Trotsky - O Futurismo

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O FuturismoLeo TrotskiSetembro de 1922

Fonte: Gentilmente cedido pela Juventude do PSTU.
HTML por Jos Braz para o Marxists Internet Archive

O futurismo um fenmeno europeu e desperta interesse porque, entre outras razes, no se fechou, ao contrrio do que afirma a escola formal russa, nos limites da arte, mas, desde o inicio, se ligou aos acontecimentos polticos e sociais, sobretudo na Itlia. O futurismo reflete, na arte, o perodo histrico, que comeou em meados dos anos 1890 e acabou na Guerra Mundial. A sociedade capitalista conheceu dois decnios de ascenso econmica sem precedente, que derrubou velhos conceitos de riqueza e de poder, elaborou novos padres, novos critrios do possvel e do impossvel, e impulsionou o povo a novos actos ousados.O movimento social, ao mesmo tempo, vivia, oficialmente, segundo o automatismo da vspera. A paz armada, com as indolncias da diplomacia, o oco sistema parlamentar, a poltica interna e externa baseadas num sistema de vlvulas de segurana e de freios, tudo isso pesava, duramente, sobre a poesia, quando o ar, carregado de eletricidade acumulada, pronunciava a iminncia de grandes exploses. O futurismo deu o sinal premonitrio na arte.Observa-se um fenmeno que se repetiu mais de uma vez na histria: os pases atrasados, que no possuem um grau especial de cultura, espelhavam na sua ideologia as conquistas dos pases avanados, com maior brilho e maior fora. Assim o pensamento alemo dos sculos XVIII e XIX refletiu as realizaes econmicas da Inglaterra e os avanos polticos da Frana. O futurismo, da mesma forma, adquiriu mais brilhante expresso no na Amrica ou na Alemanha, mas na Itlia e na Rssia.A arte, com exceo da Arquitetura, s se baseia na tcnica, em ltima instncia, isto , na medida em que a tcnica serve de fundamento para todas as superestruturas. A dependncia prtica da arte, principalmente a das palavras, diante da tcnica, no conta. Pode-se escrever um poema que cante os arranha-cus, os dirigveis e os submarinos, num recanto afastado de qualquer provncia russa, sobre um papel amarelo e com um pedao de lpis. Basta que os arranha-cus, os dirigveis e os submarinos existam na Amrica para inflamar a imaginao ardente dessa provncia. Nenhum material se transporta com maior facilidade do que a linguagem.O futurismo nasceu nos meandros da arte burguesa. E no podia nascer de outra forma. Seu carter de oposio violenta no contradiz esse fato. A intelectualidade extremamente heterognea. Toda escola de arte reconhecida recebe, ao mesmo tempo, uma boa remunerao. dirigida por mandarins com os seus pequenos botes. Esses mandarins da arte, geralmente, expem os mtodos de suas escolas com a maior sutileza, esgotando, no mesmo golpe, sua proviso de plvora. Ento sobrevm alguma alterao objetiva, uma sublevao poltica ou uma tempestade social, e excitam-se a bomia literria, a juventude, os gnios em idade de prestar o servio militar, que, amaldioando a cultura burguesa, farta e vulgar, sonham, secretamente, com alguns botes para si, se possvel dourados.Aqueles estudiosos, que, procurando definir a natureza social do futurismo nos seus primrdios, do importncia decisiva aos protestos violentos contra a vida e a arte burguesas, no conhecem, suficientemente, a histria das tendncias literrias. Os romnticos, franceses ou alemes, falavam sempre, asperamente, da moralidade burguesa e da rotina. Ostentavam cabelos compridos, a tez esverdeada, e Thophile Gautier, para acabar de cobrir de vergonha a burguesia, portava sensacional colete vermelho. A blusa amarela dos futuristas sem dvida alguma a sobrinha-neta do colete romntico, que tanto horror suscitou entre os papais e as mames. Sabe-se que nenhum cataclismo seguiu esses protestos de cabelos longos e colete vermelho do romantismo, e a opinio pblica burguesa adotou, sem prejuzo, tais cavalheiros e canonizou-os nos seus livros escolares. extremamente simples contrastar a dinmica do futurismo italiano, e suas simpatias pela Revoluo, com o carter decadente da burguesia. No se deve representar a burguesia como um velho gato prestes a morrer. No. A besta do imperialismo audaciosa, gil e tem garras. Ser que a lio de 1914 j foi esquecida? A burguesia, para fazer a sua guerra, utilizou, em grande parte, os sentimentos e humores, que, por natureza, se destinavam a nutrir a rebelio. Pintou-se a guerra, na Frana, como o arremate da Grande Revoluo. A burguesia efetivamente no organizou revolues em outros pases? Na Itlia, os intervencionistas (isto , os que eram pela interveno na guerra) eram os revolucionistas, ou seja, republicanos, maons, sociais-chauvinistas e futuristas.Finalmente, o fascismo italiano no chegou ao poder por mtodos revolucionrios, acionando as massas, multides de pessoas, fortalecendo-as e armando-as? Nem por acidente nem por mal-entendido o futurismo italiano desembocou na torrente do fascismo. Tudo estava conforme a lei de causa e efeito*Publicamos no fim deste captulo, uma carta curta, muito interessante e muito valiosa, do camarada Gramsci sobre os destinos do futurismo italiano. (L. T.)

.O futurismo russo nasceu numa sociedade que ainda cursava a escola preparatria da luta contra Rasputin e se aprestava para a revoluo democrtica de fevereiro de 19171Maro de 1917, segundo o calendrio ocidental, atualmente adotado pela URSS. (N. do T.)

. Isso trouxe vantagens ao nosso futurismo. Ele assimilou ritmos de movimentos, de ao, de ataques e de destruio ainda imprecisos. Conduziu a luta por um lugar ao sol com mais dureza, resoluo e barulho do que todas as escolas precedentes, o que se conciliava com o atavismo dos seus rumores e dos seus pontos de vista. O jovem futurista, de certo, no ia s fbricas, mas fazia muito rudo nos cafs, derrubava estantes de msica, enfiava a blusa amarela, pintava suas faces e, vagamente, ameaava com o punho.A Revoluo proletria na Rssia eclodiu antes que o futurismo se libertasse de suas infantilidades, de suas blusas amarelas, de sua excitao, e antes que o reconhecessem, oficialmente, isto , antes que o transformassem numa escola artstica, politicamente inofensiva, de estilo aceitvel. A tomada do poder pelo proletariado surpreendeu o futurismo no momento em que ainda o perseguiam. Essa circunstancia empurrou-o para os novos senhores da situao, enquanto sua filosofia, isto , sua falta de respeito pelos valores antigos e sua dinmica, facilitava o seu contato e o aproximava da Revoluo. Mas o futurismo levou consigo, na nova etapa de seu desenvolvimento, as caractersticas de sua origem social, a bomia burguesa.

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O futurismo, na vanguarda da literatura, constitui um produto da poesia do passado como qualquer outra escola literria da atualidade. Dizer que o futurismo libertou a arte de suas ligaes milenares com a burguesia, como escreveu o camarada Chujak, apreciar, de maneira vulgar, esses milnios. O apelo dos futuristas para o rompimento com o passado, para livrar-se de Pushkin, para liquidar a tradio etc., possui um significado na medida em que se dirige velha casta literria, ao crculo fechado da intelligentsia. O apelo, em outros tempos, s tem sentido na medida em que os futuristas procuram cortar o cordo umbilical que os liga aos pontfices da tradio literria burguesa.Esse apelo, entretanto, torna-se um disparate evidente to logo o dirigem ao proletariado. A classe operria no rompe e no pode romper com a tradio literria, porque no se encontra presa, de modo algum, a essa tradio. A classe operria no conhece a velha literatura. Deve ainda familiarizar-se com ela, dominar Pushkin, absorv-lo e, assim, super-lo. A ruptura dos futuristas com o passado representa, sobretudo, uma tempestade no mundo fechado da intelligentsia, que se ergueu sobre Pushkin, Fet, Tiutschev, Briusov, Balmont e Blok2Pushkin, Fet e Tiutschev so poetas russos do sculo XIX; Balmont, como Blok, pertence literatura moderna. (N. do T.)

