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Recibido: 12/02/2021 Corregido: 09/04/2021 Publicado: 21/04/2021 SUMAK KAWSAY: OS SABERES DOS POVOS ORIGINÁRIOS, O NOVO CONSTITUCIONALISMO E A EDUCAÇÃO BOLIVIANA Ana Leopoldina da Silva 1 UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected] Lucas Antonio Fávero 2 UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected] Viviane Bonfim Fernandes 3 UNILA Universidade Estadual do Oeste do Paraná [email protected] Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato: Ana Leopoldina da Silva, Lucas Antonio Fávero y Viviane Bonfim Fernandes: Sumak Kawsay: os saberes dos povos originários, o novo constitucionalismo e a educação boliviana”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (Vol 1, Nº 4 abril 2021, pp. 43-57). En línea: https://www.eumed.net/es/revistas/contribuciones-ciencias-sociales/abril-2021/sumak-kawsay RESUMO: O presente artigo trata da nova Constituição da Bolívia e sua relação com os povos originários baseados no Bem Viver. Objetiva compreender os novos parâmetros estabelecidos pela nova carta bem como o rompimento com os ideais europeus neoliberais. Como objetivo específico trata da valorização dos conhecimentos dos povos originários e como esses saberes influenciam os processos educativos e as relações de cidadania. O método utilizado é o decolonialismo como propugnado por Aníbal Quijano, buscando trazer à tona as problemáticas latino-americanas e a revisão histórica das transformações ocorridas. O Bem Viver é característico dos povos originários, que possuem uma relação de complementaridade com a natureza. Assim conclui que a as normas constitucionais devem estar de acordo com as concepções adotadas pela maioria da sociedade. A 1 Mestranda do Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE. 2 Mestrando do Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE. 3 Pós-doutora pelo Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE e docente do INSTITUTO LATINO- AMERICANO DE ARTE, CULTURA E HISTÓRIA 43

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Recibido: 12/02/2021 Corregido: 09/04/2021 Publicado: 21/04/2021

SUMAK KAWSAY: OS SABERES DOS POVOS ORIGINÁRIOS, O NOVO

CONSTITUCIONALISMO E A EDUCAÇÃO BOLIVIANA

Ana Leopoldina da Silva1 UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná

[email protected]

Lucas Antonio Fávero2 UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná

[email protected]

Viviane Bonfim Fernandes3 UNILA – Universidade Estadual do Oeste do Paraná

[email protected]

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Ana Leopoldina da Silva, Lucas Antonio Fávero y Viviane Bonfim Fernandes: “Sumak Kawsay: os

saberes dos povos originários, o novo constitucionalismo e a educação boliviana”, Revista

Contribuciones a las Ciencias Sociales, (Vol 1, Nº 4 abril 2021, pp. 43-57). En línea:

https://www.eumed.net/es/revistas/contribuciones-ciencias-sociales/abril-2021/sumak-kawsay

RESUMO: O presente artigo trata da nova Constituição da Bolívia e sua relação com os povos

originários baseados no Bem Viver. Objetiva compreender os novos parâmetros estabelecidos pela

nova carta bem como o rompimento com os ideais europeus neoliberais. Como objetivo específico

trata da valorização dos conhecimentos dos povos originários e como esses saberes influenciam os

processos educativos e as relações de cidadania. O método utilizado é o decolonialismo como

propugnado por Aníbal Quijano, buscando trazer à tona as problemáticas latino-americanas e a

revisão histórica das transformações ocorridas. O Bem Viver é característico dos povos originários,

que possuem uma relação de complementaridade com a natureza. Assim conclui que a as normas

constitucionais devem estar de acordo com as concepções adotadas pela maioria da sociedade. A

1 Mestranda do Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE.

2 Mestrando do Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE.

3 Pós-doutora pelo Programa de Sociedade, Cultura e Fronteiras da UNIOESTE e docente do INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E HISTÓRIA

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Bolívia com maioria indígena mais de 36 etnias, corrige um erro histórico de interferência do

pensamento europeu nas leis do país.

Palavras chave: Bem Viver, Constitucionalismo andino, saberes originários.

SUMAK KAWSAY: EL CONOCIMIENTO DE LOS PUEBLOS ORIGINARIOS, EL NUEVO

CONSTITUCIONALISMO Y LA EDUCACIÓN BOLIVIANA

RESUMEN: Este artículo trata sobre la nueva Constitución de Bolivia y su relación con los pueblos

originarios basada en el Buen Vivir. Su objetivo es comprender los nuevos parámetros que establece

la nueva carta así como la ruptura con las ideas europeas neoliberales. Como objetivo específico se

trata de la valorización del conocimiento de los pueblos originarios y cómo este conocimiento influye

en los procesos educativos y las relaciones ciudadanas. El método utilizado es el descolonialismo

defendido por Aníbal Quijano, buscando traer a colación la problemática latinoamericana y la revisión

histórica de las transformaciones ocurridas. Bem Viver es característico de los pueblos originarios,

quienes tienen una relación complementaria con la naturaleza. Así concluye que las normas

constitucionales deben estar de acuerdo con las concepciones adoptadas por la mayoría de la

sociedad. Bolivia con una mayoría indígena de más de 36 etnias, corrige un error histórico de

injerencia del pensamiento europeo en las leyes del país.

