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TRABALHO E CONTROLE DE QUALIDADE ,- NA INDUSTRIA DE ALIMENTOS • Henrl Acselrad Um estudo de diferentes estratégias de gestão do controle de qualidade sugere que a qualidade do produto depende da qualidade de vida dos trabalhadores. A study of different quality conirol strategies suggests that the products quality depends on the workers quality of Iife. PALAVRAS-CHAVE: Controle de Qualidade, indús- tria de alimentos, processo de trabalho. KEYWOROS: Quality control, food proces- sing industries, labour processo • Doutor em Ciências Econômi- cas pela Universidade de Paris I e Professor Adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. Revista de Administração de Empresas São Paulo, V. 34, n. 2, p. 33-45 Mar.lAbr.1994 33

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TRABALHO E CONTROLE DE QUALIDADE,-NA INDUSTRIA DE ALIMENTOS

• Henrl Acselrad

Um estudo de diferentes estratégias de gestão do controle de qualidade sugereque a qualidade do produto depende da qualidade de vida dos trabalhadores.

A study of different quality conirol strategies suggests that the products quality dependson the workers quality of Iife.

PALAVRAS-CHAVE:Controle de Qualidade, indús-tria de alimentos, processo detrabalho.

KEYWOROS:Quality control, food proces-sing industries, labour processo

• Doutor em Ciências Econômi-cas pela Universidade de Paris Ie Professor Adjunto do Institutode Pesquisa e PlanejamentoUrbano e Regional da UFRJ.

Revista de Administração de Empresas São Paulo, V. 34, n. 2, p. 33-45 Mar.lAbr.1994 33

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iJ~lJARTIGO

1. A pesquisa de campo quedeu origem a este trabalho reali-zou-se no quadro de um projetodo Departamento Nacional doSENAI, tendo contemplado duasempresas de processamento decarnes, duas empresas produ-toras de conservas de frutas elegumes, uma empresa de be-neficiamento e produção de de-rivados de leite, uma empresaprodutora de alimentos formu-lados, uma empresa produtorade massas, embutidos e alimen-tos formulados, uma indústriade condimentos, uma empresaprodutora de farinhas de geléiase um laboratório de controle dequalidade pertencente a umagrande rede distribuidora de ali-mentos e destinado a analisar aprodução das unidades panifi-cadoras da rede e os demaisprodutos industriais comerciali-zados em seus estabelecimen-tos de distribuição.

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Os estudos sobre as relações estabele-cidas entre as práticas de trabalho e astécnicas industriais tenderam, até aqui, aprivilegiar a análise dos mecanismos pe-los quais a valorização dos capitais con-diciona a introdução periódica de novosmodos de organização do trabalho fa-bril. Os objetivos de aceleração da velo-cidade de rotação do capital e, conse-qüentemente, de geração crescente devalor por unidade de capital investidosão evocados correntemente para expli-car a busca de redução dos tempos glo-bais de produção e de eliminação dostempos mortos de trabalho. Há poucoentendimento, porém, sobre a naturezados condicionamentos que podem exer-cer, sobre o trabalho industrial, os atri-butos qualitativos da mercadoria, ele-mentos constitutivos do que a EconomiaPolítica chamou de valor de uso. É pre-ciso reconhecer que o objetivo de obten-ção das formas úteis da mercadoria con-diciona, também, a organização do tra-balho na fábrica. Este objetivo pode in-clusive impor limites à reestruturaçãodo processo de trabalho para fins de re-dução dos tempos globais de produção,no caso de tal reestruturação comprome-ter significativamente a qualidade doproduto.

Sabe-se que o processo tendencial defragmentação do trabalho em tarefasparcelares, que marcou a história dastécnicas na maior parte dos segmentosindustriais, subtraiu progressivamenteao trabalhador direto o controle sobre aconfiguração qualitativa do produto fi-nal. Promoveu-se, conseqüentemente,no contexto dos modernos sistemas in-dustriais de produção em massa, o re-curso compensatório a determinadascompetências, destinadas a assegurar osatributos qualitativos dos produtos fi-nais. Instituiu-se deste modo o campode atividades do chamado controle dequalidade industrial.

A atividade do controle de qualidadetornou-se o veículo pelo qual assegura-se ao produto os requisitos cujo nãoatendimento lende a refletir-se negati-vamente na realização mercantil da pro-dução, pela incidência de lotes defeituo-sos, pelo comprometimento de imagensde marca e pela perda de partes de mer-cado.

No modo de operação do controle dequalidade, explicitam-se as diferentesformas de gestão empresarial do traba-lho com fins de obtenção dos atributosde uso requeridos para a mercadoria. Opresente artigo pretende caracterizar dis-tintas estratégias de gestão do controlede qualidade (CQ),a partir do estudo dedez empresas de processamento de ali-mentos no Estado do Rio de Janeiro. Eletenta estabelecer o modo como, paraalém dos objetivos fundamentais de ge-

ração de valor, o processo de trabalho in-dustrial submete-se também a injunçõesprovenientes da esfera da circulação demercadorias e da natureza particular dasformas úteis dos produtos. 1

Ao caracterizar diferentes estratégiasempresariais de controle de qualidade, opresente estudo não visa, porém, a pro-duzir uma tipologia, mas apenas a identi-ficar diferentes articulações possíveis en-tre a gestão das qualificaçõesdo trabalhoe os objetivosde atribuição de determina-dos padrões qualitativos aos produtos.

CONDICIONANTES TÉCNICOS EECONÔMICOS DO CONTROLE DEQUALIDADE NA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS

A atividade de CQ na indústria de ali-mentos defronta-se com inúmeras restri-ções de ordem técnica, notadamente pelofator das matérias-primas biológicas pre-dominantes nesta indústria apresenta-rem normalmente maiores dificuldadesde especificação do que as substâncias

© 1994, Revista de Administração de Empresas / EAESP/ FGV, São Paulo, Brasil.

