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Victor Brecheret Índio e a Suassuapara, 1951 bronze, 79,5 x 101,8 x 47,6 cm Acervo MAC/USP Foto: Romulo Fialdini Recontextualizando a escultura modernista Annateresa Fabris Abstracionismo, Concretismo, Neoconcretismo e Tendências Construtivas Fernando Cocchiarale Das Novas Figurações à Arte Conceitual

Tridimensional i Dade

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Victor Brecheretndio e a Suassuapara, 1951bronze, 79,5 x 101,8 x 47,6 cmAcervo MAC/USPFoto: Romulo Fialdini

Recontextualizando a escultura modernistaAnnateresa Fabris

Abstracionismo, Concretismo, Neoconcretismo e Tendncias ConstrutivasFernando Cocchiarale

Das Novas Figuraes Arte ConceitualCelso Favaretto

O Tridimensional na Arte Brasileira dos Anos 80 e 90: Genealogias, SuperaesTadeu Chiarelli

Ao se tentar cobrir o tema "escultura no Brasil", depara-se com a dificuldade de atribuir a designao "escultura" a trabalhos que no mais subscrevem a caracterizao tradicional: modelar volumes, retirar resduos de um volume, empilhamento e montagem.Atividade multidisciplinar, esses trabalhos no permitem classificar os artistas por gneros e tendncias. A redistribuio esttica processada nos ltimos 30 anos transformou a modalidade artstica conhecida por escultura: mudaram os suportes, os materiais, os procedimentos, as poticas. Assim, a antiga designao no mais abarca a pluralidade de experincias, que ora referem-se tradicional, ora retraduzem-na, ora manifestam outros modos de inscrever formas e gestos no espao. Para orientar o leitor minimamente neste vasto e heterogneo campo de experincias, este livro optou pela diviso do assunto em alguns largos perodos que pudessem conter as informaes de modo exemplar, cada captulo com um texto de abertura situando as questes do perodo, textos esses produzidos pelos ensastas e crticos de arte Annateresa Fabris, Celso Favaretto, Fernando Cocchiarale e Tadeu Chiarelli. Cada captulo uma tentativa de contemplar, tambm exemplarmente, a obra de 64 artistas selecionados, com um pequeno histrico de cada artista e trechos crticos referentes s suas obras. Pretendeu-se formar uma teia de pensadores, crticos e historiadores da arte que pudesse fazer uma aproximao tridimensionalidade brasileira do sculo XX. Esta publicao recorreu a diversas fontes de referncia, de livros a catlogos e matrias jornalsticas, compondo uma listagem significativa de publicaes sobre o assunto.Este livro no pretende ser definitivo, nem encerrar a questo; prope-se como o primeiro volume de uma coleo. Resultou de um trabalho intenso da equipe de pesquisa do Ita Cultural, supervisionada pelos consultores Annateresa Fabris e Tadeu Chiarelli, com colaborao de Frederico Morais, visando instalao do Setor Tridimensionalidade na rea de Artes Visuais do Banco de Dados Ita Cultural. O Ita Cultural agradece a todos os que fizeram parte da equipe de trabalho e aos museus e colecionadores que cederam suas imagens e tornaram possvel esta publicao.Ricardo RibenboimDiretor Superintendente[Recontextualizando a escultura modernista]Annateresa FabrisHistoriadora e crtica de arte. Professora titular aposentada do Departamento de Artes Plsticas da ECA/USP. Autora de Futurismo: uma potica da modernidade; Portinari, Pintor Social; O Futurismo Paulista; e Cndido Portinari.

Maria MartinsA Soma de Nossos Dias, 1954/1955sermolite e estanho, 330,9 x 190,7 x 64,9 cmAcervo Museu de Arte Contemporneada Universidade de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo FialdiniPensar na escultura moderna e, a partir dela, na escultura modernista implica um conjunto de operaes crticas, que no podem deixar de ser realizadas sob pena de enfocar a problemtica por um prisma que no corresponde reflexo atual sobre essa temtica. Uma pergunta - fundamental para a anlise do caso brasileiro - coloca-se de imediato: que obras e artistas se enquadram na definio "escultura moderna"?

Um autor moderno como Herbert Read responderia que o sculo XX assistiu ao convvio entre uma concepo secular de escultura, alicerada no entalhe e na modelagem, e a inveno de obras tridimensionais que no se pautam por nenhuma das duas prticas, sendo construes em termos arquitetnicos e mecnicos.

Henry Moore e Naum Gabo representam esses dois vetores da escultura no sculo XX: o primeiro continua a conceber a forma em profundidade, dentro de uma tradio que remonta a Michelangelo; o segundo, interessado nos valores absolutos da forma pura, rejeita a tradio humanista e seus critrios orgnicos. luz de tais pressupostos, no difcil perceber por que Read, embora no desconhecendo a modernidade de Rodin, que faz consistir no apego ao realismo visual e na integridade dos meios tcnicos utilizados, lhe anteponha Czanne na definio de uma nova arte, mesmo no caso da escultura. Se de Rodin se geram artistas "restauradores" como Maillol, Bourdelle, Despiau, a linhagem de Czanne, que o crtico define "originador", inclui Picasso, Gonzlez, Brancusi, Archipenko, Lipchitz e Laurens. A questo no , contudo, to simples em termos contrastivos, uma vez que Arp e Moore, embora no possam ser considerados descendentes de Rodin, partilham com ele a mesma preocupao pelos elementos intrnsecos da arte escultrica - interesse pelo volume e pela massa, jogo de cheios e vazios, articulao rtmica de planos e contornos, unidade de concepo. (1)Uma autora contempornea como Rosalind Krauss far da escultura moderna no apenas o terreno do espao, mas tambm do tempo, afirmando taxativamente: "A histria da escultura moderna incompleta sem a discusso das conseqncias temporais de uma disposio particular da forma. (...) Um dos aspectos surpreendentes da escultura moderna a maneira pela qual manifesta a conscincia crescente de seus criadores de que a escultura um meio situado de modo peculiar na juno entre quietude e movimento, tempo parado e tempo que transcorre. Dessa tenso, que define a real condio da escultura, deriva seu enorme poder expressivo." por isso que o Rodin, da Porta do Inferno (1880-1887), colocado nos albores da escultura moderna, por encarnar a problemtica do fluxo do tempo seqencial e da eroso da narrativa linear e coerente. (2)Se no h pontos de contato entre o Rodin de Read e aquele de Rosalind Krauss, pode ser proposto um terceiro perfil do escultor francs na tentativa de compreender o significado de sua proposta para a escultura do sculo XX. Reinhold Hohl, que situa o fenmeno da escultura moderna entre 1905 e 1950, faz de Rodin uma figura de transio, por provocar o interesse e a contestao da nova gerao. Ao mesmo tempo que abre caminho para uma nova concepo de escultura, graas potica do torso, do fragmento e da permutao, criticado pelo pthos e pelo carter literrio de suas composies e pelo apego aos materiais tradicionais.A ele contrape-se o exemplo das artes primitivas, que revelam nova gerao parmetros diferentes em termos de materiais, formas e propores. As "propores africanas" - pernas curtas, coxas volumosas, torso alongado, cabea muito grande (ou muito pequena) - enformam boa parte da produo escultrica do comeo do sculo (Derain, Picasso, Kirchner, Schmidt-Rottluff, Modigliani, Brancusi, Matisse, entre outros), negando os paradigmas tradicionais do modelado do corpo e da centralidade da musculatura. (3) Deter-se na controvrsia gerada por Rodin em termos de escultura moderna tem sua razo de ser num estudo dedicado ao Brasil. Seu nome recorrente nas primeiras crticas que os modernistas dedicam a Brecheret em 1920 como testemunho inequvoco da modernidade do escultor brasileiro. Rodin, contudo, no um artista que aponte para o futuro, embora traga alguns elementos novos para a viso escultrica. Sua modernidade situa-se a meio caminho entre valores tradicionais e inovadores, entre uma concepo humanista e monumental da escultura e o interesse por formas tensionadas, sensveis luz e potica do fragmento e do no-acabado. (4) Rodin, porm, no o nico parmetro escultrico de que lanam mo os modernistas em sua campanha de atualizao da cultura brasileira. A seu lado destacam-se nomes como os de Dazzi, Wildt e Mestrovic, que apontam para um outro centro geogrfico e para outras concepes da prtica escultrica. A formao de Brecheret na Roma da dcada de 10 acontece num clima escultrico e arquitetnico dominado pelo ecletismo, do qual participa ativamente seu mestre Dazzi. A retrica monumental, que permeia boa parte da produo escultrica italiana na passagem do sculo XIX para o sculo XX, substancialmente ecltica em termos estilsticos. Resduos neoclssicos e romnticos e elementos acadmico-celebrativos convivem com um verismo "no destitudo de energia", um impressionismo "de sugestes seguras", um simbolismo "que j produziu algumas obras-primas", dando vida a uma situao que Mario De Micheli no hesita em considerar rica de fermentos e tenses, da qual se originam solues, no raro, eclticas, que merecem ser estudadas com cuidado, para alm daquelas excluses geradas pelo futurismo e retomadas pela historiografia moderna. (5)Se esse o pano de fundo, no se pode, contudo, esquecer que existem na Itlia do comeo do sculo XX diversas escolas regionais e necessrio estudar o ambiente no qual Brecheret se forma para compreender suas determinaes estilsticas. No ambiente centro-meridional prevalece aquela que Carlo Pirovano define a mediao, quase transformada em mtodo, "entre as instncias do verdadeiro, infelizmente no raro empolado e enftico, o aprimoramento acadmico e a preciso dos partidos decorativos". (6) A linguagem do primeiro Brecheret no parece ser alheia a esse quadro de referncias, caracterizando-se por um naturalismo aberto a sugestes luminosas e pela busca de uma estilizao linear, que denotam sua proximidade dos exemplos de Dazzi, Rodin, Mestrovic e Rosso. Talvez um dos ndices de uma concepo "moderna" enquanto mediao entre instncias naturalistas e instncias renovadoras deva ser buscado em Daisy (1921c.). Embora denote a opo de Brecheret por um registro naturalista, Daisy exibe alguns ndices de modernidade, que podem ser enfeixados na adeso potica do fragmento (sob forma de busto) e no interesse por um tratamento pictorialista da superfcie do mrmore, de maneira a conferir uma certa vibrao luminosa composio.A no ser no ltimo perodo de sua produo, quando envereda por um veio orgnico e demonstra um interesse cada vez mais acentuado pelas qualidades estruturais da escultura, a trajetria de Brecheret pontuada pelo ecletismo e no pela adeso determinada aos pressupostos centrais da pesquisa tridimensional moderna. Se, no perodo parisiense, flerta com algumas propostas cubistas, com a elegncia curvilnea do Art Dco, com o despojamento de Brancusi, no deixa de ser atrado por uma plstica arcaica e pelo idealismo clssico de Maillol. O prprio pictorialismo, exibido em Daisy, persegue antes efeitos epidrmicos do que a estruturao de uma relao nova entre volume, luz e espao, permitindo afirmar que sua modernidade reside sobretudo na estilizao, estando muito prxima dos pressupostos da volta ordem que imperavam na Europa aps a Primeira Guerra Mundial. (7)A estilizao torna-se, para o ambiente cultural brasileiro, sinnimo perfeito de modernidade. Se houvesse dvidas sobre essa equao, o episdio de O Homem Brasileiro (1937-1938) bastaria para dissip-las. Descontente com a proposta de Celso Antnio - que no havia conseguido fixar em sua maquete "a figura ideal que nos seja lcito imaginar como representativa do futuro homem brasileiro" e se recusara a receber em seu ateli a comisso de especialistas nomeada pelo Ministrio da Educao e Sade -, Gustavo Capanema solicita a intermediao de Mrio de Andrade junto a Brecheret para que este apresentasse um novo projeto. O que chama a ateno na correspondncia trocada entre o ministro e o poeta so os valores estticos claramente explicitados. A Capanema que solicita "Voc diga ao Brecheret como coisa sua que no faa trabalho estilizado nem decorativo. Seguir o rumo dos grandes escultores de hoje: Maillol, Despiau, etc.", Mrio de Andrade responde que Brecheret havia ponderado que "por mais naturalista" que fosse a esttua, "esta ter de alguma forma que obedecer natureza do material empregado, isto , o granito, e portanto se sujeitar a uma tal ou qual estilizao". (8) A oposio entre "estilizao" e "grande escultura" no casual nem responde a um gosto particular. A tradio escultrica humanista, que havia sido reinstaurada por Rodin, cujos seguidores mais conhecidos eram Bourdelle, Despiau e Maillol, est na base no apenas das formulaes plsticas do prprio Celso Antnio mas tambm de escultores como Jos Alves Pedrosa, Bruno Giorgi e Ernesto De Fiori. O que importante salientar no so tanto as diferentes linhagens nas quais se inscrevem os artistas brasileiros quanto o interesse demonstrado por quase todos eles por uma concepo de escultura ainda devedora das lies de Rodin, que podem ser enfeixadas em duas categorias: confiana no instrumental e sentido dos valores escultricos. (9) Colocar uma parcela considervel da escultura modernista sob a gide de Rodin e de seus seguidores implica coloc-la num veio considerado no moderno por autores como Read, Rosalind Krauss e Hohl. A "escola de Rodin" no integra as consideraes de Rosalind Krauss; Read e Hohl, mesmo referindo-se a ela, no lhe poupam crticas. Para Read, os sucessores imediatos de Rodin no apresentam nenhum interesse para a histria da escultura moderna, a no ser pelo fato de terem transmitido os valores do mestre gerao seguinte. Hohl, por sua vez, embora admita a fora plstica de um Bourdelle e de um Despiau, no deixa de se perguntar se a escultura, que no superou as velhas regras e se limitou a perseguir os ideais da beleza eterna, foi capaz, tal como as experincias vanguardistas, de tomar uma posio perante os acontecimentos histricos contemporneos. Sua resposta negativa, sem que isso signifique que as expresses figurativas ganhem de imediato uma conotao antimoderna, como demonstra o resgate de figuras como Bourdelle e Kthe Kollwitz.(10)Mesmo admitindo que boa parte dos escultores brasileiros se inseriu numa vertente no moderna, no possvel, no entanto, transpor as consideraes dos autores europeus e norte-americanos para o nosso meio sem uma tentativa de contextualizao.

