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633 George Berkeley scientiæ zudia, São Paulo, v. 8, n. 4, p. 633-76, 2010 O analista: ou um discurso dirigido a um matemático infiel 1 Onde se examina se o objeto, os princípios e as inferências da análise moderna são mais distintamente concebidos ou mais obviamente deduzidos do que os mistérios religiosos e as questões de fé Pelo autor de O diminuto filósofo 2 “Primeiro retirai a trave de vosso próprio olho e, então, enxergareis de modo mais claro para que possais retirar o cisco do olho de vosso irmão”(Mateus, 7, 5). mdccxxxiv

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    scienti zudia, So Paulo, v. 8, n. 4, p. 633-76, 2010

    George Berkeley

    scienti zudia, So Paulo, v. 8, n. 4, p. 633-76, 2010

    O analista:ou um discurso dirigido a um matemtico infiel1

    Onde se examina se o objeto, os princpios e as inferncias da

    anlise moderna so mais distintamente concebidos ou mais

    obviamente deduzidos do que os mistrios religiosos e as questes de f

    Pelo autor de O diminuto filsofo2

    Primeiro retirai a trave de vosso prprio olho e, ento, enxergareis de modomais claro para que possais retirar o cisco do olho de vosso irmo(Mateus, 7, 5).

    mdccxxxiv

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    Os contedos3

    1 Presume-se que os matemticos so os grandes senhores da razo. Da a defern-cia indevida feita s suas decises naqueles assuntos sobre os quais eles no tmqualquer direito de decidir. Essa uma causa da infidelidade.

    2 Os princpios e mtodos dos matemticos devem ser examinados com a mesmaliberdade com que eles examinam os princpios e mistrios da religio. Em qualsentido e at onde se deve admitir a geometria como sendo um aperfeioamentoda mente.

    3 As fluxes tornaram-se o grande objeto e ofcio dos argutos gemetras da atuali-dade. O que so essas fluxes.

    4 Os momentos ou incrementos nascentes de quantidades fluentes so difceis deconceber. As fluxes de diferentes ordens. As segundas e terceiras fluxes so obs-curos mistrios.

    5 As diferenas, isto , os incrementos ou decrscimos infinitamente pequenos,so usadas pelos matemticos estrangeiros no lugar de fluxes ou velocidades deincrementos nascentes ou evanescentes.

    6 As diferenas de vrias ordens, isto , as quantidades infinitamente menores doque as quantidades infinitamente pequenas; e as partes infinitesimais de infini-tesimais de infinitesimais etc., sem fim nem limite.

    7 Os mistrios da f enfrentam injustamente a objeo daqueles que os admitemna cincia.

    8 Os analistas modernos supem [serem capazes de], por si prprios, estender suasvises para alm do infinito, enganados pelas suas prprias espcies e smbolos.

    9 O mtodo para encontrar a fluxo de um retngulo de duas quantidades indeter-minadas mostra-se ilegtimo e falso.

    10 A deferncia implcita dos matemticos ao eminente autor das fluxes. O anseiodeles de avanar cada vez mais rpido e ir mais alm, ao invs de estabelecer cau-telosamente e de enxergar nitidamente o seu caminho.

    11 Os momentos so de difcil compreenso. Nenhuma quantidade intermediria admitida entre uma quantidade finita e o nada sem que se admita infinitesimais.

    12 As fluxes de qualquer potncia de uma quantidade fluente. O lema pressuposto afim de examinar o mtodo para encontrar essas fluxes.

    13 A regra das fluxes de [quantidades com] potncias no obtida por meio de umraciocnio razovel.

    14 O raciocnio anterior detalhado e mostrado como sendo lgico.

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    15 Nenhuma concluso verdadeira pode ser legitimamente inferida como conse-quncia imediata de suposies inconsistentes. Devem-se observar as mesmasregras da reta razo quando os homens raciocinam seja com smbolos seja compalavras.

    16 Quando uma hiptese destruda, nenhuma consequncia de tal hiptese deveser mantida.

    17 A dificuldade de distinguir entre incrementos evanescentes e diferenas infini-tesimais. Os vrios enfoques sobre as fluxes. O grande autor, ao que tudo indica,no se satisfez com suas prprias noes.

    18 Leibniz e seus seguidores supem e, em seguida, rejeitam as quantidades infini-tamente pequenas. Nenhuma quantidade, segundo eles, maior ou menor em vir-tude da adio ou da subtrao de seu infinitesimal.

    19 As concluses devem ser provadas pelos princpios e no os princpios pelas con-cluses.

    20 O gemetra analtico considerado como um lgico e suas descobertas considera-das, no em si mesmas, mas apenas enquanto derivadas de determinados princ-pios e por meio de determinadas inferncias.

    21 Traa-se a tangente de uma parbola de acordo com o calculus differentialis. Mos-tra-se que a verdade resultado do erro e como isso ocorre.

    22 Em virtude de um erro duplo, os analistas chegam verdade, mas no cincia,ignorando o modo como chegam a suas prprias concluses.

    23 A concluso no nem evidente nem precisa, quando resulta de premissas obs-curas ou imprecisas. As quantidades finitas poderiam ser rejeitadas, assim comoas infinitesimais.

    24 Ilustra-se ainda mais a doutrina anterior.25 Observaes variadas a esse respeito.26 A partir da rea, encontra-se a ordenada por meio de incrementos evanescentes.27 No caso anterior, o suposto incremento evanescente realmente uma quantidade

    finita, destruda por uma quantidade igual com um sinal contrrio.28 O caso anterior generalizado. As expresses algbricas so comparadas a quan-

    tidades geomtricas.29 Quantidades algbricas e geomtricas correspondentes so igualadas. Mostra-se

    que a anlise no pode ser realizada sobre infinitesimais, a menos que seja tam-bm realizada sobre quantidades finitas.

    30 A eliminao de quantidades por meio dos princpios aceitos, sejam os das flu-xes sejam os das diferenas, no nem uma boa geometria nem uma boa lgica.A razo pela qual as fluxes ou as velocidades so introduzidas.

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    31 As velocidades no devem ser abstradas do tempo e do espao, nem se deve in-vestigar ou considerar suas propores com a excluso do tempo e do espao.

    32 Pontos difceis e obscuros constituem os princpios da anlise moderna e so osfundamentos sobre os quais ela est construda.

    33 Se as faculdades racionais so aperfeioadas por meio dessa analtica obscura.34 Por meio de quais passos inconcebveis se conclui que linhas finitas so propor-

    cionais a fluxes. Matemticos infiis coam um mosquito e engolem um camelo.35 Mantidos os princpios aceitos, no se pode evitar as fluxes ou os infinitesimais.

    As abstraes sutis e a metafsica geomtrica.36 Se as velocidades de quantidades nascentes ou evanescentes so realmente com-

    preendidas e representadas por meio de linhas e espcies finitas.37 Signos ou exponentes so bvios, mas fluxes em si mesmas no o so.38 As fluxes so as velocidades com que as diferenas infinitesimais so geradas?39 As fluxes de fluxes ou segundas fluxes devem ser concebidas como velocidades

    de velocidade ou, melhor, como velocidades de segundos incrementos nascentes?40 As fluxes so consideradas s vezes em um sentido e s vezes em outro, em al-

    guns momentos em si mesmas e em outros em seus exponentes; o resultado disso a confuso e a obscuridade.

    41 Os incrementos iscronos, quer finitos quer nascentes, so proporcionais a suasrespectivas velocidades.

    42 Supe-se que o tempo divide-se em momentos, que os incrementos so geradosnesses momentos e que as velocidades so proporcionais a esses incrementos.

    43 As fluxes segunda, terceira, quarta etc.; o que so elas, como obt-las e comorepresent-las. Essa a ideia de velocidade em um momento de tempo e em umponto do espao.

    44 Todas as ordens de fluxes so inconcebveis.45 Signos ou exponentes confundem-se com as fluxes.46 Inventa-se facilmente sries de expresses ou de sinais. Ora, concebe-se to fa-

    cilmente uma srie de velocidades puras ou de incrementos nascentes puros, cor-respondentes quelas expresses ou sinais?

    47 As celeridades so dispensadas e, no lugar delas, ordenadas e reas so introdu-zidas. As analogias e expresses, teis nas quadraturas modernas, podem, toda-via, ser inteis para capacitar-nos a conceber as fluxes. No correto aplicar asregras sem o conhecimento dos princpios.

    48 A metafsica dos analistas modernos bastante incompreensvel.49 Os analistas lidam com entidades nocionais sombrias. Sua lgica to objetvel

    quanto sua metafsica.50 As circunstncias deste escrito. Concluso. Questes.

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    1 Embora eu seja um estranho aos senhores, no desconheo, contudo, a reputaoque tendes alcanado no ramo do conhecimento que estudeis de modo peculiar. Nemdesconheo a autoridade que, por consequncia, assumis em assuntos estranhos vossaprofisso, muito menos desconheo o abuso que se reconhece que vs, juntamente commuitos outros de igual estatura, fazeis de tal autoridade indevida para enganar pessoasincautas em questes do mais alto interesse e sobre as quais vosso conhecimento ma-temtico no pode de modo algum vos qualificar como um juiz competente. A equidade,de fato, e o bom senso produzem em ns a inclinao a desprezar o juzo dos homensem questes que eles no consideraram ou examinaram. Mas a maioria daqueles quefazem a mais estridente reivindicao dessas qualidades, apesar de tudo, realizam asmesmas coisas que pareciam desprezar, revestindo-se, maneira de um uniforme, dasopinies de outros homens e colocando-se em um estado de deferncia incondicionalao vosso juzo, cavalheiros, que presumidamente deveis ser, entre todos os homens, ossupremos senhores da razo, visto que sois bastante versados em diferentes ideias ejamais admitis qualquer coisa com base na confiana, mas sempre enxergais clara-mente vosso caminho, como ocorre com os homens cujo constante ofcio deduzir averdade por meio da mais exata inferncia e a partir dos mais evidentes princpios.Com esses preconceitos em mente, eles se submetem a vossas decises em questesem que no tendes o direito de decidir. E esse o caminho mais curto para se produzirinfiis, segundo o que me foi informado de modo fidedigno.

    2 Enquanto, ento, se supe que podeis compreender mais distintamente, conside-rar mais rigorosamente, inferir mais corretamente e concluir mais precisamente doque outros homens, e que, portanto, sois menos religiosos porque sois mais judicio-sos, reivindicarei o privilgio de um livre pensador e tomarei a liberdade de indagarsobre o objeto, os princpios e os mtodos de demonstrao admitidos pelos matem-ticos da atualidade, com a mesma liberdade que presumis tratar os princpios e os mis-trios da religio, para que, no final, todos os homens possam perceber qual direitopossus de conduzi-los ou quais motivaes outros teriam para seguir-vos. Trata-se deuma antiga observao que a geometria uma excelente lgica. E preciso reconhecerque, quando as definies so claras, quando os postulados no podem ser recusadosnem os axiomas, negados, quando, aps contemplar e comparar distintamente as fi-guras, as propriedades delas so derivadas por meio de uma cadeia contnua e bemconectada de consequncias, sem jamais perder de vista os objetos e sempre manten-do a ateno fixada sobre eles, adquire-se com isso um hbito de raciocnio minucio-so, exato e metdico, hbito esse que fortalece e ilumina a mente e torna-se de uso

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    geral na investigao da verdade ao ser transferido para outros assuntos. Mas, por ora,valeria a pena considerar at que ponto nossos gemetras analticos se afastam disso.

