 FRÜHSTÜCK, S, & MANZENREITER, W., in “Neverland lost - Judo cultures in Austria, Japan, and elsewhere struggling for cultural hegemony” (art. publ. em In Befu, Harumi [Editor]. Globalizing Japan: Ethnography of the Japanese Presence in America, Asia, & Europe. Florence, KY, USA: Routledge, 2001, p. 69 to 93.), observam a transplantação da divisão em categorias de peso no Judô. 103 Cf. inf. disp. em <http://beijingwushuteam.com> (c. 17.12.2003).

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Europa,104 locais onde, atualmente, se concentra o maior volume de praticantes de estilos

tradicionais. A adoção e a interpretação dos conteúdos religiosos presentes nesses

estilos por praticantes ocidentais – em especial, pelos brasileiros - é um tema que ainda

não recebeu atenção por parte dos pesquisadores.

2.4.1 – A visão dos imigrantes chineses acerca dos “velhos métodos”

Conforme já foi observado, a maior parte dos estilos "modernos" de Kung-Fu nasceu na

China entre os séculos XVI e XIX, em um dos períodos mais complexos da História

daquela civilização.105 Nesse contexto - que produziu rebeliões de grandes proporções,

como as do Taiping (1840 - 1864),106 dos Nian (1851 - 1868)107 e dos Boxers (1900)108 -

as artes marciais floresceram principalmente junto às milícias locais e aos chamados

grupos sectários. Eles reuniam toda sorte de descontentes com o governo Qing: líderes

políticos e religiosos, imigrantes, minorias étnicas, agricultores, militares e bandidos.

À exceção dos tempos de guerra declarada, porém, esses grupos - cujos exemplos mais

conhecidos são a "Sociedade do Lótus Branco" e a "Sociedade do Céu e da Terra" -

quase sempre se mantiveram ocultos ou à margem da lei. Seu poder, porém, pode ser

medido em termos de longevidade: Barent Ter Haar cita a perseguição policial a

remanescentes da "Tríade" em Hong Kong nos anos 70!109 É possível, inclusive, que tais

grupos sigam existindo sob outra roupagem – tudo leva a crer que os componentes da

chamada "máfia chinesa" sejam seus herdeiros.110 Nesse contexto, a proximidade recente

entre tradição marcial e um banditismo calcado na predação aos próprios sino-

104 Chan Kowk Wai partiu de Cantão para Hong Kong em 1949; em 1960 chegou ao Brasil, onde iniciou a difusão do Kung-Fu Shaolin do Norte. Ver <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/Horal/25_9.html> (c. 05.09.2002). 105 Sobre a violência na China no período, ver SPENCE, J., "Em Busca da China Moderna - quatro séculos de História", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 817 p. 106 Sobre o Taiping, ver SPENCE, J., "O Filho Chinês de Deus", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 412 p., e <http://www.lcsc.edu/modernchina/u3s1p3.htm> (c. 26.04.2004). 107 Sobre a Revolta dos Nian, ver <http://concise.britannica.com/ebc/article?eu=398744> e <http://www.bartleby.com/65/ni/NianRebe.html > (c. 27.04.2004) 108 Sobre a Rebelião dos Boxers, ver HARRINGTON, P., "Peking 1900 - The Boxer Rebellion", 1ª ed., Oxford: Osprey Publishing, 2001, 96 p. e <http://en.wikipedia.org/wiki/Boxer_Rebellion> (c. 26.04.2004). 109 TER HAAR, "Ritual & Mythology...", p. 26 e 27. 110 Sobre a presença de mafiosos chineses nos EUA, ver o artigo de FINCKENAUER, J., "Chinese Transnational Organized Crime: The Fuk Ching", disp. em <http://www.ojp.usdoj.gov/nij/international/ctoc.html> (c. 22.04.2004)

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descendentes pode ter sido determinante para o afastamento entre o "homem chinês

comum" e a arte marcial.

O brutal confronto entre valores guerreiros tradicionais chineses (calcados em um élan

fadado ao desaparecimento e no estímulo de governantes avessos a inovações

tecnológicas) e os da sociedade européia (baseados na especialização e na predação

colonialista) também pode ter sido decisivo para um afastamento entre o universo

semântico marcial e a realidade-padrão da sociedade chinesa (fig. 12 e 13).111

A antiga visão chinesa, que conectava o Kung-Fu à instrumentalidade, à sobrevivência, à

rebelião e a um "espírito nacional", parece ter sido substituída por outra, marcada pelo

ceticismo em relação à sua finalidade no mundo real. Afinal, porque empunhar uma

espada ou um tridente em tempo de fuzis e canhões Krupp? Esse olhar étnico negativo só

parece ter se alterado a partir da segunda metade do séc. XX, quando o Ocidente se

aproximou do Kung-Fu de forma positiva. Ainda assim, ele pode ter sido compartilhado

por muitos dos imigrantes que chegaram ao Brasil.

Não se pode esquecer, contudo, a forte presença marcial na cultura popular chinesa:

muitas das histórias presentes no folclore, na literatura e, mais tarde, nos filmes, trazem

personagens envolvidos com atividades guerreiras. É reveladora, por exemplo, a

presença, nas histórias populares, de mulheres guerreiras, algo incomum em uma cultura

111 Fig 12 (A e B), in HARRINGTON, P., "Peking 1900…", p. 12 e 23. Fig. 13 in GÖTZ, H., “German Military Rifles and Machine Pistols”, 1ª ed., Pensilvania: Schiffer Publishing, Ltd., 1990, 245 p., p. 63.

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53

fortemente marcada pelo patriarcado.112 Muitas das divindades das religiões populares

também são portadoras de armas, usadas para afugentar fantasmas e demônios.113

Essa sobrevivência da marcialidade em uma "realidade fantástica" tem um caráter dos

mais interessantes: se, por um lado, mantém uma conexão entre a sociedade e a tradição

marcial, por outro parece relegar as práticas marciais a um plano distinto do da realidade-

padrão. Por essa leitura, o Kung-Fu teria um caráter meramente folclórico ou, numa leitura

mais radical, exótico ou fantasioso – em sentido figurado, algo como uma velha espada

pregada na parede da sala de visitas.

Um dado de observação empírica feita pelo autor desta dissertação contribui para

reforçar essa afirmação: nos anos de 2001 e 2002 participamos, na condição de

organizador, dos festejos do Ano Novo Chinês em Curitiba. Nesses dois anos, as

apresentações folclóricas de corte marcial (a “Dança do Dragão” e a “Dança do Leão”) e

as demonstrações de Kung-Fu foram realizadas por professores e alunos brasileiros

vindos de várias regiões do país, sem a participação de nenhum sino-brasileiro. Estes,

que se ocuparam principalmente das vendas de produtos típicos da cozinha chinesa, de

uma barraca de caligrafia e de um campeonato de mah-jong (um tipo de jogo chinês),

não participaram porque nunca haviam tido qualquer contato com a arte marcial chinesa!

2.5 – Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte

marcial chinesa

Elementos históricos da arte marcial chinesa não se revelam

apenas no estudo das fontes primárias. É possível descobrir

dados complementares - especialmente em relação à matriz

religiosa - pelo conhecimento do significado dos nomes

utilizados para identificá-la na China e no Ocidente.

Apesar de não constar dos dicionários brasileiros, Kung-Fu ( ) é reconhecido, no

Ocidente, como sinônimo de “luta chinesa” (fig. 14).114 Em chinês, o termo expressa algo

112 A esse respeito ver APOLLONI, R., "Eu sou a Invencível Deusa da Espada! A representação da mulher na 'cultura marcial chinesa' e seus possíveis reflexos sobre as relações de gênero", texto disp. em <http://www.pucsp.br/rever/rv1_2004/i_apolloni.htm> (c. 29.03.2004). 113 Uma galeria de divindades chinesas pode ser encontrada em STEVENS, K., "Chinese Gods...”, op. cit. 114 Caligrafia: acervo do autor.

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54

como uma habilidade intuitiva obtida pela repetição de uma ação.115 Ao associar maestria

à superação do “Falso Ego”, o termo se aproxima da visão oriental de transcendência.116

Os chineses, porém, jamais utilizaram Kung-Fu para identificar sua arte marcial.117 Eles

adotam os termos Wushu ( ) e Guoshu ( ),118 que significam, respectivamente,

“Arte Guerreira” e “Arte Nacional”.119 Um terceiro termo identificador é Chung-kuo Ch’uan

- "Boxe do País do Centro".120 Outros termos são Ch’uan Fa, Ch’uan shu121 e Wuyi.122. A

quantidade de termos é um indício da importância da arte marcial na cultura chinesa.

De acordo com Draeger & Smith, a forma Kuo-Shu (Guoshu) teria sido adotada

institucionalmente na China em 1928, em substituição a Wushu, que, segundo os

autores, teve seu uso resgatado anos mais tarde. Esse “resgate” estaria relacionado à

chegada dos comunistas ao poder na China continental: além de reafirmar o termo,

Beijing impôs uma passagem das formas tradicionais para desportivas que implicou em

sua releitura. Isso se deu pela criação de rotinas e modalidades de luta – hoje praticadas

como parte das atividades físicas nas escolas de toda a China.123 Apesar de os autores

não informarem como se deu a mudança de nomenclatura - eles afirmam, apenas, que

foi "em um momento de promoção de grandes competições nacionais" -,124 vale observar

que, também em 1928, o governo republicano chinês fundou a primeira grande instituição

representativa das artes marciais nacionais, o Central Wushu Institute, em Nanjing. Esse

nome parece desmentir um desejo das instituições chinesas de mudar a forma

identificadora da arte marcial nacional.125

115 Trad. de "Kung-Fu" em DERRICKSON, "Chinese for...", p. 19. 116 Para uma aproximação de corte psicológico da "habilidade intuitiva", ver JUNG, C., “Psicologia e Religião Oriental”, 1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1980, 138 p., e WATTS, A., “O Budismo Zen”, 4ª ed., Lisboa: Editorial Presença: 1990, 249 p. 117 A não ser recentemente. Ver <http://www.gio.gov.tw/info/culture/cultur20.html> (c. 09.01.1997). 118 Variantes: Wu Shu, Wu-shu, Kuoshu, Kuo Shu e Kuo-shu. 119 Cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 9, os elementos formadores desses termos são wu - relacionado a guerra, shu – a arte, e guo (ou kuo), a país. 120 Chung-kuo (lê-se “tzunkuo”) significa algo como “País do Centro” - denominação chinesa para seu próprio país - e ch’uang (chuan ou quan, lê-se “tchuen”) “pugilismo”. Cf. DRAEGER, D., & SMITH, R., "Asian Fighting...", p. 12. 121 Citados por DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting…", p. 12. 122 Cf. TER HAAR, B., “Ritual & Mythology...”, p. 516. 123 Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 12 e 19. 124 Ibid., p. 19. Pode-se imaginar que a mudança tenha tido um caráter político: enquanto o apelo de Wushu seria belicista, o de Kuoshu seria nacionalista. 125 Sobre o Central Wushu Institute, ver <http://www.cesh.info/resumenes/BBallardini.html> (c 31.08.2003).

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Atualmente, a instituição representativa das artes marciais chinesas junto ao Comitê

Olímpico Internacional (COI) é a International Wushu Federation, criada em 1990 na

República Popular da China. Uma de suas metas é transformar o Wushu em esporte

olímpico, numa estratégia semelhante à de Japão e da Coréia do Sul em relação ao Judô

e ao Tae-Kwon-Do.126 Sobre esse projeto vale citar o filósofo Bruno Ballardini, da

Universidade de Salerno:

Depois de pelo menos 2000 anos de história, as mais tradicionais disciplinas chinesas parecem estar renascendo para uma nova vida. Mas sua moderna recodificação sob os auspícios da Revolução Cultural transformaram-nas dramaticamente tanto em forma quanto em substância, fazendo-as perder seu conteúdo “marcial” e tradicional. (...) Como documentos Maoístas confirmam, desde o estabelecimento da República Popular da China o Wushu se tornou um componente fundamental da cultura socialista e da educação física e desportiva, tendo se desenvolvido espetacularmente. Wushu oferece um extraordinário caso de uso ideológico de disciplinas físicas tradicionais para propaganda. Devido à falta de fontes recentes, algumas comparações podem ser feitas com a modernização de outras artes marciais “nacionais”, que já conseguiram adentrar ao sistema Olímpico: o japonês Judô e o coreano Tae Kwon Do. Pode-se concluir algumas coisas sobre a definição equivocada de “arte marcial”. Apesar de o governo Chinês insistir na manutenção deste termo, as disciplinas que seguem sob a definição de “Wushu” – que, literalmente, significa “Arte Marcial” – há muito não são artes marciais. Elas são, sob todos os aspectos, esportes modernos.127

A “ideologização” dos termos Wushu e Kuoshu também pode ser constatada em Taiwan:

lá, o órgão representativo das artes marciais é a International Chinese Kuoshu Federation

- o nome reafirma uma expressão tradicional e, por certo, um posicionamento ideológico.

2.5.1 – A verificação do elemento religioso nos termos identificadores da

marcialidade na China

Não há, nos termos que identificam genericamente a arte marcial chinesa, uma

conotação religiosa. Assim, pode-se dizer que, nesse nível, a arte marcial chinesa não

possui corte religioso. Já Kung-Fu possui uma ligação com a religiosidade: o termo

chegou ao Ocidente no séc. XVIII, através dos relatos enviados por jesuítas que atuavam

na China. Esses documentos descrevem exercícios respiratórios taoístas e práticas

corporais de grupos que também praticavam formas de pugilismo e luta com armas.

Apesar da proximidade entre marcialidade e religião nesses grupos, porém, ela parece

126 International Wushu Federation: <http://www.olympic.org/uk/organisation/if/fi_uk.asp?id_federation=65> (c. 31.08.2003). Sobre o Judô como produto cultural globalizado, ver FRÜHSTÜCK, S, E MANZENREITER, W., "Neverland Lost...", op. cit. 127 Original em <http://www.cesh.info/resumenes/BBallardini.html> (c. 31.08.2003). Trad. livre do inglês

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não ter implicado em mudanças na visão geral da arte marcial ou no significado básico do

termo "Kung-Fu" para os chineses.

Já a nomenclatura dos estilos que compõem o gênero “arte marcial chinesa” aponta, em

muitos casos, para o elemento religioso. É o caso do Shaolin do Norte, que tomou seu

nome de um mosteiro budista. Esse empréstimo128 indica a natureza da relação entre

marcialidade e religião na China, caracterizada pelo cruzamento de dois valores

dominantes na cultura: religiosidade129 e violência.

As diferenças de "proximidade religiosa" entre os termos definidores genéricos e os

definidores dos estilos marciais chineses parecem indicar uma penetração mais intensa

de valores religiosos no corpo marcial a partir de um certo período histórico,

provavelmente no apogeu do movimento sectário chinês (sécs. XVI a XIX). Esse

momento - marcado por um brutal aumento da violência na China - coincide com o

surgimento dos principais estilos marciais chineses modernos e, também, com a chegada

do termo Kung-Fu (Cong Fu) ao Ocidente.

O crescimento da religiosidade na arte marcial, porém, não parece ter implicado em uma

“sacralização” do conjunto da marcialidade, mesmo porque, na China, o poder das armas

não foi privilégio de uma única casta, como ocorreu no Japão. Essa relação é

fundamental para se chegar aos limites do corte religioso de nossa análise: ao contrário

do que ocorreu no arquipélago nipônico, onde o Zen exerceu profunda influência sobre os

controladores da prática marcial (a partir do séc. XVI), na China a relação marcialidade x

religião se deu em bases aparentemente mais "pragmáticas" do que "transcendentais".

O sentido de “instrumentalidade” é visível até em Shaolin, onde os monges não treinavam

visando à transcendência, mas à sobrevivência material. A se confiar em certos relatos

históricos, pode-se afirmar, inclusive, que em muitos casos a “fachada monástica” se

prestava apenas ao acobertamento de atividades criminosas. De modo simples, pode-se

dizer que o indivíduo não pretendia chegar ao Nirvana, mas, ao contrário, buscava

chamar os “poderes celestes” para si e, dessa forma, mudar a realidade de acordo com

128 A lista de nomes relacionados à religião é imensa. Temos, p. ex., Tai-Chi-Chuan, Pa Kua, Lohan e Hsing

I, que tomam seus nomes de elementos do universo budista ou taoísta. 129 “Uma afinidade pelo Taoísmo filosófico e pela Teoria dos Opostos parece permear a psique chinesa”. HENNING, “Academia Encounters...”, p. 320, trad. livre do inglês.

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sua vontade (exemplos dessa tendência aparecem em rebeliões como a do T’ai Ping

Tao130 e a do Taiping). O estabelecimento de culto a uma divindade marcializada em

Shaolin durante a Dinastia Ming – em outras palavras, a adaptação da tradição religiosa à

prática marcial, com vistas a legitimar essa última – se mostra a prova mais veemente

dessa particular relação entre religião e marcialidade.

Essa “marcialidade diferente do esperado” quebra um paradigma comum no Ocidente - o

de que, na relação arte marcial oriental x religiosidade, o trabalho físico e o aprendizado

são voltados necessariamente a um fim “transcendental” ou de natureza ética elevada.

Shahar observa que, no caso de Shaolin, nenhum documento do século XVII associa a

prática marcial à perfeição espiritual. O surgimento de um “Caminho Espiritual da

Espada”, segundo o pesquisador de Tel Aviv, nasceu no Japão do século XVI, quando o

mestre Zen Takuan Soho (1573 - 1645)131 estabeleceu o conceito de mushin (“não-

mente”) e o associou à esgrima. Esse conceito, popularizado no Ocidente através de

autores como Suzuki e Herrigel,132 foi pesadamente incorporado ao olhar ocidental sobre

as artes marciais do Oriente. Que tipo de efeito ele pode ter sobre os praticantes

brasileiros de arte marcial chinesa? Essa pergunta será respondida a partir dos dados da

pesquisa de campo.

2.6 – Interpretação dos conteúdos do capítulo

A análise do desenvolvimento histórico das artes marciais chinesas e de sua relação com

a religiosidade traz dados interessantes para os pesquisadores das Ciências de Religião

e da área específica da marcialidade. Inicialmente o de que, na China, a marcialidade

instrumental – ou seja, despojada de considerações outras que não as derrotar e não ser

derrotado - é muito antiga. Esse fim-em-si, que se revela nos nomes genéricos utilizados

para a identificação das artes marciais, já contava com pelo menos doze séculos quando

se deu o primeiro contato entre o campo militar e práticas corporais taoístas e budistas

voltadas à longevidade e à transcendência.

130 “Rebelião dos Turbantes Amarelos”, ocorrida entre os anos de 175 e 205 sob o comando de Chang Chueh, defensor de uma doutrina de caráter escatológico. Ver <http://philtar.ucsm.ac.uk/encyclopedia/taoism/taiping.html> (c. 13.08.2004). 131 Takuan foi autor de ensaios voltados à “Não-Mente”. Sua biografia e um de seus textos mais populares, “A Mente Livre: Escritos do Mestre Zen para o Mestre da Espada” podem ser encontrados, em inglês, em <http://www.american-buddha.com/unfettered.mind.htm> (c. 19.12.2003).

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O ponto de contato – o corpo do fiel ou guerreiro – parece reforçar o caráter instrumental

da relação: ao incorporar elementos religiosos, os praticantes buscavam finalidades mais

“terrenas” do que “transcendentais”, como proteção mágica contra as armas e aquisição

de força física extraordinária pelo cultivo do Chi (“Energia”, na tradição taoísta).133 O fato

de que a “religiosidade marcial” chinesa só viria a ganhar força durante o apogeu do

movimento sectário parece comprovar isso: aparentemente, esses praticantes não

buscavam uma sofisticada “Iluminação Zen” ou um sutil “Paraíso Taoísta”, mas a

transformação da realidade com apoio de forças sobrenaturais. As fontes primárias

revelam, ainda, uma escassez de informações sobre os rituais mágicos ou religiosos

específicos dos grupos marciais na China. Tal dificuldade pode ser superada, no caso do

presente trabalho, a partir das entrevistas com os mestres originários, que fornecerão os

elementos necessários à comparação com os dados obtidos junto aos praticantes

brasileiros.

Por fim, a aproximação entre o Shaolin “histórico” e o “das academias brasileiras” será

feito a partir de uma comparação entre elementos como os apontados por Shahar (o culto

de Jinnaluo) e os encontrados entre os grupos de praticantes pesquisados. Essa

aproximação permitirá estabelecer uma hipótese que nos autorize a afirmar que a

tradição das academias brasileiras decorre mesmo do mosteiro ou, então, que é fruto do

movimento sectário chinês dos séculos XVI-XIX.

132 D. T. Suzuki (1870 – 1966) produziu obras como “Zen e a Cultura Japonesa”; Eugen Herrigel (1884 – 1955), “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”. 133 Uma lista interessante de “receitas mágico-marciais” pode ser encontrada em DRAEGER & SMITH (“Asian Fighting...”, p. 50 e 51).

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3. UMA ESPADA NA BAGAGEM - IMIGRAÇÃO CHINESA E TRANSPLANTAÇÃO DO

KUNG-FU DE SHAOLIN PARA O BRASIL

3.1 - Considerações Preliminares

Este capítulo, que trata da relação entre imigração chinesa e transplantação do Kung-Fu

para o Brasil, tem como ponto de partida dados empíricos: Chan Kowk Wai,134 introdutor

do estilo "Shaolin do Norte"135 em nosso país, trocou Hong Kong (para onde havia

seguido em 1949, vindo de Cantão) pela cidade de São Paulo em 1960.136 Como a

maioria dos imigrantes, constituiu família e construiu patrimônio; além disso, trouxe na

bagagem uma prática específica de sua cultura: o Kung-Fu de Shaolin. O segundo mestre

chinês incluído em nosso estudo, Lee Chung Deh,137 também emigrou para o Brasil. Veio

de Taiwan em 1966, aos 14 anos, e fez sua formação em Kung-Fu em terras brasileiras,

como discípulo de Chan Kowk Wai (fig. 15 e 16).138

Diante de tais evidências, não há como negar a relação entre imigração e transplantação

da arte marcial chinesa para o nosso país. Resta saber, porém, em que medida o domínio

do universo semântico da arte marcial foi e é uma característica típica do imigrante chinês

"médio". A partir da resposta a esse questionamento – que buscaremos encontrar no

presente capítulo - é possível determinar dois pontos que consideramos essenciais em

134 Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de primeira geração". 135 Estilo de Kung-Fu que é objeto de nossa pesquisa. 136 Inf. in FREITAS, S., "Falam os Imigrantes... Memória e Diversidade Cultural em São Paulo", São Paulo, 2001. 374 p. mais anexos. Tese de doutorado. Dep. de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 137 Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de segunda geração". Lee Chung Deh foi o responsável pela difusão do Shaolin do Norte na região Sul do Brasil na década de 70.

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nosso estudo. Primeiramente, a importância do conjunto da imigração chinesa na

transplantação do Kung-Fu para o nosso país; em segundo lugar, o valor da arte marcial

como elemento de construção da identidade étnica chinesa no Brasil.

A determinação do segundo ponto permite inferir o grau de tensão na relação entre os

emigrados chineses e os brasileiros interessados em praticar Kung-Fu. A medida dessa

tensão, por sua vez, está diretamente relacionada à forma de difusão e às transformações

semânticas da arte marcial chinesa em nosso país.

3.2 - Fontes sobre Imigração Chinesa no Brasil

A presença chinesa no Brasil e seus reflexos sobre a sociedade e a economia locais são

objeto de interesse por parte de pesquisadores e analistas da realidade brasileira desde o

século XIX. No universo acadêmico estão trabalhos clássicos (mas de caráter pontual),

como os de Gilberto Freyre139 e Câmara Cascudo,140 e recentes, como os de José

Roberto Teixeira Leite,141 Sônia Maria de Freitas,142 Alexandre Chun Yuang Yan,143 Sally

Borthwick,144 Sachio Negawa,145 Zhou Shixiu,146 Rafael Shoji147 e Giralda Seyferth.148

138 Imagem 13 - fotos A e B: década de 60; foto C: década de 90, séc. XX. Imagem 14 - foto A: década de 70; foto B: década de 90; foto C: década de 80, em Shaolin (acervo do autor). 139 FREYRE, G. "Louça da China no Brasil Antigo", artigo disp. em <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos/imprensa/lou%C3%A7a_china.html> (cons. em 19.03.2004) 140 CASCUDO, C., "Dicionário do Folclore Brasileiro", Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Ediouro), n.d., 930 p., especialmente os verbetes "Cheiro" (p. 271) e "Papagaio" (p. 669). Câmara Cascudo nunca produziu um trabalho específico sobre as influências chinesas no folclore e nos hábitos brasileiros. Ainda assim, em algumas de suas obras aparecem referências ao contato entre as duas culturas. 141 LEITE, J., "A China no Brasil", 1ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1999, 288 p. mais anexos, e "Imigração Chinesa para o Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 49-57, jul./dez. 1995. 142 FREITAS, S. "Falam os Imigrantes...", op. cit. 143 YANG, A., "A Cultura do Chá no Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 41-47, jul./dez. 1995. Idem, "O Budismo entre os Chineses no Brasil", in China em Estudo, op. cit, p. 49 a 57. 144 BORTHWICK, S., "Chinese at the University of Brasília", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 59-61, jul./dez. 1995. 145 NEGAWA, S., "Formação e transformação do bairro oriental: um aspecto da história da imigração asiática da cidade de São Paulo, 1915 - 2000", São Paulo, 2000, 137 p. mais anexos. Dissertação de mestrado. Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 146 Zhou Shixiu é coordenador adjunto do Programa China-Ásia-Brasil da Universidade Cândido Mendes (RJ). Seu estudo, sobre a presença de elementos chineses no Brasil colonial, é apresentado no artigo "Intercâmbio Brasil-China verificado antes do século XVIII" (sem autoria definida, disp. em <http://www.earthlink.hpg.ig.com.br/2002/05/index8.htm>, cons. 29.08.2002)

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Revistas brasileiras de grande circulação, como "Veja", também deram atenção ao

tema.149 Esses trabalhos lançaram luzes sobre elementos da cultura do "Celeste Império"

e, principalmente, sobre as interações decorrentes de sua transplantação ao Brasil. Eles

incluem, por exemplo, aspectos econômicos e filosóficos da imigração chinesa no século

XIX, a cultura do chá em nosso país, a presença chinesa nas artes, arquitetura e

costumes do Brasil colonial, a entrada recente de imigrantes, sua inserção na sociedade

brasileira atual e a presença de cultos religiosos chineses em nosso país.

3.2.1 - Imigrantes e mestres de Kung-Fu

A referência à marcialidade chinesa nesses trabalhos é, porém, praticamente inexistente.

De todas as fontes pesquisadas, apenas uma - a tese de doutorado de Sônia Maria de

Freitas - liga imigrantes chineses à prática do Kung-Fu e à disseminação dessa arte

marcial no Brasil.150 Construído a partir de entrevistas com imigrantes, esse trabalho teve

como objeto os grupos étnicos de menor expressão numérica que participaram do

processo de imigração na cidade de São Paulo. No caso dos chineses, a relação com a

arte marcial surgiu em entrevistas com integrantes da comunidade. Ao todo, Sônia Maria

de Freitas entrevistou 13 representantes da colônia chinesa de São Paulo: deles, seis

explicitaram uma relação com a arte marcial chinesa, dos quais dois como difusores

(Chan Kowk Wai, mestre de Kung-Fu, e Wong Sun Keung, que na entrevista informou ser

o introdutor do Tai-Chi-Chuan em São Paulo) e quatro como praticantes de Tai-Chi-

Chuan. Vale lembrar que, ainda que seja uma arte marcial, o Tai-Chi-Chuan ingressou na

147 SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", artigo publicado em USARSKI, F. [org.], "O Budismo no Brasil", 1ª ed., São Paulo: Editora Lorosae, 2002, 317 p., p. 125 a 149. 148 SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração e a questão racial no Brasil", artigo publ. na Revista da Universidade de São Paulo, seção "Textos", n. 53, pp. 117-49, mar.-mai./02. Disp. em <http://www.usp.br/revistausp/n53/fgiraldatexto.html> (cons. 25.03.2004). O artigo de Giralda Seyferth não trata especificamente da imigração chinesa, mas se refere ao tema dentro do contexto da relação entre racismo e política de imigração no Brasil do séc. XIX. 149 "O Vasto Mundo da China em São Paulo", Vejinha On Line, "Especial 450 anos de São Paulo". Matéria disp. em <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/vejasp/450_anos/textos/imigrantes/chineses.html> (cons. 25.03.2004). 150 FREITAS, S., "Falam os imigrantes...", op. cit. Ementas dos depoimentos dos chineses entrevistados por Sônia Maria de Freitas estão disponíveis em <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/Horal/China.html> (cons. 25.03.2004).

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moderna sociedade ocidental como uma prática mais sofisticada, assumindo um prisma

terapêutico e "estético".151

José Roberto Teixeira Leite, que se dedicou a pesquisar os usos e costumes chineses

incorporados pela sociedade brasileira no período colonial -152 dentre eles, os de caráter

corporal - não se refere a qualquer assimilação de conteúdos de natureza marcial. Vale

observar que esse autor não tratou apenas de efeitos diretos da imigração chinesa ao

Brasil no período colonial, mas principalmente das influências que aqui chegaram por

conta do contato entre a metrópole portuguesa e a China (através de Macau). Essas

influências foram marcantes principalmente na arte e na arquitetura. Há que se observar,

porém, que, no período colonial – em função da política portuguesa para suas colônias -,

não se estabeleceu um contato direto entre Brasil e Macau.

Estudos como o de Rafael Shoji153 e Alexandre Chun Yuang Yan,154 que abordam

especificamente a religiosidade chinesa em terras brasileiras, também não trazem

informações sobre eventuais relações com a arte marcial. Pesquisas sobre arte marcial

chinesa relacionadas a outras áreas do conhecimento acadêmico, como Educação Física,

Fisioterapia e Medicina Desportiva, também são raras no Brasil. Uma consulta feita aos

sistemas de bibliotecas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da

Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília apontou apenas um trabalho

acadêmico específico sobre o tema "Kung-Fu", em nível de graduação.155

3.2.2 - Hipóteses para a ausência do elemento marcial nos trabalhos sobre os

chineses no Brasil

Acreditamos que a ausência do elemento marcial nos trabalhos acadêmicos sobre

imigração chinesa no Brasil decorre de alguns elementos, tais como a negação ou a

151 Para informações sobre a História do Tai-Chi-Chuan, ver WILE, D., "Lost Tai-Chi Classics from the Late Ch'ing Dinasty" (1ª ed., Nova Iorque: State University of New York Press, 1996, 252 p.). 152 LEITE, J., “A China no Brasil”, op. cit. 153 SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", op. cit. 154 YANG, A., "O Budismo entre os Chineses no Brasil", op. cit. 155 CÂMARA, R., "Uma crítica ao mecanismo da educação física a partir da filosofia do kung fu", São Paulo, 2003. 86 p., trabalho de conclusão do curso de graduação em Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Registro completo in <http://dedalus.usp.br:4500/ALEPH/POR/USP/USP/DEDALUS/FULL/1353037?> (c. 19.03.2004).

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63

desvalorização da marcialidade na cultura imigrante, seu caráter menos aparente no

universo cultural transplantado ou, mesmo, sua condição de “elemento subuniversal”.

Possuindo a marcialidade uma presença tão poderosa na cultura chinesa, porém, como

explicar essa "valoração a menor" de uma prática tradicionalmente associada ao espírito

chinês e, mesmo, a uma espécie de élan nacional? Pensamos que é possível explicar

esse aparente "esquecimento", marginalização ou ocultação do Kung-Fu pela sociedade

chinesa da primeira metade do séc. XX - base do principal grupo de imigrantes que

chegou ao Brasil - a partir de elementos históricos: ela se baseia, sobretudo, na visão das

artes marciais tradicionais como “obsoletas” ou cabíveis apenas na literatura e no

cinema.156 Modernamente, porém, com a revalorização do Kung-Fu, é possível que tal

visão seja radicalmente alterada, não em termos étnicos, mas transculturais.

3.3 - Panorama histórico da imigração chinesa para o Brasil

Apesar da escassez de informações que relacionem a imigração chinesa ao ingresso do

Kung-Fu no Brasil, julgamos essencial estabelecer, a partir das informações presentes

nos trabalhos acadêmicos acima citados, um panorama histórico geral da presença

chinesa no Brasil. Esse panorama será apresentado de forma sucinta, uma vez que a

maioria dos estudos acadêmicos sobre imigração chinesa nos quais nos baseamos está

disponível em português.

Atualmente, de acordo com informações coligidas pela pesquisadora Sônia Maria de

Freitas, existem cerca de cem mil chineses (entre imigrantes e seus descendentes) no

Brasil. Esse número não é pacífico: em texto para a homepage do Memorial do Imigrante

(de São Paulo), a própria Sônia reviu os dados presentes em sua tese, informando que

"Calcula–se que vivam hoje no Brasil cerca de 190 mil chineses e descendentes, 120 mil

dos quais no Estado de São Paulo".157 Em matéria para a "Folha de S. Paulo", a jornalista

Adriana Carranca informa que apenas em São Paulo "há, hoje, cerca de 20 colônias, que

reúnem chineses de diferentes regiões e somam mais de 100 mil imigrantes."158 No

ensaio "Chinese in Brazil", a pesquisadora Clara Chu informa a existência de 60 mil

156 Os dados que sustentam tais afirmações estão no item 2.4.1. 157 In <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/realizad/Aviagem.html> (c. 27.03.2004). 158 CARRANCA, A., “Colônias de SP reúnem mais de 100 mil pessoas”, in Folha de S. Paulo, p. C3, ed. de 02.06.2001.

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64

chineses apenas em São Paulo.159 Utilizando dados de 1987 do "Anuário da Economia

dos Chineses no Exterior" (do Comitê Mundial de Comércio e Negócios dos Chineses de

Ultramar, de Taiwan), Rafael Shoji informa que há cerca de 100 mil chineses no Brasil.160

A discrepância entre os números indica a ausência de uma contagem populacional

específica para a comunidade sino-brasileira ou, pelo menos, a falta de atualização dos

dados.

E onde vivem esses imigrantes? Eles se instalaram principalmente em centros urbanos

como São Paulo, Curitiba, Foz do Iguaçu (PR), Belo Horizonte e Porto Alegre.161 Ainda

que muitas famílias mantenham um forte vínculo com o segmento econômico de

alimentação – em Curitiba, por exemplo, a maior parte das lanchonetes e restaurantes da

área central pertence a famílias oriundas da China nas últimas três décadas -162 a

presença chinesa também é visível em outros setores da economia, em universidades e

instituições de pesquisa.

Apesar de a presença chinesa no Brasil ser anterior à de outros imigrantes – os primeiros

chineses desembarcaram no Rio de Janeiro em 1812, por autorização de Dom João VI –

pode-se afirmar que a atual comunidade sino-brasileira pertence a um movimento recente

de imigração. Com base em dados das fontes utilizadas (sistematizados na tabela 3) é

possível estabelecer uma divisão nesse histórico de imigração. Ele é compreendido por

duas fases: uma "antiga", verificada ao longo de todo o séc. XIX, e uma "recente",

verificada a partir da segunda metade do séc. XX.

Essa divisão, por nós proposta para a imigração chinesa ao Brasil, guarda certa

semelhança em relação à divisão estabelecida por Wang Gungwu e citada pela

159 CHU, C., "Chinese in Brazil", in <http://huaren.org/diaspora/l_america/brazil/0194-01.html> (c. 29.03.2004). 160 SHOJI, R., "Estratégias de Adaptação...", p. 130 161 CLEMENTE, I., em “Anistia da PF regularizou 9.229 pessoas”, in Folha de S. Paulo, caderno "Cotidiano", ed. de 23.07.2000, se refere à imigração chinesa durante os anos 90 (séc. XX). Segundo a autora, esses imigrantes, originários da República Popular da China, se instalaram principalmente em São Paulo, Foz do Iguaçu e Curitiba. 162 Na capital paranaense, a maior concentração de lanchonetes e restaurantes administrados por famílias chinesas está no eixo formado pelas praças Tiradentes, Generoso Marques, Rui Barbosa e Osório, e pelas ruas Quinze de Novembro, Tobias de Macedo, Barão do Cerro Azul, Marechal Floriano Peixoto, Marechal Deodoro, Riachuelo e Desembargador Westphalen. Informação obtida pelo autor a partir de observação de campo no período de dezembro de 2003 a fevereiro de 2004.

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65

pesquisadora Marie-Paule Ha para a diáspora chinesa.163 Analisando a migração de

chineses, ela identificou quatro padrões, relacionados fundamentalmente à motivação de

saída da China e ao perfil dos emigrados:

- o primeiro é o chamado de "Coolie" (Huagong), e se refere à importação de mão-de-obra

para substituição da mão-de-obra escrava nas Américas, Austrália e Sudeste Asiático no

séc. XIX;

- o segundo é chamado de "Mercantil" (Huashang), e se refere a imigrantes tecnicamente

mais sofisticados, artesãos e comerciantes que se estabeleceram, sobretudo, no sudeste

asiático, também no séc. XIX;

- o terceiro é chamado de “Temporário" (Huaqioa), e diz respeito a imigrantes que

deixaram a China a partir do séc. XIX por conta das turbulências políticas que afetaram o

país até a segunda metade do séc. XX;

- e o quatro e último padrão é o chamado de "Remigrante" (Huay), e diz respeito a

chineses de Taiwan e Hong Kong ou a sino-descendentes do Sudeste Asiático que, nas

últimas três ou quatro décadas, seguiram para a Europa Ocidental, Austrália e América do

Norte. Esses imigrantes têm como principal característica um alto nível educacional e de

preparo profissional; por conta dessas características, são assimilados mais

tranqüilamente pelas sociedades em que se inserem. As duas fases que estabelecemos

para a imigração chinesa ao Brasil estão diretamente relacionadas aos padrões um

(Coolie) e três (Temporário) propostos por Wang Gungwu.

Tabela 3 - Histórico da Imigração Chinesa para o Brasil

Fase

Época

Fato Relevante

1514 Navegadores portugueses chegam à China.

Antecedentes

coloniais

1553 Portugueses se estabelecem em Macau e iniciam um contato mais intenso

com a cultura chinesa.

163 HA, M., "Cultural Identities in The Chinese Diaspora", art. disp. em <http://huaren.org/diaspora/background/doc/010500-01.html> (c. 16.04.2004).

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1812 D. João VI autoriza a entrada de dois mil chineses no país. Desembarcam

400.

1843 Britânicos sugerem às autoridades brasileiras que importem 60 mil chineses.

1855 Nova entrada de chineses no Brasil. São 303, chegados ao Rio de Janeiro.

1855 - 1890 O movimento abolicionista cresce no Brasil. A idéia de importação de

trabalhadores chineses gera polêmica entre intelectuais, que temem a

"mongolização" do país. Positivistas acusam o governo de tentar "transferir a

escravidão" para os chineses.

Em 1870, fundação da "Sociedade Importadora de Trabalhadores Asiáticos",

que se propunha a trazer chineses. A iniciativa não teve sucesso. Em 1874,

cerca de mil trabalhadores vindos de Cantão desembarcam no Rio de

Janeiro. Em 1880, primeira missão diplomática brasileira à China. Proposta

de tratado de amizade, comércio e navegação. Acordo diplomático assinado

a cinco de setembro. No ano seguinte, revisão do acordo. Em 1888, Henrique

Lisboa, um dos integrantes da missão diplomática brasileira de 1880, publica

"A China e os Chins", primeiro relato de viagem de um brasileiro sobre a

China.

Fase 1

Séc. XIX

1900 Primeira entrada oficial de chineses em São Paulo: 107 pessoas, vindas de

Lisboa no vapor "Malange". Foram abrigados na Hospedaria dos Imigrantes,

na cidade de São Paulo, e depois seguiram para Matão (SP).

1949 Comunistas chegam ao poder na China Continental. "Diáspora Chinesa".

1960 Chan Kowk Wai, patriarca do estilo Shaolin do Norte no Brasil, desembarca

em São Paulo vindo de Hong Kong.

1962 Fundado na cidade de São Paulo o 1º templo budista chinês brasileiro, o Mi

To.

1966 Lee Chung Deh, discípulo de Chan Kowk Wai e difusor do Shaolin do Norte

fora de São Paulo, desembarca no Brasil vindo de Taiwan.

1973 Fundação, na cidade de São Paulo, da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu

(de Chan Kowk Wai).

Fase 2

Séc. XX

1975 O Brasil e a República Popular da China estabelecem relações diplomáticas.

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67

1980 Criação, em São Paulo, da Associação Cultural Chinesa do Brasil.

1985 Estabelecimento, em SP, do Consulado da República Popular da China.

Anos 90 Imigrantes chineses vindos da República Popular da China se estabelecem

em São Paulo, Curitiba e Foz do Iguaçu (PR). Em 1999, a polícia federal

brasileira regulariza a situação de cerca de 9.200 chineses clandestinos.

Séc. XXI A China se consolida como um dos principais parceiros comerciais

brasileiros, principalmente no setor de produtos agrícolas.

2003 A Escola de Samba Águia de Ouro, de São Paulo, apresenta o enredo "A

milenar cultura de um povo, quem tem olho grande já entra na China”.

Participam do desfile passistas chinesas e praticantes de Kung-Fu.

Apresentação, na cidade de São Paulo, da mostra "Guerreiros de Chian", a

maior exposição de arte e cultura chinesa até então realizada no Brasil.

Fase 2

(cont.)

2004 O presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, leva à China

uma comitiva de políticos e empresários à China. O Brasil se esforça por

ampliar os contatos com a China nas áreas comercial, científico-tecnológica e

de infraestrutura.

3.3.1 – Expansão colonial e séc. XIX – Portugal como ponte entre Brasil e China

A expansão colonial portuguesa na China é, sem dúvida, um tema rico em possibilidades

de pesquisa. Em nosso contexto, porém, ela se coloca na condição de antecedente do

contato Brasil-China, de pouca relevância para o estudo. A primeira fase da imigração vai

do início do séc. XIX até a primeira metade do séc. XX, sendo caracterizada

principalmente pelo interesse das autoridades brasileiras na captação de indivíduos que

pudessem substituir os escravos nas lavouras de café ou colonizar terras.

O problema da mão-de-obra, considerado grave já no início do século XIX (por conta da

pressão britânica pelo fim do tráfico negreiro e, mais tarde, pelas pressões abolicionistas

internas),164 fez com que o governo brasileiro construísse uma política de imigração que

levou em conta, inclusive, os debates acerca de raça e miscigenação em voga naquele

período.

164 Ver LEITE, "Imigração Chinesa...", p. 25 e 26.

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68

Leite,165 Seyferth166 e Lesser167 observam que a questão da importação de trabalhadores

chineses (conhecidos genericamente como coolies) para o Brasil suscitou acalorados

debates entre autoridades e intelectuais brasileiros no período entre 1855 a 1890. Esses

debates, centrados na questão racial - no receio da "mongolização do Brasil" e da

mestiçagem -, parecem ter tido relação direta com o número de chineses trazidos ao país

no período.

O movimento positivista também participou das discussões, se colocando contra a

imigração chinesa por considerá-la, na realidade, uma tentativa de implantação de uma

"segunda escravidão" no Brasil. De fato, como observa Marie-Paule Ha,168 o padrão

Coolie de imigração se caracterizou pela exploração brutal do trabalho e pelo preconceito

racial. O interesse britânico em exportar trabalhadores ou em bloquear a saída de mão-

de-obra da China também foi determinante para a incipiente imigração chinesa ao Brasil

no século XIX: segundo José Roberto Teixeira Leite, entre 1812 e 1889 cerca de três mil

chineses desembarcaram no país.169 O número de indivíduos não foi suficiente para o

estabelecimento de grupos suficientemente estruturados, que pudessem manter e replicar

suas características étnicas.

Vale observar que, em outros países latino-americanos, os mesmos entraves não se

verificaram: no Peru, 90 mil trabalhadores chineses chegaram, até 1874, para substituir a

mão-de-obra escrava nas lavouras de cana-de-açúcar e algodão;170 em Cuba, a

importação chegou a cem mil trabalhadores entre os anos de 1850 e 1880.171

É preciso destacar que a concentração mais estruturada de imigrantes chineses em

outros centros para onde seguiram, nesse período, não está relacionada, apenas, ao

165 Idem, "Os Imigrantes...", p. 29 a 39. 166 SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração...", op. cit. 167 LESSER, J., "Neither Slave nor Free, Neither Black nor White: The Chinese in Early Nineteenth Century Brazil", art. disp. em <http://www.tau.ac.il/eial/V_2/lesser.htm> (c. 26.03.2004). 168 HA, M., "Cultural Identities...", op. cit. 169 LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 39. O número toma por base cálculo de CONRAD, J., in "The Planter Class and the Debate over chinese Imigration to Brazil. 1850 - 1893", art. publ. em "International Migration Review", Nova Iorque: The Center for Migration Studies of New York, Inc., n. 1, p. 41 a 55, março/junho de 1975. 170 LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 26. 171 Inf. in "A Chinese man's odyssey to Cuba", art. sem autoria definida publ. in San Francisco Examiner e disp. em <http://www.huaren.org/diaspora/l_america/cuba/id/101898-01.html> (c. 29.03.2004).