Pas que se engaja na discusso da modernidade cultural no momento da volta ordem, que no dispe de uma tradio consolidada e no havia vivido de perto um evento profundamente transformador como a Revoluo Industrial, o Brasil das primeiras dcadas do sculo XX elabora uma noo peculiar de atualidade. A modernidade propugnada deveria coincidir com a construo de uma arte nacional, o que explica a preferncia pelas vertentes figurativas - do Realismo ao Expressionismo - e a viso negativa do cerebralismo vanguardista. Bruno GiorgiMeteoro, 1967mrmore de Carrara, altura 400 cmAcervo Palcio Itamaraty, Braslia DF Foto: Romulo Fialdini

O humanismo de que era portadora a concepo escultrica de Rodin e de seus seguidores parece responder de perto a essa busca de uma expresso de cunho nacional, que afere a modernidade das propostas artsticas a partir do seu grau de afastamento do cdigo acadmico. logo nesse sentido que Marta Rossetti Batista define a modernidade de Celso Antnio, que aprende em Paris uma nova idia de escultura, distante do alegorismo acadmico e atenta a uma questo intrnseca como a volumetria. O que a autora escreve sobre Celso Antnio poderia ser aplicado, sem grandes variaes, a Pedrosa, Ceschiatti, Figueira, ao primeiro Bruno Giorgi: "(...) trabalha o volume, procura a solidez e a coerncia de seus elementos e sua integrao no todo, no se perdendo em detalhes, eliminando os suprfluos, concentrando o bloco". (11) A prpria opo abstratizante de Bruno Giorgi a partir do final dos anos 40 e, em alguns momentos, de seu discpulo Francisco Stockinger e de Vasco Prado, no pode ser dissociada daquilo que Read considera a grande lio de Rodin: o sentido dos valores plsticos. Sintomaticamente, os dois nomes evocados no caso de Giorgi so logo aqueles apontados pelo crtico britnico como "continuadores" ideais do legado moderno de Rodin: Moore e Arp. Moore faz-se presente nos anos 50, quando Giorgi lana mo de figuras deformadas, nas quais os vazios e os cheios se equilibram harmoniosamente graas ortogonalidade da composio e ao arredondamento dos volumes. Arp est sobretudo na base de obras como Meteoro (1968), em que o geomtrico e o orgnico alcanam uma sntese dinmica, alicerada num jogo de correspondncias formais e na alternncia rtmica entre volume e vazado. (12) Se o dilogo dos escultores brasileiros com Rodin determinante, existem, contudo, outros dilogos que no podem deixar de ser levados em considerao: o de Pola Resende com Kthe Kollwitz, do qual se origina aquilo que Walter Zanini denomina um "fundo popular e realista", (13) o de Maria Martins com o Surrealismo; o de Liuba com Germaine Richier; o de Stockinger com Julio Gonzlez.Enquanto a evocao de Kthe Kollwitz remete a uma outra possibilidade expressiva dentro das vertentes realistas, Maria Martins e Liuba abrem caminho para uma discusso no muito corriqueira na arte brasileira da primeira metade do sculo XX, articulada a partir do Surrealismo, embora com desdobramentos diferentes nos dois casos. A singularidade de Maria Martins, que se filia tardiamente potica surrealista, no pode ser dissociada de uma longa permanncia no estrangeiro e do contato com alguns dos principais expoentes do movimento francs. A dimenso inslita que emana de seus trabalhos deita razes numa vontade de transfigurar o referente exterior por meio de um imaginrio que extrai do contato com o onrico um interesse profundo pelos elementos primevos da natureza, dotados de uma sensualidade e de um erotismo refinados.O fato de ser discpula de Germaine Richier, coloca Liuba numa posio, em princpio, peculiar. O conjunto da obra de Germaine Richier considerado por Hohl uma smula da evoluo da escultura moderna, por incluir a tradio do modelado (sobretudo graas a Bourdelle), uma certa relao com as convenes de Maillol e Despiau e a fora mtica do Surrealismo. (14) O organicismo essencialista de Liuba no deixa, de certo modo, de inserir-se na mesma linha de sua professora, com a qual partilha ainda um interesse bastante manifesto por algumas solues de derivao construtivista. Victor BrecheretTocadora de Guitarra, 1923bronze, 75 x 21 x 16 cmAcervo Pinacoteca do Estado de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo FialdiniFrancisco Stockinger, graas constante experimentao de materiais, na qual se destaca o uso do ferro soldado, insere-se naquela renovao da escultura que Hohl atribui superao dos mtodos tradicionais do entalhe e da modelagem. Embora no to fantasioso quanto Gonzlez, Stockinger, ao dar preferncia a fragmentos soldados, demonstra estar buscando uma nova maneira de compor a escultura atravs de volumes delgados, abertos, no raro, a uma nova relao com o espao, num trnsito tensionado entre interior e exterior. (15)

Uma anlise da escultura brasileira na primeira metade do sculo XX seria incompleta se nela no fosse inserida a contribuio de diversos artistas estrangeiros, que fixaram residncia no pas ou aqui trabalharam por um certo perodo de tempo.