    3 O mtodo das fluxes a chave geral com o auxlio da qual os modernos matemti-cos abrem os segredos da geometria e, consequentemente, da natureza. E, visto que eleos capacitou a superar to notavelmente os antigos na descoberta de teoremas e na so-luo de problemas, o seu exerccio e a sua aplicao tornaram-se o principal ofcio,seno o nico, a que se dedicam todos aqueles que atualmente se passam por profun-dos gemetras. Mas, do mesmo modo como indagarei com extrema imparcialidade seesse mtodo claro ou obscuro, consistente ou inconsistente (repugnant), demonstra-tivo ou precrio, submeto minha investigao ao vosso juzo e ao de qualquer outroleitor sincero. Supe-se que as linhas so geradas 44444 pelo movimento de pontos, que os planos, pelo movimento de linhas, eque os slidos, pelo movimento de planos. E, em virtude de que quantidades geradasem tempos iguais resultam maiores ou menores de acordo com a maior ou menor velo-cidade com a qual aumentam e so geradas, encontrou-se um mtodo para determi-nar as quantidades a partir das velocidades dos movimentos que as geraram. Tais ve-locidades so chamadas fluxes e as quantidades geradas so chamadas quantidadesfluentes. Afirma-se que essas fluxes so quase como incrementos das quantidadesfluentes, geradas nas menores partculas iguais de tempo e que esto, precisamente,na proporo primeira dos incrementos nascentes ou na proporo ltima dos incre-mentos evanescentes. s vezes, em lugar das velocidades, consideram-se, sob o nomede momentos, os incrementos ou decrscimos momentneos de quantidades fluen-tes indeterminadas.

    4 No devemos entender os momentos como sendo partculas finitas. Essas partcu-las, dizem, no so momentos, mas quantidades geradas a partir de momentos, quedefinitivamente so apenas os princpios nascentes de quantidades finitas. Diz-se queo menor dos erros, na matemtica, no deve ser negligenciado e que as fluxes sovelocidades no proporcionais aos incrementos finitos, ainda que esses sejam muitopequenos, mas apenas aos momentos ou incrementos nascentes, dos quais se consi-dera apenas a proporo, no a magnitude. E das fluxes acima existem outras fluxes;essas fluxes de fluxes so chamadas segundas fluxes. E as fluxes dessas segundasfluxes so chamadas terceiras fluxes e assim por diante, quartas, quintas, sextas etc.,ad infinitum. Ora, assim como nossos sentidos ficam fatigados e perplexos (strainedand puzzled) com a percepo de objetos extremamente diminutos, a imaginao fa-culdade essa derivada dos sentidos fica ainda mais fatigada e perplexa na tentativa deformar ideias claras das menores partculas de tempo ou dos mnimos acrscimos ne-

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    las gerados; e muito mais ainda para compreender os momentos ou esses incrementosdas quantidades fluentes em statu nascenti, na sua exata origem ou incio da existncia,antes de tornarem-se partculas finitas. Parece ainda mais difcil conceber velocida-des abstradas de tais imperfeitas entidades nascentes. Mas as velocidades das veloci-dades as segundas, terceiras, quartas, quintas etc. velocidades , se eu no estiverenganado, excedem todo o entendimento humano. Quanto mais a mente analisa e per-segue essas ideias fugidias tanto mais ela fica perdida e desnorteada. Os objetos, emprincpio fugazes e diminutos, logo somem de vista. Com certeza, seja em qual sentidofor, uma segunda ou terceira fluxo parece um obscuro mistrio. A velocidade incipien-te de uma velocidade incipiente, o aumento nascente de um aumento nascente, isto ,de uma coisa que no tem magnitude, tome-se isso sob qualquer perspectiva que sequeira tomar, a menos que eu esteja enganado, a sua concepo clara mostrar-se-impossvel. Se isso de fato assim ou no, eu apelo ao exame (trial) de todo leitorpensante. E se uma segunda fluxo for inconcebvel, o que devemos pensar das tercei-ras, quartas, quintas fluxes e assim por diante indefinidamente?

    5 Mesmo entre ns h quem suponha que os matemticos estrangeiros procedem deuma maneira menos exata, talvez, e geomtrica, embora mais inteligvel. Ao invs dequantidades fluentes e suas fluxes, eles consideram as quantidades finitas variveiscomo aumentando ou diminuindo pela contnua adio ou subtrao de quantidadesinfinitamente pequenas. Ao invs das velocidades com as quais os incrementos sogerados, eles consideram os prprios incrementos ou diminuies, que chamam dife-renas e que supem serem infinitamente pequenos. A diferena de uma linha umalinha infinitamente pequena; de um plano, um plano infinitamente pequeno. Eles su-pem que as quantidades finitas consistem de partes infinitamente pequenas; que ascurvas consistem de polgonos cujos lados so infinitamente pequenos e determinama curvatura da linha pelos ngulos que [os lados] formam uns com os outros. Ora, con-ceber uma quantidade infinitamente pequena, isto , infinitamente menor que qual-quer quantidade sensvel ou imaginvel ou, ainda, a menor de todas as magnitudesfinitas, confesso que est acima da minha capacidade. Mas conceber uma parte de talquantidade infinitamente pequena que fosse ainda infinitamente menor que ela e que,consequentemente, embora multiplicada infinitamente, jamais fosse igual menorde todas as quantidades finitas, suspeito que seja uma dificuldade infinita para qual-quer homem algo que ser admitido por quem declara honestamente o que pensa,contanto que realmente pense e reflita, e no aceite nada com base na confiana.

    6 E, entretanto, no calculus differentialis, mtodo que serve para os mesmos propsi-tos e objetivos que o mtodo das fluxes, nossos analistas modernos no se contentam

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    em considerar somente as diferenas de quantidades finitas. Eles tambm conside-ram as diferenas daquelas diferenas e as diferenas das diferenas das primeirasdiferenas, e assim por diante ad infinitum. Dito de outra maneira, eles consideramquantidades infinitamente menores que a menor quantidade discernvel, e outras in-finitamente menores que aquelas infinitamente pequenas; e ainda outras infinitamentemenores que os infinitesimais precedentes e, assim por diante, sem fim nem limite,de tal modo que devemos admitir uma infinita sucesso de infinitesimais, cada qualinfinitamente menor que os anteriores e infinitamente maior que os posteriores. Comoexistem primeiras, segundas, terceiras, quartas, quintas etc. fluxes, tambm existemprimeiras, segundas, terceiras, quartas etc. diferenas, em uma progresso infinitapara o nada, do qual sempre vos aproximais sem nunca l chegar. E (o que mais estra-nho) ainda que tomeis um milho de milhes daqueles infinitesimais, supondo quecada qual seja infinitamente maior do que qualquer outra magnitude real, e que se osadicionais menor quantidade dada, isso em nada ser maior. Pois esse um dos mo-destos postulata dos nossos matemticos modernos, e constitui uma pedra angular ouuma base para as suas especulaes.

    7 Afirmo que certos homens rigorosos que exigem provas na religio, que no pre-tendem acreditar em nada alm do que podem ver, supem e acreditam em todos essespontos. No se passar por algo completamente inexplicvel que homens versados ex-clusivamente em questes claras houvessem de admitir com dificuldade pontos obs-curos. Mas quem puder digerir uma segunda ou uma terceira fluxo, uma segunda ouuma terceira diferena, no precisa ser, penso eu, escrupuloso em matrias da teolo-gia. H um pressuposto natural segundo o qual as faculdades dos homens so simila-res. com base nessa suposio que eles tentam argumentar e convencer uns aos ou-tros. O que, portanto, pode parecer comprovadamente impossvel e inconsistente paraalgum deve s-lo presumidamente de maneira idntica para outrem. Mas com quearremedo de razo poderia um homem pretender dizer que os mistrios no devem serobjetos de f e, ao mesmo tempo, ele prprio admitir que tais mistrios obscuros se-jam objetos da cincia?

    8 Deve-se, de fato, reconhecer que os matemticos modernos no consideram essespontos como mistrios, mas como concebidos claramente e dominados por suas men-tes capazes de total compreenso. Eles no tm escrpulos em dizer que, com a ajudadessa nova analtica, podem penetrar no prprio infinito, que podem at mesmo es-tender sua viso para alm do infinito, que sua arte compreende no somente o infini-to, mas o infinito do infinito (como eles o expressam) ou uma infinidade de infinitos.

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    Mas, apesar de todas essas asseres e pretenses, pode-se justificadamente questio-nar se eles no esto sendo enganados e iludidos de maneira admirvel por seus sig-nos, smbolos ou espcies (species) peculiares, assim como outros homens em outrasinvestigaes so frequentemente enganados por palavras ou termos. Nada mais f-cil do que inventar expresses ou notaes para fluxes e infinitesimais de primeira,segunda, terceira, quarta e subsequentes ordens, prosseguindo com .,,, etcxxxx , oudx, ddx, dddx, ddddx etc. sem fim nem limite de forma regular. Essas expresses sorealmente claras e distintas, e a mente no encontra dificuldade para conceber o pros-seguimento delas para alm de quaisquer limites assinveis. Mas, se removermos ovu e olharmos por debaixo dele, se, colocando de lado as expresses, voltarmos nossaateno para considerar as prprias coisas que se supem serem expressas ou sinali-zadas por elas, descobriremos um grande vazio, muita escurido e confuso, ou me-lhor, se eu no estiver equivocado, descobriremos impossibilidades e contradiesdiretas. Se esse ou no o caso, esto convidados a examinar e a julgar por si prpriostodos os leitores pensantes.

    9 Tendo considerado o objeto, passo a considerar os princpios dessa nova anliseconstitudos de momentos, fluxes ou infinitesimais. Se, ao longo dessas considera-es, ficar aparente que vossos pontos capitais, dos quais se supe depender o resto,incluem erros e falsos raciocnios, ento, seguir-se- que vs algum que se emba-raa ao conduzir a si mesmo no podeis com decncia alguma colocar-vos como guiade outros homens. O principal ponto do mtodo das fluxes obter a fluxo ou o mo-mento do retngulo ou o produto de duas quantidades indeterminadas, visto que daso derivadas regras para a obteno das fluxes de outros produtos ou potncias, se-jam quais forem os coeficientes ou exponentes, inteiros ou fracionrios, racionais ouirracionais (surd). Ora, poder-se-ia pensar que esse ponto fundamental foi distingui-do muito claramente, considerando-se o quanto se constri sobre ele e que sua influ-ncia estende-se atravs de toda a anlise. Mas que se deixe o leitor julgar. Eis o que dado como sendo uma demonstrao . Supe-se que o produto ou o retngulo AB aumenta por um movimento con-tnuo e que os incrementos momentneos dos lados A e B so a e b. Quando os lados A eB esto incompletos, faltando-lhes a metade de seus momentos, o retngulo

    bBaA21

    21 , isto , ab+bAaBAB

    41

    21

    21

    .