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69

número de indivíduos. Em países como os Estados Unidos, que recebeu um número

muito grande de imigrantes chineses,172 a imigração teve como uma de suas

conseqüências o estabelecimento de Chinatowns - bairros étnicos que abrigaram boa

parte dos emigrados. Esses bairros, que tiveram um papel fundamental para a

preservação de características culturais do país de origem, foram formados por conta de

pressões da comunidade branca, que não admitia conviver com indivíduos considerados

racialmente e culturalmente "inferiores".173 Jonathan Spence se refere a algumas das

diferenças culturais que reforçaram a segregação:

Os chineses - ou "mongóis", como muitos brancos começaram a chamá-los - eram também antipatizados e temidos pelos ocidentais devido à relativa estranheza de seus costumes sociais. A trança que muitos homens ainda usavam parecia bizarra nos Estados Unidos. Os americanos observavam a proporção extremamente alta de homens para mulheres nas comunidades chinesas - em 1880, havia mais de 100 mil chineses do sexo masculino vivendo no Oeste do país, para apenas 3 mil do sexo feminino - e, sem procurar entender os motivos disso, consideraram-nos como anormais. O som monótono da fala chinesa, a propensão de alguns a fumar ópio e a queda de outros pela bebida e pelo jogo, sua disposição para comer coisas com aparência esquisita ou sensaboronas, tudo se combinou para criar um clima cheio de boatos no qual ganhavam destaque a iniqüidade e a depravação dos chineses.174

No caso brasileiro, qual o destino desses poucos imigrantes chineses da primeira fase?

Segundo José Roberto Teixeira Leite,175 eles se concentraram principalmente no Rio de

Janeiro, onde trabalharam como peixeiros, cozinheiros, fogueteiros e tintureiros, na maior

parte das vezes em péssimas condições de vida. Dispersos em uma sociedade

institucionalmente menos organizada e com menor grau de restrições à miscigenação -

pelo menos, no nível popular - acabaram absorvidos, inclusive em seus traços raciais.

3.3.2 - Segunda metade do séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil

A segunda fase da imigração vai de 1949 – ano da “Diáspora Chinesa” provocada pela

tomada do poder pelos comunistas na China continental – até meados dos anos 70,

172 Uma lista de artigos acadêmicos e jornalísticos sobre a presença chinesa nos EUA podem ser encontrados em <http://huaren.org/diaspora/n_america/usa/> (c. 16.04.04). 173 Ver HA, M., "Cultural Identities...", op. cit. 174 SPENCE, J., "Em Busca da China...", p. 219. 175 Tomando por base obras como "O Rio de Janeiro do meu tempo" (1938), de Luiz Edmundo. In LEITE, J., "Os Imigrantes...", p. 39.

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70

quando chegaram ao Brasil famílias chinesas expulsas das antigas colônias portuguesas

na África (Angola e Moçambique) por conta de guerras civis.176

Antes de seguir com a descrição dessa fase, julgamos importante tecer algumas

considerações a respeito do termo "diáspora", utilizado em muitos ensaios acadêmicos

sobre o movimento migratório chinês na segunda metade do século XX. O termo vem do

grego diasporá ( ), que significa "dispersão". De acordo com a definição

dicionarizada, "diáspora" pode ser definida como "a dispersão dos povos por motivos

políticos ou religiosos, em virtude de perseguição por grupos dominadores intolerantes".177

O caso da imigração chinesa recente pode ser incluído nessa definição. Aos motivos

elencados pelo dicionarista como motivadores da dispersão, podemos acrescer o de

caráter econômico: por força da má distribuição de renda - determinada, entre outros

fatores, pelo esforço dos grupos dominantes em manter o controle sobre a riqueza -

populações são levadas a deixar seus locais de nascimento para "tentar a vida" em outros

lugares.

O termo também mereceu atenção de pesquisadores do universo religioso. É o caso de

Martin Baumann,178 que se questionou a respeito dos elementos que qualificam uma

situação como sendo de diáspora. Segundo Baumann, uma situação de diáspora se

apresenta quando um grupo de pessoas perpetua uma identidade pela associação com

um território geográfico (e suas tradições culturais e religiosas) fictício ou há muito tempo

distante de sua realidade-padrão.

Nos parece que a diáspora chinesa não se encaixa nessa definição, uma vez que o

território de origem e a cultura "de berço" dos imigrantes - apesar da dinâmica natural das

sociedades - seguem existindo. Além disso, há que se considerar, no caso chinês, o

poder econômico e de comunicação dos emigrados, que facilitou o estabelecimento de

pontes – ainda que restritas - em relação a seu território de origem. Wong, no abstract do

artigo "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", observa que "no caso da

176 Não encontramos referências sobre a entrada de chineses das colônias portuguesas na África para o Brasil. Nos anos 70, famílias vindas de Moçambique desembarcaram em Curitiba. 177 HOLANDA, A., "Novo Dicionário Aurélio", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975, 1517 p., p. 474. 178 BAUMANN, M., "Becoming a Colour of the Rainbow: Indian Hindus in Trinidad Analysed along a Phase Model of Diaspora", paper apresentado ao 18th Congress of the International Association for the History of Religions, Durban, África do Sul, agosto de 2000, 11 p.

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comunidade chinesa ficou claro que, embora a internet tenha sido útil para a criação de

uma presença chinesa, ela jamais privilegiou o essencialismo e a hegemonia comunal."179

Feitas as considerações acerca dos limites do termo "diáspora", podemos voltar à análise

da segunda fase da imigração chinesa no Brasil. A partir da segunda metade do séc. XX,

o movimento migratório não partiu de uma demanda brasileira, mas de situações

decorrentes do contexto internacional - avanço do comunismo na China e as revoluções

que, na esteira da Guerra Fria, levaram à independência das ex-colônias européias na

África - que implicaram no deslocamento de milhões de chineses para vários países:

atualmente há cerca de 44 milhões de chineses ultramarinos vivendo apenas em países

da Ásia.180

É nesse período, efetivamente, que a presença chinesa em terras brasileiras se tornou

mais perceptível, com a instalação de entidades culturais de caráter étnico como igrejas e

movimentos religiosos, centros comunitários, escolas para o ensino da língua e da escrita

e centros de prática de arte marcial criados por imigrantes.181 Apesar dessa "sinalização"

da presença chinesa recente, ainda são poucos os trabalhos acadêmicos voltados ao

tema. Além deles, porém, há outra fonte relevante de informações sobre a comunidade

sino-brasileira da segunda fase de imigração: a imprensa. Em nossa pesquisa

encontramos dez notícias diretamente relacionadas à presença chinesa recente no Brasil,

publicadas em jornais e revistas entre 1993 e 2004. Esse número, evidentemente, deve

ser encarado com o devido cuidado, uma vez que a pesquisa foi feita apenas junto a

jornais e revistas brasileiros de grande circulação, em um período limitado de tempo.

Diante da quantidade de veículos de imprensa existentes no país, é de se presumir que

outras matérias enfocando a imigração chinesa tenham sido publicadas.

179 WONG, L., "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", paper publicado in First Monday - Peer-viewed Journal on Internet, abstract disp. em <http://www.firstmonday.dk/issues/issue8_4/wong/> (c. 29.03.2004). Trad. livre do inglês. 180 Inf. in O’BRIEN, T., “A Nova Zelândia e a ASEAN”, art. disp. em <http://www.mct.gov.br/CEE/revista/Parcerias3/novazela.htm> (c. 28.03.2004). 181 O site <http://planeta.terra.com.br/saude/icc.bh/brasil.htm> (c. 29.08.2002), do Instituto Cultural Chinês (Belo Horizonte), lista 41entidades culturais sino-brasileiras, entre associações culturais (6), escolas (11), centros religiosos cristãos e budistas (21) e academias de artes marciais (3).

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As notícias abrangem temas diversos, tais como a presença de colônias chinesas em

cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro e Londrina),182 apresentações culturais

(como as mostras "Guerreiros de Chian"183 e "A Viagem do Dragão: Arte e Imigração

Chinesa"184), a medicina tradicional,185 o Kung-Fu186 e até uma interação radical entre as

culturas chinesa e brasileira verificada no carnaval de 2003 em São Paulo, quando escola

de samba Águia de Ouro levou para o Sambódromo o enredo “A milenar cultura de um

povo, quem tem olho grande já entra na China”.187 Há, evidentemente, dezenas de outras

notícias e artigos enfocando aspectos diversos da cultura chinesa, tais como a

religiosidade, a arte marcial, a medicina, a arquitetura, os locais de visitação turística, a

economia e as relações internacionais; elas refletem um aparente aumento do interesse

dos brasileiros pelo "Celeste Império" e, sem dúvida, o crescimento da China como objeto

de atenção do mundo do século XXI. Como, porém, não estão diretamente relacionadas

aos imigrantes chineses que se instalaram no Brasil a partir da segunda metade do século

XX, não as incluímos em nosso universo de consulta.

Uma análise das matérias referentes à imigração chinesa recente para o Brasil mostra

que, de modo geral, os veículos brasileiros mostram sensibilidade para o tema,

observando-o a partir de campos temáticos bem definidos, como o da arte, da culinária,

da medicina e da arte marcial. No que respeita a esse último campo temático, observa-se

um embasamento em “informações consolidadas” -188 decorrentes da representação

182 São Paulo: “O Vasto Mundo...”, Vejinha On Line, op cit.; Rio de Janeiro: CLEMENTE, I., “Chineses invadem ‘área nobre’ da Rocinha”, in Folha de S. Paulo, ed. de 23.07.2000; Londrina (PR): MASCHIO, J., “‘Chinatown’ pode virar bairro fantasma no PR”, in Folha de S. Paulo, p. C8, ed. de 01.08.1993. 183 A exposição “Guerreiros de Chian”, realizada na Oca (cidade de São Paulo) entre 20 de fevereiro e 8 de junho de 2003, foi objeto de diversas matérias de jornais de todo o país, como a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e a Gazeta do Povo (de Curitiba). 184 GUARIGLIA, A., “Mostra traz arte e imigração na China”, in Folha de S. Paulo, p. E2, ed. de 26.11.1997. 185 “Chinês faz remédio com ervas brasileiras”, matéria sem autoria definida, publicada in O Estado de S. Paulo, caderno “Seu Bairro”, ed. de 08.12.1995. 186 SEBBA, J., “De olhos bem puxados, a revanche”, in VIP Exame, São Paulo: Editora Abril, n. 188, dez. 2001, p. 144. 187 In O Estado de S. Paulo, a matéria “Vai-vai e Gaviões se destacam” (sem autoria def., p. C1, ed. de 02.03.2003), informa que “numa das alas, um grupo de lutadores fazia exibição sincronizada de kung-fu” e que “em outra, ainda, mulheres com ascendência chinesa faziam evoluções com leques”. Outra matéria – “Águia de Ouro trouxe passistas chinesas para o Anhembi” -, publ. no site Globonews.com. (sem autoria def., in <http://www.globonews.globo.com/Globonews/article/0,6993,A496035-1332,00.html>, c. 02.03.2003), informa que a escola de samba trouxe “passistas chinesas enviadas pelo consulado da China no Brasil para representar o país”, e que “outro destaque foi uma ala com centenas de lutadores de kung-fu”. A letra do samba enredo da Águia de Ouro pode ser encontrada em <http://www.estadao.com.br/ext/divirtase/carnaval/programacao/sp_04.htm> (c. 02.03.2003). 188 O tema da representação e da auto-representação no Kung-Fu brasileiro é tratado em detalhes no cap. 4 desta dissertação.

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73

brasileira da arte marcial chinesa, construída a partir, principalmente, dos produtos da

indústria norte-americana de entretenimento que chegaram ao nosso país nos anos 70

(séc. XX) - que fogem de dados mais precisos sobre o tema.

Na matéria “De olhos bem puxados, a revanche”,189 o jornalista Jardel Sebba relata sua

vivência de um mês na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, como discípulo de Chan

Kowk Wai. A matéria revela coisas importantes, como o respeito que os alunos devotam

ao mestre e a extensão do universo marcial, que inclui métodos terapêuticos. Ainda

assim, se fixa em informações genéricas ou pouco precisas do tipo “o clima é totalmente

Zen” e “geralmente a figura é um velhinho temido e respeitado por todos”. Em várias

visitas a academias - inclusive à Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, base da matéria

de Jardel Sebba - não encontramos elementos suficientes para informar que o clima, lá, é

“Zen”. Trata-se de locais de prática onde, efetivamente, os alunos desenvolvem trabalho

marcial, sem grandes considerações pelo aspecto religioso. Ainda que as percepções – a

do repórter e a nossa – possam variam em função do olhar pessoal sobre o tema, vale

destacar que o trabalho na academia Sino-brasileira de Kung-Fu não inclui a meditação,

que é um dos pilares do Zen. No que se refere à figura do mestre como um "velhinho

chinês", vale observar que, atualmente, o número de mestres chineses em atividade no

Brasil é infinitamente menor que o de professores brasileiros.

Durante a recolha de matérias jornalísticas sobre a imigração chinesa recente, nos

chamou a atenção a ausência de matérias a respeito da religiosidade chinesa no Brasil. O

número de entidades de caráter religioso (budistas e cristãs) voltadas à colônia chinesa é

relevante e poderia, de per se, gerar pautas de interesse.190 Ainda que não possamos

comprovar cientificamente - uma pesquisa a esse respeito foge do nosso objeto de estudo

-, acreditamos que essa ausência reflete uma visão da sociedade brasileira sobre a

religiosidade oriental (especialmente no caso do Budismo) que não distingue aspectos

étnicos, linhas ou escolas.

189 SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144.

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74

3.4 - Interpretação dos conteúdos do capítulo

A ausência de dados documentais a respeito da presença de elementos marciais

chineses no Brasil do século XIX e da primeira metade do século XX (primeira fase da

imigração) não nos permite concluir sobre sua chegada ao Brasil. Ainda que seja tentador

pensar que a Capoeira – prática de caráter marcial tipicamente brasileira, nascida nas

senzalas e desenvolvida em cidades de caráter cosmopolita, como o Rio de Janeiro e

Salvador - possa ter recebido elementos do Kung-Fu a partir de imigrantes ou de

marinheiros chineses (as duas artes guardam semelhanças técnicas e até de “ritmo de

combate”), não há elementos que permitam comprovar tal assertiva.191

A constatação de que dois dos mestres incluídos em nossa pesquisa de campo são

emigrados da segunda fase nos permite concluir que existe relação direta entre a

imigração chinesa recente e a transplantação do Kung-Fu para o Brasil. A ausência de

uma quantidade significativa de informações a esse respeito em fontes acadêmicas e

jornalísticas brasileiras - que abordam temas como a imigração chinesa no período

colonial e recente, os hábitos e costumes chineses incorporados pela sociedade

brasileira, a religiosidade e a influência chinesa nas artes e arquitetura - nos leva a crer,

porém, que essa transplantação se deu de forma "pontual", ou seja, foi levada a termo por

uns poucos indivíduos que, a partir de um certo momento, passaram a disseminar sua

arte entre brasileiros e, com isso, se afastaram de um público "étnico". Em sua entrevista

para esta pesquisa, Chan Kowk Wai informou que, em um determinado período dos anos

60, deu aulas apenas para chineses no Centro Social Chinês de São Paulo. Ainda nos

anos 60 e também na década seguinte, graças, entre outros motivos, ao sucesso dos

filmes de Bruce Lee e da série de TV "Kung Fu" no Brasil, ele fundou uma academia

freqüentada por descendentes e não-descendentes de chineses. Essa passagem parece

ter implicado em um "distanciamento do fator étnico" provocado, sem dúvida, pela

visibilidade adquirida pela arte marcial chinesa e, certamente, pelas perspectivas

econômicas relacionadas ao ensino do Kung-Fu.

190 O site <http://planeta.terra.com.br/saude/icc.bh/brasil.htm> (c. 29.08.2002) relaciona 21 centros religiosos cristãos e budistas estabelecidos pela colônia chinesa brasileira. 191 Vale, aqui, o “Princípio da Navalha de Okham”. Para informações históricas sobre o desenvolvimento da Capoeira, ver CASCUDO, "Dicionário do Folclore Brasileiro", op. cit., p. 241 a 243.

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75

A percepção de que o conhecimento marcial não é uma característica necessária ao

universo semântico do "imigrante médio", e de que muitos dos imigrantes guardam maior

distância em relação à arte marcial do que os brasileiros praticantes, permite concluir que

a importância do conjunto da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o

Brasil é relativa. Permite concluir, também, que a arte marcial não é um elemento de

construção da identidade étnica chinesa no Brasil; ela pode ser incluída, talvez, na

representação brasileira dos chineses. Um exemplo da representação brasileira de que

"todo chinês é um Bruce Lee" pode ser visto na matéria de Jardel Sebba.192

Se grande parte dos sino-brasileiros não participa do universo de prática do Kung-Fu no

Brasil - à exceção dos mestres originários que ainda ministram aulas, bem como de um

certo número de interessados (concentrados na cidade de São Paulo) -, pode-se inferir

que não há tensão na relação entre os emigrados chineses e os brasileiros que buscam a

praticar arte marcial chinesa. Se essa tensão ocorre, ela se dá no nível mestre-discípulo,

ou seja, na empatia que faz com que um aceite (ou rejeite) o outro. Esse é um elemento

de caráter pessoal, que vai além, portanto, da tensão étnica.

A ausência de tensão entre emigrados e brasileiros em relação à transmissão da arte

marcial chinesa nos leva a acreditar na existência de implicações para o Kung-Fu

brasileiro. A primeira delas, sem dúvida, diz respeito à apropriação da prática pelo público

não-chinês e ao caráter inclusivo por ela assumido ao longo do tempo. Informações

recolhidas em conversas com a presidente da Federação Paranaense de Kung-Fu, Eliane

Pontes Cardoso,193 dão conta dos limites dessa inclusão: atualmente, no Paraná, há

professores de Kung-Fu mesmo em municípios aonde imigrantes chineses jamais

chegaram. Muitos desses professores nunca fizeram contato com mestres chineses ou

com técnicas tradicionais, tendo criado estilos a partir de uma leitura peculiar de revistas e

dos filmes norte-americanos e chineses de arte marcial. Atualmente, uma das principais

metas da Federação Paranaense de Kung-Fu é fazer com que esses professores

(conhecidos pejorativamente como "piratas" no meio marcial) se graduem em estilos

reconhecidos pela Confederação Brasileira de Kung-Fu e que, com isso, saiam da

"marginalidade marcial".

192 SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144. 193 Entrevista realizada em dezembro de 2003, em Curitiba.

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76

A segunda implicação, decorrente da primeira, se refere a mudanças mais rápidas no

universo semântico do Kung-Fu, com efeitos, por exemplo, sobre os elementos religiosos

nele presentes. Ainda que os mestres originários ensinem conteúdos tradicionais e

deixem subentendida a determinação de que seus alunos brasileiros aceitem e respeitem

os elementos semânticos replicados, há que se considerar que essa cobrança se dá num

nível diferente da que existiria se a arte marcial fosse ensinada, por exemplo, em um meio

étnico, onde a presença de "muitos olhos chineses" poderia implicar em uma necessidade

de mergulho na ortodoxia. Há que se considerar ainda que, em um meio étnico, o acesso

a informações "de raiz" é maior: ao ter dúvidas sobre um termo ou conceito transmitido

pelo mestre, o aluno poderia tentar esclarecê-las junto a sino-brasileiros que estivessem

em uma situação de maior proximidade.

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77

CAPÍTULO 4 - DE BRUCE LEE À INTERNET - REPRESENTAÇÃO E AUTO-

REPRESENTAÇÃO NO KUNG-FU BRASILEIRO

4.1 – Considerações Preliminares

A formação de uma comunidade de praticantes de Kung-Fu no Brasil não se baseou

apenas em mestres chineses. A presença chinesa, apesar de antiga na comparação com

a de outras etnias, deixou marcas menos aparentes entre nós. Considerando a arte

marcial como uma fração do universo cultural chinês, pode-se deduzir que o número de

mestres originários é pequeno. Seriam eles os responsáveis pelo sucesso do Kung-Fu no

Brasil? Em parte sim, fundamentalmente no que tange à transmissão de conteúdos de

caráter corporal. Mas, como será possível observar neste capítulo - que trata da

representação/auto-representação194 na arte marcial chinesa - a indústria do

entretenimento e, a partir dela, a oferta local de produtos de Kung-Fu, também

desempenharam um papel importante para a instalação desse subuniverso cultural.195

Apesar da presença chinesa nas produções cinematográficas dos anos 60, vale lembrar

que, no Ocidente, predominaram as produções norte-americanas, ou, então, filmes

chineses lidos pelo mercado dos Estados Unidos e, a partir daí, replicados para outros

países. Isso determinou uma releitura dos conteúdos da tradição, com mudanças no

universo semântico das artes marciais neste lado do mundo.

Em nossa pesquisa elencamos, inicialmente, fontes da "primeira onda" da arte marcial

chinesa no Brasil, que vai dos anos 70 até o início dos anos 80. As demais fontes se

referem à segunda metade dos anos 80 e aos anos 90. Vale observar que o número de

documentos que compõe o universo da representação e, principalmente, da auto-

representação dentro da arte marcial chinesa no Brasil, é relativamente extenso. Por

conta da dimensão desta dissertação, buscamos reunir exemplos que pudessem

representar esse universo - e suas principais características - de forma emblemática.

194 A afirmação de um universo semântico diverso do da realidade-padrão implica na geração de um subuniverso (caracterizado pela diferença) ou de uma subcultura (caracterizada pela condição marginal). Ela gera representação e auto-representação. Cf. BERGER, P. & LUCKMANN, T, "A Construção Social da Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 247 p., p. 35 a 46 e 117 a 126. 195 Ver MEYERS, et. al., "From Bruce Lee to the Ninjas – Martial Arts Movies", 1ª ed., Nova Iorque: Carol Publishing Group, 1991, 256 p., p. 45 a 58 e p. 61 a 162.

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4.2 – Anos 70 do século XX - O "primeiro sangue" do Kung-Fu no Brasil

Os anos 70 foram marcados pelo surgimento, no Ocidente, de produtos culturais

relacionados à representação no Kung-Fu: filmes e séries televisivas, histórias em

quadrinhos, músicas e publicações populares. A presença desses produtos levou

pesquisadores a identificarem a arte marcial chinesa como fenômeno transcultural, ou

seja, que já deixou os limites de uma cultura nacional e foi apropriado (e realimentado)

por fontes culturais diversas.196 Diferentemente de produtos anteriores voltados à

representação da cultura chinesa, marcados pelo estranhamento e pelo preconceito

racial,197 eles se centraram na marcialidade e em valores considerados nobres pela

sociedade ocidental, como habilidade marcial, sabedoria, coragem e honra. Dentre os

produtos culturais dessa fase estão os relacionados a Bruce Lee, a série de TV "Kung-

Fu", o filme "Shaolin Temple", quadrinhos e livros.

4.2.1 - "Tranqüilo e Infalível como Bruce Lee"

As "sessões Faixa Preta" nos cinemas dos anos 70198 influenciaram muitos professores

brasileiros de Kung-Fu. Um exemplo é Ariovaldo Veiga, co-autor do livro "Kung Fu Shaolin

do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati".199 Em um artigo disponível na internet, ele dá

o seguinte testemunho: “(...) atraí-me pelo Kung Fu primeiro pelos seus aspectos marciais

e somente depois pelos seus aspectos filosóficos: Os aspectos marciais começaram a me

atrair nos filmes que eram exibidos em Piracicaba na década de 70, onde encontrei meus

primeiros ídolos na arte (...)”.200

Veiga dá outras pistas sobre a construção do universo marcial-filosófico dos professores

brasileiros de primeira geração: cita a revista esotérica “Planeta” e autores como Jacques

Bergier ("O Despertar dos Mágicos"), Huberto Rohden (tradutor do "Tao Te Ching"),

196 Ver HUNT, L., "Kung Fu Cult Masters - From Bruce Lee to Crouching Tiger", 1ª ed., Londres: Wallflower, 2003, 229 p. 197 Um exemplo é "Fu Manchu", de Sax Rohmer. Ele é "o perigo amarelo encarnado em um só homem", seg. MAC DONAN, K., "Le Maitres de L´Etrange", 1ª ed., Paris: Éditions Atlas, 1985, 244 p., p. 137. Outro vilão, Ming de Mongo (de 1934, por Alex Raymond), possui nome chinês e traços orientais. Para Ming de Mongo, ver <http://www.kingfeatures.com/features/comics/fgordon/about.htm> (c. 04.01.2004). 198 Entre 1970 e 1973, trezentos filmes de Kung-Fu foram lançados no mercado internacional. Cf. HUNT, "Kung Fu Cult...", p. 3. 199 CHAN, W., e VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati." 1ª ed., São Paulo: Biopress, 1995, 118 p. 200 Art. disp. em <http://ariovaldoveiga.sites.uol.com.br/minha_historia/minhahistoria.htm> (c. 10.08.2003).

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79

Michael Minick ("A Sabedoria do Kung-Fu") e Lin Yutang ("A Sabedoria da Índia e da

China"). Refere-se, ainda, à série de TV "Kung-Fu", identificando-a como o "golpe de

misericórdia" para sua opção marcial.

Nesse cenário de "encantamento" dos primeiros praticantes brasileiros, um personagem

desempenhou um papel extraordinário: Bruce Lee (Lee Jun Fan, nascido em novembro

de 1940 em São Francisco, EUA).201 No artigo "Trinta Anos sem Bruce Lee",202 o

presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, Marcelo Janot, captou

de maneira exemplar o papel representado por Bruce Lee (fig. 17 e 18)203 para a formação

do "ideário filosófico-religioso" no Kung-Fu brasileiro: "Assim como James Dean, Bruce

Lee encarnou dentro e fora das telas o mesmo personagem. E se Dean ficou marcado pra

sempre como o rebelde sem causa, Lee foi imortalizado como sinônimo da força e da

filosofia zen das artes marciais.”204

A morte de Lee em julho de 1973, três semanas antes da estréia, nos EUA, de “Enter the

Dragon” (no Brasil, “Operação Dragão”), não impediu o ingresso de suas antigas

201 “To most of the world, the martial arts movie can be summed by one name: Bruce Lee. It was he, more than anyone else, who established the power of the genre internationally.” (MEYERS, et al., "From Bruce Lee ... ", p. 13). 202 Art. disp. em http://www.graciemag.com/edicao/73_brucelee.shtml > (c. 10.10.2003). 203 Fig 17, acervo do autor. Fig. 18 extraída de INSIDE KUNG-FU, Burbank (Califórnia), C.F.W. Enterprises, vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 42.

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produções no Ocidente205 e nem a produção, a partir de fotogramas inéditos, de novos

filmes estrelados por ele.206 Em 1993, Hollywood lançou “Dragon: The Bruce Lee

History”.207 Ainda nos anos 70, o ator também foi lembrado na música: indiretamente, em

“Kung-Fu Fighting”, de Carl Douglas, (“Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were

fast as lightning …”)208 e diretamente em “Um Índio”, de Caetano Veloso (“... tranqüilo, e

infalível, como Bruce Lee ...”). Nos anos 80, os movimentos do ator e os cenários de seus

filmes inspiraram jogos eletrônicos criados especialmente para casas de fliperama.209

A importância de Bruce Lee para o Kung-Fu brasileiro pode ser vista, ainda, em revistas

lançadas nos anos 70 e 80.210 Nelas é reforçada a dimensão "mítica" do artista. Não há,

aí, referências diretas à religiosidade chinesa.211 As histórias e os filmes de Bruce Lee

parecem remeter, sim, às sagas heróicas de caráter universal.212

4.2.2 – “Kung-Fu” – A televisão brasileira como porta de entrada para os monges de

Shaolin

A segunda grande fonte de inspiração do Kung-Fu brasileiro foi o seriado de TV "Kung-

Fu".213 Além de mostrar a arte marcial chinesa como algo atraente e “sábio”, a série

apresentou o tema Shaolin ao Brasil (fig. 19):214 um texto em uma homepage de academia

de Shaolin do Norte em Valinhos (SP), indica o papel da série na atração de praticantes:

“Até 1974 (...) a modalidade era lecionada exclusivamente para os chineses. ‘Os antigos

204 JANOT, M., "Trinta Anos...", op. cit. 205 “O Dragão Chinês” (“The Big Boss”, 1971), “A Fúria do Dragão (“Fist of Fury”/“The Chinese Connection”, 1972) e “O Vôo do Dragão” (“The Way of the Dragon”, 1972). 206 “Game of Death” ("Jogo da Morte", 1978), “Game of Death 2” ("Jogo da Morte 2", 1982). Entre 1979 e 2002 foram produzidos 12 filmes documentários sobre Lee (cf. <http://www.allbrucelee.com> c. 08.01.2004). 207 No Brasil, “Dragão: A História de Bruce Lee”. 208 Letra em <http://www.thesonglyrics.com/d_song_lyrics/carldouglas_lyric1.html> (c. 02.02.2003). 209 Como "Kung-Fu Master" (Japão, Irem Corp., 1984), "Yie Ar Kung-Fu" (Japão, Konami, 1985) e "Tiger Road" (Japão, Capcom, 1987). Ver HUNT, L., "Kung-Fu Cult Masters...", p. 184 a 200. 210 Tivemos acessos às revistas “Bruce Lee” (NSD/Impacto), “Bruce Lee – A vida do maior lutador de todos os tempos” (Editora Três), “Bruce Lee Kung-Fu” (Editora Três), “A História de Bruce Lee” (Zolar Editora Gráfica), “A Escola de Bruce Lee” e “Bruce Lee Especial nº 1” (Nova Sampa). 211 Essas obras se limitam à iconografia e a aforismos de autoria incerta. A exceção é "O Tao do Jeet Kune Do", do próprio Lee (LEE, B. "O Tao do Jeet Kune Do", 1ª ed., São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003, 239 p.), que faz referências ao Budismo. 212 Lee é o típico herói "campbelliano". Mito do herói cf. CAMPBELL, J., "O Herói de Mil Faces", 4ª ed., São Paulo: Pensamento, 1995, 416 p. 213 Exibido nos EUA entre 1972 e 1975 e, no Brasil, em 1975. Cf. <[email protected]> (c. 05.01.2004). Em 1975 a editora Livraria José Olímpio Editor produziu livros sobre o herói. Ver fig. 19. 214 Imagem extraída do site < http://www.retrotv.com.br/kungfu> (c. 06.01.2004)

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Mestres não queriam dar aulas para os brasileiros, mas com o sucesso do seriado na TV,

eles acabaram abrindo os olhos.’”215

Ainda que não disponhamos de

provas documentais, acreditamos

que o próprio termo "Kung-Fu"

tenha se estabelecido, no Brasil,

a partir da veiculação do seriado.

Sendo os mestres chineses

adeptos das formas “Kuoshu” e

“Wushu”, que outra fonte teriam

os brasileiros para a

denominação da arte marcial

chinesa? Há que se considerar,

porém, que, de olho no mercado,

os próprios mestres, a partir do

seriado de TV, tenham passado a

adotar o termo “Kung-Fu”.

Os episódios também fizeram a

primeira conexão entre

marcialidade chinesa e religião

em um produto cultural de massa.216 “Kung-Fu” apresentava a história de Kwai Chang

Caine,217 um mestiço sino-americano saído do mosteiro de Shaolin que, por volta de

1870, perambulava pelo Oeste americano. A série se caracterizou tanto pela simpatia

que os telespectadores acabavam nutrindo por Caine – misto de homem atormentado,

guerreiro e pacifista - quanto pelas associações entre arte marcial, religião e filosofia

oriental.218

215 Cf. <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/historia.html> (c. 05.01.2004). 216 Isso, apesar de produzidos por norte-americanos (Estúdio: ABC; roteirista: Ed Spielman). Ver <http://www.retrotv.com.br/kungfu> (c. 06.01.2004). Ver, tb., PILATO, H. "The Kung-Fu Book of Caine: The Complete Guide to TV's First Mystical Eastern Western" (1ª ed., EUA: Charles E. Tuttle Company, 1993, 200 p.) 217 Interpretado pelo ator não-chinês David Carradine. 218 Em flashbacks, Kwai Chang Caine era transportado para o mosteiro de Shaolin, onde ouvia sábias lições dos mestres Pô e Kan, interpretados pelos atores sino-americanos Keye Luke e Philip Ahn. Diálogos da série em <http://www.retrotv.com.br/kungfu/index2.html> (c. 05.01.2004).

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82

É difícil estabelecer a origem dos conteúdos religiosos de "Kung-Fu", mesmo porque os

roteiros eram produzidos por americanos não sino-descendentes. Ainda assim, o fato de

David Carradine ter se tornado um adepto do Kung-Fu é um belo exemplo de seu poder

de persuasão.

4.2.3 - "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao cinema de Kung-Fu

Em 1981, a República Popular da China produziu "The Shaolin Temple", produção que

transformou em astro o campeão chinês de Wushu Jet Li (Li Lian Jie, nascido em 1963

em Beijing).219 O enredo do filme difere das lendas tradicionais sobre o mosteiro:220 conta

a história de um garoto que, no séc. VIII (ou seja, durante a Dinastia Tang), foge da

escravidão e é recebido em Shaolin. Lá, aprende a lutar e, com ajuda dos monges, vinga

a morte do pai.221 Como era de se esperar de uma produção da China continental, os

aspectos religiosos foram reduzidos à iconografia; os monges foram mostrados como

homens que não abriam mão de lutar e de consumir vinho e carne.222

Qual a importância de "The Shaolin Temple" para a popularização do Kung-Fu? O filme

foi responsável pelo surgimento, na China, de uma crença renovada nas artes marciais do

mosteiro de Henan.223 Não é, pois, sem motivo, que os anos 80 foram marcados por uma

impressionante "redescoberta de Shaolin" na China continental, com reflexos mundiais.

Esse é, pode-se afirmar, um exemplo típico de transculturalidade: percebendo o sucesso

do cinema de Kung-Fu no Ocidente, o governo de Beijing resolveu “apostar suas fichas” e

resgatar um valor tido – pelo menos, durante a ainda recente Revolução Cultural - como

“execrável” por servir a um modelo político condenável (imperial) e por instilar

superstições e “rompantes subversivos” entre a população. A aposta, como veremos mais

adiante, deu excelentes resultados.

219 Cf. <http://www.netasia.net/users/sgc_wdi/biography.htm>, (c. 19.01.2004). 220 Sobre as lendas, ver cap. 2 da presente dissertação. 221 Sinopse em <http://www.netasia.net/users/sgc_wdi/movies/shaolin.htm> (c. 19.01.2004). 222 Esses hábitos aparecem em obras históricas como "A Notícia de Henan", de Wang Shixing (1595). 223 Seg. MEYERS et. al ("From Bruce Lee...", p. 140), o filme forçou Beijing a publicar um decreto proibindo estudantes de abandonar as escolas para viajar ao mosteiro de Shaolin!

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4.2.4 – Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental”

O mercado editorial brasileiro

aproveitou o boom marcial chinês

para publicar histórias em

quadrinhos sobre Kung-Fu. Foi o

que aconteceu com o “Mestre de

Kung Fu”,224 herói da Marvel criado

em 1973 por Jim Starlin e Steve

Englehart.225 As histórias se

baseavam em elementos religiosos

genéricos e na fantasia sobre os

poderes marciais do protagonista

Shang-Chi e de seu oponente, o

“redivivo” Fu Manchu.226 Shang-

Chi (fig. 20) 227 é filho de Fu Manchu. Esse "resgate de caráter" de pai para filho expressa

uma mudança, em termos de representação na cultura de massa, dos orientais: a arte

marcial e os "conhecimentos arcanos", antes voltados à conquista do mundo, agora eram

utilizados para salvá-lo.

Outra série da época - “Kung-Fu”228 - trazia quadrinhos e elementos de filosofia oriental e

técnicas marciais. Foi, pode-se afirmar, uma espécie de "proto-revista brasileira

especializada em Kung-Fu": o número cinco, por exemplo, trazia temas ligados ao

universo histórico, filosófico e religioso da arte marcial chinesa. O artigo “Tai Chi Chuan –

O Kung Fu Mental”, do pioneiro Marco Natali, aborda a origem do Tai Chi Chuan e sua

relação com a “força interior” (Chi). Nas páginas internas, o artigo “O que faz as artes

marciais surtirem efeito” (sem autoria) aborda a psicologia, ética e finalidade das artes

marciais.

224 “Shang-Chi, Master of Kung Fu”, publ. no Brasil pela Bloch e pela Abril Cultural. 225 Descrição do personagem em <http://www.toonopedia.com/shangchi.htm> (c. 08.01.2004). 226 Descrição de Fu Manchu em <http://www.geocities.com/marvel_megalomaniac/manchu/manchu.html> (c. 19.01.2004). 227 Imagens: esq., acervo do pesquisador; dir., "Kung Fu", , Rio de Janeiro, Editora Brasil-América, n.5, 1974, 50 p., p. 4. 228 "Kung Fu", op. cit. Escrita por Joe Gill e desenhada por Warren Satiler, a série foi publicada no Brasil entre 1974 e 1975.

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O autor explica como “anular psicologicamente o oponente”. O padrão "esotérico" do texto

pode ser observado no trecho: "Uma mente como água é calma e imperturbável qual a

superfície de um lago tranqüilo. As águas claras refletem imagens nítidas do oponente (...)

A desatenção de origem nervosa é como a nuvem que encobre a luz da lua." 229

As duas histórias em quadrinhos da mesma edição relacionam elementos históricos e

religiosos à arte marcial chinesa. “A Maldição do Mal”, por exemplo, se passa em 1890. A

China é apresentada como “(...) uma terra conturbada, vítima da cobiça de nações

ocidentais, de tratados desonestos, dividida por lutas internas entre o governo,

sociedades secretas e senhores poderosos (...)”.230 O herói, “Yang”, busca vingar a morte

do pai, vencer um vilão e libertar seu povo dos opressores ocidentais. O nome do herói

tem origem no Taoísmo.231

4.2.5 - Livros sobre Kung-Fu nos anos 70

Na esteira do sucesso no cinema e na TV, as editoras brasileiras investiram em livros

sobre Kung-Fu. Em nossa pesquisa, selecionamos dois títulos de muito sucesso do

período: "A Sabedoria Kung Fu" (1975),232 de Michael Minick, e "Kung Fu - Curso Básico

de Bastão" (1978),233 de Marco Natali (fig. 21 e 22).234 Os títulos reúnem elementos que

interessam ao nosso trabalho: são obras populares, de grande penetração junto ao

público; além disso, apontam para aspectos essenciais na formação do universo

semântico do Kung-Fu brasileiro: o primeiro segue por uma linha filosófica e, o segundo,

por uma pragmática de tratamento da arte marcial.235

229 Ibid., p. 27 e 28. 230 Ibid., p. 3. 231 Pouco antes de morrer, seu pai lhe diz - “Seja Yang para todos os homens! A fonte de calor, de luz e retidão!” ("Kung Fu", p. 4.) A filha do vilão chama-se Yin e é “o oposto de Yang... isto é, escuridão... Mal!” (p. 20). O Tao não é maniqueísta. Conceito de Tao em <http://www.wsu.edu:8080/~dee/CHPHIL/YINYANG.HTM>, (c. 09.01.2004). 232 MINICK, M., "A Sabedoria Kung Fu", 1ª ed., São Cristóvão (RJ): Artenova, 1975, 170 p. 233 NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico de Bastão", 1ª ed., São Paulo: Ediouro, 1978, 185 p. 234 Acervo do autor. 235 Essas linhas, como veremos à frente, viriam a caracterizar o universo temático das revistas especializadas dos anos 90 no Brasil.

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4.2.5.1 - "A Sabedoria Kung Fu"

"A Sabedoria Kung Fu" é um livro devotado à "espiritualidade" da arte marcial chinesa. A

obra foi escrita em 1974 e traduzida para o português no ano seguinte, no mesmo período

de veiculação da série "Kung-Fu" nos EUA e no Brasil. Um levantamento feito junto a

professores brasileiros de primeira geração mostrou que é tido como referência: três

professores - Ariovaldo Arruda Veiga (SP), Rogério Leal Soares (SC) e Jorge Jefremovas

(PR) citam trechos da obra e até distribuem cópias para seus alunos.

O livro é dividido em duas partes: a primeira traz o conceito de Kung-Fu ("O que é Kung

Fu", p. 9), desenvolvimento histórico ("A História do Kung Fu", p. 20), ética e

comportamento ("Costumes e Treinamentos Kung Fu", p. 37), estilos ("Técnicas

Populares de Kung Fu", p. 47), relação com a medicina ("Práticas Saudáveis de Kung Fu

e Medicina Chinesa", p. 71) e armas tradicionais ("As Armas Kung Fu", p. 79); a segunda

parte é reservada a uma vasta coleção de aforismos, atribuída a filósofos e à sabedoria

popular chinesa. Segundo o autor, seu conhecimento é essencial para o verdadeiro

praticante. "Os capítulos seguintes são um resultado de uma cuidadosa e detalhada

pesquisa nos pensamentos e provérbios chineses. (...) as citações que seguem são o

coração e a alma dos ensinamentos que motivaram os mestres de kung fu por milhares

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de anos."236 Boa parte dos aforismos é atribuída a mestres chineses como Mêncio,

Confúcio, Lao Tzu, Hui Hai e Shoo King. O autor não cita as obras de onde extraiu as

frases, o que dificulta a confirmação dos dados.

Contrariando a hipótese mais aceita pelas fontes acadêmicas, de que a arte marcial

chinesa é mais "instrumental" do que "ética", a obra procura incutir uma "nobreza Kung-

Fu" que só é encontrada nas obras da literatura Wusia e nos manuais populares chineses

de arte marcial.237 Isso pode ser visto na definição de Kung-Fu,238

O verdadeiro kung fu, não a idéia que normalmente fazemos, é uma coisa especial, e assim sendo não é definida nem rotulada. O kung fu real é um Estado de espírito (...) Se quiséssemos reduzir o kung-fu (...) ele se pareceria com o que o povo pensa que é - um método de defesa pessoal. (...) o kung fu se expandiu desses limites há milhares de anos.

e no subtítulo "O Herói Kung Fu", que compara esse personagem Robin Hood ("...ele

tomava dos ricos para dar aos pobres. Grosseiramente um misto de cavaleiro de

armadura, um bandoleiro do Oeste, e um filósofo taoísta, ele captou a atenção do mundo

inteiro...”) e o conecta ao mundo das artes, letras e religião ("Geralmente um budista ou

taoísta... tinha como principal objetivo alcançar uma natureza tranqüila interior pelo

completo controle da mente e do corpo"). O embasamento dessa descrição no herói

Wusia nos parece clara.

O livro também se refere ao dia-a-dia das antigas academias de Kung-Fu239 e ao seu

modelo familiar. "A escola torna-se a família do aluno e há uma estrutura rígida a que

todos devem obedecer. O professor (o mestre só ensina a alunos avançados) é chamado

de instrutor pai (...) Os alunos veteranos são conhecidos por irmãos mais velhos - em

virtude de sua idade atual." Ainda que se possa, por hipótese, associar essa estrutura à

de clãs militares, grupos sectários ou mesmo clericais, as fontes acadêmicas disponíveis

não permitem avançar nesse sentido. O contato com mestres chineses no Brasil também

não permite vislumbrar traços desse tipo de estrutura.

Por fim, outro aspecto interessante da obra em relação "modelo espiritual" de Kung-Fu é o

da crença em práticas esotéricas - exercícios corporais-respiratórios-espirituais que

236 MINICK, "A Sabedoria...",p. 89 e 90. 237 Sobre a literatura Wusia, ver nota 3. 238 MINICK, "A Sabedoria..., p. 9. 239 MINICK, "A Sabedoria...", p. 37 a 44.

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dariam ao praticante um poder sobrenatural. Ele cita as técnicas da "Pata do Dragão"

(que transforma os dedos em “pontas de lança”), "Testículos Contráteis" (recolhimento

dos testículos à cavidade abdominal através de técnicas respiratórias, visando sua

proteção) e o "Punho do Poço" (que permitiria matar oponentes à distância pelo

movimento das mãos).240 As informações parecem se basear em crenças populares do

Kung-Fu. Crenças semelhantes chegaram ao Brasil na forma, por exemplo, do "Chi Kung

da Palma de Ferro", prática que soma técnicas respiratórias, exercícios de fortalecimento

das mãos e uso de “remédios de ervas” aplicados na pele.

Minick também reserva espaço para a História do Kung-Fu. Mais uma vez, parece se

basear em obras populares chinesas ou em informações da tradição genérica da arte

marcial chinesa. Muitas delas não possuem respaldo nas fontes acadêmicas; outras

encontram comprovação. Em "A História do Kung Fu",241 ele reconhece a dificuldade em

estabelecer um histórico, mas, ainda assim, não deixa de apresentá-lo. Dentre os dados,

se destacam a origem das primeiras formas, "há aproximadamente 5.000 anos", o papel

do “Imperador Amarelo”242 na criação da arte marcial e o surgimento de uma arte marcial,

denominada "Go Ti" por volta de 2600 a.C. Sobre a relação arte marcial x religião, cita

monges eruditos que, no século V d.C., teriam descrito o "Cong Fu"; cita, também,

Bodhidharma, que teria ensinado as primeiras técnicas marciais aos monges de Shaolin.

Ainda sobre o mosteiro, relata a participação dos monges "no combate a uma invasão"

durante a Dinastia Tang, no séc. VIII (p. 27), dá nomes de monges heróis e informa que

seu desempenho em batalha lhes teria rendido fama em toda a China.

A informação de que a arte marcial teria nascido há "5000 anos" não se confirma.243 As

referências ao “Imperador Amarelo” e a uma arte marcial chamada "Go Ti" também não

encontram suporte nas fontes acadêmicas (o Imperador Amarelo pertence à História

mítica da China; ainda assim, não é associado à marcialidade). A informação de que

exercícios de "Cong Fu" teriam sido descritos no século V parece correta, uma vez que o

240 Ibid., p. 65 a 69. 241 Ibid., p. 20 a 35. 242 Figura histórico-lendária que teria governado a China antes do apogeu da casa de Shang. Sua Dinastia, conhecida como Xia ( ), teria sido responsável pela transmissão de dados essenciais ao desenvolvimento da civilização chinesa. 243 Ver PEERS. & MCBRIDE, "Ancient Chinese Armies...”, p. 4 a 13. Ver, tb., a "linha do tempo" apresentada no cap. 2 desta dissertação.