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TRABALHO E CONTROLE DE QUALIDADE NA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS

ra contratos de fornecimento em grandeescala," Em ambos os casos, o aperfei-çoamento do CQ é acompanhado pelatendência à exclusão do mercado de umcerto número de pequenas empresas im-possibilitadas de arcar com os dispên-dios de montagem de controles apro-priados de qualidade - fenômeno verifi-cado com clareza nos Estados Unidos,após a edição do Food Act de 1955, ouquando do fechamento recente de em-presas de processamento de carnes daEuropa, que viram-se incapacitadas a su-portar repentinamente os novos custosdecorrentes da definição das normas eu-ropéias em matéria de higiene industrialde alimentos. 3 Neste sentido, a própriadeterminação dos padrões legais deidentidade dos produtos alimentares po-de representar alternativamente, um en-cargo adicional dificilmente assimilávelpor pequenas empresas, ou a legitimaçãode eventuais vantagens monopolísticasde certos segmentos da indústria.

Na conjuntura brasileira recente, asatividades de CQ viram-se consideravel-mente afetadas por processos desenca-deados pelo Plano de Estabilização Eco-nômica de fevereiro de 1986.De um la-do, a demanda por qualidade elevou-seacentuadamente através da crescentemobilização social dos consumidores,manifestada, notadamente, nas pressõesexercidas sobre a rede distribuidora dealimentos ao longo do primeiro semestrede 1986.Dadas as dificuldades tempora-riamente encontradas para que fosse em-preendida a competição pelos preços, as-sumiu maior peso, em certos períodos eem determinados mercados, o mecanis-mo da competição pela qualidade e peladiferenciação do produto. Em oposição atais fatores de estímulo ao CQ, o incre-mento do consumo das famílias, junta-mente com a expansão dos mercados dosprogramas públicos de suplementaçãoalimentar, ocasionaram uma aceleraçãodos ritmos de produção que não se reve-laram, por vezes, compatíveis com a ma-nutenção dos padrões de qualidades pre-vistos. Foram suprimidas etapas essen-ciais do processo produtivo, como porexemplo, a de repouso do produto na fa-bricação de farinhas, medida que com-prometeu seriamente as capacidades deligamento das massas em etapas ulterio-

químicas inorgânicas. Ao mesmo tempo,as variações sazonais da conformaçãodos produtos agrícolas condicionam con-sideravelmente a qualidade do produtoacabado. A montagem da atividade deCQ implica tainbém esforços significati-vos na criação de especificações parainúmeros processos técnicos que repou-sam em conhecimentos tradicionais acu-mulados e transmitidos por vias infor-mais, que passam a requerer algum graude formalização para efeito de estrutura-ção de testes de qualidade. As mudançastécnicas, eventualmente introduzidasnos processos, também constituem fatorde influência sobre a natureza do CQ aocomprometer, ao menos temporariamen-te, a manutenção de especificações dequalidade suficientemente precisas. Amulticiplidade de linhas de produção emoperação em um mesmo estabelecimentofabril exerce um efeito também multipli-cador sobre o rol de problemas técnicosdo CQ, obrigando-o a conviver com pro-dutos de vida de prateleira diferenciada,com fluxogramas de produção distintose diferentes modelos de inspeção de qua-lidade em campo.

Às restrições de ordem técnica acimacitadas, somam-se condicionantes econô-micos que agem tanto no sentido do estí-mulo, como da limitação das atividadesde CQ. Diversas variáveis, como custode matéria-prima, custos salariais oupressões sobre as margens de lucro, po-dem exercer efeitos diretos sobre a quali-dade do produto, refletindo-se indireta-mente sobre a atividade de CQ. A sub-destinação de recursos para o treinamen-to de pessoal e para a manutenção decondições adequadas de higiene indus-trial estabelecem igualmente importantescondicionamentos sobre as práticas deCQ.

O grau de desenvolvimento do CQ re-flete, em certa medida, os padrões decompetição vigentes na indústria, po-dendo ocorrer o recurso à prática de con-trole mais rigoroso como instrumento daconquista de partes crescentes do merca-do. Mas as práticas do CQ podem res-ponder também às condições de compe-tição em vigor entre as grandes redes dedistribuição de alimentos, que podemadotar estratégias de disseminação decritérios mais rigorosos de qualidade pa-

2. As grandes empresas de dis-tribuição de alimentos, quandonão integram verticalmente asatividades de produção, podem,por certo, exercer uma pressãosignificativa à elevação dos pa-drões de qualidade dos produ-tos junto a seus fornecedores.Quando há, porém, a integraçãovertical da produção à comer-cialização, e a conseqüente dis-tribuição da produção própria,pode ocorrer efeito inverso,com a execução do chamado"controle tolerante" sobre seuspróprios produtos, dada a ga-rantia de sua distribuição, isentade competição, pela rede de co-mercialização da empresa.

3. Conforme Revue Techniquede /'industrie Alimentaire, n.343.11/25-3-1985.

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res do processamento. A própria quali-dade da matéria-prima e dos insumos,dados os ritmos de crescimento da de-manda e a insuficiência crescente daoferta, tendeu a decair, comprometendoconseqüentemente a qualidade dos pro-dutos acabados.

O comportamento conjuntural daqualidade do produto alimentar subme-te-se, portanto, a uma variedade de in-junções econômicas, sociais e jurídicasque influenciam o cálculo econômicoque, em última instância, determina aadoção de práticas mais ou menos rigo-rosas de controle de qualidade. Dada aação das variáveis conjunturais condi-cionantes da qualidade do produto e omodo de inserção das -empresas no pro-cesso competitivo, a atividade de CQpode assumir maior ou menor identida-de e autonomia face às atividades cor-rentes de processamento.

