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«Os dez anos depois de me ter sido diagnosticada a doença foram os dez melhores anos da minha vida. Considero-me um homem de sorte.» Michael J. Fox Um Homem de Sorte Título original: Lucky Man © Michael J. Fox e Hyperion, 2002 1a edição portuguesa: Novembro de 2002 Tradução: Fernanda Barão e Isabel Fernandes Revisão de texto: Sandra Pereira Capa: José Pedro Magalhães Composição e paginação: Editorial Bizâncio Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. Depósito legal: 188 099/02 ISBN: 972-53-0181-1 Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal Reservados por Editorial Bizâncio, Lda. Largo Luís Chaves, 11-11A, 1600-487 Lisboa Tel.: 21 755 02 28 - 21 752 45 48/Fax: 21 752 00 72 E-mail: [email protected] Dedicado Em memória do meu pai e da Nana, com todo o meu amor a Tracy, Sam, Aquinnah,Schuyler, Esmé e, claro, à minha mãe Quando acumulamos bens para nós próprios e para a posteridade, quando fundamos uma família ou um país e, até, quando conquistamos afama, somos mortais; mas, quando lidamos com a verdade, somos imortais e não precisamos de recear a mudança ou o acaso. Henry David Thoreau índice CAPÍTULO UM O primeiro aviso CAPÍTULO DOIS O ás das fugas CAPÍTULO TRÊS Hollywood High CAPÍTULO QUATRO Perdido na Casa das Diversões CAPÍTULO CINCO A realidade é dura CAPÍTULO SEIS O ano dos prodígios (ou: O [verdadeiro] segredo do meu [verdadeiro] sucesso) CAPÍTULO SETE Um buraco na cabeça CAPÍTULO OITO Abrir um presente

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«Os dez anos depois de me ter sido diagnosticada a doençaforam os dez melhores anos da minha vida.Considero-me um homem de sorte.»

Michael J. FoxUm Homem de SorteTítulo original: Lucky Man© Michael J. Fox e Hyperion, 20021a edição portuguesa: Novembro de 2002Tradução: Fernanda Barão e Isabel FernandesRevisão de texto: Sandra PereiraCapa: José Pedro MagalhãesComposição e paginação: Editorial BizâncioImpressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda.Depósito legal: 188 099/02ISBN: 972-53-0181-1Todos os direitos para a publicação desta obra em PortugalReservados por Editorial Bizâncio, Lda.Largo Luís Chaves, 11-11A, 1600-487 LisboaTel.: 21 755 02 28 - 21 752 45 48/Fax: 21 752 00 72E-mail: [email protected]

DedicadoEm memória do meu pai e da Nana, com todo o meu amor a Tracy, Sam, Aquinnah,Schuyler, Esmé e, claro, à minha mãe

Quando acumulamos bens para nós próprios e para a posteridade, quando fundamos uma família ou um país e, até, quando conquistamos afama, somos mortais; mas, quando lidamos com a verdade, somos imortais e não precisamos de recear a mudança ou o acaso.Henry David Thoreau

índiceCAPÍTULO UMO primeiro avisoCAPÍTULO DOISO ás das fugasCAPÍTULO TRÊSHollywood HighCAPÍTULO QUATROPerdido na Casa das DiversõesCAPÍTULO CINCOA realidade é duraCAPÍTULO SEISO ano dos prodígios (ou: O [verdadeiro]segredo do meu [verdadeiro] sucesso)CAPÍTULO SETEUm buraco na cabeçaCAPÍTULO OITOAbrir um presenteAgradecimentosNota da APDPk à edição portuguesa

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CAPÍTULO UMO primeiro avisoGainesville, Florida -Novembro de 1990Acordei e a mensagem estava na minha mão esquerda. Fez-me tremer. Não era um fax, nem um telegrama, nem um memorando — não era o tipo de missiva que, em geral, nos traz notícias perturbantes. A verdade é que não havia nada na minha mão. A mensagem era o tremor.SENTIA-ME UM POUCO DESORIENTADO. Só estava havia cerca de uma semana na Florida, a rodar um filme, e todas as manhãs, ao acordar, a enorme cama de colunas lacada de rosa, rodeada pelos tons pastel da Suite Presidencial do University Center Hotel continuava a provocar-me um choque. Ah, sim: e tinha uma ressaca terrível. Isso era menos esquisito.Era uma manhã de terça-feira e, por isso, ainda que não conseguisse lembrar-me dos pormenores exactos da rebaldaria da noite anterior, não era muito arriscado apostar que a ressaca tinha a ver com o jogo de futebol de segunda-feira. Nos escassos primeiros segundos de consciência, não sabia que horas eram, mas tinha quase a certeza de que não dormira demais. Se precisassem de mim para as filmagens, a minha assistente, Brigette, já teria telefonado. Se eu tivesse que sair do hotel às 10 horas, por exemplo, ela teria telefonado às 9 e meia, depois novamente às 9 e 40. Por fim, às 9 e 50, teria subido no elevador, do andar dela até ao meu, e entrado no meu quarto, para me arrastar para o chuveiro, esgueirando-se em seguida para a cozinha para arranjar uma chávena de café. Como, até então, nada disso acontecera, sabia que dispunha de pelo menos alguns minutos.As luzes estavam apagadas, os estores descidos, os cortinados corridos mas, mesmo assim, havia no quarto uma luminosidade agressiva. De olhos bem fechados, coloquei a palma da mão esquerda sobre a cana do nariz, numa débil tentativa de bloquear o clarão. A asa de uma traça poisou sobre o lado esquerdo da minha cara - pelo menos, foi o que eu pensei. Abri os olhos, mantive a mão suspensa dois ou três centímetros acima do rosto, para enxotar o pequeno insecto. Foi então que reparei no dedo mindinho. Tremia e torcia-se, agitado por um movimento próprio. Não sabia exactamente quando aquilo tinha começado. Mas, depois de ter dado por isso, fiquei surpreendido ao descobrir que não era capaz de o fazer parar.Que esquisito - talvez tenha dormido em cima dele. Fechei a mão esquerda cinco ou seis vezes, numa sucessão rápida, a que se seguiram fortes tremores. Entrelaçando os dedos de cada mãocom os dedos opostos da outra, consegui levantá-los e passá-los por cima da cabeça, pregando-os à almofada.Tac. Tac. Tac. Como se fosse uma tortura chinesa da água, mas a seco, sentia umas pequenas batidas na parte de trás do crânio. Se a ideia era chamar a minha atenção, o objectivo fora atingido. Tirei a mão esquerda detrás da cabeça e ergui-a diante do rosto, imóvel, com os dedos afastados - como o fulano dos óculos de raio-X de lentes múltiplas do anúncio do velho livro de banda desenhada. Mas eu não precisava de ver a estrutura óssea que se encontrava por baixo; a informação que procurava estava ali mesmo, na carne: um polegar, mais três dedos firmes como aço e, na ponta, um mindinho descontrolado.Pensei que aquilo podia ser uma consequência da ressaca ou, mais exactamente, do álcool. Tinha bebido bastantes cervejas na minha vida, mas nunca acordara com tremores. Seria aquilo a que se chamava delirium tremens? Tinha quase a certeza de que tais episódios se manifestavam de uma forma mais espectacular - ou seja, quem é que tem delirium tremens num só dedo? Fosse o que fosse, não se tratava de estragos provocados pelo álcool.Então, resolvi fazer uma experiência. E descobri que, se segurasse o dedo com a mão direita, ele deixava de se mexer. Liberto, ficava quieto quatro ou cinco segundos e, depois, como um brinquedo de corda barato, voltava a ter vida própria. Hum. A curiosidade que começara por sentir transformara-se numa enorme preocupação. Os tremores duravam havia alguns minutos, não davam sinais de abrandar e o meu cérebro, ainda que embotado, procurava encontrar uma explicação. Teria batido com a cabeça? Ter-me-ia magoado? O filme dos