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período indicado é o mesmo aceito pelos pesquisadores como sendo de fusão entre

técnicas medicinais e corporais budistas e taoístas.

A citação de Bodhidharma como precursor das artes marciais em Shaolin não encontra

respaldo nas fontes acadêmicas, mas apenas nas tradicionais.244 Sobre a participação

dos monges em combate nos sécs. VII e VIII, a informação possui um fundo de verdade.

Como abordado no cap. 2 desta dissertação, datam desse período os primeiros registros

de combates envolvendo monges de Shaolin. Ao contrário do que informa Minick, porém,

esses clérigos não teriam "combatido uma invasão", mas sim bandidos e um candidato a

sucessor da Dinastia Sui; o texto afirma, ainda, que a vitória teria conferido "fama

nacional" aos monges; de acordo com as fontes acadêmicas, essa fama só viria a surgir,

de fato, durante o período Ming Tardio.

Minick também se refere à destruição do mosteiro de Shaolin por tropas Qing no século

XVII e reproduz a informação da tradição do Shaolin do Norte, de que monges fugitivos

teriam disseminado suas artes de guerra pelo sul da China. Essa história não encontra

respaldo nas fontes acadêmicas; aparentemente, está associada aos mitos de criação

das tríades.245

4.2.5.2 - "Kung Fu - Curso Básico de Bastão"

O livro de Marco Natali é mais simples em relação aos aspectos apontados por Michael

Minick. Mais devotado às técnicas corporais, reserva quatro páginas a aspectos

históricos. É obra importante para o nosso estudo por ter sido escrita por Marco Natali,

"mestre" que afirma praticar Kung-Fu desde 1962 e que, sem dúvida, é o mais prolífico

autor de livros sobre o tema no Brasil.246 Além disso, foi o criador da "Fraternidade Kung-

Fu",247 responsável pela popularização da arte marcial chinesa através de cursos por

correspondência.

Em "Kung Fu - Curso Básico de Bastão", as referências à escolha da arma e a seu

passado são pragmáticas: "Por que ele foi escolhido entre as trinta e quatro armas

244 Ver HENNING, S., "Reflections on a Visit... ", p. 90 a 101. 245 Ver cap. 2 desta dissertação. 246 Natali publicou 18 livros. Ver <http://www.angelfire.com/biz/chineseboxing/> (c. 03.02.2004).

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diferentes? Principalmente porque seus movimentos são clássicos e, portanto, básicos

para o aprendizado de outras armas." 248 É interessante a referência a "trinta e quatro

armas" clássicas: segundo outros autores devotados à tradição, ela seriam 18.249 Sobre a

História do bastão, Natali deduz que ele surgiu na pré-história250 e informa que "no império

chinês já era utilizado desde tempos imemoriais e estava incluído nas armas da infantaria

a [sic] mais de 2.000 anos antes de Cristo." É difícil provar uma informação como essa

com base em registros históricos. Natali ainda faz referências a Shaolin, informando que,

como no mosteiro era vedada a entrada de armas, o bordão dos monges se converteu em

instrumento de defesa. Ele afirma ainda que as demais armas do Kung-Fu ingressaram

no mosteiro na Dinastia Qing, quando oficiais Ming lá se refugiaram: "Tendo achado

refúgio no templo, os oficiais aprenderam o método Shaolin e ensinaram o que sabiam

das armas utilizadas no exército chinês." Fontes históricas indicam que os monges

usavam tridentes, lanças e bastões dotados de ganchos desde a Dinastia Ming; sobre o

intercâmbio entre monges e militares, as fontes acadêmicas observam que ele pode ter

existido, mas não há elementos que mostrem que isso teria acontecido durante um

período de clandestinidade dos oficiais Ming. O livro traz ainda instruções para que o leitor

construa seu próprio bastão. Não há referências sobre filosofia e religiosidade associadas

à arte marcial.

4.3 - Produtos culturais recentes - passagem para a auto-representação

Nos anos 80 e 90, com o fim do boom Bruce Lee e a abertura de academias por

professores não-chineses, houve uma consolidação do universo brasileiro de Kung-Fu.

Parte da produção cultural sobre arte marcial chinesa foi nacionalizada, com revistas,

apostilas, livros e sites desenvolvidos em português por e para brasileiros. Esses produtos

se inserem tanto no campo da representação - o Kung-Fu visto "de fora" - quanto no da

auto-representação - como eu, como praticante, me insiro nesse universo. Como nosso

objeto de pesquisa se refere ao estilo Shaolin do Norte, buscamos centrar o foco, na

medida do possível, em produtos a ele relacionados.

247 A "Fraternidade" teria mudado de nome para "Chinese Boxing Society" em anos recentes. Cf. <http://www.angelfire.com/biz/chineseboxing/> (c. 03.02.2004). 248 NATALI, M., "Kung Fu... ", p. 13 e 14. 249 MING, Y., "Ancient Chinese Weapons ...", p. 2. 250 NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico...", p. 17.

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4.3.1 – Revistas Especializadas

A consolidação de um mercado de Kung-Fu implicou na produção de revistas

especializadas. Nelas, de modo geral, as artes marciais são tratadas de modo genérico

(há, porém, publicações voltadas só ao Kung-Fu). Em boa parte dos casos elas não

possuem vida longa, seguindo uma política de vendas "popular" ou de produção a partir

dos recursos financeiros disponíveis. Um indício dessa política editorial está nas capas

das revistas por nós pesquisadas: a maioria não traz número ou data. Esse dado ganha

relevo quando comparado aos de revistas dos EUA, que possui publicações como a

revista “Inside Kung-Fu” (31 anos em circulação), e da França, com “Karate Bushido” (30

anos). A situação no Brasil mudou em anos recentes graças à afirmação internacional do

"Brazilian Jiu-Jitsu", que já possui títulos específicos, como “Gracie Magazine”: à época

da realização dessa dissertação, já havia chegado à edição de número 84.251

4.3.1.1 – "Pragmatismo" x "Tradição" nas revistas especializadas brasileiras

A leitura das revistas permite estabelecer uma divisão temática: de um lado estão as

matérias “pragmáticas” (técnicas/corporais) e, do outro, as "tradicionais"

(filosóficas/religiosas). As do primeiro grupo ligam a marcialidade à modernidade e

abrangem elementos como aplicação das técnicas, relação arte marcial x saúde e o

calendário de competições. As do segundo grupo, que interessam mais diretamente ao

nosso estudo, ligam a marcialidade à História, Ética, Filosofia e às religiões orientais. Tais

matérias podem ser subdivididas em duas linhas: de um lado estão as relacionadas à

História dos estilos e, do outro, as relacionados aos temas filosóficos, éticos ou religiosos.

4.3.1.2 – “Oriente”

Iniciamos o estudo com “Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental”,252 editada

pelo entusiasta de artes marciais Gilberto Antonio Silva e vendida em academias e

251 Site da revista: <http://www.graciemag.com/> (c. 10.01.2004). 252 "Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental", São Paulo, Núcleo de Estudos Orientais, 1996, edições de 1 a 10; 1996 (uma edição), 1997 (duas), 1998 (duas), 2000 (três), 2001 (uma) e 2002 (uma).

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pela.253 Ao todo, a publicação trouxe 115 reportagens, das quais 25 relacionadas ao

Kung-Fu e 20 ligadas a temas do segundo grupo da nossa divisão temática.

A leitura revela o respeito do editor pela tradição oral e

sua percepção da função documental da publicação:

das dez edições, nove abriram espaço a entrevistas

com mestres (fig. 23).254 Foram ouvidos cinco mestres

originários e três brasileiros. Um exemplo pode ser

visto na entrevista com o grão-mestre Chan Kowk Wai:

- O: Como o aluno estreante deve treinar o Kung-Fu? Dizem que na China o aluno não pode perguntar, mas apenas deve seguir o mestre. - MC: Na China o aluno pode começar a fazer perguntas após 3 anos de prática. Antes disso, ele deve apenas acompanhar os movimentos do professor, já que não conhece nada do estilo. Depois de 3 anos ele já sabe alguma coisa e pode perguntar. (...)255

É interessante notar que os mestres entrevistados e consultados não se aprofundaram no

tema religião. Outros materiais tiveram como base as opiniões do próprio editor. Diferente

das outras publicações pesquisadas, “Oriente” foi além dos temas comuns “técnicas” e

“História dos estilos”. Isso foi feito em ensaios do próprio editor sobre temas como

interpretação de ideogramas nas artes marciais e os “mitos” que rondam as academias

brasileiras. Esses artigos, aparentemente, refletem a vivência marcial do próprio Gilberto

Silva: o conteúdo é fortemente autoral, baseado na convivência com praticantes e em

leituras; ele reforça o sentido de auto-representação, já que se trata de um praticante

falando sobre si para outros praticantes. Um exemplo é o ensaio “Filosofia ou Religião?”,

em que Gilberto Antonio Silva afirma que é possível treinar uma arte marcial sem ferir

preceitos religiosos:

Você pode praticar artes marciais e estudar filosofia oriental independente da sua religião, qualquer que ela seja. (...) Para isso devemos saber o que é RELIGIÃO e o que é FILOSOFIA. (...) Pelo que acabei de mostrar, nem toda filosofia é necessariamente uma religião, mas toda religião tem uma filosofia predominante, um conjunto de regras e leis que determinam o funcionamento do Universo. (...) Na verdade, todas as artes marciais orientais

253 No site <http://www.budo-online.com/inicial.htm> (c. 12.01.2004), que possui a mesma proposta da revista. 254 “Oriente”, n.10, 2002. 255 "Oriente", n. 1, p. 12 e 13.

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estão profundamente embebidas nessas filosofias. (...) Você vai encontrar diversos paralelos entre estes ensinamentos e os da sua religião, não importa qual seja. (...).256

Outro exemplo é “Demolindo Mitos nas Artes Marciais”, em que aborda a questão do

“espírito crítico” dos praticantes. Silva questiona informações comuns ao universo das

artes marciais, como a tradução de "Kung-Fu" ou a antigüidade do Jiu-Jitsu. Para isso,

parece se basear no próprio conhecimento. Em nenhum momento há referências diretas

a fontes bibliográficas, o que, de certa forma, faz com que a obra recaia no objeto que

critica – a falta de critério em relação às informações:

Não sou nem pretendo ser o dono da verdade. O que você vai ler a seguir é o resultado de toda uma vida dedicada ao estudo da História e Filosofia das Artes Marciais. Qualquer pessoa que tenha alguma informação que contradiga o que está aqui, que escreva para esta revista. Se forem argumentos sólidos e bem baseados, com referências bibliográficas ou de outro tipo, e principalmente que possam ser checadas, eles serão publicados. Não adianta nada aparecerem com aquela velha história de que 'aprendeu assim de um mestre oriental desconhecido mas muito sábio e velhinho que, infelizmente, já morreu.'257

Em “As Escolas Filosóficas da China” ele apresenta o Budismo, Confucionismo e

Taoísmo. Dessa vez, utiliza referências bibliográficas mais próximas do universo

acadêmico, tais como "Os Analectos de Confúcio" (publ. Martins Fontes), "Chuang Tzu -

Escritos Básicos" (Cultrix) e "A Sabedoria do I Ching: Mutação e Permanência", de

Richard Wilhelm (Pensamento), além de obras de autores como Ricardo M. Gonçalves

("Textos Budistas e Zen-Budistas") e Antonio Renato Henriques ("Iniciação ao

Orientalismo"). Note-se que, aí, não aparecem informações obtidas de mestres

originários. Na abordagem de outros temas do universo filosófico, ético e religioso das

artes marciais (e do Kung-Fu), Gilberto Antonio Silva segue pelo mesmo caminho,

citando as referências em alguns casos, mas, principalmente, valorizando as próprias

percepções.

A partir da divisão temática estabelecida no item 4.3.1.1, pode-se afirmar que, na revista

“Oriente”, as matérias são abordadas da seguinte maneira: em relação às do “primeiro

grupo” (arte marcial e modernidade), há um equilíbrio em relação às fontes (mestres,

professores e o próprio editor); em relação às matérias da primeira linha do segundo

grupo (origem e História dos estilos), são feitas com base na tradição oral (ensaios de

mestres e professores, entrevistas, artigos baseados em entrevistas); por fim, em relação

às matérias da segunda linha do segundo grupo (temas filosóficos, éticos e religiosos que

256 Ibid., n. 2, jul./97, p. 49 e 50. 257 Ibid., n. 4, maio/jun. 1998, p. 12.

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compõem o universo da arte marcial), elas são produzidas com base nos conhecimentos

pessoais, leituras e visão de mundo do editor Gilberto Antonio Silva.

4.3.1.3 – "Kiai", “Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!"

Outras publicações merecem destaque: “Kiai”,258 “Kung Fu Defesa Pessoal”259 e “Trump!

A Sua Revista de Luta”.260 A leitura revela os níveis de abordagem do Kung-Fu: se em

“Oriente” ele era estabelecido por um adepto das artes marciais preocupado em

aprofundar conhecimentos, nas outras revistas esse critério varia. A publicação que mais

se aproxima da linha de “Oriente” é “Kiai”, que teve o próprio Gilberto Silva como

consultor. A que está mais longe, por motivos que serão vistos à frente, é “Trump!...”.

A principal característica de "Kiai" era a de promover a arte marcial em um contexto

moderno. A revista, que parou de ser publicada nos anos 90, investia no calendário

desportivo, com ampla cobertura de competições. Apesar da linha editorial estar centrada

em matérias do nosso chamado "primeiro grupo", "Kiai" também reservava espaço para

filosofia, ética e religião. Tais temas eram abordados em entrevistas com mestres e

artigos centrados na tradição oral. Um bom exemplo pode ser visto no artigo “Ng Long

Pakua Kuan”, de Roberto Giovanni:

Existem muitos livros que contam a história e as técnicas de vários estilos de Kung Fu, porém, divergem entre si (...) existe uma maneira mais precisa e correta de se obter informações sobre a história e as técnicas dos estilos de Kung Fu e que dirime as dúvidas porventura existentes: é a tradição oral, aquela que é transmitida pelos mestres aos discípulos durante sucessivas gerações.261

A tradição oral também aparece com força em “Kung Fu – Defesa Pessoal”,262 que

apresentou os sete estilos mais populares no Brasil. Deles, cinco – “Shaolin do Norte”,

“Fei Hok Phai”, “Garra de Águia”, “Hung Gar” e “Serpente Divina” (Shen She Chuen) -

foram apresentados mestres originários e um – “Wing Tsun” - por um discípulo de

primeira geração.263

258 "Kiai – Revista Oficial das Artes Marciais", São Paulo, Biopress, n.d. 259 "Kung Fu Defesa Pessoal", São Paulo, Grupo de Comunicação Três S/A, n.1, n.d., 66 p. 260 "Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", Especial Kung-Fu, São Paulo, Editora Escala Ltda., n.d., 62 p. 261 "Kiai", n. 17, 1994, p. 40 262 "Kung Fu Defesa Pessoal”, op. cit. 263 O "sétimo estilo" abordado na revista é o Wushu olímpico.

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Nos textos, o elemento religioso apareceu relacionado à condição clerical dos fundadores

dos estilos. No texto sobre o Shaolin do Norte, na frase: "Com o passar dos anos, devido

ao estado físico debilitado dos monges, foi necessária a implantação de exercícios que

formaram a base do Shaolin Kung Fu". No texto sobre o Fei Hok Phai, associado ao

mosteiro do "Shaolin do Sul"; no texto sobre o Garra de Águia, na ascendência de seu

fundador, que teria sido aluno de um mestre que, por sua vez, teria aprendido técnicas

marciais em Shaolin; sobre o Hung Gar, na reprodução de mitos de criação relacionados

às tríades: o estilo teria sido criado pelo discípulo de um monge sobrevivente do incêndio

de Shaolin, em 1734;264 no texto sobre o Wing Tsun, na atribuição da criação do estilo a

uma decorrência de um incêndio que teria atingido Shaolin durante a Dinastia Qing. O

único texto que foge à "fórmula Shaolin" é o do estilo Shen She Chuen, que teria sido

criado pelo discípulo de um monge do "Templo do Bambu". Presume-se que esse templo

seja o localizado a doze quilômetros de Kunming (Yunan), construído no séc. XIII.265

A revista também fez uma concessão ao que chamamos de “dados gerais de Kung-Fu”.

Esses "dados" - que constituem um importante elemento teórico resultante de nossa

pesquisa - nascem da fusão de informações obtidas pelos praticantes em revistas, livros

populares e em conversas com mestres/praticantes. Na replicação oral, essa "mistura"

ganha legitimidade e passa a representar, mesmo, uma "nova-velha tradição" (ou seja,

uma tradição tida como ancestral, mas constituída de elementos recentes, ou da fusão

recente de outras tradições). No caso de "Kung Fu Defesa Pessoal", esses dados surgem

nas matérias sobre a História das artes marciais chinesas e sobre origem do Kung-Fu de

Shaolin.266 Nelas pode-se conhecer, "em detalhes", as artes marciais chinesas desde a

pré-história até o desenvolvimento do Kung-Fu pelos monges budistas. Entre os

elementos de destaque na "apresentação" do Kung-Fu de Shaolin está o seguinte "código

de conduta":

1. Seja hábil. Os movimentos devem ser variados, não telegrafados e flexíveis. 2. Seja discreto. Derrote seu oponente usando a própria força, 'assim, você poderá derrubar uma pessoa que pesa 100 kg, usando apenas uma força que move 0,5 kg'. 3. Seja corajoso. Ataque sem hesitação sempre que houver oportunidade.

264 Ver cap. 2. 265 "Kung-Fu, Defesa Pessoal", p. 8 (Shaolin do Norte), p. 17 (Fei Hok Phai), p. 22 (Garra de Águia), p. 30 (Hung Gar); p. 37 (Wing Tsun) e p. 45 (Shen She Chuen). Templo do Bambu in <http://www.sinohost.com/yunnan_travel/kunming/bamboo.html> (c. 19.01.2004). 266 "Kung-Fu Defesa Pessoal", p. 5 a 7. As matérias não são assinadas.

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4. Seja rápido. O oponente pode ver sua mão, mas não seu soco. 5. Seja impetuoso. Golpeie os pontos vitais. 6. Seja prático. Todos os movimentos possuem um fim estratégico. 267

O autor não diz de onde extraiu esse "código" e, em suas considerações, não relaciona

as religiões orientais e o Kung-Fu. Também não se refere às tradições religiosas

observadas no conjunto de práticas das academias brasileiras. No que se refere aos

elementos históricos, pode-se dizer que funde dados comprováveis historicamente e

dados provavelmente extraídos da tradição oral do Kung-Fu.

Das publicações pesquisadas, a que mais chamou a atenção em razão do conteúdo foi

“Trump!”.268 Na revista, o tema Shaolin foi abordado em uma insólita riqueza de detalhes:

em 15 páginas, foi apresentada desde a história da “rede de mosteiros Shaolin” até as

divisões de hierarquia marcial dentro do clero “budo-marcial”.

As informações não se sustentam: fontes históricas a respeito de

Shaolin desmentem a existência de uma "rede de mosteiros" ou

de uma hierarquia marcial entre os monges. A exceção, em

relação à hierarquia, poderia estar na atribuição oficial de cargos

de comando militar a monges, como aconteceu nos episódios

envolvendo a luta pelo poder na passagem das dinastias Sui-

Tang (séc. VIII).269 O texto da revista, porém, afirma a existência

de uma hierarquia marcial interna, o que não se sustenta em

dados históricos. O material, traduzido de um texto publicado em

um site270 e complementado por fotos, não traz referências bibliográficas. O teor das

informações não encontra paralelo nas demais revistas pesquisadas. Entre elas está a

seguinte, que, a nosso ver, revela uma disposição ao mesmo tempo catequética e

defensiva do autor:

Algumas entidades históricas geram muitos debates e confusões sobre Shaolin e alguns professores universitários negam sua existência e acreditam que os templos eram fictícios, baseadas em histórias e romances. Acreditamos que muitas pessoas foram enganadas pelas histórias da Guerra Civil que ocorreu naquele lugar. As descrições seguintes foram obtidas por pessoas que 1) praticaram os estilos dos supostos templos, 2) aprenderam as

267 Ibid., p. 7. 268 "Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", op. cit. 269 Ver cap. 2. 270 Do “Shaolin Gung Fu Institute”, <http://www.shaolin.com> (c. 10.09.2003).

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artes dos templos antes que eles fossem destruídos, ou 3) aprenderam dos praticantes dos templos.271

Os responsáveis pela revista efetivamente parecem ter assumido uma "ortodoxia"

baseada nos dados gerais de Kung-Fu. No caso de “Trump!” o resultado é peculiar,

essencialmente em virtude da quantidade de dados, que abordam até aspectos religiosos

e de comportamento dos monges (fig. 24).272 Para um leitor com um mínimo de senso

crítico, a publicação gera suspeita. Resta esclarecer seu impacto sobre praticantes mais

“impressionáveis”.

Nas publicações pesquisadas não foram encontrados artigos específicos relacionando

rituais ou práticas religiosas nas academias brasileiras.

4.3.2 - Apostilas publicadas por academias

Algumas vezes mestres ou professores decidem publicar apostilas ou folhetos para

consumo pelos alunos. Esses materiais incluem a codificação de conteúdos da tradição

oral, observações sobre o dia-a-dia e a inclusão de conteúdos literários sobre a arte

marcial ou o estilo. Eles são importantes porque refletem um esforço de fortalecimento do

corpo de conhecimentos da arte marcial: o professor ou mestre demonstra preocupação

com a consolidação dos conteúdos da tradição oral (institucionalizando ou fortalecendo a

institucionalização preexistente) e com a inclusão, nesse corpo de conhecimentos, de

informações novas. Em função de sua fonte, tais dados são tidos como legítimos e se

tornam referência para os alunos.

Nossa pesquisa abrange documentos de duas academias do estilo Shaolin do Norte: o

libreto “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa”,273 da Academia Sino-

Brasileira de Kung-Fu (São Paulo), e uma apostila publicada pela Academia Sino-

Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis.274 O que revelam esses documentos? O primeiro,

originário da matriz do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu,275 tem como fulcro a

271 Trump...", p. 6. 272 “Trump...”, p. 7. 273 Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, "Kung Fu – versão curta de uma história muito longa", São Paulo, 1998, 26 p. 274 SOARES, R. (Associação Sino-Brasileira de Kung Fu Wushu), doc. sem título, Florianópolis, n.d. (década de 90), 10 p. 275 A primeira academia de Shaolin do Norte do Brasil, fundada na cidade de São Paulo em 1973.

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97

normatividade e constrói seu conteúdo a partir da reprodução de dados da tradição oral.

O segundo, de uma filial do sistema localizada a cerca de 750 km da matriz, pertence a

um tipo misto, que, na visão do autor deste trabalho de pesquisa, é típico da visão dos

atuais professores brasileiros.

4.3.2.1 - “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa”

O libreto publicado pela Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu276 pode ser interpretado

como um “documento de codificação” do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.277

Publicado especialmente para distribuição durante a comemoração do 25º aniversário da

academia (março de 1998), reúne conhecimentos fundamentados na tradição oral do

Shaolin do Norte.

O libreto traz na capa uma ilustração

do grão-mestre Chan Kowk Wai e, na

contracapa, o símbolo do “dragão

abraçando os Oito Trigramas”,

identificador do Shaolin do Norte no

Brasil (fig. 25).

O documento elenca onze temas:

“história”, “o mosteiro”, “mestres

Shaolin”, “mestre chan”, “linhagem do

mestre Chan”, “estilos”, “chi kun”,

“armas”, “técnica” e “o treino nesta academia”.278 O que mais chama a atenção é o

pragmatismo com que eles são abordados, inclusive a questão da dificuldade de resgate

histórico de dados (“Portanto nem todas as informações têm a precisão histórica com a

qual gostaríamos de contar”).279 A página de abertura280 aborda o termo "Kung-Fu" e sua

extensão. O autor observa que o termo é uma denominação genérica e que sua tradução

pode ser tanto "maestria" quanto "trabalho árduo". Também afirma que "wu shu" -

traduzido como "artes marciais" - é mais correto. Ele admite que no Brasil os dois termos

276 Em formato meio A-4, com 26 páginas a cores. 277 O sistema foi criado pelo grão-mestre Chan Kowk Wai no início dos anos 70 para difundir o estilo Shaolin do Norte no Brasil. 278 Mantivemos os termos na forma original, sem alterações em relação às letras maiúsculas e minúsculas. 279 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 5. 280 Ibid., p. 3.

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98

servem para identificar as artes marciais chinesas, indicando, ainda, que "wu shu" guarda

maior identificação com a prática desportiva - essas considerações não contrariam o que

é aceito pelos pesquisadores. O autor ainda alerta para a existência de várias "Histórias"

da arte marcial, uma para cada estilo (essa informação é confirmada por pesquisadores

da arte marcial chinesa).

O capítulo "história"281 fornece respostas a dúvidas dos praticantes. O Kung-Fu é descrito

a partir das dinastias chinesas e o autor apresenta uma linha do tempo em que aparecem

fatos expressivos da História Ocidental (como o fim do Império Romano, em 476) e da

tradição do Kung-Fu, como a fundação do mosteiro de Shaolin em 495. Essa linha pode

ser vista como uma “síntese” de como a tradição oral organiza sua História: nela

aparecem fatos como a luta dos monges de Shaolin contra piratas japoneses (1553), o

início do ensino das técnicas para leigos pelo abade Chiu Jin (1630), os incêndios em

Shaolin (1736 e 1928) e a migração dos mestres para o Ocidente (1949). Desses fatos, o

início do ensinamento das técnicas aos leigos e o incêndio do mosteiro de Shaolin em

1736 não puderam ser confirmados pelas fontes acadêmicas. Como descrito no cap. 2

desta dissertação, há registro de ensino de técnicas marciais pelos monges para leigos

desde o séc. XVI; sobre o incêndio de 1736, os estudos indicam que ele estaria

relacionado aos mitos de criação das tríades chinesas e não a um episódio histórico.

Sobre a relação entre Kung-Fu e religião oriental, o autor observa que na dinastia Jing “O

kung fu recebeu influências do Budismo e Taoísmo”, cita o médico taoísta Ge Hong como

“integrador” do Chi Kung ao Kung-Fu e se refere aos monges budistas Ba Tuo e

Bodhidharma. Eles são citados como o fundador e o introdutor da marcialidade em

Shaolin.282 A data de integração entre Budismo e Taoísmo nas práticas de saúde

apontada na apostila está dentro dos limites temporais admitidos pelos pesquisadores.

Em “o mosteiro” aparecem informações sobre a fundação e a localização de Shaolin que

não fogem do que é aceito pela historiografia.

Em “mestres Shaolin” surge um encadeamento relevante para a ortodoxia do estilo: nele

fica estabelecida a ligação do grão-mestre Chan Kowk Wai com o mosteiro de Shaolin

através de uma longa linhagem de mestres. O capítulo é reforçado por uma árvore

281 Ibid., p. 4 a 13. 282 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 5 e 6. Ver cap. 2 desta dissertação.

Page 99: shaolin à brasileira

99

genealógica que afirma a proficiência de Chan Kowk Wai em 13 estilos de arte marcial

chinesa. É difícil comprovar, com base na historiografia disponível no Ocidente, a

existência dos integrantes dessa "árvore genealógica", pelo menos no caso dos

personagens mais antigos. As fontes acadêmicas sobre Shaolin utilizadas em nossa

pesquisa não se referem à existência de um "abade Chiu Jin" (ou "Zhao Yuan Heshang")

em Shaolin no séc. XVII. Fotos encontradas na internet, porém, mostram o encadeamento

de três dos mestres mais recentes da linhagem: Ku Yu Cheung (fig. 26), 283 Yang Sheung

Mo (fig. 27) e Chan Kowk Wai (fig. 28).284

O fato de essas

informações virem de

fontes de países

diferentes (Brasil,

EUA e Canadá)

indica que a diáspora

de mestres chineses

na segunda metade

do século XX atingiu

o Shaolin do Norte: tanto Chan Kowk Wai quanto Wing Lam (fonte do ensaio de "Inside

Kung-Fu") foram alunos de Yang Sheung Mo; no caso de Mathieu Ravignat, a genealogia

indicada aponta para Chan Kowk Wai como responsável pela transmissão dos conteúdos.

A constatação é de que a

genealogia é originária da

China e tem uma tradição de

pelo menos 50 anos.

O capítulo seguinte, “mestre

chan”, é uma síntese da vida

do fundador da academia. Nele

é descrita a entrada do grão-

283 Sobre Ku Yu Cheung, ver "Ku Yu Cheung, …A True Iron Palm Master" (CHING, G., Inside Kung-Fu, Burbank: C.F.W. Enterprises, vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 84 a 89) e "Ku Yu Cheung and His Northern Shaolin System", de RAVIGNAT, M., <http://members.rogers.com/stonelion/external/kyc_bio.html> (c. 14.01.2004). 284 Fig. 26, 27 e 28: fotos extraídas de <http://www.shaolincuritiba.com.br/fotos.html> (c. 14.01.2004).

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100

mestre nas artes marciais aos quatro anos de idade em Cantão, a mudança para Hong

Kong em 1949, o contato com o mestre Yang Sheung Mo (que, segundo o documento, lhe

ensinou o Shaolin do Norte e abriu as portas para o aprendizado com outros mestres), a

vinda para o Brasil em 1960, o trabalho no Centro Social Chinês (SP) e a abertura, em

1973, da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, onde se deu o contato com praticantes

brasileiros. O capítulo também se refere às capacidades curativas do mestre (que “é

muito procurado por seus conhecimentos de Medicina Tradicional Chinesa, que aprendeu

de seus mestres”).285

Em “estilos”, o autor explica as diferenças entre os estilos. Shaolin

do Norte, Ton Lon, Choy-Li-Fat, Tai Chi, Luo Han e Pa Kua são

apresentados segundo suas características: assim, o Shaolin é

descrito como “forte e gracioso”, o Ton Lon como “veloz e ágil”, o

Choy-Li-Fat como “de golpes poderosos”, o Tai Chi como

“incorporando movimentos da natureza”, o Luo Han como

“baseado no movimento dos monges” e o Pa Kua como “imitando

o movimento do Dragão”. O texto não relaciona os nomes "Tai Chi"

e "Pa Kua" a uma origem religiosa (no Taoísmo).

O capítulo seguinte, “chi kun”, se refere aos exercícios respiratórios chineses, associados

pela tradição marcial a poderes extraordinários. O autor explica que os exercícios de chi

kun286 “são técnicas respiratórias que desenvolvem o corpo e a mente do praticante,

mantendo seu equilíbrio psíquico e aguçando sua percepção e controle emocional”.287

Apesar do discurso "técnico", ele reafirma a crença na aquisição de capacidades físicas

extraordinárias através da prática do chamado “chi kun marcial” (“O Chi Kun marcial

refere-se à aplicação das técnicas do Chi Kun ao kung fu, resultando na capacidade de

receber golpes ou suportar pesos muito acima do comum, sem sofrer danos. As técnicas

de quebramento são fortemente desenvolvidas a partir do controle da respiração.”). Na

mesma página estão duas fotos dos antepassados marciais mais próximos do grão-

mestre Chan Kowk Wai (Ku Yu Cheung e Yang Sheung Mo) em demonstrações de

285 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 19. 286 Essa forma de grafia é incomum. Na maioria dos documentos pesquisados, o termo aparece como "Chi Kung" ou "Qi Gong". 287 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 23.

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101

resistência física e força. As crenças apontadas parecem ligadas às tradições mágicas

praticadas no contexto das tríades e mostram que elas chegaram ao Brasil.288

O capítulo seguinte, “armas”, apresenta as armas “clássicas” relacionadas ao Kung-Fu.

No caso do Shaolin do Norte, segundo a obra, são 18, abrangendo desde o bastão –

arma aceita pelas fontes acadêmicas como sendo utilizada pelos monges de Shaolin a

partir do século XVI - até armas “exóticas”, como o tridente (tai pat), a “lança cobra” ou o

chuço (kan). Em “técnica” são descritas as rotinas que compõem o estilo e é feita uma

apresentação da forma como as mesmas são ensinadas na academia (junto com

combates simulados, combates livres, quebramentos e exercícios respiratórios). Segundo

o autor, “todas as práticas levam ao aprimoramento tanto físico quanto mental; treinam

defesa pessoal, desenvolvem coordenação, concentração e disciplina e cultivam

saúde”.289 O último capítulo, “o treino na academia”, apresenta a forma do treinamento,

informando como é o desenvolvimento do aluno, os estilos que pode aprender e as regras

de conduta. Reforça, também, a presença de Chan Kowk Wai. (“Que ensina

pessoalmente os alunos – ou indica, se necessário, um aluno que o ensine, mas sempre

sob o seu acompanhamento”).

No libreto da matriz do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu não há capítulos específicos

sobre a religiosidade no estilo Shaolin do Norte. Não há referências ao papel das religiões

chinesas no contexto do moderno Kung-Fu, ou, então, a rituais como o cumprimento

tradicional ou a elementos de natureza aparentemente religiosa presentes na academia

como o altar, estátuas, fotos dos mestres e queimadores de incenso.

4.3.2.2 - Apostila da Associação Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu de

Florianópolis

A segunda apostila foi cedida por um dos entrevistados, o professor Rogério Leal Soares,

de Florianópolis.290 Discípulo de Lee Chung Deh, Soares é o principal difusor do Shaolin

do Norte em Santa Catarina. De acordo com ele, o documento nasceu de uma

apresentação feita para universitários. Por acreditar que representasse uma síntese,

288 Ver cap. 2 desta dissertação. 289 “Kung-Fu – versão curta...”, p. 25. 290 SOARES, op. cit.

Page 102: shaolin à brasileira

102

passou a distribuí-lo a seus alunos na segunda metade dos anos 90. Dos documentos

deste capítulo é o que melhor representa a soma entre tradição oral, leituras e conclusões

do professor, consistindo em um legítimo documento do "Kung-Fu de Shaolin à

Brasileira". Enquanto a apostila da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo se

prende mais à tradição oral, no documento de Florianópolis há inclusão de conteúdos.

Sua apresentação é feita em doze itens e quatro anexos. Os itens são “Kung-Fu – Wu

Shu”; “O Que é o Kung Fu?”; “A História do Kung Fu”; “Técnicas Populares de Kung-Fu”;

“O Kung Fu na Medicina Preventiva”; “Chi Kun nas Artes Marciais, na Medicina Preventiva

e de Cura”; “O Kung Fu Competitivo (Wu Shu moderno): um Esporte tipicamente Chinês”;

“As Rotinas”; “Combate”; “O Kung Fu no Brasil”; “O Kung Fu para Crianças, Jovens e

Adultos”; e “Sistemas de Graduação”. Os anexos são a genealogia do professor Rogério

Leal Soares, o regulamento para o julgamento de rotinas em competições, a reprodução

de um artigo do próprio Leal sobre Tai-Chi-Chuan (publicado na revista “Combat Sport”

em nov. de 1993) e uma tabela com as graduações existentes no Sistema Sino-Brasileiro

de Kung-Fu.291

O diferencial do documento está na quantidade de informações. Em princípio ele preserva

os dados da tradição oral, mas também os transforma e atualiza. É o que acontece em "O

Kung Fu no Brasil",292 que soma à história do grão-mestre Chan Kowk Wai a do mestre

Lee Chung Deh. Ainda sobre o histórico do Kung-Fu, o anexo "Árvore Genealógica e

Figuras Lendárias"293 traz os mesmos nomes citados na apostila de São Paulo e inclui os

do mestre Lee Chung Deh (apresentado como "um dos primeiros alunos do Mestre Chan,

e introdutor do Kung-Fu no sul do Brasil. Grande conhecedor da natureza humana") e de

Rogério Leal Soares (seguido da apresentação "iniciou seus treinamentos com mestre

Lee Chung Deh em 1975, e o segue até hoje, introduziu o Kung Fu em Santa Catarina em

76, junto com seu mestre").

Essa inclusão explicita a relação do autor com seu estilo e, ao mesmo tempo, dá conta de

que a transmissão dos conteúdos tradicionais do Shaolin do Norte já não depende apenas

de mestres originários chineses. Vale observar que, na genealogia apresentada em "Kung

Fu - versão curta de uma história muito longa", a linha de mestres se encerra na figura de

Chan Kowk Wai. Se, por um lado, isso pode ser explicado porque Chan é a maior

291 Sobre "Combat Sport", ver <http://www.combatsport.com.br> (cons. em 19.01.2004). 292 SOARES, p. 6.

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103

autoridade dentro de sua própria academia - essa parece ser a explicação mais lógica -

por outro poderia indicar a existência de uma dificuldade, na casa de um mestre originário

chinês, em relação à inclusão de nomes de professores brasileiros.

A apostila mostra uma tendência à "modernidade" ao incluir uma síntese das regras de

competição294 e as etapas que compõem a graduação através do Sistema Sino-Brasileiro

de Kung-Fu.295 Essa tendência também está em "O Kung Fu para Crianças, Jovens e

Adultos",296 no qual o autor apresenta o Kung-Fu como uma atividade saudável para todas

as idades. Para tanto, se refere ao trabalho desenvolvido atualmente pelas escolas da

República Popular da China. O autor elenca elementos como a melhor condição de

saúde, coordenação, postura, equilíbrio e a possibilidade de, através da arte marcial,

"manter viva a natureza filosófica que os direciona na busca do 'caminho', cultivar a arte

como folclore e desenvolver o aspecto medicinal que envolve o estudo dos exercícios e

métodos respiratórios."297 Vale lembrar que as atividades desenvolvidas atualmente na

China comunista em relação à arte marcial se baseiam, sobretudo, no Wu-Shu - prática

que procura se aproximar do esporte e se afastar das "superstições" das tradicionais

práticas marciais.

Nos itens referentes à História, Filosofia e religiosidade chinesa dentro do Kung-Fu, a

apostila se baseia nos conteúdos do supracitado livro de Michael Minick. Essa

transplantação mostra o valor do livro para professores brasileiros de primeira geração e a

sua carência de informações sobre os temas por ele abrangidos. Como no documento

estudado no item anterior, também no de Florianópolis não há referências diretas às

religiões chinesas e nem a elementos de natureza aparentemente religiosa presentes na

academia.

293 SOARES, p. 7. 294 In “As Rotinas” e “Combate” (p. 4) e no anexo “Regulamento para Katys” (p. 8). 295 A apresentação do sistema de graduação aparece no item “Sistemas de Graduação” (p. 6) e no anexo “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu”. Esse sistema foi implantado no Brasil pelo grão-mestre Chan Kowk Wai e, curiosamente, não consta no libreto “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa” (op. cit.). 296 SOARES, p. 6. 297 Ibid.

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104

4.3.3 - Livros recentes sobre Kung-Fu publicados no Brasil

Uma pesquisa em livrarias

brasileiras na internet mostra

que existe uma razoável oferta

de obras sobre Kung-Fu,

principalmente em inglês.

Ainda assim, os brasileiros

que não dominam esse idioma

também encontram várias

obras em português.298

Selecionamos dois títulos:

"Kung-Fu Shaolin do Norte -

Técnicas Básicas 1º e 2º Kati", escrito por Chan Kowk Wai em parceria com Ariovaldo

Veiga,299 e "Os Segredos do Kung-Fu", do norte-americano George R. Parulski Jr.300

Apesar de não estar disponível em livrarias,301 "Kung-Fu Shaolin do Norte..." é relevante

porque foi o primeiro livro produzido no Brasil sobre o estilo e também porque é a única

obra do gênero assinada por um mestre originário chinês radicado em nosso país.

Há muitas obras estrangeiras a respeito de Shaolin, mas poucas específicas sobre o

estilo Shaolin do Norte. Elas são de autoria de professores/mestres ligados à mesma

genealogia de Chan Kowk Wai, que tem como mestres essenciais Ku Yu Cheung e Yang

Sheung Mo. É notável observar que, assim como na obra em português, os livros em

inglês também foram produzidos em co-autoria por um mestre chinês e um discípulo

ocidental.302 Já a obra de Parulski é relevante porque foi lançada por uma grande

editora303 e também porque faz uma apresentação genérica do Kung-Fu.

298 Pesquisa em <http://www.livrariacultura.com.br>, <http:www.leonardodavinci.com.br> e <http://www.submarino.com.br> (c. 30.01.2004). 299 CHAN, W., & VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin...”, op. cit.. 300 PARULSKI, G., "Os Segredos do Kung-Fu - Um guia completo para princípios do Kung-Fu Shaolin e da Energia Intrínseca (Ch'i)", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, 173 p. Trad. de Rosane Pinho. 301 A obra pode ser adquira pela internet, através de <http://members.lycos.co.uk/sinobrasileira/index.html> (c. 04.02.2004), na própria academia ou via editora. 302 KWON, W. & MANCUSO, T., "Moi Fah - The Plum Flower Fist", 1ª ed., Burbank: Unique Publications, 1984, 98 p.; e HUNG, L. & KLINGBORG, B., "Northern Shaolin Kung-Fu - The History, Form and Function of Pek Sil Lum", 1ª ed., Boston: Tutle Publishing, 1999, 128 p.

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4.3.3.1 - "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati"

Lançado em 1995, foi a primeira demonstração de interesse de professores do Shaolin do

Norte em produzir um livro sobre o estilo. A obra focaliza as duas primeiras rotinas

ensinadas dentro do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu.304 Das 116 páginas, seis

possuem caráter introdutório, 67 são de apresentação das rotinas e 43 voltadas a

elementos histórico-filosóficos e religiosos do estilo.

Apesar de calcada na tradição oral, a obra começa contestando um dado da tradição

genérica: "É parte da cultura chinesa atribuir a criação de grandes obras a personagens

importantes (...) Assim, para se aumentar a importância do Wu-Shu, atribuiu-se sua

origem a Ta Mo [nome chinês de Bodhidharma], do qual só se pode afirmar com certeza

que viveu durante alguns anos no mosteiro de Shaolin de Henan (...)".305 O dado não foge

do que é aceito pelos pesquisadores acadêmicos. No que tange à tradição, porém, nada

mais há de "revolucionário": são reforçadas informações como a de que os monges de

Shaolin viviam em paz com os governantes Ming, de que o mosteiro foi atacado e

destruído por tropas Qing em 1736 e de que os sobreviventes fundaram um novo templo

no sul da China. A novidade está nos nome dos monges sobreviventes - Li Shikai, Hu

Dedi, Ma Shaoxing, Fang Dahong e Cai Dezhong - e a localização do mosteiro de Shaolin

do Sul - em Julianshan, na província de Fujian.306 Como observado no cap. 2 desta

dissertação, não há referências sobre um incêndio em Shaolin no ano de 1736; as fontes

acadêmicas também vêem com dúvidas a existência de um mosteiro de Shaolin em

Fujian.

Os nomes dos mestres que compõem a genealogia do Shaolin do Norte são

apresentados com uma pequena biografia. Aos dois representantes mais recentes dessa

linhagem - os autores do livro - é reservado um maior espaço biográfico. A biografia de

Chan Kowk Wai apresentada no livro307 é a mais completa dentre as encontradas na

literatura referente ao estilo.

303 Com grande alcance de mercado. 304 São elas o chamado "Lien Bu Chan" e o "Tun Dah" (ou "Tuin Tah"), expressões que podem ser traduzidas, respectivamente e de forma aproximada, por "Passos de Treinamento" e "Luta Curta". O termo chinês para "rotina" (conjunto de técnicas que formam um encadeamento) é "kati", para o qual não encontramos tradução. A tradução dos termos é do mestre Lee Chung Deh (cons. verbal em 30.01.2004). 305 "Kung-Fu Shaolin do Norte", p. 17. 306 "Kung-Fu. Shaolin... ", p. 20. 307 Ibid., p. 25 a 29.

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O diferencial da obra está no capítulo “Parte Prática - Cumprimento Shaolin”.308 Foi a

primeira referência a um elemento de caráter ritual (de viés religioso) do Shaolin do Norte

encontrada em um documento escrito. O cumprimento é realizado pelo praticante antes

da entrada e da saída do salão de treinamento, no começo e no final das aulas, no início

e final de lutas e em apresentações. Erguendo os braços até a altura dos ombros, ele une

a mão direita fechada à esquerda, espalmada, inclinando ligeiramente o corpo (fig 31). 309

Na entrada e saída do salão, o cumprimento é direcionado ao altar onde ficam as fotos

dos mestres falecidos; no início e final das aulas, aos mestres e ao professor.310

Em nossa avaliação, a

importância principal do

gesto não está no

elemento corporal simples,

mecânico, mas no fato de

que ele é dirigido tanto a

pessoas (professores e

companheiros de prática)

quanto ao altar, que representa, entre outros valores, o da ancestralidade – que, por sua

vez, é de corte religioso. O pesquisador Herbert Plutschow, da Universidade da Califórnia,

aponta o aspecto universal do culto aos antepassados; em relação à China, ele informa

da existência de indícios ligados a esse tipo de culto já na Dinastia Shang, quando

sacrifícios eram feitos para aplacar a ira dos ancestrais da família real:

Quando os males sociais começavam a proliferar e as relações nos clãs a se desintegrar, quando os rituais eram negligenciados e tabus quebrados, acreditava-se que os ancestrais haviam ficado desgostosos com os vivos e, por conta disso, provocavam desastres naturais, pesadelos, desarmonia social e outros problemas. Os ancestrais fundantes, que representavam um esteio na ordem que eles próprios haviam estabelecido, eram particularmente identificados com calamidades naturais e levantes sociais. Assim, eram temidos por provocar os males e cultuados para controlá-los.311

Ao dirigir o cumprimento para o altar e para os “patriarcas” falecidos, representados por

fotos, o praticante vivifica sua presença e, a partir do gesto, os traz para a sua realidade.