A observação do modo concreto deestruturação do CQ indica a existênciade dois níveis possíveis de intervençãodo controle. Um primeiro nível de inter-venção corresponde a certas operaçõescorrentes de processamento, cuja execu-ção é atribuída aos próprios trabalhado-res do CQ, dada a interface destas ope-rações com práticas laboratoriais ou deseleção e classificação de materiais. Es-tas ações confundem-se, portanto, comas práticas produtivas correntes, e sãoclaramente distinguíveis das ações ex-plícitas de controle propriamente ditoexercido sobre a produção. Neste pri-meiro grupo de operações, incluem-seaquelas ligadas ao conceito de qualidadeespecificamente industrial, como a sele-ção de matérias-primas apropriadas aoprocesso, a medição da consistência epH adequados à concentração de umageléia, o acompanhamento dos indica-dores de densidade e acidez delegumesem fermentação em salmoura antes doenvase etc. Um segundo nível de inter-venção do CQ corresponde às ações quese sobrepõem às operações correntes deprocessamento, respondendo pela otimi-zação das condições da transformaçãoindustrial e pela elevação dos atributosde qualidade do produto. Incluem-se,neste campo de ação, as inspeções domodo operativo do trabalho industrial, apreservação do grau de inocuidade dos

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materiais empregados, assim como daintegridade da estrutura físico-químicado produto e da qualidade bacterioló-gica julgada compatível com a naturezado produto alimentar.

Dada a distinção acima explicitada, ograu de desenvolvimento do CQ é tantomaior quanto as empresas agregam àsoperações correntes do processamento,as práticas de inspeção de campo e análi-se laboratorial que compõem a área deatuação específica do controle dos atri-

butos qualitativos do produto. Reconhe-ce-se, então, o maior grau de desenvolvi-mento do CQ nos níveis de qualificaçãode sua equipe, na disposição de instru-mental adequado, em seu caráter maisabrangente tendente a cobrir uma amplagama de elemento e etapas do processo,desde a matéria-prima, os insumos, osserviços de água, os materiais de emba-lagem, as condições de higiene e saniti-zação, a limpeza e a funcionalidade dasinstalações, as condições de armazena-gem e transporte, até o produto acabado.O grau de desenvolvimento do CQ temtambém por indicador o rigor na admi-nistração dos dados e no arquivamentode laudos analíticos, podendo compor-tar, em certos casos, até a informatizaçãodestes serviços. Observa-se, por fim, aexistência de unidades laboratoriais deanálises físico-químicas e microbiológi-cas de rotina e, por vezes, unidades es-pecializadas em algumas práticas especí-ficas, como a dos laboratórios de análisesao recebimento da matéria-prima -

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TRABALHO E CONTROLE DE QUALIDADE NA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS

tratos volumosos ou a experiência delongas lutas contra processos de conta-minação de instalações fabris. A de-monstração da pertinência do CQ na su-peração das crises e, conseqüentemente,na prevenção da reincidência eventualde crises semelhantes, resultam, via deregra, no fortalecimento do mesmo emtermos de pessoal, qualificações, equipa-mentos, instalações e autonomia admi-nistrativa.

A racionalidade econômica preside,por certo, a decisão de implantação daatividade de CQ. Há, por um lado, umcálculo econômico evidente naquelaspráticas de controle que confundem-secom as atividades correntes de processa-mento. No caso da seleção de matérias-primas, por exemplo, certas empresascontam com o CQ para elevar as mar-gens beneficiárias de certos lotes, orde-nando a entrada da matéria-prima emprocessamento segundo os distintosgraus de maturação dos produtos agríco-las, de forma a evitar a ocorrência deperdas na estocagem, ou então compran-do lotes de matéria-prima já madura apreços reduzidos, prevendo o seu pro-cessamento imediato. Também os esfor-ços de otimização das condições de pro-cessamento respondem a um cálculo eco-nômico no qual o CQ se inclui, favore-cendo a elevação da vida de prateleirado produto, a redução das perdas e aconseqüente diminuição dos custos.

A rentabilidade final de um investi-mento em CQ pode advir dos ganhos decredibilidade do produto no mercado,assim como da consolidação de imagensde marca. O cálculo econômico deverácomputar, sem dúvida, os elevados cus-tos dos reagentes necessários aos testesde qualidade, bem como os custos deaquisição da instrumentação analítica eda formação ou contratação de pessoalqualificado. A própria decisão quanto àrealização de determinadas análises res-ponderá a cálculos gerenciais específicoscomo, por exemplo, o que afasta even-tualmente a realização de análises mi-crobiológicas, sob alegação de que umasobrecarga de custos advém da defasa-gem entre o tempo global de processa-mento e o período de quarenta e oito ho-ras necessário, em média, à obtenção deresultados em microbiologia. Em certos

quando há risco de fraude nos forneci-mentos (a aguagem do leite, por exem-plo), ou na devolução de produtos aca-bados, quando se quer acompanhar a vi-da de prateleira da mercadoria. Unida-des laboratoriais especiais são tambémimplantadas com vistas à realização maisintensificada de certas análises, quandoos produtos são destinados a mercadosdotados de exigências específicas, comoos mercados de exportação.

O grau de desenvolvimento do CQcorresponde, por certo, à disposição e àpossibilidade técnico-financeira das em-presas integrarem o processo de compe-tição por via da qualidade do produto.Mas ele responde igualmente a um certonúmero de estímulos concretos prove-nientes das condições dos mercados, daevolução das relações sociais de consu-mo ou do advento de eventuais expe-riências traumáticas específicas à histó-ria de cada empresa, quando a qualida-de insatisfatória coloca em risco a reali-zação de contratos de fornecimento emgrande escala. Nesta medida, o CQ é es-timulado, em particular, junto às empre-sas que participam das licitações parafornecimento aos mercados institucio-nais - como o dos programas públicosde suplementação alimentar - devido àimportância dos contratos e ao relativorigor dos requisitos de qualidade colo-cados pelos órgãos contratantes. 4 Asempresas que destinam parte importan-te de sua produção aos mercados exter-nos são também, por seu lado, incentiva-das a aperfeiçoar suas técnicas de CQ,assim como as empresas que dependemdas grandes redes de distribuição de ali-mentos que, dado o volume de suascompras, podem constituir, nos casosem que disponham de efetivos departa-mentos de CQ estruturados, pólos de ir-radiação da demanda por qualidadeexercida pelos consumidores em direçãoaos produtores de alimentos.

