24
saberciencia.tecnico.ulisboa.pt © 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California Células dentro de células: uma hipótese extraordinária com evidência extraordinária Sabia que há mais bactérias a viver nos nossos intestinos do que células no nosso corpo? Este pode ser um pensamento perturbador, mas sem a flora intestinal teríamos dificuldade na digestão de muitos grãos, frutos e vegetais, teríamos mais alergias e um sistema imunitário mais fraco, já para não falar das infeções por bactérias prejudiciais que poderíamos contrair se os nossos intestinos não estivessem ocupados por espécies amigáveis. Os biólogos pensam que temos uma relação ainda mais próxima e mais antiga com as bactérias do que era inicialmente pensado. Não só elas vivem em nós, como também temos os descendentes de bactérias antigas a viver dentro das nossas células. Não só somos o habitat das bactérias como, num sentido bastante real, nós somos bactérias. Como é que os cientistas passaram a aceitar esta ideia surpreendente? Nos anos 1960, uma jovem microbióloga, chamada Lynn Margulis, reacendeu uma hipótese antiga. Baseada numa nova análise de evidência vinda dos campos da biologia celular, bioquímica e paleontologia, ela propôs que várias transições fundamentais da evolução ocorreram não através de competição e especiação, mas através de cooperação, quando linhagens celulares distintas se uniram e se tornaram num único organismo. Para os colegas de Margulis, esta ideia parecia louca era como sugerir que as pirâmides tinham sido construídas por seres extraterrestres mas Margulis defendeu o seu trabalho apesar desta resistência inicial. Ela inspirou cientistas de campos distantes da biologia a testar a sua hipótese no laboratório. À medida que a evidência se acumulou nas décadas seguintes à publicação do seu primeiro artigo, mesmo alguns dos críticos mais convictos tiverem de admitir que ela estava correta. Lynn Margulis em 2005.

Teoria Da Endossimbiose - Lynn Margulis

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Conheça um pouco mais sobre a Teoria Da Endossimbiose, desenvolvida por Lynn Margulis

Citation preview

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Clulas dentro de clulas: uma hiptese extraordinria com evidncia extraordinria

    Sabia que h mais bactrias a viver nos nossos intestinos do que clulas no nosso corpo? Este pode ser um pensamento perturbador, mas sem a flora intestinal teramos dificuldade na digesto de muitos gros, frutos e vegetais, teramos mais alergias e um sistema imunitrio mais fraco, j para no falar das infees por bactrias prejudiciais que poderamos contrair se os nossos intestinos no estivessem ocupados por espcies amigveis.

    Os bilogos pensam que temos uma relao ainda mais prxima e mais antiga com as bactrias do que era inicialmente pensado. No s elas vivem em ns, como tambm temos os descendentes de bactrias antigas a viver dentro das nossas clulas. No s somos o habitat das bactrias como, num sentido bastante real, ns somos bactrias.

    Como que os cientistas passaram a aceitar esta ideia surpreendente? Nos anos 1960, uma jovem microbiloga, chamada Lynn Margulis, reacendeu uma hiptese antiga. Baseada numa nova anlise de evidncia vinda dos campos da biologia celular, bioqumica e paleontologia, ela props que vrias transies fundamentais da evoluo ocorreram no atravs de competio e especiao, mas atravs de cooperao, quando linhagens celulares distintas se uniram e se tornaram num nico organismo. Para os colegas de Margulis, esta ideia parecia louca era como sugerir que as pirmides tinham sido construdas por seres extraterrestres mas Margulis defendeu o seu trabalho apesar desta resistncia inicial. Ela inspirou cientistas de campos distantes da biologia a testar a sua hiptese no laboratrio. medida que a evidncia se acumulou nas dcadas seguintes publicao do seu primeiro artigo, mesmo alguns dos crticos mais convictos tiverem de admitir que ela estava correta.

    Lynn Margulis em 2005.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testesaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Algumas das ideias de Margulis podem ter-lhe sido apresentadas como "factos" nos livros de biologia, mas provavelmente no sabia quo controversas estas ideias eram quando foram inicialmente propostas. Vamos conhecer melhor esta histria de uma hiptese extraordinria e da evidncia extraordinria que a suporta.

    Este caso de estudo evidencia os seguintes aspetos sobre a natureza da cincia:

    A cincia pode testar hipteses sobre eventos que ocorreram h muito tempo.

    As ideias cientficas so testadas com vrias linhas de evidncia.

    A cincia um empreendimento comunitrio, que beneficia de um conjunto alargado e diverso de perspetivas, prticas e tecnologias.

    As ideias cientficas evoluem com nova evidncia, no entanto ideias cientficas bem suportadas no so ideias vagas.

    Atravs de um sistema de controlo e equilbrio, o processo da cincia pode ultrapassar tendncias e preconceitos individuais.

    A evidncia o rbitro mais importante na deciso sobre que ideias cientficas so aceites.

    O mundo visto ao microscpio

    Quando Lynn Margulis ingressou na Universidade de Chicago em 1953, ela tinha planeado tornar-se escritora. Ao frequentar uma cadeira de cincia obrigatria, desenvolveu uma paixo pela biologia. Nesta cadeira, os alunos leram os originais de trabalhos de grandes cientistas em vez de um livro de texto. As experincias clssicas de Gregor Mendel com as plantas das ervilhas cativaram Margulis. Era o incio de um fascnio pela gentica e pela hereditariedade que durou toda a sua vida.

    Ela decidiu estudar estes dois temas no seu mestrado, na Universidade de Wisconsin. Foi a que viu pela primeira vez as amibas ao microscpio, observando o modo como ingeriam os alimentos e se reproduziam ao dividir-se em duas. Em primeiro lugar, a amiba altera a sua forma, de gota para esfera quase perfeita. Depois, o ncleo, a estrutura que contm o material gentico, divide-se em dois. Em seguida, toda a clula inicia a diviso, separando-se em duas clulas, cada uma com um ncleo e todas as estruturas celulares de que necessita para viver como uma amiba adulta.