308 Ibid., p. 43. 309 Alunos da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis. Foto do autor. A perspectiva, no detalhe, é a do observador saudado. Assim, o punho fechado está no lado esquerdo. Foto do autor. 310 Um estudo mais amplo sobre o tema, de nossa autoria, pode ser encontrado em <http://dissertakungfu.vila.bol.com.br/saúda.htm>

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107

Além disso, pode-se intuir que, ao saudar os mestres ancestrais em momentos críticos

(entrada e saída do espaço de treinamento, início e fim das práticas), o praticante está

prestando homenagem, “pedindo licença” e mesmo proteção para si no período em que

troca a identidade comum por uma centrada na marcialidade.

Afora esse capítulo - que pode ser considerado “extraordinário” diante da carência de

referências diretas à prática ritual ou religiosa nas academias de Kung-Fu em outras

fontes de representação e, principalmente, de auto-representação pesquisadas no

presente capítulo de nossa pesquisa - não há, em “Kung-Fu Shaolin do Norte”, outras

referências diretas a práticas religiosas ou rituais tradicionais do Shaolin do Norte no

Brasil. As referências aos monges e a Shaolin seguem a tradição genérica do Kung-Fu,

apresentando os clérigos como guerreiros e o mosteiro como uma grande academia de

artes marciais.

4.3.3.2 - "Os Segredos do Kung-Fu"

Escrito em 1984 e publicado no Brasil em 1996, “Os Segredos do Kung-Fu” é uma “obra

de apresentação” do Kung-Fu. Nela, seu autor, que se define como praticante de Kung-Fu

Shaolin, repassa informações centradas, principalmente, em técnicas que, segundo ele,

pertencem à arte marcial chinesa. Os capítulos possuem títulos como “Condicionamento e

Treinamento da Postura”, “Modalidades Agressivas”, “Os Movimentos de Animais” e

“Técnicas de Chutes”.

Dada a riqueza de estilos dentro da arte marcial chinesa, é preciso considerar essas

informações como genéricas. De 173 páginas, 133 são dedicadas a aspectos

“pragmáticos” e 13 a aspectos “tradicionais” do Kung-Fu (as demais são reservadas a

elementos documentais como índice, apresentação e agradecimentos). Ainda que reserve

um número menor de páginas aos aspectos históricos, filosóficos e religiosos, o livro

fornece informações. Notável é o alerta sobre a confiabilidade dos dados presente no

capítulo “História do Kung-Fu”:

“A história do kung-fu é cheia de muitas lendas e ciladas que tornam qualquer tentativa séria de transmitir uma história compreensiva e puramente factual quase impossível. (...) Há muito poucas provas documentadas para sustentar qualquer história de kung-fu, já que a

311 PLUTSCHOW, H., “Archaic Chinese Sacrificial Practices in the Light of the Generative Anthropology”, art. disp. em <http://www.anthropoetics.ucla.edu/ap0102/china.htm> (c. 16.07.2004). Trad. Livre do inglês.

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108

maioria das histórias passam de pai para filho, oralmente, sem qualquer documentação escrita para comprovar.”312

Das informações apresentadas, porém, a maioria parece se basear na tradição oral

genérica do Kung-Fu e em fontes bibliográficas não-identificadas (como a maior parte das

obras analisadas neste capítulo, também esta “dispensou a necessidade” de revelar suas

fontes).

Os aspectos religiosos são abordados em “A Filosofia do Kung-Fu”,313 que busca conectar

arte marcial, Taoísmo, Confucionismo e Budismo Ch’an (Zen). Segundo o autor, “para

compreender e avaliar verdadeiramente a sabedoria do Kung-Fu, deve-se primeiro tentar

compreender a mente chinesa através do entendimento de sua cultura e filosofia.” Ele

apresenta informações genéricas sobre o Tao, Budismo e Confucionismo, bem como

sobre personagens como Chuang Tzu e Confúcio. A maioria das informações parece ter

sido extraída de fontes bibliográficas que não são referenciadas. De modo geral, os dados

são semelhantes aos de obras como as de Allan Watts. Ainda assim, constatamos um

erro grave de informação: na p. 26 Parulski se refere a Lao Tzu como sendo um

personagem do século XVI a.C.; a tradição chinesa afirma que o personagem viveu mil

anos mais tarde, no século VI a.C.. Há que se considerar que pode ter havido uma falha

na tradução para o português – isso, porém, não invalida o erro de informação. O autor

aproxima a marcialidade da religião ao descrever o Budismo Ch’an (Zen):

“A melhor maneira para o aluno de kung-fu desenvolver seu eu interior é, em essência, não tentar. (...) Este não-cultivo (wu-wei em chinês) é alcançado pelo aluno de kung-fu, quando ele pratica sua arte como um meio de autocultivo sem esforço ou propósito deliberado. (...) Quando o aluno de kung-fu assimila este conceito, ganha uma espécie de sexto sentido em combate.”

O conceito de “wu-wei” é semelhante ao de Allan Watts;314 a aproximação feita por

Parulski, porém, parece artificial – a prática das academias brasileiras não inclui

informações ou práticas ligadas à “libertação” da mente. Essa “artificialidade” também é

percebida quando confrontada com o aspecto instrumental da arte marcial chinesa.315

Outro indicativo é a adoção de um “foco nipônico”316 sobre o Kung-Fu: ao tratar do cultivo

da “não deliberação” na prática marcial, o autor se refere rapidamente ao termo chinês

312 PARULSKI, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 19. 313 Ibid., p. 26 a 32. 314 WATTS, A., “O Budismo Zen” (quarta edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 248 p.), p. 39. 315 Inclusive por parte dos monges de Shaolin. Ver cap. 2 desta dissertação.

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109

wu-hsin e, em seguida, a mushin, sua tradução japonesa. A partir daí, centra sua

explicação no termo nipônico e até usa um exemplo da marcialidade japonesa para

explicar o que, segundo ele, seria o ideal espiritual do Kung-Fu. Outro detalhe deve ser

aqui considerado: além de professor de Kung-Fu, Parulski também é faixa preta de Karatê

e Judô, artes marciais originárias do Japão.317

4.3.4 – Sites brasileiros sobre Kung-Fu

A popularização da internet no Brasil abriu espaço para a auto-representação. O Kung-Fu

brasileiro também chegou ao ciberespaço e já conta com dezenas de sites, que permitem

acessar a auto-representação de professores e praticantes. É necessário observar,

porém, a complexidade implicada na análise de conteúdos da internet. É impossível, em

um estudo da dimensão do que estamos realizando, elencar e analisar todos as

informações, mesmo em relação a um objeto tão restrito quanto o Kung-Fu brasileiro.

Diante disso - e da dinâmica da internet -, observamos que a coleta de informações não

teve por finalidade produzir um “perfil geral de conteúdos”, prestando-se a uma

amostragem e à verificação de aspectos comuns aos sites de academias, professores e

entusiastas.

As páginas selecionadas para a pesquisa dão uma idéia do universo temático do nosso

Kung-Fu: entre os assuntos comuns estão a História do Kung-Fu (ênfase para os estilos),

a “filosofia” (universo ético e religioso), o Chi Kung e os filmes do gênero. Há, também,

fotos de competições e atletas. A leitura mostra que, assim como nas outras classes de

documentos analisadas, também aqui há valorização da tradição oral; quando o tema é

religião, filosofia ou ética marcial, as fontes parecem ser outros sites, livros ou revistas

que raramente recebem crédito.

Há que se observar, como elemento diferencial em relação às outras fontes, que o livre

compartilhamento de dados no contexto da internet contribui para o estabelecimento de

uma classe especial de “dados gerais”, formada por textos e imagens tidos como

condizentes com o “ideário do Kung-Fu”. Esses dados geram "cadeias de

316 Ver cap. 2. 317 PARULSKI,, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 173.

Page 110: shaolin à brasileira

110

compartilhamento" cuja origem é difícil estabelecer. Para descobrir tais "cadeias" basta

aplicar frases dos textos em análise a mecanismos de procura como Google e Altavista.

Para efeito do estudo, classificamos os sites como “institucionais” (de academias) e

“pessoais” (criados por entusiastas). No campo de “sites institucionais”, tomamos como

referência o endereço eletrônico da Academia Shaolin de Kung-Fu, de Valinhos (SP). A

escolha do site institucional se justifica por se tratar de uma academia reconhecida dentro

do estilo Shaolin do Norte, com professores de renome nacional, inclusive em

competições internacionais (Valdir Cremasco e Nereu Graballos).

O site da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo318 não foi incluído porque

não apresenta grandes diferenças, em termos de linhas gerais, em relação ao libreto da

mesma instituição analisado no item 4.3.2.1. Vale, porém, apresentar alguns dados sobre

o site da Academia Sino-Brasileira: ainda que ensaie um aprofundamento de dados no

link "Histórico", peca por manter em branco outros links relacionados ao tema ("O

desenvolvimento", "O Mosteiro de Shaolin", "A Virada do século XIX", "A Nova República",

"A República Popular" e "O Panorama Hoje"). O site se aprofunda em relação às

biografias do grão-mestre Chan Kowk Wai e dos mestres Ku Yu Cheung e Yang Sheung

Mo (não conseguimos determinar a origem das informações sobre esses dois mestres),

mas não faz qualquer relação direta às religiões chinesas. O site também traz uma lista

com os nomes de professores e instrutores autorizados do Sistema Sino-Brasileiro em

todo o país.319

Para chegar a uma relação de sites pessoais brasileiros, usamos a ferramenta de busca

Google,320 na opção “sites em português”. Foram usadas as palavras-chave “Kung-Fu”,321

“Shaolin” e “Shaolin do Norte”, com retorno, respectivamente, de 11 mil, 2.730 e 310 sites.

A seleção do "site pessoal" em nossa pesquisa foi feita aleatoriamente, a partir dos

resultados obtidos. Em função do já referido fenômeno de compartilhamento de

conteúdos na rede, essa análise implicou em uma ampliação da pesquisa para várias

outras páginas de conteúdo similar.

318 <http://members.lycos.co.uk/sinobrasileira/index.html> (c. em 26.01.2004). 319 Acessos ao site entre nov. 2003 e jan. 2004. 320 <http://www.google.com> (c. 17 a 23.05.2003). 321 Bem como as variantes "Kung Fu", "kung-fu" e "kungfu".

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111

4.3.4.1 – Sites institucionais

De modo geral, os sites institucionais são mais complexos do que os pessoais. É o caso

do site da "Academia Shaolin de Kung-Fu", de Valinhos (SP). A academia pertence ao

professor Valdir Cremasco, aluno do mestre Nereu Graballos, um antigo aluno do grão-

mestre Chan Kowk Wai.322 O site é organizado em doze links, a saber: "Academia",

"História", "Estilo", "Mestre/Professor", "Dança do Leão", "Instrutores", "Filosofia", "Fotos",

"Kung-Fu Kids", "Filmes & Livros", "Cadastre-se" e "Horários de Treinamento". Como a

apostila de Florianópolis, agrega elementos "modernizantes" à tradição. Isso é visível nos

links "Filmes & Livros"323 e em "Kung-Fu Kids", que traz as seguintes informações:

Nossas crianças hoje em dia, carecem de atividades físicas que complementem o seu desenvolvimento integral. O objetivo das aulas de Kung Fu Kids é ensinar não só técnicas de defesa pessoal, como também desenvolver as capacidades físicas e mentais da criança de forma harmônica e recreativa, dentro da filosofia das Artes Marciais. A forma de pensar de algumas pessoas leigas no assunto de que a Arte Marcial é um esporte que incita a violência está totalmente errada. (...)324

A “modernidade” também pode ser encontrada na página índex,325 que traz notícias sobre

premiações da academia. Os links relacionados ao nosso objeto de estudo são "História",

"Estilo" e "Filosofia". É interessante notar o distanciamento em relação à tradição oral

consolidada no libreto da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo. "História"

mescla tradição oral e "informações gerais" de Kung-Fu:

Os primeiros estilos foram criados pelos clãs (por isso atribui-se a expressão 'Família Kung Fu' a um professor e seus alunos) e mantidos em segredo através de gerações. O Kung Fu, traduzido literalmente, significa maestria, eficiência, treinamento, disciplina, esplendor ou tempo de habilidade. Para designar-se Arte Marcial dá-se preferência por WuShu (Wu=Guerra e Shu=Arte), ou segundo adoção do governo chinês a partir de 1928, Kuo Shu (Kuo=Nacional e Shu=Arte). (...) As diferentes escolas de Kung Fu recebem na China uma divisão (pedagógica) que as denomina como sendo escolas do norte e escolas do sul. (...) Daí surgiu o conceito: 'Na Kuen Pat Tui', ou seja, 'Punhos do sul e Pernas do norte'. (...) Um monge guerreiro graduado em Shaolin tinha que ser especialista em cinco áreas do conhecimento. Ele deveria expressar-se num chinês correto, ou possuir caligrafia de rara beleza, ou escrever poesia, ou conhecer textos clássicos, ou ter conhecimento de técnica de lutas, etc. Deveria ainda dominar procedimentos práticos da Acupuntura e massagem chinesa. (...) O Kung Fu no Brasil - O Kung Fu no Brasil iniciou-se e meados dos anos 60 com a vinda do Mestre Chan Kowk Wai o qual é o Mestre do estilo Shaolin do Norte (...) As

322 <http://www.shaolinvalinhos.com.br> (c. 28.01.2004). 323 <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004). 324 <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004). A intenção do autor, de afastar o Kung-Fu de uma imagem de violência, pode ser considerada moderna. 325 <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004).

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séries de televisão como as do ator David Carradine (Kung Fu - A Lenda) abriu as portas para esta Arte no território brasileiro.326

Ainda que se possa atribuir invenções importantes aos clãs em qualquer cultura, não há

dados acadêmicos que comprovem a relação no caso marcial chinês. A informação

seguinte, de ser esse o motivo pelo qual o professor e seus alunos são chamados de

"Família Kung-Fu", também soa estranha: como praticante de arte marcial chinesa

tradicional de longa data, o autor desta dissertação jamais havia ouvido essa expressão!

As traduções dos termos Wu-Shu e Kuo-Shu se aproximam do que é aceito pelos

pesquisadores. O único fator de estranhamento é a tradução de "Kung-Fu" como

"esplendor" ou "tempo de habilidade". Não conhecemos a relação do termo com

"esplendor". "Tempo de habilidade" parece ser uma tradução literal de expert timing,

termo pelo qual o Kung-Fu é, muitas vezes, traduzido para o inglês.

Em relação à divisão dos estilos em "Punhos do Sul e Pernas do Norte", o autor usa um

dado comum à tradição genérica do Kung-Fu. Segundo ela, o rio Yang-Tzé representaria

uma fronteira: ao norte, nas áreas elevadas, predominariam estilos baseados na força das

pernas; ao sul, nas áreas alagadas, prevaleceriam as técnicas de braços e mãos. Stanley

Henning dedicou um artigo ao tema. Segundo ele, as primeiras referências a essa

diferença são do séc. XVI. Henning acredita que a atribuição "geográfico-corporal" das

técnicas é mais teórica do que real.327

Sobre os monges de Shaolin, os dados não encontram respaldo na tradição do Shaolin do

Norte ou nas fontes acadêmicas. A atribuição de "virtudes cavalheirescas" aos monges de

Shaolin foge à imagem captada por fontes das Dinastias Ming e Qing, que lhes

reconheciam apenas virtudes marciais e, em alguns casos, coragem. Aliás, algumas

fontes do século XVI fornecem uma imagem negativa dos monges, acusando-os de

desídia em relação à religião e até de associação ao banditismo. Aparentemente, a

apresentação dos monges como "super-homens" parece estar ligada à mesma tradição

que os conecta à origem das tríades.328

326 A parte do texto referente à origem do Kung-Fu também foi encontrada em outro site institucional, o da "Associação Phoenix de Kung-Fu Tradicional", de Campinas, <http://orbita.starmedia.com/kungfuphoenix/> (c. 29.01.2004). Essa academia não oferece aulas de Shaolin do Norte. 327 HENNING, S., "Southern Fists & Northern Legs - The Geography of Chinese Boxing", in Journal of Asian Martial Arts, vol. 7, n. 3, 1998, p. 25 a 31, p. 30.

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113

Por fim, o autor faz uma conexão entre a sua pessoa e a tradição do Shaolin do Norte a

partir de um breve histórico do grão-mestre Chan Kowk Wai. Esse histórico não apresenta

discrepâncias em relação aos dados de outras biografias do mestre encontradas na

tradição oral. Ao final do parágrafo, o autor (provavelmente o próprio Valdir Cremasco) se

refere ao papel do seriado "Kung-Fu" para a atração de alunos nos anos 70. Vale

observar, aqui, a omissão do autor em relação à "genealogia clássica" do estilo, que liga o

grão-mestre Chan Kowk Wai ao mosteiro de Shaolin e que é um elemento marcante na

tradição do Shaolin do Norte.

Em "Estilo", o autor reconhece a máxima da tradição oral do Shaolin do Norte, que afirma

que o estilo advém dos monges de Shaolin. A essa informação acrescenta dados técnicos

aparentemente extraídos do trabalho na academia ou de uma fonte não referenciada: “O

Shaolin do Norte tem ênfase nos chutes e técnicas que utilizam as mãos, utilizando a

completa extensão de um membro a fim de que os socos e chutes permitam alcances

maiores sem a perda do poder de impacto, sem o comprometimento do equilíbrio e

força.”329

Por fim, em "Filosofia", o autor apresenta uma série de aforismos não referenciados,

divididos nos itens "Seis Princípios Básicos para o Shaolin Kung-Fu", "Dificuldades a

Serem Vencidas", "Virtudes a Serem Adquiridas" e "Frases Filosóficas". O primeiro item,

"Seis Princípios...", reproduz o texto apresentado na abertura da revista "Kung Fu Defesa

Pessoal", analisada neste capítulo. Os itens "Dificuldades a Serem Vencidas" e "Virtudes

a Serem Adquiridas" indicam uma ética marcial não expressa na tradição oral do Shaolin

do Norte e, aparentemente, mostram uma preocupação pessoal do professor em relação

à formação de seus alunos.

Dificuldades a serem vencidas: A Surpresa; A indecisão; A dúvida; O medo; Virtudes a serem adquiridas: Cortesia : Respeito dentro e fora da Academia para com os Mestres, Professores, instrutores e alunos e em todo relacionamento do dia a dia; Domínio de si mesmo: Calma em qualquer circunstância e contra qualquer adversário; Honra: Respeitar os seus princípios; Saúde espiritual: Harmonia do corpo e do espírito; Perseverança: Ser determinado em seus objetivos; Humildade: Simplicidade na maneira de ser e agir.330

328 Ver cap. 2 desta dissertação. 329 <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 29.01.2004) O mesmo texto, com modificações, foi encontrado no site da "Associação Pequeno Dragão de Kung-Fu" <http://www.ramiltonkungfu.ubbi.com.br/#> c. 29.01.2004), de Salvador (BA), que oferece aulas de Shaolin do Norte.

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114

É interessante questionar a lente usada para essa leitura da arte marcial. Como

observado no cap. 2 desta dissertação, na China as artes marciais não foram

relacionadas a um "Caminho"; sua função seria instrumental, ou, quando eivada de um

caráter ideológico, ligada à rebelião.

Por fim, em "Frases Filosóficas" o que se observa é uma reunião de 71 frases de fundo

moral sem autoria definida. Ao rastreá-las, verificamos que todas são compartilhadas por

sites relacionados ou não às artes marciais. A título de exemplo, apresentamos algumas

das frases, seguidas do número de compartilhamentos encontrados na internet: frase 1 -

"Não lute contra as forças, use-as.” (5); frase 2 - "A vida só pode ser compreendida

olhando-se para traz, mas só pode ser vivida olhando-se para frente." (6); frase 6 - "Só

uma coisa torna um sonho impossível, o medo de fracassar." (86); frase 7 - "Existem

derrotas, mas não existe o sofrimento. Um verdadeiro guerreiro que ao perder uma

batalha está melhorando sua arte de manejar a espada, e saberá lutar com mais

habilidade no próximo combate." (22); frase 20 - "Quando mais você entender de si

mesmo, mais entenderá do mundo." (5); frase 35 - "Só a experiência própria é capaz de

tornar sábio o ser humano." (19); frase 52 - "O que somos hoje e o que seremos amanhã

depende de nossos pensamentos." (7); e frase 67 - "O segredo da felicidade está em

olhar todas as maravilhas do mundo e nunca se esquecer da sua missão ou do seu

objetivo." (68). Afora as referências à relação entre os monges de Shaolin e a

marcialidade, não há, no site, referências diretas às religiões chinesas ou a

práticas/elementos religiosos na academia.

4.3.4.2 – Sites pessoais

Nem todos os praticantes podem abrir academias, editar livros, dar entrevistas ou

comprar espaço em revistas. Com acesso a um computador e um pouco de competência,

porém, é possível publicar um site gratuitamente. Nesses sites, os praticantes expressam

a forma como vivenciam o Kung-Fu - o ciberespaço é um cenário de reprodução,

interpretação e criação de conteúdos. Um exemplo típico de site pessoal é “Kung-Fu

Shaolin do Norte” (fig. 32),331 de um praticante identificado apenas como “Rhuan SK8”.332

330 <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 29.01.2004). 331 Disponível em <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/index.htm> (consulta em 19.05.2003). 332 Que foi contatado pelo autor desta pesquisa através de e-mail entre 20 e 26.05 2003, mas não respondeu.

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A análise do site pode ser feita a partir dos links: “Filosofia” (texto), “Estilos” (texto), “Chi

Kung” (imagens), “Grão-Mestre” (informações e imagens do grão-mestre Chan Kowk Wai,

patriarca do Shaolin do Norte no Brasil), “Shaolin do Norte” (texto), “Armas” (texto e

imagens), “Bases” (imagens com legendas), “Ditados Chineses” (texto), “Kung-Fu” (texto),

“Wall Papers” (imagens), “Fotos do Templo” (imagens), “Midi & MP3” (arquivos de som),

“Fotos Variadas” (imagens), “Contando em Chinês” (imagens com legendas) e “Dicas de

Filmes” (texto).

Não há citação, na forma de links diretos, às religiões chinesas. Referências indiretas ao

Budismo chinês, ao Taoísmo e ao Confucionismo aparecem, porém, em alguns links. Em

“Shaolin do Norte”, por exemplo, o autor relaciona Budismo e arte marcial da seguinte

forma:

Segundo a História, um imperador com tendências religiosas determinou que fosse construído um templo de formação budista. Com o desenvolvimento de seu Kung Fu, o Templo Shaolin (Jovem Floresta), alcançou grande destaque, contudo o Wu shu de Shaolin era ensinado somente aos monges do mosteiro. E assim ocorreu até que o abade superior Chiu Jin resolveu abrir as portas do Monastério Shaolin e ensinar sua valiosa arte marcial a pessoas que não eram integrantes do monastério.333

333 <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/shaolin%20do%20norte/shaolin%20do%20norte.htm> (c. 19.05.2003).

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Os dados não fogem muito dos que compõem a "tradição oral média” do Shaolin do Norte

(a referência é a apostila da matriz do Sistema Sino-Brasileiro). No do link “Kung-Fu”, o

autor aborda o ingresso dos monges em Shaolin:

A aceitação e a escolha para se tornar um membro dentro de um Templo Shaolin era difícil. Como jovens meninos, a aplicação para se tornar um membro do selecionado grupo de alunos, era composta de tarefas fáceis e difíceis do trabalho relacionado a manutenção do Templo. Sua sinceridade e habilidade em manter segredos da ordem Shaolin era severamente testadas por anos a fio antes de se divulgar os mais importantes e preciosos segredos. Uma vez aceitos pela ordem superior do Templo, sua entrada no Kung Fu era considerada como uma porta de entrada para um novo mundo.334

Não há referências históricas nesse sentido. No mesmo link, o autor faz referências à

controversa "rede de mosteiros" de Shaolin: Honan, Fukien, Kwantung, Wu Tang e O Mei

Shan. A história de Bodhidharma, personagem considerado pela tradição religiosa como

patriarca do Zen-Budismo e por muitos praticantes de Kung-Fu como o patriarca da arte

marcial chinesa, é descrita em um texto sofisticado:

A existência de Bodhi Dharma (Ta Mo, em chinês) é, ainda hoje, posta em dúvida por muitos historiadores. Dos que o aceitam como personagem real, alguns o tomam por um monge persa, outros o tomam por um indiano da casta dos Kshatriya. As datas de sua chegada em Kouang (Cantão - China), vindo de Kanchipuran (região próxima a Madeas [sic], Índia), variam do ano 479 a.C. ou até antes, ao ano 526 a.C. Chega a haver quem defenda, entre os estudiosos, a idéia de "Bodhi Dharma" referir-se a um grupo de monges e não a uma só pessoa. Bodhi Dharma teria sido o 3º filho do rei Sungandha - discípulo monástico de Prajnatara e 28º patriarca do Budismo indiano. O nome que lhe fora dado, "Bodhi Dharma", indica que era visto como a encarnação humana do "Despertar (Bodhi) e da "Lei" (Dharma).335

Observa-se, no texto, uma confusão de datas envolvendo a chegada de Bodhidharma à

China. De acordo com a tradição, o monge teria chegado naquele país em 520 d.C. e não

cerca de mil anos antes, como afirma o texto. Referências iconográficas ao Budismo

podem ser vistas nos links “Fotos do Templo” e “Chi Kung”, que trazem, respectivamente,

fotos modernas do Mosteiro de Shaolin e também de orientais caracterizados como

monges budistas executando exercícios e participando de provas de resistência física. As

referências ao Taoísmo aparecem no link “Filosofia”, onde há uma descrição do Tao:

"O Tao... palavra intraduzível. Um modo de ser. O Caminho do Meio, por ser à [sic] busca do equilíbrio. O Sol e a Lua. O claro e o escuro. (...) Tao... que tudo engloba, nada separa. Linguagem da natureza, tão esquecida pelo homem. Harmonia do desequilíbrio. Yin e Yang.

334 <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/kung%20fu/templos%20shaolin.htm> (c. 19.05.2003). 335 Ibid.

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Céu, Terra. Tao... vivência do aqui e agora sem reações, pleno de observações. (...) Tudo isso é o Tao e muito mais. Onde o sentir é mais importante que o saber." 336

O texto não foge dos encontrados em livros populares sobre o tema.

Em “Ditados Chineses”, o autor elenca uma série de 17 aforismos, alguns dos quais por

ele atribuídos a Confúcio e aos taoístas Lao Tzu e Chuang Tzu. A título de exemplo,

citamos três: "Se a tranqüilidade da água permite refletir as coisas, o que não poderá a

tranqüilidade do espírito." (Chuang Tzu); "Aquele que acumula muitos tesouros tem muito

a perder." (Lao Tzu); "Milhares de rios deságuam no mar, mas o mar nunca está cheio.

Mesmo que o homem pudesse transformar pedra em ouro, ainda assim seu coração

jamais seria satisfeito."337

A ligação entre o autor da página e a tradição do estilo Shaolin do Norte está expressa no

link “Shaolin do Norte”, e é feita a partir da genealogia "clássica".338 Por fim, vale destacar,

ainda, a referência feita pelo autor ao grão-mestre Chan Kowk Wai, expressa no link

“Grão-Mestre”. O link traz a transcrição de uma entrevista publicada pela revista Kiai e

uma galeria de fotos antigas e recentes do grão-mestre.

As características mais importantes encontradas no site “Kung-Fu Shaolin do Norte” são a

quantidade e a riqueza de informações. Diante da ausência de referências a fontes,339

investigamos a origem dos dados a partir da colocação, no mecanismo de busca Google,

de trechos de até dez palavras dos textos citados na pesquisa da página-âncora.340

Constatamos o compartilhamento de conteúdos: textos de “Kung-Fu Shaolin do Norte”

foram encontrados em nove sites brasileiros específicos de Kung-Fu/artes marciais e em

duas revistas especializadas! Em nenhum dos casos, porém, o compartilhamento de

conteúdos foi total. O texto no link “Shaolin do Norte” foi encontrado em dois sites

pessoais de Kung-Fu341 e na revista “Kung-Fu Defesa Pessoal”,342 de onde provavelmente

336 <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/filosofia/filosofia.htm> (c. 21.05.2003). 337 <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/home/ditados_chineses.htm> (c. 21.05.2003). 338 <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/shaolin%20do%20norte/shaolin%20do%20norte.htm> (c. 20.05.2003). 339 A não ser na entrevista com o grão-mestre Chan Kowk Wai. 340 <http://www.google.com> (pesq. 23.05.2003). 341 <http://planeta.terra.com.br/saude/aGauchaKF/agkf/ShaoNorte.htm> e <http://olympia.fortunecity.com/undertaker/95/shaolin.html> (c. 23.05.2003) 342 “Kung-Fu Defesa Pessoal”, p. 8.

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foi extraído. O texto que descreve a entrada dos monges no mosteiro de Shaolin, em

“Kung-Fu”, foi encontrado, com pequenas variações, em cinco sites.343

Também a descrição da “rede de mosteiros” de Shaolin, presente em “A Aceitação de

Novos Monges”, foi encontrada em dois sites pessoais de Kung-Fu.344 Uma pesquisa

mostrou que, originalmente, o texto foi publicado pela revista “Trump!”.345

O único texto aparentemente “próprio” – ou, pelo menos, não compartilhado por outros

sites – é o relativo ao Taoísmo. Como o autor não cita uma fonte e nem assume a obra

como sua, porém, é difícil estabelecer sua origem. No caso dos aforismos de “Ditados

Chineses”, alguns foram encontrados em outros sites,346 o que parece indicar uma fonte

comum, provavelmente oriunda de fora da internet. Com relação às imagens, elas

também estão presentes em outros sites.347

4.4 – Interpretação do material apresentado

A análise das fontes de representação e auto-representação no Kung-Fu desde a

instalação desse universo semântico em nosso país revela elementos importantes para a

compreensão do pensamento histórico, ético e religioso dos praticantes brasileiros.

Percebe-se, inicialmente, que o contato entre mestres originários e alunos brasileiros só

se deu, de fato, a partir da veiculação de produtos culturais oriundos dos Estados Unidos

nos primeiros anos da década de 70.348 Muitos desses produtos, é certo, possuíam raízes

chinesas, não apenas em relação à temática, mas também em relação à estética

(elementos técnicos como a aceleração da velocidade da câmera em cenas de luta, por

exemplo, eram típicos do cinema marcial de Hong Kong e foram absorvidos pelo cinema

343 <http://www.sabedoria.hpg.ig.com.br/kung_fu.htm>, <http://geocities.yahoo.com.br/ronaldopinheiro/Untitled-2.htm>, <http://www.oldfist.hpg.ig.com.br/kungfu.html>, <http://members.fortunecity.com/fongsaiyuk/historia.htm> e <http://planeta.terra.com.br/educacao/interligados/Esportes/artesmarciais/body_artesmarciais.html> (c. 03.05.2003). 344 <http://www.astrosdasartesmarciais.hpg.ig.com.br/templos.htm> e <http://www2.longteh.com.br/site/historia/templo.html> (c. 23.05.2003). 345 “Trump!...”, p. 8 e 9. A revista não é citada como fonte em nenhum dos sites. 346 <http://kfmasters.tripod.com/ditados.htm> e <http://www.taichichuan.com.br/estorias.htm> (c. 23.05.2003). 347 <http://www.qigong.ru/Gallery/comments.e/Shaolin.Monastery.html>, <http://www.paulnoll.com/China/Tourism/tourist-Shaolin-scenes.html> e <http://129.79.22.9/china/ShaoLin/thumbs/thumbs1.html> (c. 23.05.2003).

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119

norte-americano. Ao se desnudar de elementos transculturais e se voltar à tradição

chinesa, "Crouching Tiger, Hidden Dragon", filme dirigido por Ang Lee em 2000,

sacramentou essa influência).349 Ainda assim, é preciso considerar que foi através de uma

"lente norte-americana" que as primeiras referências significativas ao Kung-Fu chegaram

à sociedade brasileira. Isso seguramente influenciou os elementos históricos, éticos e

religiosos da arte, transformando-os. Há que se considerar, por exemplo, a influência

prévia do "olhar nipônico" na marcialidade norte-americana: esse olhar, relacionado ao

Zen e ao estabelecimento, a partir dele, de um "caminho de transcendência pela

marcialidade", foi incorporado pelo Ocidente como base para a interpretação de todas as

artes marciais orientais.350

Com o passar do tempo, o universo do Kung-Fu brasileiro criou raízes próprias e a

produção do conhecimento passou por um processo de nacionalização. Em relação aos

aspectos históricos, observa-se que eles se baseiam na tradição oral genérica - formada

por elementos gerais, que incluem informações transmitidas por mestres originários,

dados do cinema/literatura popular e deduções dos próprios praticantes - e na tradição

específica dos estilos, calcada na relação "informação do mestre" (aceita como verdade

absoluta) x "entendimento do aluno". Em relação aos aspectos éticos e religiosos, o que

se observa é que a ligação se dá através, principalmente, de consultas a livros de

vulgarização do conhecimento. Vale observar que os autores das obras pesquisadas não

fazem uma distinção clara entre "Filosofia" e "Religião" - nessa ótica, o Taoísmo, por

exemplo, é uma filosofia. Apenas essa constatação é suficiente para a percepção da

dificuldade dos praticantes em lidar com a religiosidade chinesa encontrada no Kung-Fu e

na própria cultura chinesa. A presença de mestres chineses nesse campo é pequena, e,

por hipótese, pode ser explicada pela dificuldade de transmissão de valores nascidos e

apreendidos fora do esquema ocidental de pensamento; outra hipótese, mais pragmática,

é a de que, por serem advindos da cultura popular, esses mestres não reuniriam

elementos suficientes para transmitir valores da cultura erudita. Vale lembrar que a

moderna arte marcial chinesa (nascida nas Dinastias Ming-Qing)351 se desenvolveu

fundamentalmente junto às classes populares.

348 Ver cap. 3 desta dissertação. 349 HUNT, L., "Kung-Fu...", p. 184 a 200. Para "Crouching Tiger, Hidden Dragon", ver <http://www.sonypictures.com/cthv/crouchingtiger/sony_us_release.htm> (c. 06.02.2004). 350 Ver o cap. 2 desta dissertação. 351 Apesar do interesse de scholars chineses pela marcialidade desde, pelo menos, o séc. XVI. Ver cap. 2 desta dissertação.

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Um elemento religioso muito presente, oriundo da tradição oral e, sem dúvida, da indústria

do entretenimento,352 se refere à condição de "guerreiros invencíveis" dos monges

budistas de Shaolin. Essa condição, como visto no capítulo 2 desta dissertação, vai muito

além do enfoque apriorístico das academias. Fundindo elementos históricos e religiosos

está a genealogia dos estilos, calcada na tradição oral e que, por conta da dificuldade de

acesso a fontes primárias chinesas, não foi analisada em maior profundidade.

Um elemento notável nos produtos analisados neste capítulo é a quase ausência de

referências a elementos ritualísticos e de caráter religioso praticados nas academias. Eles

estão centrados no tema "Chi Kung", relacionado à arte marcial por ser considerado fonte

de poderes físicos extraordinários.

Em relação ao entendimento de elementos iconográficos e práticas como a queima de

incenso em altares, praticamente não há referências. Por fim, é importante observar como

os conteúdos "não corporais" desse "Kung-Fu à brasileira" são transmitidos através dos

produtos de representação/auto-representação. Acreditamos que a falta de referências a

fontes na maioria das obras pesquisadas seja um indício de que seus autores buscam

incluir elementos na tradição oral - nascidos, fundamentalmente, de suas próprias

conclusões, produzidas com base nas fontes de conhecimento sobre Kung-Fu disponíveis

no Brasil - e, assim, legitimar seu universo semântico. Isso implica, sem sombra de

dúvida, em transformações radicais dos conteúdos originários (transmitidos e/ou

suprimidos pelos mestres chineses que chegaram ao Brasil) e em plasticidade do

universo semântico do Kung-Fu brasileiro. A replicação/transformação desses conteúdos

se dá, muitas vezes, a partir do compartilhamento de informações. Esse

compartilhamento pode ser visto em sua forma mais explícita na internet.

352 A partir do seriado de TV "Kung-Fu".

Page 121: shaolin à brasileira

121

5. OS BUDAS DA ACADEMIA: INTERPRETAÇÃO ACADÊMICA DA ICONOGRAFIA

NO UNIVERSO SEMÂNTICO DO SHAOLIN DO NORTE

5.1 – Considerações preliminares

Este capítulo tem por objetivo relacionar e "traduzir", com base em informações

acadêmicas, a iconografia de caráter religioso encontrada nos ambientes de treinamento

dos entrevistados - academias pertencentes ao chamado Sistema Sino-Brasileiro de

Kung-Fu (Shaolin do Norte). Vale observar que, ao colocar este capítulo à frente do

referente à análise dos dados das entrevistas de campo, buscamos estabelecer uma

estruturação prévia para a percepção do valor dado pelos praticantes à religiosidade

oriental na arte marcial chinesa. Ao apresentar uma relação de elementos iconográficos

de caráter religioso, delimitamos um referencial para a pesquisa de campo.

Antes de seguir em frente, é preciso estabelecer um conceito fundamental de

"iconografia" e informar como ele será utilizado em nosso trabalho. De acordo com o

dicionário Aurélio, o termo "iconografia" é definido como "1. Arte de representar por meio

da imagem. 2. Conhecimento e descrição de gravuras (gravuras, fotografias, etc.). 3.

Documentação visual que constitui ou completa obra de referência e/ou de caráter

biográfico, histórico, geográfico, etc. 4. P. ext. Seção encarregada da iconografia."353

Em um primeiro momento buscaremos observar a forma como, por meio de espaços

específicos e elementos visuais, a arte marcial chinesa é representada nas academias

brasileiras.

5.1.1 - Uma aproximação teórica

Uma análise dos ambientes de prática de Kung-Fu nos permite afirmar que eles são

característicos de um subuniverso de significação. Nas palavras de Berger e Luckmann,

subuniversos de significação como o representado pelo Kung-Fu brasileiro decorrem de

(...) acentuações da especialização de papéis, levada a um ponto em que o conhecimento específico de um papel torna-se inteiramente esotérico, comparado com o acervo comum do conhecimento. Estes subuniversos de significação podem estar ocultos à visão geral, ou não.

353 FERREIRA, A., "Novo Dicionário Aurélio", p. 472.

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122

(...) Os subuniversos de significação podem ser socialmente estruturados de acordo com vários critérios, sexo, idade, ocupação, tendência religiosa, gosto estético etc.354

Em sua obra, Berger e Luckmann observam uma "graduação de proximidade" (a

expressão é nossa) dos subuniversos em relação à realidade-padrão. Alguns podem ser

intencionalmente apartados da realidade, como as sociedades secretas chinesas

(curiosamente, instituições ligadas a práticas marciais). Não é o caso do subuniverso

brasileiro do Kung-Fu, marcado por diferenças em relação à realidade-padrão, mas que,

por conta de alguns fatores, não sofreu um processo de encapsulamento. Esses fatores

são de ordem econômica - os professores precisam interagir com a realidade-padrão,

visto que sobrevivem da difusão dos conhecimentos - e cultural, uma vez que, em nosso

país, a marcialidade chinesa é pouco marcada pelo elemento étnico,355 tendo sido

apropriada de uma forma sui generis pelos praticantes locais.

E o que difere um ambiente de prática de Kung-Fu do "resto do mundo"?

Fundamentalmente, a presença de elementos chineses (ou pseudochineses) associados

à arte marcial; esse cenário também estimula um “redirecionamento do olhar”, que leva à

transformação, por exemplo, de uma cana em um bastão de guerra, e da foto de um velho

mestre na imagem de um antepassado marcial. Que, em maior ou menor grau, converte o

espaço de treinamento em um "mini-mosteiro de Shaolin" e os praticantes em herdeiros

de uma velha tradição de guerra e habilidades heróicas. Os praticantes se reconhecem,

executam as mesmas rotinas marciais e usam expressões exclusivas da arte marcial

chinesa.356

5.1.2 - A cor e a moldura do Kung-Fu praticado no Brasil

Sendo o Kung-Fu um produto do universo cultural chinês transplantado para o Brasil, é

natural que, nos ambientes de treinamento, estejam presentes elementos atribuídos a

essa cultura. Tais elementos dão a "cor chinesa" e, mesmo, produzem uma "moldura

chinesa" legitimadora; ambas serão mais ou menos aparentes de acordo com os

seguintes fatores:

354 BERGER, P. & LUCKMANN, T., "A Construção Social da Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 247 p., p. 117. 355 A maior parte dos imigrantes chineses que chegou ao Brasil não possui conhecimentos profundos a respeito do Kung-Fu. Sobre o papel da imigração chinesa ao Brasil para a difusão da arte marcial, ver o cap. 3 desta dissertação. 356 Como os nomes de rotinas, posturas e técnicas específicas.

Page 123: shaolin à brasileira

123

1 - A proximidade entre o praticante e uma fonte étnica de conhecimento: pode-se afirmar

que, ao ter aulas com um mestre chinês (ou seja, um informante étnico), as chances de o

praticante ter acesso a elementos originais da cultura chinesa - da música à alimentação -

é maior. Esses elementos podem ser caracterizados, por esse praticante brasileiro, como

fundamentais para a legitimidade da arte marcial.

2 - As possibilidades econômicas de construção do "cenário chinês": apesar do aumento

recente, em nosso país, do número de estabelecimentos comerciais que importam

produtos kitsch357 da China - coisas como leques, lanternas, "bolas da saúde"358 e até

dragões e divindades chinesas produzidos em resina que imita jade - deve-se observar

que a montagem de um ambiente chinês mais veraz demanda investimento e

conhecimento de causa (fig. 33 e 34). 359

Ainda que seja possível criar e adaptar

objetos, armas originais decorativas ou

de treinamento como espadas e

facões, por exemplo, não saem por

menos de US$ 30,00. Elas são

importadas da China e vendidas no

Brasil por lojas de produtos marciais

chineses localizadas, sobretudo, na

cidade de São Paulo,360 o que, para os compradores de outras regiões do país, implica

em despesas extras de postagem/transporte. Hoje, porém, já é possível adquirir esses

bens por meio da internet.

3 - O interesse do proprietário do ambiente de prática em estabelecer uma relação de

maior ou menor intensidade com elementos chineses, sejam eles destacados ou não do

357 "(...) kitsch é um objeto ou estilo que, simulando uma obra de arte, é apenas imitação de mau gosto para desfrute de um público que alimenta a cultura de massa (...) São exemplos de típicos de kitsch estatuetas de plástico que imitam obras clássicas, flores artificiais, certos móveis de fórmica (...)"; definição in FASCIONI, L. & VIEIRA, M., "O Kitsch na comunicação visual das indústria de base tecnológica", art. deps. em <http://www.ligiafascioni.com.br/artigos/kitsch_graphica.pdf> (c. 19.05.2004). 358 Esferas de metal decoradas, dotadas de guisos em seu interior, utilizadas para exercícios com as mãos. 359 Fig. 33: “estante chinesa” em casa de Curitiba. Fig. 34: armas de Kung-Fu. Fotos do autor (jun. 2004). 360 Em nossa pesquisa de campo (março de 2004) localizamos duas lojas de artigos de Kung-Fu, ambas situadas no bairro da Liberdade. Os dois estabelecimentos pertencem a chineses.

Page 124: shaolin à brasileira

124

"universo marcial": esse interesse assume traços relacionados à representação ("o que é

o Kung-Fu"; "como eu vejo o Kung-Fu") e à auto-representação ("como eu assumo e vivo

esse universo"). Assim, se o professor não se interessar por nada além das técnicas -

nem mesmo por seus nomes chineses, o que implica na criação de denominações à

brasileira como "técnica da banana", "chute sem pulo" ou "peão" -,361 é possível que ele

mantenha apenas equipamentos para treinamento, uma barra para alongamento de

pernas, um saco de pancadas e um espelho para auto-observação pelos alunos. No caso

das academias mantidas por imigrantes chineses - em nossa pesquisa, as de Chan Kowk

Wai e Lee Chung Deh - essa aproximação tende a ser, por razões étnicas, mais "natural".

5.2 - "As 18 Câmaras de Shaolin": construindo um espaço para a prática de Kung-

Fu

Um salão de bom tamanho localizado em um prédio velho. Um ambiente normalmente

empoeirado, cheirando a suor, chulé e incenso. Repleto de "quinquilharias" dignas de Fu

Manchu, como armas de uma tecnologia anterior à pólvora, lanternas vermelhas, altares,

sacos de pancada, quadros repletos de ideogramas e velhas fotos de orientais de olhar

raivoso ou enigmático; um escritório que reúne escrivaninha, computador, livros e

lembretes, telefone, equipamento de som, geladeira e algumas dezenas de troféus e

medalhas. Às vezes, até uma cama.

Ao entrar em uma academia de Kung-Fu, o neófito provavelmente vai encontrar um

cenário semelhante ao descrito no parágrafo anterior (em maior ou menor grau, de acordo

com os elementos enumerados no item 5.1.2). A descrição pode soar um tanto "literária"

ou, mesmo, digna do "Cinema B" de Hong Kong. No entanto, ela se aproxima de um

padrão médio - foi construída a partir da observação de várias academias: uma de São

Paulo (SP), uma de Florianópolis (SC), uma de Joinville (SC), duas de Curitiba (PR), uma

de Belo Horizonte (MG) e uma de Campo Grande (MS) - e seus elementos podem ser

prospectados e justificados um a um.