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acontecimentos da noite anterior era, no mínimo, nebuloso. Continha uma série de brancas, mas também havia algumas possibilidades.Woody Harrelson estava em Gainesville comigo, a trabalhar no filme, e estivera no bar na noite anterior - talvez nos tivéssemos envolvido numas das nossas memoráveis brigas de bêbedos. O Woody e eu éramos (e somos) bons amigos mas, não sei porquê, depois de consumirmos uma quantidade indeterminada de álcool, arranjávamos sempre uma desculpa para começarmos a atirarcadeiras ao chão e para nos entregarmos a complicadas cenas de pugilato. Nenhum de nós queria magoar o outro e a maioria dos socos falhava o alvo, mas o Woody era uns trinta centímetros mais alto que eu e uns vinte quilos mais pesado e, quando as coisas descambavam, era sempre eu quem apanhava mais pancada. Talvez tivesse apanhado um soco do Harrelson na cabeça.Mas não me lembrava de nenhuma cena dessas. Recordava-me, porém, de a certa altura, já para o fim da noite, o meu guar-da-costas, Dennis, ter tido que me encostar à ombreira da porta, enquanto metia a chave na fechadura da suite. No momento em que ele rodou o puxador, o meu peso tinha-se deslocado em direcção à porta e, quando ele a abriu, tombei para dentro do quarto, batendo com a cabeça na mesa da entrada. Mas não tinha nenhum galo, portanto não devia ser disso. A dor de cabeça era dos copos, não de uma pancada.DIVERGÊNCIAS INCONCILIÁVEISAo longo da manhã, os tremores aumentaram e, com eles, a minha procura de uma explicação - não apenas durante o resto do dia, mas durante os meses que se seguiram. A verdadeira resposta era esquiva e só viria a revelar-se passado um ano. Os tremores eram realmente a mensagem e o que a mensagem dizia era isto:Naquela manhã - 13 de Novembro de 1990 - o meu cérebro estava a anunciar que começara a divorciar-se da minha mente. As tentativas de contestação ou de reconciliação seriam vãs; mais tarde, viria a saber que o processo já estava concluído em oitenta por cento. Não tinha sido apresentada qualquer fundamentação e o requerimento não podia ser anulado. Além disso, o meu cérebro mostrava-se ávido, apoderando-se cada vez mais do meu corpo, depois de ter começado pelo dedo pequenino, o dedo exterior da minha mão esquerda.Dez anos mais tarde, sabendo o que hoje sei, este divórcio entre a mente e o corpo parece-me uma metáfora útil - embora,na altura, isto fosse um conceito que estava para além do meu entendimento. Não fazia sequer a mínima ideia da existência de problemas nessa relação - partia do princípio que as coisas iam bem entre a massa cinzenta e eu, o que era um pressuposto falso. Sem eu o saber, as coisas tinham começado a deteriorar-se muito antes da manhã da rebelião do dedo mindinho. Mas, ao declarar a sua disfunção de uma maneira tão impressionante, o meu cérebro monopolizara a atenção da minha mente.Seria um ano de interrogações e de falsas respostas, que me satisfaziam por algum tempo, alimentando a minha recusa e adiando uma investigação resoluta que acabaria por resultar na resposta. A resposta veio de um médico, que me informou que eu tinha uma doença progressiva, degenerativa e incurável do foro neurológico; uma doença com a qual podia ter vivido durante cerca de uma década, sem suspeitar que poderia estar doente. Esse médico também me disse que era provável eu poder continuar a representar «por mais uns bons dez anos» e que tinha a certeza quase absoluta de que assim seria. O que ele não me disse - aquilo que ninguém podia dizer-me - foi que esses dez anos de habituação à doença viriam a ser os dez melhores anos da minha vida - não apesar da doença, mas por causa dela.Em algumas entrevistas, referi-me à doença como uma dádiva - uma coisa que outras pessoas que sofrem do mesmo mal reprovaram. Estava, evidentemente, a falar da minha experiência pessoal mas, ainda assim, corrijo em parte: se se trata de uma dádiva, é uma dádiva que está sempre a tirar.Lidar com os ataques contínuos e com os danos acumulados não é fácil. Ninguém escolheria ter que os enfrentar. No entanto, esta crise inesperada impôs-me uma opção de vida fundamental: adoptar a atitude de quem está cercado - ou empreender uma viagem. Seja o que for - coragem? aceitação? sabedoria? - que acabou por me permitir optar pela segunda via (depois de, ao princípio, ter passado alguns anos horrorosos) foi indiscutivelmente uma dádiva - e, sem esta

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catástrofe neurofisiológica, nunca teria enveredado por ela nem me teria enriquecido tão profundamente. É por isso que me considero um homem de sorte.A PERVERSIDADE DO DESTINOReconhecendo a importância da ironia na minha história, há pouco tempo procurei a palavra no dicionário:Ironia s. figura de estilo em que se exprime o contrário daquilo que as palavras normalmente significam; perversidade notória do destino ou de circunstâncias.A definição desconcertou-me, em especial a segunda parte, em itálico. Em seguida, procurei a palavra perverso: «com tendência para praticar actos que não respeitam o bem nem o que está certo...» e percebi que deparara com outra grande ironia. A despeito das aparências, esta doença despertara em mim a tendência para praticar actos que respeitam o bem e o que está certo. Voltei à primeira definição - figura de estilo em que se exprime o contrário daquilo que as palavras normalmente significam; perversidade notória do destino ou de circunstâncias -e sorri. Que irónico!Ali estava mais uma «perversidade notória». Se, neste preciso momento, alguém entrasse neste quarto e anunciasse que estabelecera um pacto - com Deus, Alá, Buda, Cristo, Krishna, Bill Gates, com quem quer que fosse - ao abrigo do qual os dez anos após o diagnóstico da minha doença podiam, por artes de magia, ser trocados por mais dez anos como a pessoa que eu era antes, não hesitaria um momento e dir-lhe-ia que fosse dar uma volta.Já não sou a pessoa descrita nas escassas primeiras páginas deste capítulo e sinto-me grato por isso. Não quereria por nada voltar a essa vida - uma existência protegida, estreita, preenchida pelo medo e tornada viável através do isolamento e da auto-indulgência. Era uma vida vivida dentro de uma bolha de ar - e, sendo a mais frágil das estruturas, as bolhas de ar podem ser destruídas facilmente. Basta um dedo mindinho.O RAPAZ DA BOLHA DE ARNova Iorque - Julho de 1990Para ilustrar bem toda a dimensão da bolha de ar em que eu vivia e chegar aos acontecimentos que levaram àquela manhã memorável, em Gainesville, preciso de recuar alguns meses e, depois, mais alguns meses. A história começa não num quarto de hotel na Florida, mas no interior da minha caravana adaptada a quarto de vestir e estacionada no Lower East Side. Qualquer pessoa que tenha encontrado uma equipa de cinema em filmagens nas ruas de Manhattan, Los Angeles ou de outra cidade americana já viu uma dessas mansões motorizadas e perguntou a si mesmo quem seria a vedeta acoitada dentro dela. As pessoas sabem que nós estamos lá dentro, nós sabemos que as pessoas estão lá fora e - sacrificando as relações públicas em nome da verdade - gostamos que assim seja. A caravana é uma das muitas bolhas de ar no interior da bolha de ar.Ao princípio dessa tarde específica recebi, na caravana, a visita de um homem que não conhecia. Michael Caton-Jones tinha um ar abandalhado e note-se que isto é um cumprimento. A verdade é que acredito numa frase sábia que se destacava entre várias outras propostas mais escatológicas, rabiscadas na porta de uma casa de banho do Clube de Arte Teatral de Vancouver, por alturas de 1978: Antes uma desordem criativa que uma organização fútil. Quando entrou aos tropeções na minha caravana, Caton-Jones suava em bica. Tinha o rosto redondo e corado por barbear e vestia roupas largas, mal combinadas, como era moda no Verão de 1990, mas que ele usaria mesmo que não fosse.Terminados os apertos de mão e os rápidos «prazer em conhecê-lo», sentou-se desajeitadamente de través numa das duas cadeiras giratórias gastas pelos traseiros de centenas de actores. «Tem uma cerveja?» A frase, dita num forte ronronar escocês, era mais um resmungo do que um pedido. Gostei logo daquele tipo.Tirei uma Molson do minibar e ponderei se ia também beber uma, mas acabei por pegar numa Pepsi sem açúcar - que, ao contrário2021 do que as pessoas pensam, era a minha segunda bebida gasosa preferida. A agenda do dia incluía a rodagem de várias cenas e, por isso, o álcool estava fora de questão.

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Era um daqueles dias escaldantes de Julho que, em Nova Iorque, são especialmente opressivos. Quem estiver irritado, fica ainda pior com aquele calor. Lá de fora, da rua, sobrepondo-se ao barulho e ao zumbido do trânsito, chegava até nós o som de vozes iradas. Encontrávamo-nos na zona de Alphabet City, em Manhattan, a filmar Sócios à Força. Teoricamente, estávamos no intervalo para almoço; as filmagens tinham sido suspensas durante uma boa parte da manhã porque um acto de desobediência civil organizado à pressa nos bloqueava o acesso ao local. Lá fora, havia um protesto de sem-abrigo, muito chateados - com toda a razão - porque o município os expulsara da propriedade abandonada que ocupavam. «As escadas não são seguras», disseram-lhes. Depois, o município parecia ter deixado de se preocupar com isso e negociara com a Universal Pictures uma autorização para arrastar centenas de quilos de equipamento de iluminação e de filmagem por essas mesmas escadas acima.Enquanto produtores, representantes da comissão de cinema, activistas do movimento dos sem-abrigo e funcionários municipais se encontravam enlatados dentro da caravana da produção, numa tentativa de alcançar um acordo, o Mike e eu regalámo-nos com as lufadas esporádicas de ar condicionado produzidas pelo gerador portátil e falámos de filmes. A Warner Brothers queria que eu participasse num projecto chamado Dr. Sarilhos e, pretendendo obter luz verde para a produção, no Outono, mandara a Nova Iorque, para se encontrarem comigo, alguns potenciais realizadores. Todos eles se tinham esforçado por me vender a sua abordagem específica ao material. O Caton-Jones era o último candidato a fazer-me uma visita. Pouco sabia a seu respeito -residência habitual em Londres, nome britânico muito sonante, com hífen e tudo - e fiquei surpreendido e aliviado por ter diante de mim aquele fulano classe média de Glasgow, com trinta anos no máximo. O seu trabalho mais recente, A Bela Memphis, um drama da Segunda Guerra Mundial sobre a última missão dolendário bombardeiro do mesmo nome, era, em minha opinião, uma obra notavelmente segura para um realizador tão jovem. Aquilo que ele gostaria de fazer a seguir, disse-me, era uma comédia americana ao estilo de Capra.Sentados, um em frente do outro, diante de uma mesa de dobrar usada para tomar refeições, eu ia debicando uma salada cheia de óleo enquanto ele bebia a sua cerveja. Discutimos os melhores filmes de Frank Capra, um grande realizador populista, cujos clássicos - Peço a Palavra e Do Céu Caiu uma Estrela -tinham alegrado os corações do público, na época da Depressão. Incluíam-se entre os filmes favoritos do Michael, ao lado de Um João Ninguém, protagonizado por Gary Cooper e Barbara Stanwyck. Como um dos fins de tarde românticos do princípio da minha relação com a Tracy começara com um vídeo de Uma Noite Aconteceu, tive que pôr esta comédia sexy de 1939, com Clark Gable e Claudette Colbert, no topo da minha lista.A referência a Colbert levou-nos a Um Marido Rico, de 1942, dirigido não por Capra, mas por um realizador/guionista que, concordámos, tivera uma influência ainda maior sobre nós dois: Preston Sturges. O Mike disse que, em homenagem a Sturges, o mestre da comédia burlesca americana, chamara à sua empresa de produção «The Ale and Quail Club», por causa da carruagem de comboio cheia de milionários zaragateiros, folgazões e com caras de parvos de Um Marido Rico. Quanto a mim, confessei que o filme em que estava a trabalhar tinha uma pequena dívida para com a obra-prima de Sturges, A Quimera do Riso. Em Sócios à Força, eu desempenhava o papel de um jovem e mimado actor de cinema de Hollywood que se desloca incógnito a Nova Iorque e arrasta atrás de si um relutante detective da polícia daquela cidade, como parte do trabalho de investigação para o papel, que, na sua ideia, irá finalmente fazer com que ele seja levado a sério como actor dramático... A relação é fácil de ver. No filme de Sturges, Joel McCrea é um realizador que assume a vida de vagabundo, uma experiência que, em seu entender, o preparará para contar em linguagem cinematográfica uma história com um conteúdo social mais profundo do que ascomédias tolas mas populares que lhe tinham valido fama e dinheiro. A personagem McCrea acaba por descobrir que os filmes que costumava fazer tinham um grande significado para o seu público, ávido de válvulas de escape. E eu descobri que, afinal, Sócios à Força devia menos a A Quimera do Riso do que a O Caça Polícias, ou a vários outros filmes de acção com grandes orçamentos.