O aperfeiçoamento do CQ dependetambém do grau de perecibilidade dosprodutos e da percepção empresarial deque a atividade de controle pode repre-sentar importante redução das perdas ecompressão líquida de custos. Constata-se, por fim, que certas empresas dão im-pulso ao CQ após atravessarem momen-tos difíceis, com o risco de perda de con-

4. Há que ressaltar, por certo,que este rigor não encontra, ne-cessariamente, correspondêncianas condições de distribuição,estocagem e preparo dos ali-mentos nos programas institu-cionais.

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casos, a natureza do produto e a estraté-gia de CQ não prescindirão das análisesmicrobiológicas, enfrentando então a de-fasagem temporal entre os resultadosanalíticos e o processamento, pela dupli-cação das análises mais longas por testessubsidiários e de resultado imediato (co-mo o teste de azul de metileno aplicadoao leite pasteurizado).

Há, porém, situações que atribuemeconomicidade intrínseca às atividadesde CQ: ao orientar a gestão racional desanitização, por exemplo, explicita-secomo o emprego excessivo de detergen-tes é prejudicial aos equipamentos, cons-tituindo, simultaneamente, um elementode sobrecusto e um fator limitativo daeficácia da higienização, posto que oemprego de detergentes em concentra-ção incorreta reduz o poder descontami-nante destes produtos. Neste caso, aação de CQ contribui, ao mesmo tempo,para economizar material de sanitiza-ção, reduzir a corrosão dos equipamen-tos e elevar os níveis de eficiência da hi-gienização.

Em resposta aos distintos fatores deestímulo ao desenvolvimento do CQ,certas empresas sugerem a pretensão deexpandir suas atividades de controle, se-ja diversificando-as na direção da pes-quisa e desenvolvimento de novos pro-dutos, seja reforçando a realização decertos testes físico-químicos, ou vislum-brando o ingresso na área das análisesmicrobiológicas.

Mas uma observação mais rigorosademonstra que o fortalecimento do CQdepende também das complexas relaçõesestabelecidas entre a administração cen-tral da empresa, as gerências de produ-ção e os Departamentos de Controle deQualidade. Neste contexto, o Departa-mento de CQ é levado a legitimar-se jun-to à administração central da empresa,tentando explicitar a economicidade glo-bal de seus procedimentos, assim comoos ganhos de credibilidade que eles po-dem propiciar à mesma. Face aos res-ponsáveis pela produção, o Departamen-to de CQ é levado, por vezes, a demons-trar a validade de seus resultados analíti-cos, buscando, em casos extremos, suaconfirmação junto a órgãos externos àempresa, como laboratórios oficiais ouuniversitários. Em outros casos, o CQ

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torna mais freqüentes suas amostragenscom o fim de reverter a eventual des-crença da gerência da produção ou detentar contornar a aparente incompatibi-lidade entre os parâmetros analíticos for-mais e as evidências fundadas no sabertécnico tradicional dos responsáveis pelaprodução, quando estes expressam difi-culdades no entendimento das análises.Enquanto não se alcança o entendimentodesejado junto aos responsáveis pelaprodução, é comum a fixaçãode especifi-

cações e padrões mais rígidos do que osrealmente necessários - meio utilizadopelo CQ para, com margem de seguran-ça, resguardar-se de eventuais desviospraticados no processo produtivo. Emsíntese, face à condução geral do proces-so produtivo, o CQ e a Gerência de Pro-dução engajam-se em um aparente con-fronto entre objetivos de qualidade e ob-jetivos de volumes de produção, conflitocujo tratamento se traduz na adoção dedistintas estratégias globais de controlede qualidade, que a seguir serão analisa-das separadamente.

ESTRATÉGIAS ALTERNATIVAS DE GESTÃOEMPRESARIAL DO PROCESSO DE TRABALHOFACE AOS OBJETIVOS DE GARANTIA DASFORMAS ÚTEIS DO PRODUTO ALIMENTAR

Designamos aqui por estratégias decontrole de qualidade os modos empre-sariais de organização do trabalho e degestão das qualificaçõesdo trabalho comvistas à obtenção de atributos predeter-

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TRABALHO E CONTROLE DE QUALIDADE NA INDÚSTRIA DE ALIMENTOS

minados de uso das mercadorias. Taisestratégias resultam em distintos modosde integração das atividades explícitasde CQ no processo produtivo, conside-rando-se, em particular, os diferentesgraus e tipos de identidade própria, atin-gidos por estas atividades frente às ope-rações correntes de produção.

Estratégias de controle autônomo dequalidade exercido sobre a produção

O primeiro tipo de estratégia define-se pelo fato das atividades de CQ volta-rem-se para o exercício de um efetivocontrole sobre o processo produtivo.Observa-se, neste caso, a vinculação for-mal do CQ à Direção Industrial e umgrau de autonomia em face da Gerênciade Produção suficiente para imprimir àrotina das práticas produtivas os precei-tos requeridos para o alcance das especi-ficações desejadas. Nestes casos, os con-flitos potenciais entre os objetivos dequalidade e os de volume de produçãotendem a ser institucionalizados e leva-dos às instâncias diretoras quando nãosão, com sucesso, negociados entre asrespectivas gerências. A autonomia doCQ permite, por certo, que ele exerçaseu papel fiscalizador sobre as condi-ções visíveis da produção, mas tambémque execute um acompanhamento dosparâmetros não aparentes dos processosfísico-químicos e microbiológicos inter-nos ao produto. Neste sentido, a exterio-ridade e autonomia do CQ face à Gerên-cia de Produção não visam apenas a dar-lhe força administrativa, mas tambémmaior eficácia funcional. Assim, pode oCQ apontar, a partir de uma observaçãoexterna, a incidência de práticas produ-tivas incorretas dificilmente percebidaspelos próprios trabalhadores de produ-ção, posto que trazidas pela própria roti-na repetitiva dos processos. Pode, igual-mente, fazer face a circustâncias impre-vistas, como no caso da detecção dascausas de uma contaminação. Tende aexercitar-se também no enfrentamentode situações emergenciais, como oexemplifica a intervenção do CQ na re-formulação funcional e espacial de umafábrica de laticínios, contaminada porocasião das graves inundações ocorridasno sul do País em anos recentes. Nestamedida, passa o CQ a desempenhar não