361 Denominações encontradas no Shaolin do Norte.

Page 125: shaolin à brasileira

125

5.2.1 - Um salão para o dragão

A idade dos imóveis normalmente utilizados para abrigar academias está ligada tanto a

fatores econômicos quanto de natureza funcional: normalmente, apenas edifícios antigos

são capazes de cumprir as exigências de aluguel baixo, espaço amplo e pé-direito alto. A

necessidade do aluguel baixo se justifica pela pequena capacidade de investimento por

parte dos professores iniciantes, que precisam se instalar e "mostrar serviço"; a grandeza

do salão é exigida tanto pelo fator econômico - a capacidade de abrigar turmas grandes -362 quanto pelo funcional -, um espaço suficientemente amplo para permitir a execução

dos "katis", as séries de movimentos que caracterizam os estilos tradicionais. O pé-direito

alto também está ligado à prática dos "katis", uma vez que as técnicas com armas longas

como bastões, lanças e alabardas (Kuan Tao) exigem tetos altos para evitar acidentes.363

Em nossa pesquisa, dois salões chamaram especialmente a atenção: o da matriz do

Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, em um antigo

casarão de pé-direito alto, e o da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis,

instalado na Academia do Colégio Catarinense (uma das mais tradicionais instituições de

ensino da capital de Santa Catarina) em um espaço compartilhado com praticantes de

balé (fig. 35 e 36).364 Nesse segundo ambiente, as aulas de balé são ministradas durante

o dia; as de Kung-Fu, à noite. Vale observar que, nesse espaço, não parece existir

362 Ao tempo da pesquisa, a mensalidade em academias de Shaolin do Norte contatadas variava entre R$ 65,00 e R$ 200,00. Para obter uma renda mensal de R$ 2.000,00, portanto, um professor que cobre R$ 65,00 deve ter, pelo menos, 30 alunos. Há que se observar que os ganhos mensais devem cobrir despesas como aluguel, condomínio, luz, água, telefone, internet e materiais de limpeza. 363 Para uma lista de armas longas de Kung-Fu, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons... ", p. 17 a 48. 364 Foto Florianópolis (jul. 2003). Foto São Paulo (jun. 2004). Fotos do autor.

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126

qualquer tipo de restrição à iconografia marcial (religiosa ou não) por parte dos praticantes

de dança. Equipamentos como espelhos e barras de alongamento são compartilhados.

Um terceiro espaço, de uma academia de Shaolin do Norte não incluída em nossa

pesquisa - a Senda, de Curitiba -365 também corresponde à descrição feita no primeiro

parágrafo deste sub-item do capítulo: há mais de dez anos funciona em um antigo edifício

no “Centro Velho” de Curitiba, junto à praça Tiradentes, área considerada “decadente”

pelo mercado imobiliário local.

5.2.2 - Sobre o pó e os cheiros das academias

A poeira e os cheiros de suor, chulé e incenso estão ligados ao tipo de atividade realizada

nas academias. A quantidade de poeira depende, sem dúvida, do cuidado do professor

em relação a seu ambiente de trabalho. Em academias como a de Chan Kowk Wai, certos

dias da semana são reservados para que os alunos lavem o piso de concreto –

repentinamente o mestre surge com uma mangueira de pressão e os alunos correm para

apanhar vassouras, rodos e panos.

Há que se considerar, porém, o tipo de público-padrão das academias: normalmente,

adolescentes do sexo masculino, que costumam "não dar muita bola" para o problema.

Além disso, a grande rotatividade de turmas faz com que, muitas vezes, não haja tempo

para uma limpeza mais adequada. Há que se considerar, ainda, o grau de reverência aos

espaços de treinamento dentro do Kung-Fu. Apesar de "separados do mundo" pela

atividade desenvolvida e pela iconografia, com base nas observações de campo não se

pode afirmar que tais espaços sejam objeto de uma reverência especial, pelo menos no

que tange à limpeza.

Sobre os cheiros, pode-se observar que equipamentos de treinamento como luvas,

protetores peitorais, capacetes, tênis, sapatilhas e camisetas "deixadas para secar"

produzem odores característicos. O cheiro de incenso pode estar relacionado tanto à

representação do ambiente marcial quanto a práticas de caráter religioso ou pseudo-

religioso.

365 Também afiliada ao Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (Shaolin do Norte), a Academia Senda pertence ao professor de Educação Física e psicólogo Jorge Jefremovas, discípulo de Lee Chung Deh e praticante da mesma geração de um dos entrevistados de nossa pesquisa (o professor Rogério Leal Soares, de Florianópolis).

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127

5.2.3 - A arca de Shaolin

O terceiro elemento da descrição, que chamamos no item 5.2 de quinquilharias, se

aproxima do nosso objeto de interesse no presente capítulo. Seriados de TV como "Kung-

Fu", bem como filmes de Bruce Lee e de Jackie Chan, certamente contribuíram para o

estabelecimento, por parte dos praticantes brasileiros, de um cenário considerado

"adequado" para a prática do Kung-Fu.366 Esse cenário está diretamente relacionado ao

universo semântico da arte marcial. Da mesma forma, os mestres chineses que chegaram

ao Brasil deram sua contribuição - de caráter étnico - para esse universo, carreando para

dentro de suas academias elementos iconográficos, decorativos e semânticos de sua

própria cultura.

Na razão em que uma cultura não se limita ao religioso, pode-se deduzir que nem todos

os "itens cenográficos" de uma academia de Kung-Fu possuem caráter religioso - mesmo

porque a arte marcial chinesa não tem, em si, uma finalidade religiosa (seu caráter

central, em nossa opinião, é de prática corporal voltada fundamentalmente à capacitação

técnica para combate ou à saúde).367

Extraindo da análise os elementos de matriz religiosa - que será estudado em itens à

parte neste capítulo - podemos dividir os demais nas seguintes categorias:

1. Elementos referenciais genéricos para a arte marcial: nessa categoria estão elementos

que, de uma forma "mais simples" - ou mais próxima da representação inicial do Kung-Fu

no Brasil -, identificam a arte marcial. As peças de maior presença aí, sem dúvida, são os

pôsteres de artistas marciais como Bruce Lee - como observado anteriormente,368 o ator

sino-americano é uma figura de referência para a arte marcial, um personagem lembrado

com estima e visto como exemplo de praticante. Também podem ser incluídos, entre os

elementos referenciais genéricos, pôsteres representando os modernos "monges de

Shaolin", fotos dos professores quando eram alunos ou, então, de alunos em poses

marciais ou em ocasiões festivas (como premiações em competições).

366 A respeito do papel da indústria do entretenimento para a formação do universo semântico dos praticantes brasileiros de Kung-Fu, ver cap. 4 desta dissertação. 367 A respeito da instrumentalidade da arte marcial chinesa, ver o cap. 2 desta dissertação. 368 No cap. 4 desta dissertação.

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128

2. Elementos referenciais genéricos para a cultura chinesa: nessa categoria estão objetos

como lanternas típicas, reproduções de quadros chineses (geralmente extraídas de

calendários chineses) e móveis em bambu. Tal universo de objetos - que pode incluir até

elementos de outras culturas orientais, como a do Japão - tem por finalidade relacionar o

espaço de prática com uma cultura de raiz e, assim, reforçar uma "identidade étnica"

(que, no caso de academias mantidas por brasileiros, acaba se caracterizando como

"pseudo-étnica"). Essa "identidade" está ligada, sem dúvida, a um desejo de legitimação.

3. Elementos instrumentais para a arte marcial: nessa categoria estão os objetos

utilizados para a prática marcial pelos alunos. Os mais característicos do Kung-Fu são,

sem dúvida, as armas tradicionais, dentre as quais se destacam os bastões, lanças,

facões, espadas, punhais e alabardas (fig. 37 e 38).369

Em algumas academias - no caso da nossa pesquisa, a de Chan Kowk Wai - é possível

encontrar uma diversidade maior de armas (seu armeiro abriga tridentes, bastões

articulados, correntes, chuços, martelos, lanças de ponta dupla e cavaletes); essa

diversidade está normalmente relacionada ao domínio de técnicas pelo

mestre/professor.370 Também se enquadram nessa categoria os uniformes

(principalmente as camisetas, que cumprem uma dupla função, instrumental e semântica),

equipamentos de proteção para Sanshou (boxe chinês), pisos de borracha para lutas de

solo, espelhos e alteres.

369 Na imagem da esquerda são visíveis as chamadas “armas médias” (facões, espadas etc.). Na imagem da direita estão detalhes das “cabeças” de armas longas (São Paulo, junho de 2004). Fotos do autor. 370 Para uma relação de armas chinesas, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons...", op. cit.

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129

4. Elementos da "cultura brasileira" presentes nos espaços de prática de Kung-Fu: nessa

categoria estão elementos desconhecidos ao universo cultural chinês - coisas como

brasões de clubes de futebol, imagens de santos católicos e até fotos de políticos. Apenas

a título de exemplo, vale citar o caso da Academia Senda, de Curitiba, onde, junto à porta

de entrada, é possível avistar um quadro de São Jorge, evidentemente a cavalo, matando

o dragão com uma lança; esse quadro está praticamente ao lado de um segundo quadro,

que retrata Kuan Kung (Kuankun), divindade tutelar chinesa associada aos mosteiros

budistas e às academias de Kung-Fu, igualmente a cavalo e portando uma alabarda (fig.

39).371

Em princípio, São Jorge está ali porque é o

santo protetor do dono da academia, seu

homônimo; ainda assim, a presença de

divindades armadas, aparentemente tão

próximas em seu simbolismo - apesar de

advindas de universos religiosos muito

diferentes - dá uma idéia de quão interessante

pode ser o cruzamento de elementos

iconográficos e de sua interpretação (a recíproca pode ser verdadeira para o "outro lado":

no altar de um templo nas Filipinas, como mostra Keith Stevens, bodhisattvas aparecem

acompanhados de um Jesus crucificado. Vale observar que, no passado das Filipinas,

houve um cruzamento radical entre uma cultura européia – espanhola - e uma cultura

local fortemente influenciada pela China).372 Apesar da "tentação" de se pesquisar a

presença de elementos de religiões orientais e ocidentais em um mesmo ambiente de

prática marcial, porém, vamos nos ater, fundamentalmente, à iconografia religiosa chinesa

e à forma como ela é valorizada/interpretada pelos praticantes brasileiros.

5.2.4 - O gabinete do venerável mestre

O escritório de uma academia de Kung-Fu costuma ser um espaço de múltiplo uso. É, em

primeiro lugar, o nicho particular do proprietário, estando também reservado à realização

das atividades burocráticas da academia (recepção de interessados, matrículas e

371 Academia Senda, Curitiba (março/2004). Foto do autor. Sobre Kuan Kung, ver nota 164 do cap. 2 desta dissertação. Ver, também, fig. 10. 372 STEVENS, K., "Chinese Gods... ", foto à p. 93.

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pagamento de mensalidades), ao computador (quando há um), aos livros e troféus (fig. 40

e 41).373

No caso de professores que moram ou fazem refeições na academia, pode abrigar,

também, uma cama e até uma geladeira. Abrimos espaço, dentro dessa categoria, para

uma referência ao vestiário, lugar reservado para a troca de roupas pelos alunos. Em

algumas academias, homens e mulheres compartilham esse espaço, respeitando,

evidentemente, uma ordem de entrada (quando representantes de um sexo estão se

trocando, os do outro aguardam fora). Os vestiários também estão associados a

banheiros, que podem conter chuveiros.

5.3 - A iconografia religiosa

Sintetizados todos os elementos "mundanos" que compõem o "ambiente Kung-Fu", nos

dirigimos para os que nos interessam de forma mais direta: os de caráter religioso. No

meio de todos os elementos cenográficos e instrumentais acima referidos, como localizá-

los? Nossa relação de elementos iconográficos de caráter religioso nas academias foi

construída a partir de observações empíricas dos locais de prática marcial e dos

uniformes dos entrevistados. Os limites dessa relação foram determinados a partir do

olhar do pesquisador, um praticante de Kung-Fu de longa data, interessado no

entendimento dos "conteúdos não-corporais" e acostumado com a observação de

repetições iconográficas em academias de Shaolin do Norte. A confirmação do sentido

religioso dos objetos relacionados foi feita a partir de sua leitura acadêmica.

373 Imagens: junho de 2004. Fotos do autor.

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131

Em nossa pesquisa de significados fizemos uso, principalmente, do livro de Keith

Stevens, "Chinese Gods - The Unseen World of Spirits and Demons",374 que traz

informações a respeito de vários ícones ligados à religiosidade chinesa; para o

entendimento de conteúdos do Taoísmo e do Budismo, apelamos para trabalhos de

Marcel Granet,375 Allan Watts,376 John Blofeld,377 Juan-Eduardo Cirlot;378 no caso

específico do Pa Kua, usamos as apresentações/traduções do I Ching feitas por James

Legge e Richard Wilhem.379 A questão da "divindade tutelar" de Shaolin e das academias

de Shaolin do Norte foi abordada a partir do cruzamento de dados de Stevens com os de

Meir Shahar.380 Na análise dos altares incluímos elementos do trabalho de Dian Murray

sobre os rituais das tríades chinesas.381

5.3.1 - Vencendo a barreira dos ideogramas

Os elementos iconográficos que contém ideogramas chineses receberam um tratamento

diferenciado em relação aos de caráter exclusivamente simbólico. Antes de chegar ao seu

significado, foi preciso traduzi-los para o português. Para isso, contamos com o auxílio do

mestre de Kung-Fu Lee Chung Deh (tradutor dos ideogramas da camiseta-padrão do

Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu) e do mestre acupunturista Pan Yi Bo (tradutor da

"placa votiva" do mesmo Sistema). Os dois mestres são imigrantes chineses (o primeiro

nasceu em Taiwan e o segundo na província de Henan, na China continental) e

atualmente vivem em Curitiba.

5.4 - Elementos iconográficos de caráter religioso encontrados em academias

Nosso objeto de pesquisa, neste capítulo, abrange os seguintes elementos iconográficos

de caráter religioso encontrados nas academias de Kung-Fu do chamado Sistema Sino-

Brasileiro de kung-fu, criado no início dos anos 70 pelo imigrante chinês Chan Kowk Wai:

374 STEVENS, K., "Chinese Gods...", op. cit. 375 GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 415 p. 376 WATTS, A., "O Budismo Zen", 4ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 249 p.; "O Zen e a Experiência Mística", 1ª ed., São Paulo: Cultrix, 1980, 148 p.; "Em Meu Próprio Caminho", 1ª ed., São Paulo: Editora Siciliano, 1992, 314 p. 377 BLOFELD, J., “Taoism – The Road to Immortality”, 6ª ed., Boston: Shambala, 2000, 195 p. 378 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, 1ª ed., São Paulo: Editora Moraes, 1984, 616 p. 379 LEGGE, J., "I Ching", 1ª ed., São Paulo: Hemus, 1972, 520 p.; e WILHELM, R., & PERROT, É., "Yi King - Le Livre des Transformations", 8ª ed., Paris: Librairie de Médicis, 1973, 804 p. 380 SHAHAR, M., "Ming-Period Evidence... ", p. 359 a 413. 381 MURRAY, D., "The Origins...”, op.cit

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132

- Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu;

- “Placa da Ética e da Ancestralidade”;

- Altar com queimador de incenso e fotos de "mestres patriarcas" do estilo.

Vale observar, previamente, que há uma clara divisão em “conjuntos semânticos” dos

elementos iconográficos enumerados. Enquanto a camiseta forma o primeiro desses

conjuntos, a placa e o altar formam o segundo.

5.4.1 - Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu

A camiseta-padrão adotada por boa parte das academias de Kung-Fu do Sistema Sino-

Brasileiro (Shaolin do Norte) foi criada pelo grão-mestre Chan Kowk Wai. Ela representa

um conjunto semântico de caráter religioso centrado, fundamentalmente, no Taoísmo. Ela

é composta por dois conjuntos de símbolos gráficos, um localizado na parte da frente e o

outro na parte de trás da vestimenta (fig. 42 e 43).382

O primeiro conjunto (na frente) é composto por um brasão; e o segundo (nas costas) por

um “dragão abraçando o Pa Kua”, símbolo reconhecido como tradicional do Shaolin do

Norte no Brasil. Esses conjuntos constituem, em nossa avaliação, a mais complexa

presença iconográfica de viés religioso encontrada no universo pesquisado. Tal

complexidade decorre, fundamentalmente, de um mix de elementos budistas e taoístas

que remete à fusão de partes das duas religiões verificada na China do séc. V d.C. e até

hoje presente no universo religioso daquele país.383 Antes de seguir em frente, vale

observar um elemento extra, ligado à base sobre a qual se assentam os símbolos: as

cores das camisetas. Normalmente elas são brancas, com os elementos gráficos

382 Camisetas de Florianópolis e Campo Grande doadas ao autor. Fotos do autor. 383 A respeito da fusão “budo-taoísta”, ver o cap. 2 desta dissertação.

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133

serigrafados em preto ou, então, em azul e vermelho. Há, porém, registro de camisetas de

cores diferentes, como o preto, vermelho e amarelo, com os elementos serigrafados em

branco.384 Pelo que pudemos constatar em nossa pesquisa de campo, essa variação é

aceita por seu caráter estético e não por determinações religiosas ou tradicionais.385

5.4.1.1 – A frente da camiseta – O Brasão

O brasão circular que ilustra a parte da frente da camiseta reúne uma série de símbolos e

ideogramas relacionados ao Taoísmo e ao Budismo.386 A predominância, apesar de o

estilo Shaolin do Norte ser tradicionalmente associado a esta última religião - através de

sua fonte histórico-mítica, o mosteiro de Shaolin em Henan, e de seu fundador mítico, o

asceta indiano Bodhidharma -, é de elementos taoístas.

O símbolo central do brasão é o Tai-Chi (representação gráfica do Tao), cercado pelos

oito trigramas do Pa Kua; estes, por sua vez, estão cercados por dez ideogramas

distribuídos em quatro “expressões” ou conjuntos semânticos – dois na horizontal e dois

na vertical.

A esse conjunto é somado o nome da cidade e/ou da academia - por exemplo: “Academia

Sino-Brasileira de Kung-Fu - Curitiba” -, apresentado em um dístico ao redor do círculo.387

Para facilitar a leitura iconográfica, faremos a seguir uma descrição esquemática dos

símbolos de natureza religiosa que compõem o brasão das camisetas do Sistema Sino-

Brasileiro de Kung-Fu (a ordem numérica segue a determinação da fig. 44).

384 Nos anos 80, como praticante de Shaolin do Norte, o autor dessa pesquisa usou camisetas nas quatro cores referidas. 385 Vale observar, porém, que o vermelho e o preto são as cores que, nos combates desportivos de Kung-Fu (Sanshou), identificam os lutadores. 386 Em nossa análise, tomaremos como referência o trabalho de APOLLONI, R., & LEE, C., “O Significado dos Símbolos em sua Camiseta”, presente in <http://www.shaolincuritiba.com.br/escudo.html> (c. 27.05.04). 387 Por não se tratar de um elemento de caráter religioso, mas sim de identidade de cada academia, optamos por omitir o dístico da ilustração 29. Não há prejuízo para a análise a que nos propomos.

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134

ELEMENTOS:

(1) - Tai-Chi – O termo Tai-Chi pode ser traduzido do chinês, por

aproximação, como “o mais alto”, “o maior”, “o grau supremo” ou “aquele

que, por sua grandeza, não é mensurável”.388 Seu conceito nasceu

provavelmente dentro do Taoísmo, filosofia/religião chinesa por

excelência, cujos registros mais antigos datam do século VI a.C. (é possível que o

conceito seja anterior à formação de um “corpo filosófico” taoísta). Graficamente, a

representação do Tai-Chi mostra as duas polaridades universais, Yin e Yang, interagindo

dinamicamente. De acordo com a tradição sínica, os conceitos de Yin e Yang teriam

nascido com astrônomos. Sua apresentação mais antiga estaria no Hi Zi, tratado do séc.

V a.C. que, em tempos muito recuados, foi anexado ao I Ching.389

Nos termos da religião tradicional o Tai-Chi está ligado, essencialmente, a uma dinâmica

universal formada por opostos que se complementam e que trocam constantemente de

polaridade. Granet reforça o caráter criativo representado pelo Tai-Chi: “a figura pretende

mostrar a união do Yin e do Yang no momento em que eles produzem os 10.000

Seres”.390 Guardada a advertência de Lao-Tzu – que observou a impossibilidade de

388 O termo determinante é Tai, que pode ser traduzido como “maior do que o maior”. 389 GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 83 a 100. 390 Ibid, nota 403. Por “10.000 Seres” deve-se entender todas as coisas que compõem a realidade.

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tradução, em termos racionais, dos conceitos taoístas –391 pode-se afirmar que Tai-Chi é,

de fato, a melhor representação gráfica do Tao,392 expressão traduzida, no Ocidente,

como “Caminho”. Em nossa avaliação, essa equivalência não reflete a verdade. Adotando

uma definição mais acadêmica, do pensador espanhol Juan Eduardo Cirlot, temos a

informação de que o Tai-Chi é o:

(...) símbolo da distribuição dualista de forças, composto do princípio ativo ou masculino (Yang) e do passivo ou feminino (Yin). Aparece em forma de círculo dividido por uma linha sigmóide; os dois campos resultantes acham-se assim dotados de um sentido dinâmico do qual careceriam se a divisão se fizesse por meio de um diâmetro. A metade clara representa a força Yang e a escura a força Yin, mas cada uma delas tem um pequeno círculo no meio do tom contrário, para simbolizar que toda modalidade encerra sempre um germe da oposta.393

No Ocidente o Tai-Chi é conhecido desde, pelo menos, os anos 50 do séc. XX, quando foi

incorporado ao universo intelectual;394 nos anos 60, foi abraçado pela “cultura pop”. Nessa

época foi “ressignificado” e até associado ao mercado: uma das mais conhecidas

empresas de artigos para surfistas, a “Town & Country”, tem nesse círculo cortado por um

sigmóide sua marca registrada.395 Nas camisetas dos mestres e professores pesquisados

é possível encontrar o Tai-Chi em duas posições: com a linha sigmóide alinhada à vertical

e com a mesma linha alinhada à horizontal. Na camiseta da academia matriz do sistema

(São Paulo), a posição é horizontal. Em outras, como a de Florianópolis, é vertical.

Aparentemente, as duas orientações são entendidas como tradicionais.

(2) – Pa Kua - No brasão, o Pa Kua (ou Ba Gua) aparece ao redor

do Tai-Chi. Ele não é necessariamente associado ao símbolo do

Tao e, nas representações populares chinesas, pode ser

encontrado sozinho ou envolvendo um espelho circular, caso em

que se associa a práticas de proteção contra espíritos malignos.

Como amuleto, o Pa Kua espelhado ou ilustrado com figuras fantásticas é colocado na

parte interna das casas, diante da porta de entrada: ao ingressar em um ambiente assim

391 “The name that can be named is not the enduring and unchanging name.” (Tao Te King, cap. 1, verso 1). Trad. de LEGGE, J., in <http://classics.mit.edu/Lao/taote.mb.txt> (c. 27.05.2004). 392 Um estudo amplo a respeito do Tao pode ser encontrado em GRANET, “O Pensamento Chinês”, op. cit., p. 189 a 210. 393 CIRLOT, J., “Dicionário...”, p. 607. 394 O elemento certamente era conhecido dos primeiros sinólogos, que desde o séc. XVIII examinavam os aspectos filosóficos e religiosos da cultura chinesa. 395 A “Town & Country Surf Designs”, foi fundada em 1971, no Havaí, por Craig Sugihara. Site oficial da empresa: <http://www.tcsurf.com/> (c. 27.05.2004)

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protegido, um fantasma ou demônio assaltante veria a própria face refletida e, assustado,

fugiria (fig. 45).396

Pode-se afirmar que o Ocidente adotou o Pa Kua

a partir de uma leitura que se aproxima daquela

da religiosidade popular chinesa, de caráter

mágico. Em anos recentes, graças à vulgarização

de práticas como a do Feng Shui (arte de

harmonização de ambientes por meio da

disposição de objetos)397 e do I Ching (obra usada

em práticas divinatórias), o símbolo passou a ser encontrado, como amuleto e enfeite, em

lojas de artigos esotéricos e de produtos populares importados da China (fig. 45).398 Em

uma tradição chinesa mais refinada, o Pa Kua está ligado ao I Ching (“Livro das

Mutações”), obra escrita entre 1000 e 500 a.C, de caráter oracular e significado obscuro

até para muitos chineses.399 Segundo James Legge, o termo I Ching encerra um princípio

ligado a uma “dinâmica viva” dos elementos:

O I Ching distingue três qualidades de mutação: falta de mutação, mutação cíclica, mutação em série. A mutação cíclica é a permuta periódica que observamos no mundo orgânico. A mutação em série indica a progressiva mutação no fenômeno que é produzida pela causalidade. Em outras palavras, mutação em série seria descrita em termos Ocidentais como mutação que se opera num mundo de causa e efeito, mecanicamente estruturado. A diferença primária entre o ponto de vista do Ocidente e do Oriente de mutação em série é que o I Ching usa a mutação em série para delinear a seqüência das gerações e por isso considera-a alguma coisa “orgânica” e não “mecânica”.400

De acordo com a tradição, os oito trigramas que formam o Pa Kua - cada um deles é

composto por três linhas que seguem uma ordem binária, podendo ser contínuas ou

segmentadas - encerram “as imagens do que se passa no Céu e sobre a Terra”.401

São as bases sobre as quais se assentam os 64 hexagramas do I Ching, que, na

concepção chinesa, refletem as configurações possíveis da realidade.402 O trigramas que

396 Fotos feitas pelo autor em julho de 2004. 397 Exemplos dessa vulgarização podem ser observados nos sites <http://www1.uol.com.br/diversao/fengshui/> e <http://www.mistico.com/p/fengshui/ > (c. 27.05.2004). 398 Amuleto metálico adquirido em junho de 2004 em loja de artigos populares chineses em Curitiba. Frente: Pa Kua com leão no centro; verso: signos da astrologia chinesa com espelho no centro (foto do autor). 399 “Enfermant le passé et l’avenir tout entiers dans ler schema numerique, elles ont conféré au Yi King la reputation d’un livre d’une profondeur totalement incompréhensible.” WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King...”, p. 4. 400 LEGGE, J., “I Ching...”, p. 29 e 30. 401 WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King...”, op. cit., p. 5.

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formam o Pa Kua têm os seguintes nomes:403 (1) – K’ien (Kian), “O Criador”; (2) – Souen

(Xuan), “O Dócil”; (3) - Kan, “O Insondável”, “O Abismo”; (4) - Ken (Ken), “A Imobilização”;

(5) – K’ouen (Kuan), “O Receptivo”; (6) – Tchen (Chen), “O Progresso Interrompido”; (7) –

Li (Li), “O Aderente”; e (8) – Touei (Touei), “O Alegre”, “O Sereno”.404

Segundo Marcel Granet, a disposição dos trigramas em um octógono está relacionada

aos “Oito Ventos”, do que se deduz que o Pa Kua também é uma representação da rosa-

dos-ventos.405

Na forma como aparece nos brasões das

academias do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu,

segue tanto a chamada “disposição de Fu-Hi” (ou

Fu Hsi, o “primeiro imperador”, personagem mítico

que teria sido o inventor dos trigramas) quanto a “de

Wenwang” (“do Rei Wen”).406 A diferença de

posições toma por base a “Teoria dos Oito Trigramas” (fig. 46) 407 e segue entendimentos

diversos a respeito da evolução ou conversão contínua dos fenômenos naturais.408 Com

base apenas na iconografia, não é possível saber como disposições diferentes dos

trigramas chegaram aos brasões das camisetas. Se, por um lado, o uso de formas

tradicionais aponta para o conhecimento das disposições gráficas mais precisas, a não

uniformidade na eleição de uma delas como de uso obrigatório pode indicar uma leitura

livre ou um esvaziamento de conteúdo. Com base em nosso conhecimento empírico do

universo brasileiro do Kung-Fu, acreditamos que a eleição das disposições não tomou por

base a orientação dos mestres chineses, mas sim consultas a livros.409

402 GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121. 403 Para identificá-los na ilustração 26, atribuir o número 1 ao trigrama colocado mais ao alto e seguir em sentido horário – assim, o trigrama situado imediatamente à direita de 1 será o 2, e o situado imediatamente à esquerda, o 8. 404 As transliterações dos nomes chineses seguem, respectivamente, as presentes na obra de WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King ...”, p. 6, e as encontradas na obra de GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121 (nomes entre parênteses). 405 GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121 e 122. 406 Aquela também é conhecida como “disposição anterior” e, esta, como “posterior”. 407 Imagens extraídas e modificadas de GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 122 (E) e 121 (D). 408 A esse respeito, ver GONGBAO, Y., “La Melodie Interne de La Vie – La pratique chinoise du qigong”, 1ª ed., Beijing: Editions du Nouveau Monde, 1995, 156 p., p. 21 e 22. 409 A respeito do mix tradição oral x leituras populares, ver o cap. 4 desta dissertação.

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(3) – Bei, Sao, Lin: Juntos, os ideogramas Bei, Sao e Lin (leitura da

direita para a esquerda) formam o termo Bei Saolin, lido, no Brasil,

como Shaolin do Norte. O termo Saolin (ou Shaolin) pode ser

traduzido como “Floresta Nova”, e é identificador do lugar de Henan onde, em 495 d.C.,

foi erigido o mosteiro de mesmo nome. Sao indica juventude e Lin, uma floresta (o

ideograma mostra duas figuras semelhantes a árvores). Bei, o primeiro ideograma,

significa “Norte”, em oposição a Nan, “Sul”, indicativo dos estilos associados à tradição de

Shaolin em Fujian (Nan Saolin – Shaolin do Sul).410 A associação do termo com a

religiosidade chinesa é direta, uma vez que Shaolin é um dos mais famosos mosteiros

budistas chineses.

(4) – Yin, Yang: O termo formado pelos ideogramas Yin Yang (leitura de cima

para baixo) parece servir como reforço ao Tai-Chi. O conceito foi gerado

provavelmente antes da institucionalização do Taoísmo. Os ideogramas

expressam o “binário universal” formado por opostos que se complementam.

Uma análise mais ampla do significado das polaridades Yin e Yang pode ser

encontrada nos parágrafos deste capítulo referentes ao Tai-Chi.

(5) – Jin, Chi, Sen: O termo, formado pelos ideogramas Jin (ou

Jing), Chi (ou Qi) e Sen (ou Chen), diz respeito aos chamados

“Três Princípios” taoístas (a leitura é feita da direita para a

esquerda). De acordo com Yu Gongbao, esses princípios podem ser traduzidos,

respectivamente, como “Essência”, “Energia Vital” e “Espírito”.411 Ainda segundo esse

autor, eles estão associados aos chamados “Três Elementos”, que correspondem ao

corpo, coração e pensamento. Seu encontro se dá a partir do Chi Kung (Qigong), conjunto

de práticas respiratórias, alimentares, sexuais e mentais voltadas à transcendência:

O encontro dos Três Elementos é considerado como o estado de concepção, e a unificação dos Três Princípios como a formação do cinábrio. Sua realização resulta em vacuidade e em paz. Se o coração está vazio, será visível a união do espírito e do caráter; se o corpo está em paz, aliviar-se-á sua essência e sua sensibilidade; e quando o pensamento estiver estabilizado, estará realizada a unificação dos Três Princípios.412

410 Acerca do desenvolvimento marcial em Shaolin, bem como sobre a tradição que associa o mosteiro aos estilos do sul da China, ver o cap. 2 desta dissertação. 411 GONGBAO, Y., “La Melodie...”, p. 3 (sobre o conceito de Chi) e p. 30 (sobre os conceitos de Jing e Sen). 412 Ibid., p. 30. Trad. livre do francês.

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O cinábrio (HgS, Sulfeto de Mercúrio), forma mais comum pela qual o mercúrio é

encontrado na natureza, foi relacionado pelos chineses à transcendência. Essa relação

nasceu, provavelmente, da observação do método de obtenção do mercúrio, a chamada

ustulação (aquecimento em uma corrente de ar). Nesse processo, o sulfeto, vermelho ou

negro, é convertido em um metal prateado, líquido, de aparência impressionante.413 Há,

aí, uma relação com o conceito de “alquimia do ser”: assim como os alquimistas

ocidentais, também os chineses buscavam – simbolicamente - transformar o nigredo

(matéria ou condição inferior) em rubedo (matéria ou condição superior). Para isso,

usavam o Chi Kung, base das práticas físicas existentes dentro do Sistema Sino-

Brasileiro de Kung-Fu.414 Ainda sobre o Chi Kung e sua relação com a religiosidade

chinesa, vale citar Marcel Granet, que, a partir de vetustos tratados taoístas, aborda o

papel dos exercícios chineses para a obtenção da transcendência:

Para nutrir a própria vida e “conseguir o Tao” à maneira de Peng-tsu, que logrou durar mais de setecentos anos, é preciso entregar-se a exercícios de flexibilidade (tao yin), ou, melhor ainda, dançar e movimentar-se à maneira dos animais. Recomenda-se imitar a dança dos pássaros quando eles estendem as asas, ou a dos ursos quando se balançam, esticando o pescoço para o Céu. É com a ajuda dessa ginástica que os pássaros se exercitam em voar e os ursos se tornam trepadores perfeitos. Também há muito que aprender com os mochos e os tigres, hábeis em virar o pescoço para olhar para trás, e com os macacos, que sabem pendurar-se de cabeça para baixo. O primeiro benefício desses jogos é que eles proporcionam a leveza indispensável a quem quer praticar a levitação extática Eles servem também para purificar a substância (lian tsing). Na verdade, constituem uma disciplina da respiração. Permitem ventilar o corpo inteiro, inclusive as extremidades.415

(6) – Lho Hã - O termo é formado pelos ideogramas Lho e Hã, que podem ser

traduzidos, respectivamente, por “seis” e “união” ou “harmonia”.416 De acordo

com o médico acupunturista Pan Yi Bo,417 a idéia de “União dos Seis” – ou de

“Seis Harmonias” - está vinculada a conceitos chineses que envolvem energia

(Chi) e, por conseqüência, uma dinâmica universal. Segundo o médico, esse conceito,

que foi absorvido pelo Taoísmo ainda durante a Dinastia Chou (1027 a 221 a.C.),

pertenceria a um corpo de conhecimentos mais antigo. O scholar Marcel Granet reforça

413 O mercúrio era conhecido pelos gregos como ágyros khytós, “prata derretida”. 414 Para uma descrição detalhada dos exercícios de aquecimento e alongamento no Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, ver <http://www.shaolincuritiba.com.br/aula.html> (c. 04.06.2004). 415 GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 310. Nos parece clara a relação entre os elementos enunciados por Granet e os chamados “Jogos dos Cinco Animais”. Sobre os Jogos dos Cinco Animais, ver cap. 2 desta dissertação. 416 Em chinês, o sentido de Hã se refere à união como harmonia entre opostos. 417 Em consulta verbal feita em Curitiba no dia 07.06.2004.

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essa informação, observando que muito cedo os chineses associaram suas teorias

cosmogônica, cosmológica, fisiológica e musical a certos números.418

Entre os números mais importantes estão o 5, 6, 7, 8 e 9. O primeiro deles é associado,

por exemplo, aos elementos fundamentais (água, fogo, madeira, metal e terra), às

atividades humanas (gesto, fala, visão, audição e vontade) e aos sinais celestes

(gravidade, boa ordem, sapiência, bom entendimento e santidade). Os outros quatro

números estão diretamente associados, por exemplo, ao I Ching, representando as quatro

possibilidades de configuração de cada linha de um hexagrama a partir dos valores

básicos 2 e 3. Assim, a soma de três números 2 gera uma linha de valor 6, chamada

“movediça”; a soma de dois números 2 e de um 3 geram uma linha cheia de valor 7,

chamada “yang jovem”; a soma de um número 2 e dois números 3 gera uma linha

segmentada de valor 8, chamada “yin jovem”; e a soma de três números 3 gera uma linha

de valor 9, chamada “movediça”.419

Observando o texto de Granet e as

informações a nós transmitidas por Pan Yi

Bo, fica claro que a valoração dada pelos

chineses aos números como chaves para

a organização/compreensão do universo é

muito grande, não podendo ser expressa

nas poucas linhas de uma dissertação.

Independente disso, pode-se afirmar que os “grandes números” citados no parágrafo

anterior guardam profundas relações entre si. Vale observar, ainda, que nos parece difícil

fazer uma leitura estanque de um único deles. Ainda assim, diante do “desafio de Lho

Hã”, podemos destacar algumas das “presenças do 6” no pensamento chinês.

A tradição indica seis pontos de referência espacial: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro

(dividido em “Alto” e “Baixo”, equivalentes a “Céu” e “Terra”). Em termos de representação

cartesiana, esses limites estariam dispostos, respectivamente, sobre os eixos x, y e z. O

ponto localizado na interseção desses eixos – o zero do gráfico - estaria numa condição

de Lho Hã.

418 GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 101 a 187 e 223 a 238. 419 Para um aprofundamento a respeito da atribuição de valores numéricos na construção dos hexagramas do I Ching, ver LEGGE, “I Ching...”, p. 37 a 47.

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Uma referência mais intrincada pode ser encontrada na divisão das estações do ano.

Inicialmente, há que se considerar uma equivalência Yang-Yin feita pelos chineses para

as estações: ao verão (Yang),420 equivale o inverno (Yin) e, à primavera (Yang), equivale

o outono (Yin). Há, portanto, dois grandes pares de opostos – duas estações Yang e duas

Yin -, que, a título de visualização, poderiam ser representados por dois Tai-Chi. Cada

uma das estações, porém, é dividida em três fases, que equivalem à evolução de suas

características típicas (início, meio e fim) e aos meses que a compõem (cada estação

dura três meses). Desse modo, a cada terço de uma estação corresponde um terço de

sua estação oposta. Assim, não há apenas dois Tai-Chi, mas doze; ou, para chegar ao

“número áureo” de nosso estudo, seis Tai-Chi em cada um dos grandes pares de opostos.

Nesse contexto, Lho Hã equivale à harmonia eterna que governa a relação entre o Céu, a

Terra e o Tempo: se em determinada época do ano a superfície de um lago congela

(inverno), em outra será batida pelo vento (verão); se em determinada época os peixes

desse lago se reproduzem (primavera), em outra estarão devotados a preparar o próprio

corpo para enfrentar os meses de frio (outono).

Sendo o ente humano, ao mesmo tempo, um “pequeno” Tai-Chi (“microcosmo”) e um

componente do “grande” Tai-Chi (“macrocosmo”), também nele o conceito de Lho Hã está

presente. Vale observar que a construção de novos Tai-Chi (fig. 45, itens 2 e 3) é

possível, ad infinitum, a partir da crista e vale da linha sigmóide gerada pelo Tai-Chi

anterior (1). Por essa representação, Tai-Chi está em tudo. Dessa forma pode-se afirmar

que, dentro do contexto marcial – foco de nosso estudo - a prática correta deve atentar

para a União ou para a Harmonia dos Seis, ou, em outras palavras, para o equilíbrio das

polaridades Yin e Yang.

5.4.1.2 – As costas da camiseta – O Dragão

O dragão – em chinês, lung ( ) - é uma figura simbólica universal (ver fig. 46).421

Presente em praticamente todas as culturas,422 ganhou especial deferência na China. De

acordo com Juan-Eduardo Cirlot, o poder do dragão no imaginário se deve,

420 Originalmente, segundo Pan Yi Bo, o termo “Yang” se referia ao sol. 421 Imagem da esquerda extraída de camiseta. Imagem da direita: placa no salão da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu em São Paulo. Os ideogramas significam “Shaolin do Norte” (imagem do autor: junho de 2004). 422 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213.

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principalmente, ao fato dele representar o animal por excelência423 e, por conta disso, o

inimigo.424 Essa relação animal x inimigo pode se referir a um medo atávico nascido em

dias em que os seres humanos eram mais caça do que caçadores.

Diante de uma tal configuração,

matar o dragão equivaleria a

destruir o Mal – daí porque a

recorrência de enfrentamentos e

vitórias míticas como as que

envolvem São Jorge, São

Miguel Arcanjo, Cadmo, Perseu,

Siegfried e até o messias

cristão.425 Autores ocidentais

como Plínio, Galiano e Pascal

atribuem ainda aos dragões atributos como força, vigilância e visão aguçada, que fariam

deles os mais perfeitos guardiães de templos e tesouros, bem como seres sábios e

capazes de prever o futuro.

Ao contrário de seu parente

ocidental, o dragão chinês não

guarda uma relação com o Mal.

Segundo Cirlot, “a China é,

possivelmente, o lugar onde o

dragão alcançou maior difusão e

transfiguração (...)”.426 É um ser

reverenciado por suas

características ao mesmo tempo

divinas e humanas. O Lung é

423 Normalmente, é construído a partir de partes de animais ferozes como o tigre, a serpente, o crocodilo e até dinossauros (lidos a partir de fósseis). 424 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213. 425 “...e eis que era um dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabeças sete diademas.” BÍBLIA SAGRADA, Apocalypse de São João, 12, 3. Lisboa: Sociedade Bíblica Britannica e Estrangeira, 1955, 923 p., p. 231 (Novo Testamento). 426 CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 215.

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manhoso, benfazejo, cruel, generoso, sábio e irritável. É possível que, por essas

características – principalmente as relativas à sabedoria e ao poder - tenha sido

associado muito cedo à casa imperial chinesa.

De acordo com a tradição, o imperador mítico Fu Hsi era dotado de uma cauda de

dragão; seu sucessor, Shen Nung, era filho de um dragão. Elementos “draconianos” eram

associados à vida do imperador (fig. 47 e 48):427 seu trono era o “Trono do Dragão”, seu

caminhar era a “Marcha do Dragão”, sua expressão, a “Face do Dragão” e suas palavras

– é claro -, as “Palavras do Dragão”.428

No pensamento chinês, o dragão é associado a Yang e sua contraparte, Yin, à fênix;429

em muitas representações, porém (como a da ilustração 48), essa contraparte feminina é

representada na forma de uma pérola. A respeito da relação pérola x dragão, Jorge Luis

Borges escreveu: “é comum representá-lo com uma pérola, que ora engole, ora cospe;

nesta pérola está seu poder. É inofensivo se despojado dela”.430 Entendemos que essa

informação corrobora o conceito do conjunto dragão x pérola como representação do Tai-

Chi: despojado da pérola, o dragão perde poder, ou seja, deixa de ser; da mesma forma,

uma polaridade não subsiste sem a outra. Vale observar, ainda, o comentário de Borges a

respeito de o dragão engolir e cuspir a pérola – a imagem parece se referir à permanente

dinâmica de mutação entre Yin e Yang.

A comparação entre os dragões representados nas ilustrações 46 e 48 aponta para um

fato notável: ou o primeiro (da camiseta) foi decalcado do segundo, ou – hipótese mais

provável – ambos derivam de uma matriz mais antiga. A única diferença importante entre

as figuras está no elemento envolvido pelo dragão: enquanto na figura do Sistema Sino-

Brasileiro o ser mítico “abraça” um conjunto Pa Kua/Tai-Chi, na do robe imperial o

elemento envolvido é a pérola. Com base nas informações referentes à identificação

dragão/Yang e pérola/Yin, podemos afirmar que há um equívoco iconográfico na figura

estampada nas camisetas do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu, uma vez que, diante da

noção de equilíbrio proposta pelo Taoísmo, não há lógica em um elemento Yang (o

427 Imagem disp. In <http://www.chinapage.com/images/qianlong.jpg> (c. 06.07.2004). Para inf. sobre Qianlong (1736 – 1795), ver SPENCE, J., “Em busca da China Moderna”, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 817 p., p. 104 a 128. 428 Inf. presente in <http://sorrel.humboldt.edu/~geog309i/ideas/dragons/chin.html> (c. 05.06.2004) 429 Idem. 430 BORGES, J.L. & GUERRERO, M., “O Livro dos Seres Imaginários”, 6ª edição, São Paulo: Editora Globo, 1989, 214 p., p. 63.

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dragão) envolver um uma representação do equilíbrio Yang-Yin (o conjunto Tai-Chi/Pa

Kua).

O caráter de poder e de proximidade em relação um importante elemento nacional chinês

(o imperador) parece ter sido determinante para a inclusão do dragão nas costas das

camisetas das academias do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu. Assim como o dragão

imperial, também o representado nas camisetas possui cinco garras. Ele é, de fato, uma

versão estilizada do dragão imperial clássico.

Há ainda que observar, nessa “conexão imperial”, a relação entre a presença do elemento

iconográfico e a nobreza da vestimenta. De modo geral, dragões eram associados às

vestes do próprio imperador ou, então, de seus representantes legais – burocratas,

oficiais militares e administrativos. A ilustração 48, por exemplo, mostra o dragão bordado

em uma túnica de seda pertencente a um mandarim da Dinastia Qing (do período Chia-

Ching, entre 1796 e 1820).431 A ilustração 47 é ainda mais incisiva: mostra o imperador

Qing Qianlong portando uma túnica com o motivo do dragão bordado na altura do peito.

Em outras palavras, pode-se dizer que, ao acrescentar o dragão, o designer da

iconografia das camisetas do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu buscou aproximar seu

“produto marcial” de dois elementos altamente valorizados pela mente chinesa tradicional:

um ícone mágico-religioso de caráter étnico, altamente venerado, e um poder imperial

“eterno”. Ao nos referirmos à “mente tradicional”, tratamos de uma configuração de longa

data. O poder comunista, que negou esses valores, é muito recente diante dos quatro mil

anos de História da China. Além disso, há que se considerar o fato de que, por mais

ortodoxos que sejam, os ideólogos comunistas chineses dificilmente vão conseguir afastar

sua sociedade de referenciais tão poderosos quanto os estabelecidos por uma tradição

milenar.

