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Transição e Movimentos Sociais Contribuição ao Debate da Reforma Sanitária Nilson do Rosário Costa Estudo dedicado a analisar o desenvolvimento do conceito de movimento social urbano na ciência social brasileira. Demonstra como o "paradigma" de movimento social desconsiderou as questões institucionais em suas estratégias políticas. O estudo também analisa o arcabouço teórico dos movimentos sociais como condição cultural que limitou sua influência na dinâmica institucional brasileira. Conclui que a baixa eficácia política foi um importante elemento explicativo das poucas mudanças das políticas públicas na área social na década de 80. I - INTRODUÇÃO À medida que, nos últimos anos avança, no Bra- sil, o debate a respeito da reforma sanitária, têm apare- cido referências genéricas aos "movimentos sociais" como interlocutores das tentativas de desenvolvimento de um novo padrão de serviços públicos de saúde. O aspecto positivo deste fato é que esta preocupação tem permitido discutir, na área de saúde, a ação dos distintos grupos e classes na definição das políticas sociais. De alguma maneira, as propostas sobre a reor- ganização dos serviços de saúde deixam de ser tratadas como questão administrativa ou de interesse puramente técnico; começam a considerar, nos seus cálculos, o papel que demandas coletivas exercem na definição da utilidade e amplitude das políticas sociais. Curiosamente, a temática dos movimentos sociais (*), apesar de bastante referida no debate da reforma sanitária, ainda não recebeu, na saúde coletiva, desen- volvimento teórico sistemático que definisse suas ca- racterísticas e singularidades no interior da sociedade brasileira. Esta falta de estudos de maior fôlego tem permi- tido que a noção de movimentos sociais apareça sob os mais diferentes sentidos. Freqüentemente, de acor- do com a opinião a respeito de "participação popular" (*) Utilizo a expressão no sentido estrito de movimento social urba- no, excluindo, portanto, o uso ge- nérico que se faz do termo para denominar todas as formas de luta social, como as lutas sindicais, camponesas etc.

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Transição e Movimentos SociaisContribuição ao Debate da Reforma Sanitária

Nilson do Rosário Costa

Estudo dedicado a analisar o desenvolvimento doconceito de movimento social urbano na ciência socialbrasileira. Demonstra como o "paradigma" demovimento social desconsiderou as questõesinstitucionais em suas estratégias políticas. O estudotambém analisa o arcabouço teórico dos movimentossociais como condição cultural que limitou suainfluência na dinâmica institucional brasileira.Conclui que a baixa eficácia política foi um importanteelemento explicativo das poucas mudanças daspolíticas públicas na área social na década de 80.

I - INTRODUÇÃO

À medida que, nos últimos anos avança, no Bra-sil, o debate a respeito da reforma sanitária, têm apare-cido referências genéricas aos "movimentos sociais"como interlocutores das tentativas de desenvolvimentode um novo padrão de serviços públicos de saúde.O aspecto positivo deste fato é que esta preocupaçãotem permitido discutir, na área de saúde, a ação dosdistintos grupos e classes na definição das políticassociais. De alguma maneira, as propostas sobre a reor-ganização dos serviços de saúde deixam de ser tratadascomo questão administrativa ou de interesse puramentetécnico; começam a considerar, nos seus cálculos, opapel que demandas coletivas exercem na definiçãoda utilidade e amplitude das políticas sociais.

Curiosamente, a temática dos movimentos sociais(*), apesar de bastante referida no debate da reformasanitária, ainda não recebeu, na saúde coletiva, desen-volvimento teórico sistemático que definisse suas ca-racterísticas e singularidades no interior da sociedadebrasileira.

Esta falta de estudos de maior fôlego tem permi-tido que a noção de movimentos sociais apareça sobos mais diferentes sentidos. Freqüentemente, de acor-do com a opinião a respeito de "participação popular"

(*) Utilizo a expressão no sentidoestrito de movimento social urba-no, excluindo, portanto, o uso ge-nérico que se faz do termo paradenominar todas as formas de lutasocial, como as lutas sindicais,camponesas etc.

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e "medicina comunitária" ou como subproduto dosdebates sobre o "planejamento estratégico".

Esta peculiaridade no trato do tema na saúde cole-tiva contrasta fortemente com a existência, nas dife-rentes ciências sociais, de uma considerável literaturaa respeito do assunto. Esta literatura, originada princi-palmente a partir de meados da década de 70, estápreocupada em definir as relações entre classes popula-res e a realização da cidadania no Brasil. A importânciae magnitude da temática origina inclusive alguns balan-ços e revisões a respeito do grande número de publica-ções sobre o assunto no país. (Ver Boschi, 1984).

Neste texto, pretendo fazer uma breve exposiçãosobre as principais questões sugeridas por essa literatu-ra, no sentido de contribuir para a discussão dos pro-blemas relacionados com a temática das demandas co-letivas e da participação política vis-à-vis o Estadoe as políticas sociais brasileiras. Acredito ser esse umtema de enorme relevância, na atual conjuntura desaúde em função do acelerado processo de implantação"pelo alto" da chamada reforma sanitária. Entre outrasmudanças administrativas, esta reforma setorial temacarretado a descentralização e repasse de toda gestãono INAMPS para estados e municípios. Este fato temsuscitado sérias preocupações a respeito do possíveluso de tais recursos públicos por máquinas políticaslocais de perfil clientelista. A quem cabe a tarefa decontrolar esse processo? Freqüentemente, a respostaé rápida: aos movimentos sociais! Aparentemente apanacéia universal capaz de remediar todos os descami-nhos das políticas sociais no Brasil...