; que so passivos, no porque uma venerao supersticiosa pelas formas do passado a infectasse, mas porque ela no tem nada em si que exija novas formas. Simplesmente nada tem a dizer. Repete sentimentos antigos com palavras novas. Os futuristas agiram bem quando com ela romperam. Mas no preciso transformar essa ruptura numa lei de desenvolvimento universal.Na exagerada recusa do passado pelos futuristas no se esconde um ponto de vista do operrio revolucionrio, mas o niilismo do bomio. Ns, marxistas, vivemos com as tradies. Nem por isso deixamos de ser revolucionrios. Estudamos e guardamos vivas as tradies da Comuna de Paris, mesmo antes de nossa primeira revoluo. Depois as tradies de 1905 a elas se somaram, e delas nos alimentamos enquanto preparvamos a segunda revoluo. E, remontando-nos a tempos mais distantes, ligamos a Comuna s Jornadas de junho de 1848 e grande Revoluo Francesa.Tambm, no domnio da teoria, baseamo-nos, atravs de Marx, em Hegel e nos clssicos da Economia inglesa. Ns, que nos educamos e iniciamos a luta numa poca de desenvolvimento orgnico da sociedade, vivemos entre as tradies revolucionrias. Mais de uma tendncia literria nasceu s nossas vistas, declarou impiedosa guerra ao esprito burgus e olhou-nos de soslaio.Assim o vento como gira em torvelinhos, dentro dos seus prprios crculos, esses revolucionrios literrios, destruidores de tradies, reencontraram sempre os caminhos da Academia. A Revoluo de Outubro parecia intelligentsia, inclusive sua esquerda literria, como a destruio total do mundo conhecido, esse mesmo mundo com o qual ela de vez em quando rompia, buscando criar novas escolas, e ao qual, invariavelmente, retornava. Para ns, ao contrrio, a Revoluo encarnava uma tradio familiar, assimilada. Abandonando um mundo que, teoricamente, rejeitvamos e, na prtica, minamos, penetraramos em outro, com o qual nos familiarizamos, pela tradio e pela imaginao. O tipo psicolgico do comunista, homem poltico revolucionrio, ope-se, nisso, ao do futurista, revolucionrio inovador da forma. Eis a fonte dos mal-entendidos que nos separam. O mal no reside na negao, pelo futurismo, das santas tradies da intelligentsia. Reside, ao contrrio, no fato de que o futurismo no se sente integrado na tradio revolucionria. O futurismo caiu logo que entramos na Revoluo.A situao no to desesperada. O futurismo no retornar aos seus crculos porque eles no existem mais. E essa circunstncia, no sem significao, d ao futurismo a possibilidade de um renascimento, de entrar na nova arte, no como a tendncia determinante, mas como um dos seus componentes importantes.

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O futurismo russo formou-se de diversos elementos muito independentes uns dos outros e, por vezes, contraditrios. H construes e ensaios filolgicos consideravelmente imbudos de arcasmos (Khlebnikov, Kruchenikh), que, em todo caso, no pertencem poesia; uma potica, isto , uma teoria dos procedimentos e mtodos da arte das palavras; uma filosofia e, mesmo, duas filosofias da arte, uma formalista (Shklovsky), e outra, com tendncias marxistas (Arvatov, Chujaketc.); enfim, a prpria poesia, criao viva. No consideramos a insolncia literria como um elemento independente: ela geralmente se combina com um desses elementos fundamentais.Quando Kruchenikh diz que slabas desprovidas de sentido dir, bul, tschil contm mais poesia do que todo Pushkin (ou qualquer coisa parecida), isso se encontra a meio caminho entre a potica filolgica e, me perdoem, a insolncia de mau gosto. A ideia de Kruchenikh, sob uma mais sbria forma, significa que a orquestrao do verso na chave do dir, bul, tschil convm mais estrutura da lngua russa e ao esprito de seus sons do que a orquestrao de Pushkin, inconscientemente influenciado pelo idioma francs. evidente, quer seja justo ou no, que dir, bul, tschil no constituem um extrato de obra futurista; assim realmente no h nada a comparar. Talvez algum escreva poemas nessa chave musical e filolgica que se tornem superiores aos de Pushkin. Mas temos de esperar. A criao de palavras de Khlebnikov e de Kruchenikh est, igualmente, fora da arte potica. uma filologia de carter duvidoso, em parte fontica, mas de nenhum modo poesia. A lngua certamente vive e se desenvolve, criando palavras dela mesma e eliminando as antigas. Ela o faz, entretanto, de modo muito cauteloso, calculado, de acordo com as suas estritas necessidades. Toda grande poca nova impulsiona a linguagem. Esta absorve, precipitadamente, enorme nmero de neologismos e, depois, procede a uma espcie de registro, rejeitando tudo o que suprfluo e estranho. A fabricao, por Khlebnikov ou Kruchenikh, de dez ou cem novas palavras, derivadas de razes existentes, pode despertar certo interesse filolgico. Pode, numa certa e muito pequena medida, facilitar o desenvolvimento do idioma e, mesmo, da linguagem potica, anunciar um perodo no qual a evoluo da fala se dirigir mais conscientemente. Esse mesmo trabalho, subsidirio para a arte, est fora da poesia. No existe razo alguma para cair-se num estado de xtase piedoso aos sons dessa poesia supra-racional, que se assemelha a exerccios e escalas musicais de virtuosidade verbal, teis talvez nos cadernos dos alunos, mas totalmente imprprios para o concerto. Tentar, em todo caso, substituir a poesia pelos exerccios da super-razo acabaria por estrangular a poesia. O futurismo no seguir esse caminho. Maiakovsky, que indiscutivelmente um poeta, toma geralmente suas palavras no dicionrio clssico de Dahl, e muito raramente no vocabulrio de Khlebnikov ou de Kruchenikh. E, na medida em que passa o tempo, Maiakovsky emprega cada vez mais esparsamente construes de palavras arbitrrias ou neologismos. Os problemas levantados pelos tericos do grupo Lef3Lef: abreviatura de Levy Front Iskustv (Frente Esquerdista das Artes), ttulo de uma revista futurista que apareceu em Petrogrado em 1923 e da tendncia artstica que se reuniu em torno dela. Foi dirigida de 1923 a 1925 por Maiakovsky. Pasternak fez parte do grupo durante algum tempo e colaborou no primeiro nmero da revista. (N. do T.)

a respeito da arte e da indstria das mquinas, da arte que no embeleza a vida, mas a modela, da influncia sobre o desenvolvimento da linguagem e a formao sistemtica de palavras da biomecnica como educao das atividades do homem no sentido de maior racionalidade e por conseguinte de maior beleza so todos problemas extremamente importantes e interessantes na perspectiva da edificao de uma cultura socialista. Lef, infelizmente, colore a discusso desses problemas com um sectarismo utpico. Mesmo quando definem, corretamente, a tendncia geral do desenvolvimento, no domnio da arte ou da vida, os tericos daquele grupo antecipam a histria e opem o seu esquema ou sua receita ao que existe. Eles no dispem, assim, de nenhuma ponte para o futuro. Lembram os anarquistas que, antecipando a ausncia de Governo no futuro, opem seus esquemas poltica, aos parlamentos e adversas outras realidades, que o atual barco do Estado deve, evidentemente, jogar, na sua imaginao, pelas amuradas. Eles, na prtica, enterram o nariz, antes de libertar o rabo. Maiakovsky prova, com versos complicados e rimados, o carter suprfluo do verso e da rima, e promete escrever frmulas matemticas, embora haja matemticos para essa tarefa. Quando Meyerhold4Diretor de cena, em Moscou, criador da biomecnica, uma ginstica especial de movimentos. (N. do T.)