    E quando os lados A e B so aumentados nas outras duas metades dos seus momentos, oretngulo torna-se

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    b+Ba+A21

    21

    ou ab+bA+aB+AB41

    21

    21

    .

    Do ltimo retngulo subtrai-se o primeiro, e a diferena restante ser aB + bA. Por-tanto, o incremento do retngulo gerado pelos incrementos inteiros a e b aB + bA.Q.E.D. Mas bvio que o mtodo direto e verdadeiro para obter o momento ou incre-mento do retngulo AB tomar os lados acrescidos de seus incrementos inteiros emultiplic-los um pelo outro, A + a vezes B + b, cujo produto resultante AB + aB + bA + ab o retngulo aumentado. Se subtrairmos AB desse retngulo, o resto aB + bA + ab ser oseu incremento verdadeiro, excedendo na quantidade ab aquele que fora obtido pelomtodo anterior, ilegtimo e indireto. E isso vale universalmente sejam as quantida-des a e b o que forem, grandes ou pequenas, finitas ou infinitesimais, incrementos,momentos ou velocidades. De nada adianta dizer que ab uma quantidade excessiva-mente pequena, visto que nos declarado que in rebus mathematicis errores qum miniminon sunt contemnendi (em assuntos matemticos, por menores que sejam, os erros noso negligenciveis) .

    10 Somente a obscuridade do assunto teria encorajado ou induzido o grande eminen-te do mtodo fluxionrio a impor a seus seguidores tal raciocnio como sendo uma de-monstrao, e somente uma deferncia implcita autoridade mov-los-ia a admiti-lo. O caso realmente difcil. Nada podeis fazer at que tenhais conseguido livrar-vosda quantidade ab. Para esse propsito, a noo de fluxo alterada, colocada sob lu-zes diversas; confundem-se pontos que, na condio de primeiros princpios, deveriamser claros e tornam-se ambguos termos que deveriam ser usados de maneira fixa. Mas,apesar de toda essa destreza e habilidade, o propsito de livrar-se de ab no pode serobtido por meio de um raciocnio legtimo. Se um homem, por mtodos no geomtri-cos nem demonstrativos, convence-se da utilidade de certas regras que, em seguida,prope a seus discpulos como verdades indubitveis e que ele prprio se encarrega dedemonstrar de maneira sutil com a ajuda de noes refinadas e intrincadas, no dif-cil supor que seus discpulos, para pouparem-se do aborrecimento de pensar, incli-nem-se a confundir a utilidade de uma regra com a certeza de uma verdade e a aceitaruma pela outra especialmente, se eles forem homens mais acostumados a computardo que a pensar, mais ansiosos por avanar cada vez mais rpido e mais distante do quedispostos a estabelecer cautelosamente e a enxergar nitidamente o seu caminho.

    11 Os pontos ou os simples limites de linhas nascentes so indubitavelmente iguais,pois, no tendo mais magnitude do que os demais, um limite como tal no quantidade.Se por momento significais algo mais do que o prprio limite inicial, ele deve ser ou

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    uma quantidade finita ou um infinitesimal. Mas todas as quantidades finitas so ex-pressamente excludas da noo de momento. Portanto, o momento deve ser uminfinitesimal. E, de fato, embora se tenha empregado muitos artifcios para escapar ouevitar a admisso de quantidades infinitamente pequenas, nenhum deles parece tersido eficaz. At onde posso ver, no podeis admitir nenhuma quantidade como ummeio-termo entre uma quantidade finita e o nada sem admitir infinitesimais. Um in-cremento gerado em uma partcula finita de tempo em si uma partcula finita e, por-tanto, no pode ser um momento. Por isso, deveis tomar uma parte infinitesimal detempo para nela gerar vosso momento. Afirma-se que no se considera a magnitudedo momento e, todavia, supe-se dividir esses mesmos momentos em partes. Isso no fcil de ser concebido, no mais do que a razo pela qual se toma quantidades meno-res do que A e B para obter o incremento de AB, um procedimento isto deve-se reco-nhecer cuja causa final ou cujo motivo bastante bvio, mas cuja razo exata e legti-ma no to bvia nem to fcil de explicar, como seria mostrar que ele geomtrico.

    12 Deriva-se do princpio precedente, assim demonstrado, a regra geral para encon-trar a fluxo de uma quantidade fluente de qualquer potncia . Mas, visto que parece ter havido algum escrpulontimo em relao demonstrao precedente ou conscincia do seu defeito, e vistoque encontrar a fluxo de uma dada potncia era um ponto de primeira importncia,julgou-se ento adequado demonstrar o mesmo de uma maneira diferente e indepen-dente daquela demonstrao. Mas, se esse outro mtodo mais legtimo e conclusivodo que o anterior, vou agora examinar. Para tanto, tomarei como premissa o lema se-guinte: Se com o propsito de demonstrar alguma proposio, admite-se um certoponto, em virtude do qual outros pontos so alcanados, e se tal ponto admitido forposteriormente eliminado ou rejeitado por uma suposio contrria, ento, nesse caso,todos os outros pontos alcanados por intermdio dele e consequentes a ele devemtambm ser eliminados ou rejeitados, de tal modo que no devem ser mais admitidosou aplicados no restante da demonstrao. Isso to claro que no necessita de prova.

    13 Ora, o outro mtodo para obter uma regra destinada a encontrar a fluxo de [quan-tidades com] qualquer potncia o seguinte. Seja x a quantidade que flui uniformemen-te, e seja xn a fluxo a ser encontrada. No mesmo tempo em que x fluindo torna-se x + o,a [quantidade com] potncia xn torna-se (x + o)n, isto , pelo mtodo das sries infinitas,

    .2

    etc+xnnn

    +xn+x 2n1nn ,

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    16 Se assumis de incio que uma quantidade no aumenta em nada e que, na expres-so +x , nada significa, com base nessa suposio, uma vez que no h incrementoda raiz, no haver incremento da potncia e, consequentemente, na srie das potn-cias do binmio, no haver nenhum de seus membros constituintes, exceto o primei-ro; por consequncia, mediante tal mtodo, jamais podeis obter legitimamente a vossaexpresso de uma fluxo. Portanto, estais procedendo de um modo falacioso, progre-dindo at um certo ponto sob a suposio de um incremento e mudando em seguida,subitamente, para outra suposio segundo a qual no haveria nenhum incremento.Poderia parecer uma grande habilidade fazer isso em um determinado ponto ou pero-do. Pois, se essa segunda suposio tivesse sido feita antes da diviso comum por ,tudo teria esvanecido de imediato e nada tereis obtido com vossa suposio. Ao passoque, por meio desse artifcio de primeiro dividir e depois mudar vossa suposio,retendes 1 e nxn-1. Mas, apesar de todo esse discurso para encobri-la, a falcia ainda amesma. Pois, se isso feito mais cedo ou mais tarde, uma vez que se faa a segundasuposio ou assuno, no mesmo instante a primeira assuno e tudo o que obtivestespor meio dela encontram-se destrudos e eliminados conjuntamente. E isso univer-salmente verdadeiro, qualquer que seja o assunto, em todos os ramos do conhecimen-to humano; em qualquer um deles, creio que os homens dificilmente admitiriam umraciocnio tal como esse que na matemtica aceito como uma demonstrao.

    17 Pode no ser completamente incorreto observar que o mtodo para encontrar afluxo de um retngulo de duas quantidades fluentes, tal como se apresenta no Dequadratura curvarum, difere do acima mencionado retirado do segundo livro dos Prin-cipia, e que , na prtica, idntico quele usado no Calculus differentialis . Pois a suposio de que uma quantidade diminuiuinfinitamente e, portanto, rejeitada, na verdade a rejeio de um infinitesimal; e,de fato, isso requer uma capacidade de discernimento extraordinariamente aguda, afim de distinguir entre incrementos evanescentes e diferenas infinitesimais. Talvezse possa dizer que uma quantidade ao ser infinitamente diminuda torna-se nada e,enquanto nada, rejeitada. Mas, de acordo com os princpios aceitos, bvio que ne-nhuma quantidade geomtrica, por meio de qualquer diviso ou subdiviso que seja,pode ser esgotada ou reduzida a nada.6 Considerando as vrias artes e truques usadospelo eminente autor do mtodo fluxionrio, os vrios enfoques que ele deu a suas flu-xes e, finalmente, as diferentes maneiras que ele tentou demonstrar o mesmo ponto,poder-se-ia pensar que ele mesmo suspeitava da exatido de suas demonstraes eque no estava satisfeito o bastante com nenhuma noo para aderir-lhe firmemente.Isso, de qualquer maneira, deixa claro que ele se sentia satisfeito com respeito a certospontos e que, no entanto, no se encarregaria de demonstr-los aos demais

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    respondncia a Collins de 8 de novembro de 1676>.7 Se essa satisfao procede de m-todos experimentais (tentative) ou de indues, algo que frequentemente os matem-ticos tm admitido (por exemplo, Dr. Wallis em seu Arithmetic of infinites), isso noposso pretender determinar. Mas, qualquer que seja o caso com respeito ao nosso au-tor, parece que seus seguidores mostram-se mais vidos em aplicar seus mtodos doque em examinar seus princpios com preciso.

    18 curioso observar a sutileza e a destreza com que esse grande gnio combate umadificuldade insupervel, e atravs de quais labirintos ele se esfora para escapar dadoutrina dos infinitesimais algo que se lhe impe quer queira quer no, tanto que admitida e acolhida por outros sem a mnima repugnncia. No calculus differentialis,Leibniz e seus seguidores no tm qualquer escrpulo para, em primeiro lugar, supore, em seguida, rejeitar quantidades infinitamente pequenas, com uma clareza de com-preenso e uma exatido de raciocnio que pode ser discernida por qualquer homempensante isento de preconceitos. A noo ou ideia de uma quantidade infinitesimal,enquanto um simples objeto apreendido pela mente, j foi considerado acima . Agora, farei observaes somente acerca do mtodo de eliminar tais quantida-des, o que se realiza sem a menor cerimnia. Assim como no caso das fluxes, o pontode maior importncia e preparatrio a todo o restante era encontrar a fluxo do produ-to de duas quantidades indeterminadas, no calculus differentialis (mtodo que se supeter sido apropriado do primeiro com algumas pequenas alteraes),8 o ponto princi-pal obter a diferena daquele produto. A regra agora empregada obtida com a rejei-o do produto ou retngulo da diferena. E, em geral, supe-se que nenhuma quanti-dade maior ou menor com a adio ou a subtrao de seu infinitesimal e que,consequentemente, nenhum erro pode surgir dessa rejeio de infinitesimais.