O partido analtico a ser adotado em relao a suas contribuies no passvel de simplificaes, uma vez que, em alguns casos, patente uma adequao da linguagem do artista s expectativas do meio cultural no qual passa a operar.Sintomtico o caso de Ettore Ximenes, considerado conservador em virtude da soluo estilstica proposta para o Monumento da Independncia, mas que, na Itlia, dera mostras de ser capaz de superar o primitivo verismo em prol de suaves modulaes plsticas derivadas do Art Nouveau.O Monumento a Verdi (1913-1920) uma clara evidncia dessa ateno dedicada a uma nova possibilidade de linguagem: embora no deixando de lado o realismo originrio, Ximenes consegue transform-lo numa figurao emblemtica, qual no falta uma expressividade sbria e quase clssica. (16)Ximenes um dos tantos artistas italianos que operam em So Paulo nas primeiras dcadas do sculo e pontilham a cidade com monumentos de linhas quase sempre tradicionais. Entre eles destacam-se Zani, Brizzolara, Emendabili, autores de conjuntos significativos como os do Ptio do Colgio, do Anhangaba, do Ibirapuera, entre outros. Se a historiografia dedicou at agora pouca ateno produo desses artistas, em virtude de sua no modernidade, De Fiori teve, ao contrrio, uma recepo crtica bem diferente. Sua modernidade, no entanto, no um dado pacfico para a crtica europia. Read coloca-o no grupo daqueles escultores "hesitantes", a meio caminho entre Impressionismo e Classicismo, que no souberam responder ao desafio moderno, mas que, por seu ecletismo, contriburam para o renascimento da escultura. O autor, embora atribua a esse grupo um grande domnio tcnico, no deixa de apontar aquela que considera sua principal falha: ter aderido a uma falsa esttica, na esteira das idias de Hildebrand, que valorizava na escultura os valores visuais e pictricos em detrimento daqueles tteis. (17) O rigor purista de Read abranda-se na anlise de De Micheli, atento no apenas s rupturas mas igualmente s continuidades para poder definir um determinado clima cultural. Situando a escultura italiana numa tenso ideal entre tradio e modernidade, De Micheli, embora se interrogue sobre a exata localizao cultural do escultor, no deixa de inclu-lo em suas consideraes. De Fiori, interessado no Classicismo desde a primeira formao em Munique, graas a Maillol descobre a prpria vocao escultrica. Prximo de Kolbe e Haller, De Fiori, contudo, distancia-se deles, uma vez que seu classicismo no est isento de tenses. Se deseja opor s rupturas vanguardistas uma certeza e uma histria alicerada em valores eternos, demonstra ao mesmo tempo uma inquietude, manifesta em obras sutilmente ambguas e contemporneas. Em virtude dessa inquietao no transforma em dogma as idias de Hildebrand. Infunde em seu classicismo persuaso e autenticidade porque o que o motiva primordialmente resgatar a imagem do homem da violncia que grassava na sociedade contempornea. (18)Embora De Micheli considere concluda a histria de De Fiori aps a sada da Europa, sua presena no meio artstico brasileiro merece uma reflexo, sobretudo em funo do episdio que envolve o Ministrio da Educao e Sade. Provavelmente pelo trmite de Portinari, que parece ter desempenhado o papel de consultor artstico de Capanema, De Fiori prope, em 1938, trs obras para o Ministrio da Educao e Sade: O Brasileiro, Maternidade, Figura Feminina Reclinada. Lcio Costa bem crtico em relao s maquetes do escultor, nas quais no detecta aquele "sentido arquitetnico e monumental que interessava ao Ministrio". A diferena entre a concepo essencialista e severa de De Fiori e as expectativas da equipe do Ministrio, que desejava obras nas quais o sentido geomtrico viesse acompanhado de uma viso herica, pode ser avaliada pelas trs maquetes de O Brasileiro. No h nenhuma concesso a uma encomenda oficial, pois, como De Fiori declarara numa carta a Portinari, seria possvel alterar a composio, mas no o prprio estilo. A concepo corriqueira de monumento, vazada em termos de alegorismo e retrica, no se coadunava com as diretrizes estticas de De Fiori, e sua integrao na equipe do Ministrio da Educao e Sade acaba no se efetivando. (19)No deixa de ser significativo que o Ministrio da Educao e Sade seja o epicentro de vrios episdios problemticos relativos escultura. Tal fato atesta a situao complexa que uma arte como essa vivia no Brasil, mesmo sem necessitar ser comparada com empreendimentos bem-sucedidos no campo arquitetnico e pictrico. A situao da escultura brasileira no perodo modernista apresentada criticamente num breve artigo de Alfredo Ceschiatti, datado de julho de 1944. Constatando uma escassez generalizada de bons escultores e o descompasso existente entre arquitetura e escultura, Ceschiatti atribui o "fracasso" de Celso Antnio e Adriana Janacpulos no Ministrio da Educao e Sade a seu carter pioneiro. Bruno Giorgi, a quem Ceschiatti confere, em alguns momentos, uma viso pr-fidiana, parece ser o artista que deveria tomar a si a tarefa de tornar "revolucionria" a escultura brasileira. E a escultura brasileira no era moderna por um simples motivo: por ser feita, em termos gerais, "por discpulos de Maillol. Maillol no revolucionrio". A contraposio Maillol/Giorgi problemtica, uma vez que o artista brasileiro fora discpulo do francs entre 1937 e 1939. Por outro lado, as categorias enumeradas por Ceschiatti para levar a escultura "alm dos medalhes do sculo passado", no se distanciam da linha rodiniana, por se reportarem s idias de solidez, construo, harmonia e beleza. (20) O artigo de Ceschiatti reveste-se, contudo, de interesse por ser mais uma prova da situao peculiar vivida pela escultura brasileira no perodo modernista e, at mesmo, nos anos imediatamente posteriores ao segundo ps-guerra. A idia de modernidade no possua contornos muito ntidos, tanto no plano da criao quanto da reflexo. A escultura ensaiava passos hesitantes rumo a uma visualidade diferente da acadmica, mas, em termos gerais, no conseguia afastar-se daquela tradio humanista reinstaurada por Rodin e levada adiante por seus discpulos, que foram os mestres de artistas como Giorgi (Maillol), Pedrosa (Maillol e Despiau) e Celso Antnio (Maillol, Bourdelle e Despiau). Torna-se necessria, pois, uma avaliao complexa dessa situao, na qual o dilogo com as idias modernas bastante tortuoso, pois dele brota uma concepo de escultura feita quase s de continuidade. Se essa continuidade no acadmica, ela no igualmente moderna. Trata-se de uma continuidade problemtica, que se insere numa restaurao tpica da cultura europia no perodo entre-guerras, com a qual os artistas brasileiros se identificam, porque no existiam no pas condies estruturais (inclusive em termos cronolgicos) para a instaurao de novas concepes de espao, de tempo, de plano, de volume.So Paulo, agosto-setembro de 1997.Notas(1) Herbert Read, A Concise History of Modern Sculpture. London, Thames & Hudson, 1970, pp. 10-18.(2) Rosalind Krauss, Passages in Modern Sculpture. Cambridge-London, The MIT Press, 1981, pp. 4-5, 15.(3) Reinhold Hohl, Continuit e Avanguardia, em: V.A., Storia di un'Arte. La Scultura: L'Avventura della Scultura Moderna dal XIX al XX Secolo. Modena, Franco Cosimo Panini, 1993, pp. 111-112, 116-118.(4) Sobre a relao Brecheret/Rodin, cf. Annateresa Fabris, O Futurismo Paulista. So Paulo, Perspectiva/EDUSP, 1994, pp. 52-54.(5) Mario De Micheli, La Scultura del Novecento. Torino, UTET, 1981, pp. 34-35.(6) Carlo Pirovano, L'Eclettismo, em: Carlo Pirovano (org.), Scultura Italiana del Novecento: Opere, Tendenze, Protagonisti. Milano, Electa, 1993, p. 37.(7) Para uma anlise mais completa da trajetria de Brecheret, cf. Fabris, O mltiplo Brecheret. Piracema, Rio de Janeiro, 3(4), 1995, pp. 88-95.(8) Sobre o episdio, cf. As Esculturas de Celso Antnio, Sondagens a Vitor Brecheret, A Atuao de Ernesto de Fiori e O Fim do Homem Brasileiro, em: Maurcio Lissovsky & Paulo Srgio Moraes de S (orgs.), Colunas da Educao: a Construo do Ministrio da Educao e Sade (1935-1945). Rio de Janeiro, MINC/IPHAN; Fundao Getlio Vargas/CPDOC, 1996, pp. 224-232, 235-239. Uma breve anlise do episdio pode ser encontrada em Lauro Cavalcanti, As Preocupaes do Belo. Rio de Janeiro, Taurus, 1995, pp. 78-82.(9) Read, cit., pp. 18-19.(10) Read, cit., pp. 20-21; Hohl, cit., pp. 158-161.(11) Marta Rossetti Batista, Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris: Anos 20. So Paulo, Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, 1987, v. II, pp. 506, 508, mimeo. (12) A relao entre Giorgi, Moore e Arp lembrada por Walter Zanini. Cf. Arte Contempornea, em: Walter Zanini (org.), Histria Geral da Arte no Brasil. So Paulo, Instituto Walther Moreira Salles, 1983, v. II, p. 612.(13) Zanini, cit., p. 635.(14) Hohl, cit., p. 185(15) Hohl, cit., pp. 164-165; Zanini, cit., p. 723.(16) Zanini, cit., p. 525; De Micheli, cit., pp. 13-14.(17) Read, cit., pp. 23-25.(18) De Micheli, cit., pp. 80-83.(19) Walter Zanini, Introduo, em: Ernesto De Fiori. So Paulo, Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo, 1975, pp. 14, 17; Lissovsky & Moraes de S, A Atuao de Ernesto de Fiori, cit., p. 233.(20) Alfredo Ceschiatti, Bruno Giorgi, em: Lissovsky & Moraes de S, cit., pp. 306-308.[Abstracionismo, Concretismo, Neoconcretismo e Tendncias Construtivas]Fernando CocchiaraleCrtico de arte e professor. Coordenador de Artes Visuais da Funarte. Autor, com Ana Bella Geiger, de Abstracionismo Geomtrico e Informal.

Lygia ClarkBicho (caranguejo duplo), 1961alumnio, 53 x 59 x 53 cmAcervo Pinacoteca do Estado de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo Fialdini

Um mapeamento da escultura abstrata no Brasil deve inicialmente reconhecer que o carter radical de sua origem, no fim dos anos 40, resultou de um corte profundo com a tradio escultrica decorrente da emblemtica Semana de Arte Moderna (So Paulo, 1922). Deve tambm compreender que sua trajetria, at o comeo da dcada de 60, s foi possvel porque, embora no podendo apoiar-se no passado da arte brasileira, com o qual havia rompido, pde assimilar de modo prprio a mais inteligvel constelao de questes da escultura abstrata internacional atravs do Concretismo de Max Bill, premiado em 1951 na I Bienal de So Paulo, e do Construtivismo de Tatlin, que referenciou parte das experincias espaciais do Neoconcretismo.A simples existncia de escultores abstratos independentes dessas referncias capitais da vanguarda europia no possibilitou, no perodo, a configurao de movimentos alternativos aos grupos concretistas de So Paulo (Ruptura, 1952) e do Rio de Janeiro (Grupo Frente, 1953). Produziu, quando muito, um difuso campo de pesquisas singulares. Mesmo o Informalismo, adversrio histrico da abstrao geomtrico-construtiva, jamais pretendeu sistematizar um corpo coerente de questes plstico-formais. Seu nico princpio geral consistia na valorizao tica da livre expresso do sujeito-artista, estabelecendo, assim, as bases de uma comunicao inter-subjetiva entre o pblico e a obra. J a racionalidade evocada pela forma geomtrica suscitava, inversamente, uma apreenso objetiva do trabalho do artista, contribuindo para a clara enunciao de questes que culminaram com a polarizao de seus adeptos em tendncias divergentes e muito bem caracterizadas.O sentido inteligvel dessas questes deve ser, pois, apreendido no apenas nas obras mas, sobretudo, na profuso de textos, manifestos, etc. que moveram a polmica travada entre o Concretismo paulista, seguidor criterioso dos princpios tericos da Arte Concreta internacional, e o carioca, mais intuitivo, que em 1959 finalmente formalizou sua dissidncia em relao a esses princpios ao criar o Neoconcretismo.Em 1949, logo aps o surgimento das primeiras manifestaes da arte abstrata e concreta no Brasil, Di Cavalcanti marcava posio quanto nova tendncia: "O que acho vital, porm, fugir do Abstracionismo. A obra de arte dos abstracionistas tipo Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder uma especializao estril. Esses artistas constroem um mundozinho ampliado, perdido em cada fragmento das coisas reais: so vises monstruosas de resduos amebianos ou atmicos revelados por microscpios de crebros doentios"... (1)O tom apaixonado da denncia era claro. O Abstracionismo nascente, mesmo sem pesar no conjunto de nossa arte, deveria ser atacado imediatamente, isolado de suas origens histricas, anulado enquanto questo. Os primeiros artistas abstratos do pas defendiam firmemente seu projeto e politizavam o carter renovador de suas idias, alimentadas pelas conquistas da Arte Abstrata internacional. Da o alerta de Di Cavalcanti incidir unicamente sobre os nomes mundiais do no-figurativismo, raiz do mal que deveria ser cortado. Como se v, os jovens adeptos da nova tendncia no Brasil no partiam do zero: na falta de uma tradio local que embasasse suas posies formais podiam, sem qualquer equvoco, reportar-se s questes formuladas pelos abstracionismos europeu e norte-americano.Desde a dcada de 30, setores considerveis da intelectualidade, das artes e at mesmo do Estado Novo getulista consideravam como um valor positivo de nossa modernidade a expresso dos traos scio-nacionais brasileiros. Pintores como Di Cavalcanti e Portinari, embora simpatizantes comunistas e portanto adversrios da ditadura, gozavam de prestgio cultural inegvel, tendo se transformado em artistas quase oficiais do regime que criticavam. Longe de significar um deslize tico, essa paradoxal confluncia de posies antagnicas era devida exigncia tanto da esquerda quanto da direita de representar no campo esttico, atravs do Realismo Social, as massas que pretendiam, respectivamente, organizar e manipular. A emergncia da questo da brasilidade em 1924 desviara o foco modernista da atualizao formal para a definio dos fundamentos de nossa singular insero no "concerto das naes".Passados mais de vinte anos desse momento, j no final da segunda grande guerra, os artistas modernos brasileiros ainda se debatiam em torno de temas nacionais sem ter legado para as geraes futuras um repertrio formal, cromtico e espacial, apto a permitir uma renovao esttica. Refratrios a qualquer mudana artstica, esses artistas tornaram-se agentes monolticos da situao dominante, sempre justificada a partir do compromisso social e nacional explcito em suas obras e pela correo de suas posies polticas de esquerda.Mas as transformaes anunciadas no precrio e oficial meio artstico brasileiro iam muito alm do mbito da criao artstica. Entre 1947 e 1951, com a colaborao decisiva e indita da iniciativa privada, foram criados o Museu de Arte de So Paulo (Assis Chateaubriand, 1947), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Paulo Bittencourt, 1948) e o de So Paulo (Ciccilo Matarazzo, 1948) e, finalmente, a Bienal Internacional de So Paulo (1951), fundamental para a consolidao da vanguarda abstracionista no pas. Contriburam tambm para essas mudanas a presena no Brasil, durante o conflito mundial, de alguns artistas vinculados s vanguardas europias que aqui viveram, como Maria Helena Vieira da Silva e seu marido Arpad Sznes, e a volta de exilados polticos, como a do crtico Mrio Pedrosa, que em 1949 defendeu na Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, a tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte.Todos esses fatores eram, entretanto, externos ao movimento inercial de nossa incipiente arte moderna. Nesse sentido, uma revoluo como a representada pelo Abstracionismo s poderia nascer fora das muralhas que a produo modernista havia construdo. Manifestava, portanto, no a maturidade do meio artstico brasileiro, mas a premncia renovadora que se observava em todos os setores da vida nacional, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial e da queda da ditadura de Getlio Vargas, no poder desde 1930.Internacionalmente, a escultura abstrata no nasceu da radicalizao de questes geradas dentro de seu campo histrico, mas em uma rea de transio entre esse campo e o da pintura: o relevo. Ao contrrio da pintura, cuja revoluo se deu progressivamente nos limites simblicos do quadro, a escultura no podia revogar o espao tridimensional em que se situava e graas ao qual existia.A pintura clssica, visivelmente influenciada pela escultura, encontrou na perspectiva um poderoso instrumento de neutralizao do plano pictrico. Esvaziado de sua condio bidimensional objetiva, o quadro passou a ser visto, atravs da iluso de profundidade e volume, como uma janela que enquadrava a entrada para o mundo simblico da representao; uma abertura que contrariava em tudo a natureza plana e superficial da tela. A pintura moderna conseguiu libertar-se do Naturalismo e afirmar o valor autnomo da forma fazendo o caminho inverso: ao abolir a perspectiva, reafirmou a condio objetiva do plano pictrico, revolucionando o espao sem abandonar o quadro.A concretude da escultura, prxima dos objetos comuns que com ela coexistem no espao real, necessitou de mediaes simblicas e materiais que a distinguissem. Conforme observou Rosalind Krauss, "parece que a lgica da escultura inseparvel da lgica do monumento. Graas a essa lgica, uma escultura uma representao comemorativa se situa em determinado local e fala de forma simblica sobre o significado ou uso desse local".(2) Tanto quanto os feitos mticos, religiosos ou histricos que pretendia celebrar, o monumento escultrico precisava recortar-se da vida objetiva que o cercava guardando dela a proximidade e a distncia, indispensveis para singularizar sua presena em um mundo de objetos. Desse ponto de vista, precisava demarcar um campo fixo, que destacasse a sua imvel eternidade da dinmica das coisas que o circundavam. O pedestal cumpria, pois, o papel intermedirio de fix-la em um lugar contguo ao mundo, mas dele simbolicamente apartado.__