, experimentador apaixonado, o furioso Vissarion Bielinsky do teatro, produz em cena movimentos semirrtmicos, os quais ensinou a atores muito fracos no dilogo, e chama a isso de biomecnica, o resultado um aborto. Precipitar o que s pode desenvolver-se como parte integrante do futuro, e materializar apressadamente essa antecipao parcial, no presente estado de misria, diante das luzes mortias da ribalta, apenas d a impresso de diletantismo provinciano. E no existe nada mais hostil nova arte do que o provincianismo e o diletantismo.A nova Arquitetura constituir-se- de dois elementos: um novo problema e uma nova tcnica de utilizao dos materiais, em parte novos, em parte antigos. O novo problema no ser a construo de um templo, de um castelo ou de um hotel particular, mas sobretudo de uma casa popular, de um hotel popular, de um domiclio, de uma casa coletiva, de uma escola de grandes dimenses. A situao econmica do pas, no momento em que a Arquitetura estiver prestes a resolver seus problemas, determinar a utilizao dos materiais. Arrancar ao futuro a construo arquitetnica implica um ato arbitrrio, mais ou menos inteligente e individual. E um novo estilo no pode associar-se ao arbtrio individual.Os prprios escritores de Lef sublinham corretamente que um estilo novo se desenvolve onde a indstria mecnica serve s necessidades do consumidor impessoal. O aparelho telefnico um exemplo de novo estilo. Os vages-leito, as escadas, os elevadores e as estaes do metr, eis, indiscutivelmente, os elementos de um novo estilo, assim como as pontes metlicas, os mercados cobertos, os arranha-cus e os guindastes. Assim, fora de um problema prtico e de um trabalho srio para resolv-lo, no se pode criar um novo estilo arquitetnico. A tentativa de criar tal estilo, deduzindo-o da natureza do proletariado, de seu coletivismo, de seu ativismo, de seu atesmo etc., no passa do mais puro idealismo e s exprime o ego de seu autor, um alegorismo arbitrrio e sempre o mesmo velho diletantismo provinciano.O erro de Lef, ou pelo menos de alguns de seus tericos, aparece-nos sob a sua forma mais generalizada, quando exigem, num ultimato, a fuso da arte com a vida. No preciso demonstrar que a separao da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classe da sociedade. A sua autossuficincia, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: da transformao da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evoluo da arte, no futuro, seguir o caminho de uma crescente fuso com a vida, isto , com a produo, com as festividades populares e com a vida coletiva. bom que Lef o compreenda e o exponha. Mas no apresentando arte do presente um ultimato a curto prazo, como o fazem, ao dizerem: deixai o vosso ofcio e fundi-vos com a vida. Os poetas, os pintores, os escultores, os atores deveriam, ento, parar de refletir, de representar, de escrever poemas, de pintar quadros, de talhar esculturas, de exprimir-se diante da ribalta e introduzir sua arte diretamente na vida? Como? Onde? Por que portas? preciso, seguramente, aplaudir toda tentativa de incrementar, tanto quanto possvel, o ritmo, o som e a cor nas festividades populares, nos comcios e nas manifestaes. Que se tenha ao menos, porm, um pouco de imaginao histrica para compreender que mais de uma gerao vir e desaparecer entre a pobreza econmica e cultural dos dias de hoje e o momento em que a arte se fundir com a vida, isto , quando a vida enriquecer em propores tais que se modelar, inteiramente, na arte. Para o bem ou para o mal, a arte como profisso subsistir por muito tempo ainda, servindo de instrumento da educao artstica e social das massas, de seu prazer esttico e isso ocorrer no somente com a pintura e a poesia lrica, mas tambm com o romance, a comdia, a tragdia, a escultura, a sinfonia. Rejeitar a arte como forma de descrever e de imaginar o conhecimento, porque se se ope arte burguesa contemplativa e impressionista dos ltimos decnios, significa arrebatar s mos da classe que construiu uma nova sociedade uma ferramenta da maior importncia. A arte, dizem-nos, no um espelho, mas um martelo. Ela no reflete. Modela.Ensina-se o manejo do martelo com o auxlio do espelho, de uma pelcula sensvel que registra todas as etapas do movimento. A fotografia e a cinematografia, graas sua fora descritiva, tornam-se instrumentos poderosos de educao no domnio do trabalho. Se no se pode dispensar o espelho, mesmo para barbear-se, como construir ou reconstruir sua vida sem o espelho da literatura? Ningum, certamente, pede nova literatura que tenha a impassibilidade de um espelho.Quanto mais profunda a literatura, quanto mais imbuda do desejo de modelar a vida, tanto mais, dinmica e significativamente, poder pintar a vida. Que significa recusar as experincias, ou seja, recusar a psicologia individual na literatura e no teatro? Eis um protesto tardio e de h muito desusado da ala esquerda da intelligentsia contra o realismo passivo de Checov e o simbolismo sonhador. Se as experincias de Tio Vnia5Personagem e ttulo de uma pea de Checov. (N. do T.)

perderam um pouco do seu brilho e isso, infelizmente, ocorreu tambm certo que ele no o nico a possuir um mundo interior. De que modo, sobre que bases e em nome de que arte se pode voltar as costas ao mundo interior do homem de hoje que construiu um mundo exterior e, assim, se reconstruiu a si mesmo? Se a arte no ajudasse esse novo homem a educar-se, a fortificar-se e a aperfeioar-se, para que ento serviria? E como pode organizar o mundo interior se no o penetra e no o reproduz? Aqui o futurismo repete somente suas prprias ladainhas que, agora, esto completamente superadas.Pode-se dizer o mesmo da vida quotidiana. O futurismo levantou, inicialmente, um protesto contra a arte dos mesquinhos realistas, que se comportavam na vida como parasitas. A literatura estava sufocada e tornava-se estpida no pequeno mundo estagnado do advogado do estudante, da mulher amorosa, do funcionrio publico, do senhor Peredonov6Peredonov, personagem hipcrita perverso e sensual, heri do romance de Teodoro Sologub (1863-1927), O Demnio Mesquinho, aparecido pouco antes da Primeira Guerra Mundial. (N. do T.)