    19 No entanto, parece que, sejam quais forem os erros admitidos nas premissas, er-ros proporcionais aparecero na concluso, sejam eles finitos ou infinitesimais, e quea krbeia da geometria exigir que nada seja negligenciado ou rejeitado.9 Em res-posta a isso, direis talvez que as concluses so rigorosamente verdadeiras e que, por-tanto, tambm devem assim ser os princpios e mtodos dos quais so derivados. Masessa maneira invertida de demonstrar vossos princpios a partir de vossas conclusestanto vos peculiar, cavalheiros, quanto contrria s regras da lgica. A verdade daconcluso no provar a verdade nem da forma nem da matria de um silogismo, namedida em que a ilao poderia estar errada ou as premissas serem falsas e, apesar detudo, a concluso ser verdadeira, embora no em virtude de tal ilao ou de tais pre-missas. Digo que em qualquer outra cincia os homens provam suas concluses pormeio de seus princpios, e no os princpios por meio das concluses. Mas, se na vossa

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    cincia permitis essa maneira antinatural de proceder, a consequncia ser que devereisadotar a induo e dizer adeus demonstrao. Se aceitardes isso, vossa autoridadepara guiar-nos em questes que envolvem a razo e a cincia no perdurar por muitomais tempo.

    20 No levanto qualquer controvrsia sobre vossas concluses, mas somente sobre algica e o mtodo por vs adotado. Como fazeis as vossas demonstraes? De quaisobjetos tratais? Concebei-os claramente? Com base em quais princpios procedeis?Quo slidos eles podem ser e de que modo os aplicais? Deve ser relembrado que noestou preocupado com a verdade de vossos teoremas, mas somente com o modo deobt-los; se ele legtimo ou ilegtimo, claro ou obscuro, cientfico ou por tentativas(tentative). Para evitar toda possibilidade de engano a meu respeito, peo-vos permis-so para repetir e insistir que considero o gemetra analtico como sendo apenas umlgico, isto , considero-o na medida em que ele raciocina e argumenta; considerosuas concluses matemticas no em si mesmas, mas a partir de suas premissas; e noas considero como verdadeiras ou falsas, teis ou insignificantes, mas como conse-quncias derivadas desses princpios, por meio daquelas inferncias. E, j que talvezpossa parecer um paradoxo inexplicvel que matemticos deduzam proposies ver-dadeiras de princpios falsos, que estejam corretos a respeito da concluso ainda queerrados a respeito das premissas, esforar-me-ei particularmente para explicar porque isso pode acontecer e para mostrar como o erro pode produzir verdade, emborano possa produzir cincia.

    21 Portanto, a fim de esclarecer esse ponto, suponhamos, por exemplo, que seja pre-ciso traar a tangente de uma parbola, e examinemos o desenrolar dessa tarefa tal

    como ela seria realizada com base nas dife-renas infinitesimais. Seja AB uma curva, aabscissa AP = x, a ordenada PB = y, a di-ferena da abscissa PM = dx, a diferena daordenada RN = dy. Ora, supondo que a cur-va seja um polgono e, consequentemente,que BN, o incremento ou diferena da cur-va, seja uma linha reta coincidindo com atangente e que o tringulo diferencial BRNseja similar ao tringulo TPB, [ento] a sub-tangente PT constitui a quarta proporcio-nal10 para RN : RB : PB, isto , para dy : dx : y.

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    isto ,

    2y

    2 nn+yn=z+n

    que, por reduo, d

    2y2y

    dydy=

    nn=z Q.E.D.

    23 Ora, observo, em primeiro lugar, que a concluso resulta correta, no porque orejeitado quadrado de dy era infinitamente pequeno, mas porque esse erro foi com-pensado por outro erro igual e contrrio. Observo, em segundo lugar, que seja l o quefor rejeitado, to pequeno quanto for, desde que seja real e, consequentemente, pro-duza um erro real nas premissas, produzir um erro real e proporcional na concluso.Vossos teoremas, portanto, no podem ser precisamente verdadeiros nem vossos pro-blemas precisamente solucionados, em virtude de que as prprias premissas no soprecisas, sendo uma regra da lgica que conclusio sequitur partem debiliorem (a conclu-so segue-se da parte mais fraca). Assim, em terceiro lugar, observo que, quando aconcluso evidente e as premissas so obscuras, ou a concluso precisa e as premis-sas so imprecisas, podemos seguramente pronunciar que o fato de tal concluso noser nem evidente nem precisa no se deve a essas premissas ou princpios obscuros eimprecisos, mas deve-se a certos outros princpios que talvez o prprio demonstradorjamais conheceu ou pensou a respeito. Em ltimo lugar, observo que, no caso de asdiferenas serem supostas como quantidades finitas, mesmo que sejam suficiente-mente grandes, a concluso apesar disso resultar no mesmo, pois as quantidades re-jeitadas so legitimamente desprezadas no pela sua pequenez, mas por outra razo, asaber, por causa dos erros contrrios que se destroem mutuamente e, assim, no con-junto, nada realmente rejeitado, apesar da aparente eliminao. Essa razo igual-mente vlida com respeito tanto s quantidades finitas quanto s infinitesimais, tantocom respeito s grandes quanto s pequenas, tanto a um p ou a uma jarda quanto aoincremento mais minsculo.

    24 Para ilustrar mais completamente esse ponto, eu o considerarei sob outra luz e,procedendo com quantidades finitas at a concluso, farei uso somente de um infini-tesimal. Suponha-se que a linha reta MQ corta a curva AT nos pontos R e S. Suponha-seLR ser uma tangente no ponto R, AN a abscissa e NR e OS as ordenadas. Seja AN pro-

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    O analista

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    longada at O, e RP traada paralelamente aNO. Suponha-se AN = x, NR = y, NO = v,PS = z, a subsecante MN = s. Seja a equa-o xx=y a expresso da natureza da cur-va. Supondo que y e x sejam aumentados pe-los seus incrementos finitos, obtemos

    y + z = xx + 2xv + vv;

    donde, subtraindo a primeira equao, re-sultar z = 2xv + vv. Em razo da semelhanade tringulos

    PS : PR :: NR : NM, isto ,

    z

    vy=syvz :::: ;

    donde, se substituirmos seus valores para y e z, obtemos

    v+x

    xx=s=

    vv+xv

    vxx

    22.....

    Supondo NO diminuir infinitamente, a subsecante NM, nesse caso, coincidir com asubtangente NL, e v, como um infinitesimal, pode ser rejeitado. Disso se segue que

    22xx

    =xx

    =NL=s ,

    que o valor verdadeiro da subtangente. Visto que esse resultado foi obtido medianteum erro somente, isto , rejeitando-se somente um nico infinitesimal, pode parecerque contrariando o que foi dito acima , mesmo que uma diferena ou quantidadeinfinitesimal seja negligenciada ou desprezada, a concluso pode ser precisamenteverdadeira, embora no haja, como no primeiro caso, erro duplo ou retificao de umerro pelo outro. Mas, se esse ponto for profundamente considerado, descobriremosque h ainda ali um erro duplo, um compensando ou retificando o outro. Pois, em pri-meiro lugar, supe-se que quando NO diminui infinitamente ou torna-se um infini-tesimal, ento a subsecante NM torna-se igual subtangente NL. Mas isso claramenteum erro, pois evidente que, como uma secante no pode ser uma tangente, da mesmamaneira, uma subsecante no pode ser uma subtangente. Por menor que seja a dife-rena, sempre haver ainda uma diferena. E se NO infinitamente pequena, haver

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    George Berkeley

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    ainda uma diferena infinitamente pequena entre NM e NL. Portanto, NM ou S era muitopequena para vossa suposio (quando o supusestes igual a NL), e esse erro foi com-pensado por um segundo erro contido na eliminao de v; e esse ltimo erro deu a s umvalor maior do que o seu verdadeiro valor, valor com qual s substituiu o valor dasubtangente. Esse o verdadeiro estado dessa situao, por mais disfarado que eleesteja. E, na realidade, a isso corresponde e, no fundo, a mesma coisa que se preten-dssemos encontrar, a partir da equao da curva e da semelhana de tringulos, asubtangente mediante, primeiro, a busca de uma expresso geral para todas as subse-cantes e, ao reduzir a subtangente a essa regra geral, ento, consider-la como sendo asubsecante quando v esvanece ou reduz-se a nada.

    25 De um modo geral, observo que, primeiro, v nunca pode ser nada na medida em queh uma secante. Segundo, que a mesma linha no pode ser ambas, a tangente e a secan-te. Terceiro, que, quando v ou NO esvaece, PS e SR tambm esvae-cem, e com eles [esvaece] a proporcionalidade dos tringulos similares. Consequen-temente, toda a expresso, que foi obtida a partir dessa similaridade e nela est baseada,esvaece quando v esvaece. Quarto, que o mtodo de encontrar secantes ou expressesde secantes, por mais geral que seja, no pode, em um sentido comum, estender-senem sequer um pouco mais alm [em sua aplicao] que a uma secante qualquer: e,como ele necessariamente supe tringulos semelhantes, no se pode supor que ele seaplique onde no existem tringulos semelhantes. Quinto, que a subsecante ser sem-pre menor do que a subtangente e jamais poder coincidir com ela. Admitir tal coin-cidncia seria um absurdo, pois seria supor que a mesma linha corta e no corta aomesmo tempo outra linha dada, o que uma contradio manifesta, tanto que subvertea hiptese e d a demonstrao de sua falsidade. Sexto, se isso no for admitido, exijouma razo por que qualquer outra demonstrao apaggica, ou demonstrao adabsurdum, seria mais admissvel na geometria do que aquela, ou que alguma diferen-a real seja assinalada entre aquela demonstrao e as outras desse ltimo gnero.Stimo, observo que sofstico supor NO ou RP, PS, e SR serem realmente linhas finitasdestinadas a formar o triangulo RPS e, assim, obter as propores por meio dos trin-gulos semelhantes, mas logo em seguida supor no existirem tais linhas nem, conse-quentemente, os tringulos semelhantes, e, apesar disso, reter a consequncia da pri-meira suposio, mesmo aps tal suposio ter sido destruda por uma suposio emcontrrio. Oitavo, embora, no presente caso, a verdade possa ser obtida por uma supo-sio inconsistente, essa verdade no foi, no entanto, demonstrada. Tal mtodo noest em conformidade com as regras da lgica e com a reta razo. Qualquer que seja suautilidade, deve-se consider-lo somente como uma suposio, como um truque, umahabilidade ou, de preferncia, um artifcio, mas jamais uma demonstrao cientfica.

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    quantidade geomtrica, e o terceiro, contendo as potncias do incremento, exprimiro espao curvilneo ou o terceiro membro da quantidade geomtrica. Essa sugestopode talvez ser mais amplamente estendida e aplicada a outros bons propsitos, porqualquer um com tempo disponvel e curiosidade para tais assuntos. O uso que delafao destina-se a mostrar que a anlise no pode ser realizada sobre aumentos ou dife-renas, a menos que, necessariamente, seja realizada tambm sobre quantidadesfinitas, sejam elas to grandes quanto forem, conforme observou-se anteriormente.