    Margulis observou amibas (como esta) a dividirem-se em duas.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-factohttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-tecnologiahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-experienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarsaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    No citoplasma de uma clula, as mitocndrias ( esquerda) reproduzem-se de maneira semelhante s bactrias ( direita). Imagem da bactria Dennis Kunkel Microscopy, Inc. (www.denniskunkel.com)

    Pela mesma altura, Margulis apercebeu-se do comportamento estranhamente independente das mitocndrias, as estruturas celulares que fornecem energia, decompondo as molculas dos alimentos. Apesar de as mitocndrias serem apenas parte da clula, pareciam reproduzir-se da mesma maneira que as amibas dividindo-se em dois! Como as mitocndrias tm um tamanho e uma forma semelhantes a alguns tipos de bactrias e as bactrias tambm se reproduzem dividindo-se em dois, Margulis no pde deixar de pensar no quanto esta estrutura celular, ou organelo, se comportava como uma bactria independente.

    Regresso ao futuro As observaes de Margulis no eram novidade na cincia; muitos investigadores antes dela 1 tinham visto, ao microscpio, semelhanas surpreendentes entre mitocndrias e bactrias. Margulis soube por um professor que alguns destes investigadores, nos anos 1880, tinham elaborado uma hiptese que explicava a razo pela qual as mitocndrias e as bactrias eram to semelhantes. Esta foi a primeira vez que Margulis ouviu falar acerca da hiptese "louca" que iria moldar a sua carreira e revolucionar a forma como os cientistas compreendem o modo de evoluo das clulas complexas.

    O QUE SO PROCARIOTAS E EUCARIOTAS?

    As clulas procariticas so relativamente simples. So pequenas e o seu ADN circular e encontra-se livre no interior das clulas. Todas as bactrias so clulas procariticas.

    As clulas eucariticas so mais complexas. So maiores e o seu ADN est organizado em cromossomas lineares, no interior do ncleo. As clulas eucariticas tm alguns organelos que as clulas procariticas no tm como mitocndrias. Todas as plantas, fungos e animais (incluindo os humanos!), assim como vrios seres monocelulares, como as amibas, so constitudos por clulas eucariticas.

    http://www.denniskunkel.com/http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesesaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Em que consistia essa ideia "louca"? O professor de Margulis explicou que ao longo dos 80 anos anteriores alguns cientistas tinham proposto que as clulas eucariticas tinham evoludo quando uma bactria (um procariota) envolveu outra e as duas comearam a viver em conjunto. Ao longo de muitas geraes, e atravs de muitas e pequenas alteraes, as clulas envolvidas evoluram e tornaram-se organelos, como as mitocndrias. De acordo com esta ideia, as mitocndrias parecem-se e agem como bactrias porque j foram bactrias!

    Esta relao ecolgica chamada de endossimbiose. "Endo" e "simbiose" vm do grego e significam, respetivamente, "dentro" e "viver junto" endossimbiose significa, assim, um organismo a viver dentro de outro. Na poca de Margulis, os cientistas j sabiam que muitos organismos tinham endossimbiontes como as trmitas, que dependem de micro-organismos nos seus intestinos para digerir a madeira mas ningum pensou que esta relao podia evoluir para se tornar to prxima ao ponto de os dois se tornarem num nico organismo.

    esquerda, uma trmita ao lado do intestino retirado de outro individuo. O contedo do intestino observado ao microscpio ( direita), revela muitos simbiontes, incluindo protozorios (P) e algumas bactrias onduladas e em forma de espiral (indicadas por setas).

    Cada vez que a hiptese endossimbitica era proposta, a maior parte da comunidade cientfica considerava-a demasiado rebuscada. Dois organismos diferentes juntarem-se para formar um nico? Ridculo! Isso nunca teria resultado!

    saberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Para Margulis, a ideia no parecia "louca", mas, como estudante de doutoramento, no tinha muito tempo para ponderar sobre o assunto. Ela estava muito ocupada a pensar sobre gentica e a trabalhar na sua investigao de doutoramento na Universidade de Berkeley. Como iremos ver, no entanto, a sua investigao e observaes que fez sobre outro organelo, o cloroplasto, lev-la-iam de volta a esta ideia estranha.

    Uma ideia antiga ganha um novo ponto de vista A investigao de Margulis seguiu as pegadas de um dos cientistas que a tinham inspirado a tornar-se biloga. Com as ervilhas, Gregor Mendel tinha mostrado que a gentica era previsvel; se soubermos quais so os genes dos progenitores, podemos prever quais os genes que os seus descendentes provavelmente tero. A investigao posterior explicou porqu: os genes esto localizados no ADN e o ADN segue regras rgidas quando copiado e passado aos descendentes. No entanto, nesta altura, os cientistas estavam a descobrir mais e mais casos de hereditariedade que quebravam as regras de Mendel. Como era possvel? Margulis decidiu tentar descobrir.

    Gregor Mendel ( esquerda) mostrou que se se souber o gentipo dos progenitores, pode-se prever os rcios dos diferentes gentipos possveis dos descendentes ( direita).

    Margulis, assim como muitos outros cientistas, suspeitava que as clulas podiam ter ADN no exterior do ncleo, e que este ADN podia no seguir as regras de hereditariedade do ADN nuclear. Margulis iniciou a sua investigao com a Euglena, um eucariota monocelular. Ela descobriu que a Euglena tinha ADN no apenas no ncleo, mas tambm no interior dos cloroplastos. Porque estaria ali este ADN? Seria esse ADN o responsvel pelas caractersticas que aparentemente quebravam as regras de Mendel? Enquanto considerava estas questes, Margulis lembrou-se da hiptese endossimbitica. Ela sabia que os cloroplastos se reproduzem dividindo-se em dois, como as bactrias e as mitocndrias que ela tinha observado. E, agora, tinha a certeza de que tambm os cloroplastos tinham o seu prprio ADN. Subitamente, ficou cativada com outra questo: Se os cloroplastos continham o seu prprio ADN e se reproduziam dividindo-se em dois, seria possvel que estes organelos j teriam sido, anteriormente, bactrias livres?