, e de seus sentimentos, de suas alegrias e de suas dores. Deve-se, porm, levar o protesto contra os que vivem como parasitas ao ponto de separar a literatura das condies e das formas da vida humana? O protesto futurista contra um realismo superficial justificava-se, historicamente, na medida que abria caminho a uma nova reconstruo artstica da vida, a uma destruio e a uma reconstruo sobre novos eixos. curioso que, enquanto negue que a misso da arte consiste em pintar a vida, Lef cite Nepoputschitsa, de Brik, como um modelo de prosa. Que essa obra seno um quadro da vida quotidiana, na forma de uma crnica quase comunista? O mal no reside no fato de que os comunistas ali no apaream mansos como cordeiros ou duros como o ao, mas no fato de que, entre o autor e o meio vulgar que ele descreve, no se percebe um mnimo de perspectiva. Para que a arte possa transformar como tambm refletir, deve haver certa distncia entre o artista e a vida, da mesma forma que entre o revolucionrio e a realidade poltica.Em resposta s criticas, s vezes mais insultuosas do que convincentes, o camarada Chujak destaca o fato de que Lef est engajado num processo de contnua busca. Sem dvida Lef procura mais do que encontra. Isso, porm, no razo suficiente para que o Partido faa o que lhe recomenda Chujak com insistncia: canonizar Lei ou uma de suas alas como arte comunista. to impossvel canonizar pesquisas como armar um regimento com uma inveno no-terminada.Significa isso que Lef se encontra num falso caminho e que nada temos a fazer com esse movimento? No. No se trata de que o Partido tenha ideias definidas e fixas sobre as questes da arte do futuro, que um certo grupo sabotaria. No esse o caso. O Partido no tem e no pode ter decises prontas sobre a versificao, a evoluo do teatro, a renovao da linguagem literria, o estilo arquitetnico etc., assim como, nos outros setores, no tem nem pode ter decises prontas sobre o melhor adubo, a mais correta organizao dos transportes ou as metralhadoras mais perfeitas. No que concerne a metralhadoras, transportes e adubos, decises prticas, imediatamente, se impem. Que faz ento o Partido? Designa alguns de seus membros para a tarefa de estudar e resolver esses problemas e controla-os pelos resultados prticos de suas atividades. A questo, no campo da arte, , ao mesmo tempo, mais simples e mais complexa. No que se refere utilizao poltica da arte ou necessidade de impedir tal utilizao pelos nossos inimigos, o Partido tem, suficientemente, experincia, perspiccia, deciso e recursos. Mas o desenvolvimento real da arte e da luta por novas formas no faz parte de suas tarefas e preocupaes. O Partido no encarrega ningum desse trabalho. Existem, no entanto, alguns pontos de contatos entre os problemas da arte, da poltica, da tcnica e da economia, cujo estabelecimento se torna necessrio para determinar a interdependncia interna entre os problemas. O grupo Lef ocupa-se desse trabalho. Esse grupo salta, mergulha de um lado e do outro e diga-se sem o ofender exagera no domnio da teoria. No exageramos, contudo, e no estamos prestes a exagerar em questes muito mais vitais? E tentamos, seriamente, corrigir os erros de tratamento ou do entusiasmo partidrio no trabalho prtico? No temos nenhuma razo para duvidar de que o grupo Lef se esfora, seriamente, para trabalhar no interesse do socialismo, de que se interessa, profundamente, pelos problemas das artes e de que deseja orientar-se por critrios marxistas. Por que ento comear com a ruptura e no com o esforo para influenci-lo e assimil-lo? A questo no requer urgncia. O Partido tem muito tempo para proceder a um exame, influenciar, cuidadosamente, e escolher. Ou possumos tantas foras qualificadas que nos permitam gastar com prodigalidade? O centro de gravidade, afinal, encontra-se no na elaborao terica dos problemas da nova arte, mas na sua expresso potica. Qual a situao do futurismo, de suas pesquisas e de suas realizaes? Aqui h menos motivos para precipitao e intolerncia.

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Ningum pode negar, inteiramente, as realizaes do futurismo na arte, sobretudo na poesia. O futurismo influenciou toda a nossa poesia moderna, direta ou indiretamente, com raras excees. No se pode contestar a influncia de Maiakovsky sobre toda uma srie de poetas operrios. O construtivismo registra igualmente conquistas importantes, embora no de todo na direo que se traara. Publicam-se, continuamente, artigos sobre a futilidade total e o carter contra-revolucionrio do futurismo, assinados por construtivistas. Os poemas futuristas, na maior parte das edies oficiais, saem ao lado das crticas mais acerbas. O Proletkult7Organizao pela cultura proletria. (N. do T.)