Palabras clave: Buen Vivir, Constitucionalismo Andino, Conocimientos Originarios.

SUMAK KAWSAY: THE KNOWLEDGE OF ORIGINATING PEOPLE, THE NEW

CONSTITUCIONALISM AND BOLIVIAN EDUCATION

ABSTRACT: This article deals with the new Constitution of Bolivia and its relationship with the

original peoples based on the Good Living. It aims to understand the new parameters established by

the new letter as well as the break with neoliberal European ideas. As a specific objective it deals with

the valorization of the knowledge of the original peoples and how this knowledge influences the

educational processes and the citizenship relations. The method used is decolonialism as advocated

by Aníbal Quijano, seeking to bring up Latin American issues and the historical review of the

transformations that have occurred. Bem Viver is characteristic of native peoples, who have a

complementary relationship with nature. Thus it concludes that the constitutional norms must be in

agreement with the conceptions adopted by the majority of the society. Bolivia with an indigenous

majority over 36 ethnicities, corrects a historical error of interference of European thought in the

country's laws.

Keywords: Well Living, Andean Constitutionalism, original knowledge.

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa trata da nova constituição boliviana e traz como problema se a nova

organização da sociedade boliviana pode ser uma alternativa ao modelo neoliberal de exploração

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dos recursos naturais bem como a educação é afetada pela nova constituição. Objetiva analisar se o

Bem Viver constitui uma resistência ao modelo imposto durante 500 anos de dominação cultural

pelos povos europeus colonizadores.

O tema se justifica pela novidade presente nas novas cartas constitucionais de países como

Equador, Venezuela e Bolívia que rompem com a normatividade marcadamente influenciada pelas

normas e ideologias europeias, substituindo por um modo de ver e se relacionar com a natureza e o

próximo mais humano e com respeito.

O novo constitucionalismo surge na Venezuela com a Constituição da República Bolivariana

da Venezuela, tratava-se de um rompimento com o Estado neoliberal burguês, uma tentativa de

encontrar um caminho próprio que respondesse a realidade local e ao mesmo tempo preparar o

terreno para um modelo de Estado onde as relações humanas não fossem baseadas em trocas de

mercadorias e acúmulo de capital, mas sim em valores dos povos originários de cuidados com a

natureza e o Bem Viver.

Na primeira parte do trabalho é analisado as características do Bem Viver como uma forma

de resistência ao modo de vida implantada pelos colonizadores europeus. O consumismo leva a

exploração exagerada dos recursos da natureza trazendo desequilíbrio na relação com a mãe terra,

mudanças climáticas que acabam prejudicando a existência humana.

Posteriormente aponta como o novo constitucionalismo nasce nas nações latino-americanas

como uma alternativa ao modelo jurídico implantado com referencial europeu. O novo modelo busca

valorizar os saberes dos povos originários, estabelecendo o respeito às tradições ancestrais e a

cultura das diversas comunidades originárias presentes na América.

Por fim, debate como esse novo constitucionalismo pretende alterar a educação no país por

meio da nova lei de educação tendo por base experiências já implementadas na Bolívia. A educação

pretende trazer novos conceitos e a participação efetiva da comunidade, tornando-se plurilingüística,

intracultural e intercultural.

2. METODOLOGIA

A metodologia utilizada é o método decolonial desenvolvido por Aníbal Quijano que pretende

trazer um novo olhar para a América Latina e seus problemas. Parte-se da ideia que o modo de vida

imposto pelos colonizadores bem como suas normas de organização da sociedade não condizem

com os saberes e experiências dos povos originários. Para a pesquisa foram analisadas a

Constituição da Bolívia de 2009 (Bolívia, 2009), a lei de educação “Avelino Siñani - Elizardo Pérez”

No 070 de 20 e dezembro de 2020 (Bolívia, 2020), bem como feito pesquisa bibliográfica

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3. BEM VIVER, BUEN VIVIR E VIVIR BIEN: SUMAK KAWSAY, SUMA QAMAÑA E NHANDE

REKO

O Sumak Kawsay, Suma Qamaña e o Nhande Reko se caracterizam como modos de viver dos

povos originários Quéchua, Aymara e Guarani. As similaridades desses exemplos de viver não estão

somente na tradução da língua espanhola como Bem Viver, Buen Vivir e Vivir Bien, mas na

coletividade que transcende o contrato social entre Estado e Sociedade, ou seja, não se resume a

Constituição Federal (Acosta, 2015).

Tal coletividade, herança dos povos originários é para além dos contratos sociais, representa a

vivência harmônica com o espaço natural. Essa harmonia com a natureza, posterior a períodos de

colonizações na América Latina, representa uma forma de resistência contra o modo de viver

herdado dos colonizadores.