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apenas um papel fiscalizador do proces-so produtivo visível - notadamente atra-vés da inspeção de campo - mas tam-bém de investigador permanente dascondições não aparentes do processo,com o apoio essencial das práticas labo-ratoriais. É, para tanto, exemplar o casoem que longos meses de investigação fo-ram necessários para a detecção de umafonte de contaminação de uma fábricade massas que só pôde ser desvendadaquando o acaso levou a que fossem cole-tadas amostras em um momento nãoprevisto do processo, revelando por estavia o foco originário do fenômeno. Emoutro exemplo, a intensificação da coletade amostras permitiu que se localizasseuma contaminação a partir do desgastedo material usado na pressão sobre asplacas de um trocador de calor, desgasteeste que fazia diminuir a vedação entreo produto e a água de resfriamento, per-mitindo a infiltração desta última noproduto.

O CQ pode, nesta medida, vir a serconcebido como um centro depositáriodo saber técnico sobre o processo produ-tivo e sobre a operação global da planta.A superestimação de suas capacidadespode, porém, em alguns casos, projetarno CQ atributos de excepcionalidade quetendem a ser reforçados por seu manejodos processos não aparentes da micro-biologia dos alimentos. Face à "magia"de um laboratório de CQ, podem mani-festar-se, em conseqüência, episódios derequisição pouco discriminada de servi-ços. Mas, após a sensação vivenciadacom as primeiras análises microbiológi-cas realizadas numa planta e a possívelsobrecarga do laboratório com um lequeexcessivamente diversificado de solicita-ções, tende-se, normalmente, ao empre-go mais racional das qualificações deti-das pelo CQ, estabilizando-se as análisesao nível dos materiais, do produto pron-to, dos serviços de água e dos pontos doprocesso em que se acrescenta algumelemento novo ao produto em curso deprocessamento.

As práticas do primeiro tipo de estra-tégia de CQ procuram a compatibiliza-ção entre a própria concepção das insta-lações fabris e os requisitos do controle.Quando tal não acontece, o CQ deveaprofundar-se no conhecimento do pro-

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cesso produtivo para adaptar-se gra-dualmente, e, por vezes, ao sabor dascrises, ao desenho da planta, procuran-do retirar as atividades de CQ dos pon-tos mortos disponíveis na fábrica. Taisexperiências adaptativas resultaram, emalguns casos, até em seguidas destrui-ções e reconstruções de unidades produ-tivas, na busca de colocá-las ao abrigodos agentes contaminantes pela revisãodo desenho de áreas externas de movi-mentação, fluxos sanitários, sistemas deventilação e condições ambientais emgeral.

As estratégias de CQ exercidassobre a produção nãoimplicam necessa-riamente uma pre-dominância daspráticas laborato-riais. É possível aocorrência de umCQ autônomo eforte, constituído,por razões de na-tureza do proces-so técnico,predomi-nantementepela inspe-ção de cam-po. Se no casoda predominância do laboratório, "a ins-peção de campo constitui os olhos do CQ, le-vantando suspeitas para a análise dos res-ponsáveis pelo laboratório", no caso da pre-dominância da inspeção de campo, "o la-boratório faz as análises requeridas pelo CQde campo". No primeiro caso, o saber téc-nico concentra-se no laboratório, que éresponsável pela orientação da produçãocom o apoio dos inspetores de campo.No segundo caso, freqüentemente em ra-zão do caráter tradicional dos processos,o saber técnico concentra-se na inspeçãode campo, depositária das capacidadesperceptivas básicas dos chamados "prá-ticos" no reconhecimento sensorial dascondições do processamento, com o re-curso fundamental, mas delimitado, àspráticas laboratoriais. Neste último caso,no entanto, os conceitos de CQ penetra-ram a própria produção, fazendo dosinspetores de campo seus agentes dife-renciados e independentes face aos res-ponsáveis pela produção.

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Estratégias de controle de qualidadesubordinado à produção comresponsabilidade sobre as condiçõesperiféricas de produção

O segundo tipo de estratégia de CQ éaquele em que o controle é concebido co-mo um dos componentes do Departa-mento de Produção. Não há autonomiados membros do CQ face à produção,não existindo, portanto, nenhuma instân-cia que exerça uma fiscalização sobre as

operações da produção ou um acom-panhamento sistemático das condi-ções físico-químicas e microbioló-gicas do produto. Designa-seaqui por CQ, na verdade, o con-

junto formado pelo labo-ratório e pelo corpo deencarregados de pro-dução. A estes últi-mos atribui-se a in-cumbência de fa-zer o controle dequalidade de

campo, redu-zido de fa-to às pró-prias práti-cas de su-pervisãobaseada emcritérios vi-

suais e olfati-vos que não são substancialmente altera-dos por conceitos sistematizados de con-trole de qualidade. Ao contrário do quese percebeu no primeiro tipo de estraté-gia, não são aqui os inspetores de campo"os olhos do CQ", mas "o CQ é que consti-tui os olhos da Gerência de Produção". Nãohavendo nenhuma equipe diferenciadade campo que exerça o controle sobre aprodução, o CQ propriamente dito res-tringe-se, neste caso, simplesmente à uni-dade laboratorial que, nesta condição,"faz apenas o intercâmbio de informações coma Gerência de Produção", "assessorando aprodução e atestando a qualidade do produ-to". De um lado, a equipe do laboratórionada conhece sobre as formulações, e, deoutro, os encarregados de produção "vãoao laboratório buscar dados e não orienta-ções". Além da realização de alguns testesfísico-químicos - em parte, aqueles asso-ciados ao próprio rendimento industrialdo processo, como a análise da força do