une-se aos futuristas por laos vivos. A revista Horrn (O Clarim) aparece, atualmente, com evidente esprito futurista. No existe, certamente, motivo para exagerar a importncia desses fatos porque eles ocorrem no seio de uma camada superior que, como quase todos os nossos grupos artsticos, mantm dbeis ligaes com as massas. Mas seria estpido fechar-lhe os olhos e tratar o futurismo como inveno charlatanesca de uma intelligentsia decadente. Mesmo se amanh se averiguasse que o futurismo est em declnio no penso que isso seja totalmente impossvel ainda assim, agora, ele tem mais fora do que todas as tendncias s custas das quais se desenvolveu. O futurismo russo como j se disse expressou, inicialmente, a revolta dos bomios, isto , da ala esquerda semi-pauperizada da intelligentsia contra o carter de casta e fechado da esttica burguesa. Atravs das roupagens dessa revolta potica, sentia-se a presso de foras sociais profundas que o prprio futurismo no percebia. A luta contra o velho vocabulrio e a antiga sintaxe da poesia, independentemente de todas as suas extravagncias bomias, canalizava uma revolta contra um vocabulrio rgido e escolhido, artificialmente, com o objetivo de que nada estranho o perturbasse. Constitua, tambm, uma revolta contra o impressionismo, que aspirava vida atravs de uma palha, uma revolta contra o simbolismo, tornado falso na sua vida celeste, contra Zinaida Hippius e sua espcie, contra todos os outros limes espremidos e ossos de frango rodos do pequeno mundo da intelligentsia liberal-mstica. Se examinamos, atentamente, o perodo decorrido, no podemos deixar de apreciar a contribuio vital e progressista da obra dos futuristas, no domnio da Filologia. Sem exagerar as dimenses dessa revoluo na linguagem, devemos reconhecer que o futurismo expulsou da poesia muitas frases e termos gastos, substituindo-os por outros de sangue novo, e, em alguns casos, criou, felizmente, frases e termos novos que entraram ou esto prestes a entrar no vocabulrio e podem enriquecer a lngua viva. Essa observao se aplica no somente a palavras isoladas, como a palavras colocadas no meio de outras, isto , sintaxe. O futurismo, campo da combinao de palavras, assim como na da sua formao, passou, realmente, alm dos limites que uma lngua viva pode admitir. O mesmo ocorreu com a Revoluo. Eis o pecado de todo movimento vivo. A Revoluo, principalmente a sua vanguarda consciente, demonstrou, entretanto, mais autocrtica do que os futuristas. Encontrou em compensao maior resistncia externa, e, espera-se, encontrar, no futuro, ainda mais. Os exageros desaparecero, e o Trabalho essencialmente purificador e verdadeiramente revolucionrio que se realiza na linguagem potica, permanecer.Deve-se, igualmente, reconhecer u apreciar o trabalho criador e benfico do futurismo quanto ao ritmo e rima. Os indiferentes ou aqueles que simplesmente toleram esses assuntos porque os nossos antepassados nos legaram podem considerar todas as inovaes dos futuristas como problemas enfadonhos que exigem muita ateno. A esse propsito, pode-se levantar a questo sobre se, afinal, o ritmo e a rima so necessrios. O prprio Maiakovsky, curiosamente, prova, de vez em quando, e com versos de rimas muito complexas, que a rima suprflua necessria. Um enfoque puramente lgico destri a questo da forma artstica. Ora, no se deve julg-la com o raciocnio que no vai alm da lgica formal, mas com o esprito que admite o irracional, enquanto vivo e fundamental vida. A poesia matria mais emocional do que racional e a psicologia humana, que absorveu os ritmos biolgicos, os ritmos e as combinaes rtmicas ligados ao trabalho social busca exprimi-los, sob forma idealizada, nos sons, nos cantos e nas palavras artsticas. Enquanto houver tal necessidade, as rimas e ritmos futuristas, mais flexveis, mais audaciosos e mais variados, constituem uma conquista segura e vlida. E a sua influncia j ultrapassou os grupos puramente futuristas. As conquistas do futurismo, na orquestrao do verso, so totalmente indiscutveis. No se deve esquecer que o som de uma palavra representa o acompanhamento acstico do sentido. Se os futuristas pecaram e pecam ainda na sua preferncia quase monstruosa pelo som contra o sentido, trata-se somente de um entusiasmo, da doena infantil do esquerdismo, e se deve rejeitar como delrio de uma nova escola potica que sentiu de um modo novo e com ouvido agudo o som em oposio rotina cansativa das palavras. A maioria esmagadora dos operrios, hoje, no se interessa certamente por essas questes. A maior parte da vanguarda da classe operria, com tarefas mais urgentes, est igualmente muito ocupada. Mas h amanh. E esse amanh exigir uma atitude mais atenta e mais precisa, mais sbia e mais artstica diante da linguagem como um instrumento fundamental da cultura no somente diante da linguagem do verso como da linguagem da prosa, particularmente da prosa. Uma palavra nunca encerra, precisamente, um conceito com toda a significao concreta com que o homem concebe em cada caso. Uma palavra, por outro lado, possui um som e uma forma no s para o nosso ouvido e para os nossos olhos, mas tambm para a nossa lgica e nossa imaginao. O pensamento s ter possibilidade de tornar-se mais preciso atravs de cuidadosa seleo de palavras, isto , depois de pes-las de todos os modos, o que significa tambm do ponto de vista da acstica, e combin-las da maneira mais expressiva. No convm, nesse terreno, proceder s cegas. Fazem-se necessrios instrumentos micromtricos. A rotina, a tradio, o hbito e a negligncia devem dar lugar a um trabalho sistemtico em profundidade. O futurismo, no seu melhor aspecto, traduz um protesto contra a atividade emprica, ao acaso, que forma poderosa escola literria e tem representantes muito influentes em todos os campos. Numa obra ainda indita do camarada Gorlov, que a meu ver, descreve erroneamente a origem internacional do futurismo, viola a perspectiva histrica e o identifica com a poesia proletria, resumem-se as realizaes daquela escola de maneira conscienciosa e sistemtica. Gorlov destaca, corretamente, que a revoluo futurista na forma, nascida de uma rebelio contra a antiga esttica, reflete, no plano da teoria, a revolta contra a vida estagnada e ftida, que produziu aquela esttica. Essa vida tambm provocou em Maiakovsky, o maior poeta do futurismo, e nos seus amigos mais ntimos, uma revolta contra a ordem social que engendrou essa vida e essa esttica repulsivas. Eis por que esses poetas esto, organicamente, ligados a Outubro. O esquema de Gorlov correto. Ter, porm, que se precisar e se definir ainda mais. verdade que novas palavras e novas combinaes de palavras, novas rimas e novos ritmos tornaram-se necessrios, porque o futurismo, com a sua concepo do mundo, reagrupou acontecimentos e fatos, estabeleceu novas relaes entre eles e as descobriu para si mesmo. O futurismo contra o misticismo, a deificao passiva da natureza, a preguia aristocrtica ou de qualquer outra espcie, contra o devaneio e as lamrias. pela tcnica, pela organizao cientfica, pela mquina, pela planificao, pela vontade, pela coragem, pela rapidez, pela preciso e pelo novo homem, armado de todas essas coisas. A conexo entre essa revolta esttica e a revolta social e moral direta: todas as duas se inserem, completamente, na experincia de vida da nova, jovem, ativa e no-domesticada frao da intelligentsia de esquerda, dos bomios criadores. A rebeldia contra o carter limitado e contra a vulgaridade da antiga vida criou um novo estilo artstico como um meio de escape, um meio de liquid-la. Em diferentes combinaes e sobre diferentes bases histricas, vimos a rebeldia da intelligentsia produzir mais um novo estilo. E terminava sempre assim. Mas, desta vez, a Revoluo proletria apanhou o futurismo num certo estgio de seu crescimento e empurrou-o para a frente. Os futuristas tornaram-se comunistas. E, pelo mesmo ato, entraram na esfera dos problemas e das relaes mais profundas, que transcendem os limites de seu prprio pequeno mundo, ainda no-elaborado, organicamente, no seu esprito. Por isso, os futuristas, inclusive Maiakovsky, so mais fracos, no plano da arte, a onde aparecem melhor como comunistas. A causa no est tanto na sua origem social quanto no seu passado espiritual. Os poetas futuristas no dominaram, suficientemente, os elementos da concepo e da atitude mundial do comunismo, para dar-lhes expresso orgnica por meio de palavras. Essa concepo e essa atitude, por assim dizer, no lhes entraram no sangue. Da por que, frequentemente, marcham para derrotas artsticas e psicolgicas, com pompas e muito barulho por nada. O futurismo, nas suas obras revolucionrias mais extravagantes, torna-se estilizao. O jovem poeta Bezimensky, que tanto deve a Maiakovsky, d todavia uma expresso realmente verdadeira aos pontos de vista dos comunistas: Bezimensky ainda no se formara como poeta quando veio o comunismo. Ele nasceu, espiritualmente, no comunismo.Pode-se alegar e alegou-se muitas vezes que mesmo a doutrina e o programa proletrios foram criados por membros da burguesia e da intelligentsia democrtica. preciso estabelecer uma diferena importante, decisiva, na matria. A doutrina econmica e histrico-filosfica do proletariado repousa sobre um conhecimento objetivo. Se o marceneiro Bebel, um asceta, econmico na vida e no pensamento, e cujo esprito possua o corte de uma navalha, doutor em Filosofia de uma erudio universal, como Karl Marx, formulasse a mais-valia, esta teoria apareceria, numa obra muito mais acessvel, mais simples e mais unilateral. A riqueza e a variedade de conceitos, de argumentos, de imagens e de citaes de O Capital revelam, sem dvida alguma, o seu background intelectual. Mas, como se tratava de conhecimento objetivo, a essncia de O Capital tornou-se propriedade de Bebel e de milhares e milhes de outros operrios. No campo da poesia, ocupamo-nos do sentimento do mundo, atravs de imagens, e no do conhecimento cientfico. A vida cotidiana, o ambiente individual, o crculo das experincias pessoais, exercem, por conseguinte, influncia determinante sobre a criao artstica. Remodelar o mundo dos sentimentos, absorvidos desde a infncia, num plano cientfico, o mais difcil trabalho interior. Nem todo mundo capaz de faz-lo. Da por que, no mundo, existem muitas pessoas que pensam como revolucionrios e sentem como filisteus. E percebemos, na poesia futurista, mesmo na parte que se entregou inteiramente Revoluo, um revolucionarismo mais bomio que proletrio.