Amilcar de CastroSem Ttulo, 1985ao, 110 x 250 x 250 cmAcervo Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo Fialdini

Como j havia observado anteriormente,(3) a escultura comeou a modernizar-se lentamente na ltima dcada do sculo XIX, quando ocorreram transformaes fundamentais em sua insero tradicional no espao, e, conseqentemente, em sua funo social. Dissociada da lgica do monumento, permitida pela crise da representao (mimese), a escultura perdeu literalmente seu lugar, antes fixado na imobilidade inerente sua funo comemorativa. Sem essa lgica, era preciso produzir, de alguma maneira, um novo sentido para a escultura, pois a simples ruptura com a representao no podia assegurar seu desenvolvimento conseqente. J que no podia escapar da tridimensionalidade, talvez pudesse se transformar ao ponto de redimensionar sua relao com o espao circundante, mas sem confundir-se com os outros objetos.Em 1913, na fase final do Cubismo, Picasso produziu Guitarre, obra em relevo pintado, situada em um lugar ambguo entre o volume e o plano, que indicou caminhos possveis para o desenvolvimento de uma abstrao tridimensional. A escultura pde, desde ento, voltar-se para as suas questes especficas, auto-referentes. Assim como parte significativa da pintura moderna, ela tambm encontrou na investigao dos limites de seu prprio campo as razes que a impulsionaram ao longo de mais de cinqenta anos.Duas dessas investigaes so particularmente importantes: a de Brancusi, que assimilou o pedestal (lugar onde a escultura pr-moderna era fixada) prpria escultura, tornando-o mvel, e a do Construtivismo, que teve um papel fundamental na modernizao da escultura brasileira.A obra de Brancusi no explorou a forma aberta e a relao entre cheios e vazios. Ao trabalhar a forma fechada e a superfcie contnua conseguiu fundar uma outra via para o desenvolvimento da escultura moderna. A obra escultrica de Srgio Camargo, por exemplo, embora tenha assimilado alguns elementos do mtodo construtivista (a articulao e a montagem de partes para formar o bloco escultrico), foi produzida, sobretudo, a partir desse campo de possibilidades aberto pela vertente brancusiana.Nascido na Rssia, durante a efervescncia poltica e ideolgica da revoluo de outubro de 1917, o Construtivismo delineou-se a partir de 1914 nos contra-relevos de Tatlin, quando foram superados os principais entraves para o florescimento pleno da escultura abstrata. Nos contra-relevos, volume e massa, antes indissociveis, ganharam autonomia, e a "janela" (resqucio pictrico) que continha habitualmente o relevo foi eliminada. A escultura tradicional no separava o volume da massa, respeitando assim a lgica esfrica das formas mimticas, freqentemente figuras humanas ou de animais. Nesse sentido, seria muito difcil que a escultura abstrata pudesse surgir apenas da forma, sem questionar o volume, considerado elemento essencial da representao escultrica tradicional. No podendo, como a pintura, revogar a tridimensionalidade, a escultura devia, mediante a revoluo radical de sua estrutura interna, funcionar como modelo de reorganizao desse espao.De um ponto de vista estritamente tcnico, os construtivistas atingiram esse objetivo transformando a escultura (talhe de blocos inteiros de pedra ou fundio de metal em uma nica pea) em construo (articulao por soldagem, encaixe, etc. de partes preexistentes ou pr-fabricadas de materiais no-convencionais), aproximando-se dos mtodos desenvolvidos pelo funcionalismo predominante na engenharia e na arquitetura desde a segunda metade do sculo XIX. Os mtodos de construo da forma no espao real possibilitaram, pela primeira vez na histria da escultura, a separao consciente entre volume e massa. Em decorrncia dessa nova plstica, a forma fechada e a superfcie contnua, caractersticas do bloco escultrico tradicional, resgatadas por Brancusi, foram substitudas no Construtivismo pela forma aberta resultante da interseo de planos e curvas estruturalmente organizadas. A obra construtiva atribui, portanto, aos vazios um papel anlogo ao das partes slidas que a formam. Captura em seu corpo o espao real, impregnando-o. Nesse sentido, e na maior parte dos casos, o que chamamos hoje em dia de escultura pouco tem a ver com a sua acepo pr-moderna. O denominador comum entre o ato de esculpir e a ao de construir reside apenas na permanncia do dado tridimensional.

Se considerarmos os escultores tratados nesta publicao, veremos que no Brasil a questo construtiva no predominou somente nas obras tridimensionais dos artistas vinculados aos Movimentos Concreto e Neoconcreto. Exceo feita a poucos, como Zlia Salgado, ligada ao Abstracionismo Informal, Krajcberg e Ione Saldanha, que trabalharam sobre materiais extrados da natureza, a obra da maioria dos escultores abstratos independentes do pas foi produzida, em nveis variados de compromisso, com parmetros que podem ser remetidos ao Construtivismo.Franz WeissmannA Torre, 1957ferro, 169 x 62,7 x 37,2 cmAcervo Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo Fialdini