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-previsaohttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarsaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Imagem Dennis Kunkel Microscopy, Inc. www.denniskunkel.com)

    Os organelos verdes nesta Euglena so cloroplastos e os roxos so mitocndrias.

    Margulis comeou a explorar esta ideia a srio. No levou a cabo nenhuma nova investigao, para alm da que tinha realizado anteriormente sobre o ADN dos cloroplastos, mas leu sobre a investigao de outros cientistas para conhecer as evidncias mais atuais relevantes para a sua hiptese. Descobriu que muitos cientistas tinham feito observaes que fariam todo o sentido se as clulas eucariticas tivessem evoludo por endossimbiose.

    Antes de examinarmos as evidencias que apresentou, vamos conhecer a nova verso, expandida, da hiptese antiga.

    Como muitos se tornaram num s A histria que Margulis contou comea com o aparecimento da vida na Terra. H 3,5 mil milhes de anos, apenas as bactrias habitavam o nosso planeta, quente e rido, e no havia oxignio na atmosfera. H aproximadamente 3 mil milhes de anos, algumas destas bactrias desenvolveram a capacidade de usar a energia proveniente do sol para criar alimento, atravs da fotossntese. O produto final deste processo o oxignio, e estas bactrias produziam-no em tanta quantidade que a atmosfera se alterou drasticamente.

    OXIGNIO: UMA FACA DE DOIS GUMES

    Normalmente, pensamos no oxignio como elemento essencial vida e, para os seres que evoluram para o utilizar, . Mas, parte do que torna o oxignio to crtico vida tambm o torna perigoso. O oxignio pode gerar radicais livres tomos e molculas com um eletro extra, que os torna extremamente reativos. Muitas destas reaes so prejudiciais, causando mutaes e outras formas de leso nas clulas. Para os organismos que no desenvolveram a capacidade de prevenir e reparar estes danos, o oxignio pode ser txico.

    http://www.denniskunkel.com/http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    O oxignio envenenou muitas bactrias, mas outras desenvolveram a capacidade de o utilizar. Ao longo de muitas geraes, algumas destas bactrias tornaram-se dependentes do oxignio para degradar os alimentos. Margulis props que estas bactrias passaram por vrios episdios de endossimbiose:

    Primeiro, algumas bactrias ameboides ingeriram algumas das bactrias que conseguiam utilizar o oxignio para degradar os alimentos (aerbias). Eventualmente, evoluram para viverem em conjunto, com as bactrias aerbias instaladas permanentemente dentro das bactrias ameboides. Com os seus residentes aerbios, as bactrias ameboides prosperaram no ambiente cheio de oxignio. Estes organismos foram os antepassados de todos os eucariotas, e as bactrias que ingeriram tornaram-se nas mitocndrias.

    Depois, estes primeiros eucariotas ingeriram um outro tipo de bactrias longas e em forma de espiral. Eventualmente, tambm estas evoluram de modo a viverem em conjunto, permanentemente, com a bactria em forma de espiral a viver junto s mitocndrias da clula hospedeira. Estes micro-organismos foram os antepassados de todas as clulas animais e as bactrias espiraladas originaram vrias estruturas importantes, como clios e flagelos, que permitem a locomoo das clulas animais.

    Finalmente, algumas destas clulas animais ingeriram outras bactrias as que j tinham adquirido a capacidade de fazer fotossntese e tambm estes evoluram para viver em conjunto. Estas clulas foram os antepassados das plantas e as bactrias fototrficas tornaram-se nas estruturas chamadas de plastdeos por exemplo, o cloroplasto que permitem que as plantas realizem fotossntese.

    saberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Se Margulis estivesse correta, a endossimbiose teria acontecido vrias vezes e teria desempenhado um papel muito importante na evoluo da vida na Terra!

    Obstculos at aceitao Margulis sabia que hipteses semelhantes sobre a endossimbiose j tinham sido propostas por outros cientistas, que tinham sido ridicularizados por isso. Porque que esta ideia nunca tinha sido aceite? Em cincia, as ideias podem ser rejeitadas por muitas razes diferentes e a maioria aplica-se no caso desta hiptese:

    1. Falta de evidncia

    Os cientistas esforam-se por escrutinar todos os aspetos da evidncia, incluindo os que parecem ser bvios. Isto significa que para ser aceite, uma ideia cientfica tem de ser mais do que plausvel; tem de ser testada e apoiada repetidamente com vrias linhas de evidncia. Anteriormente, os cientistas tinham tentado testar a hiptese endossimbitica, mas no dispunham da tecnologia necessria para planear um teste verdadeiramente adequado para a ideia por isso, simplesmente, no havia evidncia suficientemente forte para suportar a ideia. Sim, as mitocndrias parecem-se muito com bactrias, mas isto no era suficiente para convencer os cientistas de que estas estruturas j tinham sido bactrias.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-tecnologiasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    2. Inconsistncia com uma teoria aceite

    Muitos cientistas eram cticos quanto hiptese endossimbitica porque esta no parecia encaixar na teoria da evoluo como era compreendida na altura. Entre 1900 e 1950, os bilogos fizeram muitas descobertas no campo da gentica, ao se concentrarem em alteraes pequenas e aleatrias do ADN mutaes que ocorrem quando uma clula se reproduz. Estes "erros" genticos eram claramente um mecanismo importante da evoluo e muitos bilogos acreditavam que toda a evoluo tinha ocorrido como resultado da acumulao de muitas e pequenas mutaes ao longo do tempo. No entanto, a nova hiptese propunha grandes avanos evolutivos atravs da simbiose em vez de mudanas lentas e constantes causadas por mutaes mnimas. A hiptese endossimbitica parecia, a princpio, no se ajustar com o que os cientistas da poca compreendiam sobre o modo de funcionamento da evoluo.