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Maiakovsky um grande talento, ou, como o definiu Blok, um imenso talento. capaz de apresentar as coisas que sempre vemos de tal modo que parecem novas. Maneja as palavras e o dicionrio como um audacioso mestre, que trabalha de acordo com suas prprias leis e sem considerar se seu trabalho de arteso agrada ou desagrada. Muitas de suas imagens, frases e expresses entraram na literatura e nela permanecero, por muito tempo, se no para sempre. Ele possui suas prprias construes, suas prprias imagens, seu prprio ritmo e sua prpria rima. O objetivo artstico de Maiakovsky revela-se, sempre, significativo e, s vezes, grandioso. O poeta introduz, no seu prprio domnio, a guerra e a revoluo, o cu e o inferno. Maiakovsky hostil ao misticismo, a todo o tipo de hipocrisia, explorao do homem pelo homem. Suas simpatias se voltam totalmente para o operrio combatente. Ele no pretende transformar-se no sacerdote da arte ou, pelo menos, num sacerdote dos princpios. Est pronto, pelo contrrio, a colocar a sua arte inteiramente a servio da Revoluo.Mas nesse grande talento, ou mais exatamente em toda a personalidade criadora de Maiakovsky, no se encontra a harmonia necessria entre os seus componentes, nenhum equilbrio, nem mesmo o dinmico. Maiakovsky manifesta a sua maior fraqueza onde precisaria ter o senso de propores e a capacidade de autocrtica.Era mais natural para Maiakovsky do que para qualquer outro poeta russo aceitar a Revoluo porque ela se ajustava a todo o seu desenvolvimento. Numerosos caminhos conduzem a intelligentsia Revoluo (nem todos levam at ao fim), e por conseguinte importa definir e apreciar mais exatamente a orientao pessoal de Maiakovsky. Existe o caminho da poesia mujique, seguido pela intelligentsia e pelos caprichosos companheiros de viagem (j falamos deles). H o caminho dos msticos, que buscam outra msica mais elevada (A. Blok), e o caminho do grupo Mudana de Direo e daqueles que se reconciliaram simplesmente conosco (Chkapskaia, Chaguinian). E tambm existe o caminho dos racionalistas e dos eclticos (Briusov, Gorodetsky e Chaguinian, novamente). H numerosas outras vias, mas no podemos apontar todas elas. Maiakovsky veio pelo caminho mais curto, o dos bomios rebeldes perseguidos. A Revoluo, para Maiakovsky, serviu como verdadeira experincia, real e profunda. Estourou com troves e relmpagos sobre as mesmas coisas que Maiakovsky odiava sua maneira e com as quais no se reconciliara. Nisso reside a sua fora. O individualismo revolucionrio de Maiakovsky desembocou, entusiasticamente, na revoluo proletria, mas no se confundiu com ela. Seus sentimentos subconscientes pela cidade, pela natureza e pelo mundo inteiro no so os do operrio, mas os do bomio. A lmpada calva da rua que levanta as meias compridas na rua, esta impressionante imagem, extremamente caracterstica de Maiakovsky, esclarece mais sobre a natureza bomia e urbana do poeta do que qualquer outra considerao. O tom impudente e cnico de muitas imagens, principalmente do primeiro perodo do poeta, traz visivelmente a marca do cabar artstico, do caf e de tudo o que a ele se associa. Maiakovsky aproxima-se mais do carter dinmico da Revoluo e de sua rude coragem do que do carter coletivo de seu herosmo, de suas aes e de suas experincias. Assim como o grego antigo era antropomorfo, pensava ingenuamente que as foras da natureza se assemelhavam a ele, o nosso poeta maiakomorfo e povoa, com a sua personalidade, os lugares, as ruas e os campos da Revoluo. Tocam-se os extremos. A universalizao de seu prprio ego apaga, em certa medida, os limites da personalidade e aproxima o homem da coletividade que est na extremidade oposta. Isso, porm, s verdadeiro em certa medida. A arrogncia individualista e bomia, contrastando no com a humildade, que ningum exige, mas com o tato e o senso da medida indispensvel, corre atravs de tudo o que escreveu Maiakovsky. Sente-se, vrias vezes, uma tenso, extraordinariamente alta, nas suas obras, mas nem sempre acompanhada de fora. O poeta evidencia-se muito. Concede bem pouca independncia aos acontecimentos e aos fatos: no a Revoluo que luta contra os obstculos, e sim, ele, Maiakovsky, que realiza proezas atlticas na arena das palavras. Produz verdadeiros milagres! Mas, ao preo de esforos heroicos, de quando em quando levanta halteres notoriamente ocos.Maiakovsky, a cada passo, fala de si mesmo, tanto na primeira quanto na terceira pessoa, como indivduo ou dissolvendo-se na humanidade. Quando quer elevar o homem, ergue-o at Maiakovsky. Assume atitude completamente familiar diante dos maiores acontecimentos da histria. o que h de menos suportvel e de mais perigoso na sua obra. No se pode falar, no seu caso, de coturnos ou de pernas de pau: so, para ele, suportes ridiculamente pequenos. Maiakovsky tem um p sobre o monte Branco e o outro sobre o Elbruz. Sua voz abafa a do trovo. Pode algum se espantar quando ele trata, familiarmente, a histria e, com intimidade, a Revoluo? A est o perigo: adotando, em toda parte e em todas as coisas, padres to gigantescos, tonitruando (um termo favorito do poeta) do alto do Elbruz e do monte Branco, apaga as propores de nossos assuntos terrestres, e no se pode mais distinguir o pequeno do grande. Eis por que Maiakovsky fala de seu amor, isto , de seus sentimentos mais ntimos, como se se tratasse da migrao dos povos. E, pelo mesmo motivo, incapaz de encontrar outra linguagem, quando trata da Revoluo. Aponta sempre com a ala mxima e, como qualquer artilheiro o sabe, semelhante tiro d o mnimo de golpes no alvo e afeta, gravemente, os canhes. verdade que o hiperbolismo reflete, at certo ponto, o furor de nosso tempo, mas no se justifica o seu emprego indiscriminado na arte. No se pode gritar mais forte que a Guerra ou a Revoluo. mais fcil sucumbir. O senso de medida na arte assemelha-se ao da realidade em poltica. A principal falta de poesia futurista, mesmo nas suas melhores obras, a falta do senso de medida: ela perdeu a medida dos sales e ainda no encontrou a medida das praas pblicas. Mas preciso encontr-la. Force-se a voz na praa, e ela se torna rouca, sufocada, anulando o efeito do discurso. Deve-se falar com a voz natural e no com uma voz mais forte. Pode-se empregar a voz em toda a sua extenso se se sabe como faz-lo. Maiakovsky, frequentemente, grita, quando deveria falar. Seus gritos, onde deveria gritar, parecem, pois, insuficientes. A gritaria e o enrouquecimento afogam a dramaticidade de sua palavra.As poderosas imagens de Maiakovsky, embora geralmente esplndidas, desintegram, vrias vezes, o conjunto e paralisam o movimento. O poeta, seguramente, se d conta disso e assim aspira a outro extremo: a linguagem das frmulas matemticas, estranha poesia. Pode-se pensar que a autossuficincia das metforas, o gosto da imagem pela imagem, que o imaginismo apresenta de comum com o futurismo (que comea a parecer o nosso imaginismo das canes camponesas), tem as suas razes no fundamento rural de nossa cultura. Relaciona-se mais com a igreja de Baslio, o Bem-Aventurado, do que com uma ponte de cimento armado. Qualquer que seja a explicao histrica e cultural, no resta dvida de que, nas obras de Maiakovsky, o que mais falta movimento. Isso pode parecer um paradoxo, porque o futurismo se baseia inteiramente sobre o movimento. Aqui, entretanto, intervm a incorruptvel dialtica: o excesso de imagens impetuosas conduz calmaria. O movimento deve estar em consonncia com o mecanismo de nossa percepo, com o ritmo de nossos sentimentos, para que se possa senti-lo, fsica e artisticamente. Uma obra de arte deve mostrar o crescimento gradual de uma imagem, de uma ideia, de um humor, de uma trama, de uma intriga, at o pice, e no lanar o leitor de um horizonte a outro, ainda que com geis golpes de metforas. Cada frase, cada expresso e cada imagem esforam-se, em Maiakovsky, para estabelecer um limite, atingir um mximo, um cume. E por isso, precisamente, o conjunto no tem pice. O espectador sente-se como se o cortassem em pedaos. E o todo se lhe escapa. Escalar um monte penoso, mas se justifica. Um passeio atravs de terreno acidentado no cansa menos e d menos prazer. As obras de Maiakovsky no possuem um ponto culminante, no obedecem a nenhuma disciplina interna. As partes recusam obedincia ao todo. Cada uma tenta emancipar-se, desenvolver sua prpria dinmica, sem considerar a harmonia do conjunto. E no restam nem conjunto nem dinmica. Os futuristas ainda no acharam a expresso sinttica da linguagem e das metforas nas suas obras.150. 000. 000 devia ser o poema da Revoluo. Mas no o . A obra, grande na sua inteno, est minada pela fraqueza e pelos defeitos do futurismo. O autor queria escrever uma epopeia do sofrimento das massas, do seu herosmo, a epopeia da revoluo impessoal dos 150.000.000 de Ivs. E no assinou: Ningum o autor de meu poema. Essa impessoalidade convencional nada modifica: o poema, de fato, continua profundamente pessoal, individualista, e isso, essencialmente, no mau sentido dos termos. O poema contm muito de arbitrrio e de gratuito. Imagens como: Wilson nadando na gordura, Todo habitante em Chicago tem ao menos o ttulo de general, Wilson no se empanturra, engorda, sua barriga cresce aos poucos etc. Essas imagens, aparentemente simples e grosseiras, no so de todo populares, e, em todo caso, no pertencem s massas de hoje. O operrio, ao menos aquele que ler o poema de Maiakovsky, viu a fotografia de Wilson. Wilson magro, embora acreditemos que absorva suficientemente protenas e gorduras. O operrio, igualmente, leu Upton Sinclair e sabe que, em Chicago, existem, alm dos generais, trabalhadores em matadouros. Sente-se, a despeito de seu hiperbolismo tonitruante, nessas imagens gratuitas e primitivas, certo ceceio semelhante quele que os adultos usam com as crianas, que transparece nessas imagens, no provm da exuberante imaginao popular, mas da asneira bomia. Wilson tem uma escada. Se comeas a subi-la, quando jovem, atingirs o seu alto ao envelheceres. Iv ataca Wilson, no campeonato mundial da luta das classes.Wilson possui pistolas de quatro bocas e um sabre com sessenta dentes de serra, mas Iv tem uma s mo, pois a outra enfiou na sua cintura. Iv, sem armas, a mo na cintura, contra o infiel armado de pistolas, um tema russo muito velho! No estamos diante de llya Murometz8Ilya Murometz, valento das antigas canes russas. (N. do T.)