o caso de Abraham Palatnik (que, com Serpa e Mavignier, participou, ainda em 1948, do primeiro ncleo de artistas abstrato-geomtricos do Rio de Janeiro, sendo considerado um dos pioneiros internacionais da arte cintica), Ascnio MMM, Emanoel Arajo, Felcia Leirner, Mary Vieira (que se transferiu para a Sua em 1951, onde vive at hoje), Rubem Valentim (apesar do entrecruzamento de sua obra com elementos da simbologia afro-brasileira), Srvulo Esmeraldo, etc.O Concretismo paulista, a despeito de contar com dois escultores em suas fileiras, Kazmer Fejer e Leopoldo Haar, demonstrou desde sempre um interesse maior pela pintura do que pela escultura. No por acaso que seus melhores resultados so planares e no tridimensionais. As razes dessa preferncia talvez residam na importncia capital que atribuam, principalmente atravs das idias de Waldemar Cordeiro, teoria.Em 1957, auge da polmica entre os grupos concretistas de So Paulo e do Rio de Janeiro, Mrio Pedrosa observou: "A mocidade concretista de So Paulo carrega consigo a mesma preocupao de sabena, ao lado da poesia. Entre um Pignatari e um Gullar, claro que o primeiro muito mais terico que o segundo. No plano da pintura e das artes plsticas, o contraste ainda mais gritante. Os pintores, desenhistas e escultores paulistas no somente acreditam em suas teorias como as seguem risca". (4)O plano pictrico, muito mais abstrato enquanto espao do que a tridimensionalidade contaminada pelo mundo, elucidou-se teoricamente antes da escultura, cuja renovao se processou mais tarde, graas s experincias de Tatlin. possvel que a antecedncia de solues tericas e prticas para o problema da pintura, verificada tambm no Concretismo internacional, explique, ao menos em parte, o predomnio da pintura no grupo de So Paulo, apesar da presena efetiva do escultor Max Bill nessa cidade no princpio da dcada de 50. Seu trabalho no campo tridimensional no marcou, curiosamente, a prtica dos paulistas, mas foi uma influncia libertadora nos trabalhos iniciais de Amilcar de Castro e Franz Weissmann que, mais ou menos mesma poca, vieram de Minas Gerais e se radicaram no Rio de Janeiro, onde aderiram ao Concretismo do Grupo Frente. Antes mesmo de criar o Movimento Neoconcreto (1959), esse grupo comeara a produzir, atravs da obra de Amilcar e de Weissmann, referncias de inegvel relevncia para o futuro da escultura brasileira. H de considerar tambm os experimentos de sada do plano para o espao real realizados paralelamente por Hlio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e Willys de Castro (So Paulo), prenunciando a dissidncia neoconcreta, da qual foram representantes destacados.O Concretismo europeu surgiu como uma oposio radical pintura abstrata, contra a qual propunha uma ruptura racionalmente demarcada. Fundado no ano de 1930, em Paris, por Theo Van Doesburg, esse novo movimento contou tambm com a adeso de Carlsund, Hlion, Tutundjian e Wantz. A pintura concreta pretendeu inaugurar uma arte no-mimtica, diametralmente oposta confuso dos inmeros ismos e das experincias individuais recobertas pelo esgarado conceito de abstrao. Em texto publicado no primeiro e nico nmero da revista Art Concret, Van Doesburg esclarecia: "Pintura concreta e no abstrata, porque j superamos o perodo das pesquisas e das experincias especulativas. Na busca da pureza, os artistas foram obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os elementos plsticos, a destruir as formas-natureza e substitu-las pelas formas-arte (...). Ns inauguramos o perodo de pintura pura, construindo a forma-esprito. (...)Numa tela, uma mulher, uma rvore ou uma vaca so elementos concretos? No.Uma mulher, uma rvore, uma vaca so concretos no estado natural, mas no estado de pintura so abstratos, ilusrios, vagos, especulativos, ao passo que um plano um plano, uma linha uma linha; nem mais nem menos".(5)O Concretismo percebeu que a idia de abstrao no resolvia, do ponto de vista terico, o projeto de uma arte totalmente independente das referncias visuais da natureza.Qualquer processo de abstrao nasce do despojamento gradual de todas as qualidades especficas das coisas, para torn-las conceitos ou formas gerais. Teoricamente implica a necessria vinculao do resultado final abstrado sua origem sensvel e natural. Esse afastamento progressivo da realidade s possvel graas transformao do dado sensvel em idia; jamais pela ruptura. Sua utilizao na produo artstica refere-se s poticas no alusivas ao mundo objetivo, preocupadas com a autonomia da forma. Nesse sentido, foi desde sempre contraditria, pois sugeria uma continuidade para com o passado que o discurso e a ao de seus artistas negavam, convencidos de que haviam estabelecido um corte profundo com a tradio clssica.Contra o impreciso conceito de arte abstrata, o Concretismo pretendeu assentar os princpios de uma ruptura amplssima: cortava com a forma mimtica, mas tambm com todas as concepes da obra de arte enquanto expresso ou representao (individual, nacional, social, etc.). S assim poderia chamar a ateno para o carter concreto e objetivo do produto artstico que no mais dependia de nada fora dele, tornando-se ento auto-referente.O excessivo zelo pela ruptura assumido pelo Concretismo paulista desde 1952 buscava um claro referencial que o distinguisse do confuso ambiente das artes plsticas brasileiras. Para assegurar a coerncia especfica de suas posies, essa vertente do Concretismo brasileiro teve de manter-se sempre muito prxima dos princpios tericos elaborados, em 1930, por Van Doesburg e retomados, alguns anos aps sua morte, por Max Bill.J o Concretismo carioca, conforme observou Mrio Pedrosa, desde sua origem em torno de Ivan Serpa, se desobrigou dessa tarefa privilegiando a experimentao e a esfera prtica: seu objetivo era antes inventar do que romper. Nesse sentido, mesmo que confrontado ao rigor terico do ncleo paulista parecesse intuitivo em demasia ("desnorteado", segundo escreveu Waldemar Cordeiro em 1957), o Grupo Frente pde superar os limites impostos pela teoria e radicalizar suas experincias espaciais ao ponto de reunir em suas fileiras, quantitativa e qualitativamente, o conjunto mais instigante de escultores brasileiros daquele perodo.O Concretismo do Rio de Janeiro, posteriormente transformado em Neoconcretismo (ao qual aderiram Hrcules Barsotti e Willys de Castro, residentes em So Paulo), abrigou no s as experincias escultricas evidentes de Amilcar de Castro e Franz Weissmann como aquelas originadas da ruptura com o plano pictrico efetuada por Hlio Oiticica (Bilaterais, Relevos Espaciais, Parangols e Blides), Lygia Clark (Casulos, Bichos, Trepantes, Obras Moles), Lygia Pape (Livros do Tempo e da Criao) e Willys de Castro (Objetos Ativos).Weissmann e Amilcar, logo aps breve influncia da escultura de Bill (estruturao do espao atravs de superfcies contnuas de inspirao topolgica), passam a interessar-se, respectivamente, pela relao da estrutura da obra com os vazios que assimilava e pelo corte e a dobra de superfcies planas. Suas experincias espaciais e as dos artistas neoconcretos que superaram o plano pictrico foram, pelo menos at o princpio da dcada de 60, convergentes.A Teoria do No-Objeto de Ferreira Gullar, produzida em 1960, que se constitui numa espcie de clmax da reflexo sobre a experincia neoconcreta reveladora dessas convergncias: "E o que se verifica que, enquanto a pintura, liberada de sua inteno representativa, tende a abandonar a superfcie para se realizar no espao, aproximando-se da escultura, esta, liberta da figura, da base e da massa, j bem pouca afinidade mantm com o que tradicionalmente se denominou escultura. Na verdade, h mais afinidade entre um contra-relevo de Tatlin e uma escultura de Pevsner do que entre esta e uma obra de Maillol, de Rodin ou de Fdias. O mesmo se pode dizer de um quadro de Lygia Clark e uma escultura de Amilcar de Castro. Donde se conclui que a pintura e a escultura atuais convergem para um ponto comum, afastando-se cada vez mais de suas origens". (6)Pode-se, portanto, considerar que as questes majoritrias que plasmaram a escultura abstrata no pas nasceram das idias concretistas e amadureceram na experincia neoconcreta, onde pintura e escultura se contaminaram a tal ponto que se tornou impossvel pensar nelas separadamente.Notas(1) DI CAVALCANTI. Realismo e abstracionismo. Boletim SATMA: Sul Amrica Terrestres,Martimos e Acidentes, Rio de Janeiro, n.23, p.47, 1949.(2) KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Revista Gvea, op. cit., p.88.(3) COCCHIARALE, Fernando. In: ESCULTURA carioca, op. cit.(4) PEDROSA, Mrio. Paulistas e cariocas. Jornal do Brasil, op. cit.(5) VAN DOESBURG, Theo. Arte concreta. Revista Art Concret, Paris, n.1, 1930. (extrada de verso publicada no livro Projeto construtivo brasileiro na arte, op. cit.).(6) GULLAR, Ferreira. Teoria do no-objeto. Jornal do Brasil, op cit. (constante dos livros Projeto construtivo brasileiro na arte e Abstracionismo geomtrico e informal, op. cit.). [Das Novas Figuraes Arte Conceitual]Celso FavarettoDoutor em Filosofia e professor da Faculdade de Educao da USP. Autor de Tropiclia: Alegoria, Alegria e A Inveno de Hlio Oiticica.

Propondo uma nova imagem da arte, a dissoluo das distines entre arte e vida, respondendo ao imperativo de posicionamento tico-poltico, a vanguarda brasileira da segunda metade dos anos 60 visava efetivar os princpios da criticidade moderna. Por sua radicalidade, as proposies celebravam a propalada morte da arte, rompiam a hegemonia do projeto construtivo e problematizavam o circuito.

Abrindo o vasto campo da colagem, comps uma ampla atividade pela apropriao das possibilidades estticas provocadas pela pulverizao dos processos e cdigos modernos desencadeados a partir da Pop Art. Questionando a autonomia da pintura e da escultura e o centramento visual-retiniano; desidealizando o conceito de arte, a tradicional imagem de artista e a recepo habitual, a experimentao dedica-se a anular o ilusionismo pela valorizao de tcnicas, temas, retricas e sintaxes. Desloca a prioridade da visada sinttico-formal para a semntico-pragmtica. A proposta de participao surge como necessidade: de um lado, artstica, para compor um novo espao esttico; de outro, cultural e poltica, para dar conta do imperativo de falar do pas e denunciar a represso do regime militar.

TungaLesartes, 1989ferro, m e cobre, 73 x 30 x 9 cmColeo particularFoto: Romulo FialdiniDesbordando as fronteiras fixadas desde o Modernismo, as vanguardas exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de tcnicas, a fuso de gneros, a ruptura dos suportes, valorizando o carter heterogneo e multidisciplinar da arte. Rearticulando desenvolvimentos construtivistas, ou simplesmente negando-os; reativando as proposies duchampianas ou apostando na antiarte; repropondo a representao atravs de novas figuraes; explorando o aleatrio, o eventual, o gesto e os comportamentos, a vanguarda brasileira produz a abertura do campo esttico para inovaes, que no so livres de ambigidades. Entre a crtica do sistema da arte e a integrao do mercado, entre o esteticismo de algumas experimentaes e a significao social perseguida, as propostas promovem a reavaliao do sentido e da funo da arte naquele momento.A atividade artstica do perodo recobriu uma gama muito elstica de atitudes e experincias: objetos, ambientes, happening aparecem misturados com pintura e escultura, abstratas e figurativas, referidos a elementos pop, op, surrealistas, dadastas, da Arte Povera, corporal, etc. Pode-se dizer que um bsico procedimento conceitual se explicitava em graus diferenciados. Das tendncias mais prximas da figurao s mais desconstrutivas, passando por aquelas que privilegiavam o trabalho com os signos da comunicao de massa, manifestava-se um bsico empenho de auto-reflexo da arte.Embora multidisciplinar e mesclada, nessa produo podem-se observar algumas direes prioritrias: nova figurao, antiarte, objetos. Entretanto, o conjunto dessas experimentaes no constitua uma unidade de pensamento. Havia um esforo de identificar uma "posio especfica" da vanguarda brasileira; uma posio coletiva de sentido tico-esttico. Nas significativas exposies Opinio (1965 e 1966), Propostas (1965 e 1966), Salo de Braslia (1966 e 1967), Nova Objetividade Brasileira (1967); nas intervenes e manifestaes como os Parangols, de Oiticica, e a No-Exposio, de Nelson Leirner; nos textos e manifestos dos artistas, a tentativa de formulao de uma posio crtica, apesar das diferenciaes e divergncias, gerava a sensao de movimento aglutinador. No mnimo, como disse na ocasio Srgio Ferro, num debate entre artistas e crticos, a unidade do que ocorria nas artes plsticas no Brasil no estava em algum parentesco formal ou nos objetivos especficos, mas na posio agressiva, no inconformismo, na tentativa ampla e violenta de desmistificao. Para isso, tratava-se de lanar mo de todos os instrumentos, processos, tcnicas e linguagens disponveis, dos tradicionais aos modernos, incluindo os da comunicao de massa. exatamente nessa direo que a "nova figurao" produziu ressonncias estticas e politizadoras. Embora a expresso, s vezes substituda por "realismo" ou "novo realismo", fosse confusa, pois englobava manifestaes muito distintas como as de Oiticica, Lygia Clark e Wesley Duke Lee, por exemplo, ela queria contemplar, com as idias de participao coletiva e desmistificao poltico-cultural, o restabelecimento de relaes mais prximas da realidade do pas. Mas os "realismos", as figuraes, eram vrios, Rubens Gerchman, Waldemar Cordeiro, Vergara, Roberto Magalhes, Flvio Imprio, Wesley Duke Lee muito se diferenciavam, embora todos emitissem "opinies". Em cada um o experimentalismo agenciava imagens de modo especfico, mais ou menos sintomtico, com maior ou menor radicalidade esttica. Em cada artista cumpriria examinar o modo de articulao das imagens e procedimentos: as solues estruturais em que coabitam o pictrico, os signos da comunicao, os smbolos populares; o visual e o verbal; o plano e a tridimensionalidade; as representaes sociais e as fantasmagorias.