Deve-se chamar a atenção que o problema dademocratização das políticas sociais não é de interesserestrito ao setor de saúde: é um dos eixos cruciaisdo interminável e escorregadio processo de transiçãodemocrática brasileiro. Talvez alguns pontos a respeitoda história recente dos movimentos sociais no Brasilajudem a compreender este complexo jogo de indefini-ção política e letargia institucional que praticamenteparalisa o avanço dos direitos sociais no país. E quelança uma sombra extremamente carregada sobre a di-nâmica dos gastos públicos na atual conjuntura.

II - GÊNESE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Cabe saber, então, o que diferencia os "novos"movimentos sociais contemporâneos das manifestaçõestradicionais de luta social conhecidas na história? Por

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que constituiriam um campo tão especial de interessepolítico, para o qual se transfere retoricamente tantasresponsabilidades públicas?

Uma possível resposta parece indicar que na histó-ria recente das lutas populares no Brasil — como emvários países latino-americanos — os movimentos so-ciais foram definidos como expressão, no plano políti-co, dos conflitos originados pelas contradições urba-nas. Fundamentalmente, registram a emergência de no-vos atores políticos em confrontação com o Estado,politizando a questão urbana. A origem da questãourbana está, por um lado, na incapacidade do capita-lismo brasileiro resolver as novas, e sempre crescentes,necessidades postas à reprodução da força de trabalho;por outro, no estilo de política urbana do Estado,baseada em inversões públicas rentáveis a reproduçãodo capital. Esta peculiar via de ação estatal fez comque no Brasil, nas últimas duas décadas, as políticassociais (saúde, saneamento, educação, habitação, etc.)apresentassem um desenvolvimento excludente, inefi-caz e dominantemente privatista.

Essa política restritiva criou as condições paraque surgissem, entre as classes populares brasileirasdos grandes centros urbanos, movimentos de reivindi-cação por serviços sociais cuja carência afeta as condi-ções de sobrevivência na metrópole. Por essa razão,os estudos procuraram examinar a natureza dessas con-tradições, que colocam o Estado no centro das aten-ções populares, mobilizados por demandas de serviçospúblicos e melhores condições de existência.

O antagonismo ao Estado definiu, assim, as con-dições para a unidade dos protagonistas desses movi-mentos, acelerando o desenvolvimento de novos sujei-tos históricos que poderiam adquirir autonomia e inde-pendência e se afirmar como interlocutores políticosfundamentais na construção da cidadania (Jacobi eNunes, 1982). Os movimentos sociais agregaram seg-mentos heterogêneos da população urbana e a formade mobilização ocorreu fora dos partidos políticos edo sindicato. Foram movimentos essencialmente não-institucionais: o caminho encontrado pelas classes po-pulares para ocuparem espaço na cena histórica, pelainexistência de organizações formais de defesa econô-mica e de representação política diante do Estado edas classes dominantes.

A rápida difusão dessas experiências de luta socialrespondeu, em parte, também à crescente descrençanos modelos explicativos vigentes nos anos 50 e 60

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que elegeram a via clássica da luta entre as classesfundamentais do capitalismo como o único e necessáriocaminho da transformação social. Particularmente, nocaso, quando a classe trabalhadora estivesse dirigidapor um partido revoluconário. É necessário dizer queo modelo de partido variava de acordo com a expe-riência histórica de mudança socialista tomada comoreferência.

Para a idéia de movimento social, o novo motorda luta política seria a questão da sobrevivência coti-diana das classes populares na cidade capitalista. As-sim o eixo da luta de classes deveria ser deslocadodo âmbito da produção para a esfera da reprodução.Neste deslocamento de cenário, o principal ator damudança não mais poderia ser a classe trabalhadora,cujos interesses, em especial no Brasil dos anos 60e 70, seriam vistos como restritos e corporativos. Ca-beria às massas urbanas levar de roldão os mecanismosde dominação baseados em um sistema produtivo ex-cludente e que imprimiria seus limites ao criar umpadrão desigual para a reprodução da força de trabalhourbana. Neste contexto, aconteceu, primeiramente, oresgate das manifestações "irracionais e anárquicas":quebra-quebras, depredações, movimentos de protestoselvagem, pré-políticos. Estas manifestações afirma-riam a potencialidade das classes populares em intervirna redefinição da sociedade através de ações que passa-riam ao largo dos canais instituconais tradicionais (sin-dicatos e partidos), (Moisés e Alier, 1976).

A forte definição autonomista e não-institucionalcorrespondeu claramente a uma reação aos mecanismosclássicos de ação política, como partidos e sindicatosexistentes no Brasil durante o regime autoritário(1964-1974), respectivamente, sob uma férrea lei elei-toral que bania os partidos de esquerda e regidos poruma legislação sindical de origem corporativa. Alémda acusação de baixa representatividade, estas institui-ções eram tidas como obstáculos ao desenvolvimentode uma crítica eficaz do Estado, não raro recebidocomo comitê gerencial dos interesses das classes do-minantes.