Tal modo de viver na contemporaneidade ainda orienta-se pelo modelo Ocidental ‘considerado’

universal, enquanto parâmetro de desenvolvimento dos Estados desenvolvidos. Tal modelo tem sido

apresentado como ideal para diferentes singularidades e complexidades, sem considerá-las. Em

contrapartida, o ‘Buen Vivir’4 “[...] supera o tradicional conceito de desenvolvimento e seus múltiplos

sinônimos, introduzindo uma visão muito mais diversificada e, certamente, complexa.” (Acosta, 2015,

p. 24).

Apesar disso, atores nacionais conservadores da visão Ocidental aliado a atores e instituições

internacionais com a perspectiva do desenvolvimento para o viver melhor, buscam manter

impositivamente o modo de produção capitalista e o ‘livre mercado’, comuns para exploração

estrangeira. Quando se deparam com a escolha pelo modo de viver contrário ao modelo imposto,

tais atores tendem a apontar como infringimento aos direitos humanos internacionais, que em

essência são direitos humanos Ocidentais impostos a todos os povos.

Tal alinhamento de visão entre atores nacionais e internacionais tem dificultado a pratica do

Buen Vivir, apesar de ser escolha dos povos originários. Concomitantemente, buscam depreciar os

saberes originários e impor propostas de desenvolvimento que se contrapõem aos códigos, valores,

modo de subsistência, conhecimentos e capacidades dos povos (Choquehuanca, 2010), isto é, a

perspectiva que não consegue identificar as próprias necessidades e nem satisfazê-las, cria

necessidades e supostas satisfações para outros povos.

Mesmo com essas imposições de necessidades e soluções para tais, os povos originários

percebem o contrário na prática, enxergam que o desenvolvimento é o principal causador das crises

econômicas, sociais e ambientais no mundo (Choquehuanca, 2010, Acosta, 2015).

O desenvolvimento como modo de viver melhor tem promovido à industrialização extrema em

alguns países (Choquehuanca, 2010), o que resulta no consumismo insustentável devido à escassez

de recursos naturais, bem como, por impossibilitar o consumo básico como alimentação, saúde,

saneamento e educação a boa parte da população mundial.

Isto é, a industrialização desequilibrada atende em curto prazo ao consumo que compromete

as necessidades da população mundial na geração atual, ao não suprir essas necessidades atuais, e

4 Doravante referindo-se aos modos de viver dos povos originários: Bem Viver, Buen Vivir e Viver Bem.

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compromete as necessidades das futuras gerações. Tal compreensão se encontra na afirmação a

seguir:

[...] A industrialização exagerada e ilimitada dos modelos de acumulação ocidentais não é

uma solução para a humanidade nem será capaz de resolver as mudanças climáticas, nem a

crise global, que afeta profundamente nossa Mãe Terra e nossa vida comunitária.5.

(Choquehuanca, 2010)

Por sua vez, o Buen Vivir possibilita compreender as restrições e os erros das teorias do

desenvolvimento, bem como, proporciona reflexões que levam a crítica do ideal da concepção de

desenvolver, que restringe países pobres e criam paradoxos nos países ricos, denominados como

desenvolvidos, como principal exemplo têm-se o Estados Unidos da América (EUA), o qual tem a

área econômica desenvolvida, mas a área ambiental escassa (Acosta, 2015).

Devido a essas percepções paradoxais estarem enraizadas nos diferentes Estados e

sociedades do planeta, a adesão do Buen Vivir seja qual for a Constituição Federal, não assegura a

conscientização para transcender o sistema capitalista “[...] que é, em essência, a civilização da

desigualdade e da devastação.” (Acosta, 2015, p.25).

A transcendência de tal sistema implica em processos que envolvem a conscientização das

experiências capitalistas em paralelo à implementação de práticas e valores do Buen Vivir, que

envolve restaurar a cosmovisão dos povos originários (Acosta, 2015).

Os processos da implementação do Buen Vivir requerem reflexões acerca do Estado, tendo

em vista singularidades e complexidades que são diversas e únicas. Tais reflexões podem ser

incentivadas com as mudanças da educação isolada do meio social para a educação inclusiva e

articulada. Como exemplo, no Brasil tem o ensino dos povos originários com o bilinguismo, no qual é

possível que o indígena aprenda a língua imposta pelo Estado, isto é, a língua dos colonizadores

portugueses, que é aceita pela necessidade de sobrevivência na contemporaneidade apesar de

acarretar no sufocamento da diversidade cultural e linguística originária do país.

Por sua vez, na Bolívia a Constituição Plurinacional fundamenta a educação intercultural que

considera e respeita os saberes originários, sendo uma experiência em processo discutida e

promovida pelo Estado em conjunto com a sociedade boliviana, com o intuito de implementar o Buen

Vivir, a partir da inclusão dos saberes culturais, linguísticos, medicinais, gastronômicos, tradicionais e

demais experiências originárias na educação.