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Fomos interrompidos por alguém a bater à porta, olhámos e vimos Charlie Croughwell entrar, sem ser convidado, pedindo desculpa. Dois ou três centímetros mais baixo que eu, mais delgado, mas bastante mais musculado, o Charlie é ainda mais duro do que parece... e ele parece o George Raft.— Desculpa, Mike... mas parece que não vamos poder entrarnaquele edifício hoje. Por isso, eles estão a preparar-se para teatirar pela janela do bar dentro de uma meia hora.Tive que me rir; era típico do Charlie dizer coisas daquelas. Na verdade, eu não ia ser atirado por nenhuma janela - ele é que ia. Por mais complicações que a sua pequena estatura pudesse ter-lhe causado na vida - e que, para mim, não eram difíceis de identificar - fora uma sorte para mim uma pessoa com o seu aspecto físico e com as suas qualidades ter decidido ser duplo. Charlie salvara-me o cabedal em várias situações e, além disso, tinha conseguido o não negligenciável feito de fazer de mim um duro.— Eu tenho os amortecedores postos, agora, mas depoisdou-tos para quando tiveres que rebolar.Rebolar: eu vou ficar deitado mais ou menos no mesmo sítio onde o meu duplo faz uma aterragem horrível, de quebrar os ossos a qualquer um. Ao grito de «Acção», rolo para a frente da câmara, fazendo caretas de choque e agonia, expondo o rosto para as lentes, depois de Charlie ter deliberadamente ocultado o seu.Depois de eu o ter apresentado ao realizador que se encontrava comigo, o Charlie saiu para preparar a sua proeza. Michael e eu retomámos o fio da conversa e começámos a falar do projecto da Warner Brothers, relativamente ao qual o meu interesse era, digamos, reduzido.Baseado no livro What? Dead Again? - a história de um cirurgião que, tendo ido parar a uma pequena cidade do sul, acaba por gostar dela e abre um consultório ali - o argumento de Dr. Sarilhos estava em cima da minha secretária havia meses. Era engraçado mas mais ao estilo de Viver no Campo do que de Frank Capra. Demasiado burlesco, incluía uma série de cenas cómicas sem um fio condutor ou uma história que as ligasse entre si. As personagens secundárias, estereótipos das gentes temperamentais do sul - Gomers e Tias Beas1 - eram tão comuns como as reposições de filmes de outrora. O herói, o jovem médico, era simplesmente vaidoso e avarento; o argumento não apresentava nenhum motivo para alguém torcer por ele. Mas as minhas reservas quanto ao material não eram nada em comparação com as reservas que tinha quanto a participar noutro filme logo a seguir a Sócios à Força. Havia uma longa lista de excelentes razões para não aceitar fazê-lo e tentar respirar um pouco.MOVIMENTO PERPÉTUOPara começar, Sócios à Força tinha sido um suplício. Com mais cenas de acção e de acrobacias espectaculares do que qualquer outra coisa que eu já tivesse feito, este filme tinha-me dado cabo do físico, apesar dos grandes esforços de Charlie. James Woods, com quem contracenava, é um génio, um actor espantoso, mas aguentar a metade do ecrã que nos cabe, ao lado de alguém com tamanha personalidade, exige tanta energia, concentração e vigilância que eu ficara esgotado. Acrescente-se que um horário apertado, uma personagem hiperactiva e as repetições de várias cenas essenciais, por causa das contratações e despedimentos de pessoal, me tinham deixado mais estafado que o habitual. Precisava de descansar. De descansar por muito tempo.1 Personagens típicos de uma série popular americana dos anos sessenta, «The Andy Griffith Show». (N. da T.)Partindo do princípio de que o objectivo deles de começar as filmagens em Outubro era viável, se eu assinasse o contrato, Dr. Sarilhos seria o meu quinto filme em menos de três anos, durante os quais também tinha gravado os setenta e dois episódios de Quem Sai aos Seus, incluindo o emocionalmente esgotante último período e o final. Uma parte deste trabalho desenrolara-se no local - a expressão que, na linguagem do cinema, quer dizer fora da cidade (neste caso, sendo a «cidade» Nova Iorque ou Los Angeles). Era mais que certo que um filme passado no Sul seria filmado, pelo menos em parte, no local.Filmar no local não é invulgar, nem mesmo desinteressante. Muitas pessoas do meio acham que é uma oportunidade de viajar à borla; uma trégua na estrutura das suas rotinas estabelecidas, nas exigências das suas famílias, das suas

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comunidades, dos seus horários e das suas responsabilidades. Outros consideram tratar-se de uma guerra - não no sentido de uma batalha ou da existência de perigo, mas na medida em que são incluídos num grupo de pessoas, muitas das quais não conhecem, tendo por meta uma única missão: estar ali, fazer as coisas a tempo, sem exceder o orçamento, e desaparecer. E, claro, fazer um excelente trabalho. É sabido que, enquanto estamos «no acampamento das filmagens», a pressão, o isolamento e a estreiteza do nosso objectivo de vida incitam às longas e lendárias farras alcoólicas. O tempo que não é gasto a filmar é passado em bares ou em coma.Numa longa-metragem, a vida pode tornar-se de doidos. Os Acidentes Acontecem, o filme épico sobre a Guerra do Vietname, que rodei com Sean Penn e Brian De Palma, em 1988, em Phuket, na Tailândia, foi pródigo em casos de febre «do local», alguns deles dos mais espantosos que alguma vez presenciei. O sufocante calor tropical, o choque de culturas e o ritmo «despacha-te e espera», característico de qualquer equipa de filmagens, formavam uma mistura explosiva. Neste contexto, esperar significava esperar que Brian desse os últimos retoques a um dos seus planos microcoreografados, filmados com a câmara fixa, que constituem a sua imagem de marca. Desejosos de filmar as nossas cenas e de acabar o dia de trabalho, ficávamos impacientes ecomeçávamos a emborcar cerveja local. Dizia-se que aquela cerveja tinha formaldeído, mas nós não sabíamos ler os rótulos e os habitantes locais não eram muito conversadores. Não é bem verdade: estavam sempre a falar, mas nós não percebíamos o que eles diziam. Formaldeído, terebintina, fosse lá o que fosse... emborcávamos aquilo e, depois - a grande pancada - íamos até uma quinta onde criavam cobras e instigávamo-nos uns aos outros a beber shots daquilo que os tailandeses dizem ser remédio para todos os males: partes iguais de whisky tailandês e sangue de cobra.Alguns membros da equipa de Os Acidentes Acontecem, muitos dos quais eram australianos, tinham contratado prostitutas locais como companheiras para todo o período de permanência no país. Um fulano contratou os serviços domésticos de duas mulheres; era um acordo estranho, mas civilizado, e as duas acompanhavam-no ao mercado, a fazer compras. Quando lhe perguntaram, «Porquê duas?», ele respondeu sem hesitar, como se fosse óbvio: «Para fazerem companhia uma à outra, de manhã, enquanto leio o jornal.» Era evidente que ele queria ter uma rotina semelhante à da sua vida de todos os dias mas foi um pouco mais longe, para satisfazer as suas fantasias sexuais. As filmagens exteriores podem ser um desvario.LAR, DOCE LARA minha fantasia - pelo menos começava a parecer uma fantasia - não era escapar à rotina familiar mas criar essa rotina. Passei uma boa parte do breve noivado com a Tracy em filmagens na Tailândia.A Tracy fez uma viagem-maratona intercontinental para uma visita prolongada. Nunca disse que tinha que pensar melhor mas, sendo uma mulher inteligente e observadora, duvido que não se tenha sentido horrorizada perante o noivo destroçado e macilento que foi encontrar na selva - o seu Caminho das Trevas pessoal com o futuro marido no papel de Coronel Kurtz. Eu tinha apanhado uma horrível doença estomacal exótica; ela tratou de mim,enquanto esta durou, e a recompensa foi ter que se haver com a mesma doença durante o resto da sua permanência no Sudeste Asiático.Muito mais assustador - melhor dito, aterrador - foi o que encontrou quando regressou à «civilização»: tinha à sua espera uma série de cartas muito explícitas e cáusticas, seladas e enviadas, uma a uma, por alguém que sofria de perturbações, ameaçando a Tracy de morte se não desistisse do casamento. Lembro-me do telefonema. Deviam ser umas 3 ou 4 da manhã, hora de Phuket, quando atendi o telefone e ouvi a Tracy a chorar, contando pormenores surrealistas. Senti-me impotente e furioso por estar a milhares de quilómetros de distância daquela mulher que, pelo simples facto de se ter apaixonado por mim, se colocara aparentemente em risco. Decidimos contratar Gavin De Becker, um especialista muito conhecido em avaliação de ameaças e em segurança pessoal, para investigar a origem das cartas e arranjar homens que garantissem a segurança da Tracy durante a minha ausência. Alguns meses mais tarde, através de Gavin e da polícia