Também foi esse o sentido da recuperação daslutas populares por moradia, água, luz e demais servi-ços públicos urbanos que constituiriam uma rede deintercâmbio de experiências e organização convertidaem movimento de bairro. Dentro deste desenvolver-se-iam experiências de ajuda mútua e aprendizado polí-tico em comum, em comissão de vizinhos, comuni-

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dades eclesiais de base, grupos femininos, grupos detrabalho e cooperativas de alimentação, etc., que esta-beleceriam as bases para uma nova sociabilidade políti-ca e uma nova cidadania. A transformação de necessi-dades e carências em direitos operar-se-ia dentro dosmovimentos sociais, revisando e redefinindo o espaçoda cidadania: a passagem do reconhecimento da caren-cia para a formulação da reivindicação seria medidapela afirmação de um direito. Os habitantes da cidadeafirmariam ter direito a água, luz, esgoto, assistênciamédica, etc., redefinindo as relações entre as classespopulares e o Estado (Durham, 1984).

Não discutirei aqui as objeções apontadas nosúltimos anos sobre o que seria a escassa eficácia dosmovimentos sociais, que não conseguiriam estabelecerformas institucionais de existência e de relacionamentocom o Estado no sentido de redefinir o papel desteno interior da sociedade brasileira. Como não teriamavançado para ocupar uma posição de centralidade nasociedade civil, revolucionando o sistema de represen-tação de interesse, e, portanto, o padrão de apropria-ção desigual de riqueza no país. Igualmente não teriamobtido a reformulação dos estatutos, concepções e prá-ticas dos partidos políticos e corpos legislativos, demo-cratizando a gestão da coisa pública. Em resumo, nãoteriam tido êxito em realizar transformações de vultono quadro da vida nacional. Sua autonomia ideológicanão assegurou a possibilidade de intervenção na corre-lação de forças do sistema político dominante. Ade-mais, sua ação reivindicativa foi fragmentada e limita-da pelo próprio movimento do aparelho do Estado(Cardoso, 1983b; Boschi, 1984; Martins, 1984).

Especificamente no que diz respeito às políticasgovernamentais existe, inclusive, certo consenso a res-peito das dificuldades de medir os limites e impactotransformador dos movimentos sociais em relação àspolíticas públicas setoriais. Machado da Silva afirma,por exemplo, que as tentativas nesse sentido estariamfadadas ao fracasso por ser difícil mensurar os inúmerosarranjos instituconais e as mudanças na forma de atua-ção das agências estatais que poderiam estar associadasà vivacidade dos movimentos de bairro (Silva, 1983).Não muito diferente é o ponto de vista de Jacobisobre as dificuldades de avaliação empírica dos efeitosinstitucionais da ação coletiva (Jacobi, 1985:207).

O aspecto que mais me interessa nessas observa-ções críticas é a ausência de uma reflexão teórica sobreas razões de ordem intelectual que teriam levado a

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tamanha ausência desse elenco de questões institucio-nais nas inquietações políticas das camadas populares.Parece que as análises assumem, a falta de organici-dade — e o caráter volátil — dos movimentos sociaiscomo um dado da natureza. Na verdade, tanto o esfor-ço de construção literária da idéia de movimentos so-ciais como o conjunto de trabalhos críticos, constituí-ram duas singulares vertentes teóricas, cuja principalsemelhança é o distanciamento intelectual e práticoa respeito do conjunto de problemas "tradicionais"do campo político que, historicamente, apareceram ar-ticulados aos problemas da democratização do Estadoe da realização da "cidadania". Quais são as principaisrepresentações literárias dessas duas correntes teóri-cas? E que limitações conceituais dão corpo a essedistanciamento intelectual?

III - AUTONOMISMO E INDEPENDÊNCIAPOPULAR

A primeira dessas vertentes, filia-se a um conjun-to de concepções, cuja elaboração literária não se res-tringe a autores brasileros, que define o elemento "no-vo" nos movimentos sociais, a criação de pequenosespaços de prática social nos quais o tema do podernão é fundamental (Evens, 1984:14). São trabalhosque têm como preocupação central a criação de uma"nova cultura política" e de novos "sujeitos históri-cos" a partir do surgimento dos movimentos sociais,que possam romper com a tradição "partidista" (Evers,1984:13) ou da "luta de classes" (Laclau, 1986:42).Nesse trabalho recente, Laclau afirma, por exemplo,que "o conceito de luta de classes não é correto nemincorreto — ele é, simplesmente, totalmente (sic) insu-ficiente para descrever os conflitos sociais contempo-râneos" (Laclau, 1986:42).

Em termos de experiência histórica brasileira, ostrabalhos que mais se aproximaram da definição dessa"cultura política", resultaram: 1) da produção intelec-tual, individual ou de "agências de assessoria do movi-mento popular", centrada nas concepções da pesquisaparticipante, pesquisa-ação etc.; 2) do conjunto dereflexões em torno do que genericamente é chamadono Brasil de "educação popular". Embora essas duasversões não sejam redutíveis uma a outra, freqüente-mente aparecem associadas nos estudos sobre os movi-mentos populares.

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Tomarei, a seguir, o discurso da educação popu-lar (*), referenciado ao tema dos movimentos sociais,como a principal fonte para exemplificar os traçosfundamentais da representação teórica dessa vertente.O que dá identidade a essa literatura, é o fato delacompreender os trabalhos que conceitualizaram a edu-cação popular como prática pedagógica "para e como povo".