Cildo MeirelesInseres em Circuitos Ideolgicos - Projeto Coca-Cola, 1970inscries em garrafas de vidroColeo do artistaFoto: Romulo Fialdini no que foi denominado "problema do objeto" que se localiza uma questo central das experimentaes dos anos 60, que, alis, se prolongar com significaes diversas, nos 70. As transformaes estruturais da pintura e escultura levaram construo de objetos com a inteno de superar os suportes e a idia de obra. Embora nem sempre isso tenha acontecido, pois os objetos freqentemente apenas substituam o quadro ou a escultura e impunham-se como obra, a concepo de "objeto" foi muito eficaz. Oiticica, com os seus Blides e teorizao especfica pensou de modo instigante o problema. O objeto no seria uma nova categoria hbrida e sinttica acrescentada pintura e escultura, mas uma proposio conceitual que praticamente abre um domnio da arte contempornea ativo at hoje. Tal concepo de objeto radicaliza a dissoluo estrutural e prope outras ordens estruturais, de criao e de recepo; implica a relao objeto/comportamento, ressignifica o ato artstico e a experincia esttica. O objeto, diz Oiticica, um sinal que aponta para uma ao no ambiente ou situao. Concretiza a idia de procedimento conceitual que redimensiona a participao, a posio dos protagonistas. H nos objetos uma imanncia expressiva que pode se objetivar de muitas maneiras: caixas, vidros, pacotes, etc., alm de proposies em que o corpo intervm constitutivamente, como no caso dos Parangols, de Oiticica, e da Nostalgia do Corpo, de Lygia Clark.A proposio de objetos uma dissoluo do primado do visual. Enquanto supe uma participao diversificada, em que o visual esbatido no ttil e olfativo, e para no ser tomado apenas como objeto esttico substitutivo de pintura e escultura, o objeto inclui-se no domnio mais amplo da antiarte, uma fuso de arte e ao constituindo uma potica que vislumbra a arte como outra coisa. A antiarte prope-se como ao simblica; lugar de produo de aes exemplares que ressaltam a fora do gesto e do conceito, valorizando situaes instveis com ressonncia imediata. A eficcia simblica provm do simples ato de as aes se mostrarem. Antiarte o limite da desestetizao.A arte dos anos 60, conceitualista e processual, exasperada e ambgua na efetivao da negatividade, radicalizou os signos de modernidade vanguardista, especialmente no seu momento final, o tropicalista. Experimental, violenta e utpica, pensou o sentido cultural da arte tanto em relao s transformaes estticas na linha da modernidade quanto s condies especficas da cultura brasileira. Imaginou a utopia da arte-vida realizvel na atividade coletiva e na participao como conseqncias da destruio das categorias estticas tradicionais e transformao do sistema da arte. O corte das aes e no imaginrio, provocado pelo recrudescimento da represso e censura do regime militar, contribuiu decisivamente para pr em recesso a aposta nas virtualidades das propostas tico-estticas.Algumas atividades ainda tentaram, entre o fim de 60 e incio de 70, dar continuidade quelas manifestaes aproveitando-se dos estilhaos tropicalistas, mas foram tentativas agnicas, freqentemente esteticistas, em que a criticidade decaiu no ldico. A potica do instante e do gesto, da ao e do comportamento ponto extremo do complexo fenmeno que dominara a arte dos 60 mesclava, contraditoriamente, j no fim da dcada, signos contraculturais e experimentalismo de linguagem e recursos tcnicos.Mudanas significativas ocorrem na produo artstica dos anos 70, devido a vrios fatores: a investida institucional do regime para a formulao de uma poltica cultural e implementao do "milagre econmico"; a internacionalizao da cultura e das linguagens; o desenvolvimento e especificao dos rumos experimentais abertos no perodo anterior. Livres dos imperativos dos projetos modernos, do voluntarismo e das rupturas vanguardistas, da necessidade (ou impossibilidade) de tematizar politicamente a situao brasileira, os artistas passam a explorar um campo de possibilidades.__

Nelson LeirnerPorco Empalhado, 1967c.porco empalhado em engradado de madeira, 83 x 159 x 62 cmAcervo Pinacoteca do Estado de So Paulo, So Paulo SPFoto: Romulo FialdiniA dcada de 70, considerada geralmente como de "vazio cultural", apresenta-se complexa e contraditria. At que ponto o rigor do regime, a ao da censura e a integrao capitalista foram introjetados na produo cultural? Como as manifestaes artsticas especificaram a internacionalizao das linguagens e dos processos experimentais, sendo ou no permeveis s sistematizaes oficiais? No Brasil, a impossibilidade de manifestaes pblicas levou a atividade crtica marginalidade, a prticas alternativas que s vezes se tornaram rituais restritos, a aes fragmentadas e individualizadas. Nessa situao, as artes plsticas parecem ter caminhado segundo uma lgica que no expressava tais contradies, desenvolvendo as possibilidades abertas da experimentao em vrias direes. Marcada por uma atitude de positividade diante da internacionalizao e do mercado, dedica-se a especificar e desenvolver os processos e procedimentos recentes. Adotando novos materiais ao, acrlico, plstico, alumnio, etc. , propondo o mltiplo para a soluo do problema da crtica da obra nica, deslocando o conceito de participao pela nfase quase exclusiva no ludismo, esta arte conforma as novas possibilidades e imposies do momento: uma mistura contraditria de experimentalismo, marginalidade e mercado.Considerando cumprida a tarefa de questionamento dos suportes e de conquista da faculdade de utilizar todas as linguagens, procedimentos e poticas, os desenvolvimentos se especificam, freqentemente chegando aos limites do hermetismo, outras vezes aproximando-se da produo industrial.Mas um fato importante se destaca medida que a poca vai liberando a possibilidade de aparecimento de produes de novos artistas ou da pesquisa daqueles aparecidos no fim dos anos 60: o procedimento reflexivo, conceitual, vai tomando corpo em obras que se singularizam. Em Resende, Fajardo, Baravelli, Cildo Meireles, Leirner e Cordeiro; em Regina Silveira, Waltercio Caldas, Tunga e outros, percebe-se a afirmao de um trabalho que d forma conscincia reflexiva da materialidade da arte. Ainda que certamente devedores da abertura esttica dos 60, parecem caminhar segundo a lgica da histria da arte moderna. Optando pela realidade imediata da arte, pelo seu sentido imanente, enfatizam os processos e procedimentos conceituais, tensionando os limites da arte moderna, contextualizando o lugar de aparecimento das obras.Embora as palavras "novo" e "ruptura" ainda estivessem em franca circulao, no mais se referiam ao impulso vanguardista; a nfase no conceitual no elidia a dificuldade da formalizao. A reiterao do novo, embora tivesse algo de inusitado, era mais uma moeda posta em circulao pelos meios de comunicao aulados pelo mercado, tendo em vista um pblico de arte assimilado ao estilo de vida da cultura tcnico-industrial. Os artistas exigentes procuravam entretanto uma outra coisa: dar forma, buscar formas de gerar pontos de tenso num sistema de atividades tanto variadas quanto diluidoras das pesquisas vanguardistas. A dificuldade maior estava na quase impossibilidade de produo de imagens, em parte porque a crtica das representaes efetivadas pelas vanguardas tinha sido eficiente, em parte devido rpida obsolescncia da apropriao das imagens das comunicaes de massa e, finalmente, porque o procedimento conceitual regrava o uso das imagens na formulao de linguagens singularizadas.O domnio do conceitual envolvia uma variedade de experincias: objetos, mltiplos, arte postal, arte na rua, xerox, gravura, audiovisuais, videoarte, arte do computador, design, artes grficas, etc. A vertente minimalista, entretanto, retinha o essencial das proposies conceituais, pois nela pintura e escultura foram retraduzidas em experincia plstica pura, reduzida a estados mnimos, morfolgicos, perceptivos e significativos. A radicalidade minimalista to exemplar quanto a da antiarte. o limite dos desenvolvimentos surgidos da crise dos sistemas visuais. A monumentalidade e a auto-referencialidade do minimalismo problematizam a circulao das obras, no mais referindo-as a um pblico consumidor mas ao percurso institucional da produo e aparecimento, nos museus e lugares pblicos. Contrariamente boa parte da produo dos anos 70, que se mescla circulao das mercadorias industrializadas, a minimal exige tenso reflexiva e evidenciao pblica para que se efetive a sua eficcia plstica.Para evidenciar a complexidade e as contradies da cultura dos anos 70, cumpre mencionar ainda alguns fatores que interferiram na paisagem artstica: a voga da arte primitiva, o ensaio de implantao de um mercado de arte, a moda dos mltiplos e a revalorizao da gravura. Em princpio oposta ao conceitualismo, a voga da arte primitiva um sintoma do hibridismo cultural do perodo. Aparece como uma espcie de reao ao hermetismo da arte de vanguarda, mas tambm fruto do interesse pelo popular enfatizado nos anos 60, ainda com um certo ar de nacionalismo cultural. , tambm, consonncia imediata com o novo plano nacional de cultura do governo militar, interessado em despolitizar o tema da cultura popular para utiliz-lo como instrumento de doutrinao cvica na proposio de uma "alma brasileira para o consumo". Finalmente, articulada revivescncia do artesanato trazida pelas comunidades contraculturais, a arte primitiva vem tentar ocupar o vazio de imagens provocado pela crtica da visualidade. Embora tenha afirmado um certo interesse etnolgico e antropolgico pelo imaginrio popular, foi um fenmeno comercial que explorou sentimentalmente a via contracultural de recusa da sociedade tecnolgica. Mas, bom lembrar, ficaram alguns traos dessa passagem ambgua pelo popular e pela arte primitiva: permitiu a identificao de formas e imaginrios que mais tarde se iriam fundir a experincias contemporneas.A onda dos mltiplos bastante elucidativa da perda de vitalidade da proposio do objeto na dcada de 60, pois aparentemente realizando o acesso generalizado s obras, pela multiplicao em escala industrial, na verdade o mltiplo no reteve o aspecto crtico das discusses sobre a reprodutibilidade. Os prottipos de mltiplos foram logo erigidos em obras nicas, com as caractersticas da aura. Foi tambm um fenmeno comercial, ligado ao desenvolvimento do design, vagando entre o esteticismo dos objetos e o consumo do ludismo. No fundo era uma produo ainda artesanal.J a revitalizao da gravura, embora proveniente em boa parte do questionamento nico da obra, mais interessante, pois permitiu repor em circulao alguns mestres, como Grassmann, Lvio Abramo, e evidenciar os que ascendiam, como Maria Bonomi, Evandro Carlos Jardim, Renina Katz e muitos outros. A gravura foi proposta como substitutivo de obras visuais e objetos de fcil circulao no mercado; entretanto, as novas condies tcnicas disposio e a excelncia dos trabalhos serviram para veicular uma diversidade muito grande de tcnicas, procedimentos e imagens. A efervescncia artstica gerada no incio dos anos 70 deu a sensao de que se formava um amplo e diversificado pblico de arte, sugerindo a possibilidade de constituio de um verdadeiro mercado. A tentativa foi feita; multiplicaram-se galerias e leiles, supervalorizando as obras da tradio, inclusive algumas de vanguarda, contrapostas efemeridade e precariedade das proposies conceituais. Artificial, o boom do mercado no durou, retornando o consumo de arte para os setores tradicionais, mantendo-se apenas como mais extensivo o interesse pela gravura. As pesquisas mais exigentes oriundas do conceitualismo prosseguiram no trabalho daqueles artistas que, atravessando as contradies da poca, afirmaram o sentido reflexivo e a materialidade da arte, no em relao s sugestes e demandas do mercado mas segundo o percurso institucional. Problematizando a incompletude do passado moderno, explorando a tenso do sensvel e do inteligvel e intervindo sem violncia numa situao artstica imprevisvel, os trabalhos insistem na exigncia de ateno e pensamento especificados para cada obra, evento ou instalao.