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gel utilizado na atribuição de consistên-cia a geléias - ou a participação diretano processo produtivo, preparando sal-mouras ou caldas, por exemplo, o labo-ratório é responsabilizado diretamenteapenas pelo controle da higiene e saniti-zação do ambiente e a detecção de roe-dores, ou de funções paralelas como ade planejar a alimentação dos trabalha-dores. Neste tipo de estratégia, o CQnão é concebido como um centro difusorde saber técnico na empresa. Em certoscasos, a carência destes pólos internosde competência é suprida pelo recurso aespecialistas, eventualmente estrangei-ros, que testam os produtos e repensamas práticas industriais da empresa, comvistas à melhoria das qualidades orga-nolépticas do produto, buscando com-pensar assim a ausência de um CQ ativoe sistemático.

Estratégia de controle de qualidadecompensatório efetuado a posteriori

O terceiro tipo de estratégia observa-do, caracteriza-se por privilegiar asações corretivas em detrimento dasações preventivas de controle. Esta es-tratégia não comporta uma inspeção decampo autônoma, podendo não haver,por vezes, recurso a qualificações apro-priadas nem mesmo ao nível da própriasupervisão de produção, onde são en-contráveis mecânicos ou contramestrestêxteis encarregados da produção de ge-léias, por exemplo. Não cabe, neste caso,ao CQ a fiscalização da produção, nemtampouco a responsabilidade por condi-ções periféricas e ambientais do proces-so, como higiene e sanitização das plan-tas. Por vezes, o CQ não é formalizadoem um Departamento e tampouco emiteprincípios a serem seguidos pelos traba-lhadores da produção. No que diz res-peito às práticas preventivas, faz-se "omínimo necessário para o funcionamento daprodução", procedendo-se ao chamado"controle tolerante", que fecha os olhospara certas impropriedades como, porexemplo, a má qualidade da matéria-prima em épocas de crises de abasteci-mento. Costuma-se, neste caso, atribuir-se ao CQ as funções laboratoriais cons-tantes da seqüência produtiva e ineren-tes à própria natureza do produto, comoas tarefas de reposição de sal, testagem

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de pH e densidade em processo de fer-mentação em salmoura. As análises delaboratório são, em geral, componentesdo processamento corrente, incidindosobre os atributos que fazem a própriaidentidade do produto, como consistên-cia, concentração e transparência de ge-léias, por exemplo. Algumas análises sãotambém justificadas exclusivamentequando é percebida alguma insuficiêncianos exames visuais, como nas análises daacidez do azeite, por exemplo.

Ante a inexistência de normas apro-priadas, restará ao CQ agir a posterioritentando minorar os riscos de contami-nação ou deterioração aceleradas do pro-duto. Para tanto, recorre-se a uma eleva-ção dos parâmetros técnicos dos procedi-mentos de conservação, como a pasteuri-zação a 100°em lugar dos 75°requeridos,ou pela ampliação do tempo de passa-gem do produto pelo tratamento térmi-co. Pode-se também aduzir uma margemde segurança aos padrões de pH. Alémdas práticas compensatórias nos procedi-mentos de conservação, recorre-se tam-bém ao armazenamento técnico, que per-mite observar, ao longo de alguns meses,conforme o caso, o estado de vácuo edescontaminação de um produto, pres-crutando-se a ocorrência de defeitos nosprocessos de recravação através de sinaiscom vazamentos, estufamento ou mes-mo explosão de latas.

O terceiro tipo de estratégia de CQapóia-se, portanto, na adoção de práticasde conservação a altos parâmetros e dearmazenagem técnica, que desempe-nham um papel compensatório face àinexistência de procedimentos apropria-dos de CQ sobre a produção, face à au-sência de qualificações adequadas na pro-dução e à inexistência de qualquer tipo decontrole microbiológico dos alimentos.

A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO E OSATRIBUTOS QUALITATIVOS DO PRODUTO

Dadas as estratégias até aqui delinea-das, sobressai o papel central nelas de-sempenhado por dois fatores: a informa-ção e a qualificação. A informação cons-titui a matéria-prima do controle, sejamelas informações obtidas através da ins-peção de campo, sejam elas adquiridaspor via das análises laboratoriais. A esto-

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cagem destas informações é essencial,por exemplo, para a racionalização doabastecimento em matérias-primas. Estasúltimas podem, em certos casos particu-lares, atingir várias centenas de tipos di-ferentes de insumos, requerendo umacompanhamento cuidadoso das even-tuais reincidências de determinados for-necedores em problemas de qualidade.O cadastramento de amostras e o arqui-vamento dos laudos analíticos servem,por vezes, de arma de defesa da credibi-bilidade dos produtos, quando da ocor-rência de alguma irregularidade após aentrega dos lotes. A pertinência e preci-são dos dados do CQ serão, por outro la-do, imprescindíveis para que se negociea superação das freqüentes manifesta-ções de empirismo por parte da Gerênciade Produção.

A associação de idéias entre a práticado CQ e o sentido da visão é marcanteem mais de uma das estratégias de CQaqui mencionadas: o CQ pode, em umcaso, ser "o olho da Gerência de Produ-ção", ou, em outro, a inspeção de camposer vista como "o olho do CQ". O queestá em jogo, portanto, em ambos os ca-sos, é o objetivo da visão, ou seja, a na-tureza específica da informação procu-rada. O rigor no tratamento da informa-ção será, por fim, essencial, posto quedele dependerá a aceitação ou rejeiçãode lotes, a garantia de credibilidade dasmarcas e a prevenção da perda de par-tes de mercado.