Ademais, essa "pedagogia popular" resultou daação consciente de "agentes externos" (**) às classespopulares e que tinha (e tem) como meta educá-laspoliticamente. Deve-se ressaltar nessa prática, comomostra Wanderley, a atuação de pequenos "conscien-tes", que buscararn a identificação com as classes po-pulares, ajudando-as e animando-as e tentando a cons-tituição de verdadeiros "intelectuais orgânicos" aomovimento popular. A prática da educação popularbuscou assim vincular-se ao "interesse das classes su-balternas" e pensar teoricamente as experiências delutas populares como espaço pedagógico (Wanderley,1980).

Sem dúvida, desenvolveu-se nessas experiências,a partir da grande influência das primeiras obras dePaulo Freire, um esforço contínuo de repensar os pro-blemas ligados à metodologia, à pedagogia, aos instru-mentos educativos empregados e aos riscos que leva-riam a uma relação assimétrica de direcionamento porparte dos "agentes externos" e certas práticas de mani-pulação político-partidária e massificação.

Criticou-se, fundamentalmente, as práticas políti-co-institucionais que teriam inibido ou bloqueado as"formas democráticas de participação" e impedido a"conscientização" do homem brasileiro/povo/classespopulares. A construção desse processo político-pe-dagógico pavimentou igualmente o caminho para quefossem colocadas sob juízo as concepções leninistasda vanguarda revolucionária (Sousa, 1982).

O espaço pedagógico e — mais ainda — o espaçoda vivência política — foram então concebidos comoessencialmente horizontais e não diretivos, atenden-do-se ao ritmo e às iniciativas das classes populares.O processo de conscientização pela educação popularlevaria o educando a descobrir as relações entre osfatos, perceber as causas que o interligam e lutar paramudá-las (Beisegel, 1979).

Na falta de alternativas institucionais, configu-rou-se assim um esforço de incorporação, no planoda vida política, às massas populares, que mobilizou

(*) Poderia também recorrer aquià literatura da chamada "medicinacomunitária" e "medicina popular"que apresenta características bas-tante próximas ao discurso da edu-cação popular.

(**) Esta é uma expressão usualnos textos de educação popular.

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a energia de praticamente toda uma geração de intelec-tuais. Nessas condições, é óbvio que esse processotivesse seu curso ao largo das tradições políticas tradi-cionais ou legitimadas : de costas para o Estado e afir-mando a autonomia e a independência das classes po-pulares.

Além disso, definiu-se que a sustentação dessenovo espaço da vida política não mais seria o discursoelaborado a partir de um método ou teoria científicae coerente. O saber a que se deveria referir a educaçãopopular não poderia ser o "saber das classes domi-nantes, mas sim o das classes populares" (Manfredi,1978:40-61). Impunha-se a sistematização e divulga-ção desse novo saber que emanaria das classes popula-res. Este estaria inscrito nas práticas e relações docotidiano dos grupos subalternos, ainda que "desarti-culado e contaminado pelo saber dominante" (Manfre-di, 1978). Caberia à educação popular tornar-se umaprática na qual os próprios agentes populares pudessemse perceber como produtores de conhecimento, "de-purando e rearticulando" seu modo de agir e pensar.

Definia-se, desse modo, como verdadeiras, as re-lações de dualidade e negação, rígidas e absolutas,entre o campo da cultura do pobre/saber popular eo mundo da cultura burguesa/saber dominante.

A cultura do pobre, como expressou Bosi, seria"a terra de encontro com os outros homens"; compor-taria valores como "interesse verdadeiro para o outro" ;"a maneira direta de falar"; o "sentido do concretoe a largueza em relação ao futuro". O que, obviamente,deveria diferir do projeto da cultura burguesa de "redu-ção do tempo ao contábil", de "predomínio econômicosobre todas as formas de pensamento" etc. (Bosi,1979).

A cultura burguesa/saber dominante apareceriacomo todo indiferenciado, que compreenderia todosos saberes nascidos no campo institucional, desde odiscurso conservador mais reacionário até as constru-ções teóricas da economia política marxista. Implicita-mente, aceitou-se a tese de adscrição aos interessesdas classes dominantes de todo saber constituído foradas vivências, sensações, percepções etc, do "homemsimples", do "povo".

Os intelectuais (agentes) nada mais seriam quelegitimadores e reprodutores desse saber de classe.Caberia quebrar o "sistema de poder", do qual fazparte o discurso e o saber que o agente domina edecodificar o que os grupos populares têm a dizer.

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Essa prática educativa devia assim se restringir aoreforço da autonomia dos grupos populares, para quepudesse dizer de suas experiências, problemas, alegriase fundar uma identidade que os fortalecesse enquantogrupo (Garcia, 1980).

Em resumo, como sugere Costa, se as camadaspopulares são o sujeito determinante do processo detransformação social, a teoria (ou conhecimento deter-minante) nesse processo é elaborada pelas própriascamadas populares. Tratava-se de consolidar a teoriadas camadas populares, e não de elaborar outra vezuma teoria para elas. A proposta de educação popularfoi a de "ser um espaço onde as próprias camadaspopulares desenvolvam (expressem, critiquem, enri-queçam, reformulem, valorizem) coletivamente o seuconhecimento, as suas formas de apreender e explicaros acontecimentos da vida social. O agente pedagógicodevia respeitar o ritmo de aprendizagem, a culturae os valores das classes populares. E devia aprendercom eles antes de ser capaz de ensinar efetivamente(Costa, 1981).