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de Los Angeles, descobrimos que a pessoa responsável por perto de cinco mil ameaças de morte era uma mulher jovem, solitária e perturbada. Depois de ter passado meses na prisão, a aguardar julgamento (no qual a Tracy e eu tivemos que testemunhar), a jovem foi considerada culpada da prática de «ameaças de carácter terrorista» e enviada para tratamento psiquiátrico.16 de Julho de 1988: pouco mais de uma semana após o meu regresso do Sudeste Asiático, casámos, numa cerimónia discreta, numa pequena estalagem rural em Vermont... pelo menos a ideia era essa. Em vários aspectos, foi a experiência que tínhamos desejado: uma festa íntima. Diante dos amigos e da família, declarámos o compromisso de passar juntos as nossas vidas. Mas também era outra coisa: uma espécie de desbravar do terreno. A bolha de ar que me protegera ao longo dos sete últimos anos de vida pública tinha agora que ser ampliada e reestruturada, reconvertida em duplex.Só convidámos umas setenta pessoas, amigos chegados e família. Por precaução, contratámos a empresa do Gavin parafazer a segurança, o que viria a revelar-se uma medida acertada: dúzias de repórteres dos tablóides e depaparazzi tentaram intro-meter-se na festa, utilizando helicópteros e chegando ao ponto de se disfarçarem de lamas para se confundirem com o gado que andava pelos terrenos da estalagem. Os habitantes locais e o pessoal de serviço foram subornados e espremidos em busca de informação e montaram-nos um cerco surrealista. As coisas transformaram-se numa história de espiões contra espiões - e, graças ao Gavin, ganharam os nossos espiões. Os paparazzi não conseguiram tirar uma única fotografia da noiva e do noivo e o casamento correu exactamente como queríamos, excepto no que se refere ao ruído dos helicópteros por cima das nossas cabeças.A lua-de-mel também teve a sua conta de bisbilhoteiros. Andámos a saltar de ilha em ilha pelas Caraíbas mas, a cada passo, dávamos connosco a ser seguidos. Para onde quer que fôssemos, olhávamos pela janela e víamos barcos ancorados na margem, cheios de fotógrafos equipados com lentes de 500 mm apontadas para a nossa suite. Finalmente, conseguimos chegar a Martha's Vineyard, no Massachusetts, onde a Tracy costumava passar as férias com a família, desde a infância. Resignados ao facto de termos que lidar com estes intrusos, concluímos que era melhor enfrentá-los no nosso terreno.O rodopio que era a minha vida, nessa época, fez com que a Tracy e eu não tivéssemos oportunidade de digerir as estranhas voltas e reviravoltas do caminho que nos levara ao altar nem a longa série de episódios burlescos que foi a nossa lua-de-mel. Quem Sai aos Seus recomeçou em Agosto, Regresso ao Futuro II no Outono do mesmo ano (obrigando-me a voltar a trabalhar de dia e de noite), vindo a desembocar na Parte III, que só seria concluída em Janeiro de 1990.A minha noiva, o grande e único amor da minha vida, perguntava a si mesma em que diabo é que se tinha metido. Tendo engravidado um mês depois do casamento, a Tracy descobriu que tinha um marido que, quando não estava fora de casa a trabalhar, pouco mais era que um parceiro que, meio a dormir, ia com ela às aulas de preparação para o parto. Porém, conseguiarranjar algum tempo livre para a altura do nascimento do Sam. Uma cláusula inserida no meu contrato - parto mais três semanas - deve ter sido uma estreia em matéria de contratos de cinema. Mas, mal acabaram as três semanas, toca a voltar ao trabalho, deixando a Tracy a braços com o bebé e, sem dúvida, com alguns ressentimentos.Para a Tracy, havia outra questão - uma questão que ela raramente mencionou mas à qual eu gostaria de ter sido sensível com maior frequência: no espaço de um ano, uma actriz de vinte e poucos anos, bonita, extremamente talentosa, com uma carreira em ascensão, transformara-se numa mãe solteira virtual. Andar a caminho do estúdio, com o Sam ao colo, era injusto e esgotante e, por outro lado, sublinhava a ideia de que eu continuava livre para trabalhar - de que a minha identidade criativa permanecia intacta, enquanto a de Tracy se encontrava no limbo. Fizeram-lhe ofertas e deram-lhe oportunidades; ela teve de rejeitar a maior parte. Na verdade, eu estava em Nova Iorque, a filmar Sócios à Força, e a Tracy em San Francisco, a trabalhar num filme para a televisão. O Sam, então com catorze meses, estava com ela e eu sentia terrivelmente a falta dos dois. Tínhamos uma casa em Manhattan, portanto, dessa vez, não era eu quem estava em

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filmagens fora da cidade. Sentia-me feliz por ela ter voltado a trabalhar mas lá estávamos nós novamente separados por milhares de quilómetros de distância.O nosso casamento e, mais importante, o nosso amor e a nossa amizade sobreviviam às pressões, mas a situação não era exactamente a ideal. Levávamos uma vida dispersa, entre duas costas, entremeada por estadias em Vermont, onde tínhamos comprado uma quinta, na esperança ingénua de, um dia, podermos vir a ter aí uma vida mais tranquila. Ansiávamos desesperadamente por assentar em qualquer lado, em breve. Mas os dois tínhamos começado a interrogar-nos: seria sequer possível termos uma vida normal?Então? Só três meses de descanso entre Sócios à Força e Dr. Sarilhos? Nem pensar. Bem, disse para comigo, pelo menos Nova Iorque é uma cidade divertida para um jovem realizadorque ali se encontre a expensas de um estúdio, porque, de outro modo, Caton-Jones estaria a perder o seu tempo. De uma coisa tinha eu a certeza: não ia fazer Dr. Sarilhos...Ou iria?Absolutamente encantador, o género de «artista enquanto farrapo humano» para o qual eu tinha tendência a sentir-me atraído, Michael Caton-Jones ia na sua terceira cerveja quando percebi que o filho da mãe estava mesmo a vender-me o projecto. A sua intensidade dava uma faceta completamente nova à história. As minhas preocupações quanto a Viver no Campo desapareceram; meia hora numa caravana, na Avenida B, e Michael convencera-me que aquele filme podia ser uma coisa importante para mim - que tinha um significado pessoal. Jovem médico, especializado em cirurgia plástica, parte país fora, no seu Porsche Roadster, abandonando a zona de combate E.R1. de Washington, D.C., onde residia. Dirige-se para Los Angeles, para um futuro de empregos idiotas, negociatas e dinheiro a rodos. O carro avaria-se em Grady, Carolina do Sul, e os habitantes locais, desesperadamente necessitados de um médico, conspiram para o reter lá. Uma boa vida, a rapariga dos seus sonhos e o facto de se ter apercebido de que talvez não valha a pena correr atrás de quimeras convencem-no a ficar.Com os nós dos dedos brancos de tanto me agarrar a uma maldita quimera idêntica, aquilo soava-me bem.RUMO AO SULPlano de uma explosão de vidro de açúcar2 - seguida de pulverização de fragmentos brilhantes, de cujo centro emerge Charlie, descrevendo a uma velocidade selvagem o meio arco exterior do seu curto mas turbulento voo pela janela. Visto da rua, parecia1 Referência a « ER Combat zone», um jogo de computador. (N. da T.)2 O vidro feito de açúcar é utilizado nos filmes para produzir o efeito doverdadeiro vidro, mas sem causar ferimentos ou estragos. (N. da T.)que ele estava a ser impulsionado pela força da janela que se estilhaçava e não atirado dela abaixo. O Charlie aterrou com toda a força no pavimento, executando uma volta perfeita sobre o ombro, com a cabeça encolhida, mais para evitar as lentes do que para não se magoar. Pára de repente, fica caído de rosto para baixo, sem se mexer. Mal o realizador grita «corta», o Charlie levanta a cabeça e, com um trejeito de modéstia, indica que sobreviveu para enfrentar um novo dia.Depois de um ligeiro ajustamento do ângulo da câmara, fui para o meu lugar, esperei que me espalhassem por cima estilhaços de vidro de açúcar partido e, quando ouvi «Acção», rolei sobre mim mesmo. «Plano médio... mais um, por favor.» Enquanto me preparava para o take dois, olhei para cima e dei com o Michael Caton-Jones e o Charlie Croughwell debatendo animadamente a melhor maneira de escavacar o Porsche do Dr. Sarilhos. Ambos sabiam que eu ia fazer o filme e eu também.Que acontecera, pois, à minha decisão de gozar um período de descanso prolongado? A conversa de que a melhor maneira de passar o meu tempo era junto da minha família? De que servira ter percebido que passar tanto tempo em filmagens exteriores estava a esgotar-me? Tudo isto desaparecera, dissolvido num banho ácido de medo e insegurança profissional.Os actores não se tornam actores por serem pessoas cheias de autoconfiança. Ross Jones, o meu professor assistente de artes cénicas costumava, a determinada