5.4.2 – “Placa da Ética e da Ancestralidade”

Este é, sem dúvida, o menos compreendido dos ícones do Shaolin do Norte. O motivo é

simples: ele não apresenta figuras, mas exclusivamente ideogramas. Sua tradução, como

pudemos constatar, não é das mais simples, mesmo para conhecedores da escrita e da

431 Imagem in <http://www.chinapage.com/dragon1.html>. Outra túnica (séc. XIX) com o mesmo motivo in <http://dept.kent.edu/museum/costume/bonc/2geographicsearch/China/china.html> (c.05.06.2004)

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filosofia chinesa (o nome que adotamos para denominá-lo, um tanto quanto “gongórico”,

dá um indício dessa dificuldade). De acordo com o mestre acupunturista Pan Yi Bo,

responsável pela tradução,432 os ideogramas são arcaicos e estão dispostos de acordo

com uma configuração “clássica”, que implica em um sentido mais simbólico que o da

escrita comum. Apesar do hermetismo, as placas estão presentes em várias academias

do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (fig. 49, 50 e 51).433 Em nossa pesquisa,

encontramos o elemento em três academias - de Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh e

Rogério Leal Soares -, com diferenças mínimas entre si (de cor e tamanho).

Normalmente, porém, essas placas são pintadas em vermelho, cor presente em muitos

elementos chineses de natureza religiosa, como altares e ícones. Em seu estudo a

respeito da iconografia religiosa chinesa, Keith Stevens examinou atentamente as placas

e levantou uma série de informações importantes para a nossa pesquisa:

Placas são freqüentemente encontradas nos altares chineses. Fabricadas em madeira, apresentam muitas variações locais e estilos diversos. Elas também possuem um número significativo de papéis e funções. Os chineses geralmente acreditam que toda pessoa possui três almas. Quando uma pessoa morre, sua primeira alma é enterrada com o corpo, a segunda é conduzida à sua placa ancestral e a terceira é enviada para o Submundo, para julgamento e eventual renascimento. As placas normalmente mais encontradas, portanto, são as ligadas à ancestralidade. Cada placa representa o repositório para o espírito de uma pessoa ou de marido e mulher. Elas geralmente são mantidas em casa, onde são reverenciadas pelos descendentes [da pessoa falecida]. Alternativamente, podem ser encontradas em salões especiais nos templos budistas. Os benefícios obtidos com as preces ditas pelos monges auxiliam os espíritos dos mortos no Além; ao mesmo tempo, desobrigam as famílias do oferecimento regular de incenso aos espíritos que habitam nas placas. Há, também, placas ancestrais dedicadas a uma geração inteira dentro de um clã. Elas são mantidas com placas de outras gerações no altar principal do templo do clã. Outras placas nos altares representarão uma divindade (ou grupo de divindades). Estas são geralmente vistas apenas em templos rurais, onde o custo do entalhe de uma imagem é muito alto para a comunidade. Entretanto, várias podem ser vistas em altares de templos mais ricos, ficando aos pés da divindade principal e funcionando como representações adicionais. Finalmente, há placas muito superiores [em qualidade] - raramente vistas hoje em dia - dedicadas ao imperador da época em que foram produzidas. O título imperial não estava na placa; ela simplesmente lhe desejaria vida longa. Essas placas costumavam ser obrigatórias em todos os principais templos taoístas e budistas. Elas ficavam na extremidade do altar principal. Através das placas, os oficiais locais saudavam o imperador em seu aniversário e no Ano Novo Lunar.434

A primeira coisa a observar em relação às placas do Shaolin do Norte é sua proximidade

dos altares. Em todas as academias onde as placas foram encontradas (São Paulo,

432 Tradução feita em fevereiro de 2004 e acompanhada pelo autor. 433 Foto 1 feita em junho de 2004. Fotos 2 e 3 feitas em junho de 2003. Acervo do autor. As placas 1 e 3 têm fundo vermelho. A placa 2 tem fundo amarelo “envelhecido”. Em todas, os caracteres foram escritos em preto.

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Florianópolis e Curitiba), elas estavam relacionadas ao altar padrão, de forma direta (a

placa no centro do altar) ou indireta (ao lado).

A partir de uma leitura das partes que compõem a placa é possível verificar se há outros

pontos de contato entre esse elemento iconográfico e as informações de Keith

Stevens.Uma leitura geral da placa indica uma forte presença confucionista, com

destaque para a recordação de ancestrais importantes e de caráter divino.

O Confucionismo, doutrina filosófica (e, mais tarde, religiosa) fundada no século IV a.C.

por K´ung Tzu ou Confúcio (551 – 479 a.C.), prega a retidão moral e o respeito à

hierarquia e aos ritos. Suas premissas, de acordo com segundo Keith Stevens, são a

Piedade Filial (Hsiao), Reverência Fraternal (Ti), Lealdade (Hsin), Polidez, Propriedade

(Li), Honradez (I), Integridade (Lien) e Modéstia, Continência (Chieh).435 São valores que

permeiam o código de ética chinês, sendo aplicáveis, de modo especialmente apropriado,

às atividades de caráter marcial. A seguir, vamos interpretar cada um dos elementos da

placa, de acordo com a numeração determinada na fig. 52:

434 STEVENS, “Chinese Gods…”, p. 23. Trad. livre do inglês. 435 STENVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 82.

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Entendimento dos Termos:

(1) – Título – Os ideogramas de “abertura” da placa do Shaolin do

Norte (leitura da esquerda para a direita) são, seguramente, a melhor

indicação do direcionamento confucionista desse elemento iconográfico. Literalmente,

segundo o médico acupunturista Pan Yi Bo (tradutor), os ideogramas podem ser

traduzidos por algo como “Mestre Exemplar, Modelo Eterno”, título tradicionalmente

atribuído a Confúcio.

(2) – Código Ético 1 - Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o

tradutor, está delineado o papel do verdadeiro mestre de uma arte marcial.

Literalmente, os ideogramas poderiam ser traduzidos por algo como “Ensinamento

de Cultura, Filosofia e Artes Marciais – para Servir o Mundo”. Novamente, a

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148

presença é confucionista, ligada, aparentemente, aos valores fundamentais de

Reverência Fraternal (Ti), Propriedade (Li), Honradez (I) e Integridade.

(3) – Código Ético 2 – Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o

tradutor, está uma afirmação da qualidade da arte ensinada. Literalmente, os

ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Conhecimento correto, forma,

maneira, técnica, princípios – arte marcial ministrada é original e correta.” Aqui, os

elementos se ligam, em um primeiro momento, à afirmação da qualidade do

mestre; a “tradução confucionista” se dá pela associação com os princípios de

Lealdade (Hsin) – para com os alunos, Propriedade (Li) – dos conhecimentos,

Honradez (I) – na afirmação chancelada, por escrito, dos conteúdos que o mestre domina,

e Integridade (Lien) – na correção e originalidade dos ensinamentos.

(4) – “Oferecer” - Aqui, mais uma vez, está presente um elemento confucionista.

“Oferecer”, sem dúvida, remete ao mandamento confucionista de “Servir o Mundo”.

(5) – “Servir” – A palavra é a própria essência do Confucionismo, na razão em que

remete à virtude e ao desprendimento como qualidades fundamentais ao ser

humano correto.

(6) – “Zhou Tong” –. A primeira referência encontrada relaciona Zhou Tong (o

“Pequeno Rei”) a Yue Fei (14). Ele teria ensinado ao general de Song as técnicas

de um estilo de Kung-Fu chamado Chuojiao.436 A segunda referência é literária:

Zhou Tong é um dos personagens da novela clássica “Os Fora-da-Lei do Pântano”

(também conhecida como “Crônicas da Margem das Águas”)437, escrita entre 1290 e 1400

por Shi Nai’na e Luo Guanzhong. A novela se refere a fatos reais ocorridos no período de

vida de Yue Fei.

(7) – “Zu Lai Tzu” – De todos os componentes da placa, este foi o de tradução

mais incerta. Em princípio, Zu Lai é um termo budista chinês oriundo da

transliteração do termo indiano Vairocana, “aquele que vem com o sol”. No

436 Inf. disp. no site chinês <http://www.chinavoc.com/kungfu/schools/cata_chj.asp> (c. 21.06.2004) 437 Para um estudo acadêmico da obra, ver <http://clausius.engr.utk.edu/planetc/books/outlaws/text/history.html> (c. 21.06.2004)

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Budismo Mahayana, Zu Lai (Vairocana) seria a contraparte cósmica de Sakyamuni.438 O

mais intrigante, em relação ao termo, é a terminação Tzu, que, em princípio, poderia ser

traduzida como “Venerável” ou “Sábio”. Não acreditamos que essa terminação possa ser

aplicada à divindade, uma vez que, normalmente, designa seres humanos. Além disso, há

que se considerar o contexto da placa: em um elemento iconográfico quase que

exclusivamente confucionista (à exceção dos elementos Ta Mo e Sao Lin, relacionados a

uma existência temporal), a presença de uma figura budista altamente esotérica parece

incongruente.

(8) – “Zhang Xian” – Genro de Yue Fei (14), se manteve leal a ele. Acabou preso,

executado e sepultado junto com o sogro e com o cunhado, Yue Yun.439

(9) – “Yue Yun” – A referência, nesses ideogramas, é a um indivíduo, mais

propriamente a Yue Yun, filho mais velho de Yue Fei (14). Yue Yun viveu na

passagem entre o período das chamadas “Cinco Dinastias e Dez Reinos” e a

Dinastia Song (960 – 1279). As cinco dinastias foram Liang Posterior (907 – 923), Tang

Posterior (923 – 936), Jin Posterior (936 – 946), Han Posterior (947 – 950) e Zhou

Posterior (950 – 960); os dez reinos foram Wu (902 - 937), Shu Inicial (907 - 925), Wu

Yue(908 - 978), Min (909 - 946), Tang do Sul (937 - 975), Chu (927 - 951), Han do Sul

(917 - 971), Nan Ping (925 - 963), Shu Tardio (934 - 965) e Han do Norte (951 - 979). A

época, que sucedeu à Dinastia Tang,440 e antecedeu à Dinastia Song, foi de

violentos confrontos pelo poder. Por volta de 1130, as tropas da Casa de Song,

lideradas pelo general Yue Fei, haviam imposto sérias derrotas ao reino de Jin e estavam

prestes a dominar a cidade de Kaifeng. Por instigação de um traidor chamado Qin Hui, o

imperador Gao Zong foi convencido de que deveria abandonar o combate e adotar uma

estratégia de paz e alianças. Por conta disso, Yue Yun, Yue Fei e Zhang Xian (9, 14 e 8)

foram chamados a Nanjing, onde acabaram presos. Foram executados em 1141441 (fig.

53).442

438 Ver <http://concise.britannica.com/ebc/article?eu=406998> (c. 21.06.2004) 439 Inf. disp. em <http://www.chinatravelclub.com/topsight/19.asp> (c. 21.06.2004) 440 Sobre a Dinastia Tang, ver cap. 2 desta dissertação. 441 Informações em <http://www.allempires.com/empires/song/song1.htm> (c. 21.06.2004) 442 À esquerda, tumbas; à direita, ícones em pedra representando os personagens. Imagens extraída de <http://www1.china.org.cn/features/photos/zhejiang/zjcity.htm#>

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(10) – “Genealogia Shaolin”443 – A finalidade do texto central da placa do

Shaolin do Norte é indicar a origem do estilo praticado. Tanto, que os dois

primeiros ideogramas (leitura de cima para baixo) são Sao e Lin – Shaolin. A

coluna ainda relaciona os nomes de Ta Mo (Bodhidharma)444 como fundador

da arte marcial e, também, o de Yue Fei/Yue Wei (14).

(11) – “Sao Lin” (Shaolin) – “Floresta Jovem”, nome do mosteiro construído por

volta de 495 na encosta do Monte Song (Songshan), em Henan.445

(12) – “Fundador” – Os dois ideogramas identificam Ta Mo (13) como fundador da

marcialidade em Shaolin.

(13) – “Ta Mo (Bodhidharma)” – Considerado o patriarca do Zen Budismo,

Bodhidharma teria chegado à China no início do século VI. Ele teria vivido no

mosteiro de Shaolin por sete anos, entre 520 e 527. Segundo a tradição das artes

marciais, ele teria ensinado aos monges uma série de técnicas respiratórias que estariam

na base do estilo de luta originário do templo.446

(14) – “Yue Fei/Yue Wan” – Como observado no item 9, Yue Fei foi um general da

Dinastia Song. Ainda sobre este personagem, vale observar que ele foi alçado à

443 Por razão de editoração, dividimos a coluna em dois blocos. A leitura deve ser feita de cima para baixo, começando pelo bloco da esquerda. 444 Sobre Ta Mo, ver cap. 2 desta dissertação. 445 Sobre Shaolin, ver cap. 2 desta dissertação. 446 Sobre a historicidade do “mito de Ta Mo”, ver o cap. 2.

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condição de divindade pela religiosidade popular. Herói nacional, passou a ser

reverenciado como padroeiro dos exércitos e, no norte da China durante a primeira

metade do século XX, como “Deus da Guerra”. Em tempos recentes passou, também, a

ser a divindade tutelar de mercadores e lojistas (em Beijing, ainda hoje os lojistas

chacoalham seus ábacos pela manhã para homenagear Yue Fei).447

5.4.3 – O Altar

De acordo com Keith Stevens, os altares chineses podem ser divididos em dois tipos, de

acordo com sua finalidade religiosa: um possui caráter institucional (para divindades) e o

outro, doméstico (culto aos antepassados).448 Diante da configuração dos altares

encontrados em academias visitadas durante a pesquisa de campo,449 tendemos a

acreditar que eles cumpram, ao mesmo tempo, as duas finalidades, uma vez que tanto as

fotos dos antepassados marciais quanto a placa com ideogramas são posicionadas sobre

a mesma “mesa de oferendas”.

Nas academias de Shaolin do Norte os altares ficam em lugar de destaque, na parede em

direção à qual os alunos se voltam durante o treinamento. São colocados em uma

posição alta, de modo geral acessível apenas pelo uso de uma banqueta ou por meio de

um esforço de alongamento corporal. É a mesma posição adotada, normalmente, nos

templos chineses e nas salas de culto doméstico aos antepassados (fig 54 e 55).450 São

estruturas simples, semelhantes a encontradas na China; porém, enquanto nas

academias brasileiras esses altares se caracterizam de modo absoluto pela simplicidade,

naquele país eles apresentam vários graus de sofisticação, que vão de placas em

madeira ou pedra assentadas sobre engastes nas paredes (como no caso brasileiro) até

estruturas em forma de capela, ricamente talhadas e finamente coloridas.

É para os altares das academias que professores e alunos se dirigem com a saudação

tradicional quando entram e saem das áreas de treinamento e, também, quando iniciam

447 STEVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 128. 448 Ibid., p. 37 a 39. 449 São Paulo, Florianópolis e Curitiba (nesta cidade foram duas academias: a Sino-Brasileira de Kung-Fu e a Senda, cujo professor não pertence ao universo de entrevistados). Ver fig. 49, 50 e 51. 450 Fig. 54 em STEVENS, K., “Chinese Gods...”, p. 37. Fig. 55, imagem do autor (jul. 2004). STEVENS denomina “platform” (“plataforma”) o que chamamos de “mesa de oferendas”. A respeito da localização geográfica dos altares, ver STEVENS, K., “Chinese Gods”, p. 34 e 35.

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ou terminam as aulas.451 É neles, ainda, que os integrantes das academias (via de regra,

os mais antigos) colocam oferendas de incenso.

Não há um momento específico para “acender” as varetas aromáticas; muitas vezes,

porém, elas são colocadas em queimadores no início das aulas. Além dos queimadores

de incenso, as “mesas de oferendas” das academias podem incluir aquilo a que Stevens

chama de “parafernália” – vasos de flores, estatuetas de Buda ou de bodhisattvas como

Guanyin;452 nesse aspecto, não há diferença em relação aos altares chineses, onde

também é comum a disposição de diferentes tipos de objetos relacionados ao culto.

A fig. 56 mostra a disposição normalmente encontrada em altares das academias

brasileiras de Shaolin do Norte. A principal característica está no posicionamento das

451 Sobre a saudação específica do Kung-Fu, ver item 4.3.3.1. 452 O melhor exemplo desse universo de oferendas está na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo, onde, além do queimador de incenso, há arranjos florais e estatuetas de Buda. Ver. fig. 55.

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fotos dos antepassados marciais. Em três academias visitadas,453 a imagem do mestre Ku

Yu Sheung estava colocada à direita do observador, enquanto a do mestre Yang Sheung

Mo aparecia à esquerda. Ainda que a uniformidade da disposição das fotos pareça indicar

uma tradição, não há uma explicação teórica para ela e nem para a sua origem, uma vez

que não se verifica no altar da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo (nela,

a foto de Ku Yu Sheung aparece à direita da de Yang Sheung Mo). O altar de São Paulo é

marcado, também, por uma importante diferença em relação aos demais: ele traz fotos de

outros dois mestres (Fig. 57 e 58).454 Além dos relacionados diretamente ao Shaolin do

Norte, aparecem os mestres Yan You Chin (do estilo Hung Sing Choy Li Fut) e Yin Yan

Chui (estilo não identificado).

Em nossa avaliação, a

ausência dessas fotos nos

altares das outras

academias pesquisadas se

justifica por uma questão de

opção do mestre Chan Kowk

Wai: ainda que ele domine

vários estilos – 13, segundo

o libreto “Kung-Fu, versão

curta de uma história muito longa” –455 e ensine suas rotinas (normalmente, para alunos

avançados), optou pelo Shaolin do Norte como “estilo fundamental” (a melhor prova disso

é a presença dos caracteres - Shaolin do Norte - nas camisetas). Por conta disso,

as rotinas ligadas aos outros estilos – e, certamente, seus elementos tradicionais, como a

genealogia – acabaram situados em um segundo plano, principalmente para os alunos de

regiões distantes de São Paulo. A dificuldade de obtenção das fotos dos mestres faltantes

nos altares não serve como justificativa para a “ausência iconográfica”, uma vez que

várias fotos históricas relativas aos mestres Yang Sheung Mo e Ku Yu Sheung – obtidas

provavelmente de Chan Kowk Wai - estão disponíveis em academias e na internet.456

453 Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis, Sino-Brasileira de Kung-Fu de Curitiba e Senda (Curitiba). 454 Fig. 57: foto do autor; fig 58 extraída de “Kung-Fu, versão curta...”, p. 17. 455 “Kung-Fu, versão curta...”, p. 20 e 21. 456 Como em http://www.shaolincuritiba.com.br/fotos.html (c. 15.07.2004).

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5.4.3.1 – Um conjunto semântico de prevalência confucionista

Como observado na abertura deste capítulo, acreditamos que a junção fotos dos mestres

x “placa da ética e da ancestralidade” x “mesa de oferendas” x “parafernália”, vista nos

altares das academias pesquisadas, configura um conjunto semântico “fechado”, cujo

significado sintetiza uma parte importante do elemento religioso no Sistema Sino-

Brasileiro de Kung-Fu (a outra parte está no conjunto semântico representado pela

camiseta). A grande diferença entre esses dois conjuntos se refere ao que denominamos

de “elemento ancestral”: enquanto nas camisetas prevalecem elementos taoístas (e pré-

taoístas), nos altares a prevalência é de elementos confucionistas, que se referem à ética

e à devoção de antepassados marciais históricos e míticos. Nos dois casos, o Budismo

aparece ligado, fundamentalmente, ao nome do mosteiro de Shaolin (em alguns altares

aparecem, ainda, imagens budistas).

A queima de incenso junto às fotografias e a saudação dirigida ao altar pelos praticantes

quando da entrada no salão de treinamento nos parecem mostrar, claramente, uma

prática ritual relacionada a um culto aos antepassados. Em nosso entendimento, a

presença do altar e os rituais a ele relacionados indicam um aspecto institucional

revelador: para a tradição chinesa, as gerações de praticantes do Shaolin do Norte – e,

certamente, de outros estilos de Kung-Fu – guardam um parentesco marcial, uma

chancela para o subuniverso cultural. Vale observar a existência de práticas semelhantes

entre as chamadas “tríades”,457 o que, em tese, poderia indicar uma relação entre a

prática marcial e o movimento sectário na China.

5.5 - Interpretação das informações do capítulo

A “tradução” dos elementos iconográficos religiosos e não-religiosos encontrados nas

academias brasileiras de Shaolin do Norte parece confirmar, em um primeiro momento, a

configuração de um subuniverso semântico nos moldes apontados por Berger e

Luckmann. Em relação à iconografia de caráter religioso, ela revela uma presença intensa

de elementos ligados ao Taoísmo e ao Confucionismo; nesse contexto, o Budismo, ainda

que diretamente relacionado ao nome do estilo – e à mente dos praticantes - aparece

menos representado, o que remete ao apreço chinês por elementos culturais “autóctones”

457 A respeito das tríades, ver cap. 2 desta dissertação.

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e para a fusão religiosa verificada na China no século V. A observação dos elementos

iconográficos nos leva a crer que eles sejam produto da religiosidade popular chinesa,

transmitida pelo introdutor do Shaolin do Norte em terras brasileiras – Chan Kowk Wai -

para seus discípulos ocidentais. O uso das camisetas e a queima de incenso nos altares

apontam para três possibilidades:

- a primeira, de caráter meramente institucional, relacionada à configuração do uniforme

de prática marcial: caso das camisetas, que são usadas junto com calças pretas - com

listas laterais azuis ou brancas -, e de um “ritual de academia” - o cumprimento ao altar e

a queima de incenso - que se configuraria como “ingresso” ao ambiente de prática e ao

subuniverso cultural do Kung-Fu;

- a segunda, de caráter devocional, relacionada à percepção, por alunos e professores, do

conjunto de valores religiosos presentes na esfera mental do Kung-Fu do Shaolin do

Norte;

- a terceira, de caráter misto, compreendendo a relação instrumental com a iconografia e

um conhecimento respeitoso, mas superficial, da religiosidade envolvida. Esse

conhecimento superficial, vale observar, estaria mesclado a concepções individuais a

respeito da religiosidade chinesa.

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6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...” – APRESENTAÇÃO E LEITURA DOS

RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO

6.1 – Considerações preliminares

De acordo com um velho ditado chinês, alguém só é capaz de chegar a um filhote de tigre

se adentrar à Montanha do Tigre.458 Em seu sentido tradicional, esse ditado é, ao mesmo

tempo, uma fonte de inspiração e um aviso para o buscador. No pain, no gain: se há

esforço, há resultado; se se deseja o resultado, deve-se encarar o esforço. Em nosso

contexto geral de pesquisa, o “filhote de tigre” é a resposta aos questionamentos

propostos com base nas hipóteses de trabalho e no quadro teórico. O “Tigre”, por sua

vez, é o conjunto de desafios enfrentados para alcançar essa resposta.

No contexto deste capítulo, porém, o ditado ganha contornos um pouco diferentes: ainda

estamos marchando pela montanha e, por conta disso, não podemos descuidar do tigre,

que é quem vai nos levar à preciosa cria. Até o momento, porém, através da análise de

fontes documentais, apenas o cercamos: encontramos os ossos de seus pais, recolhemos

as pistas deixadas na floresta, ouvimos histórias do povo e até captamos os urros da fera

na distância. A partir de agora vamos encontrá-lo de fato, olho no olho, e com ele

interagir. E quem é esse “pequeno-grande” Tigre? Neste caso - com a devida licença

poética –, são os entrevistados.

6.2 – O universo da pesquisa

Através de entrevistas com representantes de quatro gerações de praticantes buscamos

descobrir o papel dos elementos histórico-religiosos do Kung-Fu para a formação de uma

identidade e de uma tradição histórico-religiosa no subuniverso da arte marcial chinesa no

Brasil. Procuramos observar os elementos semânticos “externos”, alheios à tradição, que

influenciaram na conformação desse subuniverso. A partir desses dados - e de sua

confrontação com as conclusões obtidas no levantamento junto às fontes documentais -

adquirimos os elementos essenciais para a confirmação ou refutação de nossas hipóteses

458 Citado pelo mestre Lee Chung Deh ao autor desta dissertação em uma conversa durante os anos 80 do séc. XX.

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e, também, para a produção de um diagnóstico do futuro do Kung-Fu do Shaolin do Norte

em relação a seus conteúdos não-corporais.

Ao estabelecer o universo da pesquisa de campo, buscamos focalizar um grupo de

indivíduos ligados entre si verticalmente, ou seja, por uma “genealogia marcial” direta: o

representante de primeira geração transmitiu seus conhecimentos para o de segunda

geração que, por sua vez, os transmitiu para os de terceira geração; estes, por sua vez,

os estão transmitindo para os representantes de quarta geração. Essas gerações partem

do mestre chinês que introduziu o Shaolin do Norte no Brasil, Chan Kowk Wai, e chegam

a praticantes brasileiros avançados, orientados por professores não-chineses que dão

aulas em regiões distantes da cidade de São Paulo.459 Ao todo foram entrevistadas dez

pessoas, número que consideramos suficiente para a obtenção dos dados necessários ao

esclarecimento das questões propostas pela pesquisa (fig. 59).

Ao optar por um pequeno número de entrevistados, seguimos o entendimento de Hans-

Jürgen Greschat sobre a relação extensão da pesquisa x profundidade:

A maioria dos cientistas da religião (...) não dispõe de uma base técnica e dos recursos financeiros necessários para realizar entrevistas representativas de fiéis. Eles são obrigados a optar por um outro procedimento; isso não implica necessariamente, porém, em perda de qualidade, uma vez que a profundidade compensa o reduzido universo de pesquisa.460

459 Onde está instalada a academia de Chan Kowk Wai.

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A questão da dispersão geográfica dos entrevistados foi levada em conta a fim de que

pudéssemos observar, mais claramente, a existência de um núcleo semântico comum. O

mestre introdutor dos conteúdos no Brasil vive e dá aulas na cidade de São Paulo (SP); o

mestre de segunda geração vive e dá aulas em Curitiba (PR); os professores (terceira

geração) vivem e dão aulas em Florianópolis (SC) e em Campo Grande (MS); seus

alunos (quarta geração) vivem e praticam Kung-Fu nessas cidades. As entrevistas foram

feitas, em sua maioria, nas próprias academias (São Paulo, Curitiba e Florianópolis); as

entrevistas com o professor e os alunos de Campo Grande foram realizadas na academia

Senda, em Curitiba, durante a realização de uma competição interestadual de arte marcial

chinesa.461 Foram entrevistados os seguintes integrantes do subuniverso cultural do

Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte no Brasil:

Quadro 3 - Entrevistados

1ª Geração Mestre Chinês 1

Chan Kowk Wai, 70, Cantão. Mestre de arte marcial chinesa.

Proprietário da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu (SP).

Tempo de prática marcial: 66 anos.

Entrevista: junho de 2004

2ª Geração Mestre Chinês 2

Lee Chung Deh, 52, Taiwan. Mestre de arte marcial chinesa.

Ministra aulas em clube de Curitiba (PR).462 Tempo de prática marcial: 30 anos. Detentor da denominação “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Curitiba”. Entrevista: 16.08.2004.

3ª Geração Prof. Brasileiro 1

Rogério Leal Soares, 47, Camaquã (RS). Grau de instrução:

ensino médio completo. Professor de arte marcial chinesa. Dá aulas em academia dentro de escola de Florianópolis (SC). Tempo de prática: 29 anos. Detentor da denominação “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis” Entrevista: julho de 2003.

460 GRESCHAT, H., “Was Ist Religionswissenschaft?”, Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz: Kohlhammer, 1988, p. 66 461 A VII Copa Interestadual Senda de Kung-Fu, realizada nos dias 21 e 22 de junho de 2003.

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4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

Antônio Otolívio Henrique, 53, Florianópolis. Grau de instrução: superior completo. Cirurgião dentista. Tempo de prática marcial: 21 anos Entrevista: julho de 2003.

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

Daniel João Alves, 37, Santo Amaro da Imperatriz (SC). Grau de instrução: ensino médio completo. Vendedor. Tempo de prática marcial: 12 anos. Entrevista: julho de 2003.

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 1

Killian Johnny Hochsteiner, 40, Florianópolis.

Grau de instrução: superior completo. Engenheiro eletricista. Tempo de prática marcial: 21 anos. Entrevista: julho de 2003.

3ª Geração Prof. Brasileiro 2

Dirceu Coelho, 37, Campo Grande (MS).

Grau de instrução: ensino médio completo. Professor de arte marcial chinesa. Proprietário de academia em Campo Grande (MS). Tempo de prática marcial: 21 anos. Academia Shaolin do Norte de Kung-Fu. Entrevista: 21 de junho de 2003.

4ª Geração Aluna Professor Brasileiro 2

Juliana Justino, 21, Campo Grande (MS).

Grau de instrução: superior incompleto (acadêmica de Educação Física). Tempo de prática marcial: 12 anos. Atleta da seleção brasileira de Kung-Fu/Wu-Shu. Entrevista: 21 de junho de 2003.

462 À época da pesquisa, era proprietário de academia na mesma cidade. Atualmente, ministra aulas na Sociedade Juventus, na mesma cidade

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4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 2

Robson Bambill, 38, Campo Grande (MS). Grau de instrução: ensino médio completo. Comerciante, prof. de Kung-Fu. Tempo de prática marcial: 18 anos. Entrevista: 21 de junho de 2003.

4ª Geração Aluno Professor Brasileiro 2

Rodrigo Vieira, 22, Campo Grande (MS). Grau de instrução:

superior completo. Publicitário.

Tempo de prática marcial: 4 anos.

Entrevista: 21 de junho de 2003.

6.3 – O modelo da pesquisa

A fim de garantir a profundidade exigida por uma pesquisa com um número reduzido de

participantes, adotamos como ferramenta para obtenção de dados a entrevista, realizada

a partir de questionários previamente estabelecidos, construídos a partir de núcleos

temáticos.463 A preocupação com a adoção de modelos específicos de questionário foi

especialmente importante em relação a professores e alunos (terceira e quarta gerações),

que tiveram suas respostas analisadas a partir da observação das semelhanças e

diferenças. Ainda assim, nos casos em que julgamos necessário especificar mais as

perguntas ou aprofundar respostas, realizamos desvios nos questionários (voltando, em

seguida, ao modelo pré-estabelecido).

No caso dos mestres originários - pelo fato de serem os únicos entrevistados em suas

categorias - esse princípio foi afrouxado, com vistas, principalmente, à obtenção de

respostas que esclarecessem tanto o significado da iconografia quanto o valor dado à

transmissão dos conteúdos não-corporais do Kung-Fu. Partimos, fundamentalmente, de

uma relação prévia de temas não informados aos mestres (eles sabiam, porém, que

estavam sendo entrevistados para uma pesquisa de mestrado), que foram explorados sob

a forma de perguntas gravadas. Há que se observar nesse caso, ainda, o fator domínio do

idioma: especialmente na entrevista com Chan Kowk Wai – que chegou ao Brasil com a

Page 161: shaolin à brasileira

161

idade de 26 anos – foi necessário colocar muitas das questões em um formato mais

“compreensível” visando o entendimento, pelo mestre, do que desejávamos saber. No

caso dos mestres originários buscamos, ainda, apresentar os elementos iconográficos de

nosso interesse sob a forma de pranchas que eles deveriam observar e explicar.

6.4 – A construção dos questionários – perguntas e temas

Ao construir os questionários buscamos abranger os núcleos temáticos que, de acordo

com nossa avaliação, pudessem fornecer os dados necessários à produção das

respostas às questões propostas no projeto de pesquisa. A seguir, vamos apresentar as

perguntas feitas aos mestres chineses, bem como os questionários propostos a

professores e alunos. A fim de facilitar a leitura e dinamizar o trabalho, optamos por

apresentar, na seqüência das séries de perguntas e questionários, quadros com as

conclusões obtidas a partir do cruzamento das respostas do entrevistados.464

6.4.1 – Entrevistado de primeira geração – grão-mestre Chan Kowk Wai

Como observado no item 6.3, a entrevista com Chan Kowk Wai não seguiu um

questionário formal. Isso se deveu, num primeiro momento, à inexistência de outros

mestres de primeira geração e, portanto, à não-necessidade de cotejamento dos dados.

Outro elemento que influiu para a adoção dessa tática foi o relativo à barreira de idioma. A

fim de obter as respostas, algumas vezes houve a necessidade de se refazer as

perguntas em termos mais simples. Não deixamos, porém, de pré-estabelecer grupos

temáticos. A seguir, apresentaremos esses grupos temáticos, seguidos das questões

propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de conclusões:

6.4.1.1 - Identificação:

1.1 - Nome:

1.2 - Idade:

1.3 - Nacionalidade:

1.4 - Escolaridade:

463 As perguntas foram apresentadas pelo pesquisador verbalmente e respondidas da mesma forma pelos entrevistados. Todo o processo foi registrado em fitas cassete que, depois, foram integralmente transcritas. 464 A íntegra da entrevista com cada um dos participantes da pesquisa, assim como as análises das respostas, estão disponíveis em <http://dissertakungfu.vila.bol.com.br> (site no ar desde 31.07.2004). A entrevista com Chan Kowk Wai e a análise dos dados de pesquisa estão, respectivamente, em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Chankowkwai.doc > e em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/conclui1.doc>.

Page 162: shaolin à brasileira

162

1.5 - Profissão:

6.4.1.2 - Questões de aproximação:465

2.1 - Mestre, o senhor acaba de retornar do Canadá. O senhor foi receber uma homenagem?

2.2 - Pelo que eu estou vendo, o diploma é da World Organization of Wushu and Kung-Fu Masters

Evaluation, em décimo grau. É o último grau?

6.4.1.3 - Chegada ao Brasil e início da transmissão de conteúdos marciais:

3.1 - O senhor chegou ao Brasil em 1960...

3.2 - O senhor começou a ensinar Kung-Fu assim que chegou ao Brasil?

3.3 - O senhor também deu aulas no Centro Cultural Chinês, é isso?

3.4 – Quando o senhor começou a dar aulas para brasileiros?

3.5 - Até quando o senhor deu aulas só para chineses?

3.6 - O senhor lembra de quando começou a ensinar na USP?

3.7 - Em 1973, 1974 a gente teve a aparição dos filmes do Bruce Lee, depois aquele seriado, “Kung-Fu”.

Essas séries, na sua opinião, despertaram mais o interesse dos brasileiros para o Kung-Fu? (complemento:

“E nessa época o senhor já tinha vários alunos brasileiros, não-chineses?”)

3.8 - O que levou o senhor a ensinar Kung-Fu para brasileiros? (complemento: “E assim foi que os brasileiros

começaram a conhecer...”)

6.4.1.4 - Formação de alunos – Genealogia marcial no Brasil

4.1 – O senhor saberia dizer quantos alunos formou até hoje, no Brasil inteiro e no Exterior, como

professores?

4.2 – O mestre Lee Chung Deh foi um aluno formado bem no começo pelo senhor. É isso mesmo?

4.3 – O senhor tem alunos também fora do Brasil. Espanha, Canadá...

4.4 - Atualmente o senhor tem quantos alunos na sua academia?

4.5 - No Pró-Vida o senhor ensina Shaolin do Norte, Tai-Chi?

4.6 - Aqui na João Moura, em Pinheiros, há quanto tempo está a academia?

6.4.1.5 - Iconografia e elementos histórico-religiosos do Kung-Fu de Shaolin

5.1 – O estilo Shaolin do Norte foi criado no Mosteiro de Shaolin?

(Eu gostaria de conversar com o senhor sobre alguns elementos gráficos que a gente vê na academia e saber

de onde eles surgiram...)

5.2 - Esta aqui, mestre [apontando para ilustração em prancha], é a figura da frente da camiseta. Essa figura

já existia na China, o senhor a trouxe para o Brasil, o senhor a criou... (complemento: “Mas foi o senhor que

criou este emblema, ou ele já existia?”).

5.3 - Esses elementos, Lho Hã, Jin-Chi-Shen e Yin-Yang são taoístas. Esse aqui [apontando para ideogramas

de “Shaolin do Norte”] é budista... (complemento: “Antes, então, do Taoísmo?”)

5.4 - O senhor criou esse símbolo a partir de ensinamentos dos seus mestres?

Page 163: shaolin à brasileira

163

5.5 - Então a gente pode dizer que o Kung-Fu do Shaolin do Norte tem elementos do Taoísmo, Budismo...

5.6 - A segunda figura que eu tenho aqui [em prancha] é o dragão das costas da camiseta. Esse dragão é um

dragão imperial?

5.7 - Aqui [apontando para o dragão da camiseta], o senhor colocou um Pa Kua. Em outras ilustrações, ao

invés do Pa Kua, aparece uma pérola. O que essa mudança significa?

5.8 - Eu estudei a placa466 que está nas academias [mostra prancha]. Eu fiz uma tradução e descobri que

existem alguns nomes de pessoas que estão aqui, aqui... Este, por exemplo, é Yue-Yuan...

5.9 - Esse, mestre, é Bodidharma?

5.10 - O monge Ta Mo teve alguma influência na criação do Kung-Fu de Shaolin?

5.11 - Esse aqui [indica ideogramas de “Shaolin do Norte”] é mais antigo do que esse [indica ideogramas de

“Yuan Fei”]. Esse [“Yuan Fei”] é da Dinastia Song?

5.11 - A gente tem, na sua academia, na do Rogério [Leal Soares] e do mestre Lee [Chung Deh], essa placa a

que eu me referi antes. Qual o significado dela? (complemento: “Mas qual é o sentido da placa? A gente tem

elementos confucionistas... qual é a finalidade da placa? É pra lembrar o aluno, pra lembrar o professor, como

é? Então a finalidade principal é de respeito, mesmo...”)

5.12 – E ela [a placa] fica sempre junto do altar?

5.13 - É uma placa muito antiga? O senhor a trouxe da China?

5.14 – Seu mestre já possuía uma placa como essa?

5.15 - Eu tive fazendo uma pesquisa sobre o mosteiro de Shaolin e eu achei essa figura [aponta para placa do

Jinnaluo]. O senhor lembra de ter visto essa figura na China?

5.16 - Todas as academias de Kung-Fu tem um “santo”, qielan shen, como Kuankung467... esse [Jinnaluo]

seria o espírito protetor de Shaolin, mestre?

5.17 - Mestre, a gente tem, junto das fotos dos mestres e das placas, um altar. A gente sempre queima o

incenso, né. Esse incenso, é aceso para homenagear os antepassados, isso?

5.18 - Essa é a finalidade do altar, também?

5.19 - Isso seria uma coisa do Budismo, das religiões da China mesmo?

6.4.1.6 - Entendimento da iconografia pelos alunos

6.1 - Mestre, os seus alunos sabem o que significam todos os símbolos da camiseta, da placa, do altar? Eles

perguntam, tem curiosidade?

6.2 - Então, o interesse depende do aluno? (complemento: “Então, os alunos chineses explicam...”)

6.4.1.7 - Presença das religiões orientais no Kung-Fu do Shaolin do Norte

7.1 - O senhor poderia falar, qual é a influência do Budismo no Kung-Fu?

7.2 - E do Confucionismo, seria pelo respeito ao mestre?

465 Ao iniciar a entrevista, percebemos que o mestre tinha muito interesse em falar sobre uma homenagem que, dias antes, havia recebido no Canadá. Assim, para facilitar a aproximação com o entrevistado, seguimos inicialmente essa linha. 466 “Placa da Ética e da Ancestralidade”. Ver item 5.4.2. 467 A respeito de Jinnaluo e Kuan Kung na tradição de Shaolin, ver item 2.2.3.6.

Page 164: shaolin à brasileira

164

Núcleo Temático Conclusão

6.4.1.1 – Identificação - Chan Kowk Wai (ver quadro 3). Denominação: CKW.

a) – o mestre deu início à entrevista falando a respeito de uma

homenagem recém-recebida no Canadá, de onde havia chegado

há alguns dias;

6.4.1.2 - Questões de aproximação

b) – o início da conversa a partir de um tema definido por CKW

teve como resultados uma aproximação “mais positiva” em relação

ao entrevistado e maior descontração para a entrevista

c) – O mestre confirmou sua chegada ao Brasil em 1960.

d) – Aparentemente, a ligação entre a prática marcial de CKW e o

elemento étnico se deu pela questão do domínio do idioma. Ele

não ensinava para brasileiros porque não sabia falar português.

No período de 10 anos em que só ensinou para chineses, as aulas

foram ministradas em sua casa e no Centro Social Chinês (no

bairro da Liberdade, em São Paulo);

e) – O mestre disse não ter tido preconceito em relação a alunos

não-descendentes de chineses, a quem começou a ensinar em

1970. Essa abertura se deu a partir de uma instituição de ensino

superior, a Universidade de São Paulo, onde, a convite de um

aluno, deu aulas de arte marcial chinesa;

6.4.1.3 - Chegada ao Brasil e início da

transmissão de conteúdos marciais

f) – O entrevistado considerou relativa a importância dos filmes e

da série de TV “Kung-Fu” para o interesse dos alunos brasileiros.

Segundo ele, a veiculação “ajudou”, mas, nos anos de 1971 e

1972 (ou seja, imediatamente antes da “Onda Kung-Fu”), já tinha

muitos alunos brasileiros. Essa observação parece indicar um fato

interessante, relacionado à diferença entre a difusão do Kung-Fu

em São Paulo – onde havia um mestre chinês interessado em

ensinar - e em outros lugares do Brasil, onde havia apenas

indivíduos que se interessaram pela arte marcial chinesa.

6.4.1.4 - Formação de alunos –

Genealogia marcial no Brasil

g) – CKW foi, de fato, o responsável pela difusão do estilo Shaolin

do Norte no Brasil e mesmo em outros países, como Argentina,

Estados Unidos e Espanha: como herdeiro direto de uma tradição

marcial, veio ao país e não “quebrou a cadeia” da transmissão.

Graduou cerca de 90 professores, a maioria absoluta brasileiros e,

atualmente, dá aulas para cerca de 1.200 pessoas (200 na

academia e cerca de mil em uma instituição de São Paulo);

Page 165: shaolin à brasileira

165

h) – O mestre reconheceu Lee Chung Deh, nosso entrevistado de

segunda geração, como um de seus primeiros alunos e como um

de seus primeiros professores graduados.

i) – CKW se mostrou crente de que a origem de seu estilo de

Kung-Fu é o mosteiro de Shaolin. Essa é a principal informação de

caráter tradicional transmitida por professores e alunos no país (o

mosteiro dá nome ao estilo);

j) – O mestre informou ter construído dois dos principais

elementos iconográficos do Shaolin do Norte – o emblema da

frente da camiseta e o dragão nas costas da mesma – a partir de

dados de sua religiosidade pessoal. Essa construção desperta

para um fato normalmente negado pelos ocidentais: que as

“milenares” tradições orientais também estão sujeitas a uma

dinâmica de transformações/recombinações que lhes dá um

caráter modernizante;

k) – CKW confirmou como elementos tradicionais “originais”, isto

é, de reprodução pura, a “placa da ética e da tradição” e o altar de

culto aos antepassados;

l) – Todos os elementos da placa descritos na pesquisa

documental foram confirmados pelo mestre;

6.4.1.5 - Iconografia e elementos

histórico-religiosos do Kung-Fu de

Shaolin

m) – De modo geral, a visão pessoal do mestre acerca de

religiosidade no Kung-Fu se refere mais a um perfil popular,

marcado pela não-necessidade de entendimento mais profundo e

nem de explicações para “curiosos”;

n) – O mestre disse ter dificuldade em responder às perguntas

feitas pelos alunos. Quando confrontado, indica alunos chineses

para responder. Isso denota, em nosso modo de ver, a principal

ruptura semântica do Shaolin do Norte no Brasil: enquanto os

conteúdos corporais são transmitidos com rigor (o mestre vai à

academia todos os dias da semana para ensinar, supervisionar

alunos que ensinam e esclarecer dúvidas), os não-corporais (à

exceção da História do estilo segundo a tradição, bem como sua

genealogia) são “deixados de lado”. Isso abre caminho para a

ressignificação dos elementos religiosos e iconográficos;

6.4.1.6 - Entendimento da iconografia

pelos alunos

o) – Sobre o conhecimento dos conteúdos religiosos por parte dos

alunos, ele respondeu que uns os conhecem e, outros, não. Isso,

porém, não pareceu preocupá-lo, o que denota a pouca

importância por ele dada à transmissão desses elementos.

Page 166: shaolin à brasileira

166

p) – Apesar de reconhecer uma ligação entre Jinnaluo e o

mosteiro de Shaolin, o entrevistado disse desconhecer detalhes a

respeito de tal divindade. Se tomarmos a relação entre o estilo

Shaolin e o mosteiro, isso parece indicar um esvaziamento do

culto a Jinnaluo dentro da tradição marcial no século XX;

q) – Sobre o papel das religiões na arte marcial por ele ensinada,

CKW observou que elas aparecem principalmente no respeito que

os alunos devem ter aos professores e, principalmente, aos

mestres falecidos. O entrevistado também observou a prevalência

do Budismo nos chamados “estilos externos” (como Shaolin) e do

Taoísmo nos “estilos internos” (como o Tai-Chi-Chuan);

6.4.1.7 - Presença das religiões

orientais no Kung-Fu do Shaolin do

Norte

r) – Aparentemente, o culto aos antepassados, que é reforçado

(ainda que com poucas informações) nas academias, está

centrado na religiosidade popular. Apesar dos fortes indícios

confucionistas tanto nesse tipo de culto quanto na “placa da ética

e da tradição”, em nenhum momento durante a entrevista o mestre

se referiu ao Confucionismo e a seu papel na conformação da arte

marcial ensinada.