A mediação entre o grupo de agentes e as classespopulares foi (e é) predominantemente realizada atra-vés do que Brandão denomina "agências intelectuaisde assessoria" freqüentemente religosas ou indepen-dentes (Brandão, 1984). Foi a produção intelectualdessas agências, que abrange uma vasta gama de posi-ções pedagógicas e políticas, o principal suporte desseconjunto de formulações onde, como aponta Mainwa-ring, aparentemente, "só importa o trabalho de base"(Mainwaring, 1984).

É possível trabalhar com a hipótese de que foinessas agências que emergiu o suporte intelectual dasconcepções a respeito dos movimentos sociais comoforma de manifestação coletiva essencialmente autôno-ma, alternativa, independente e espontânea. A visãotópica das tarefas político-pedagógicas que alimentouteoricamente o que Ribeiro e Machado da Silva perce-beram como certa "internalização da perspectiva", queestá na origem da grande quantidade de "estudos decasos" sobre experiências de movimentos popularesespecíficos e locais (Silva e Ribeiro, 1984).

A "internalização da perspectiva" contribuírapara estabelecer, a partir de uma posição teoricamenteativa, os limites e a volatilidade da ação prática dascamadas populares. Comentando sobre o trabalho debase pastoral, Mainwaring exemplifica que os agentes"estimulam o povo a participarem movimentos peque-

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ARTIGO

nos, relativamente fechados, porque acreditam que so-mente nesses movimentos tem-se realmente respeitopelo povo" (Mainwaring, 1984).

Essas concepções cimentam, efetivamente, as no-ções de senso comum que estabelecem um abismo in-transponível entre o mundo do movimento social edas vivências populares e o campo dos embates institu-cionais. De um lado estaria o movimento social, lugarda liberdade (ou da libertação) de afirmação de entida-de e de controle sobre a própria existência por partedos grupos populares; de outro, o "sistema institucio-nal" , lugar da repressão e controle sobre esses grupos(Silva e Ribeiro, 1984). Ocorre assim,um grande esfor-ço das "agências de assessoria" e dos intelectuais preo-cupados com as "bases" em reproduzir as "percepçõese vivências" ou demandas populares sem estabelecernenhuma mediação com movimentos político-estraté-gicos mais gerais. Não foi, portanto, o acaso que ope-rou a escassa reflexão sobre a dinâmica institucionaldo país — o que não resta dúvida, produziu entreas lideranças populares, uma certa postura teorica-mente ativa para a qual as questões de governo políticonão interessam ao movimento social. Parece que asclasses populares brasileiras se moveriam no interiorde uma sociedade abstrata na qual as exigências políti-cas de mudanças estruturais na ecnomia, seja de manei-ra reformista ou revolucionária, não pudessem fazerparte de sua referência cultural. As repercussões práti-cas dessas teses já são hoje parte da história: cristali-zaram no universo simbólico dos setores da populaçãocerto "fetichismo", em relação ao campo institucionalque seria algo inatingível, irremediável e essencial-mente impuro.

IV - TRANSIÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DO ES-TADO

A segunda corrente de opinião, que analisamos,compõe um conjunto singular pelo fato de tomarema questão do Estado como referência ao discutiremos movimentos sociais. Se na literatura anterior, ostemas do autonomismo e da cultura popular centrali-zavam as atenções, nessa literatura as preocupaçõesforam para a possibilidade, no Brasil, de estar sendogestada uma nova relação entre o Estado e as camadaspopulares, especialmente no que tange a políticas so-ciais específicas.

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Um primeiro ponto a destacar é que essas obrasrelativizam a visão genérica sobre o Estado brasileiropresente na literatura anterior: máquina repressora eincapaz de responder certas demandas tópicas de con-sumo coletivo das populações urbanas. Indiretamenteassumem o fato do capitalismo brasileiro, por necessi-dades estruturais, ter que viabilizar certas rotinas depolíticas sociais. Ou seja: que teria funcionado noBrasil a partir da década de 70 "razoavelmente bem,tudo o que se refere às obras de infra-estrutura. Queseria por intermédio delas que teria se dado o casa-mento entre interesses sociais e o interesse concretoda ordem capitalista representada pelos contratos esta-tais e as grandes empreiteiras" (Cardoso, 1983).

No interior do Estado tornar-se-ia rotina a ênfaseno fornecimento de água em grandes centros (comefeitos positivos sobre a mortalidade infantil), progra-mas custosos de saneamento básico, de escolarizaçãoe tentativas de resolver problemas habitacionais (Car-doso, 1983:13). Desse modo a sociedade teria assistidoao deslocamento do eixo da questão social da linhade regulamentação do trabalho para o atendimento dasnecessidades sociais básicas do consumidor em geral:água, esgoto, habitação, educação (Cardoso, 1983).