    3. Parcimnia

    Em igualdade de condies, mais provvel os cientistas aceitem ideias mais simples ou parcimoniosas, do que ideias mais complexas. E aceitar esta nova ideia teria tornado a teoria da evoluo mais complexa. Em vez de propor um mecanismo principal (a acumulao de pequenas mutaes ao longo do tempo), a teoria teria que incorporar a simbiose como mecanismo adicional da alterao evolutiva. Os cientistas no compreendiam porque haveriam de procurar uma nova forma de explicar a alterao evolutiva, quando a maneira anterior era apoiada por tantas evidncias e parecia explicar a maioria das observaes. Seriam precisas mais evidncias para os convencer de que a teoria da evoluo tinha que passar a comportar um outro mecanismo de mudana.

    4. Tendncias e preconceitos pessoais Os cientistas esforam-se por trabalhar objetivamente, mas, sendo humanos, so vulnerveis a ter tendncias e preconceitos pessoais vieses como qualquer outra pessoa. Neste caso, os cientistas tinham dois vieses principais que distorciam a sua reao hiptese endossimbitica. Em primeiro lugar, desde Darwin, a evoluo consistia na competio entre organismos, que competiam por territrio, parceiros e alimento. Mas a hiptese endossimbitica focava-se em cooperao. A teoria evolutiva no negava a possibilidade de haver cooperao mas os cientistas no estavam acostumados ideia de que a evoluo poderia ocorrer como resultado da colaborao entre dois organismos.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-teoriahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-parcimoniahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-objetivosaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Competio luta entre carneiros-selvagens ( esquerda) e cooperao um peixe-palhao procura proteo entre os tentculos de uma anmona ( direita).

    Em segundo lugar, a maior parte dos cientistas que fazia investigao no campo da evoluo naquela altura trabalhava com animais relativamente grandes moscas-da-fruta, aves e ratinhos e no com micro-organismos como amibas ou bactrias, estudadas por Margulis. Os cientistas que trabalhavam com micro-organismos sabiam que um organismo a viver dentro de outro era um fenmeno normal, mas os que trabalhavam com animais grandes tinham observado poucos exemplos de endossimbiose. Hoje, sabemos que a endossimbiose comum mesmo em animais multicelulares e complexos (como as algas que vivem em moluscos gigantes e realizam fotossntese), mas, na altura, os cientistas que estudavam animais maiores assumiam que este fenmeno era bastante raro. Estes cientistas tinham dificuldade em aceitar esta hiptese porque no conheciam fenmenos de endossimbiose nos animais que estudavam.

    Obviamente, os cientistas no aceitam imediatamente novas ideias. Esta resistncia pode fazer com que a cincia evolua devagar, mas serve para garantir que todas as novas ideias so testadas minuciosamente antes de ganharem aceitao. Na sua primeira publicao sobre esta hiptese, Margulis fez o seu melhor para explicar todos os testes que j tinham sido feitos, assim como os que ainda estavam em vias de ser feitos

    Organizar a evidncia Na altura em que Margulis props a sua verso da hiptese endossimbitica, a viso dominante na comunidade cientfica era de que as mitocndrias e estruturas semelhantes tinham evoludo passo-a-passo a partir de outras partes da clula. Ento, como que Margulis apresentou a sua ideia? Todos os argumentos cientficos funcionam da mesma forma: pensa-se no que esperamos ou prevemos que se observe numa dada situao se a hiptese for verdadeira, e depois confirma-se se essa expetativa (ou previso) corresponde realidade. Se sim e se mais nenhuma hiptese gerar a mesma expetativa a ideia suportada; se no, rejeitada. A maior parte das hipteses e teorias cientficas geram muitas expetativas, todas dizendo respeito a diferentes linhas de evidncia que podem ou no suportar a ideia.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-expetativahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-teoriahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Vamos ver quais as expetativas que a hiptese endossimbitica gerava que a teoria passo-a-passo no gerava. Apesar da hiptese de Margulis ser sobre mitocndrias, estruturas tubulares e plastdeos (por exemplo, o cloroplasto), vamo-nos focar inicialmente nas mitocndrias.

    Se as mitocndrias evoluram a partir de uma bactria independente engolida por outra bactria, ento seria de esperar:

    1. Que as mitocndrias se reproduzissem independentemente e passassem dos progenitores para os descendentes As bactrias reproduzem-se individualmente, no so criadas a partir de outro organismo. Assim, se as mitocndrias fossem descendentes de bactrias, seria de esperar que se reproduzissem individualmente e no que fossem geradas a partir de outras estruturas da clula a cada nova gerao. A prpria Margulis tinha observado a forma como as mitocndrias se reproduzim dividindo-se ao meio. E outros cientistas tinham publicado acerca de observaes destas novas mitocndrias a serem divididas entre duas clulas-filha, aquando da diviso da clula hospedeira. No havia dvidas de que as mitocndrias preenchiam esta primeira expetativa. Por enquanto, tudo bem!

    2. Que as mitocndrias tivessem o seu prprio material gentico Todos os organismos tm material gentico, por isso, se as mitocndrias tivessem sido, inicialmente, bactrias, deveriam ter o seu prprio ADN. Assim como Margulis tinha ido procurar o ADN nos cloroplastos da Euglena, outros cientistas procuraram

    Uma mitocndria numa clula de borboleta prepara-se para a diviso.

    saberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    por ADN nas mitocndrias e encontraram-no! As mitocndrias iam ao encontro da segunda expetativa de Margulis.