Assim como o Estado Plurinacional da Bolívia tem refletido a implementação do Buen Vivir com

o povo boliviano, discutindo as estruturas que dificultam as mudanças e a concretização do poder

horizontal, os demais Estados e as sociedades que almejam o modo de viver bem precisam debater

em comunidade continuamente sobre tais estruturas estatais, e conscientizar sobre o atual sistema,

tendo em vista o lugar de fala na singularidade e na coletividade, com o intuito de construir um

Estado de todos.

5 la exagerada e ilimitada industrialización de los modelos de acumulación occidentales, no és ninguna solución para la humanidad ni podrá solucionar el cambio climático no la crisis global, que afecta profundamente a nuestra Madre Tierra y nuestra vida comunitária

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Nesse sentido, ressalta-se que na perspectiva do Buen Vivir, com o poder horizontal surge

uma nova democracia que se diferencia da Ocidental, na qual prevalece o poder vertical. A

democracia do Buen Vivir é horizontal, comunitária, intercultural e de todos. Para alcançar tal

democracia, as estruturas estatais que alicerçam o patriarcalismo, o racismo e o capitalismo

precisam ser desconstruídos com o esforço de debates constantes que podem fortalecer a

democracia de todos e possibilitar a construção do até então Estado ideal “Buen Vivir” (ACOSTA,

2015).

Como exemplo dos processos de construção do Estado de todos Acosta (2015) exemplifica a

Constituição Federal boliviana aprovada em 2009, a qual evidencia a relevância de Pacha Mama e a

nossa convivência harmônica com a mesma, mas, em contraponto permite o crescimento a partir da

exploração de recursos naturais, isto é, propõe implementar o Buen Vivir em paralelo ao sistema

capitalista.

As percepções de desenvolvimento do sistema capitalista presente na Constituição Federal da

Bolívia é resultado dos conservadores tradicionais que prezam pelo poder vertical presentes no

governo boliviano e criticam o modo do Buen Vivir, o qual se trata de uma “[...] proposta de harmonia

com a Natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementaridade e solidariedade entre indivíduos

e comunidades, com sua oposição ao conceito de acumulação perpétua, com seu regresso a valores

de uso [...]” (Acosta, 2015, p.33).

Tal compreensão acerca do Buen Vivir como alternativa aos tradicionais conceitos de

desenvolvimento se reafirma no exemplo de que, “Fazemos parte da comunidade, assim como a

folha faz parte da planta. Ninguém fala: vou me cuidar sozinho, não me importo com minha

comunidade. É tão absurdo como se a folha dissesse para a planta: não me importo com você, eu

me cuido6” (Choquehuanca, 2010, p.8).

Assim como nessa exemplificação, o Buen Vivir busca conscientizar a relevância do todo, da

cosmovisão, da coletividade, a importância das partes que compõe o todo, como a relevância da

natureza para a subsistência dos povos do planeta Terra. Nessa conscientização importa às

singularidades, as complexidades, as partes, e o todo.

A conscientização tem como base a Cosmovisão, na qual cada parte é importante para a

totalidade, sendo assim, ao tentarmos mutilar, destruir, excluir uma das partes resulta em suicídio.

Como exemplo, vivenciamos o aquecimento global, indício de que a exploração dos recursos

naturais para a acumulação não é só um equívoco, mas uma destruição coletiva.

Na perspectiva de Choquehuanca (2010), os desastres tidos como naturais são resultados do

insucesso do desenvolvimento imposto pelo Ocidente, fazendo com que, os conceitos desse modo

de viver fossem redefinidos até mesmo com apropriações de experiências originárias, porém, sem

compreender a sua fundamentação, a Cosmovisão.

Os povos Ocidentais não buscam compreender e aprender os saberes originários, nem

analisam e fazem críticas aos diferentes modelos e conceitos de desenvolvimento, mas sugerem

diretamente e indiretamente que os povos originários precisam viver melhor com as vantagens

6 Somos parte de la comunidad, como la hoja es parte de la planta. Nadie dice: voy a cuidar de mí solo, no me importa mí comunidad. Es tan absurdo como si la hoja dijera a la planta: no me importas tú, voy a cuidar de mí sola.

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proporcionadas pela globalização, como tecnologia, mercado, e até mesmo conhecimento científico

que propõe supostas soluções ambientais como a atividade turística (Choquehuanca, 2010).

Além da Cosmovisão, o Buen Vivir possui características como a harmonia com o trabalho, o

qual é compreendido como contribuinte do crescimento individual e coletivo. Essa compreensão

sustenta-se na perspectiva de que cada pessoa pode viver e usufruir de seu próprio trabalho, ao

invés de explorar o trabalho alheio como na forma de viver Ocidental (Choquehuanca, 2010).

A proposta de ‘Buen Vivir’ se contrapõe ao domínio da natureza proposto pelo modelo de

desenvolvimento Ocidental (Choquehuanca, 2010), apesar da industrialização dos recursos naturais

ainda ser uma ferramenta de subsistência fundamentada pela Constituição Federal do Estado

Plurinacional da Bolívia (Acosta, 2015). Essa coexistência de modos de viver em paralelo na Bolívia

se deve a fatos citados anteriormente, como: a resistência de governantes conservadores da forma

de viver Ocidental (Acosta, 2015), bem como, por tal forma estar enraizada desde os tempos da

colonização, fazendo com a implementação do ‘Buen Vivir’ aconteça por meio de processos, os

quais precisam transcender a Constituição Federal e promover a conscientização.