    30 Portanto, mediante tudo o que podemos seguramente afirmar, parece-me que aconcluso no pode estar correta, se, para essa finalidade, alguma quantidade esvaneaou tenha que ser negligenciada, a menos que ou um erro seja compensado por outro ouque, secundariamente, do mesmo lado de uma equao, quantidades iguais sejamdestrudas por sinais contrrios, de tal modo que a quantidade que pretendemos re-jeitar seja a primeira a ser aniquilada ou, por fim, que quantidades iguais sejam sub-tradas de ambos os lados opostos. Portanto, livrar-se de quantidades em conformida-de com os admitidos princpios das fluxes ou das diferenas no nem uma boageometria nem uma boa lgica. Quando o aumento esvanece, a velocidade tambmesvanece. Afirma-se que as velocidades ou as fluxes so prim e ultim,1313131313 tal como osaumentos so nascentes e evanescentes. Tome-se, portanto, a ratio (razo) de quanti-dades evanescentes, que ser a mesma que aquela das fluxes. Ela satisfar igualmenteaos mesmos propsitos. Por que ento se introduz as fluxes? No para evitar ou, depreferncia, para mitigar o uso de quantidades infinitamente pequenas? Porm, notemos nenhuma noo por meio da qual conceber e medir os vrios graus de velocida-de alm daquelas do espao e do tempo; ou, quando so dados os tempos, nada alm doespao. Nem sequer temos qualquer noo de velocidade que prescinda de tempo e deespao. Ento, quando se supe um ponto mover-se em um tempo dado, no temosnoo de nenhuma velocidade maior ou menor ou de propores entre as velocidades,mas somente de linhas maiores ou menores e de propores entre tais linhas geradasem intervalos iguais de tempo.

    31 Um ponto pode ser o limite de uma linha; uma linha pode ser o limite de um plano;um momento pode terminar um tempo. Mas de que modo podemos ns conceber umavelocidade com a ajuda de tais limites? Ela necessariamente implica ambos, tempo eespao, e no pode ser concebida sem eles. Se as velocidades de quantidades nascentese evanescentes, isto , abstradas de tempo e espao, no podem ser compreendidas,como podemos ns compreender e demonstrar suas propores ou considerar suasrationes primae e ultimae (razes primeiras e ltimas)? Pois, considerar a proporo ouratio das coisas implica que tais coisas tenham magnitude, que se possa medir tais mag-

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    nitudes e conhecer as suas relaes mtuas. Mas, uma vez que no haja medida de ve-locidade exceto pelo tempo e pelo espao e que a proporo das velocidades seja com-posta somente da proporo direta dos espaos e da proporo inversa (reciprocal) dostempos, no se segue que falar em investigar, obter e considerar as propores de ve-locidades, excluindo-se o tempo e o espao, seja falar de maneira ininteligvel?

    32 Mas, no uso e aplicao das fluxes, direis que os homens no sobrecarregam suasfaculdades para conceber precisamente as velocidades, os incrementos, os infinitesi-mais acima mencionados ou qualquer outra ideia de uma natureza to refinada, sutil eevanescente. E, portanto, talvez sustentareis que os problemas podem ser soluciona-dos sem essas suposies inconcebveis e que, consequentemente, a doutrina dasfluxes, na sua parte prtica, permanece isenta de todas essas dificuldades. Respondoque, mesmo que no uso ou na aplicao desse mtodo no se levam em conta tais pon-tos difceis e obscuros, eles esto, entretanto, pressupostos. Eles so os fundamentossobre os quais os modernos constroem; so os princpios sobre os quais eles proce-dem na soluo de problemas e na descoberta de teoremas. Isso feito com o mtododas fluxes, bem como com todos os outros mtodos que pressupem seus respecti-vos princpios e se fundamentam neles, ainda que as suas regras possam ser pratica-das por homens que nem do ateno aos princpios nem talvez os conheam. Portan-to, da mesma maneira como um marinheiro pode aplicar na prtica certas regras de-rivadas da astronomia e da geometria, cujos princpios ele no compreende, e comoqualquer homem comum pode resolver diversas questes numricas pelas regras eoperaes comuns da aritmtica, que ele executa e aplica sem conhecer as suas razes,assim tampouco se pode negar que podeis aplicar as regras do mtodo das fluxes, quepodeis comparar e reduzir casos particulares a formas gerais; que podeis operar, cal-cular e solucionar problemas por intermdio disso, no somente sem qualquer aten-o a ou conhecimento efetivos dos fundamentos desse mtodo e dos princpios dosquais ele depende e dos quais deduzido, mas tambm sem nunca os ter consideradoou compreendido.

    33 Mas, ento, deve-se recordar que em tal caso, embora podeis passar por um artis-ta, calculador ou analista, ainda no vos podeis considerar um homem de cincia e dedemonstrao. Nenhum homem, em virtude de ser versado em tal anlise obscura,imaginaria que suas faculdades racionais so mais desenvolvidas do que as de qual-quer outro homem que as exercitaram de diferentes maneiras e em diferentes assun-tos; muito menos se erige como um juiz ou um orculo a respeito de assuntos sem ne-nhum tipo de conexo ou dependncia dessas espcies, smbolos ou signos, no manejodos quais ele muito versado e experiente. Apesar de que sois um hbil calculador ou

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    analista, no podeis, por isso, ser considerado hbil em anatomia; ou, vice-versa, umhomem capaz de dissecar com arte pode ser, no entanto, ignorante em sua arte de cal-cular. Ambos, apesar de suas habilidades peculiares em suas respectivas artes, podemigualmente no ser qualificados para decidir sobre lgica, metafsica, tica ou religio.E isso seria verdadeiro mesmo admitindo que compreendeis vossos princpios e queos podeis demonstrar.

    34 Suponhamos que se diga que as fluxes podem ser expostas ou expressas por li-nhas finitas proporcionais a elas, ou ainda que se diga que essas linhas finitas, uma vezque podem ser distintamente concebidas, conhecidas e submetidas a raciocnios, tam-bm podem ser substitudas pelas fluxes e suas relaes ou propores mtuas con-sideradas como as propores das fluxes. E suponhamos que se diga, por fim, quedesse modo essa doutrina torna-se clara e til. A tudo isso respondo que, se para en-contrar essas linhas finitas proporcionais s fluxes, realizam-se certos passos queso obscuros e inconcebveis, por mais que essas linhas finitas sejam claramente con-cebidas, deve-se, no entanto, reconhecer que vosso proceder no claro nem cient-

    fico seu mtodo. Por exemplo, supe-se queAB seja a abscissa, BC a ordenada e VCH atangente da curva AC;que Bb ou CE seja o in-cremento da abscissa, Ec o incremento daordenada, que quando prolongada encon-tra VH no ponto T, e Cc o incremento da cur-va. Prolongando-se a linha reta Cc at K,sero formados trs pequenos tringulos: oretilneo CEc, o mistilneo CEc e o retilneoCET. bvio que esses tringulos so dife-rentes entre si, sendo o retilneo CEc me-nor que o mistilneo CEc, cujos lados sotrs os incrementos acima mencionados, esendo esse ltimo menor que o tringuloCET. Suponha-se que a ordenada bc move-se at o lugar BC, de maneira que o ponto c

    coincida com o ponto C; e que a linha reta CK e, consequentemente, a curva Cc coincidacom a tangente CH. Nesse caso, o tringulo evanescente mistilneo CEc ser, em sualtima forma, similar ao tringulo CET e seus lados evanescentes CE, Ec e Cc sero pro-porcionais a CE, ET e CT, que so os lados do tringulo CET. Portando, conclui-se que asfluxes das linhas AB, BC e AC, estando na razo ltima de seus incrementosevanescentes, so proporcionais aos lados do tringulo CET ou, o que o mesmo, do

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    tringulo VBC similar a ele . Com bastantenfase, o eminente autor insiste que os pontos C e c no devem se distanciar um dooutro por nenhum intervalo, por menor que seja, mas que, para o propsito de encon-trar a proporo ltima entre as linhas CE, Ec e Cc (isto , as propores das fluxes ouvelocidades) expressas pelos lados finitos do tringulo VBC, os pontos C e c devem pre-cisamente coincidir, isto , ser um nico e mesmo ponto. Portanto, considera-se umponto como sendo um tringulo ou supe-se que um tringulo seja formado em umponto, o que parece ser totalmente impossvel conceber. Contudo, h pessoas que,embora recusem todos os outros mistrios, no tm qualquer dificuldade com os seusprprios; esses coam um mosquito e engolem um camelo.14

    35 No sei se vale a pena observar que possivelmente certos homens podem esperaroperar por meio de smbolos e suposies, na expectativa de evitar o uso de fluxes,momentos e infinitesimais. Eles procedem da seguinte maneira. Suponha-se que xseja a abscissa de uma curva e z, a outra abscissa da mesma curva. Suponha-se tambmque as respectivas reas so xxx e zzz e que z - x o incremento da abscissa e zzz - xxx, oincremento da rea, sem considerar quo grande ou quo pequeno podem ser essesincrementos. Divida-se agora zzz - xxx por z - x, e o quociente ser zz + zx + xx. E, su-pondo que z e x so iguais, esse mesmo quociente ser 3xx, que nesse caso a orde-nada, que, portanto, pode ser obtida independentemente de fluxes e infinitesimais.Mas h aqui uma evidente falcia: pois, em primeiro lugar, supe-se que as abscissas ze x sejam desiguais, visto que sem tal suposio nenhum passo teria sido dado. Emsegundo lugar, supe-se novamente que elas sejam iguais, o que uma inconsistnciamanifesta, correspondendo ao mesmo tipo de coisa que foi considerado anteriormen-te . E h de fato razo para pensar que toda tentativa de estabelecer a geo-metria abstrusa e refinada sobre fundamentos corretos e evitar a doutrina das velo-cidades, momentos etc., mostrar-se- impraticvel at quando o objeto e a finalidadeda geometria forem melhor compreendidos do que aparentemente tm sido at agora.O eminente autor do mtodo das fluxes sentiu essa dificuldade e, por conseguinte,consentiu essas abstraes sutis e essa metafsica geomtrica, ambas indispensveis conforme ele prprio percebeu a tudo que se possa fazer a partir dos princpios acei-tos. Caber ao leitor julgar o que ele fez a partir desses princpios em termos de de-monstrao. Deve-se, de fato, reconhecer que ele empregou as fluxes de modo seme-lhante ao andaime de uma construo, ou seja, como algo a ser posto de lado oueliminado to logo se encontre as linhas finitas proporcionais a elas. Mas, por outrolado, esses exponentes finitos so encontrados com a ajuda das fluxes. Assim, qual-quer coisa obtida por meio de tais exponentes e propores h de ser atribuda sfluxes, que devem, por isso, ser previamente conhecidas. Mas o que so essas fluxes?