    3. Que o ADN mitocondrial codificasse as caractersticas das mitocndrias Se o ADN mitocondrial corresponder ao que antes era o ADN bacteriano, seria de esperar que codificasse caractersticas especficas das bactrias antecessoras (ex.: utilizao de oxignio para degradar os alimentos) caractersticas que o ADN do ncleo no codifica. Mas como se percebe se uma caracterstica codificada pelo ADN mitocondrial ou nuclear? Margulis pensou em dois testes:

    Teste n1: O mtodo mais simples seria remover as mitocndrias e perceber se a caracterstica (ex: produo de uma determinada protena para degradar os alimentos) ainda existe na clula. Infelizmente, a maior parte das clulas no sobrevive remoo das mitocndrias e isso torna difcil perceber se h caractersticas em falta ou no. Para as mitocndrias, pelo menos, este teste foi inconclusivo.

    Teste n2: O segundo teste baseava-se na forma como as caractersticas so herdadas. Mendel conseguiu prever quais as caractersticas da descendncia porque, na maioria dos casos, a descendncia herda metade do material gentico de cada progenitor. No entanto, em alguns organismos multicelulares, as mitocndrias so herdadas apenas de um progenitor normalmente da me. Isto acontece porque as mitocndrias so geralmente herdadas apenas do vulo e no do espermatozoide. Isto significa que se algumas caractersticas especficas (por exemplo, a utilizao de oxignio para degradar os alimentos) esto codificadas no ADN mitocondrial (e no no ADN nuclear), estas caractersticas devem ter padres de hereditariedade maternos invulgares. Outros cientistas tinham j descoberto estas caractersticas. O sndrome de Kearns-Sayre foi investigado muito depois de Margulis ter proposto a sua hiptese, mas um bom exemplo deste tipo de caractersticas. Este sndrome uma doena gentica rara causada por uma diminuio da capacidade das clulas em obter energia a partir dos alimentos. Quando os cientistas estudaram os padres de hereditariedade desta doena, descobriram que era apenas transmitida pela me tal como seria de esperar, se o gene que causa esta doena estiver localizado no ADN mitocondrial. Evidncias reunidas mais tarde tambm apoiaram esta ideia de que o gene deste sndrome se encontra no ADN mitocondrial. Margulis sabia da existncia destas caractersticas herdadas pela me. Para alm disto, estas so caractersticas que esto, aparentemente, relacionadas com o papel das mitocndrias na clula. Estas eram evidncias fortes que suportavam a ideia de que algumas caractersticas esto apenas codificadas no ADN mitocondrial. As mitocndrias passaram neste teste tambm!

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-previsaohttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Ao contrrio do que acontece com o ADN nuclear ( esquerda), o ADN mitocondrial ( direita) s herdado a partir da linhagem materna uma particularidade que permitiu que Margulis determinasse se o ADN mitocondrial codifica caractersticas especficas.

    4. Que as mitocndrias tivessem parentes bacterianos; as mitocndrias seriam mais parecidas com bactrias do que com a clula onde se encontram

    Se as mitocndrias evoluram a partir de bactrias, deveriam ter bactrias como parentes longnquos. Mas como poderiam os cientistas perceber quem seriam estes parentes? Caractersticas como sequncias longas de ADN, um rgo complexo ou um processo bioqumico complicado so geralmente bons indicadores de relaes evolutivas. Se dois organismos apresentarem a mesma caracterstica complexa, muito mais provvel que a tenham herdado de um mesmo antecessor do que essa caracterstica ter evoludo, por acaso, em duas linhagens distintas.

    Margulis no teve de procurar muito at encontrar um grupo de bactrias que encaixasse no perfil. As bactrias aerbias partilhavam caractersticas complexas e essenciais com as mitocndrias a capacidade de utilizar oxignio para degradar

    Imagem Dennis Kunkel Microscopy, Inc. (www.denniskunkel.com)

    Bacillus atrophaeus, bactria aerbia em forma de bastonete.

    http://www.denniskunkel.com/saberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    as molculas dos alimentos. As mitocndrias e estas bactrias at usam os mesmos passos bioqumicos no processo! As bactrias aerbias eram o candidato perfeito para parentes das mitocndrias.

    Examinar a alternativa

    Todas as observaes descritas anteriormente fazem mais sentido se as mitocndrias tiverem evoludo a partir de bactrias. Se a alternativa que as mitocndrias so originrias de uma evoluo passo-a-passo no interior da clula fosse verdade, no seria de esperar que as mitocndrias passassem para a descendncia, tivessem ADN codificante de caractersticas especficas ou tivessem parentes prximos bacterianos. Para avaliar de forma imparcial e justa a hiptese alternativa, Margulis tentou imaginar que expetativas esta gerava para determinar se existia alguma evidncia que a apoiassse. Ela argumentou

    Se as mitocndrias evoluram passo-a-passo dentro da clula, seria de esperar:

    Que existissem organismos que preservassem estdios anteriores da evoluo das mitocndrias que contivessem "proto" mitocndrias

    Os bilogos conhecem muitos exemplos de formas transitrias, organismos vivos ou extintos que apresentam estruturas "intermdias" que nos ajudam a perceber como ocorreram as grandes alteraes na histria da vida. Seria razovel supor que, se as mitocndrias evoluram a partir de outra estrutura celular, seria possvel encontrar alguns organismos com mitocndrias "transitrias" formas evolutivas anteriores de mitocndrias. No entanto, por mais que tentassem, nenhum cientista observou, at hoje, uma estrutura como esta. Todas as clulas conhecidas na cincia ou tm mitocndrias completamente desenvolvidas ou no tm nenhuma. Isto faz todo o sentido se as mitocndrias evoluram por endossimbiose, mas no se evoluram a partir de outra parte celular.