A qualificação do trabalho surge, porsua vez, como uma dimensão conexa àinformação, posto que ela implica deter-minado modo de distribuição da infor-mação técnica entre os agentes da produ-ção. Ela exprime, na realidade, a capaci-dade do coletivo de trabalhadores pro-duzir e tratar as informações sobre oprocesso de trabalho na produção de ali-mentos. O manejo correto destas infor-mações por parte dos trabalhadores seráessencial para a prevenção dos riscos decontaminação e deterioração do produtoalimentar. É, por esta razão, comum a vi-vência de situações de sobressalto porparte dos responsáveis pela produção,que temem afastar-se das plantas fabris,ainda que por curtos momentos, face aosriscos decorrentes dos consideráveis ní-veis de desqualificação da força de traba-

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lho na indústria de alimentos. Em certoscasos, a possibilidade de realização deanálises microbiológicas é completamen-te afastada pelo temor de que a desquali-ficação do pessoal de apoio resulte emprocessos incontroláveis de infestaçãodas fábricas.

A deficiente qualificação do trabalhoé, com efeito, o nó górdio frente ao qualas empresas adotarão diferentes práticas,que podem ir do manejo do tempo de ex-periência na empresa como critério dealocação de trabalhadores às áreas mais

sensíveis do processo produtivo, ao exer-cício de estrito controle sobre as condi-ções de uso produtivo do corpo do tra-balhador.

A capacidade das indústrias de ali-mentos assegurar padrões de qualidadeadequados defronta-se, basicamente, àslimitações do padrão específico do em-prego vigente neste segmento indus-trial, caracterizado por níveis salariais ede escolaridade médios inferiores aosda indústria de transformação como umtodo.

A QUALIFICAÇÃO DO TRABALHO, O CO E AESPECIFICIDADE DO PRODUTO ALIMENTAR

A natureza perecível da matéria-pri-ma alimentar a torna extremamente sen-sível à ação de variáveis que lhe são ex-ternas, sejam elas provenientes do meioambiente ou da ação do trabalho direto.Os processos de trabalho da indústria dealimentos têm, portanto, como núcleo, o

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manejo dos mecanismos não aparentesde degradação físico-química e de conta-minação microbiológica das matérias-primas e produtos acabados. O bom an-damento da produção, depende, conse-qüentemente, do conhecimento e docontrole que o coletivo de trabalho exer-ça sobre as circunstâncias que favorecemos processos de degradação e contami-nação dos produtos. O saber técnico es-pecífico à indústria de alimentos repou-sa, portanto, na consciência de que exis-tem processos de adulteração dos pro-dutos que escapam à percepção senso-rial primária, requerendo dos trabalha-dores capacidades de abstração (no caso,a capacidade de conhecer eventos nãovisíveis) que não são exigidas nas ativi-dades industriais alheias à ação danosade microorganismos. Por outro lado, anecessidade de controle sobre os proces-sos de degradação do produto ergue li-mites à simplificação de tarefas, bem co-mo à fragmentação e distribuição do sa-ber técnico entre os trabalhadores, pois,neste contexto, torna-se indispensávelao trabalhador direto conhecer a razãode ser das distintas operações e etapasdo processo bem como de sua ordena-ção. O exercício do controle sobre osagentes contaminantes exige que os tra-balhadores saibam porque respeitar astemperaturas apropriadas, manter a or-dem seqüencial das operações, observara dosagem das formulações, aplicar efe-tivamente os procedimentos de higienee sanitização etc.

A qualificação do trabalho na indús-tria de alimentos tem, portanto, como re-quisito específico central, a consciênciada existência do mundo não-aparente damicrobiologia. Como a qualidade doproduto alimentar depende da integrida-de físico-química e do estado microbioló-gico do mesmo, um alto nível de qualifi-cação do conjunto dos trabalhadores afi-gura-se indispensável à garantia dos pa-drões qualitativos do produto.

No entanto, as estratégias de controlede qualidade observadas parecem pres-cindir de elevados níveis de qualificaçãodistribuídos pelo conjunto da força detrabalho. Pelo contrário, dois outros ti-pos de procedimentos tendem a ser, al-ternativamente, adotados com a finalida-de de obter requisitos de qualidade, sem

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recorrer à elevação dos níveis médios dequalificação do trabalho:

a. o primeiro tipo de procedimento con-siste em combinar consideráveis in-vestimentos em laboratórios com umaconcentração de profissionais qualifi-cados no setor de controle de qualida-de. Neste caso, são mantidos os baixosníveis de qualificação e de salários dostrabalhadores da produção, compen-sando-se os eventuais procedimentosinadequados de processamento comum controle laboratorial a posteriori doproduto final e dos insumos interme-diários. Tal alternativa resulta eviden-temente onerosa, tanto pelo alto custodo instrumental analítico como pelapermanência dos riscos de perda deprodução. Mas ela é normalmente via-bilizada nos segmentos industriaisque produzem em grandes quantida-des para mercados relativamente cati-vos como o dos programas institucio-nais de nutrição, onde a relativa esta-bilidade dos contratos de fornecimen-to em grande escala permite a diluiçãodos custos em capital fixo e recursoshumanos para os laboratórios, bemcomo o das perdas eventuais de pro-dução;

b. o segundo e mais difundido tipo deprocedimento consiste em compensaros baixos níveis de qualificação do tra-balho com o exercício de rigoroso con-trole sobre os corpos dos trabalhado-res, seja sobre seus gestos produtivos,seja sobre seu estado de sanidade físi-ca. Em lugar de investir em formaçãoprofissional, opta-se aqui pela intro-dução de um rígido poder disciplinar,que tem por finalidade impedir a con-taminação e a degradação do produto,buscando prevenir as eventuais per-das de produção.