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    George Berkeley

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    As velocidades de incrementos evanescentes? E o que so esses mesmos incrementosevanescentes? Eles no so quantidades nem finitas, nem infinitamente pequenas,nem, ainda, nada. No os poderamos chamar de fantasmas de quantidades defuntas?

    36 Com muita frequncia, os homens enganam a si mesmos e aos outros, agindo comose concebessem e compreendessem as coisas expressas pelos signos, quando na ver-dade no tm ideia alguma alm daquela dos prprios smbolos empregados. H ra-zes para pensar que isso possa estar ocorrendo no presente caso. Supe-se que asvelocidades de quantidades nascentes ou evanescentes so expressas tanto por linhasfinitas de uma magnitude determinada quanto por notas ou signos algbricos; mas sus-peito que muitos daqueles que tomam o assunto como certo sem talvez jamais o haverexaminado, se o submetessem a um cuidadoso escrutnio, descobririam ser imposs-vel formular qualquer ideia ou noo dessas velocidades independentemente daquelasquantidades finitas e daqueles signos.

    Suponha-se que a linha KP seja descrita pelo movimento de um ponto continuamenteacelerado e que sejam geradas, em partculas iguais de tempo, as partes desiguais KL,LM, MN, NO etc. Suponha tambm que a, b, c, d, e etc. denotem as velocidades do pontogerador em cada perodo da gerao das partes ou dos incrementos. Observa-se facil-mente que cada um desses incrementos proporcional soma das velocidades com asquais descrito; e, consequentemente, que as vrias somas das velocidades, geradasem partes iguais de tempo, podem ser representadas respectivamente pelas linhas KL,LM, MN etc. geradas nos mesmos tempos. Da mesma maneira, afirma-se com facilida-de que a velocidade ltima gerada na primeira partcula de tempo pode ser expressapelo smbolo a, a velocidade ltima gerada na segunda partcula expressa por b, a mes-ma velocidade gerada na terceira partcula expressa por c e assim por diante; que a a velocidade de LM em statu nascenti, enquanto b, c, d, e etc. so as velocidades dos in-crementos MN, NO, OP etc. em seus respectivos estados nascentes. Podeis continuarconsiderando essas mesmas velocidades como quantidades fluentes e crescentes, ouseja, tomando as velocidades das velocidades, e as velocidades das velocidades dasvelocidades, isto , a primeira, segunda, terceira etc. velocidades ad infinitum. Essassries sucessivas de velocidades podem ser expressas assim: a, (b - a), (c - 2b + a),(d - 3c + 3b - a) etc., que podeis chamar pelo nome de fluxes primeira, segunda, ter-ceira, quarta. Para uma expresso apropriada, podeis denotar a linha fluente varivel

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    KL, KM, KN etc. pela letra x, e a fluxo primeira por x , a segunda por x , a terceira por xe assim sucessivamente ad infinitum.

    37 Nada mais fcil do que atribuir nomes, signos ou expresses a essas fluxes;tampouco difcil computar e operar por meio desses signos. Mas ser encontradamuita dificuldade em omitir os signos e, ainda assim, reter em nossas mentes as coisasque supomos serem significadas por eles. No h qualquer dificuldade em consideraros exponentes, sejam geomtricos, algbricos ou fluxionrios, mas formar uma ideiaprecisa de, por exemplo, uma terceira velocidade, em si e por si mesma, hoc opus, hiclabor (isso o trabalho, isso o esforo). Tampouco, de fato, fcil formar uma ideiaclara e distinta de uma velocidade qualquer, que exclua e prescinda de todo e qualquercomprimento de tempo e de espao, bem como de todos e quaisquer sinais, signos ousmbolos. Isso, se me permitem julgar os demais a partir de mim mesmo, imposs-vel. A mim, parece evidente que medidas e signos so absolutamente necessrios paraconceber ou raciocinar sobre as velocidades e que, consequentemente, quando pensa-mos conceber as velocidades isoladamente e em si mesmas, estamos nos iludindo comvs abstraes.

    38 Pode-se pensar talvez que um mtodo mais fcil de conceber as fluxes seja sup-las como sendo as velocidades com as quais as diferenas infinitesimais so geradas.Desse modo, as primeiras fluxes seriam as velocidades das primeiras diferenas; assegundas, as velocidades das segundas diferenas; as terceiras fluxes, as velocidadesdas terceiras diferenas, e assim ad infinitum. Mas, sem mencionar a intransponveldificuldade de admitir ou conceber infinitesimais, e infinitesimais de infinitesimaisetc., evidente que essa noo de fluxes no concordaria com o modo de pensar doeminente autor, que no permitia negligenciar nem mesmo a menor das quantidadese que, portanto, recusava admitir na geometria a doutrina das diferenas infinitesi-mais, tanto que parece ter nitidamente introduzido o emprego de velocidades ou fluxescom o propsito de excluir e proceder sem aquelas diferenas.

    39 A outros, talvez possa parecer que formaramos uma ideia mais justa de fluxesadmitindo os incrementos finitos, desiguais e isocrnicos KL, LM, MN etc. e consi-derando-os em seu statu nascenti, bem como os seus prprios incrementos e os in-crementos nascentes desses incrementos, e assim por diante; supondo ainda que osprimeiros incrementos nascentes sejam proporcionais s primeiras fluxes ou velo-cidades, que os incrementos nascentes desses incrementos sejam proporcionais ssegundas fluxes, que os terceiros incrementos nascentes sejam proporcionais s ter-ceiras fluxes, e assim por diante. Assim como as primeiras fluxes so as velocidades

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    dos primeiros incrementos nascentes, as segundas fluxes podem ser concebidas comoas velocidades dos segundos incrementos nascentes, ao invs de velocidades de velo-cidades. Desse modo, a analogia das fluxes parece ser melhor preservada e essa nooparece tornar-se mais inteligvel.

    40 De fato, pode parecer que, no caminho para obter a segunda ou a terceira fluxo deuma equao, as fluxes dadas eram consideradas mais como incrementos do que comovelocidades. Mas o fato de consider-las s vezes em um sentido e s vezes em outro,em um momento em si mesmas e em outro em seus exponentes, parece ter ocasionadouma parte no desprezvel dessa confuso e obscuridade encontrada na doutrina dasfluxes. Pode parecer, portanto, que essa noo possa ainda ser consertada e que, aoinvs de fluxes de fluxes ou fluxes de fluxes de fluxes, e de segunda, terceira ouquarta etc. fluxes de uma quantidade dada, possa ser mais consistente e menos pro-penso a excees falar da fluxo do primeiro incremento nascente, isto , da segundafluxo; da fluxo do segundo incremento nascente, isto , da terceira fluxo; da fluxodo terceiro incremento nascente, isto , da quarta fluxo. Cada uma dessas fluxes concebida como respectivamente proporcional ao princpio nascente do incrementoseguinte quele do qual ela a fluxo.

    41 Para uma concepo mais distinta disso tudo, pode-se considerar que, se o finitoincremento LM for dividido em partes iscronas Lm, mn, no, oM, e o incremento MNdividido nas partes Mp, pq, qr, rN, iscronas s anteriores, assim como os incrementostotais LM, MN so proporcionais s somas das velocidades com que so descritos, domesmo modo as partculas homlogas Lm, Mp so proporcionais s respectivas veloci-dades aceleradas com que so descritas. Assim como a velocidade da gerao de Mpexcede aquela de Lm, a partcula Mp tambm excede a partcula Lm. Em geral, assimcomo as velocidades iscronas descritas pelas partculas de MN excedem as velocida-des iscronas descritas pelas partculas de LM, da mesma maneira as partculas da pri-meira excedem as partculas correspondentes da segunda. E isso persistir, por me-nores que sejam as ditas partculas. Portanto, se ambas forem tomadas em seus estadosnascentes, MN exceder LM, e esse excesso ser proporcional ao excesso da velocidadeb sobre a velocidade a. Podemos ver, ento, que essa ltima explicao das fluxes, nofinal das contas, no se distingue da primeira .

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    42 Mas, apesar de tudo o que se disse at aqui, deve-se ainda reconhecer que as par-tculas finitas Lm ou Mp, por menores que sejam consideradas, no so proporcionaiss velocidades a e b, mas cada uma proporcional a uma srie de velocidades que sealtera a cada momento ou, o que a mesma coisa, a uma velocidade acelerada, com aqual cada uma gerada durante uma certa partcula mnima de tempo. Alm disso,deve-se reconhecer tambm que os princpios nascentes ou os finais evanescentes dequantidades finitas produzidas em momentos ou partes infinitamente pequenas detempo so proporcionais somente s velocidades; que, ento, para conceber as pri-meiras fluxes, devemos conceber o tempo dividido em momentos, os incrementosgerados naqueles momentos e as velocidades proporcionais queles momentos; que,para conceber as segundas ou terceiras fluxes, devemos supor que os princpios ouincrementos momentneos admitem, eles prprios, outros incrementos moment-neos, que so proporcionais s suas respectivas velocidades com que so gerados; queas velocidades desses segundos incrementos momentneos so segundas fluxes eaquelas de seus incrementos momentneos nascentes, terceiras fluxes, e assim pordiante ad infinitum.

    43 Ao subtrair o incremento gerado no primeiro momento daquele gerado no segun-do, obtemos o incremento de um incremento. Ao subtrair a velocidade gerada no pri-meiro momento daquela gerada no segundo, obtemos a fluxo de uma fluxo. De igualmaneira, ao subtrair a diferena das velocidades geradas nos dois primeiros momen-tos do excesso de velocidade no terceiro sobre aquela no segundo momento, obtemos aterceira fluxo. Em seguida, com a mesma analogia, podemos proceder para as fluxesquartas, quintas, sextas, etc. Se denominamos como a, b, c e d as velocidades dos mo-mentos primeiro, segundo, terceiro e quarto, as sries das fluxes sero como antesa, (b - a), (c - 2b + a), (d - 3c + 3b - a), ad infinitum, isto , ,,,, xxxx ad infinitum.

    44 Assim, as fluxes podem ser consideradas sob diversas luzes e formas, que pare-cem ser igualmente todas de difcil concepo. Certamente, visto que impossvel con-ceber velocidade sem tempo ou espao, independentemente de um comprimento finitoou durao finita , mesmo a compreenso das primeiras fluxes deve estaraparentemente acima dos poderes humanos. Se as primeiras so incompreensveis, oque diramos das segundas, terceiras etc. fluxes? Aquele que puder conceber o co-meo de um comeo ou o fim de um fim, ligeiramente anterior ao primeiro ou ligei-ramente posterior ao ltimo, poderia ser talvez suficientemente perspicaz para con-ceber essas coisas. Mas a maioria dos homens, creio eu, descobrir ser impossvelcompreend-las em qualquer sentido que seja.