    Com base na evidncia disponvel, a hiptese aceite no parecia muito convincente e a hiptese de Margulis era razovel, mas ainda no existia nenhuma evidncia conclusiva. Aqui est um resumo de todas as linhas de evidncia discutidas at agora:

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-observarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-expetativahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    saberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Os outros organelos J analismos as linhas de evidncia que Margulis desenvolveu para testar a sua hiptese, usando as mitocndrias como exemplo. Mas, claro, Margulis tinha proposto que no tinham sido apenas as mitocndrias a evoluir a partir de endossimbiontes; ela pensava que os plastdeos e organelos tubulares tambm tinham evoludo desta forma. No mesmo artigo em que reportou toda a evidncia que tinha recolhido acerca das mitocndrias, tambm explicou a evidncia relevante para os outros organelos. Os plastdeos tiveram resultados ainda mais surpreendentes do que as mitocndrias. Como se pode ver no grfico abaixo, todos os resultados obtidos nos testes realizados suportavam a ideia de que os plastdeos tinham evoludo segundo a teoria endossimbitica.

    Os organelos tubulares, no entanto, no tiveram resultados to bons. Estes organelos so transmitidos descendncia nalguns casos, e no parecia existir nenhum organismo que contivesse precursores destas estruturas, mas a maior parte dos testes foram inconclusivos ou, simplesmente, ainda no tinham sido feitos. Margulis pensava mesmo assim que tinham evoludo via endossimbiose, mas as evidncias que apoiavam este ponto de vista no eram muito fortes.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    A comunidade reage O artigo de Margulis apresentava a sua hiptese completa quando cada evento endossimbitico tinha ocorrido na histria e todas as linhas de evidncia relevantes para os diferentes tipos de organelos. Margulis enviou o artigo a mais de uma dzia de revistas cientficas, mas todas o rejeitaram no porque pensassem que era cincia de m qualidade, mas porque no encaixava perfeitamente em nenhum dos temas abordados normalmente por estas revistas. O artigo de Margulis discutia fsseis, geologia, gentica, bioqumica e um conjunto muito alargado de organismos espalhados pela rvore da vida. Finalmente, a revista Journal of Theoretical Biology (Revista de Biologia Terica), que abrange um conjunto de disciplinas, aceitou-o. O artigo foi publicado em 1967 sob o nome de Lynn Sagan, uma vez que, na altura, Margulis era casada com Carl Sagan.

    Ento, os argumentos de Margulis foram suficientes para convencer os seus colegas? Sim e no! O artigo despertou imediatamente um grande interesse, e at ganhou um prmio como artigo do ano de 1967 para a melhor publicao feita por um docente da da Universidade de Boston, onde Margulis lecionava. Muitos dos colegas de Margulis que trabalhavam em gentica e microbiologia aceitaram a ideia rapidamente. Outros bilogos foram seduzidos pelo nmero de linhas de evidncia que Margulis conseguiu reunir. Mas muitos investigadores de outros campos pareciam francamente perturbados pela ideia de que estruturas celulares vitais como as mitocndrias pudessem ter evoludo por endossimbiose. Alguns crticos argumentaram que conseguiam pensar em cenrios plausveis nos quais as clulas eucariticas teriam evoludo de forma gradual e lenta e ainda iam ao encontro das expetativas criadas pela hiptese endossimbitica.

    Por exemplo, uma das linhas de evidncia relevantes envolvia a forma do ADN nas mitocndrias. O ADN mitocondrial tem a forma circular, tal como o ADN bacteriano. O ADN nuclear, por outro lado, est compactado em cadeias lineares. Alguns cientistas argumentaram que isto indicava que as mitocndrias eram mais parecidas com bactrias

    Imagem do ADN mitocondrial, circular, no Diplonema papillatum, um flagelado marinho, obtida por microscpio eletrnico. A barra de escala corresponde a 0.5 m.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-revista-cientificahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-argumento-cientificohttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarsaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    do que com as clulas onde se encontravam e viam este facto como evidncia que suportava a hiptese de Margulis. Os crticos, no entanto, interpretavam a evidncia de forma diferente. Baseados no conhecimento que o ADN circular tinha sido a primeira forma de ADN a existir, eles pensavam que os ADNs mitocondrial e bacteriano tinham evoludo a partir deste ADN ancestral, mas seguindo linhas evolutivas diferentes. Por outras palavras, eles pensavam que os ADNs mitocondrial e bacteriano eram parecidos em forma, no porque estivessem relacionados proximamente, mas porque tinham evoludo a partir da forma original do ADN.

    Talvez esta explicao no parea muito provvel, quando comparada com a hiptese de Margulis, mas, em alguns aspetos, a cincia pode ser como um tribunal o nus da prova pertence muitas vezes a quem faz a nova afirmao. Era Margulis que tinha que convencer os cticos de que tinha razo.

    Margulis era experiente o suficiente para perceber que seria necessrio mais do que um artigo para convencer outros cientistas a levarem a srio a sua hiptese. Margulis teria de ultrapassar a resistncia da comunidade cientfica a ideias com as quais no estivessem familiarizados e que no encaixassem na perfeio na teoria da evoluo tal como esta existia na altura. Para esse fim, Margulis expandiu os seus argumentos num livro completo que, depois de uma rejeio inicial por parte de um editor, foi finalmente publicado em 1970. O formato no qual o livro tinha sido escrito permitiu que Margulis alcanasse uma audincia interdisciplinar, desenvolvesse os seus argumentos e contra-argumentasse com alguns dos seus crticos.