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altura das produções escolares, dirigir-se ao elenco, dizendo: «Lembrem-se de que estamos todos aqui porque não estamos todos bem cá.» Pensando bem, a grande ambição de um actor é passar a maior parte possível do tempo a fingir ser outra pessoa. Para aqueles que, entre nós, são suficientemente afortunados (ou instáveis) para se tornarem actores profissionais, a incerteza quanto a quem somos tende na verdade a aumentar. Para muitos actores, esta dúvida pessoal é um parasita, que os vai consumindo e que, de um modo incongruente, cresce na proporção directa do nível de êxito. Por maiores que sejam a aceitação, a adulação e a riqueza acumulada, lá no fundo, vai roendo o bichinho da ideia de que somos umamentira, uma fraude. Mesmo que consigamos dar a volta e seguir em frente no trabalho que estamos a fazer no momento, o melhor é prepararmo-nos para a possibilidade de nunca mais arranjarmos nenhum outro.Apesar de todas as provas em contrário, era exactamente isto o que eu sentia, nos anos 90, no que se referia à minha carreira. Ao longo dos anos 80, trabalhara sem parar e as compensações tinham sido enormes. Atingir aquele grau de aceitação, chegar, por assim dizer, ao topo da montanha fora difícil, mas faltava ainda subir tantos degraus em direcção ao alto que, em comparação, o que estava feito parecia mais ter sido uma festa do que trabalho. Porém, continuar ali, manter aquela pedalada, era uma provação.Uma boa parte do meu sucesso resultara de duas «boleias» que se me tinham deparado: o fenómeno paralelo da série Quem Sai aos Seus e da trilogia Regresso ao Futuro. Proporcionaram-me a segurança financeira e a garantia de poder repetir os papéis de Alex Keaton e Marty McFly mais ou menos indefinidamente.Isto deixava-me livre para fazer experiências e aceitar papéis mais arriscados, por menos dinheiro. Por isso, quando A Luz do Dia, As Mil Luzes de Nova Iorque ou Os Acidentes Acontecem revelaram não ser sucessos de bilheteira, não foi o fim do mundo. No Outono, ia voltar para as minhas séries de televisão e, noutra qualquer altura, ia ser capaz de voltar a entrar no DeLorean. No Verão de 1990, contudo, tudo isso mudara. As séries televisivas estavam mortas e enterradas; as partes seguintes de Regresso ao Futuro estavam a ser exibidas e preparava-se a edição em vídeo. A minha petulância metamorfoseou-se em cautela. Não me sentia bem quando acabava um trabalho sem ter já na mão um contrato para outro. Sem a rede de segurança de Quem Sai aos Seus e Regresso ao Futuro, as paradas eram mais altas que nunca.O facto de um novo projecto implicar passar algum tempo afastado da minha família tinha que ser ponderado, porque, agora, eu tinha uma família. A velha frase «o padrão de vida a que eles se habituaram» assumiu um significado pessoal. Não era altura de viver à sombra dos louros nem de ficar de rabo sentado. Era preciso malhar o ferro enquanto estava quente.Quem sabe? Talvez eu sentisse que aquilo não ia durar sempre, que, de repente, o raio me ia cair em cima. Será possível eu ter tido a intuição de que o tempo da minha carreira estava a esgotar-se?É pouco provável. Tanto quanto me lembro, esta mentalidade de «baixa a cabeça e segue em frente» sempre tinha sido uma das principais componentes da minha personalidade, o meu modus operandi. Já em miúdo, faltava-me a confiança necessária para estar quieto. Talvez eu fosse assim por ser demasiado baixo ou por os meus sonhos serem demasiado altos, mas sempre me fiei na minha capacidade de evitar os obstáculos, de escapar a potenciais valentões e de prever o aparecimento de contrariedades. Uma das grandes ironias da minha vida é eu só ter encontrado a paz, a segurança e a força espiritual para ficar quieto num sítio, quando se tornou realmente impossível impedir que o meu corpo se mexesse. Não fui capaz de ficar quieto até me ser - literalmente - impossível manter-me quieto.A REVOLTA DO DEDO MINDINHOGainesville, Florida - 13 de Novembro de 1990 Já tinham passado quinze minutos daquela primeira manhã de luta pelo controlo do dedo mindinho e o ligeiro tremor simplesmente não parava. Talvez se o ignorasse durante um bocadinho... Fui à casa de banho, abri a porta espelhada do armário dos remédios, encontrei um frasco de Tylenol e engoli dois, sem água. De pé, diante do espelho do lavatório, que era maior, levantei a mão esquerda, como se estudar o seu reflexo

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pudesse ajudar-me a ser objectivo. Não tive essa sorte. Passei a ver dois mindinhos que se contorciam. Mas esperem lá: a porta do armário dos remédios estava aberta, reflectindo a imagem ad infinitum; passei a ver não dois, mas um número impossível de contar. Era uma linha a perder de vista de mindinhos dançarinos - os Mindinhos Loucos. Os comprimidos não estavam a fazer efeito. Arrastei-me até à cozinha, tirei um ginger ale do frigorífico e comecei a andar àsvoltas pela sala. Todo despenteado, olhos semicerrados, parei no meio da pseudoluxuosa Suite Presidencial, despido até ao pescoço, e fiz tudo menos falar com a minha mão como o Senor Wences1. Que se lixe o Senor Wences.Continuei a andar de uma divisão para outra, como se a solução pudesse estar ao virar de uma qualquer esquina, enquanto ia ensaiando diversas estratégias para impor o meu domínio ao dedo rebelde. Apertei-o e estiquei-o. Prendi-o à mesa-de-cabeceira, pondo-lhe uma Bíblia em cima. Dobrei-o sobre si mesmo e estiquei-o com força contra o peito. O resultado era sempre o mesmo. Enquanto o segurava ele submetia-se mas, quatro ou cinco segundos depois de eu o soltar, começava tudo outra vez. Frustrado ao ponto de me apetecer cortá-lo, estava convencido de que isso significaria apenas ver o patifório andar aos saltos em cima da carpete, como um extra de um filme de Roger Corman.«Pelo amor de Deus, Mike», tentava dizer a mim próprio. «É só a porcaria do teu dedo.» Mas a questão era precisamente essa: não era meu, era de outra pessoa qualquer. O meu mindinho estava possuído.Mas era preciso pôr as coisas em perspectiva e, como era óbvio que eu perdera a minha, chegara a altura de confiar na de outra pessoa. Telefonei à Brigette, a minha assistente. A Brig era espantosa a tomar conta do meu escritório mas, em exteriores, em território alheio à indústria, era uma dádiva do céu. Na sua maneira de ver, a tarefa dela era tornar os meus afazeres tão fáceis quanto possível. Para tal, mantinha em dia a minha agenda, adivinhava as minhas necessidades, controlava as coisas com a produtora e, de um modo geral, geria as interacções com todo o mundo exterior. Resumindo, a missão dela era proteger a bolha de ar.Fazendo o meu melhor para não mostrar pânico, referi, como que por acaso, que talvez estivesse a ter uma pequena reacção fisiológica a qualquer coisa. E descrevi o que se passava com o'Famoso ventríloquo no «Ed Sullivan Show». Tinha uma mão-marioneta chamada Johnny. (N. da T.)meu dedo. A Brigette pregou-me um susto dos diabos ao dizer que achava que aquilo era um problema neurológico e ao perguntar-me se eu não queria falar com o irmão dela que, por acaso, era neurocirurgião em Boston.— Não, está tudo bem. Penso que não é um problema assim tão grave — disse eu, tentando convencê-la a ela e a mim próprio. — Vou só telefonar à Tracy.Antes de desligar, a Brig recordou-me que eu estava «em espera», o que queria dizer que o meu horário ainda não fora fixado - o mais provável era precisarem de mim para as filmagens a uma hora qualquer da tarde.A Brigette podia ter um médico na família, mas a Tracy era a segunda melhor opção: era hipocondríaca. Não quero com isto dizer que ela seja uma neurótica obsessivo-compulsiva, uma profetiza da depressão, que fica na cama todo o dia com os cobertores por cima da cabeça e que passa o tempo a medir a tensão arterial. A Tracy não é maluca, só um pouco sensível às mais subtis alterações da própria saúde, para já não falar da saúde de todos os que a rodeiam. Desde que a conheço, compra sempre a última edição da Columbia School of Medicine Encyclopedia of Health e tem um jeito espantoso para relacionar sintomas com doenças mortais. Ficara em Manhattan com o Sam, enquanto eu estive na Florida. Nessa manhã, telefonei-lhe e apanhei-a no ginásio. Estava na hora de começar os seus exercícios físicos, mas incitou-me a não me preocupar com o tempo e a explicar com todos os pormenores o que se passava comigo. Num tom que nada tinha de condescendente, assegurou-me que aquilo que eu descrevera não se enquadrava no perfil de nenhuma doença ou enfermidade que ela conhecesse. Fiquei aliviado ao ouvir isto e agarrei-me ao facto de ela me ter garantido que o mais certo era aquilo desaparecer de vez até ao fim do dia. Alguma vez teria eu tido tamanha paciência e empatia para com ela? Quantas vezes não escarnecera dos seus