Ainda que esses investimentos públicos estives-sem articulados à acumulação privada, a tese susten-tada por Cardoso joga parcialmente por terra o paradig-ma a respeito da negligência estrutural do Estado brasi-leiro em providenciar serviços de consumo coletivoàs populações carentes. Aparece a indicação de que,na década de 70, algumas mudanças foram operadasno interior do aparelho do Estado, que teria transitadodo padrão coercitivo-autoritário para atuar através demecanismos de construção de consenso e adesão espon-tânea das massas populares. Nas experiências históri-cas onde tal movimento "civilizatório", para usar aexpressão de Gramsci, ocorreu, foram verificadas pro-fundas alterações na forma de organização do Estadocomo provedor de serviços sociais (Gough, 1979).Em especial nos países avançados, estas mudanças es-tabeleceram as bases para a efetiva realização, no planosocial, da idéia de cidadania, isto é, a ampliação daeqüidade da justiça social através de políticas setoriais.Impuseram, também, sacrifícios à possessividade irres-trita do capitalista individual a favor da construçãoda legitimidade do mundo burguês, através da elevaçãodo padrão de vida material da classe trabalhadora.Naturalmente que não estamos diante de uma auto-re-

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forma iluminista e a-histórica do Estado capitalista:a instauração do Welfare State tem que, inevitavel-mente, ser vista como uma síntese contraditória naqual exercem peso fundamental a pressão desde baixoda classe trabalhadora por direitos sociais.

As revisões históricas sobre a relação do Estadocom o mundo do social no Brasil reservam à açãopública um papel bastante restrito. O espaço da realiza-ção da cidadania estaria limitado pela hierarquizaçãoabsoluta dos grupos e classes reconhecidos legalmentecomo aptos a terem acesso e exercerem os direitossociais. A regulamentação das profissões, a carteiraprofissional e o sindicato definem os três parâmetrosno interior dos quais passa a definição de cidadania.Mesmo as políticas sociais gerais deixariam de ter gru-pos específicos legítimos que por elas demandassem,visto que o reconhecimento social se fazia por catego-rias profissionais (Santos, 1979:76-77).

A grande surpresa que traria a década de 70 seriao surgimento no Brasil na área social de "adminis-tradores mais modernos e planejadores mais eficientes"que "dialogam com os usuários e consumidores de ser-viços estatais" (Cardoso, 1983b:200). Embora toman-do como referências experiências tópicas, os estudosnessa área apontam o desenvolvimento de um novopadrão de racionalidade e transparência da adminis-tração pública, que formaria verdadeiras ilhas no inte-rior da administração pública.

Vale transcrever a longa observação de Cardosoa respeito: "A existência de planos públicos com finssociais faz com que os Estados contemporâneos, pormais antipopulares que possam ser (e freqüentementesão) implementem políticas sociais (...). Apesar dofuncionamento tradicionalmente autoritário do Estadobrasileiro, a implementação das políticas sociais, atual-mente obriga a algum tipo de inter-relação com a popu-lação. Apesar de nossos planejadores contarem cominstrumentos muito eficientes para impor suas razõestécnicas, não podem deixar de lado as condições dedemanda por serviços. Não podem, quer porque paga-riam um alto custo político, quer porque a própriaideologia da intervenção estatal, na área social, pressu-põe o diálogo. E convém não minimizar este últimofator porque é ele que abre espaço para organismose funcionários pouco ortodoxos, ao mesmo tempo quegarante para os movimentos populares o apoio de agen-tes externos que legitimamente reclamam por distribui-ção mais democrática dos serviços coletivos"(1983b:229-230).

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Jacobi, analisando as lutas populares por sanea-mento e saúde, na década de 70, dá uma dimensãobastante concreta a essa nova racionalidade estatal:a intervenção do setor público na área social configu-raria "um movimento de resposta do Estado à crescentedeterioração nas condições de vida da população"(Jacobi, 1985, 210). Teria se criado os pré-requisitospara um aumento "da eficiência administrativa a partirdo momento em que as dificuldades econômicas setornam visíveis e do relativo afrouxamento do regimemilitar" (Idem, ibidem).

"Os fatores indutores da ação do Estado na ques-tão saneamento e saúde, situam-se no difuso limiarmarcado pela existência de elevadas taxas de mortali-dade infantil e a emergência de crescentes demandaspopulares. As defasagens acumuladas no nível de apro-priação dos serviços de consumo coletivo não só sãoincompatíveis com 'o nível de desenvolvimento', atin-gido pelo país mas são questionadas pelos organismosinternacionais. E quando a epidemia de meningite sealastra no inverno de 1974, o alerta em torno da situa-ção-limite é finalmente dado" (Idem: 211-212).

Assume-se nessas leituras da ação setorial umaexpectativa positiva a respeito da possibilidade de sur-girem políticas mais racionais, transparentes e funcio-nais na área social. Nesse sentido, a crítica ao paradig-ma dos movimentos sociais tomaria como contraponto,a visão simplificada do Estado brasileiro autoritário,essa nova entidade racional-tecnoburocrática, que seriaa expressão completa da tomada de consciência públicade suas responsabilidades como provedora de serviços.Ademais, a perda de legitimidade do regime autoritá-rio, induziria à busca de novos mecanismos de articula-ção e intervenção, isto é, de uma nova institucio-nalidade política que recolocasse as relações entre Es-tado e demandas coletivas. Esta "ocidentalização" doEstado, asseguraria domínios de ação funcional rela-cionados à política social para os quais os movimentossociais deveriam voltar sua atenção.