Para Choquehuanca (2010), na Bolívia, o Buen Vivir surgiu a partir dos povos originários como

resistência ao modo de viver Ocidental que aponta o desenvolvimento como base para viver melhor,

que implica competições, concentração de riqueza, individualismo e domínio sobre os recursos

naturais.

Choquehuanca (2010) ressalta que o Sumak Kawsay prevaleceu como modo de viver no país

boliviano, devido à conscientização da população e a sua garantia por meio da Constituição do

Estado Plurinacional da Bolívia, a partir do novo constitucionalismo.

4. O NOVO CONSTITUCIONALISMO DA BOLÍVIA

O modelo europeu de organização do Estado transformou todas as relações que os povos

originários mantinham com a terra e sua cultura de respeito às tradições ancestrais. Desde a

chegada de Cristóvão Colombo ao território que viria a ser chamado de América os ideias

mercantilistas e posteriormente neoliberais foram empregados destruindo pela força das armas, da

escravidão, da morte, os ideais até então perseguidos pelos povos originários.

A Bolívia possivelmente foi uma das nações que mais foram exploradas no período colonial.

Segundo Eduardo Galeano, Potosí no auge da extração de prata se tornou uma das cidades mais

populosas do mundo com cerca de 160 mil habitantes rivalizando com Londres (maior que Roma,

Paris e Madri) ao mesmo tempo em que tornou a metrópole espanhola mais rica, deixou milhares de

pessoas mortas, doentes e destruiu a natureza.

Para os que concebem a História como uma contenda, o atraso e a miséria da América

Latina não são outra coisa senão o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam.

Mas aqueles que ganharam só puderam ganhar porque perdemos: a história do

subdesenvolvimento da América Latina integra, como já foi dito, a história do

desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória

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dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os

impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura

em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-

cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões

vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da

borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos

povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na

mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma (Galeano, 1976, p. 11).

Com a exploração dos recursos naturais veio também a destruição da cultura local. Segundo

Galeano (1976) a riqueza fez surgir mosteiros, igrejas, palácios, cassinos, cabarés, entre outras

construções que ajudaram a subjugar a cultura local. A riqueza dos metais tão valorizada pelo

europeu significou a morte de milhões de pessoas e destruição dos saberes originários. Segundo

Galeano (1976) somente entre 1503 e 1660 foi retirado das colônias 185 mil quilos de ouro e 16

milhões de quilos de prata, excedendo três vezes as reservas européias.

Para Afonso e Magalhães (2012) com o fim do período colonial e o estabelecimento do

modelo europeu republicano novamente as elites europeias que ficaram na antiga colônia

continuaram ditando as regras a serem seguidas pelos povos originários. Não interessava as elites

econômicas e militares que a maior parte da população fizesse parte do Estado sendo excluídos de

qualquer direito.

Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de

grupos indígenas os mais distintos), assim como milhões de imigrantes forçados africanos,

foram radicalmente excluídos de qualquer concepção de nacionalidade. O direito não era

para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites

que indígenas e africanos se sentissem nacionais (Magalhães; Afonso, 2010, p. 16).

Segundo os autores, diferentemente da Europa onde a concepção de Estado buscava

padronizar os comportamentos e incluir sob um mesmo país aqueles que possuíam características, a

princípio de crença iguais, baseados na intolerância religiosa e uniformização dos valores. Na

América não se esperava que os povos originários e os imigrantes forçados africanos se sentissem

parte do Estado, ao contrário, era melhor que ficassem à margem da sociedade ou mesmo que não

existissem enquanto sujeitos.

A ideia de um Estado Plurinacional consolidado -ao menos no plano formal- em 2008,

confronta-se com o modelo trazido desde os colonizadores que viam os povos originários como

atrasados e propunham a superação por meio de um ideal civilizador. Ideal este que trouxe apenas a

violência e destruição. Bolívia e Equador buscam dessa forma superar a brutalidade e violência dos

Estados nacionais europeus com a ideia de um Estado Plurinacional democrático e popular,

superando as bases uniformizadoras principalmente quanto ao modelo familiar e econômico que

jogavam milhões para fora da sociedade e a perda de suas raízes (Magalhães e Afonso, 2010).

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Confirmando a regra supramencionada do modo de consolidação do Estado-nação ao redor

do globo, na Bolívia o Estado se assentou sobre a exclusão e uniformização de modos de

vida, economia, propriedade e representação política de povos que não se enquadravam no

modelo estabelecido (Afonso e Magalhães, 2012, p. 465).