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    45 Pensar-se-ia que os homens no podem falar de um modo demasiadamente exatosobre um assunto to sutil. Todavia, conforme foi anteriormente sugerido, podemosfrequentemente observar que os exponentes das fluxes ou os sinais (notes) que re-presentam as fluxes confundem-se com as prprias fluxes. No esse o caso quan-do, logo aps se dizer que as fluxes das quantidades fluentes so as celeridades deseus incrementos e que as segundas fluxes so as mutaes das primeiras fluxes ouceleridades, nos dizem que z. z. z. z. z. z. representamuma srie de quantidades, na qual cada quantidade subsequente a fluxo da prece-dente e cada quantidade antecedente a quantidade fluente que tem na quantidadesubsequente a sua fluxo?

    46 Diversas sries de quantidades e expresses, geomtricas e algbricas podem serconcebidas por meio de linhas, superfcies e espcies, que poderiam ser continuadasindefinida ou ilimitadamente. Mas descobre-se no ser to fcil assim conceber umasrie de puras velocidades ou de puros incrementos nascentes, que seja distinta deles,mas que lhes seja correspondente. Alguns talvez possam ser levados a pensar que oautor tinha em vista uma srie de ordenadas, na qual cada ordenada era a fluxo da suaprecedente e a fluente da sua subsequente, isto , que a fluxo de uma ordenada era elaprpria a ordenada de uma outra curva e a fluxo dessa ltima ordenada era ainda aordenada de alguma outra curva, e assim ad infinitum. Mas quem seria capaz de conce-ber a maneira como a fluxo (quer como velocidade quer como incremento nascente)de uma ordenada seria ela mesma uma ordenada? Ou, mais ainda, [quem seria capazde conceber] que cada quantidade ou fluente precedente est relacionado quantida-de subsequente a ela ou a sua fluxo, do mesmo modo como a rea de uma figuracurvilnea est relacionada sua ordenada, em conformidade com o que observa o au-tor, a saber, que cada quantidade precedente nessa srie como a rea de uma figuracurvilnea, da qual a abscissa z e a ordenada, a quantidade seguinte?

    47 Em suma, parece que as velocidades so dispensadas e, no lugar delas, so in-troduzidas reas e ordenadas. Mas, seja qual for o expediente pelo qual tais analogiasou expresses possam ser descobertas para facilitar as modernas quadraturas, aindaassim no descobriremos que elas proporcionam qualquer luz acerca da verdadeiranatureza original das fluxes ou que nos permita formar, a partir disso, ideias precisasdas fluxes consideradas em si mesmas. Em tudo isso, a inteno geral e definitiva doautor muito clara, mas seus princpios permanecem obscuros. Talvez essas teorias doeminente autor no sejam, todavia, to minuciosamente consideradas ou examinadaspelos seus discpulos, que parecem vidos, conforme foi sugerido anteriormente, aoperar ao invs de conhecer, a aplicar suas regras e suas formas ao invs de compreen-

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    der seus princpios e aprofundar-se em suas noes. Apesar de tudo, a fim de segui-loem suas quadraturas, eles devem certamente encontrar fluentes a partir de fluxes e,para isso, devem saber como encontrar fluxes a partir de seus fluentes e, para encon-trar fluxes, eles devem primeiramente saber o que so as fluxes. De outra maneira,eles procederiam sem clareza e sem cincia. Portanto, o mtodo direto precede o m-todo inverso, e o conhecimento dos princpios suposto em ambos. Mas operar deacordo com as regras e com o auxlio das frmulas gerais, cujos princpios e razesoriginais no se compreendem, fazer algo que deve ser considerado como puramentetcnico. Portanto, mesmo que os princpios sejam ainda muito obscuros e metafsicos,eles devem ser estudados por quem deseja compreender a doutrina das fluxes.Nenhum gemetra pode aplicar as regras do eminente autor sem primeiro consideraras noes metafsicas das quais elas foram derivadas. Essas, muito embora sejam deextrema necessidade para a cincia e nunca possam ser alcanadas sem uma concep-o precisa, clara e exata ( precise, clear, and accurate) dos princpios so, entretanto,descuidadamente negligenciada por muitos; ao passo que somente as expresses soenfatizadas, consideradas e tratadas com grande habilidade e destreza para da obteroutras expresses por mtodos que, considerados em si mesmos, so (para dizer omnimo) suspeitos e indiretos, ainda que sejam apoiados pela induo e pela autori-dade , dois fatores suficientemente reconhecidos como produtores de uma f racio-nal e de uma persuaso moral, mas incapazes de produzir algo mais elevado que isso.

    48 Possivelmente esperais evitar a fora de tudo o que foi dito e encobrir princpiosfalsos e raciocnios inconsistentes sob o pretexto geral de que essas objees e obser-vaes so metafsicas. Mas isso um pretexto ftil. Para sustentar o sentido e a verda-de evidentes do que foi sugerido nas observaes precedentes, apelo ao entendimentode todo leitor inteligente e sem preconceitos. Apelo igualmente para que decida se ospontos observados no constituem uma metafsica ainda mais incompreensvel. E noa minha metafsica, mas a vossa prpria. Que no se compreenda que concluo seremfalsas ou fteis as vossas noes porque elas so metafsicas. Nada verdadeiro ou fal-so por essa razo. No ajuda muito decidir se um assunto metafsico ou no. A ques-to saber se ele claro ou obscuro, correto ou errado, bem ou mal deduzido.

    49 Ainda que incrementos momentneos, quantidades nascentes e evanescentes,fluxes e infinitesimais de todos os graus sejam na verdade tais como entidades muitosombrias, to difceis de imaginar ou conceber distintamente que (para dizer o m-nimo) no se pode admiti-los como princpios ou objetos de uma cincia clara e pre-cisa, e ainda que apenas essa obscuridade e essa incompreensibilidade de vossa meta-fsica tenham sido suficientes para diminuir vossas pretenses de evidncia, mostrei

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    tambm at aqui, se eu no estiver errado, que vossas inferncias no so mais leg-timas do que a clareza de vossas concepes e que vossa lgica to objetvel quanto o vossa metafsica. Portanto, deveria parecer que, acima de tudo, vossas conclusesno so obtidas por um raciocnio correto conduzido a partir de princpios claros eque, consequentemente, o trabalho do analista moderno, apesar de sua extrema utili-dade nos clculos e construes matemticas, no habitua nem qualifica a mente paraapreender com clareza nem para inferir corretamente e que, por conseguinte, notenhais qualquer direito, em virtude de tais hbitos, de impor-vos fora de vossa pr-pria esfera, esfera alm da qual vosso julgamento no h de se passar por superior aodos demais homens.

    50 H muito tempo suspeito que essas anlises modernas no so cientficas e, sobreisso, fiz publicar algumas sugestes h cerca de vinte cinco anos.15 Desde ento, dis-persei-me com outras ocupaes e imaginava poder dedicar-me a algo melhor do quea deduzir e reunir meus pensamentos sobre um assunto to sutil embora ultima-mente me tenham solicitado a desenvolver melhor as minhas sugestes. Entretanto,se a pessoa que assim me solicitou parecesse pensar de modo suficientemente maduropara compreender a metafsica que ele deseja refutar ou a matemtica que ele desejadefender, eu teria me poupado das perturbaes de escrever com o propsito de obtero seu convencimento. Do mesmo modo, agora eu no teria perturbado nem a vs nema mim mesmo com esse discurso, aps uma interrupo to longa desses estudos, seno fosse para impedir, at onde posso, que arrogsseis ter autoridade sobre vs mes-mos e sobre quaisquer outros em assuntos de extrema importncia e interesse. Com afinalidade de vos permitir compreender mais claramente a fora e o propsito das ob-servaes anteriores e estend-las ainda mais com vossas meditaes, acrescentareias seguintes questes:

    Questo 1. As propores entre extenses assinalveis no constituiriam o objeto dageometria? Haveria alguma necessidade de considerar quantidades como infinitamentegrandes ou como infinitamente pequenas?

    Questo 2. A finalidade da geometria no seria medir a extenso finita e assinvel?No seria esse objetivo prtico aquilo que primeiro conduziu o homem ao estudo dageometria?

    Questo 3. Equvocos cometidos com relao ao objeto e finalidade da geometria noteriam gerado dificuldades desnecessrias e buscas mal orientadas nessa cincia?

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    Questo 4. Os homens poderiam dizer propriamente que agem segundo um mtodocientfico sem que concebam claramente o objeto de que se ocupam, a finalidade a quese propem e o mtodo mediante o qual realizam a sua investigao?

    Questo 5. No seria suficiente [admitir] que qualquer nmero assinalvel de partespossa estar contido em qualquer grandeza assinalvel? No seria desnecessrio, assimcomo absurdo, supor que a extenso finita seja infinitamente divisvel?

    Questo 6. Em uma demonstrao geomtrica, os diagramas no deveriam ser consi-derados signos de todas as possveis figuras finitas, de todas as extenses ou magnitu-des do mesmo tipo sensveis e imaginveis?

    Questo 7. Seria possvel livrar a geometria de dificuldades e absurdos insuperveissupondo que seu objeto verdadeiro seja a ideia abstrata geral de extenso ou a extensoexterna absoluta?

    Questo 8. As noes de tempo absoluto, espao absoluto e movimento absoluto nopertenceriam metafsica mais abstrata? Para ns, seria possvel medi-los, calcul-los ou conhec-los?

    Questo 9. Os matemticos no se engajam em disputas e paradoxos acerca do que elesno concebem nem podem conceber? A doutrina das foras no seria uma prova sufi-ciente disso? 16

    Questo 10. Na geometria, no seria suficiente considerar a magnitude finita assina-lvel, sem nos envolvermos com o infinito? No seria mais correto, em lugar de cur-vas, medir grandes polgonos de lados finitos, evitando assim supor que essas curvassejam polgonos de lados infinitesimais, suposio essa que no nem verdadeiranem concebvel?

    Questo 11. Muitos pontos que no so prontamente aceitos no seriam, todavia, ver-dadeiros? Os pontos abordados nas duas questes seguintes, no poderiam eles serexemplos disso?

    Questo 12. Seria possvel que houvssemos obtido uma ideia ou noo de extensoanterior do movimento? Ou, se um homem jamais houvesse percebido o movimento,ele jamais teria sabido ou concebido que uma coisa est distante da outra?

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    Questo 13. A quantidade geomtrica possuiria partes coexistentes? Toda quantidadeno estaria em um fluxo, assim como esto o tempo e o movimento?

    Questo 14. Poder-se-ia supor que a extenso seja um atributo de um Ser imutvele eterno?

    Questo 15. O fato de recusarem o exame dos princpios e a distino dos mtodosempregados na matemtica, no revelaria o fanatismo dos matemticos?

    Questo 16. No se disseminam entre os analistas certas mximas que afrontam o bomsenso? No seria uma dessas mximas a suposio comum de que uma quantidade finita,sendo dividida por zero, torna-se infinita?

    Questo 17. Os diagramas geomtricos considerados de maneira absoluta ou em simesmos, ao invs de como representantes de todas as magnitudes ou figuras finitas domesmo tipo, no seriam a causa principal para supor que a extenso finita seja infini-tamente divisvel e de todas as dificuldades e absurdos da decorrentes?