[O Tridimensional na Arte Brasileira dos Anos 80 e 90: Genealogias, Superaes]Tadeu ChiarelliHistoriador e crtico de arte. Professor doutor do Departamento de Artes Plsticas da ECA/USP e curador-chefe do MAM/SP. Autor de Um Jeca nos Vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte nacional no Brasil.

Escrever sobre a produo artstica tridimensional realizada no Brasil nestes ltimos vinte anos - um dos perodos mais profcuos da arte brasileira -, o leitor h de convir, uma empreitada difcil, ainda mais se for levado em conta o espao exguo que este texto dever ocupar nesta publicao. Assim, caberia aqui apenas levantar algumas possibilidades para uma futura reflexo sobre o assunto e as obras dos artistas envolvidos.

Talvez o principal ponto a ser levantado sobre essa produo que a maioria de seus agentes j emergiram na cena artstica brasileira como herdeiros do rompimento efetuado por seus antecessores imediatos, em relao aos limites tornados muito estreitos do conceito de "escultura", entendido como a realizao de uma forma no espao, atravs do desbastamento ou da modelagem da matria.Mais do que isso: surgiram como herdeiros do rompimento da prpria noo de arte enquanto linguagem constituda de cdigos capazes de serem traduzidos para outros cdigos.Nem "escultores" nem "modeladores", esses artistas propem com suas obras certas experincias em princpio impermeveis a qualquer descrio, pelo fato de serem exatamente o que so: proposies de experincias espao-temporais - muitas vezes multissensoriais -, tendentes sempre a travar uma relao com o espectador por intermdio de uma inteligncia (ou uma lgica) individual, que se esgota, s vezes, numa nica pea, ou ento numa srie delas, para ser substituda por outra, e mais outra...Shirley Paes LemeSom do Silncio, 1995galhos secos e arame, 280 x 30 x 30 cmColeo da artistaFoto: Roberto Chacur