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receios: «Isso é uma sarda, Tracy, não é um melanoma.» «Não, não estás a ficar surda. A isso chama-se ter água nos ouvidos.» Senti-me culpado, mas melhor. Ela tinha razão. Aquilo não era nada. Ia passar. Eu estava bem. Trocámosuns «amo-te e tenho saudades tuas» mas, quando estava quase a desligar, ela acrescentou, como se tivesse acabado de se lembrar disso: «Sabes que o irmão da Brigette é neurocirurgião? Porque é que não lhe telefonas, só para ficares descansado?»Merda.Dez minutos depois de eu ter falado com a Tracy, a Brigette estava no meu quarto e tinha o irmão em linha. «Só um segundo, Phillip. Ele está aqui.» A Brigette passou-me o telefone e lá tive eu que contar outra vez a história do dedo mindinho. Muito sério, muito profissional, o irmão de Brigette, o Dr. Phillip Roux-Lough, apresentou-me uma série de explicações possíveis, cada uma delas mais horrível que a anterior. Fiquei espantado, ao saber que as pessoas da minha idade tinham mesmo acidentes vasculares cerebrais e aneurismas - santo Deus. As palavras tumor cerebral também foram pronunciadas, mas essa era uma área que eu não queria explorar em maior profundidade. Ele perguntou-me se tivera recentemente algum trauma físico. Com tantos por onde escolher, acabei por optar por alguns que eram, por assim dizer, dos meus «maiores sucessos» e um desses incidentes, em especial, deixou-o intrigado.Enquanto estava a filmar Regresso ao Futuro - Parte III, no Inverno de 1989, eu tinha-me enforcado, durante a rodagem mal atamancada de uma cena. Encurralado em 1885, Marty McFly encontra-se à mercê de uma multidão que o quer linchar. No último instante antes de o enforcarem, Marty consegue meter a mão esquerda entre a corda e o pescoço. A concepção da cena não incluía a minha imagem de corpo inteiro e, por isso, nos primeiros takes, fiquei de pé em cima de um caixote de madeira. Apesar de, tecnicamente, ser uma cena para um duplo, também era um primeiro plano meu e, por isso, o Charlie estava fora de cena. Mas, por mais que deslocasse o meu peso para um lado e para o outro, o efeito de oscilação não era realista, pelo que me ofereci para tentar sem usar o caixote. A coisa funcionou para os dois primeiros takes mas, no terceiro, calculei mal a posição da mão. Com a corda à volta do pescoço, suspenso da forca, a minha carótida ficou bloqueada, o que me fez desmaiar porbreves instantes. Só ao cabo de alguns segundos de eu estar a oscilar, inconsciente, na ponta da corda, Bob Zemeckis se apercebeu de que, por mais que me apreciasse, nem eu podia ser tão bom actor.O Dr. Lough suspeitou da existência de uma relação entre os acontecimentos daquela manhã, em Gainesville, e o incidente inesperado durante a rodagem de um filme, cerca de dez meses antes. E sugeriu que consultasse um neurologista local.Acontece que a Universidade da Florida, em Gainesville, dispõe de um serviço de neurologia mundialmente conhecido. Nessa tarde, os produtores de Dr. Sarilhos conseguiram que eu fosse visto pelo director clínico. Fui recebido à porta pelo neurologista, alguns dos seus assistentes e, talvez, um ou dois dos melhores alunos, como se eu fosse uma espécie de dignitário em visita oficial. Não saberiam que se tratava da visita de um doente e não de uma sessão de boas-vindas a uma celebridade?A resposta à pergunta foi dada quando entrei na sala de observações, me entregaram uma bata e me mandaram despir a roupa toda. Nos cerca de vinte minutos que se seguiram, fui submetido ao que parecia ser uma infinidade de testes de alcoolémia na estrada: caminhar em linha recta pondo um pé à frente do outro, estender os braços e levar o indicador direito à ponta do nariz, fechar os olhos e andar para a frente, para trás e para o lado e pular sobre um pé e sobre o outro. Os exercícios mais relevantes para a minha queixa específica envolveram uma exploração intensiva dos prodígios do polegar oponível. O médico pediu-me que tocasse a ponta de cada dedo com a ponta do polegar, um a seguir ao outro, uma vez e outra, cada uma delas mais depressa que a anterior. Rapidamente me lembrei por que motivo, na família dos primatas, são os humanos a usar calças. Conseguia fazer tudo o que me pediam e isso era tranquilizador. Mais tranquilizadora ainda foi a atitude dos médicos, depois de me observarem. Não pareciam nada preocupados. Depois de me ter vestido e de estar sentado no

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gabinete do médico, este informou-me que não só eu estava óptimo, como tinha pena de não ter gravado em vídeo o meu exame, para mostrar aos alunos como exemplode um espécime neurológico absolutamente normal e saudável. Na sua opinião, a origem dos espasmos no dedo devia ser uma pequena lesão no cúbito. «Quer dizer, aquele ossinho comprido?» Acenando que sim, o doutor acrescentou, a brincar, que não era de admirar, dado o meu modo de vida. Rimo-nos os dois.Terão aqueles médicos feito asneira? Honestamente, penso que não. As doenças neurológicas como a minha são tão raras em pessoas da minha idade que os sintomas teriam que ser gritantes para qualquer médico responsável poder pronunciar um diagnóstico de tamanha gravidade. Em retrospectiva, contudo, prefiro dizer que outra coisa não seria de esperar da Universidade da Florida, terra da equipa de futebol dos Gators, senão que o médico da equipa dissesse ao avançado que podia voltar ao relvado.E eu voltei ao «relvado». Acabei de filmar Dr. Sarilhos em Fevereiro de 1991. Nos dois últimos meses, a produção transferira-se da Florida para Los Angeles. Mais uma vez, sempre irrequieto, sempre à procura da oportunidade seguinte, lancei-me de cabeça na procura de outro trabalho. Bob Zemeckis estava a produzir Contos de Arrepiar, uma série de antologia para a HBO, baseada numa horripilante banda desenhada do mesmo nome, e propôs-me realizar um episódio. Ansioso por exercitar as minhas capacidades de realizador, como complemento da minha carreira de actor, atirei-me ao projecto com imenso entusiasmo - mas pouca energia.As tremuras do mindinho persistiam, mas agora, de vez em quando, o anelar e o dedo médio juntavam-se à festa. Sentia falta de força na mão esquerda, o ombro rígido e uma dor nos músculos do lado esquerdo do peito. Estava, no entanto, convencido de que o meu problema era fisiológico e não neurológico, provavelmente relacionado com o enforcamento de Regresso ao Futuro. Deduzi que se tratava de qualquer coisa que seria capaz de tratar com terapia física e que podia esperar até eu acabar o trabalho. Na verdade, decidi que podia esperar até ao fim das férias de Verão. Talvez sobretudo por vergonha de me sentir tão inusitadamente assustado refugiei-me na minha predisposição hereditária anglo-irlandesa para o estoicismo.Concluídas as minhas tarefas de realizador nos Contos, decidi só aceitar propostas para outro filme depois de um longo intervalo passado em família. Devia isso à Tracy e ao Sam. Que diabo! Devia isso a mim próprio.Estava em Nova Iorque quando da estreia de Sócios à Força, em Março de 1991. Tive algumas das melhores críticas da minha carreira mas, na generalidade, o filme foi acolhido com desdém pela crítica e com indiferença pelo público; falando claramente, era uma bomba muito cara e que causava muitos estragos. A Universal fizera algumas abordagens acerca de um contrato de longo prazo, para vários filmes; agora, estava a reconsiderar, embora tenham garantido ao meu agente que não era esse o caso. Uns e outros sabíamos o que se passava. Antes de apostarem mais dinheiro na minha carreira, os executivos da Universal iam ficar à espera, para ver se a Warner Brothers tinha o mesmo problema com Dr. Sarilhos. Tudo dependia de Dr. Sarilhos. Ou, mais exactamente, do fim-de-semana da estreia de Dr. Sarilhos.A capacidade negocial de um actor é determinada pelo seu poder de conquistar audiências nos três primeiros e cruciais dias que se seguem à estreia de um filme. Afinal, a aptidão para levar o público a ver um filme é a razão pela qual os estúdios pagam tanto dinheiro a uma estrela de renome. As pressões para garantir que o filme continue a encher salas (tem «pernas», no calão da indústria) transferem-se, depois, para as secções de marketing e publicidade, o que já não tem nada a ver com o actor. Eu só precisava de três dias de corrida às bilheteiras para já não ter nada a ver com o fracasso de Sócios à Força.ANTES DA QUEDAMartha 's Vineyard - Agosto de 1991A maior parte das pessoas que acham que têm sorte são também supersticiosas e eu tinha estabelecido um ritual à volta da estreia de qualquer filme em que participasse. Estava em Londres na altura das estreias de Regresso ao Futuro e de Lobijovem, que,

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no primeiro fim-de-semana, tiveram grandes enchentes. Desde então, esforcei-me por estar fora do país ou, pelo menos, longe de qualquer grande cidade, quando os meus filmes chegavam aos cinemas. Sócios à Força foi a excepção - e veja-se o resultado.Não ia cometer o mesmo erro com Dr. Sarilhos. Obviamente, não havia nenhum motivo racional para este ritual, mas eu procurava tudo o que pudesse dar-me uma ligeira vantagem. E havia motivos para preocupações. Os estudos de audiência -sondagens à saída dos cinemas para determinar se os espectadores iriam ver um novo filme - indicavam que eram poucos os que tencionavam ir ver Dr. Sarilhos. Todos os novos filmes tinham que atingir ou ultrapassar, no primeiro fim-de-semana, uma determinada meta de venda global de bilhetes, um número baseado em diversos factores, entre os quais o número de salas onde cada filme era exibido. Em 1991, seis milhões de dólares era o número consensual, abaixo do qual os problemas começavam. O facto de a estreia ser em Agosto não ajudava, visto o fim do Verão ser a época de lançamento das produções menos prometedoras. Era mesmo a altura indicada para me pôr a milhas da cidade.A Tracy, o Sam e eu tencionávamos passar o mês de Agosto em casa dos pais dela em Martha's Vineyard. Um dia antes da estreia, na sexta-feira, parti para lá. A minha família iria ter comigo no sábado. A Tracy e eu concordámos que seria melhor eu suar as estopinhas da noite da estreia sozinho.Por coincidência, e infelizmente para ele, o meu agente, Peter Benedek, também estava de férias com a família em Martha's Vineyard. Tinha alugado uma bela casa vitoriana em Edgartown, com vista para a baía, para o lado de Chappaquiddick, onde Teddy Kennedy teve o seu encontro com a ignomínia. Simpaticamente mas sem muito tacto, o Pete convidou-me para jantar com a família e alguns amigos, nessa sexta-feira. Nervoso e prevendo nada menos que o colapso total da minha carreira, fui, para dizer o mínimo, um mau convidado. Saltei as entradas e passei de uma hora de cocktails prolongada para várias garrafas de vinho ao jantar. Quando chegou a altura do prato principal, estava completamente arrumado. Não foi uma noite divertida.Em geral (dizem), sou um bêbedo simpático e lamechas mas, nessa noite, o medo e a ansiedade, misturados com o álcool, tornaram-me agressivo. Não foi só o efeito das bebidas que me abalou: foi também o facto real de, naquele momento exacto, o meu destino estar a ser decidido por estranhos, em várias salas de cinema espalhadas pelo país. Os cinéfilos estavam, ou não estavam, a comprar bilhete para o meu filme - e as minhas tripas diziam-me que não estavam. Como não podia despejar a bílis sobre cada um dos que não compravam bilhete, voltei-me para o meu agente.— Amanhã de manhã, vais pegar na merda do telefone esabes que porra é que vais dizer, Pete? A porra que vais dizer é:«Tenho muita pena, pá.» E sabes que mais? Eu digo-te. Que sefoda: desisto. Já não aguento mais esta merda.O Pete, que, apesar de pertencer à classe dos agentes, é uma das pessoas mais bem-educadas, doces e simpáticas do mundo do cinema, ficou sem fala. Sabia que eu tinha razão, embora talvez duvidasse da sinceridade da minha ameaça de abandonar a profissão. Garantiu que, acontecesse o que acontecesse, havíamos de sobreviver. Depois, ofereceu-se para me levar a casa. Felizmente, o caminho de casa não passava pela ponte de Chappaquiddick.Quando o telefone tocou, às nove da manhã seguinte, dei-xei-o tocar durante um bocado. Estava de ressaca e tinha medo que as notícias que ia ouvir me fizessem vomitar as tripas. Depois de o ter deixado tocar aí umas doze vezes, levantei o auscultador e não disse nada. Pete quebrou o silêncio.— Mike?... — disse, hesitante. Estremeci. A voz dele animou-se. — Conseguimos, pá. A porra da estreia correu bem!Eles acham que os bilhetes vão estar quase esgotados, no fim-de-semana. Nos mercados secundários foi de arrasar... Saint Louis,Chicago, Atlanta.Agradeci-lhe e pedi muita desculpa pelo meu comportamento da noite anterior. Desliguei o telefone e sorri. Dr. Sarilhos era um sucesso. Não um sucesso gigantesco, esmagador, mas um sucesso inegável, com lucros de bilheteira garantidos. Ainda