Se, por um lado, os movimentos sociais refluíramou fracassaram porque foram delimitados no espaçoe no tempo, o contrário foi o que aconteceu em relaçãoà "modernização" da ação pública: seria, aparente-mente, um subproduto natural e irreversível da crisedo autoritarismo. A enraizada esperança em uma tran-sição liberal-democrática clássica, fez com que predo-minasse a idéia de que a superação das contradiçõesestruturais do capitalismo brasileiro pudesse ser reali-zada através desse novo Leviatã racional e burocrático.

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A crise atual do processo de transição da NovaRepública parece que jogou por terra essas venturosasesperanças: o modelo social permanece praticamenteintocado. Ademais, a dinâmica dos gastos na área pare-ce cada vez mais dependente do desempenho geralda economia: a necessidade de investimentos "produ-tivos" faz com que o Estado diminua visivelmenteseus investimentos sociais.

Além disso, o estilo de gestão da "coisa pública"permanece condicionado essencialmente pelo conti-nuismo do modo de fazer política próprio do "ancienregime". Este arcaísmo, como lembra O'Donnel, con-fronta diretamente algumas dimensões da modernidadeda estrutura econômica do país (desenvolvimento dasforças produtivas, geração e uso de tecnologia, pesoe papel no mercado internacional, entre outras). Éum arcaísmo que se coaduna como pano de fundoda enorme desigualdade social imperante no país.

Para O'Donnel, a expressão mais elevada dessepadrão atrasado que orienta a regra de governo é avigência do sistema patrimonialista, fundado na confu-são do governante em relação ao público e ao privadoou pessoal. E o principal mecanismo que põe em movi-mento esse sistema é o clientelismo. É desnecessáriodizer que este tipo de dominação política é incapazde conviver com quaisquer tipos de mediação que arti-culem as demandas e as preocupações da sociedadecom a esfera política.

Como as fontes etnográficas das análises foramsituações bastante atípicas de relação entre burocraciaestatal e as demandas coletivas, parece que foi bastanteatenuado o peso inercial desses condicionantes estrutu-rais da formação do Estado brasileiro que restringemo perfil da ação pública na área social.

Um outro aspecto também pouco desenvolvidodiz respeito à compreensão do papel social da burocra-cia. É extremamente difícil trabalhar com a hipótesede que a burocracia possa, espontaneamente, reformarsuas estruturas ideológicas e atenuar seus interessescorporativos, para se tornar mais permeável às deman-das dos despossuídos, a não ser quando as classessubalternas sustentam uma posição de força politica-mente organizada. A experiência tem revelado queesse é um campo ainda bastante impermeável à lógicados interesses coletivos: quanto mais rígidos são osvínculos corporativos das profissões mediadoras dosserviços sociais (médicos, engenheiros, professoresetc.) maiores têm sido as dificuldades de operar, no

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cotidiano, as mudanças de curso da política setorial.É difícil, assim, sustentar que o simples esforço departicipação voluntária das entidades "civis" no inte-rior da estrutura institucional, como os conselhos go-verno-comunidade, possa servir como contraposiçãoao padrão arcaico de uso da coisa pública e aos micro-poderes encravados nos dispositivos de Estado.

Não quero afirmar aqui que esses problemas nãoexijam, por si só, respostas táticas específicas. Aindaassim, eles poderão permanecer sem uma resposta con-sistente se os grupos subalternos não conseguirem for-mular uma política que articule o nível das guerrasmoleculares às estratégias globais de luta pelo controlede máquinas administrativas. Esse é assunto que exigeuma reflexão teórica bastante extensa que, portanto,não cabe nos estreitos limites desse artigo. Pretendoenfrentá-lo com mais cuidado em outro momento.

V - CONCLUSÕES FINAIS

Para efeito de conclusão, gostaria de salientarque a paralisia do processo de transição política recolo-ca, no mesmo ponto, as interrogações históricas a res-peito das relações Estado e classes populares na socie-dade brasileira. E, nas condições de vida atual, pareceextremamente difícil criar uma nova panacéia que re-solva, em um passe de mágica, os dilemas da constru-ção da democracia real no Brasil. Teremos que talvezolhar com mais cuidado os exemplos da história.

Não há dúvida que a natureza volátil do debatede idéias faz com que, entre nós, sejam consagradascomo verdades absolutas os mais bizarros preconceitose os pontos de vista mais obscuros no campo da políti-ca, da estética, da filosofia etc. Essa singularidadeideológica fez com que no terreno das idéias políticas,por exemplo, fossem varridas para debaixo do tapeteas experiências de afirmação de direitos que tiveramum peso decisivo na construção das sociedades mo-dernas.

Apenas essa volatilidade filosófica pode explicaro rigor do discurso "autonomista" nos círculos cultu-rais dedicados ao estudo dos movimentos sociais. Oua quase desqualificação dos feitos político-estratégicosque a luta de classes — clássica — provocou sobrea feição do Estado moderno. Se nos países capitalistasavançados, o processo de "tercearização" da economiacoloca interrogações sérias no que tange aos instru-

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mentos usuais de representação política (Cardoso,1982) — embora a formação do Partido Verde na Ale-manha atenue esse pressuposto — cabe perguntar se,no Brasil, os grupos subalternos já teriam esgotadotodas as possibilidades de luta política que estão implí-citas na "modernidade" capitalista. Refiro-me aos par-tidos de classe em bases nacionais e às mobilizaçõessindicais (Hobsbawn, 1979).