    Questo 18. Do fato de as proposies geomtricas serem gerais e, por conseguinte, aslinhas empregadas nos diagramas converterem-se em substitutas ou representantesgerais, no deveria se seguir que no podemos limitar ou tomar em considerao(consider) o nmero de partes em que essas linhas particulares sejam divisveis?

    Questo 19. Quando se diz ou se infere que certa linha traada no papel contm maisdo que qualquer nmero assinalvel de partes, na verdade, nada mais se pretende dar aentender seno que ela seria um signo que representa indiferentemente todas as li-nhas finitas, por maiores que sejam. Por meio de qual capacidade relativa aquela linhaconteria, isto , representaria mais do que qualquer nmero assinalvel de partes? Noseria totalmente absurdo supor que uma linha finita, considerada (consider) em si mes-ma ou em sua prpria natureza positiva, devesse conter um nmero infinito de partes?

    Questo 20. Todos os argumentos em favor da infinita divisibilidade da extenso finitano pressuporiam e implicariam que o objeto da geometria seja ou ideias gerais abs-tratas ou a extenso absoluta externa? E, portanto, aqueles argumentos tambm nocessariam e esvaneceriam juntamente com essas pressuposies?

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    Questo 21. A suposta divisibilidade infinita da extenso finita no tem sido uma cila-da e um constante tormento para os matemticos? Uma quantidade diminuda infini-tamente e uma quantidade infinitamente pequena no seriam a mesma coisa?

    Questo 22. Seria mesmo necessrio considerar as velocidades de quantidades nas-centes ou evanescentes, de momentos ou de infinitesimais? No seria um motivo derepreenso aos matemticos a introduo de coisas to inconcebveis?

    Questo 23. As inconsistncias poderiam ser verdadeiras? Dever-se-ia admitir afir-maes inconsistentes e absurdas acerca de qualquer tema ou em qualquer cincia?A permisso para o emprego de infinitos no deveria ser encarada como pretexto edesculpa suficientes para admitir esse tipo de afirmaes na geometria?

    Questo 24. No seria correto dizer que no se conhece propriamente uma determi-nada quantidade quando conhecemos [apenas] a proporo entre ela e outras quanti-dades dadas? Essa proporo poderia ser conhecida apenas por meio de expresses ouexponentes, sejam geomtricos, algbricos ou aritmticos? As expresses em termosde linhas ou espcies no seriam teis somente na medida em que fossem redutveisa nmeros?

    Questo 25. A disposio e a inclinao mais geral da matemtica no seria encontrarexpresses ou notaes apropriadas para as quantidades? A operao aritmtica noseria o que limita e define o seu uso?

    Questo 26. A analogia e o emprego de signos tm sido suficientemente consideradospelos matemticos? At que ponto a restrita natureza especfica das coisas correspon-deria aos signos?

    Questo 27. Quando enunciamos um caso geral na lgebra pura, em virtude de termostotal liberdade para fazer um smbolo denotar uma quantidade positiva ou negativa ou,mesmo, absolutamente nada, poderamos ento reivindicar o mesmo direito diantede um caso geomtrico, no qual somos limitados por hipteses sobre e por raciocniosa partir de propriedades e relaes particulares concernentes s figuras?

    Questo 28. A mudana de hiptese ou, conforme poderamos dizer, a fallacia suppo-sitionis no seria um sofisma que contagia profunda e amplamente todos os raciocniosmodernos, tanto na filosofia mecnica quanto na geometria abstrusa e sutil?

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    Questo 29. Poderamos formar uma ideia ou noo de velocidade que fosse distinta eindependente de sua medida, a exemplo do que faramos no caso do calor, se pudsse-mos formar uma ideia dele que fosse distinta e independente dos graus verificados notermmetro com o qual ele medido? No seria isso o que se supe nos raciocnios dosanalistas modernos?

    Questo 30. O movimento poderia ser concebido em um ponto do espao? Se no sepode fazer isso para o movimento, poder-se-ia faz-lo para a velocidade? E se tampouco possvel faz-lo nesse ltimo caso, poder-se-ia conceber a velocidade primeira oultima em um mero limite, inicial ou final, do espao descrito?

    Questo 31. Se no h incrementos, poderia haver alguma ratio entre incrementos?Poder-se-iam considerar os nadas como proporcionais s quantidades reais? Ou, en-to, falar de suas propores no seria dizer contrassensos? Da mesma forma, em qualsentido deveramos compreender a proporo entre uma superfcie e uma linha, entreuma rea e uma ordenada? Seria possvel pretender expressar propores mtuas en-tre espcies e nmeros, ainda que cada uma delas expressem propriamente quantida-des no homogneas?

    Questo 32. Se todos os crculos assinalveis pudessem ser quadrados, ento, para to-dos os efeitos, no se quadraria o crculo tanto quanto a parbola? Ou poderia uma reaparablica ser efetivamente medida de modo mais preciso que um crculo?

    Questo 33. No seria mais correto fazer uma aproximao razovel do que se empe-nhar para alcanar a preciso por meio de sofismas?

    Questo 34. No seria mais decente proceder por tentativas (trials) e indues do quepretender demonstrar por meio de princpios falsos?

    Questo 35. Haveria algum meio de chegar verdade, ainda que os princpios no fos-sem cientficos nem os raciocnios, exatos? Se houvesse algum meio para tal, ele deve-ria ser chamado de truque ou de cincia?

    Questo 36. Poderia haver alguma cincia com relao concluso quando no hou-vesse qualquer evidncia a respeito dos princpios? Um homem poderia ter qualquerevidncia a respeito dos princpios sem ser capaz de compreend-los? E, sendo assim,os matemticos de hoje agiriam como homens de cincia quando dedicam mais esfor-o a aplicarem seus princpios do que a compreend-los?

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    incio desse processo? Ou poderia qualquer suposio particular pertencer a um casogeral que no fosse consistente com o raciocnio que dela se segue?

    Questo 44. A diferena entre um mero calculador e um homem de cincia no seriaseno que, enquanto um calcula com base em princpios claramente concebidos e pormeio de regras bem demonstradas, o outro no o faz?

    Questo 45. Embora a geometria seja uma cincia, a lgebra seja admitida como tal e omtodo analtico seja o mais excelente mtodo, na aplicao da anlise geometria, oshomens no poderiam ter, entretanto, admitido falsos princpios e mtodos equivo-cados de raciocnios?

    Questo 46. Embora, quando os raciocnios algbricos se limitam aos signos ou sespcies que representam quantidades em geral, se admita que eles so extremamenteexatos, no podereis, apesar de tudo, cair em erro se, quando eles forem por vs limi-tados a representar coisas particulares, no limitsseis a vs mesmos a raciocinar emconformidade com a natureza de tais coisas particulares? Esse erro deveria ser impu-tado lgebra pura?

    Questo 47. A viso dos matemticos modernos no pareceria mais apta a alcanar aexpresso obtida por um artifcio do que a cincia obtida por demonstrao?

    Questo 48. No poderia haver uma metafsica slida assim como haveria umametafsica incerta? Uma lgica slida assim como uma lgica incerta? A anlise mo-derna no poderia ser subsumida a uma dessas duas denominaes, e a qual delas?

    Questo 49. No haveria uma philosophia prima, uma determinada cincia transcen-dental, que fosse superior matemtica e mais abrangente que ela e que exigisse dosnossos analistas modernos mais uma atitude de aprendizagem do que uma atitude dedesprezo em relao a ela?

    Questo 50. Desde a redescoberta do conhecimento matemtico, no ocorreram dis-putas e controvrsias infindveis entre os matemticos? Isso no depreciaria a com-provao de seus mtodos?

    Questo 51. Qualquer outra coisa alm da metafsica e da lgica poderia abrir os olhosdos matemticos e livr-los de suas dificuldades?

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    O analista

    scienti zudia, So Paulo, v. 8, n. 4, p. 633-76, 2010

    Questo 52. De acordo com os princpios aceitos, poderia uma quantidade ser reduzi-da a nada por meio de qualquer diviso ou subdiviso, por mais longe que se conduzaessa operao?

    Questo 53. Se a finalidade da geometria for a prtica, se essa prtica for medir e semedirmos somente extenses assinalveis, no se seguiria que aproximaes ilimita-das respondem inteiramente s intenes da geometria?

    Questo 54. No se poderia fazer por meio de quantidades finitas as mesmas coisasque so feitas atualmente por meio de quantidades infinitas? E isso no seria um gran-de alvio para a imaginao e o entendimento dos matemticos?

    Questo 55. Se os mdicos, os anatomistas, os comerciantes de animais, todos osfilomatemticos (philomathematical), enfim, homens que admitem a doutrina dasfluxes em decorrncia de uma f implcita, poderiam de bom grado insultar outroshomens porque acreditam naquilo que no compreendem?

    Questo 56. A filosofia corpuscular, experimental e matemtica, to cultivada ultima-mente, no tem ocupado demasiadamente a ateno dos homens, da qual uma partepoderia ser empregada de maneira mais til?

    Questo 57. No por essa e por outras causas concorrentes que as mentes dos ho-mens especulativos teriam declinado, provocando a degradao e o entorpecimentodas suas mais elevadas faculdades? No poderamos assim explicar a mesquinhez e aintolerncia predominantes entre muitos homens que se passam por homens de cin-cia, a sua incapacidade para coisas morais, intelectuais ou teolgicas, a sua propensoa medir todas as verdades pelos sentidos e pela experincia da vida animal?

    Questo 58. Seria realmente um efeito do [livre] pensamento que os mesmos homensadmirem o eminente autor por suas fluxes e o ridicularizem por sua religio?

    Questo 59. Se certos virtuosos filosficos da atual poca no tm religio, pode-sedizer que por causa da falta de f?

    Questo 60. Defender questes de f a partir de seus efeitos no seria um modo maiscorreto de raciocinar do que demonstrar princpios matemticos por suas concluses?

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    George Berkeley

    scienti zudia, So Paulo, v. 8, n. 4, p. 633-76, 2010

    Questo 61. No seria menos reprovvel admitir questes de f acima da razo do queaquelas contrrias razo?

    Questo 62. No se poderia ter mais direito de admitir mistrios na f divina do que nacincia humana?

    Questo 63. Aqueles matemticos que bradam contra os mistrios teriam alguma vezexaminado os seus prprios princpios?

    Questo 64. Os matemticos, que so to sensveis quando se trata de questes religi-osas, seriam estritamente escrupulosos em sua prpria cincia? Eles no se submete-riam autoridade, no admitiriam algo movidos pela confiana e no acreditariam emquestes inconcebveis? Eles no possuiriam seus mistrios e, ainda mais, suas inco-erncias e contradies?

    Questo 65. Julgar de modo cauteloso, sincero e modesto sobre outros assuntos noviria a ser uma atitude digna de homens que se mostram embaraados e perplexos acercade seus prprios princpios?

    Questo 66. A analtica moderna no forneceria um forte argumentum ad hominem con-tra os atuais infiis que cultivam a matemtica?

    Questo 67. A partir das observaes acima mencionadas, se seguiria q