Em ambos os procedimentos acimadescritos, as empresas preferem empre-gar na produção trabalhadores poucoqualificados, e, portanto, desprovidos deconhecimentos técnicos suficientes sobreos processos microbiológicos. Por um la-do, esta opção assenta-se fundamental-mente na recusa em alterar o padrão sa-larial característico da indústria de ali-

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mentos, onde os baixos salários asso-ciam-se ao emprego intensivo de mão-de-obra feminina e recém-chegada domeio rural. Mas a preferência por traba-lhadores pouco qualificados parece nãorestringir-se aos objetivosde compressãodos custos salariais, podendo explicar-setambém pela natureza específica dos co-nhecimentos técnicos que caracterizam aformação profissional na área de alimen-tos, a saber, as noções de microbiologia.

Com efeito, a formaçãoprofissional naárea da microbiologia consiste, basica-mente, em dar visibilidade a processosbiológicos não aparentes. Tal preceitopedagógico encerra, porém, a potenciali-dade simbólica de suscitar nos trabalha-dores, por analogia, interrogações sobredimensões, igualmente não aparentes,relativas aos processos sociais subjacen-tes à produção de mercadorias. Somostentados a supor que, estando o conteú-do central da formação apoiado no de-senvolvimento da consciência sobre pro-cessos biológicos não aparentes, estaconsciência poderia vir a ser transferidapelos trabalhadores a outros aspectos doprocesso produtivo, favorecendo reinter-pretações da própria organização socialda produção. Em conseqüência, ao seremintroduzidos no universo da microbiolo-gia, os trabalhadores estariam não sómelhor qualificando-se para o trabalho,mas também melhor habilitando-de a en-tender o processo social de produção emque se encontram inseridos. Neste caso,

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com particular relevância, a maior quali-ficação do trabalho resultaria em signifi-cativo fortalecimento do poder de barga-nha dos trabalhadores.

Por outro lado, em todas estas estraté-gias de controle de qualidade compatí-veis com baixos níveis médios de quali-ficação dos trabalhadores da produção,observa-se, em maior ou menor grau, orecurso a um poder disciplinar exercidosobre o corpo destes trabalhadores. Talpoder exerce-se, primeiramente, peladelimitação de um conjunto de atitudese gestos considerados impróprios ao es-paço de produção, como o ato de coçar-se, tocar os cabelos, espirrar etc. Este ti-po de disciplina pode estender-se tam-bém a um controle sobre o estado de hi-giene corporal e sanidade física dos tra-balhadores. Independentemente de seusgestos produtivos, o próprio corpo dotrabalhador torna-se, então, objeto deexames para a detecção de lesões cutâ-neas ou de eventuais doenças infecto-contagiosas. Em ambos os casos, o ins-trumento do controle sobre os corposdos trabalhadores é a vigilância. O pró-prio discurso gerencial insiste em que ainspeção de campo é o "olho do controlede qualidade" ou que fi o controle dequalidade é o olho da gerência de pro-dução". Este olhar, tendo por fim condi-cionar a constituição do corpo do traba-lhador em força de trabalho, exerce mi-nucioso controle sobre as operações egestos dos trabalhadores no espaço pro-dutivo, inscrevendo-se, de certo modo,no paradigma da visibilidade total doscorpos idealizado no Panopticon deBentham.

Mas o poder disciplinador dos corposdos trabalhadores pode também esten-der sua ação ao nível das condições dehigiene e sanidade vigentes fora do es-paço produtivo. Neste caso, não é mais avigilância o instrumento do controle,mas a intervenção direta exemplificadana adoção do banho obrigatório para to-dos os trabalhadores ao início de cadajornada de trabalho. Um tal procedi-mento consagra uma inequívoca rupturaentre o corpo produtivo e o corpo nãoprodutivo dos trabalhadores, entre o va-lor de uso do corpo do trabalhador parao capital e suas qualidades externas aoespaço fabril, entre os requisitos de sani-

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dade para a produção de mercadorias eos requisitos de sanidade para a existên-cia dos trabalhadores.

Ao substituir a qualificação do coletivode trabalhadores pelo controle discipli-nar sobre seus corpos, as empresas assu-mem, portanto, a dicotomia entre o corpoprodutivo e o corpo improdutivo dos tra-balhadores e vêm-se, conseqüentemente,às voltas com as duras realidades da exis-tência dos trabalhadores fora do espaçofabril. É, assim, quase unânime o reco-nhecimento gerencial de que a grande li-mitação ao respeito às normas de higieneindustrial na produção de alimentos en-contra-se nas próprias condições de vidados trabalhadores. Assinalam também ostécnicos de controle de qualidade que édifícil haver higiene no local de trabalhoquando não há higiene no local de mora-dia, não só por carências educacionais,mas, antes de tudo, pela insuficiência dascondições materiais de habitação, con-

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substanciadas na ausência ou precarida-de dos serviços de água e esgoto. Aindasegundo estes técnicos, é preciso "que otrabalhador tenha uma vida saudável paradar continuidade a ela dentro do ambiente detrabalho". Evidencia-se, portanto, a con-tradição entre os requisitos de higiene in-dustrial na produção de alimentos e osbaixos padrões relativos de remuneraçãoe, conseqüentemente, de habitação dostrabalhadores da produção. Elucidam-se,igualmente, os mecanismos pelos quais aobtenção dos atributos qualitativos dasmercadorias passa não só pelas estraté-gias empresariais de gestão das qualifica-ções no espaço fabril, mas também, e, nocaso da indústria de alimentos, sobretu-do - pelas próprias condições de existên-cia dos trabalhadores. O uso deste seg-mento industrial nos permite entenderefetivamente como a qualidade do pro-duto pode depender, antes de tudo, daqualidade de vida dos trabalhadores.

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Artigo recebido pela Redação da RAE em janeiro/93, avaliado em 18/02/93, 30/09/93, aprovado para publicação em setembro/93. 45