6.4.2 – Entrevistado de segunda geração – mestre Lee Chung Deh

Assim como na entrevista anterior, a realizada com o mestre Lee Chung Deh não seguiu

um questionário formal. Foi a última entrevista a ser realizada, e isso se justifica por

alguns elementos: inicialmente, pelo fato de o mestre representar a “verdadeira ponte”

entre gerações muito distintas: a do mestre chinês de primeira geração e a dos

professores e alunos brasileiros. Foi, de fato, um entrevistado fundamental, posto que nos

permitiu vislumbrar uma série de elementos que vão auxiliar imensamente na confirmação

ou refutação das nossas hipóteses de trabalho. A seguir, apresentaremos as perguntas,

seguidas das questões propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de

conclusões:

6.4.2.1 – Identificação:

1.1 - Nome:

1.2 - Idade:

1.3 - Nacionalidade:

1.4 - Escolaridade:

1.5 - Profissão:

6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte marcial

Page 167: shaolin à brasileira

167

2.1 - Mestre, em Taiwan o senhor já treinava Kung-Fu?

2.2 - O senhor conheceu o mestre Chan [Kowk Wai] com que idade?

2.3 - Mestre, o senhor se formou depois de quanto tempo de prática?

2.4 - E o senhor deixou São Paulo nesse mesmo ano, o senhor foi para Porto Alegre... como foi?

2.5 - O senhor foi para Porto Alegre por determinação do mestre Chan, o senhor achou que deveria ir... como

foi isso?

6.4.2.3 – Análise da representação da figura do “mestre” pelos praticantes brasileiros

3.1 - Mestre, conversando com os professores brasileiros que eu entrevistei (professores Rogério Leal Soares

e Dirceu Coelho) e também com outros professores, e com os alunos deles, eu pude verificar que eles têm o

senhor como referência principal, mais, até, do que o mestre Chan. O mestre Chan é uma figura mais

afastada, eles têm o senhor como mestre. Como o senhor vê essa questão?

3.2 - Mestre, com relação a essa questão, inclusive da figura do mestre. A gente sabe que existe a pessoa e

existe o mestre, que é uma figura “infalível”, aquela coisa toda. Como é isso?

3.3 - Mestre, a gente percebeu nos anos de 73, 74, 75, que houve aquela “explosão” da arte marcial chinesa

através do cinema e da TV, como o seriado “Kung-Fu”. Como o senhor vê a importância desse período, dessa

forma de divulgação do Kung-Fu pra disseminação da arte. O senhor ganhou mais alunos nessa época?

6.4.2.4 – Análise da compreensão dos praticantes brasileiros a respeito da presença de elementos

religiosos no Kung-Fu

4.1 - Conversando com os professores e com os alunos, eu percebi que o desconhecimento é muito grande a

respeito dos elementos religiosos dentro do Kung-Fu. Do Confucionismo, do Taoísmo e do Budismo. O senhor

atribui a que essa falta de conhecimento?

4.2 - Mestre, mas com relação a esse aspecto da religiosidade: os alunos, o interesse vem do aluno.

Conversando com o mestre Chan, ele comentou: “quando me perguntam, eu mando o aluno chinês

responder”, quer dizer, ele não dá muita importância para que o aluno entenda o que é o altar, o que é aquela

placa com os ideogramas. O interesse em saber mais sobre a religião parte do aluno?

4.3 - Então a gente pode dizer que a questão do interesse parte do aluno e que, de modo geral, os alunos são

imaturos para receber essa informação, seria isso?

4.4 - Mestre, a gente pode dizer que o aluno brasileiro tem interesse apenas na forma, ou ele tem interesse

em saber mais sobre a religiosidade no Kung-Fu?

4.5 - E o senhor acredita que os professores que o senhor formou, os professores brasileiros, que já não

estão em contato com o senhor tão freqüentemente, eles têm esse domínio do aspecto religioso do Kung-Fu

para passar par os alunos deles?

6.4.2.5 – Análise da iconografia encontrada nas academias de Shaolin do Norte

5.1 - Mestre, eu estou aqui com alguns elementos que eu captei da iconografia religiosa do Kung-Fu. A gente

vê, por exemplo, nessa placa, que a gente tem quatro nomes que me parecem desconhecidos da grande

maioria dos praticantes. Por exemplo, Yue Fei, Yue Yuan, Zhang Fei, Zu Lai Tzu. Mestre, porque os alunos

não conhecem esses nomes? Eu, com dezoito anos de Kung-Fu, nunca tinha ouvido falar nisso. O que

acontece com essa placa, que os alunos não tem acesso aos conteúdos dela?

Page 168: shaolin à brasileira

168

5.2 - Mestre, essa foi a tradução que eu obtive conversando com o mestre Chan e com um tradutor, né. Essa

placa, me parece, tem uma característica fundamentalmente confucionista. Esse título aqui [no alto], me

parece que ele era atribuído a Confúcio. É isso mesmo?

5.3 - Quer dizer, dentro dessa fusão religiosa, que é aquela que a gente vê que começa no século V, mais ou

menos, né...

5.4 - Mestre, e dentro do Kung-Fu, como é que o senhor vê? A gente observa que as artes marciais japoneses

vêem a prática como caminho para a transcendência. Existe uma coisa muito forte nesse sentido. Pela minha

pesquisa, eu pude perceber que a arte marcial chinesa é mais instrumental, inclusive ela inclui práticas

mágicas, pro indivíduo se fortalecer, pra ele socar mais forte, pra ele sofrer menos o impacto. Qual o papel da

religiosidade dentro do Kung-Fu? É meramente ético, ou o Kung-Fu pode ser um caminho de vida. Porque a

gente não vê, nas academias, meditação? No mestre Chan não tem meditação. Como é que é isso? Qual o

papel da religião dentro do Kung-Fu?

5.5 - Mestre, eu tenho aqui essas ilustrações referentes à camiseta. Que informação o senhor recebeu do

mestre Chan sobre esse simbolismo?

5.6 - Mestre, então a gente pode dizer... eu notei nos entrevistados, inclusive, que os alunos não tem

consciência do significado, eles não sabem o que quer dizer o Lho-Hã, coisas dessa natureza. Os alunos,

então, estão nesse estágio de que o conhecimento é informado, mas que eles não vêem porque são muito

jovens, muito inocentes ainda?

5.7 - Então tem esse contexto de o aluno não estar preparado para entender, ou para acompanhar, posto que

ele veio de uma religião católica, cristã, de um mundo muito diferente, é isso?

5.8 - Passando um pouquinho para outro elemento da iconografia. Eu tive pesquisando e descobri essa figura

aqui [Jinnaluo] como divindade tutelar de Shaolin. Uma coisa como Qielan Shen, divindade tutelar. O senhor

tem alguma informação sobre isso?

5.9 - O senhor saberia traduzir pra mim?

5.10 - Mestre, conversando com o mestre Chan, quando eu mostrei essa figura [Jinnaluo], ele até deu risada,

porque ele disse que conhecia de Shaolin, né, mas que ele nunca deu continuidade. Ele disse “conheço, mas

‘não pegou’”. A gente tem na sua academia a figura do Kuankun. Por que o Jinnaluo não foi transmitido dentro

do Shaolin do Norte, já que é uma divindade tutelar que existe só em Shaolin?

5.11 - Mudando um pouco de assunto, mas dentro ainda da iconografia. Qual é a finalidade do altar?

5.12 - Então esse altar seria um altar de culto aos antepassados, é isso?

5.13 - A dificuldade de leitura dos ideogramas, na sua opinião, dificulta o acesso dos alunos às informações?

5.4.2.6 – O fator étnico nas academias e o perfil do praticante brasileiro

6.1 - A gente não vê muitos chineses praticando arte marcial chinesa. A gente tem o mestre Chan e o senhor

como divulgadores importantes. A gente teve o ano novo em Curitiba onde nenhum chinês fazia, sabia nada

de Kung-Fu. A que o senhor atribui a ausência de chineses nas academias de Kung-Fu do Brasil?

6.2 - Mestre, chegando no final, eu gostaria de saber qual a imagem que o senhor tem do aluno brasileiro,

qual é a característica dele, qual é a diferença dele em relação ao aluno chinês?

Page 169: shaolin à brasileira

169

Núcleo Temático

Conclusões

6.4.2.1 – Identificação

- Lee Chung Deh (vide Quadro 3). Denominação: LCD.

a) – O mestre possui uma profunda relação com a arte marcial

chinesa. Pratica desde adolescente, tendo sido um dos primeiros

alunos do mestre Chan Kowk Wai.

b) – Apesar de ser imigrante, só começou a treinar arte marcial

chinesa no Brasil. Segundo ele, em sua terra natal, como outras

crianças, apenas “brincava” de lutar Kung-Fu.

c) – Foi o responsável pela introdução do Shaolin do Norte na

Região Sul do Brasil. Nos anos 70, quando formado professor

(depois de oito anos de prática), deixou São Paulo e seguiu para

Porto Alegre, onde montou um núcleo de prática que formou

professores que, atualmente, atuam em várias partes do país.

6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte

marcial

d) – O apoio de seu mestre foi fundamental para que o

entrevistado se decidisse a abraçar profissionalmente a carreira

de professor de Kung-Fu. LCD abandonou a faculdade de

Educação Física e começou a dar aulas.

e) – Questionado a respeito da admiração que seus discípulos lhe

devotavam, LCD disse acreditar que ela nasceu de um trabalho de

“chão de fábrica”, iniciado por um jovem mais interessado em

ensinar do que na fama.

f) – Sobre a “figura do mestre”, LCD observou existir uma

diferença cultural: enquanto no Oriente ela está relacionada a uma

condição parental, no Ocidente a relação é mercantil. Em seu

trabalho, informou, sempre buscou valorizar a concepção oriental

– daí, porque, seja tido como referência por muitos professores.

6.4.2.3 – Análise da representação da

figura do “mestre” pelos praticantes

brasileiros

g) – LCD confirmou a importância do boom Kung-Fu, nos anos 70,

para a aquisição de alunos (citou o seriado de TV “Kung-Fu”).

Segundo ele, essa fase passou em algum tempo porque os

praticantes observaram a diferença entre a representação dos

filmes e a prática real, que demanda esforço físico e mental.

6.4.2.4 – Análise da compreensão dos

praticantes brasileiros a respeito da

presença de elementos

religiosos no Kung-Fu

h) – LCD observou que a aquisição de conhecimentos acerca da

religiosidade chinesa é um trabalho pessoal e que demanda

tempo, mesmo para um indivíduo nascido no ambiente cultural

chinês. Em sua avaliação, a grande questão se refere à “vivência

interna” da arte marcial. Os alunos, avaliou, devem conhecer a

cultura chinesa (incluída, aí, a religiosa) para “romper uma

barreira” dentro do Kung-Fu.

Page 170: shaolin à brasileira

170

i) – O entrevistado observou que um dos fatores que “frearam” a

transmissão de conteúdos tradicionais religiosos foi a dificuldade

de expressão em português, pelo mestre CKW, de certos

conceitos religiosos.

j) – Para LCD, um dos ensinamentos essenciais de seu mestre foi

o de facultar aos alunos a opção por aprender mais sobre a

religiosidade envolvida com o estilo Shaolin do Norte.

k) – O entrevistado desvalorizou uma “compreensão formal” da

religiosidade chinesa, observando que o mais importante é

“vivenciar a religião”, mesmo porque é difícil, na cultura chinesa,

separar Budismo, Confucionismo e Taoísmo. Segundo ele, na

China os “velhos mestres” dominavam várias artes, e isso era

decorrente de uma visão ético-religiosa avançada.

l) – Segundo LCD, não se pode afirmar que os alunos brasileiros

sejam “imaturos” em relação aos conteúdos de caráter religioso. O

que define seu interesse é a preferência natural por aspectos mais

“agressivos” ou “filosóficos” da arte marcial.

m) – Sobre a oferta de conteúdos religiosos pelos mestres, LCD

observou que, por critérios até econômicos, ela depende da

demanda (“vende o peixe de acordo com o gosto do comprador”).

Ele criticou um movimento por ele verificado em outras artes

marciais, que investem na violência gratuita e se esquecem dos

elementos mentais que “temperam” a existência.

n) – LCD se diz satisfeito com o grau de compreensão a respeito

do “espírito do Kung-Fu” por cinco de seus alunos graduados,

entre os quais está RLS.

o) – Confrontado com a placa “da ética e da ancestralidade”, LCD

revelou um dado histórico inédito, de que ela seria uma “placa

amenizada”, menos agressiva em relação a uma anterior. Esse

dado, expresso com muita certeza, não havia sido relacionado por

CKW e é interessante para se compreender a evolução da

iconografia no ambiente marcial chinês mais antigo.

6.4.2.5 – Análise da iconografia

encontrada nas academias de Shaolin

do Norte

p) – LCD confirmou praticamente todos os dados da placa e da

camiseta obtidos na pesquisa de caráter teórico-bibliográfico.

Voltou a lembrar, porém, que ela não deve ser lida em

compartimentos estanques, mas segundo o aspecto da fusão

religiosa verificada na China.

Page 171: shaolin à brasileira

171

q) – A respeito da inexistência de uma definição mais precisa da

religiosidade dentro das academias, LCD voltou a observar que

ela depende do interesse do aluno. Assim, a visão da arte como

“caminho da transcendência” dependeria não do mestre, mas do

praticante. LCD acredita que o aluno não deve esquecer de sua

própria religiosidade, sob pensa, inclusive, de se converte em

mero “puxa saco”, em um macaqueador das atitudes do mestre.

r) – Confrontado com a figura de Jinnaluo, LCD deu uma resposta

interessante, observando que, como outras figuras do panteão

budista, podem ter sido, de fato, encontradas em Shaolin.

Segundo ele, não só Jinnaluo, mas outras figuras (como Lohan)

fizeram parte da tradição de Shaolin e, mesmo, da tradição

marcial. Confessou, porém, não possuir outras informações a

respeito – segundo ele, essa é uma busca pessoal iniciada

recentemente.

s) – LCD confirmou o papel do altar como referente ao culto aos

antepassados. Esse altar serviria tanto para reverenciar os

espíritos divinizados dos mortos quanto para lembrar de sua

existência. No caso do Shaolin do Norte, seria ainda uma

lembrança voltada à valorização da arte pelos atuais praticantes –

a arte, segundo LCD, só chegou até o presente graças ao esforço

muitas vezes sobre-humano dos antigos mestres.

t) – O entrevistado não acredita que a “barreira de ideogramas”

seja o principal elemento de impedimento para que os praticantes

cheguem a um conhecimento mais profundo de sua arte. A

dificuldade está, sim, em encontrar fontes confiáveis de

interpretação.

5.4.2.6 – O fator étnico nas academias

e o perfil do praticante brasileiro

u) – Sobre a ausência de praticantes chineses, LCD disse ter

“uma certa vergonha” de tal situação, já que o Kung-Fu é uma arte

chinesa. Apesar disso, diz compreender, principalmente porque a

maioria dos chineses se dedicou a atividades mais “pragmáticas”,

como o comércio, que não abrem possibilidade de vislumbrar

práticas menos importantes para a sobrevivência. Ele lamentou,

porém, o fato de os chineses não enxergarem que a prática

marcial pode representar um acréscimo de qualidade de vida,

principalmente em relação à velhice.

Page 172: shaolin à brasileira

172

v) – Questionado sobre a diferença entre os praticantes chineses

e os brasileiros, LCD se afastou de uma “preferência étnica”. São,

segundo ele, todos iguais. De acordo com LCD não existe

diferença, e que atletas brasileiros podem compreender o espírito

marcial do Kung-Fu de modo mais prefeito do que muitos

praticantes chineses. Tudo vai depender da atitude mental do

praticante, esteja em que porção do mundo estiver,

6.4.3 – Entrevistados de terceira geração - professores brasileiros

As entrevistas com os dois professores brasileiros de Shaolin do Norte foram feitas a

partir do seguinte questionário (observar a divisão em blocos temáticos):468

6.4.3.1 - Identificação

1.1 - Nome:

1.2 - Idade:

1.3 - Nacionalidade:

1.4 - Escolaridade:

1.5 - Profissão:

6.4.3.2 - Grau de inserção no subuniverso do Kung-Fu brasileiro

2.1 - Há quanto tempo você pratica Kung-Fu? Qual o seu estilo? Você já praticou ou pratica outros estilos de

Kung-Fu?

2.2 - Além do Kung-Fu, você pratica ou já praticou outras artes marciais? Quais?

2.3 - O que levou você a praticar Kung-Fu?

2.4 - Qual a importância do Kung-Fu para a sua vida?

6.4.3.3 - O papel do mestre originário na transmissão dos conteúdos tradicionais do Kung-Fu e da

cultura chinesa

3.1 - Qual o nome do seu mestre? Qual a genealogia do seu estilo? Aonde aparece, na sua genealogia, a

figura do mestre ou professor chinês?

3.2 - Fale um pouco sobre a pessoa do seu professor ou mestre: como ele era na hora de ensinar? Ele era do

tipo que explicava tudo, ou se prendia mais às técnicas, sem muita conversa? E como ele reagia na hora de

esclarecer dúvidas?

3.3 - Você teve curiosidade em saber mais sobre a história do seu estilo? Conte a história do seu estilo de

acordo com o que você aprendeu com o seu mestre:

3.4 - Seu mestre costumava ensinar outras coisas para os alunos além do Kung-Fu? Pergunto em relação a

outros aspectos da cultura chinesa além da parte técnica...

468 Entrevistas disp. em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Rogerio_Leal.doc> e em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Dirceu_Coelho.doc>.

Page 173: shaolin à brasileira

173

3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação

específica de seu mestre? O que ele ensinou?

6.4.3.4 - O papel das fontes secundárias na formação do professor brasileiro de Kung-Fu

4.1 - Você costuma procurar informações sobre Kung-Fu em outras fontes, além do que foi ensinado pelo seu

mestre? Indique estas fontes (livros, revistas, jornais, internet, filmes):

4.2 - No caso das informações sobre Kung-Fu obtidas fora da academia, você faz algum tipo de seleção da

qualidade do material? Como você faz para distinguir o material sério do material pouco confiável?

4.3 - Além do Kung-Fu, você possui interesse por outros assuntos relacionados à cultura chinesa? Quais?

Por quê? Aonde você procura informações sobre estes assuntos?

6.4.3.5 - A visão do professor acerca da importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso

do Kung-Fu

5.1 - Você percebe, entre os seus alunos, interesse pela cultura chinesa? Quais são os assuntos que mais

interessam? Por quê?

5.2 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas,

principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que

você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso,

imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que

descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados)

5.3 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua

opinião, é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu?

5.4 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por

exemplo – a que fontes você procura recorrer?

5.5 - Na sua prática de academia, o senhor investe no ensinamento de práticas religiosas relacionadas ao

Kung-Fu? O senhor poderia localizar estas práticas?

5.6 - Na sua avaliação, qual a importância dos elementos religiosos para a formação de um praticante de

Kung-Fu?

5.7 - Como o senhor avalia o interesse, por parte dos alunos, em relação aos aspectos religiosos envolvidos

na prática do Kung-Fu?

6.4.3.6 – A relação entre os aspectos religiosos presentes na prática marcial e a religiosidade do

professor brasileiro

6.1 - Você levou alguma das práticas religiosas da academia para a sua vida cotidiana?

6.2 - Você levou valores ensinamentos relacionados ao Kung-Fu – a “filosofia” – para a sua vida? Quais?

6.3 - Qual sua religião? Com que freqüência você participa das atividades da sua religião? Qual a importância

da religião na sua vida?

6.4 - Especificamente sobre religiosidade oriental: você busca informações sobre o tema além do ambiente

da academia?

6.5 - Você já falou sobre Kung-Fu no ambiente religioso que você freqüenta? Que tipo de resposta você

obteve das pessoas ou do seu líder religioso? O que eles pensam sobre o Kung-Fu? E o que você pensa

disso?

Page 174: shaolin à brasileira

174

6.6 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no Kung-

Fu? Fale a respeito:

6. 7 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se

converteria ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu?

6.4.3.7. Avaliação da presença de chineses e sino-descendentes (elemento étnico) dentro do

subuniverso do Kung-Fu no Brasil

7.1 - Na sua academia existem praticantes de origem chinesa? Quantos?

7.2 - A que você atribui esta presença ou ausência de chineses étnicos no ambiente da academia?

7.3 - Fora do ambiente de academia, você possui algum tipo de contato com integrantes da comunidade

chinesa?

7.4 - Na sua opinião, a presença ou a ausência de elementos de origem chinesa na academia é importante

para a qualidade do Kung-Fu ensinado?

Núcleo temático

Conclusões

6.4.3.1 – Identificação dos entrevistados

- Rogério Leal Soares (denominação: RLS);

- Dirceu Coelho (denominação DC).

(vide Quadro 3).

a) - Os professores guardam uma profunda relação com o

Shaolin do Norte, tanto em termos pessoais (o Kung-Fu como

gerador de respostas a questões existenciais) quanto

profissionais. O longo tempo de prática é um indício dessa

relação.

6.4.3.2 - Grau de inserção do

entrevistado no subuniverso do Kung-

Fu brasileiro

b) - As fontes populares de representação da arte marcial

chinesa (revistas, cinema e televisão) exerceram um papel

importante em sua aproximação do Kung-Fu.

c) – Os entrevistados identificam Lee Chung Deh como seu

verdadeiro mestre, não manifestando o mesmo grau de

deferência para com Chan Kowk Wai, visto mais como uma

“pessoa importante”. Nesse contexto, a definição de “mestre”

proposta pela CBKF possui pouca importância. Isso,

provavelmente, se deve à maior proximidade de Lee Chung Deh,

tanto em termos geográficos quanto pessoais (o mestre chegou

ao Brasil muito jovem, o que parece ter influenciado para o

estabelecimento de um contato mais fácil com os brasileiros não-

descendentes de chineses).

6.4.3.3 - O papel do mestre originário na

transmissão dos conteúdos tradicionais

do Kung-Fu e da cultura chinesa

d) – Os professores revelaram um conhecimento da História de

seu estilo calcado, essencialmente, na tradição oral, tomada de

forma apriorística.

Page 175: shaolin à brasileira

175

e) – Os entrevistados afirmaram que Lee Chung Deh procurou

aproximá-los de outros aspectos da cultura chinesa, como

culinária e técnicas de massagem. A aproximação, porém,

parece ter sido de caráter pessoal, desprovida de sistematização

ou de contato com a arte marcial praticada.

f) – Os professores deram respostas diferentes à questão da

transmissão de conteúdos religiosos chineses pelo mestre.

Enquanto RLS apontou uma manifestação mais pessoal e

menos institucional, DC confirmou que a transmissão de

conteúdos religiosos não ocupa um lugar central do universo

semântico transmitido. A conclusão é de que os aspectos

religiosos não se ligam à ortodoxia do estilo, mas ao interesse de

mestre e alunos.

g) – As fontes secundárias ocupam um papel importante dentro

da formação do universo semântico dos entrevistados, tanto

complementarmente quanto em caráter de revisão/confirmação

dos conhecimentos pessoais.

h) – As principais fontes são a internet a televisão

(documentários) e documentos trazidos à academia por alunos.

i) – A sistematização do repasse de informações oriundas de

fontes alheias à tradição oral depende, exclusivamente, do

interesse do professor, que utiliza fontes que julga confiáveis.469

6.4.3.4 - O papel das fontes secundárias

na formação do entrevistado

j) – O conhecimento de elementos genéricos da cultura chinesa

depende, exclusivamente, do interesse dos alunos. A formação

no Shaolin do Norte não prevê o repasse de informações de tal

natureza e nem, portanto, uma aproximação étnica significativa.

469 Vale observar, aqui, um diferencial em relação a Rogério Leal Soares, que produziu uma apostila para seus alunos. Este documento mescla conteúdos da tradição oral com informações “de fora”. Há restrições, porém, em relação ao grau de comprovação científica das informações.

Page 176: shaolin à brasileira

176

k) – A enumeração dos elementos de natureza religiosa na

prática marcial pelos professores foi variável. O total de

elementos apontados não chegou aos limites propostos no cap.

5. Um dos entrevistados não indicou nenhum elemento, mas se

referiu a um aluno praticante do Budismo. As explicações, por

sua vez, indicaram superficialidade em relação ao tema, o que

revela a importância relativa dada a esses aspectos pelos

professores e o baixo grau de institucionalização das

manifestações de natureza religiosa. Ainda assim, eles

manifestaram respeito pela iconografia e pelos rituais de queima

de incenso e de atenção aos mestres falecidos. Aparentemente,

o que se constata é uma ressignificação dos elementos, que se

esvaziaram do sentido religioso e ganharam uma dimensão

“subuniversal”, relacionada à passagem da realidade-padrão

para o subuniverso da prática marcial.

l) – Dos ícones religiosos, o menos conhecido é a “Placa da

Ética e da Ancestralidade”, de orientação confucionista.470 Esse

desconhecimento, aparentemente, está ligado à dificuldade de

tradução literal ou simbólica do ícone, e tem reflexos sobre o

entendimento, pelos professores, do universo religioso no estilo

de Kung-Fu praticado (o Confucionismo não é citado entre as

religiões relacionadas à prática marcial).

m) – Apesar da demonstração de respeito aos mestres falecidos,

os entrevistados não fizeram nenhuma referência direta ao culto

dos antepassados, profundamente arraigado na religiosidade

popular chinesa.

n) – Sobre a forma de transmissão dos conteúdos de natureza

religiosa, os dois professores se mostraram cuidadosos,

principalmente para evitar qualquer conflito em relação às

crenças de seus alunos.

6.4.3.5 - A visão do professor acerca da

importância dos elementos religiosos

dentro do subuniverso do Kung-Fu

o) – Essa transmissão é importante – um dos entrevistados a

considera fundamental para dar mais vida ao Kung-Fu -, mas

deve ser feita na forma de uma “apresentação”, sem vinculação

obrigatória à evolução dentro da arte marcial.

470 Para a explicação do nome atribuído à placa, ver capítulo 5.

Page 177: shaolin à brasileira

177

p) – Elementos da religiosidade oriental (ou assim entendidos

pelos entrevistados) aparecem de forma difusa na vivência

religiosa dos professores. A resposta ao questionamento básico

deste núcleo teve respostas de caráter profundamente subjetivo.

Foram identificados com valores orientais: a vivência de um

“ritmo da natureza”, a tranqüilidade e a temperança.

6.4.3.6 - A relação entre os aspectos

religiosos presentes no subuniverso do

Kung-Fu e a religiosidade do professor

q) – Os entrevistados mantém uma relação aparentemente

instrumental com a religiosidade “de raiz”, de caráter étnico de

sua própria cultura. Enquanto um disse não possuir religião

definida, o outro informou ser católico não praticante, desligado

de uma prática mais freqüente ou de caráter mais ortodoxo. Essa

atitude “liberal” face às religiões da realidade-padrão parece se

reproduzir na visão da religiosidade na arte marcial.

Aparentemente, eles mantém a mesma atitude face às religiões

orientais presentes no Shaolin do Norte.

r) – A opinião dos professores acerca da importância da

presença de elementos étnicos na academia varia, mas ambos

não consideram esse um valor relevante.

s) – O principal impedimento à presença de chineses não diz

respeito a nenhum tipo de “quebra étnica” ou de desconfiança

dos chineses em relação aos brasileiros. Segundo os

professores, a questão está diretamente relacionada à ausência

de chineses nas regiões onde mantém suas academias.

6.4.3.7 - Avaliação da presença do

elemento étnico no subuniverso do

Kung-Fu no Brasil

t) – A fonte mais importante de contato com o elemento humano

chinês é a figura do mestre.

Page 178: shaolin à brasileira

178

6.4.4 – Entrevistados de quarta geração – alunos brasileiros

Antes de apresentar o questionário aplicado aos alunos brasileiros, cabe informar que a

seleção dos entrevistados ficou a critério dos professores. Solicitamos apenas que estes

indicassem os alunos que julgassem os mais adequados para responder às questões. Ao

seguir por esse caminho, buscamos estabelecer uma cadeia mais significativa de relação

entre os entrevistados de terceira e quarta gerações. Os alunos escolhidos, sem dúvida,

são vistos pelos professores como prováveis continuadores da tradição e da transmissão

de conteúdos do Shaolin do Norte. A seguir, apresentamos o questionário aplicado aos

alunos (observar a divisão em blocos temáticos):471

6.4.4.1. Identificação

1.1 - Nome:

1.2 - Idade:

1.3 - Nacionalidade:

1.4 - Escolaridade:

1.5 - Profissão:

1.6 - Tempo de prática de Kung-Fu com o atual professor:

6.4.4.2 - Grau de inserção do praticante no subuniverso do Kung-Fu brasileiro

2.1 - Há quanto tempo você pratica Kung-Fu com seu atual professor ou mestre? Qual o seu estilo? Você já

praticou ou pratica outros estilos de Kung-Fu?

2.2 - Além do Kung-Fu, você pratica ou já praticou outras artes marciais? Quais?

2.3 - Quantas vezes por semana você freqüenta a academia?

2.4 - O que levou você a praticar Kung-Fu?

2.5 - Qual a importância do Kung-Fu para a sua vida?

2.6 - Você já participou ou participa de competições de Kung-Fu? Em que categoria? Se não participa,

pretende participar?

2.7 - O que você imagina em relação ao seu futuro em termos de Kung-Fu?

6.4.4.3 - O papel do mestre na transmissão dos conteúdos “tradicionais” do Kung-Fu e da cultura

chinesa

3.1 - Qual o nome do seu mestre? Qual a genealogia do seu estilo? Aonde aparece, na sua genealogia, a

figura do mestre ou professor chinês?

3.2 - Fale um pouco sobre a pessoa do seu professor ou mestre: como ele é na hora de ensinar? Ele é do tipo

que explica tudo, ou se prende mais às técnicas, sem muita conversa? E como ele reage na hora de

esclarecer dúvidas?

Page 179: shaolin à brasileira

179

3.3 - Durante a sua formação, que informações históricas você recebeu a respeito do Kung-Fu e do seu

estilo? Conte a história do seu estilo de acordo com o que você aprendeu com o seu mestre:

3.4 - Seu mestre costuma ensinar outras coisas para os alunos além do Kung-Fu? Pergunto em relação a

outros aspectos da cultura chinesa além da parte técnica...

3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação

específica de seu mestre? O que ele ensinou?

6.4.4.4 - O papel das fontes secundárias na formação do imaginário no subuniverso do Kung-Fu no

Brasil

4.1 - Você costuma procurar informações sobre Kung-Fu em outras fontes, além do que é ensinado pelo seu

mestre? Indique estas fontes (livros, revistas, jornais, internet, filmes):

4.2 - No caso das informações sobre Kung-Fu obtidas fora da academia, você faz algum tipo de seleção da

qualidade do material? Como você faz para distinguir o material sério do material pouco confiável?

4.3 - Além do Kung-Fu, você possui interesse por outros assuntos relacionados à cultura chinesa? Quais? Por

quê? Aonde você procura informações sobre estes assuntos?

4.4 - Você percebe, entre os seus colegas de academia, interesse pela cultura chinesa? Quais são os

assuntos que mais interessam? Por quê?

6.4.4.5 - A visão do praticante sobre a importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso do

Kung-Fu brasileiro

5.1 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas,

principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que

você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso,

imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que

descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados)

5.2 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua opinião,

é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu?

5.3 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por

exemplo – você costuma perguntar para o seu mestre ou professor? Como ele responde?

5.4 - Você levou alguma das práticas religiosas da academia para a sua vida cotidiana?

6.4.4.6 -A relação entre os aspectos religiosos presentes na academia e a religiosidade do praticante

de Kung-Fu

6.1 - Você levou valores ensinamentos relacionados ao Kung-Fu – a “filosofia” – para a sua vida? Quais?

Qual sua religião? Com que freqüência você participa das atividades da sua religião? Qual a importância da

religião na sua vida?

6.2 - Especificamente sobre religiosidade oriental: você busca informações sobre o tema além do ambiente da

academia?

471 Entrevistas disp. em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br >

Page 180: shaolin à brasileira

180

6.3 - Você já falou sobre Kung-Fu no ambiente religioso que você freqüenta? Que tipo de resposta você

obteve das pessoas ou do seu líder religioso? O que eles pensam sobre o Kung-Fu? E o que você pensa

disso?

6.4 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no Kung-

Fu? Fale a respeito:

6.5 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se converteria

ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu?

Núcleo Temático

Conclusão

a) - As idades dos entrevistados variaram entre 21 e 52 anos. Metade dos

entrevistados está na faixa entre 35 e 40 anos, o que condiz com a hipótese

da influência da indústria cultural para a escolha da arte marcial (os três

eram crianças ou adolescentes quando do boom marcial chinês na mídia

brasileira, no início dos anos 70).

b) - Os seis entrevistados são alunos “antigos”:472 o tempo de prática varia

entre três e 20 anos. Esse dado revela o grau de envolvimento com o

subuniverso do Kung-Fu do Shaolin do Norte.

6.4.4.1. Identificação

c) - Quatro entrevistados apresentam nível de escolaridade superior ao de

seus professores (terceiro grau); dois possuem o mesmo nível de

escolaridade. (*) – o critério de escolha dos professores pode ter pesado no

perfil dos entrevistados. Além de indicar alunos antigos, certamente eles

levaram em conta características positivas dos escolhidos

d) - Dos seis entrevistados, dois disseram ter praticado outras artes

marciais, que foram abandonadas pela dedicação exclusiva ao Kung-Fu. Os

outros quatro informaram ter se iniciado na arte marcial no Shaolin do Norte.

Essa opção é reveladora, de per se, do grau de inserção do subuniverso do

Kung-Fu.

6.4.4.2 - Grau de inserção do

praticante no subuniverso do

Kung-Fu brasileiro

e) - Os motivos que levaram ao ingresso no subuniverso do Shaolin do Norte

variaram (influência da família, busca da saúde e da redução do estresse,

“liberdade” do Kung-Fu face a outras artes marciais), mas a prevalência foi a

da influência da mídia: dos seis entrevistados, quatro informaram ter sido

influenciados por filmes de Bruce Lee e pelo seriado “Kung-Fu”.

472 Tomamos por referência o tempo mínimo de prática de dois anos, por nós estabelecido com base em observações de caráter empírico: o aluno que ultrapassa esse tempo costuma se ligar mais intensamente à prática marcial.

Page 181: shaolin à brasileira

181

f) - Os entrevistados dedicam um tempo significativo à prática do Kung-Fu: o

tempo-mínimo semanal relatado foi de quatro horas, e o máximo, de 18

horas. O grau de inserção também pode ser medido pela participação em

competições: dos seis entrevistados, cinco participam ou participaram de

competições, e um é arbitro formado pela Confederação Brasileira de Kung-

Fu (com participações em várias competições).

g) - Todos os entrevistados disseram que a prática marcial possui muita

importância em suas vidas. Cinco informaram que pretendem evoluir até o

grau de maestria e que desejam, no futuro, ministrar aulas (dois deles já

ministram). Para todos eles a arte marcial está ligada a palavras como

serenidade, equilíbrio, tranqüilização mental e cultivo do corpo.

h) - Os seis entrevistados identificaram como “mestre” seus professores

mais próximos (RLS e DC). Lee Chung Deh (LCD) também aparece, nesse

contexto, como “mestre” - uma pessoa extremamente respeitada, apesar de

muitas vezes distante do ponto de vista geográfico (ele vive em Curitiba,

longe dos centros onde realizamos as entrevistas). LCD encarna o

“arquétipo do mestre chinês” e, por estar no Brasil desde muito cedo

(chegou aos 14 anos), estabeleceu uma importante ponte de ligação entre

as culturas chinesa e brasileira.

i) - O “mestre” (RLS e DC) é admirado por possuir características tais como

dedicação, calma, paciência e conhecimento marcial. Observa-se, nas

respostas, uma percepção do mestre brasileiro, também, como pessoa, e

não apenas como um “ícone marcial infalível” (o que não acontece em

relação a LCD, encarado com uma “deferência extra”).

j) - Nos dois grupos de entrevistados observou-se um afastamento em

relação ao mestre Chan Kowk Wai (CKW). Isso pode ser explicado pelo fato

de seus professores não terem sido formados por CKW, mas por LCD; há,

também, o aspecto da disponibilidade do mestre: enquanto LCD viaja para

ministrar cursos, CKW raramente participa de eventos fora de São Paulo (a

não ser no Exterior).

6.4.4.3 - O papel do mestre na

transmissão dos conteúdos

“tradicionais” do Kung-Fu e

da cultura chinesa

k) - O conhecimento dos entrevistados acerca da genealogia se prende,

fundamentalmente, ao presente e à tradição oral do estilo. O elemento

reconhecido como “mais antigo”, porém, é CKW. Mestres anteriores, como

Yang Sheung Mo e Ku Yu Cheung, pertencem a uma “esfera histórica

chinesa” que não faz parte do dia-a-dia da academia e nem se converte em

conteúdo institucional do subuniverso. Eles incorporaram à árvore

genealógica, de modo muito intenso, a figura de LCD e de seus professores

(DC e RLS). Dado o pouco contato com a religiosidade tradicional chinesa

(ligada ao culto aos antepassados), pode-se afirmar que, enquanto novos

ramos da árvore genealógica se consolidam, há um “ressecamento” dos

ramos mais antigos.

Page 182: shaolin à brasileira

182

l) - O papel do “mestre” na transmissão de conteúdos chineses extra-

marciais foi relativizado. O professor não repassa informações de maneira

institucional (tais conteúdos não são programáticos); as demandas surgem

dos alunos.

m) - A respeito da transmissão de conteúdos referentes às religiões

chinesas, as respostas dos entrevistados denotaram uma profunda ausência

de dados. As informações transmitidas são muito raras, essencialmente

empíricas e de caráter fragmentário (ver item 5).

n) - As principais fontes de consulta dos entrevistados são a internet, livros e

revistas. Elas ocupam um caráter complementar em relação à tradição oral.,

prestando-se a cobrir as suas lacunas Os entrevistados expressaram

dificuldade em apontar com clareza como fazem para separar as

informações das fontes de acordo com o critério da confiabilidade. Isso não

os impede, porém de ira às fontes e de, certamente, incorporar (em maior ou

menor grau) seus conteúdos.

o) - Os entrevistados admitiram ter dificuldade em reconhecer fontes

confiáveis, o que não os impede de fazer consultas e aceitar os dados,

principalmente em função de seus gostos pessoais e da repetição de

informações em várias fontes.

6.4.4.4 - O papel das fontes

secundárias na formação do

imaginário no subuniverso do

Kung-Fu no Brasil

p) - Os entrevistados mostraram interesse em certos aspectos extra-marciais

da cultura chinesa. Essa disposição, porém, não tem caráter sistemático

(não está ligada a nenhum pensamento de reforço institucional em relação

ao Kung-Fu) e, muitas vezes, encontra na academia um canal de acesso

que nem sempre – por conta da falta de informações - é dos mais

estimulantes. As respostas indicam o grau de distanciamento entre o Kung-

Fu praticado no Brasil e a cultura chinesa. Isso abre uma porta para a

ressignificação e, de certa forma, indica o “esvaziamento étnico” da prática

marcial (é possível que a presença de chineses instigasse os praticantes a

procurar mais informações sobre essa cultura).

q) - As respostas sobre os elementos religiosos revelaram um esvaziamento

de sentido em relação aos ícones presentes no Shaolin do Norte. Esse

esvaziamento concorre para uma “identificação cenográfica” desses

elementos – de caráter institucional, sem dúvida, e ligada ao subuniverso do

Kung-Fu – e abre caminho para a sua ressignificação.

6.4.4.5 - A visão do praticante

sobre a importância dos

elementos religiosos dentro

da subcultura o Kung-Fu

brasileiro

r) - As respostas dos entrevistados mostraram a relativa importância dada

aos elementos iconográficos de caráter religioso nas academias. Enquanto

numa delas aparecem o altar, a placa “da ética e da ancestralidade” e os

quadros dos mestres, na outra não há qualquer desses elementos. Os

alunos das duas academias utilizam camisetas tradicionais (ver fig. 42 e 43).

As respostas indicaram, ainda, uma grande dificuldade no reconhecimento

de tais elementos.

Page 183: shaolin à brasileira

183

s) - No caso da academia onde os elementos iconográficos se fazem

presentes, foram apontados como religiosos a queima de incenso, o altar e

as fotos dos mestres (referências fragmentárias ao culto aos antepassados).

Não houve referências aos elementos da camiseta e, nem, à placa “da ética

e da ancestralidade”.

t) - Na academia onde os elementos não estão presentes foi dado grande

valor ao cumprimento tradicional, visto, porém, como de natureza ética e não

religiosa. Os alunos dessa academia também não se referiram aos símbolos

da camiseta.

u) - Não houve referências à prática do Chi Kung como de caráter mágico ou

religioso; no entanto, a prática da meditação – não sistematizada na

Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo – foi citada por alguns

dos entrevistados.

v) - Um dos motivos para o afastamento seria o desconhecimento dos

conteúdos por parte do mestre. A falta de aplicações práticas para esses

conhecimentos, segundo alguns dos entrevistados, também parece ter

motivado sua desvalorização.

w) - Dois seis entrevistados, quatro se disseram católicos não-praticantes,

um informou ser budista praticante (seguidor do Budismo Nitiren-neichonin,

do Movimento Sokka Gakai) e um disse não seguir religião alguma, apesar

de possuir uma forte ligação com as premissas filosóficas e práticas de

caráter empírico do Movimento da Projeciologia Consienciologia.

x) - Dos seis entrevistados, quatro disseram que não se converteriam a uma

religião por conta do Kung-Fu. Um deles admitiu a possibilidade, desde que

não precisasse abrir mão do Catolicismo. Outro informou que até poderia,

mas que, por já ser budista, tal hipótese não teria como se configurar.

Acreditamos que, aqui, se mostre um elemento decorrente da relação arte

marcial x componente étnico. Se ela se desenvolvesse em um ambiente

fortemente étnico – o que ocorre artes marciais japonesas ultra-ortodoxas,

como o Kendo (esgrima japonesa) -, certamente levaria os praticantes a

uma atitude mais “aguda” em relação à religiosidade do subuniverso marcial.

y) - Os entrevistados foram unânimes, porém, em afirmar que incorporam,

ao seu universo religioso, elementos da religiosidade do Kung-Fu. Não há,

porém, uma imagem muito nítida desse constructo, que é relacionado,

principalmente, a elementos não necessariamente religiosos, como a

tranqüilização mental, a ética e fraternidade.

6.4.4.6 - A relação entre os

aspectos religiosos presentes

na academia, a religiosidade e

a vida do praticante de Kung-

Fu; a interação do praticante

com a realidade-padrão

z) - Eles informaram, ainda, não ver grandes problemas de aceitação por

parte da família e da sociedade em relação à prática do Kung-Fu. A visão

“dos outros”, ao contrário, é ligada a elementos como saúde, nobreza, força

e destreza física, assim como à tranqüilidade. Dos seis entrevistados,

apenas um se revelou incomodado com as brincadeiras por parte de não-

praticantes que só conhecem a prática marcial por fontes anedóticas.

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6.5 - Interpretação das informações do capítulo

O sexto capítulo fornece em detalhes as respostas dos dez entrevistados aos

questionamentos relacionados ao nosso objeto de pesquisa. A partir delas é possível

verificar alguns elementos, tais como a ausência de uma “ortodoxia não-corporal” dentro

do Kung-Fu do Shaolin do Norte, bem como o desinteresse de mestres e alunos em

aprender mais a respeito dos elementos religiosos presentes em sua prática marcial.

Revelou, também, um acelerado distanciamento entre as gerações mais novas, o mestre

mais antigo e os conteúdos semânticos não-corporais mais tradicionais. Com o avanço

das gerações, pode-se perceber um esvaziamento do significado da iconografia religiosa

dentro da tradição do Shaolin do Norte e a conversão dos ícones em “elementos

cenográficos” do ambiente de prática de Kung-Fu.

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7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA

Como foi possível observar, ao final de cada capítulo da pesquisa incluímos um subitem

denominado Interpretação das Informações do Capítulo. Mais do que funcionar como

uma “conclusão pontual”, esse subitem teve por finalidade construir a base de dados

depurada, objetiva, que será aplicada nosso construto teórico. A partir da leitura de cada

um dos subitens finais dos capítulos é possível estabelecer as sínteses necessárias à

produção dos dados que serão tomados em conta quando da produção, à luz do

constructo teórico, das respostas às indagações feitas na introdução desta dissertação.

Para facilitar o processo de produção das sínteses teórica e empírica, optamos por dividir

as conclusões pontuais (referentes a cada capítulo) em tabelas. Ao todo, os capítulos de

caráter teórico-bibliográfico redundaram em um total de 25 conclusões; o de caráter

empírico, em 20 conclusões. A fim de dinamizar o trabalho e evitar o desestímulo dos

leitores – afinal, a “frieza” das tabelas pode afugentar, dentre eles, até mesmo os mais

estóicos -, achamos mais apropriado apresentar as sínteses teórica e empírica na forma

de textos descritivos.473

Os três capítulos de corte teórico-bibliográfico (2, 3, 4 e 5) revelam dados importantes

para o entendimento da História, dos mitos de criação e do valor dado, na antiga China e

no Brasil atual, ao elemento religioso nas artes marciais:

(cap. 2) - A primeira conclusão se refere à religiosidade na arte marcial. As práticas

guerreiras chinesas possuem pelo menos 3.500 anos. O ingresso institucional de práticas

religiosas, porém, é cerca de dois mil anos mais recente, o que indica que, por muito

tempo, as artes de guerra foram fundamentalmente instrumentais.474 Mesmo com a

entrada dos elementos religiosos, porém, elas mantiveram esse caráter: muitos

praticantes incluíram práticas mágicas voltadas ao aumento da força e à proteção contra

inimigos.475 Do que se deduz que, ao contrário do que aconteceu no Japão a partir

473 As tabelas com as conclusões pontuais – capítulo a capítulo – podem ser encontradas em <http://dissertakungfu.vila.bol.com.br> 474 Não se pode esquecer, porém, que a lida com a guerra envolve um componente religioso fundamental: a morte. De modo que, ao nos referirmos ao ingresso mais recente de elementos religiosos, estamos nos referindo a um ingresso institucionalizado. 475 Sobre a relação entre comportamento humano e guerra, ver COSTA, G. (org), “Guerra e Morte”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Imago, 1998, 217 p.