    Apesar de o livro ter encorajado muitos cientistas a levar a teoria endossimbitica a srio, no os convenceu a todos. Em cincia, a evidncia comanda. Ideias sobrevivem ou so destrudas por evidncia que as apoiem ou refutem e a maioria dos cientistas queria, simplesmente, evidncia mais forte antes de aceitar a nova ideia.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-teoriasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    A evidncia conclusiva: O apoio de uma nova tecnologia A controvrsia durou aproximadamente 10 anos. Enquanto novos dados e novos argumentos eram trazidos discusso por ambos os lados, nenhuma nova investigao resolveu a questo de modo a agradar a todos. Embora, normalmente, pensemos nos cientistas como pessoas neutras e lgicas, havia muito entusiasmo em ambos os lados. Margulis continuou a defender a sua hiptese e os seus apoiantes consideravam-na persistente e audaz. Os seus detratores achavam o mesmo, mas alguns diziam-no com muito menos admirao!

    Durante os anos 1970, enquanto alguns cientistas debatiam a hiptese de Margulis, outros trabalhavam numa nova tecnologia que poderia eventualmente resolver a questo: sequenciao de ADN tcnicas que permitiriam a leitura do cdigo qumico que compe os nossos genes. A sequenciao do ADN uma das ferramentas mais poderosas na biologia. Como espcies proximamente relacionadas tm genes parecidos, a sequenciao do ADN pode ajudar a perceber como as espcies esto relacionadas umas com as outras e isto era mesmo o que os cientistas precisavam de saber para avaliar uma linha de evidncia importante na lista de Margulis: se as mitocndrias, os plastdeos e as estruturas tubulares tinham parentes bacterianos prximos.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-dadoshttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-argumento-cientificohttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-tecnologiahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Michael Gray e W. Ford Doolittle estavam interessados em aplicar as novas tecnologias de sequenciao ao debate acerca da endossimbiose. Eles queriam saber se o ADN dos plastdeos estava mais relacionado com o ADN bacteriano ou com o ADN nuclear da clula. Se os plastdeos evoluram por endossimbiose, seria de esperar que o seu ADN tivesse sequncias parecidas com as do ADN das bactrias. Por outro lado, se os plastdeos evoluram passo-a-passo dentro da clula eucaritica, seria de esperar que o seu ADN fosse mais parecido com o ADN do ncleo.

    Michael Gray ( esquerda) e W. Ford Doolittle ( direita), ambos da Universidade de Dalhousie, Halifax, Nova Esccia, Canad.

    Em 1982, obtiveram-se os resultados. Num artigo publicado nesse ano, Doolittle e Gray resumiram os seus resultados, assim como os de outros: o ADN dos plastdeos era muito mais parecido com o ADN das bactrias fotossintticas que vivem no estado livre, do que com o ADN da clula hospedeira. Restavam poucas dvidas: estes organelos tinham evoludo, quase de certeza, a partir de endossimbiontes.

    Os cientistas ainda no tinham a certeza a respeito das mitocndrias, mas apenas um ano mais tarde, a sequenciao gentica das mitocndrias foi conseguida e esse ADN era, afinal, extraordinariamente parecido com o das bactrias aerbias. Este resultado convenceu os cientistas de que tambm as mitocndrias tinham evoludo endossimbioticamente a partir de bactrias. 16 longos anos aps Margulis ter publicado pela primeira vez acerca das suas ideias, a evidncia era forte demais para ser ignorada. A maioria dos cientistas aceitou as ideias de Margulis acerca da importncia da endossimbiose. A teoria da evoluo teria de contemplar um novo mecanismo: as linhagens no se dividem apenas por especiao; podem tambm fundir-se por endossimbiose e originar uma nova linhagem.

    O debate acerca dos organelos tubulares perdura Ento e os organelos tubulares, como clios e flagelos, que Margulis pensava terem tambm evoludo via endossimbiose? A histria evolutiva destes organelos acabou por ser muito mais difcil de esclarecer e o debate acerca da sua origem ainda perdura nos dias de hoje.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-expetativahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-teoriasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    Imagens Dennis Kunkel Microscopy, Inc. (www.denniskunkel.com)

    Tetrahymena ( esquerda), um protozorio de gua doce, com filas de clios, e Pseudomonas spp. ( direita), uma bactria com vrios flagelos.

    O ADN foi encontrado nas mitocndrias e nos plastdeos no incio da nossa histria, mas o mesmo no se passou com os organelos tubulares. Como estas estruturas so grandes e pegajosas, o ADN livre, quer do ncleo quer do ambiente, tende a ficar colado a elas. Estas "bolas de coto" celulares pareciam sempre acabar contaminadas com outro ADN e isto fez com que fosse difcil perceber se estas estruturas tinham o seu prprio ADN ou no!

    Joan Argetsinger, a primeira cientista a testar a ideia de que existe ADN dentro dos organelos tubulares, publicou os seus resultados em 1965. Argetsinger encontrou ADN, mas no conseguiu determinar se pertencia ao organelo ou se era contaminao. O debate durou dcadas. Muitos afirmaram ter encontrado evidncia de material gentico, ou ADN ou ARN (outra molcula que contm informao no interior das clulas) mas acabava sempre por se demonstrar que eram resultantes de mtodos falhados, erros ou contaminao.

    Apesar da falta de evidncia, Margulis continua convencida de que, eventualmente, se ir encontrar evidncia que suporte a ideia de que os organelos tubulares, como as mitocndrias e os plastdeos, so resultado da endossimbiose. Em 2006, Margulis publicou uma verso revista da sua hiptese que continha todas as observaes feitas at data nomeadamente, que era muito difcil encontrar material gentico pertencente aos organelos tubulares. De acordo com a nova verso da hiptese, os organelos tubulares evoluram via endossimbiose, mas tm menos material gentico (o que dificultaria a sua descoberta) porque estes foram os primeiros endossimbiontes a ser envolvidos na clula hospedeira e tiveram muito mais tempo para perder material gentico do que os restantes organelos. No entanto, muitos cientistas no ficaram mais convencidos com a sua hiptese atualizada a respeito dos organelos tubulares do que j estavam com a hiptese original.