Assim, ento, essas obras no comunicam nada? Nada, se entendermos que a "comunicao" de uma obra de arte deva pressupor algum conhecimento anterior prpria experincia que o espectador precisaria possuir diante de uma determinada pea de arte. Todos podem "entender" uma obra de Victor Brecheret, por exemplo, mesmo sem nem estar necessariamente frente a ela. Isso possvel porque a obra desse artista - como a de vrios outros significativos escultores de sua poca - est toda pautada no conhecimento anterior da anatomia humana. Este um dado que o artista conhece e que o prprio espectador, seja ele quem for, tambm conhece. Por exemplo, frente Tocadora de Guitarra, de Brecheret, possvel perceber de imediato que o artista desejava transmitir conceitos de beleza, elegncia e harmonia, a partir da representao idealizada da mulher.Frente a uma obra de Carlos Fajardo, por exemplo, ou de Angelo Venosa, ou de Ana Maria Tavares, ou..., o que essas obras contemporneas "comunicam" em primeiro lugar a prpria presena delas mesmas, uma presena constituda de materiais e formas articuladas, procura de um significado final que apenas o espectador - e cada um particularmente - pode dar, a partir de sua prpria experincia de estar frente obra, ou mesmo dentro dela (caso das instalaes).Obviamente, o visitante de uma exposio poder chegar concluso de que, frente obra Sem Ttulo, de Fajardo, por exemplo, a experincia que vivenciou poderia ser sintetizada pelas palavras "beleza", "elegncia" e "harmonia", e estar certo. No entanto, o visitante ir perceber que esses conceitos no lhe foram transmitidos pela obra a partir de algum tipo de cdigo j conhecido. Foi necessria justamente essa experincia no mediada por nenhum conceito apriorstico para que ele chegasse concluso a que chegou e se reconhecesse na obra.Qual a razo para essas obras contemporneas, de alguma maneira to dependentes do espectador, do espao e do tempo reais de apreciao serem to valorizadas? Existem, com certeza, muitas explicaes para isso. Porm, talvez, a maior delas que essas obras, de qualquer modo, resgatam, para ns espectadores, uma dimenso de tempo perdida no contexto de nossas vidas contemporneas. Elas so como "hiatos temporais", ou cpsulas de sentido sempre em devir, que nos fazem parar para nos tornarmos mais conscientes de ns mesmos: de onde estamos e o que somos.Quando acima fiz referncia ausncia de cdigos preexistentes a formar as manifestaes artsticas contemporneas, o leitor poderia ter-se perguntado: mas, se no existe um cdigo, algo a priori que o artista usa para se comunicar; se, na verdade, a obra se manifesta apenas como presena em sua materialidade, do que se vale o artista para produzir sua obra? Qual a medida, o parmetro, de onde ele parte para a produo de suas peas?Rompidos os cdigos preestabelecidos de pintura, escultura, gravura, etc., e, dentro deles, os cdigos de figurativo e abstrato, construtivo e informal, etc. - que, at mais ou menos o incio dos anos 60 (no Brasil), serviam como parmetros para os artistas -, o que tem prevalecido como base para cada artista sempre ele mesmo: ele enquanto artista (e tudo o que isso significa, quando se pensa a carga histrica dessa atividade), enquanto cidado e indivduo com seu prprio corpo, sua biografia, lugar, origem, etc.Sendo assim, seria possvel dizer, ento, que cada artista um "movimento artstico"? claro que sim, mas embora seja esse fato o que d todo o sabor e interesse arte atual (porque o que est atrs de uma obra sempre o sujeito que a produziu), por outro lado, perfeitamente possvel agrupar certos artistas a partir de genealogias, algumas afinidades tcnicas e/ou conceituais, ou ento pelo tipo de interpretao que se queira fazer da produo atual.O partido que escolhi foi a genealogia dos artistas surgidos entre os anos 80 e 90. Tentarei demonstrar aqui o quanto a gerao surgida a partir dos anos 80 devedora dos artistas que imediatamente a antecederam, embora haja alguns artistas surgidos neste perodo que demonstram heranas mais longnquas.Ao contrrio do que se supe, o movimento que marcou fundo o surgimento da arte brasileira contempornea - o Neoconcretismo -, tanto em sua linhagem "sensvel" quanto "dramtica", no produziu bvios herdeiros entre os artistas surgidos no Brasil, a partir dos anos 80. Excetuando alguns trabalhos iniciais de Nuno Ramos (quando o artista ingressa no campo do tridimensional tangenciando formalmente os Blides, de Hlio Oiticica), os primeiros estgios das esculturas de Eliane Prolik (que explicitavam a absoro sensvel de certos conceitos das obras de Lygia Clark e de Amilcar de Castro) e certas formulaes "essencialistas" das esculturas de Shirley Paes Leme (que remetem, em certos aspectos, a uma tradio construtiva, via Amilcar de Castro), o Neoconcretismo perdura junto a essas novas geraes mais como um marco de qualidade e autonomia alcanado pela arte local - til para a construo de uma auto-imagem mais positiva do artista brasileiro contemporneo - porm sem muita influncia direta na constituio de suas poticas. que, talvez, a produo dos artistas surgidos entre os neoconcretos e os anos 80 tenha tido um impacto ainda mais forte sobre as novas geraes. Refiro-me aqui s obras de Waltercio Caldas Jr., Cildo Meireles, Tunga (no Rio de Janeiro) e Jos Resende, Carlos Fajardo, Regina Silveira e Nelson Leirner (em So Paulo).Apesar de ter sido muito propagado que os artistas surgidos na dcada passada, de alguma maneira, se opunham ao excessivo rigor da gerao nomeada logo acima, o fato parece ser que herdaram daquela gerao anterior muito mais do que querem fazer parecer os primeiros textos escritos sobre eles.Seria interessante, portanto, antes de entrar propriamente nas "tendncias contemporneas dos anos 80 e 90", tentar uma breve reflexo sobre o "legado" deixado pelos artistas surgidos e/ou firmados nos anos 60 e 70 e queles que emergiram na cena brasileira mais recentemente.O livro Aparelhos, escrito por Ronaldo Brito a partir da produo de Waltercio Caldas Jr., lanado em 1979, de alguma maneira anunciava a morte de Hlio Oiticica, ocorrida em 1980. Anunciava a morte de um dos principais artistas do Neoconcretismo, uma vez que, ao chamar a ateno para as fortes e problemticas relaes entre a produo de Caldas Jr. e a instituio "arte" (na verdade, a base para o engendramento da potica primeira do artista), colocava definitivamente por terra a viso utpica da corrente "dramtica" do Neoconcretismo - da qual Oiticica era o sumo pontfice -, que ingenuamente percebia, na participao do espectador na obra de arte, um meio de transgresso ao circuito e, portanto, ao prprio poder.A produo de Caldas Jr. e o texto de Brito chamavam a ateno para a impossibilidade de ignorar o poder do circuito artstico e frisavam, com lgica cortante, o fato de ser justamente a partir da conscincia da precesso desse poder, e no embate decisivo com ele, que a arte contempornea podia manter para si alguma qualidade desestabilizadora, pois, caso contrrio, se tornaria mais uma mercadoria como outra qualquer.Aparelhos, na verdade, pode ser lido como a resultante talvez mais visvel do trabalho de intenso debate ocorrido no s entre Ronaldo Brito e Waltercio Caldas Jr., mas tambm entre os dois e outros artistas e crticos, cujo resultado foi a publicao da revista Malasartes, entre o final de 1975 e 1976.Malasartes - que, alm de textos de Ronaldo Brito, Jos Resende e outros, trazia tradues de ensaios fundamentais de artistas e intelectuais internacionais - pode dar bem a medida das inquietaes desse grupo em relao necessidade de buscar uma articulao mais crtica, menos ingnua, para o artista contemporneo brasileiro, em pleno regime militar.No resta dvida de que essas publicaes - Malasartes e Aparelhos - contriburam de maneira decisiva tanto para o questionamento das proposies levadas por Hlio Oiticica e seu grupo quanto pela corrente mais formal dos neoconcretos - Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Hrcules Barsotti e outros.Alm desse grupo articulado entre artistas e crticos cariocas e paulistas, em So Paulo - e to margem do grande circuito quanto o primeiro (apesar de operar em instituies oficiais de ensino de arte) -, foi-se constituindo, pelos anos 70, um grupo de artistas e intelectuais que levaram para o mbito das escolas de arte de So Paulo (Faap e ECA/USP) posturas e prticas artsticas que desestabilizavam os conceitos institudos da arte. O crtico e historiador Walter Zanini, os artistas Regina Silveira, Julio Plaza, Nelson Leirner, Carmela Gross - sempre em contato com outros artistas da cidade e do Rio (entre esses, Anna Bella Geiger) - problematizavam a todo momento para os jovens artistas e futuros profissionais da rea de arte os limites e possibilidades do trabalho artstico numa sociedade indiferente e ao mesmo tempo voraz para transformar tudo em artigo de rpido consumo.Paralelos, mas com contatos ocasionais, esses artistas e intelectuais paulistas e cariocas marcaram uma mudana na cena artstica local ainda a ser estudada no apenas pelos dados novos que trouxeram para o debate artstico do pas mas, igualmente, pela produo crtica e artstica que levaram a cabo, que influenciaria violentamente vrios artistas brasileiros ainda em devir. Estabelecido esse rpido mapeamento, caberia agora apenas levantar as bases do discurso visual desses dois grupos para tentar, em seguida, sinalizar suas possveis influncias nas geraes de artistas que se seguiram.No se pode dizer, sem risco de erro grosseiro, que, aqui no Brasil, tivemos arte conceitual, no sentido cannico do termo. Apesar de atentos s proposies mais radicais dos conceituais europeus e norte-americanos, os artistas aqui citados nunca romperam com a explicitao da obra de arte atravs de algum mecanismo de materializao. Pelo contrrio, embora tivessem abandonado, por um largo perodo, as prticas artsticas mais convencionais (pintura e escultura, sobretudo), em nenhum momento deixaram de produzir objetos que, se no propriamente "estticos", se manifestavam por uma materialidade palpvel.Esses artistas, na inteno de desarticularem as noes mais convencionais de arte e do objeto de arte, lanaram mo de um legado da arte moderna internacional que pouca ressonncia tivera at ento no nosso meio: a obra profundamente crtica de Marcel Duchamp e, com ela, toda a experincia mais radical do Dada e do Surrealismo.Sem dvida, perfeitamente possvel estabelecer conexes entre as atitudes de Duchamp e algumas proposies de Oiticica, Clark, Lygia Pape, e mesmo de alguns artistas de So Paulo, ainda na dcada de 60. No entanto, nos anos 70, houve no Brasil como que uma revivificao profcua do legado duchampiano e das realizaes dada e surrealistas.Se, num primeiro momento, o que parece ter prevalecido foi a sombra de Duchamp sobre os trabalhos desses artistas dos anos 70, isso se deve, justamente, pertinncia da obra de M.D. para aquele momento crucial de insero de uma postura e uma ao poltica no-ingnua na cena artstica brasileira. Nesse contexto, contaminado por Duchamp, tanto possvel incluir os aparelhos de Waltercio Caldas Jr., os off-set de Regina Silveira quanto as peas de Jos Resende, com um grau mnimo de "artisticidade".Ao lado da conscincia crtica que esses artistas buscavam em Duchamp, eles encontraram na sua obra, nos demais dadas e em algumas vertentes surrealistas dois outros conceitos igualmente fundamentais: a ironia e o rompimento da noo de arte entendida como linguagem.A crtica ao circuito da arte, instituio "belas-artes", via Duchamp e os demais dadas, vinha acompanhada em grande parte por um tom irnico (cnico, muitas vezes), que ajudava a carregar ainda mais o posicionamento contrrio desses artistas em relao arte institucionalizada. Por outro lado, a tentativa de desestabilizar os conceitos artsticos institudos permitiu o rompimento definitivo com qualquer tipo de cdigo formal estabelecido, abrindo espao para o surgimento das mais diferentes poticas, sempre questionadoras, mas permeveis ao extremo s idiossincrasias e mitologias individuais.Por outro lado, o rompimento da noo de arte como linguagem - e/ou da arte como desconstruo das linguagens ou dos cdigos hegemnicos da visualidade - abriu espao para a introduo de materiais vindos das mais diferentes procedncias e a apropriao de objetos completamente desvinculados, at ento, do universo cannico da arte.Essa introduo de materiais e objetos heterclitos, por sua vez, possibilitou o surgimento - ainda nos anos 70, entre ns - de poticas profundamente individuais, com forte conexo com o universo esttico surrealista (se que se pode restringir o Surrealismo aos limites de um universo); refiro-me aqui sobretudo obra de Tunga, mas igualmente a certas formulaes de Jos Resende, Fajardo, Regina Silveira e outros.Obviamente que as influncias que sofreu esse grupo de artistas no foram apenas de Duchamp, dos dadas e surrealistas. preciso afirmar, inclusive, que, em muitos casos, esses influxos vieram no diretamente, mas atravs da absoro de certas questes neodadas, que, j no final dos anos 50, comeavam a inflamar a cena internacional. Mas, alm de todas essas absores, houve igualmente no Brasil a influncia de outras tendncias internacionais, muito fortes no perodo. Refiro-me quelas ligadas Arte Povera e antiforma.Para esses artistas brasileiros dos anos 70, no entanto, a experincia local do Neoconcretismo e a conscincia da necessidade da superao de seus postulados mais ingnuos serviram como antdoto eficaz a qualquer vontade de absoro mais acrtica daquelas tendncias repletas, em muitas das obras de seus principais protagonistas, de uma forte carga de romantismo utpico e equivocado.No incio dos anos 80, como sabido, a reboque da vaga internacional que repropunha em chave aparentemente nova, o j antigo "retorno aos suportes tradicionais" - to caro ao mercado de arte -, surge ento uma nova gerao de artistas brasileiros atuantes, a princpio, no campo da pintura.Se a maioria deles se perdeu alguns anos depois e outros se mantiveram pintores, uma parte considervel desse grupo, logo aps o "estgio pictrico", caminhou em direo ao espao tridimensional, quer atravs da produo de objetos e/ou instalaes, quer por meio de objetos "hbridos", entre o espao bi e tridimensional. fcil rememorar alguns trabalhos daquele perodo: Entre o Figurativo e o Abstrato, de Leda Catunda - um cnico e bem-humorado comentrio sobre a banalizao da arte; a pintura-instalao que Ana Maria Tavares apresentou na mostra Pintura como Meio, no MAC/USP em 1983 - uma obra que, insatisfeita com sua condio de pintura, buscava intervir no espao real da mostra -; as pinturas sobrecarregadas de Nuno Ramos que, para desapontamento de marchands e colecionadores, despencavam, buscando o espao real, que mais tarde o artista ocuparia de maneira bastante particular...Esses trs exemplos apontam para um fato digno de nota: a pintura que surgiu no Brasil na dcada passada no estava assim to satisfeita consigo mesma, como queriam muitos. Na verdade, ela nascia encarnada na mesma insatisfao que marcara os trabalhos dos melhores artistas da dcada anterior. Encarnada, ela continuava sendo a insatisfao crtica dos anos 70, manifestando-se por outras vias. Igual, apesar de totalmente diferente, porque emergia, j tendo como base a produo da gerao anterior, podendo tentar evitar, assim, certas peculiaridades tpicas do grupo anterior.Para ficarmos por enquanto nos trs artistas acima citados, podemos perceber hoje que Leda Catunda seguiu construindo sua potica num dilogo problematizado no apenas com os repertrios visuais "cultos" e "baixos" mas, sobretudo, com um modo de produo onde a pintura entra como mais um elemento, aliado a prticas menos "nobres", como a costura, por exemplo. O melhor que a artista produz no exatamente pintura, mas um tipo de objeto estruturalmente hbrido, entre o espao bidimensional e o espao tridimensional, atualizado por uma ironia (s vezes muito prxima daquela de seu antigo professor Nelson Leirner) que a auxilia na desestabilizao ou desconstruo dos cdigos tradicionais de nossa visualidade (uma herana herdada de Regina Silveira - tambm sua professora) - um legado dos anos 70.Ana Tavares, por sua vez, logo aps algumas experincias no mbito do bidimensional, direciona sua produo para o espao real, tensionando o campo institucional da arte com a produo de objetos e instalaes que tendem a ficar sempre no limite entre a escultura e o objeto utilitrio. Em sua abordagem fria de um universo de formas profundamente erotizado pela lembrana permanente do corpo, a artista, em ltima instncia, continua discutindo - e com muita propriedade - os limites e possibilidades da arte.Nuno Ramos, aps seu estgio problemtico e problematizador no campo da pintura, irrompeu sofregamente pelo espao tridimensional, atravs da produo de objetos e instalaes. Longe de qualquer cdigo visual apriorstico, o artista constri seu prprio campo potico como parte de uma grande narrativa, onde o objeto resultante tende a ser sempre a exteriorizao de um universo nunca desatento realidade exterior, sim, mas repleto de momentos em que a mitologia individual do artista e suas preocupaes com o momento presente explodem em toda a sua singularidade.O elemento narrativo que se apoderou da produo de Nuno Ramos tambm ganha um novo reforo, em meados da dcada passada, com as produes de Rosngela Renn, Valeska Soares, Jac Leirner e Lia Menna Barreto.No comeo, a trajetria de Renn parecia caminhar no sentido de uma espcie de exaltao lrica do universo comezinho, tradicionalmente feminino. No incio, a artista se manifestava atravs de fotos de famlia apropriadas de lbuns, onde Renn colocava inscries; logo depois atravs de objetos onde a fotografia ainda apropriada ganhava uma nova dimenso, uma espessura, digamos, nunca vista antes nesse terreno no Brasil; em seguida, a artista passa a tomar conta do espao real de exposio, mediante instalaes ainda produzidas com fotos apropriadas. A uma outra guinada: o universo feminino deixava de interess-la particularmente, ou melhor, mesclava-se ao interesse pela explicitao carregada de drama - e de carter pico - da condio humana neste final de milnio.Uma fotgrafa, uma "escultora", uma "artista de instalaes"? Onde colocar, como catalogar a produo de Rosngela Renn? Para quem tinha dificuldades em identificar a artista e sua produo j em meados da dcada passada, hoje em dia esse intuito parece irremediavelmente impossvel. Ao lado de suas fotos, a artista, no incio desta dcada, passa a se apropriar de legendas de fotografias estampadas em publicaes de larga escala obliterando, impedindo qualquer catalogao: afinal, uma fotgrafa que no fotografa, uma escritora que no escreve, exibindo sua produo no circuito das artes visuais? que a potica de Rosngela Renn rompeu de vez com as fronteiras entre a fotografia, as artes visuais e a literatura, adentrando num terreno anterior a qualquer modalidade esttica instituda: o territrio prprio e originrio da arte.Embora Rosngela Renn no tenha sido aluna de nenhum artista dos anos 70, o que foi escrito sobre seu trabalho no ltimo pargrafo poderia servir para as instalaes e interferncias de Tunga, Nelson Leirner, Cildo Meireles, Barrio, o que demonstra os estreitos contatos poticos entre essas duas geraes. E o mesmo poderia igualmente ser dito sobre a produo de Nuno Ramos, onde se percebe o artista operando naquele territrio indiferenciado, em que as modalidades artsticas ainda esto amalgamadas, espera de algum que as constitua de acordo com suas intenes.Mesmo no trabalho de Valeska Soares, perceptvel que a artista trafega nesse mesmo territrio e, de certa forma, ampliando-o ainda mais. Trazendo para o campo da arte o universo da mulher e toda a simbologia e preconceitos a ele agregados pela sociedade (a seduo, o pecado, a culpa), atravs de objetos e instalaes, a artista no se restringe apenas a explorar o sentido da viso, mas se utiliza em seus trabalhos de materiais das mais variadas origens que despertam outros sentidos do espectador, como tecidos extremamente sensuais que apelam ao tato e essncias que irremediavelmente excitam nossa capacidade olfativa.Jac Leirner - uma colecionadora como Rosngela Renn - configura suas colees em objetos rigorosos, numa ordem que nasce de uma inteligncia de carter minimalista e que, ao mesmo tempo, a sua prpria crtica, devido sobretudo, origem dos objetos que preserva e das relaes que a artista estabelece com eles. __

Jac LeirnerOs Cem-roda, 1986notas de dinheiro e ao inox, 7 x 80 x 80 cmColeo Marcantonio VilaaFoto: Eduardo Ortega

Leirner, aluna de Regina Silveira e de Julio Plaza ainda nos anos 80, al