Cabe lembrar que, por mais que o fato atormenteo discurso liberal e o pragmatismo tecnocrático, aindanão foi possível registrar uma experiência no capita-lismo onde a definição de mecanismos coletivos decontrole do poder estatal — a ampliação da cidadania— tivesse ocorrido sem que a classe trabalhadora ocu-passe uma posição de força no campo institucional(Weffort, 1981).

Os clássicos da economia política já afirmaram,há mais de um século, que, da mesma maneira queo capitalismo revoluciona as bases da produção mate-rial das sociedades, redefine também o lugar das clas-ses no terreno da vida política. Como sugere Hobs-bawn, "a política moderna baseia-se não somente natransformação do súdito no cidadão (pelo menos teori-camente), diretamente ligado, como um indivíduo, aogoverno estatal central e constantemente envolvido,passiva ou ativamente, em suas atividades, mas nasuposição realística que deve procurar mudar o governoou suas medidas, e conseqüentemente em formas (na-cionais) de mobilização e organização. A nacionali-zação do governo e instituições se processa juntamentecom a 'nacionalização' da economia, de modo quea organização, diplomacia e estratégia nacionais quese tornam possíveis e talvez necessárias, mesmo paramovimentos que não visam exclusivamente influenciaro governo central" (Hobsbawn, 1979:243).

Tudo faz crer que os partidos de massa e o sindica-lismo moderno foram manifestações organizativas ede nacionalização da política que, mais acentuada-mente, provocaram os abalos nos dispositivos de podere na formalização da cidadania no plano social.

Não há dúvida que os movimentos sociais sãouma variável nova na equação política do capitalismocontemporâneo. Resta saber, no entanto, se sua crisede eficácia fará com que sua teoria incorpore essasquestões políticas impostas pela "modernidade" capi-talista. Os efeitos imediatos dessa recolocação, neces-sariamente, terão que definir um campo de experimen-tação de alianças políticas com os organismos partidá-

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rios dos trabalhadores e de setores democráticos avan-çados não apenas nas lutas sociais tópicas como nosembates político-eleitorais com o bloco conservador.Essa, talvez seja uma opção prática que seguramentefará com que cada vez que a noção de autonomiaseja enunciada se possa perguntar: em relação a quee a quem?

Por último, gostaria de comentar que a entradada classe trabalhadora, na arena clássica de competiti-vidade dada pelos partidos políticos, obrigou um enor-me esforço intelectual e moral capaz de dar organici-dade às tarefas partidárias e assegurar direitos sociaisconquistados pelas gerações anteriores. Embora, comolembra Weffort, a história social e política da classeoperária do ponto de vista da questão da cidadaniaainda esteja por ser feita (1981,140), as tarefas organi-zativas e as lutas por direitos exigiram, sem dúvida,a solução de certas questões técnicas que permitiramresponder às sutilezas legais e visualizar os mecanis-mos decisórios do Estado.

Parece assim ter sido bastante improvável queo avanço da cidadania tenha ocorrido sem que a classetrabalhadora trouxesse para seu campo de idéias a com-preensão de questões tópicas ou "técnicas" ligadasà legislação eleitoral, às leis de proteção ao trabalhoou à dinâmica dos gastos públicos. Um exemplo próxi-mo está na luta dos trabalhadores italianos no planoda saúde: o desenvolvimento da aguda noção de "cons-ciência sanitária", que de fato trouxe uma leitura abso-lutamente renovadora da relação entre leis sociais, pro-cesso de trabalho, ambiente e saúde (Berlinguer,1978).

Se na experiência recente do movimento sindicalbrasileiro temos alguns exemplos de articulação técni-co-política que tornaram extremamente elaboradas adefesa do poder salarial e da cidadania dos trabalha-dores (como são os casos do DIEESE e do DIESAT),o mesmo não poderia ser afirmado em relação à produ-ção intelectual voltada para os movimentos sociais.Excetuando alguns raros trabalhos, como o de Jacobi(1985), pouco se refletiu a respeito da dinâmica institu-cional das políticas setoriais. Não é por simples obrado infortúnio que pouco se conheça em relação aosajustes que certas agências de governo sofreram a par-tir das pressões coletivas. Se tem ocorrido um acúmulohistórico de conquistas e de experiências dos movi-mentos sociais, como afirmou recentemente Krischke(1985), é preciso saber quando, onde e sob que condi-

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ções, isto teria existido no Brasil. Poder-se-ia objetarque existem obstáculos técnicos e dificuldades em setranspor os "segredos" da burocracia. Ainda assim,este é um problema que as reflexões futuras não pode-rão deixar de enfrentar porque estas são questões im-prescindíveis para a definição da hora e da vez dosmovimentos sociais na cena política do país.

A study designed to analyse the development ofthe urban social movement concept of the Braziliansocial science. It is shown that the paradigm of thesocial movement neglected to consider institutionalquestions in its political strategy. The study alsoanalysed the social movement theoretical frameworkas a "cultural conditions" that limited its impact onthe Brazilian institutional dynamics. It is concludedthat a low political effication was one important factorthat explained the few changes in the 1980's socialpublic polices.

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