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estava no mundo do espectáculo - ganhara mais umas paradas. A ressaca desapareceu.Penso que a qualidade de um determinado momento nem sempre é o reflexo do momento em si - o que acontece antes e depois é que lhe dá sabor. Tendo previsto uma crise profissional, esse sonho mau desaparecera, pelo menos temporariamente, e -não sendo possível prever o pesadelo que me aguardava no Outono - o resto do Verão foi um hiato de bem-aventurança.Para a Tracy, para o Sam e para mim, a casa dos Pollan em Vineyard, uma pequena cabana de pesca agradavelmente remodelada e aninhada nas dunas que rodeiam o estreito de Menemsha, era tão acolhedora como um abraço. Passávamos os dias na praia ou a andar de bicicleta na Lobsterville Road. O Sam, com dois anos, era a viva imagem do contentamento. Investigador de curiosidade insaciável, passava horas a caçar límulos nas margens lamacentas do Lago Menemsha. Um dia, a Tracy e eu mostrámos-lhe Os Cavalos Voadores, um velho carrossel em Oak Bluffs, que tinha música de órgão a vapor e sinos de latão. A seguir, oferecemos-lhe um enorme gelado do Mad Martha's, que ele engoliu avidamente. Metemos algumas moedas numa máquina de discos dos anos cinquenta, que havia na casa dos gelados, e, animado pela energia do açúcar, o Sam começou a dançar, com a alegria própria da idade.A caminho de casa, rimo-nos da sua actuação e, embora sentindo-nos culpados, até soltámos umas gargalhadas, quando ele atirou o resto do gelado cor-de-rosa para cima da cama de grades.Todos os dias, ao fim da tarde, a Tracy e eu bebíamos vinho no terraço e ficávamos a ver o pôr-do-sol. De manhã, quando o Sam estava irrequieto e eu queria que a Tracy se pudesse dar ao luxo raro de dormir até mais tarde, pegava nele e ficávamos os dois sentados na varanda a ver o Sol erguer-se, anunciando mais um dia de Verão perfeito. Lembro-me da quente satisfação paternal que sentia ao mostrar ao Sam as muitas maravilhas das manhãs em Vineyard. Havia, por exemplo, uma águia-pesqueira que sobrevoava a superfície do estreito, fazendo concorrência aos muitos pescadores à linha que se levantavam cedo e se espalhavam pelas margens para pescar besugos-de-ova.Cheio de energia por causa do sucesso do filme, que continuou a encher as salas durante o resto do Verão, decidi pôr-me em forma - cortar nas cervejas, perder uns quilitos. Não há sítio mais bonito para praticar jogging do que Martha's Vineyard, em especial ao longo das sinuosas estradas junto à praia de Gay Head. Programei as corridas de modo a que, na primeira parte, a brisa do oceano me refrescasse e, na segunda, me empurrasse suavemente para casa. Perto do fim da nossa estada, resolvi pôr em prática o plano e fazer os cerca de dois quilómetros e meio ao longo do Moshup Trail. Foi ao fim da tarde de um dia especialmente bonito. Passou por mim um ciclista, que me acenou amigavelmente, tocando com os dedos no capacete. Tinha a certeza de que era o James Taylor e achei que isso era um bom sinal.O arranque fora bom mas, no caminho de regresso a casa, comecei a vacilar. Estava a demorar mais do que esperara, mas não me sentia preocupado, só exausto. A uns oitocentos metros da curva onde se virava para o caminho de terra batida de acesso à casa, vi a Tracy dirigir-se para mim, de carro. Parecia ligeiramente abalada.— Estás bem? — perguntou.Garanti-lhe que estava bem, mas que sobreavaliara a minha capacidade de resistência; afinal, já tinha quase trinta anos. Disse-o em tom de brincadeira, mas isso pouco alterou a expressão do rosto dela.— Estás com péssimo aspecto — disse. — O teu ladoesquerdo quase não mexe. O teu braço nem oscila. Acho que nãodeves correr mais até ires ao médico. Devias marcar uma consulta, assim que voltarmos para a cidade.Prometi que assim faria. A Tracy deu-me boleia para o resto do caminho. The Columbia School of Medicine Encyclopedia of Health devia pesar uns três quilos, o que era peso demais para se levar de férias. Enquanto tomava um duche, ocorreu-me que, se não fosse isso, a Tracy estaria, naquele momento, lá fora, a folheá-la furiosamente.Nova Iorque - Fim do Verão de 1991

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Obedientemente, ao regressar a Nova Iorque, procurei um especialista em medicina desportiva e marquei uma consulta. O médico foi muito meticuloso e, antes de prescrever qualquer terapia física para tratar aquilo que, então, eu julgava ser uma lesão muscular e dos ligamentos provocada pelo encontro que tivera com o carrasco havia muito tempo, mandou-me fazer uma série de raios X. Os ossos e músculos do pescoço, ombro, braço, mão, anca e perna - todo o lado esquerdo do meu corpo - foram radiografados e examinados. Por precaução, também fizeram um scan ao cérebro, para afastar as hipóteses de AVC e de tumor cerebral. Procedimento de rotina, disse para comigo, para me tranquilizar, enquanto estava deitado, com a cabeça enfiada naquele tubo estranho que é a máquina de RMN, ouvindo durante vinte minutos a sua bizarra cacofonia de pancadas e zumbidos.O médico chamou um terapeuta para se ocupar do meu pescoço e do ombro, prestando também atenção aos músculos torácicos do lado esquerdo do peito. Finalmente, estava a tratar do problema. Apesar de decidido a ser paciente enquanto durasse o tratamento, estava ansioso por atirar para trás das costas aquela chatice da doença e por voltar a tratar da carreira, que recebera um novo impulso, embora passando a reservar mais tempo e atenção para a minha família. Aquelas semanas maravilhosas na Vineyard tinham-me feito compreender como a Tracy e o Sam eram importantes para mim.Contudo, no fim do segundo tratamento, o médico chamou-me à parte, entregou-me um cartão de um neurologista seu amigo e recomendou-me insistentemente que marcasse uma consulta o mais depressa possível. Eu falara-lhe do neurologista de Gainesville e, como não havia indícios de trombose nem de tumor, não percebia qual era a ideia.— Acho que devia realmente ir a uma consulta com ele -repetiu.Quando, mais tarde, falei nisto à Tracy, ela defendeu insistentemente que eu marcasse a consulta. Sem eu saber, o médicotelefonara-lhe e pusera a questão de um modo sucinto: «Arranje maneira de ele ir mesmo.»TRÊS PALAVRASNova Iorque - Setembro de 1991Apesar da imagem de pessoa feliz e descontraída que cultivava, havia coisas que me preocupavam mais do que eu demonstrava. Contudo, a saúde nunca fora uma delas. Mas, ainda que fosse, nem mesmo a mais paranóica fantasia hipocondríaca poderia ter-me preparado para as três palavras com que o neurologista me esmagou naquele dia: doença de Parkinson.É-me difícil recordar com exactidão a resposta a esta comunicação; há falhas. Em termos teatrais, poderá dizer-se que uma boa cena seria seguramente eu ir-me abaixo, dar pontapés na mobília, gritar «PORRA!», amaldiçoar Deus, desafiar aquele médico, não muito mais velho que eu, talvez dizer-lhe que ele tinha merda na cabeça - e perguntar-lhe se sabia com quem estava a falar. Poderia ter utilizado o meu charme com ele -Deus sabe que já utilizei o charme para sair de buracos bem fundos. Uma das deixas possíveis teria sido: «Olhe... está visto que fez asneira. Mas talvez tenha lido na revista People que eu sou um dos tipos mais simpáticos do mundo do espectáculo e, por isso, vamos deixar passar esta. Não se preocupe... isto fica só entre nós.»Não disse nada disto; acho que não disse nada. Acho que não senti nada. O médico disse mais algumas palavras, qualquer coisa como - Parkinson Jovem, progressivo, degenerativo, incurável, muito raro. Na sua idade, novos medicamentos, nova esperança... O ar escapou-se-me dos pulmões, o meu braço esquerdo tremia todo, até ao ombro. A única recordação clara que tenho é de ter perguntado a mim mesmo porque raio me estava ele a fazer aquilo e que diabo ia eu dizer à Tracy. Ali estava eu, calmamente sentado, do lado da secretária do médico onde se ouvem as más notícias, acenando com um ar impassível - comose aquele homem fosse o meu agente, a dizer-me que o meu último filme tinha sido um fracasso. Quem me dera.O médico entregou-me um panfleto: um casal idoso, na praia, ao pôr-do-sol. Não se percebia qual deles sofria da doença neurológica incurável; pareciam ambos felizes, abraçados um ao outro, a sorrir... sobre as suas cabeças, via-se uma gaivota, que também parecia saudável. Apeteceu-me bater-lhe com uma pedra. Qualquer coisa sobre um medicamento novo. Talvez tenha sido a enfermeira quem me