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do século XVI, na China as artes marciais jamais tiveram o perfil de “caminho para a

transcendência”. Essa constatação é chave para se entender a relação entre os mestres

chineses e os elementos religiosos na arte marcial, assim como a forma como tais

conteúdos foram transmitidos aos praticantes brasileiros.

(cap. 2) - A segunda conclusão é a de que a arte marcial foi, de fato, praticada em

Shaolin, principalmente nos séculos XVI e XVII, nos moldes instrumentais já referidos. É

possível, pois, que Shaolin seja a fonte das rotinas do estilo Shaolin do Norte.476 Na

própria China, os monges de Shaolin foram representados como defensores absolutos da

justiça e portadores de uma técnica marcial insuperável. Essa representação chegou ao

Brasil pelas mãos dos mestres e pela “mídia marcial” dos anos 70, principalmente por

meio do seriado televisivo “Kung-Fu”. Por seu caráter “mítico-arquetípico”, ela se

converteu em dogma para os praticantes brasileiros de Shaolin do Norte, não-

passível de contestação, mas de acréscimos decorrentes da apropriação das

informações e da necessidade de sua afirmação no subuniverso brasileiro de

prática marcial.

(cap. 2) - A terceira conclusão do capítulo se refere ao uso, no Brasil, do termo Kung-

Fu477 para denominar a arte marcial chinesa. Como na China o uso do termo não tem a

mesma conotação,478 pode-se deduzir que o ingresso da arte marcial chinesa, no

Brasil, não se deu apenas por um esforço catequético de mestres originários, mas,

principalmente, pelo fator-chave “indústria cultural”.

(cap. 3) – A quarta conclusão se refere ao papel da imigração para a transplantação do

Kung-Fu no Brasil. A imigração chinesa para o Brasil foi tardia. Mesmo assim, a existência

de mestres originários dentre os imigrantes indica que ela foi relevante para a afirmação

do Kung-Fu no país. O Kung-Fu, porém, não foi relevante para a afirmação da

identidade chinesa no Brasil. O número de mestres originários é reduzido, assim como

o de chineses ou descendentes praticantes; esse dado tem como justificativas a baixa

dispersão no território nacional, bem como o desinteresse dos indivíduos pela arte

476 Não se pode esquecer, porém, da possibilidade de ligação do estilo com o mosteiro por conta dos mitos de criação das tríades. 477 A partir dessa parte do texto, será possível observar o uso generalizado tanto de “Kung-Fu” quanto de “Shaolin do Norte”. Entendemos que as conclusões válidas para o estilo analisado valem, também, para o conjunto da marcialidade. Assim, não há conflito entre os termos. 478 A não ser na recentemente, depois da “onda Kung-Fu” no Ocidente.

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marcial. Esse desinteresse pode ter sido motivado por uma necessidade premente de se

estabelecer economicamente ou pela visão da arte marcial como algo desnecessário para

a identidade cultural. A constatação do afastamento étnico permite entender porque a

arte marcial chinesa foi tão bem assimilada pelos brasileiros: ela não exigia mais do

que a vontade de praticar e o respeito a regras institucionais facilmente

assimiláveis.479

(cap. 4) – A quinta conclusão se refere ao papel da indústria do entretenimento para a

transplantação do Kung-Fu ao Brasil. Quando chegou ao Brasil, o Kung-Fu já tinha

características de elemento transcultural. Essa transculturalidade pode ser observada

em relação aos conteúdos não-corporais, que, por não serem bem compreendidos, são

apropriados e modelados de acordo com a visão de mundo local. A dificuldade de

transmissão de conteúdos não-corporais pelos mestres, a presença de uma

tradição oral fundamentada apenas na genealogia e a oferta de produtos culturais

populares, assim como o desejo de expressão e de compreensão por parte dos

praticantes, deram origem a um universo de “dados gerais de Kung-Fu”. Esse

universo é caracterizado por se afirmar como “incrivelmente antigo e venerável”, mesmo

sendo novo e extremamente dinâmico.480

(cap. 5) – A sexta conclusão diz respeito à existência de um “cenário de Kung-Fu”. As

academias de Shaolin do Norte, via de regra, mantêm características cenográficas

comuns, tais como as referentes à presença de armas tradicionais, elementos decorativos

e de disposições arquitetônicas. Tal configuração, assim como sua relação com os

praticantes, se apresenta como elemento de apoio à tese de que o Kung-Fu

brasileiro, apesar de seu reduzido grau de tensão em relação à realidade-padrão, se

caracteriza como subuniverso semântico.481

(cap. 5) – A última conclusão teórico-bibliográfica diz respeito à existência de elementos

religiosos na iconografia e nos rituais de academia do Shaolin do Norte. Apesar de o estilo

479 Outras artes marciais também foram bem assimiladas. O caso do Kung-Fu, porém, é sui generis, posto que chegou há pouco tempo e foi assumido por professores sem qualquer vínculo direto com a colônia chinesa. 480 Um mestre chinês transmite conteúdos não-corporais a um aluno brasileiro; este apela para outras fontes, de onde extrai dados que vão suprir as lacunas deixadas pelos “ruídos de comunicação”; formado professor, funde as informações e as repassa como “tradicionais”. Seus alunos repetem o processo: em poucas gerações, o conjunto de informações terá mudado substancialmente. 481 Conceitos de Berger e Luckmann.

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tomar como principal referência o Budismo, pode-se constatar a presença de elementos

do Taoísmo e do Confucionismo. O predomínio é de caracteres pré-taoístas e taoístas,

seguidos por caracteres confucionistas e, então, por caracteres budistas. Todos

possuem grande significado religioso, calcado, principalmente, na religiosidade

popular chinesa (em especial no culto aos antepassados). Esse significado não se

desvela de per se, permanecendo oculto por barreiras de compreensão simbólica e

de domínio da escrita chinesa. Esse ocultamento produz especulações,

ressignificações e, principalmente, a desvalorização de tais conteúdos.

O capítulo de corte empírico (6) permite confirmar ou negar, a partir de dados da

realidade fática, as conclusões estabelecidas na leitura teórico-bibliográfica. Permite

vislumbrar, também, as transformações do universo semântico não-corporal do Kung-Fu

ao longo das gerações de entrevistados.

- A principal conclusão extraída da análise dos dados de campo diz respeito a um

esvaziamento dos conteúdos originais de natureza não-corporal, em especial os

ligados à religião. Esse esvaziamento, verificado nas duas gerações não-chinesas de

praticantes de Shaolin do Norte, é provocado por três fatores: em primeiro lugar, a relação

dos mestres chineses com os elementos religiosos presentes no Kung-Fu, calcada na

religiosidade popular e na percepção de que a prática marcial não é um “caminho de

transcendência”, mas, fundamentalmente, de sobrevivência; em segundo lugar, a

dificuldade de transmissão das informações por esses mestres (especialmente no caso do

mestre chinês de primeira geração);482 em terceiro lugar, o desinteresse dos alunos em

conhecer os elementos religiosos presentes na sua prática marcial, que faz com que os

mestres tenham ainda menos estímulo para “dar o primeiro passo”.

- O desinteresse dos praticantes brasileiros não guarda relação com qualquer tipo

de conflito envolvendo seus valores religiosos pessoais e os valores presentes na

arte marcial. Diz respeito, sim, à relação que eles estabelecem com a religiosidade em

geral: dos oito brasileiros entrevistados, cinco se disseram católicos não-praticantes, um

se disse avesso a qualquer “religião dogmática”, um se disse crente em uma espécie de

“supra-religião” de caráter pessoal (e características universalistas) e um informou ser

482 No caso do mestre chinês de segunda geração, esse repasse foi facilitado por seu melhor domínio da expressão em língua portuguesa e, também, por uma compreensão “mais tranqüila” da mente brasileira (ele chegou ao país no início da adolescência).

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budista praticante. Dos oito, apenas um afirmou que poderia considerar a possibilidade de

se converter a uma das religiões relacionadas ao Kung-Fu – desde que não precisasse

abandonar o catolicismo. Podemos deduzir, pois, que a relação dos entrevistados

com os elementos religiosos do Kung-Fu é semelhante à que estabelecem com a

religiosidade em geral – de respeito, mas sem grande envolvimento. Por terem

pouco acesso às informações dos valores religiosos do Kung-Fu, porém, acabam

por se afastar desse segmento do universo semântico não-corporal.

- Os alunos brasileiros demonstraram um grau relativo de conhecimentos acerca da

história do estilo praticado. Seu conhecimento se baseia, sobretudo, nas informações

transmitidas por seu professor, bem como em consultas a livros, revistas e sites. Esse

conjunto de informações configura o que nós denominamos, ao longo deste trabalho,

“dados gerais de Kung-Fu”. Aparentemente, eles não julgam necessária uma investigação

mais profunda acerca dos dados não-corporais presentes no Kung-Fu do estilo Shaolin do

Norte.

- Os professores e alunos brasileiros apontaram a indústria cultural como sendo de

grande importância para a sua escolha pelo Kung-Fu. Principalmente para os

professores e para os alunos mais velhos, a veiculação do seriado “Kung-Fu” e dos filmes

de Bruce Lee foi determinante para o início da prática marcial – e, certamente, para o

estabelecimento de um “modelo de comportamento marcial”.

- Os professores e alunos brasileiros mostraram, via de regra, pouco conhecimento

acerca dos elementos iconográficos de natureza religiosa presentes no “cenário de

Kung-Fu”, incluindo-os na relação de marcas identificadoras gerais do ambiente de

prática. De todos os entrevistados brasileiros, apenas um (professor) soube explicar em

detalhes o elemento iconográfico mais complexo, a “placa da ética e da ancestralidade” –

os demais sequer a apontaram. Questionados sobre os elementos e os rituais “religiosos”,

os alunos indicaram o altar e a queima de incenso.483 Não souberam explicar, porém, seu

significado de acordo com a religiosidade chinesa.

483 Elementos centrais no ambiente de prática e, sem dúvida, mais próximos da “representação religiosa média” dos ambientes marciais orientais. Afinal, que filme de artes marciais – em especiais os recentes, estrelados por atores não-orientais – não possui uma cena em que o protagonista aparece queimando incenso e meditando em uma ermida, diante de uma katana (espada samurai) ou próximo de um altar? Essa lente tem por fulcro o olhar nipônico da marcialidade.

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- Os entrevistados brasileiros relacionaram a prática marcial a fatores como

“tranqüilidade” e “equilíbrio”. Essa relação mostra, de certa forma, uma “percepção do

sagrado” na arte marcial. Esse “sagrado”, porém, parece estar ligado ao chamado “foco

nipônico” que permeia a visão ocidental acerca de todas as expressões marciais do

Extremo Oriente. Parece estar ligado, também, a um poderoso fator de caráter simbólico-

psicológico: o da “reserva voluntária de tempo” para uma prática física que, além de

combater o estresse, também conecta o indivíduo a elementos de grande valor simbólico,

como o combate individual e armas antigas (como a espada),484 bem como a outros

indivíduos que possuem interesses semelhantes.

- Os entrevistados brasileiros (principalmente os de quarta geração) mostraram uma visão

bastante específica a respeito da própria genealogia marcial. Ao invés de valorizar

mestres mais antigos, preferiram concentrar a própria história marcial na figura de

seu “mestre” e, quando muito, na do mestre deste. Essa configuração demonstrou

afastamento, inclusive, em relação ao mestre chinês de primeira geração, citado com

respeito, mas, ao mesmo tempo, de forma impessoal e “distante”. Esse dado mostra

que, em termos genealógicos, a arte marcial chinesa está adquirindo um perfil cada

vez mais brasileiro, desligado tanto de mestres originários quanto de valores

chineses tradicionais.

- Os entrevistados disseram não possuir qualquer tipo de conflito em relação à

sociedade em função da prática do Kung-Fu. Ao contrário, a prática marcial é vista

pelas pessoas “de fora” como positiva, já que pressupõe, em relação ao praticante,

valores como seriedade, dedicação, serenidade e habilidades marciais.

484 Sobre o simbolismo da luta, ver CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, op. cit., p. 355-356; sobre o da espada, ver, na mesma obra, p. 236 a 239.

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8. CONCLUSÃO

Monges boxeadores, técnicas secretas, dragões coleantes e ermidas taoístas em meio ao

ritmo entrópico das grandes cidades brasileiras. Em pouco mais de quatro décadas, a arte

marcial chinesa conquistou uma parcela importante do público brasileiro afeito às proezas

dos artistas marciais. Tomando por base uma referência de caráter histórico, constatamos

que esse é um período de tempo ínfimo, mesmo levando-se em conta a “aceleração dos

relógios” motivada pelo desenvolvimento tecnológico-científico e pelo maior contato entre

as culturas: basta pensar, por exemplo, que a moderna marcialidade chinesa,

caracterizada pela sistematização de boa parte dos estilos praticados atualmente (como

os da família Shaolin, Hsing I, Tai-Chi e Pa Kua), tem quase a mesma idade do Brasil. O

mesmo vale para a consolidação, entre os habitantes do “Celeste Império”, da imagem

dos monges budistas de Shaolin como “guerreiros invencíveis”: enquanto os clérigos de

Henan submetiam piratas a golpes de bastão em rios e canais da China Central, em

meados do século XVI, portugueses, espanhóis e franceses mal “arranhavam” a costa

brasileira.

Pois, em apenas 40 anos, o Brasil assimilou cinco séculos de arte marcial organizada em

estilos e pelo menos 35 séculos de movimentações guerreiras chinesas, dos bronzes de

Shang à genial doutrina militar de Sun Tzu, da fusão médico-mágica budo-taoísta de Hua

To à efervescência das tríades e dos boxers. Isso, sem ter recebido um número

significativo de imigrantes chineses ou de mestres de Kung-Fu originários daquele país.

Diante de tais observações, estabelecemos as nossas hipóteses de trabalho. Neste

capítulo final, depois de uma “jornada de mil li”,485 pretendemos respondê-las e – para

usar a linguagem figurada do capítulo 6 - “chegar ao filhote do tigre”.486

Antes de chegar à análise teórica pura – que tomará por base a teoria de Martin Baumann

acerca da transplantação religiosa, bem como conceitos de Peter Berger e Thomas

Luckmann sobre a “realidade não-padrão” e a formação de subuniversos -, faz-se

necessário explicar o caminho que adotamos para conferir objetividade à etapa final do

trabalho. A partir das conclusões de corte teórico-bibliográfico e empírico é possível emitir

pareceres às seis hipóteses “particulares” estabelecidas na introdução desta dissertação:

485 Referência ao ditado chinês “Uma jornada de mil li começa pelo primeiro passo”. Um li ( ) equivale a 500 metros. Inf. cf. <http://www.nationmaster.com/encyclopedia/Chinese-unit> (c. 26.07.2004).

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1. “A prevalência de uma tradição oral centrada no valor atribuído à informação do

‘mestre’ (chinês ou brasileiro), a ausência de obras acadêmicas sobre arte marcial

chinesa, a obtenção empírica de conhecimentos e, principalmente, a forte presença de

conteúdos não-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indústria cultural (a partir dos

anos 70), implicaram na formação de um universo semântico não-corporal sui generis,

moderno e de fulcro transcultural.”

O Kung-Fu brasileiro – visto em sua totalidade ou, especificamente, em relação ao estilo

Shaolin do Norte – foi formado a partir da fusão de valores tradicionais chineses (a arte

marcial chinesa como produto nacional) e de valores transculturais (a arte marcial chinesa

como produto não adstrito às fronteiras nacionais). Enquanto os elementos corporais (no

caso do Shaolin do Norte) foram plasmados a partir de informações tradicionais chinesas,

os de natureza não-corporal receberam sua principal influência da senda transcultural,

calcada, sobretudo, em produtos da indústria do entretenimento e em leituras locais do

Kung-Fu. Nesse contexto, a tradição oral é tomada com respeito, mas complementada

por informações de várias fontes. Assim, a primeira hipótese geral se confirma, uma vez

que, de fato, o subuniverso semântico de natureza não-corporal do Kung-Fu é moderno e

de fulcro transcultural.

2. “A dificuldade de acesso a informações originárias da China, assim como de

entendimento dos dados culturais daquele país, levaram os praticantes locais a buscar

informações ‘extra-academia’ - em livros, revistas, filmes e internet. Tais informações

teriam por fim sacramentar as atividades desenvolvidas nas academias como arte marcial

‘de fato’, ou seja, como prática de agressão transformada em ‘caminho de vida’ por meio

da inserção de fatores éticos e de caráter legitimador.”

A presença de um número relativamente expressivo de publicações populares, assim

como de sites brasileiros relacionados ao Kung-Fu, permite afirmar que a busca dos

praticantes locais por informações “extra-academia” é significativa. Não se pode afirmar,

porém, que essa busca tenha por fim garantir ao Kung-Fu um aspecto de arte marcial de

corte transcendental, uma vez que, como as entrevistas com os alunos e professores

revelaram, não há grande interesse pelos aspectos religiosos ou filosóficos de sua prática.

486 Ver abertura do cap. 6.

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As “informações extra-academia” se referem, fundamentalmente, a aspectos gerais da

arte marcial, tendo por fim, muitas vezes, o compartilhamento de impressões a seu

respeito. Dessa forma, não se pode afirmar que a segunda hipótese esteja totalmente

confirmada: em relação à busca extra-academia por informações, sim; em relação à

finalidade “legitimadora” da busca, não.

3. “As diferenças culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil e

os praticantes brasileiros (a começar pelo idioma) teriam criado uma ‘barreira semântica’

que dificultou a transmissão de valores religiosos e ético-filosóficos que, originalmente,

formavam o ‘substrato espiritual’ do Kung-Fu.”

Essa hipótese é confirmada pelas entrevistas com os mestres chineses. Como vimos nas

entrevistas, eles têm dificuldade de expressar valores religiosos e ético-filosóficos; não

apenas por conta de um problema de domínio do idioma, mas, também, pelo fato de que

muitas das suas percepções foram calcadas em uma “visão chinesa de mundo” e em uma

religiosidade de corte popular que é de difícil expressão em termos racionais (trata-se de

uma religiosidade do sentir). Vale observar que a transmissão de conteúdos corporais –

técnicas e rotinas – não constitui problema, se colocando, mesmo, como fulcro da prática

marcial chinesa tradicional no Brasil.

4. “A ausência de uma colônia chinesa numericamente expressiva no Brasil e a falta de

interesse dos próprios chineses em conhecer a arte marcial de seu país de origem

implicaram em um ‘esvaziamento étnico’ no Kung-Fu brasileiro. Esse esvaziamento teve

como principal conseqüência uma apropriação, por parte da população local, da arte

marcial chinesa, com conseqüências diretas para seus conteúdos não-corporais.”

A quarta hipótese é confirmada por dados da pesquisa teórico-bibliográfica e, também,

por observações de caráter empírico. É possível afirmar que a arte marcial chinesa sofreu

um processo de “esvaziamento étnico” no Brasil. O primeiro elemento a considerar é a

inexistência de uma colônia chinesa expressiva, em termos numéricos, no Brasil. Em

segundo lugar, é preciso observar que, por uma série de fatores, grande parte dos

chineses que emigraram para o Brasil não manifesta interesse pela prática do Kung-Fu: a

presença de chineses é pequena, mesmo nas academias de cidades onde há colônias,

como São Paulo e Curitiba; nos locais onde não há chineses, evidentemente, não há

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praticantes chineses de Kung-Fu – mas há academias. A inexistência de tensão étnica,

que forçaria os praticantes brasileiros a lutar pela própria legitimação dentro do

subuniverso do Kung-Fu, facilitou o processo de valoração/ressignificação dos conteúdos

não-corporais presentes na arte marcial chinesa. Nesse contexto, a presença de mestres

chineses não parece ter grande peso – eles são, sem dúvida, “guardiães da ortodoxia

corporal”, ou seja, prestam muita atenção à forma como seus alunos apreendem e

replicam as técnicas e rotinas ensinadas. Em relação aos conteúdos não-corporais,

esbarram nos elementos relacionados na hipótese anterior.

5. ”Práticas rituais e ícones chineses associados originalmente à religiosidade no Kung-Fu

foram esvaziados de seu sentido original e convertidos em símbolos de caráter

‘cenográfico’, ou seja, de representação do universo marcial. Segundo essa visão, uma

estátua do espírito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu caráter devocional e

passaria à condição exclusiva de peça necessária à legitimação do ambiente marcial.”

Essa hipótese é confirmada, principalmente no caso dos alunos brasileiros, que

demonstraram profundo desconhecimento acerca dos elementos iconográficos de viés

religioso presentes em suas academias. Os elementos “religiosos” que mais chamaram a

atenção desses alunos foram o altar – que ocupa uma posição central, muito visível, na

área de treinamento –, o cumprimento (visto como “altamente ético”) e a queima de

incenso. Eles não souberam, porém, explicar em termos precisos seu significado. Em

relação a essa hipótese é preciso reafirmar o que foi observado anteriormente no que

respeita à transmissão, pelos mestres originários, de conteúdos não-corporais. Pudemos

comprovar que o subuniverso do Shaolin do Norte é muito rico em elementos de cunho

religioso relacionados às três religiões que floresceram na China. No entanto, esses

elementos não são transmitidos – a não ser, muitas vezes, em termos meramente

cenográficos – pelos mestres. Às dificuldades de cunho lingüístico e semântico somam-se

outras duas: uma, relativa ao interesse dos alunos pelas “religiões do Kung-Fu”, que

reflete sua atitude pessoal em relação à própria religião (de respeito e distanciamento); a

outra, relativa à espera dos mestres pelos questionamentos: se os alunos não

questionam, é porque o tema não lhes causa incômodo – como esse tema não tem sua

transmissão estabelecida como parte da formação do aluno, por que se manifestar?

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6. “A visão do Kung-Fu como atividade desligada de conteúdos que não os de caráter

puramente marcial ou de condicionamento físico fez com que os praticantes não

investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma

desvalorização dos mesmos no universo da arte marcial.”

Essa hipótese é parcialmente confirmada com base nas respostas anteriores. Se os

professores brasileiros foram às academias movidos pelas técnicas mortais e pelas

atitudes éticas e espirituais de figuras como Bruce Lee e Kwai Chang Caine, o mesmo

não se verifica em relação a seus alunos (principalmente os mais jovens), que viveram um

período posterior ao do “boom Kung-Fu”. Não se pode afirmar, porém, que os

entrevistados de quarta geração considerem o Kung-Fu como prática desligada de um

conjunto razoável de conteúdos não-corporais: apesar de não manifestarem o mesmo

interesse de seus professores, eles não o tomam, certamente, por uma atividade como a

ginástica aeróbica ou a musculação (a longevidade na prática e o respeito devotado ao

professor parecem demonstrar isso).

Estabelecidas as considerações relativas às hipóteses “particulares”, podemos partir para

a verificação da hipótese “geral” ou “fundamental”, aplicando o construto teórico por nós

estabelecido para esta pesquisa:

“O Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico não-corporal condicionado

por fatores que implicaram em uma valoração e em um entendimento particulares, por

parte dos praticantes locais, dos elementos da religiosidade chinesa associados à prática

marcial original.”

Com base nas respostas às hipóteses particulares, afirmamos que a hipótese “geral” ou

“fundamental” é plenamente confirmada. O Kung-Fu brasileiro, de fato, teve seu universo

semântico não-corporal condicionado por fatores muito específicos.

Iniciamos nossa análise definitiva a partir de um construto teórico empregado,

inicialmente, no âmbito dos estudos da religião.487 No artigo “O Budismo no Brasil – um

487 O Kung-Fu, como afirmamos anteriormente, não é uma religião, mas uma prática que relaciona uma série de dados da cultura chinesa – entre eles, alguns de natureza religiosa. Ainda assim, cremos na validade da aplicação do constructo à nossa pesquisa.

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resumo sistemático”,488 Frank Usarski aponta três linhas principais nas quais estão

incluídas as formas de Budismo encontradas no Brasil: são as do “Budismo de

Imigração”, do “Budismo de Conversão de ‘primeira geração’” e do “Budismo de

Conversão de ‘segunda geração’”.

Dentre as características do modelo “de Imigração”,489 uma cabe à análise da

transplantação do Kung-Fu ao Brasil: é a que se refere ao caráter étnico da prática

religiosa (no nosso caso, da prática cultural); nesse modelo, a prática surge fortemente

relacionada à questão da identidade étnica e cultural. Ela se destina, fundamentalmente,

à comunidade que a transplantou, funcionando como elemento de coesão grupal e de

“esteio psicológico” face ao desafio de enfrentar a vida em um ambiente cultural

potencialmente hostil. Como tal, não possui caráter inclusivo, mas de tensão em relação

aos elementos “de fora” que buscam fazer uma aproximação. Diante da dinâmica da

sociedade brasileira, parece fadado a desaparecer, tanto em função do falecimento de

seus propugnadores quanto pela não-replicação dos valores iniciais por seus

descendentes.

Como os dados de nossa pesquisa revelaram, o Kung-Fu brasileiro não se configura

como “prática cultural de imigração”. Foi trazido por chineses e, em tese, poderia ter se

configurado como elemento relevante para a identidade étnica ou à coesão grupal.490 Os

sino-brasileiros, porém, nunca lhe deram grande atenção: apesar de viverem em grupos

relativamente fechados – ou seja, caracterizados por um forte fator étnico, centrado

principalmente na língua e em hábitos domésticos – não o mantiveram “escondido em sua

própria cidadela”; pelo contrário, parecem não tê-lo reconhecido como produto de sua

cultura. Diante disso, os mestres originários interessados em propagar sua arte se

voltaram ao público local, que a ela aderiu com entusiasmo.

Este é o primeiro fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: por não ter sido

tomado pelos imigrantes chineses como fator de identidade étnica, chegou aos

brasileiros como uma espécie de “res derelicta”, ou seja, como um produto cultural

488 USARSKI, “O Budismo no Brasil – um resumo sistemático”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p. 9 a 33. 489 O autor aponta três características, a saber: a) – fusão do Budismo com o culto dos ancestrais; b) – ênfase na devoção e na recitação segundo a tradição nos moldes do Amida-Budismo; e c) – a prática de abrangência familiar. 490 Mesmo porque, na China, há uma forte tradição folclórica, literária e mesmo política ligada à prática marcial.

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abandonado pelo conjunto de seus possuidores originais, que, por conta disso, foi

livremente apropriado pela população não-chinesa.491

Pode-se afirmar, porém, que o Kung-Fu brasileiro se enquadra na categoria de “prática

cultural de conversão”? Sem dúvida, uma vez que seu crescimento no país foi

condicionado pelo interesse dos brasileiros pela prática marcial chinesa. Em relação à

linha de “conversão de primeira geração” do Budismo, que se caracteriza pela

intelectualidade de seus representantes, podemos afirmar, tranqüilamente, que tal

característica não foi encontrada: os primeiros praticantes brasileiros, que se iniciaram na

arte marcial chinesa em meados dos anos 70, foram movidos pelo excepcional valor

atribuído ao Kung-Fu pela indústria cultural. Eram, em sua maioria, adolescentes,

certamente mais afeitos aos sonhos próprios da idade e menos aos livros.492

Em relação à linha de “conversão de segunda geração” do Budismo, que se caracteriza

pela diversidade racial, dispersão geográfica e heterogeneidade, pode-se afirmar que

essa característica compõe, de forma cada vez mais intensa, o quadro local da arte

marcial: Chan Kowk Wai informou ter graduado cerca de 90 professores no Brasil, em sua

grande maioria não-chineses; esses professores, por sua vez, estão formando outros

professores em várias partes do país, que transmitem não só os conteúdos tradicionais

(corporais), como, também, os originados de seu próprio entendimento do Kung-Fu (não-

corporais, dentre os quais os religiosos). Essa “dinâmica de transformação“ de conteúdos

não-corporais caracteriza, sem dúvida, algo semelhante ao que Usarski define como

heterogeneidade. A expressão mais radical dessa dinâmica pode ser observada em

relação aos professores brasileiros que, literalmente, criam estilos de Kung-Fu (os

chamados “piratas”).

Este é o segundo fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: ele se caracteriza

por uma abordagem não-intelectual, inclusiva e dinâmica em relação aos conteúdos

não-corporais. Também se caracteriza por sua relativa proximidade de uma

“ortodoxia corporal” (elemento mais “vigiado” pelos mestres chineses) e pelo

491 A expressão latina “res derelicta”, empregada no campo jurídico, se refere à coisa (res) abandonada (derelicta). Nosso uso, apesar de figurado, não foge ao significado original da expressão. 492 Vale observar que os dois professores brasileiros entrevistados, que começaram a treinar em pleno “boom Kung-Fu”, não cursaram o terceiro grau. Ao invés disso, preferiram se dedicar ao aprofundamento nos conhecimentos marciais.

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afastamento dos elementos não-corporais. A formação de novas gerações de

professores brasileiros (quarta, quinta e até sexta gerações em relação ao mestre

originário), porém, tende a fazer com que até os mesmo conteúdos corporais sejam

reinterpretados e reformulados.

Em um estudo também relacionado ao Budismo,493 Martin Baumann observou que a

disseminação dessa religião em todo o mundo no século XXI é facilitada, sobretudo, por

uma “intensidade de comunicações desconhecida anteriormente.”494 O mesmo é

verificado em relação ao Kung-Fu, tanto em termos de contato remoto (pela internet, por

exemplo), quanto de contato direto (atualmente, praticantes de todo o país e até do

Exterior seguem para a Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu para “revisar katis” ou,

então, para aprender novas rotinas com Chan Kowk Wai; os mais ricos, inclusive, podem

viajar até o mosteiro de Shaolin para fazer turismo).

Este é o terceiro fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: ele se submete, de

forma radical, à modernidade. Ao mesmo tempo em que ela facilita o contato com

fontes originais, também abre caminho para a disseminação e assimilação, em

larga escala, de entendimentos pessoais e, até mesmo, de novos dados. Isso é

verificado, por exemplo, no intenso compartilhamento de informações não-

referenciadas sobre Kung-Fu na internet (que torna praticamente impossível a

determinação da fonte).

Em outra obra relacionada ao mesmo tema,495 Baumann enumera as cinco fases que, de

acordo com sua interpretação, contemplam a transplantação do Budismo para o Ocidente.

Vamos fazer uso desse construto para analisar a chegada do Kung-Fu ao Brasil e, desta

forma, reforçar nossa conclusão acerca da hipótese geral de trabalho. Segundo ele, o

Budismo (para nós, o Kung-Fu) se estabeleceu a partir dos seguintes momentos:

Contato – A primeira fase é caracterizada pela chegada de uma tradição religiosa

estrangeira (em nosso caso, de um conjunto semântico de caráter marcial estrangeiro) em

uma nova cultura. Segundo Baumann, ela pode se dar por meio de indivíduos, grupos ou,

493 BAUMANN, M., “A Difusão Global do Budismo”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p.35 a 71. 494 Ibid., p. 36. 495 BAUMANN, M., “The Transplantation of Buddhism to Germany: Processive modes and strategies of adaptation”, art. publ. in Method & Theory in the Study of Religion”, 6/1, 1994, p. 35-61.

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de forma impessoal, por meio de textos e escrituras. No caso do Kung-Fu brasileiro, essa

primeira fase se deu de forma sui generis: tratou-se, sem dúvida, de um contato “de dupla

origem” ou, para usar um termo que estabelecemos ao longo do trabalho, de uma

“transplantação cruzada”.

Ao mesmo tempo em que, nos anos 60, chegavam os mestres originários (o equivalente

aos “indivíduos religiosos” ou “missionários”), a indústria cultural configurava um

movimento de aproximação em relação à arte marcial chinesa (o equivalente moderno

aos “textos e escrituras”) que viria a desembocar no movimento que denominamos boom

Kung-Fu. Enquanto os poucos mestres traziam informações de caráter corporal aos

brasileiros (como já vimos, algumas barreiras impediram a transmissão de conteúdos não-

corporais, dentre os quais os relativos às religiões chinesas), a indústria cultural, por meio

da configuração de um “herói de Kung-Fu”, estabelecia um modelo que viria a influenciar

profundamente a primeira geração de praticantes. Vale observar que essa configuração

se deu a partir de uma lente “ocidentalizante”, baseada em valores melhor compreendidos

pelas massas e, também, no “olhar nipônico” para as artes marciais (como “caminho para

a transcendência”).

Essa construção “ortodoxo-heterodoxa” se mantêm até hoje. Em nossa avaliação,

ela é o elemento fundamental de caracterização do “Kung-Fu à Brasileira”. Ao se

somar uma tradição corporal original a elementos não-corporais “híbridos”, criou-

se um produto caracterizado por uma dinâmica fantástica, em que a ortodoxia

legitima a ressignificação e, esta, por sua vez, facilita a penetração daquela na

sociedade-palco da transplantação.

Confrontação e Conflito – A segunda fase do construto de Baumann se refere uma

espécie de “reação corporal” da sociedade-palco da transplantação religiosa ao “corpo

religioso estranho”. No caso do Kung-Fu, como vimos, essa fase não se configurou,

mesmo porque seu ingresso não provocou qualquer tipo de conflito (é possível, porém,

que certas mães tenham ficado preocupadas com os filhos que “matavam aula” para

treinar; este “efeito”, porém, nos parece desprezível: até onde sabemos, ninguém “se

desviou do caminho” por gostar de Bruce Lee e de freqüentar academias...).

A bem da verdade, a sociedade brasileira, há muito invadida por produtos culturais norte-

americanos (filmes, músicas e seriados de TV) não teria como rechaçar “enlatados”

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importados dos Estados Unidos e vendidos como “grandes atrações” pelos grupos locais

de difusão da cultura de massa (o seriado “Kung-Fu”, por exemplo, era apresentado pela

Rede Globo em horário nobre). A ausência de uma variável étnica também favoreceu o

processo: como os chineses não atribuíam muita importância à sua arte marcial, não

havia a quem confrontar.

A ausência de conflito consolidou a presença do Kung-Fu no Brasil. Por suas

características positivas, pode-se afirmar, mesmo, que a prática do Kung-Fu foi

incentivada pela sociedade na primeira metade dos anos 70.

Ambigüidade e Adaptação – A terceira fase trata do aprofundamento do contato entre a

religião transplantada e a sociedade que a recebeu. Segundo Baumann, mal-entendidos e

interpretações errôneas são absolutamente comuns. “Para integrantes da cultura

hospedeira é possível apenas interpretar e compreender símbolos, rituais ou idéias da

tradição religiosa transplantada a partir de suas próprias concepções. As bases da religião

transplantada compartilham problemas similares de compreensão a respeito da nova

cultura e sociedade.”496 Essa fase nos parece presente dentro do Kung-Fu brasileiro. Ao

analisarmos o caso do Shaolin do Norte, pudemos verificar os dois elementos apontados

por Baumann: confrontados com questões a respeito da iconografia religiosa nas

academias, os praticantes brasileiros forneceram informações desprovidas de conteúdo;

em alguns casos, demonstraram, mesmo, “cegueira” em relação a tais elementos, que

foram reduzidos a uma finalidade cenográfica nem sempre valorizada. Os mestres

originários, por sua vez, se esquivam das respostas a eventuais questionamentos sobre

elementos não corporais, optando por delegar as respostas ou, então, a silenciar até que

um aluno mais curioso chegue e pergunte.

A adaptação, portanto, se dá por uma “cegueira implícita” dos sujeitos da relação.

Quando precisam de informações sobre sua arte marcial, os alunos buscam fontes

externas não-referenciadas ou, então, chegam a conclusões por conta própria ou

no contato com outros praticantes. Essas aquisições semânticas heterodoxas vão,

literalmente, “tapar os buracos” do universo não-corporal do Kung-Fu, vindo a se

converter em uma “milenar tradição nascida ontem à noite, depois da ‘Sessão

Faixa-Preta’”.

496 BAUMANN, M., “The Transplantation…”, op. cit., p. 41.

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Recuperação – A quarta fase diz respeito a um movimento caracterizado pela análise da

prática religiosa no ambiente de transplantação a partir de um olhar para o ponto de

partida da tradição transplantada, sua cultura de origem. Como vimos, o Kung-Fu é um

produto de “dupla paternidade” no Brasil: se, por um lado, esse movimento de

recuperação pode ser visto nos alunos de outros Estados que vão a São Paulo a fim de

“repassar e corrigir rotinas”, por outro ele é um produto transcultural (em seus aspectos

não-corporais), que, por ter deixado a China há muito tempo, não demanda de qualquer

comparação. Acreditamos que a fase de recuperação dos conteúdos não-corporais

estaria caracterizada se houvesse um número mais expressivo de obras acadêmicas

(críticas) sobre Kung-Fu. Elas, porém, praticamente inexistem em nosso país.

No Brasil, o movimento de recuperação se refere, quando muito, ao retorno de

alunos à fonte original (Chan Kowk Wai) para corrigir ou aprender novas rotinas.

Mantém-se, então, a ortodoxia; por outro lado, não há um movimento de

recuperação dos conteúdos não-corporais do Kung-Fu, que pertencem a um

conjunto semântico transcultural.

Auto-Desenvolvimento Inovador – A fase final apontada por Baumann se refere a uma

aquisição completa da religião transplantada pela sociedade-solo da transplantação. Essa

fase se caracteriza por uma afirmação cada vez maior dos “novos religiosos”, que

reinterpretam e “reescrevem” a religião; esse movimento normalmente produz atritos e

confrontações com os “guardiães da tradição” e pode implicar em cisões e na criação de

novas organizações. No caso do Kung-Fu, ele só poderia ser identificado em situações de

confrontação professor-aluno referentes ao entendimento de técnicas corporais. A

competição entre duas gerações de professores (o que graduou e o graduado) por alunos

– situação mais comum - também pode implicar em rupturas sérias. Aparentemente,

inclusive, ela esteve presente na configuração de estilos tradicionais na própria China em

tempos passados.

A ausência de um objeto de discussão relacionado a elementos não-corporais no

Kung-Fu brasileiro é determinante para a ausência de cisões dentro dos estilos.

Essa possibilidade existe quando se refere ao entendimento de técnicas corporais

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e, de modo mais sério, quando da competição por alunos em uma mesma base

geográfica.

Antes de chegar a um diagnóstico a respeito do futuro do Kung-Fu no Brasil a partir do

entendimento de seus conteúdos não-corporais, julgamos necessário reforçar o aspecto

de não-tensão entre o subuniverso da arte marcial chinesa e a chamada “realidade-

padrão”. Essa não-tensão é fundamental para a dinâmica de transformações no Kung-Fu

brasileiro. Por não estar “encapsulado” dentro da realidade-padrão por uma ortodoxia ou

por elementos desafiadores do statu quo, os praticantes da arte marcial chinesa podem

trocar informações e tomar referências da sociedade em que seu subuniverso se insere.

Para isso, vamos nos valer de conceitos estabelecidos por Peter Berger e Thomas

Luckmann na obra “A Construção Social da Realidade”.497

Os conceitos de “subuniverso” e de “realidade-padrão” são fundamentais para a

compreensão da relação entre a comunidade de praticantes de Kung-Fu e a sociedade

brasileira. De acordo com os dois autores, pode-se entender subuniverso como um

segmento do mundo social objetivado por um conhecimento específico, que pode ser

replicado. Tomado como verdade objetiva no curso da socialização, esse conhecimento

se interioriza como realidade subjetiva que não molda apenas um indivíduo, mas um

grupo de indivíduos que ingressam em uma realidade diversa da realidade comum a toda

a sociedade. Por esta definição, é possível afirmar que os praticantes de Kung-Fu – do

Shaolin do Norte ou de qualquer outro estilo – se inserem em um subuniverso. Esse

subuniverso, por sua vez, é subdividido em segmentos específicos, que guardam relação

com técnicas corporais e genealogias diferentes. Mesmo assim eles se comunicam e,

segundo um determinado prisma, voltam a se constituir em um único subuniverso – essa

unificação se dá por meio dos chamados “dados gerais de Kung-Fu”, que implicam, por

exemplo, no compartilhamento de textos por sites de praticantes de estilos distintos.

Como foi observado ao longo do trabalho, os praticantes de Kung-Fu não estabelecem

qualquer forma de tensão em relação à sociedade em que vivem. Desempenham papéis,

como observam Berger & Luckmann, tanto em seu subuniverso – por exemplo,

executando rotinas, usando roupas específicas e se referindo a termos desconhecidos por

não-praticantes – quanto no grande universo da institucionalização social. A inflexão se

497 BERGER, P, & LUCKMANN, T., “A Construção Social…”, op. cit.

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dá nos vestiários, na passagem da roupa “civil” para a marcial e, no final da aula, desta

para aquela. Poderia haver conflito se, por exemplo, os praticantes saíssem das

academias vestindo “fardões de Kung-Fu”; ele seria quase certo se, além da roupa, eles

saíssem à rua portando facões, espadas ou lanças; seria certo se, para resolver seus

problemas, apelassem para o uso das mortais técnicas da arte marcial chinesa. Essas

situações, porém, não costumam acontecer e, portanto, não geram controvérsia.498

Os autores entendem por realidade-padrão (ou realidade da vida cotidiana) aquela que se

caracteriza por ser predominante, que é tomada pelos membros ordinários da sociedade

como uma realidade certa, à qual não cabem reproches. Essa realidade se origina nos

próprios indivíduos, na vasta teia de relacionamentos que implica na instituição de regras

de conduta social que, ao longo do tempo, se consolidam e acabam por se tornar

“invisíveis” por conta de sua tamanha “normalidade”. O que dizer da realidade-padrão

face ao subuniverso do Kung-Fu? Mais uma vez, aqui, podemos usar um exemplo

prosaico: o das mães de praticantes adolescentes de Kung-Fu. Muitas delas, apesar de

pouco conhecerem a respeito do vestuário chinês, produzem os “coletes e túnicas típicas”

usados por seus filhos nas aulas e, principalmente, nas competições. De modo geral, os

donos de academias não protestam contra esses uniformes – desde que, por baixo deles,

os alunos estejam usando a camiseta “institucional” da academia (que não é apenas um

símbolo subuniversal, mas também uma fonte de renda das academias).

Diante do que foi observado nos dois últimos parágrafos, o que dizer da relação entre

realidade-padrão e subuniverso de Kung-Fu? Inicialmente, que há um subuniverso

formado pelos amantes das velhas práticas guerreiras chinesas; por outro, que ele se

relaciona absolutamente bem com a realidade-padrão, mesmo porque seus integrantes

normalmente sabem diferenciar os espaços de adoção de papéis (eu não treino de terno

e não trabalho com uma espada chinesa na cintura). Essa convivência também se dá sob

a forma de troca de conteúdos: é possível levar algumas práticas da academia para o

cotidiano (é o que ocorre, por exemplo, com a popularização do Tai-Chi-Chuan) e

algumas prática do cotidiano (ou de outros subuniversos) para as academias (como o uso

de relógios para marcar o tempo das aulas ou de tênis para a prática marcial). Nos termos

498 Um exemplo de conflito entre subuniverso marcial e realidade-padrão foi visto na década de 90, a partir da afirmação dos chamados Bad Boys do Jiu-Jitsu brasileiro. Alguns dos praticantes cariocas se envolveram em brigas e agressões em bares e boates, o que mobilizou a polícia e produziu uma imagem negativa de sua prática marcial junto à sociedade.

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da nossa hipótese geral, podemos afirmar que essa relação “de alta permeabilidade”

fortalece a afirmação de que o Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico

não corporal condicionado por fatores externos. Um bom exemplo disso é a relação que

os praticantes entrevistados mantém com os elementos religiosos tradicionais

encontrados no Shaolin do Norte. A postura de “respeito e afastamento” apenas reflete

uma relação estabelecida entre o indivíduo e sua religião no contexto da realidade-

padrão.

E qual o futuro do Kung-Fu praticado no Brasil? Diante dos dados de pesquisa, podemos

afirmar que ele tende, cada vez mais, a se abrasileirar. Esse processo vai se dar pela

difusão cada vez maior de “conteúdos tradicionais produzidos ontem”, pelo afastamento

entre as novas gerações de praticantes e os mestres originários e pelo desaparecimento

das informações originais a respeito dos conteúdos religiosos chineses presentes nas

academias. Assim, os ideogramas que antes representavam, por exemplo, as “Seis

Harmonias” (Lho Hã), perderão seu significado esotérico e vão adquirir um caráter de

mero identificador de um cenário subuniversal. Esse processo já é visível e há de se

consolidar quando os mestres originários desaparecerem. Por fim, pensamos que é

possível afirmar que a “tropicalização do Kung-Fu” vai alcançar até mesmo as técnicas

corporais. Esse processo, mais lento, tende a ocorrer por conta da grande dispersão

geográfica da prática marcial e, também, pela replicação de entendimentos pessoais

acerca das técnicas que compõem a arte marcial chinesa.

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499 Em nossa relação de referências buscamos estabelecer uma divisão que permitisse ao leitor vilsumbrar com clareza a origem das fontes de consulta. Assim, elas foram divididas em “acadêmicas”, “de representação” (produzidas - por exemplo, por praticantes de Kung-Fu - sem fundamentação acadêmica) e “ferramentas e softwares de apoio”. A ordem de colocação do tipo de fonte (livros, artigos, etc.) buscou seguir um critério de importância para a produção da dissertação.

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Software: DTS SOFTWARE DO BRASIL LTDA., Dicionário Prático Michaelis, São Paulo, 1998, software em CD. Versão eletrônica 5.1, um CD.