? A menos que este no seja Iv, o Bobo, que avana descalo contra a infernal maquinaria alem? Wilson fere-o com o sabre: Fere-o quatro vezes Mas o homem ferido, subitamente, se levanta. E assim por diante. Como esto deslocadas e so particularmente frvolas essas baladas primitivas e esses contos de fada, transplantados para a Chicago industrial e aplicados luta de classes! Tudo isso se pretendia titnico. de fato atletismo. Atletismo duvidoso, que maneja pesos ocos. O campeonato mundial de luta de classe: Onde est a autocrtica? Um campeonato um espetculo para feriados, onde, frequentemente, se usam truques e combinaes. Nem a imagem nem o termo, portanto, convm aqui. A luta titnica de cento e cinquenta milhes de homens resultou numa pardia de lenda e num match de circo. A pardia no intencional, mas isso nada justifica. As imagens, que a nada visam, ou seja, aquelas que no se formam interiormente, devoram a ideia sem deixar traos e a malbaratam, tanto no plano artstico como no plano poltico. Por que Iv, contra pistolas e sabres, conserva a mo na cintura? Por que tal desprezo pela tcnica? Iv, certamente, est menos armado do que Wilson. Mas precisamente por isso que deve servir-se de suas duas mos. E, se no cai por terra, porque, em Chicago, no s existem generais, mas tambm operrios que, em grande parte, so contra Wilson e a favor de Iv. O poema no o mostra. Procurando obter uma imagem aparentemente monumental, o autor destri sua verdadeira essncia. s pressas e de passagem, isto , uma vez mais sem motivo, o autor divide o mundo inteiro em duas classes: de uma parte, Wilson, nadando na gordura, com arminhos, castores, com grandes corpos celestes, e, de outra, Iv, com bluses e milhes de estrelas da Via-Lctea. Para os castores as pequenas frases dos decadentes do mundo inteiro. Para os bluses a frase de bronze dos futuristas. Ainda que o poema seja expressivo e possua algumas frases fortes, apropriadas, metforas brilhantes, ele, infelizmente, no possui, na verdade, nenhuma frase de bronze para os bluses. Por falta de talento?No. Por falta de uma imagem da Revoluo, forjada pelos nervos e pelo crebro, de uma imagem qual a expresso se subordinasse. O autor joga como um atleta, apanhando e lanando cada vez uma diferente imagem. Acabaremos contigo, mundo romntico!, ameaa Maiakovsky. Bem. preciso, com efeito, pr fim ao romantismo de Oblomov e de Karataiev. Mas como? Ele velho, mate-o e faa um cinzeiro do seu crnio. A no existe romantismo? E do mais negativo? Crnios servindo de cinzeiros no so cmodos nem higinicos. E afinal essa selvajaria no tem sentido. O poeta deve estar embebido de romantismo para fazer semelhante emprego dos ossos de um crnio. Ele, em todo caso, no trabalhou nem unificou as suas imagens. Roubai a riqueza de todos os mundos! nesse tom familiar que Maiakovsky fala do socialismo. Mas roubar significa agir como ladro. Esta palavra se ajusta, portanto, quando se trata da expropriao da terra e das fbricas pela sociedade? Est, notavelmente, deslocada. O autor usa tais vulgaridades para ombrear-se com o socialismo e a Revoluo. Quando d tapas nas costas, familiarmente, dos cento e cinquenta milhes de Ivs, ele no eleva o poeta a dimenses titnicas, mas reduz Iv a somente um oitavo de pgina. A familiaridade no exprime a profunda intimidade, pois vrias vezes apenas evidencia a inconstncia poltica ou moral. Laos srios e profundos com a Revoluo excluem o tom familiar.Engendrariam o que os alemes denominam o pattico da distncia. O poema contm frases fortes, imagens audaciosas e expresses apropriadas. O rquiem triunfal da paz final talvez a parte mais poderosa. Mas, na realidade, uma falta de movimento interior domina o conjunto. As contradies no se esclarecem para, em seguida, se resolverem. Eis um poema sobre a Revoluo ao qual falta movimento! As imagens, que vivem isoladamente, chocam-se e titubeiam. Sua hostilidade no decorre da matria histrica, mas do desajuste interior com a filosofia revolucionria da vida. Quando, portanto, se chega ao fim do poema, no sem dificuldade, diz-se que o poeta, se usasse um pouco de precauo e autocrtica, poderia ter escrito uma grande obra! Talvez esses defeitos fundamentais no decorram das qualidades pessoais de Maiakovsky, mas devido ao fato de que ele trabalha num mundo fechado. Nada to adverso autocrtica e precauo que a vida de cenculo. As peas satricas de Maiakovsky, igualmente, no conseguem penetrar a essncia das coisas e suas relaes. Sua stira picante e superficial. Um caricaturista, para dizer alguma coisa, deve possuir mais que o domnio do lpis. Ele deve conhecer, como seu bolso, o mundo que desmascara.Saltikov conhecia bem a burocracia e a nobreza! Uma caricatura aproximada (99 % das caricaturas soviticas o so) como a bala que erra o alvo pela distncia de um dedo ou mesmo de um palmo: quase tocou o alvo, portanto errou o tiro. A stira de Maiakovsky assim. Suas notas picantes, com o tom de aparte, erram o alvo, s vezes pela distncia de um dedo e outras vezes por um palmo Maiakovsky pensa seriamente que se pode abstrair o cmico de seu suporte e reduzi-lo aparncia.No prefcio do seu conto satrico, ele mesmo apresenta um esquema do riso. O que provoca um sorriso de perplexidade, leitura desse esquema, o fato de que ele no contm, absolutamente, nada de engraado. E se algum apresentasse um esquema melhor do que o de Maiakovsky, ainda subsistiria a diferena entre o riso provocado por uma stira que acerta o alvo daquele que resulta de uma ccega verbal.Maiakovsky ergueu-se da boemia, que o impulsionou, para verdadeiras obras de criao. Mas o galho em que subiu individual. O poeta revolta-se contra a sua condio, contra a dependncia material e moral na qual se encontram sua vida e, sobretudo, seu amor. Ofendido, indignado contra os senhores da situao, que o privaram de sua amada, ele chega a apelar para a Revoluo e prediz o seu desencadear sobre uma sociedade que tira a liberdade de um Maiakovsky.A Nuvem de Calas, poema de um amor infeliz, , artisticamente, sua obra mais significativa, a mais audaciosa e a mais prometedora como criao. difcil crer que um jovem de 22 ou 23 anos escrevesse um texto de uma fora to intensa e com uma forma to original. Guerra e Universo, Mistrio Burlesco e 150.000.000 so muito mais fracos justamente porque Maiakovsky deixou a sua rbita individual para entrar na rbita da Revoluo. Pode-se louvar o seu esforo porque no existe de fato outro caminho para ele. A Esse Propsito retorna ao tema do amor pessoal, mas est alguns passos atrs da Nuvem, e no frente. S uma ampliao do campo de conhecimento e um aprofundamento do contedo artstico podem manter o equilbrio num plano muito mais elevado. No se deve esquecer, porm, que mudar de direo e enveredar, conscientemente, por um novo caminho uma coisa muito difcil. A tcnica de Maiakovsky, nos ltimos tempos, apurou-se, incontestavelmente, mas tambm se tornou mais estereotipada. Mistrio Burlesco e 150.000.000 contm, ao lado de frases grandiosas, fraquezas fatais, mais ou menos compensadas pela retrica e por alguns passos de dana na corda verbal. A qualidade orgnica, a sinceridade, o grito interior, que sentimos em A Nuvem, no existem mais. Maiakovsky repete-se, dizem alguns. Maiakovsky virou poeta oficial, exultam, maldosamente, outros. Ser verdade? No nos apressamos a fazer profecias pessimistas. Maiakovsky no mais um adolescente, certo, mas um jovem ainda. Isso nos autoriza a no fechar os olhos sobre as dificuldades que se encontram no seu caminho. Ele no reencontrar a espontaneidade criadora que brota como vivo manancial em A Nuvem. No h motivo, entretanto, para lamentar. A espontaneidade juvenil, geralmente, cede lugar, na maturidade, a um domnio de si mesmo, que consiste no s num slido conhecimento da lngua, mas tambm numa larga viso da vida e da histria, de uma compreenso profunda do mecanismo da vida coletiva e das foras individuais, das ideias, dos temperamentos e das paixes. Esse domnio no combina com o diletantismo social, a gritaria, a falta de respeito por si prprio, a fanfarronada enfadonha ou a brincadeira de gnios, que fazem truques e malabarismos nos cafs da intelligentsia.Se a crise do poeta porque crise existe se resolve por sbio discernimento, que diferencia o particular do geral, ento o historiador da literatura dir que Mistrio Burlesco e 150.000.000 s marcaram uma baixa de tenso inevitvel e temporria na curva de uma estrada que continua a subir. Desejamos, sinceramente, que Maiakovsky d razo ao historiador do futuro.