A nova Constituição boliviana nasceu do movimento popular baseado na diversidade de sua

cultura. Após centenas de anos de repressão dos saberes dos povos originários que eram colocados

a margem de todas as decisões, com a nova Constituição abre-se novas possibilidades. Segundo

Afonso e Magalhães (2012) o pensamento europeu até então dominante que negava a própria

condição humana aos povos originários perde espaço.

O processo histórico-social que culminou na nova Constituição boliviana de 2008 guarda

suas origens na própria formação do Estado boliviano. A diversidade de povos e culturas

neste país —são 36 povos originários atualmente— foi, desde o período colonial até a

segunda metade do século XX, reprimida e situada às margens dos poderes públicos e

oligarquias constituídas (Afonso e Magalhães, 2012, p. 465).

O Estado Plurinacional é nesse sentido uma tentativa de reencontro com as antigas tradições

ao mesmo tempo em que busca romper com os ideais neoliberais de explorações dos recursos

naturais. É uma tentativa de harmonizar a diversidade cultural existente com uma nova forma de

organização pautado na incompletude da cultura e no diálogo (Afonso e Magalhães, 2012).

A nova Constituição trás dentre os 411 artigos cerca de 80relacionados à questão indígena.

O texto promove a participação dos 36 povos originários presentes antes da invasão européia

tornando-os participantes efetivos em todos os níveis de poder. Passa-se a ter uma cota para

parlamentares indígenas e as comunidades tem o controle exclusivo sobre os recursos das florestas

e os direitos de propriedade da terra.

Outro ponto importante é o reconhecimento da justiça tradicional indígena, onde cada

comunidade pode eleger seus juízes e suas decisões não podem ser revistas por tribunais da justiça

comum. A nova Constituição também prevê a criação do tribunal Constitucional com a máxima

representação, além de desvincular o estado da religião e o reconhecimento de diferentes

constituições familiares.

Com a nova organização o país passa a ser dividido em departamentos, regiões, municípios

e território indígena, onde cada uma pode promover eleições de forma autônoma elegendo os

representantes e administrando seus recursos (Afonso e Magalhães, 2012).

Para os autores um grande diferencial do Estado Plurinacional boliviano é o fato de a maioria

poder participar efetivamente da vida política e administrativa sem, no entanto, excluir aqueles que

os haviam excluída da participação por 500 anos.

Para Camacho (2010) com a nova Constituição os campesinos e povos originários têm a

possibilidade de participar da refundação do Estado boliviano, baseado nos princípios de

solidariedade e sujeitos coletivos, rompendo com a monocultura e o individualismo. Para o autor é

uma possibilidade de fortalecer o modo de vida local e alcançar o bem viver.

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Entendemos que o Estado Plurinacional é um modelo de organização política para a

descolonização de nossas nações e povos, reafirmando, recuperando e fortalecendo nossa

autonomia territorial, para alcançar uma vida plena, para viver bem, com uma visão solidária,

assim sendo os motores da unidade e do bem-estar social de todos os bolivianos, garantindo

o pleno exercício de todos os direitos7 (Camacho, 2010, p. 120).

Nesse sentido, a construção do Estado plurinacional passa pelas ideias de

autodeterminação, fundamentados no direito coletivo e a importância dos cuidados com a natureza e

a terra. Para Camacho (2010) é uma oportunidade de rever a relação com os recursos naturais e por

fim aos latifúndios e a monocultura.

No novo modelo construído existe uma nova relação com o econômico e isso é fundamental.

Se antes os princípios neoliberais pregavam a máxima produtividade para exportação extraindo não

importando a que custos tudo que pudesse ser comercializado, a nova Constituição estabelece uma

relação de consumo e produção consciente, respeitando a natureza (Camacho, 2010).

Para Dan (2015) a nova Constituição da Bolívia integra o que ele chama de

neoconstitucionalismo latino-americano, nascido das lutas dos povos originários por mais direitos e

garantias de participação principalmente na Bolívia, Equador e Colômbia. O autor argumenta que a

tentativa de homogeneização imposta pelo invasor europeu não foi suficiente para suprimir as

diferenças étnicas e com a redemocratização nos anos 1980 as demandas por maior participação

foram tomando forma.

Em resposta às reclamações dos povos indígenas e as suas mobilizações, os estados latino-

americanos têm avançado gradualmente nas reformas de seus ordenamentos legais e

constitucionais para dar conta da diversidade e dos direitos desses povos. A peculiaridade

dos países andinos em relação ao pluralismo étnico e jurídico tem-se manifestado nas suas

formas políticas e jurídicas que tem sido denominado de neoconstitucionalismo latino-

americano (Dan, 2015, p. 475).

A nova Constituição teve ampla participação na sua construção e foi referendada pela

população em 2009. Ela garante o acesso da população à saúde, educação, serviços básicos, os

direitos coletivos e o autogoverno indígena (Dan, 2015). A nível legislativo garantiu-se conforme o

artigo 147 da Constituição a eleição proporcional dos povos e nações indígenas, assim como o artigo

178 garante a representatividade no tribunal constitucional.