    Em 2008, parecia que a sua hiptese sobre os organelos tubulares ia receber algum apoio. Uma equipa de cientistas encontrou evidncia convincente de que um determinado tipo de organelo tubular tinha o seu prprio material gentico ARN! Seriam estes dados suficientes para convencer a comunidade cientfica de que Margulis tinha estado certa, este tempo todo, sobre a origem endossimbitica dos organelos tubulares?

    Joan Argetsinger em 1963, enquanto pesquisava sobre organelos tubulares.

    http://www.denniskunkel.com/http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-dadossaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    No. A excitao durou pouco tempo. Apenas um ano mais tarde, outro grupo de cientistas mostrou que ao remover os organelos tubulares de uma clula eucaritica, estes voltavam a crescer. De acordo com os critrios originais de Margulis, auto-replicao e transmisso s clulas filha era uma expetativa importante gerada pela hiptese endossimbitica. Se uma clula consegue desenvolver, de raiz, um organelo, provvel que este organelo no se reproduza de forma independente nem se transmita s clulas filha. Esta descoberta ia contra a ideia de que estes organelos tinham evoludo via endossimbiose. Baseados em todas as evidncias disponveis, a maioria dos bilogos rejeitou a hiptese de que os organelos tubulares descendiam de endossimbiontes.

    Atualizar a teoria da evoluo Margulis pode ter estado errada quando afirmou que os organelos tubulares resultavam de endossimbiose muitos bilogos pensam que esta parte da sua hiptese no apoiada pela evidncia mas as suas ideias foram, ainda assim, uma das maiores contribuies para a biologia evolutiva dos ltimos 100 anos. Margulis no contrariava nenhuma das ideias principais da evoluo, mas forava algumas delas a criar espao para algumas modificaes! Margulis estabeleceu que as mutaes genticas no so a nica fonte de novas caractersticas e que a competio no a nica estratgia que os seres vivos podem usar para ganhar vantagem no jogo evolutivo. Atravs da

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-expetativahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-hipotesehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-evidenciasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    endossimbiose, organismos distantemente relacionados podem cooperar para formar uma entidade mais apta do que as espcies individuais envolvidas e, ao longo do tempo, essa relao de cooperao pode tornar-se to ntima que o que antes eram duas ou trs espcies diferentes se torna numa s. Hoje, os bilogos aceitam a ideia de que esta forma de endossimbiose comum.

    No fim, evidncias fortes validaram a hiptese de Margulis, mas parte da batalha foi ganha com persistncia e tempo. A evidncia sempre o fator mais importante na aceitao das ideias cientficas, mas a cincia no acontece no vazio, e muitos outros fatores podem afetar a evoluo do seu progresso. Novas ideias, ou ideias que se parecem afastar de teorias aceites, encaram obstculos maiores at sua aceitao do que as ideias mais familiares. Isto pode atrasar as mudanas no conhecimento cientfico o que no necessariamente mau. Este tipo de ceticismo garante que as novas hipteses so testadas rigorosamente, com mltiplas linhas de evidncia independentes, antes de receberem o apoio da comunidade cientfica. No entanto, importante notar que todas as ideias em cincia tm de ser testadas para que a evidncia a respeito da sua validade possa ser recolhida mesmo que este processo demore dcadas.

    A histria da descoberta de Lynn Margulis mostra-nos como as ideias cientficas se alteram ao longo do tempo. O que comeou por ser uma hiptese vanguardista que no podia ser testada com as ferramentas disponveis no sculo XIX, foi reavivada e expandida por Margulis quando a tecnologia apropriada comeou a ser desenvolvida. Assim, Margulis convenceu a comunidade cientfica que a evidncia era suficientemente forte para que esta ideia estranha sobre endossimbiose fosse levada a srio. Graas aos esforos de muitos cientistas pertencentes a uma vasta gama de reas, a ideia foi estudada at que mesmo os crticos mais acrrimos tiveram que concordar que, pelo menos no que respeita s mitocndrias e plastdeos, a ideia era correta.

    O trabalho persistente de Margulis nesta hiptese alterou a

    Lynn Margulis num simpsio comemorativo de Darwin em 2009.

    http://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-aceitarhttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-cienciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-teoriahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-testehttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-linha-de-evidenciahttp://saberciencia.tecnico.ulisboa.pt/glossario/glossario-tecnologiasaberciencia.tecnico.ulisboa.pt

  • saberciencia.tecnico.ulisboa.pt 2012 The University of California Museum of Paleontology, Berkeley, and the Regents of the University of California

    forma como os cientistas compreendem a evoluo e inspirou um novo mundo de questes: tero outras estruturas celulares, para alm das mitocndrias e plastdeos, evoludo via endossimbiose? Como que o ADN dos endossimbiontes foi parar ao ncleo da clula hospedeira? Com que frequncia ocorre esta transferncia de ADN? O ADN transferido benfico, prejudicial ou neutro? Como que este processo afetou a evoluo do genoma? medida que cientistas de muitas reas diferentes procuram as respostas para estas questes, criada uma melhor compreenso sobre os principais papis que a endossimbiose e a cooperao desempenharam na evoluo da vida na Terra.

    Quer saber mais? Consulte estas referncias (em ingls):

    Nota histrica e popular:

    Hagen, J. 1996. Lynn Margulis & the question of how cells evolved. Doing Biology. Glenview, IL: Harper Collins.

    Alguns artigos cientficos:

    Gray, M. W., and Doolittle, W. F. 1982. Has the endosymbiont hypothesis been proven? Microbiological Reviews. 46: 1-42.

    Gray, M. W. 1983. The bacterial ancestry of plastids and mitochondria. BioScience. 33: 693-699.

    Margulis, L. 1970. Origin of Eukaryotic Cells. New Haven, CT:Yale University Press.

    Sagan, L. 1967. On the origin of mitosing cells. Journal of Theoretical biology. 14: 225-274.

    http://www1.umn.edu/ships/db/margulis.htmsaberciencia.tecnico.ulisboa.pt