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Quando se quebra um brao ou uma perna, os ossos, os tendes, os msculos, as artrias, os nervos e a pele no se rompem segundo uma s linha, da mesma forma que no se colam novamente e saram ao mesmo tempo. Quando se produz uma fratura revolucionria na vida da sociedade, no existe simultaneidade nem simetria de processo, quer na ideologia social, quer na estrutura econmica. As premissas ideolgicas, necessrias Revoluo, formam-se antes do seu rompimento, enquanto as suas mais importantes consequncias ideolgicas s aparecem muito tempo depois. Seria, por conseguinte, falta de seriedade estabelecer, baseando-se em analogias e comparaes formais, um tipo de identidade entre futurismo e comunismo e deduzir da que o futurismo a arte do proletariado. Devemos rejeitar tais pretenses. Isso no significa desprezo pelas obras dos futuristas. Elas constituem marcos necessrios formao de uma nova e grande literatura, da qual compem apenas um episdio significativo na sua evoluo. Basta, para convencer disso, abordar-se a questo, mais concretamente, no plano histrico. A crtica de que as suas obras so inacessveis s massas, os futuristas respondem que O Capital, de Marx, tambm o . Mas no tm razo. Ainda faltam s massas, evidentemente, cultura e formao esttica, s quais elas s lentamente se elevaro. Esta representa apenas uma das causas pelas quais o futurismo lhes permanece inacessvel. H outra: o futurismo, nos seus mtodos e nas suas formas, leva, claramente, as marcas deste mundo ou, melhor, deste pequeno mundo, em que nasceu e do qual pela lgica das coisas psicologicamente e no logicamente hoje ainda no saiu. to difcil separar o futurismo de sua hiptese intelectual, como a forma do contedo. Se isso acontecesse, o futurismo sofreria uma transformao qualitativa to profunda que no mais seria futurismo. E acontecer. Mas no amanh. Mesmo agora se pode assegurar, todavia, que muito no futurismo ter grande utilidade e poder servir para um renascimento da arte, com a condio de que aprenda a manter-se sobre as suas pernas, sem tentar impor-se por decreto governamental, como quis fazer no incio da Revoluo. As novas formas devem encontrar, por si mesmas e com independncia, acesso conscincia dos elementos avanados da classe operria, na medida em que estes, culturalmente, se desenvolvam. A arte no pode viver nem se desenvolver sem uma atmosfera de simpatia. por essa via no por outra que se desdobra um processo complexo de mtuas relaes. A elevao do nvel cultural da classe operria ajudar e influenciar esses inovadores que realmente tm alguma coisa a dizer. A afetao, inevitvel quando reinam os concilibulos, desaparecer, e os germes vivos produziro formas novas que permitam resolver os novos problemas artsticos. Essa evoluo supe, antes de tudo, a acumulao de bens culturais, o aumento do bem-estar e o desenvolvimento da tcnica. No existe outro caminho. No se pode pensar, seriamente, que a histria conservar as obras dos futuristas para servir, depois de muitos anos, s massas ento amadurecidas. Isso seria o mais puro passadismo. Quando chegar essa poca, que no vir imediatamente e na qual a educao esttica e cultural das massas trabalhadoras suprimir o abismo entre a inteligncia criadora e o povo, a arte apresentar um aspecto diferente do de hoje. O futurismo, nesse processo, aparecer como um elo indispensvel. Isso pouca coisa?