Outro fator importante é o reconhecimento de outros idiomas alem do espanhol, para o

combate ao preconceito linguístico e ao colonialismo interno. A nova Constituição reconhece outros

36 idiomas dos povos originários o que garante a manutenção da cultura como uma política de

Estado. Inaugura-se uma nova concepção de Estado rompendo com a ideia de Estado com uma

única nação, baseados em princípios individualistas liberal.

7 Entendemos que el Estado Plurinacional es un modelo de organización política para la descolonización de nuestras naciones y pueblos, reafirmando, recuperando y fortaleciendo nuestra autonomía territorial, para alcanzar la vida plena, para vivir bien, con una visión solidaria, de esta manera ser los motores de la unidad y el bienestar social de todos los bolivianos, garantizando el ejercicio pleno de todos los derechos.

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A Bolívia, ao reconhecer-se estado pluriétnico e multicultural pôs fim à ficção de estado

enquanto uma única nação surgindo daí novos tipos de cidadania não mais pensada no viés

liberal baseada no exercício de direitos individuais, mas, numa cidadania diferenciada que

fomenta o exercício dos direitos coletivos de livre-determinação, autonomia, representação e

participação desses povos em seu interior. A plurinacionalidade seria assim, a melhor chance

de se garantir o exercício de poder e de territorialidade para os povos originários tratando-se

de uma alternativa descolonizadora (Dan, 2015, p. 488).

Assim, busca-se conforme o preâmbulo da Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia,

deixar no passado o modelo de Estado colonial e neoliberal, refundando-o buscando o bem viver,

com princípios como o respeito, a igualdade entre todos, convivência coletiva em comprometimento

com o desenvolvimento integral e a autodeterminação dos povos.

Dentre os eixos considerados importantes pelo novo constitucionalismo da Bolívia para os

saberes dos povos originários, destacam-se as políticas educacionais que são fundamentais para a

conscientização da população boliviana.

5. AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS QUE PROMOVEM OS SABERES DOS POVOS

ORIGINÁRIOS

Com a nova Constituição nasce também um novo pensamento de formação humana

baseado nos saberes dos povos originários. Assim em 2010 é promulgada a Lei No070 (Bolívia,

2010) mais conhecida como Ley de la Educación “Avelino Siñani - Elizardo Pérez”. Com essa lei, o

governo pretende recuperar parte da experiência iniciada nos anos de 1930 quando as comunidades

indígenas passaram a instituir escolas diante da abstenção do Estado em promovê-la.

Para Efron (2013) a experiência da escola da comunidade de Warisata onde o líder da

comunidade Avelino Siñani firma um acordo com o Elizardo Pérez que representava o Estado, foi

pautada no trabalho coletivo tanto dentro das atividades burocráticas de ensino quanto das tarefas

de cuidados com a terra. O trabalho comunitário se baseava nos conhecimentos andinos e no

trabalho para a produção autossustentável.

Warisata representou a implementação do paradigma lógico andino. Baseou-se na liberdade,

reciprocidade e solidariedade, na produção comunitária autossustentável e na valorização da

identidade cultural. A educação era baseada no trabalho produtivo organizado coletivamente

tanto na oficina como no campo e na escola. Portanto, o esforço para o desenvolvimento

comunitário foi concebido como um dos princípios fundamentais do ensino8 (Efron, 2013, p.

6).

8 Warisata representó la puesta en práctica del paradigma lógico andino. El mismo se basaba en la libertad, la reciprocidad y solidaridad, la producción comunitaria autosustentable y la revalorización de la identidad cultural. La educación se basaba en el trabajo productivo organizado de forma colectiva tanto en el taller como en la tierra y en la escuela. Por lo tanto, el esfuerzo en pos del desarrollo comunitario era concebido como uno de los principios fundamentales de la enseñanza.

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Com a escola da comunidade de Warisata foi possível comprovar que o conhecimento dos

povos originários era valorizado e os líderes indígenas começaram a ser vistos como pessoas

capazes de trazer conhecimento e enriquecer a cultura da nação. Esses conhecimentos com vistas a

uma ideia de emancipação serviram de base para questionar o modo de organização da produção do

período, passando a incomodar as elites liberais (Efron, 2013).

Segundo Efron se no primeiro momento a iniciativa foi bem vinda e interessava a ambos os

lados, com o aprofundamento das discussões dos modos de vida, a consequente perda de

legitimidade do discurso evolucionista e o crescente conflito pela posse da terra, a escola passou a

ser perseguida e posteriormente fechada com seus líderes sendo presos nos anos 1939-1940.

Assim como a Constituição, a nova lei de educação nasce com ampla participação da

comunidade. Mais de 650 delegados contribuíram na construção do documento. Segundo Efron a

ideia era que a educação pudesse ser um motor de transformação da sociedade, incluindo os

saberes dos povos originários, a língua dos 36 grupos originários reconhecidos na Constituição e a

promoção de sua cultura.

A nova maneira de educar deveria ser pautada na integração, convivência e

complementaridade dos conhecimentos sem vínculos de dominação. Adotasse os conceitos de

educação intracultural como mecanismo de valorização dos saberes local e o intercultural como

forma de articulação desses conhecimentos no sistema educativo. Com essa ideia não se pretendia

abolir o conhecimento europeu e sim, buscar um equilíbrio entre os conhecimentos ocidentais e os

saberes dos povos originários (Efron, 2013).

A educação descolonizadora, portanto, não buscou estabelecer uma nova hegemonia

cultural / epistemológica / pedagógica. Precisamente, para romper com uma mentalidade

colonial historicamente estabelecida, se devia reconfigurar os laços entre os diferentes

setores da sociedade não mais como laços de dominação, mas sim de convivência,

complementaridade e integração9 (Efron, 2013, p. 8).

A autora esclarece que o novo modelo determina como obrigatória a educação até o

bacharelado, rompendo com o modelo anterior onde era obrigatório apenas o ensino primário e

estabelecia uma educação mercantilista. Com a nova lei as comunidades passam a participar na

elaboração dos currículos e da administração das escolas articulando a escola com os objetivos de

autodeterminação e a plurinacionalidade.

Importante destacar que a Lei de educação traz em seu artigo primeiro a educação como um

direito fundamental. Sendo assim, o Estado estabelece que toda pessoa tem o direito a receber-la

em todos os níveis sem discriminação uma educação que seja: descolonizadora, intercultural,

intracultural, integral, gratuita, democrática, participativa, comunitária e plurilíngue, com fins de se

atingir os preceitos constitucionais de valorização dos saberes e da cultura de cada região (BOLIVIA,

LEY No 070).

9 La educación descolonizadora, por ende no procuraba instaurar una nueva hegemonía cultural/epistemológica/pedagógica. Justamente, para romper con una mentalidad colonial históricamente instaurada se debían reconfigurar los lazos entre los distintos sectores de la sociedad ya no como vínculos de dominación sino de convivencia, complementariedad e integración.

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Para Curivil e Pinto (2020) a nova lei conforme o artigo 4o busca articular o conhecimento

tecnológico com os saberes ancestrais, embasados na ideia de uma educação descolonizada

buscando superar qualquer forma de dominação e a hegemonia do pensamento ocidental.

A educação é descolonizadora porque valoriza seus próprios saberes e valores e busca

romper com qualquer forma de dominação, ou seja, ao reconhecer a condição neocolonial da

realidade boliviana, nos mostra à necessidade de superar a hegemonia do conhecimento

científico colonial ocidental. A educação também é produtiva, ou seja, para desenvolver as

vocações socioprodutivas das regiões do país, concebe o trabalho produtivo como uma

necessidade vital para a existência do ser humano, articulando homem, sociedade e

natureza, justamente pelo saber educativo dos povos indígenas que refletem o “aprender

fazendo” na formação da pessoa10 (Curivil e Pinto, 2020, p. 92).

Para os autores a Lei é uma possibilidade para que a educação chegue até a comunidade e

empreenda um diálogo constante entre estudantes, professores e a comunidade. A educação

concebida na lei reflete os valores dos povos originários de cooperação e reciprocidade, rompendo

com os modelos de competitividade, seleção, ranqueamento e privatização que tem se tornado a

regra na grande maioria dos países.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova constituição da Bolívia faz pensar sobre como deve ser pautado a organização da

sociedade. Se hoje os países estão preocupados com o desenvolvimento econômico baseados na

exploração de recursos, a Bolívia mostra por meio dos saberes dos povos originários que existe uma

outra possibilidade.

O Bem Viver se caracteriza por uma relação de respeito com a Mãe Terra, utilizando apenas

os recursos naturais indispensáveis para a sobrevivência sem a perspectiva de acumular lucro ou

bens. É uma resistência ao modo de vida baseado em ideais neoliberais ocidentais que excluem o

diferente em nome de uma coesão social.

As constituições andinas ou novo constitucionalismo latino-americano é pautado na

sabedoria dos povos originários, transferindo para a educação ideias de respeito ao próximo,

aceitação das diferenças, entendendo que um novo tipo de ser humano pode ser formado por meio

da educação.

Conclui-se que as o Bem Viver tem por finalidade o desenvolvimento humano com respeito à

natureza e aos saberes ancestrais. Trata-se de uma opção extremamente relevante em uma

10 La educación es descolonizadora porque valoriza los conocimientos y valores propios y busca romper con cualquier forma de dominación, es decir al reconocer la condición neocolonial de la realidad boliviana esta nos evidencia la necesidad de superar la hegemonía los saberes coloniales científicos occidentales. La educación también es productiva, es decir para desarrollar las vocaciones socio-productivas de las regiones del país concibe el trabajo productivo como una necesidad vital para la existencia del ser humano, interrelacionando hombre, sociedad y naturaleza, porque precisamente los conocimientos educativos de los pueblos indígenas reflejan el “aprender haciendo” en la formación de persona.

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sociedade com recursos finitos, onde a exploração está levando a extinção de diversas espécies

animais e vegetais, inclusive colocando em sério risco a existência da espécie humana.

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