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entregou o panfleto, não sei. Olhei fixamente para o médico; tinha um ar tão calmo. Aposto que foi duro para ele dizer isto a um fulano da minha idade. Era de facto muito bom. Odiei-o profundamente.Sair da porta do edifício onde ficava o consultório para as ruas molhadas pela chuva do centro de Manhattan foi o mesmo que entrar num mundo desconhecido. De facto, o mundo pouco mudara na hora que eu tinha passado com o bom do médico. Era verdade que o trânsito da hora de ponta do fim da tarde se tornara mais intenso, em especial ali, junto à ponte da Fifty-ninth Street, mas a única mudança profunda não se dera no que me rodeava, mas dentro de mim. Atordoado e confuso, não teria sido difícil ficar ali parado à chuva, durante horas, até a luz do fim da tarde ter dado lugar à noite e o clamor das buzinas dos automóveis ter cessado. Mas tinha que ir para casa. Com aquele tempo e àquela hora, não seria fácil apanhar um táxi e, de qualquer modo, a viagem seria demorada. Não fazia mal - precisava de todos os segundos desse tempo para arrumar as ideias sobre o que acabara de acontecer e quanto ao modo de, a partir daí, elaborar uma explicação para dar à Tracy e, já agora, à minha mãe e ao resto da família e dos amigos. Por mais que demorasse, a viagem não duraria o tempo suficiente.Abri a porta do apartamento. O cheiro do jantar que estava ao lume chegou até mim e ouvi o Sam a rir-se com a ama, a Iwalani, uma amiga nossa. Não fui capaz de entrar ali e de o enfrentar, naquele preciso momento. A Tracy apareceu na entrada, vinda da cozinha, e eu apontei em silêncio para o nosso quarto. Era raro eu fazer uma expressão tão séria e ela percebeu imediatamente que as novidades não eram boas. Enquanto ela vinha atrás de mim, senti a sua curiosidade dar lugar ao pânico.Havia um pequeno corredor em L, que ia dar ao quarto principal do nosso apartamento no West Side. Na base do L ficava o nosso quarto, onde contei à Tracy. Chorámos, abraçámo-nos. Lembro-me de ter pensado que a cena era uma versão estranha, triste, invertida, do panfleto que eu deixara no táxi - seria engraçada, se não estivesse... a acontecer connosco.Sem termos uma verdadeira ideia sobre o que era aquele monstro, tendo a vaga noção de que passariam anos até lhe sentirmos os dentes e as garras, tranquilizámo-nos um ao outro. Apesar de abalada e assustada, a Tracy tinha uma presença tão forte e amorosa... lembro-me de a ouvir murmurar na saúde e na doença, prendendo-me nos seus braços, o rosto molhado encostado ao meu. Como seria de esperar, a minha primeira reacção foi: Há que descobrir um ângulo, tem que haver uma saída, segue em frente. Para a Tracy: Vai correr tudo bem. Para mim mesmo: O que é que vai correr bem?Poucos o admitirão mas, às vezes, os actores lêem um guião assim: merda... merda... a minha parte... blá, blá, blá... a minha parte... merda... O adorei/detestei depende de facto da proporção de merda relativamente à minha parte. Durante dias, talvez semanas, entrei no modo grande merda: não é o meu guião, detesto isto, não faço isto. Fiz de conta que não era nada comigo, pedi segundas opiniões; as opiniões eram unânimes. Eu tinha a doença de Parkinson. Decidido a não consultar um neurologista a menos que um furacão o fizesse entrar pela janela da sala, consegui que o meu médico internista me receitasse medicamentos para o Parkinson. Andava com eles de um lado para o outro, soltos nos bolsos das calças, como se fossem rebuçados do Dia das Bruxas. Valor terapêutico, tratamento ou mesmo como consolação - não era por nenhuma destas razões que eu tomava aqueles comprimidos. Só havia um motivo: esconder a doença. Fora da família, ninguém, nem mesmo os amigos e colegas de trabalho mais próximos, podia saber. E foi assim durante sete anos.

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CAPÍTULO DOISO ás das fugasBase militar de Chilliwack, Columbia Britânica - 1963O miúdo for ase... tinha desaparecido. Escapara-me enquanto a minha mãe estava ocupada na tarefa inglória habitual das mulheres casadas com oficiais de carreira: desempacotar os haveres da família e organizar uma nova casa.A MINHA MÃE, Phyllis, e o meu pai, o sargento William Fox, do Batalhão de Comunicações do Real Exército Canadiano, tinham-se tornado especialistas em mudanças de casa. Entre o dia em que casaram, em 1950, e aquela tarde que a minha mãe passou a desencaixotar os bens acumulados ao longo de treze anos de vida familiar, o meu pai tinha sido colocado em seis bases militares diferentes.O trabalho do meu pai relacionava-se com codificação e descodificação - era por causa das suas qualificações nesta arte misteriosa que o Exército o enviava para vários pontos do território do Canadá. (Não podíamos nunca visitá-lo no local de trabalho, que era sempre de acesso interdito.) Já tinha estado colocado em Chilliwack, de 1955 a 1958. A família estava agora de regresso, vinda da província de Alberta, onde o meu pai passara os últimos anos em bases em Calgary e Edmonton. (Eu nasci em Edmonton, em Junho de 1961.) Era assim a vida no serviço militar e, se isso fosse incómodo ou mesmo traumático para a família do soldado - tanto pior. O meu pai sabia qual seria a resposta das altas patentes, se se queixasse e, com um meio sorriso triste, lembrou-nos muitas vezes: «Se quisesse que eu tivesse família, o Exército ter-me-ia atribuído uma.»Na verdade, o meu pai candidatara-se a esta última transferência e não foi difícil dizer adeus à paisagem plana, desinteressante e aos Invernos escandalosamente frios da planície canadiana. Os meus pais ainda tinham muitos amigos em Chilliwack e ambos tinham sido criados na Columbia Britânica. A minha mãe costuma recordar que se sentiu tão emocionada por estar a voltar à sua terra que chorou o caminho todo, quando, vindos de Alberta, seguiam em direcção a oeste ao longo das Montanhas Rochosas. A base de Chilliwack fica precisamente na zona onde o terreno acidentado das montanhas dá lugar a quilómetros e quilómetros de terras aráveis do vale do rio Fraser. Quem partir de Chilliwack e seguir o curso coleante do Fraser por uns cento e tal quilómetros, em direcção ao delta, onde este desagua no Pacífico, encontrará a pequena comunidade de Ladner. Filha de um dos muitos agricultores rendeiros do tempo da Depressãoexistentes na zona, a minha mãe considerava Ladner a terra que trazia sempre no coração. Por isso, já que tinha que voltar a carregar o Chevy e fazer-se à auto-estrada transcanadiana, pelo menos desta vez a família Fox ia na direcção certa.Desfazer caixotes era uma tarefa aborrecida e ter uma criança pequena agarrada às saias tornava-a ainda mais difícil. Eu era uma criaturinha insuportável, um furacão - bem-disposto, inteligente e precocemente engraçado, dentro do género «de-que-nave-espacial-saiu-esta-criatura-estranha?». Mas tenho a certeza de que estava a dar-lhe cabo da paciência, tagarelando, tirando coisas dos caixotes, remexendo nas pilhas de roupas que ela desempacotara, desdobrara, voltara a dobrar e pusera de lado para serem levadas lá para cima, para os três quartos exíguos.«Exíguos» era a palavra-chave dos alojamentos do exército. As ROQC - Residências dos Oficiais do Quadro Casados - não dispunham de um espaço habitacional generoso mas sendo, como eram, situadas em terrenos estatais bem guardados, não se podia pedir um ambiente mais seguro para criar os filhos. Com as suas fiadas de casas idênticas, as ROQC eram zonas residenciais bem ordenadas, onde as pessoas faziam rapidamente novas amizades ou reatavam as antigas. Toda a gente sabia tudo da vida de toda a gente e, do ponto de vista sócio-económico, toda a gente estava exactamente no mesmo barco. Quando uma família possuía qualquer coisa que uma outra não possuía - por exemplo, um televisor a cores ou um belo carro - esta família tinha apenas que contar os filhos: o mais provável era a primeira família ter menos alguns filhos. Em 1963, nós éramos quatro: Karen, Steven, Jacqueline e eu. Em 1964, apareceu a nossa irmã mais nova, Kelli - que, na prática, viria a adiar, até ao começo dos anos setenta, a compra de um televisor a cores.

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A minha mãe contava as baixas entre os pratos desempare-lhados, embrulhados em páginas de jornais velhos de Edmonton, e, por isso, não é difícil perceber porque consegui fugir sem ela dar por nada. Quando deixou de me ouvir, deve ter partido do princípio que eu me aninhara num sítio qualquer, a dormir uma soneca, e talvez se tenha sentido grata pelas tréguas. E o facto denão me ver ainda era mais fácil de explicar. Poderá parecer redundante dizer «pequeno para um miúdo de dois anos» mas era exactamente isso que eu era - dois palmos de altura, pouco mais pesado do que uma toalha de praia molhada e rápido nas escapadelas. Passaram-se vários minutos até a minha mãe ter dado pela minha falta.Ladner, Columbia Britânica - 1942Todas as famílias têm as suas histórias, as suas lendas de eleição. Na minha, quase todas essas histórias giram à volta da figura da Nana, a minha avó. Era ponto assente na família que a Nana tinha o dom da profecia; seja realmente verdade ou não, o que interessa é que aqueles que acreditavam nisto, e em especial a minha mãe, organizavam as suas vidas - e a minha - em conformidade.Duas décadas antes, outra mãe descobriu que o filho desaparecera. Nesta história específica, tratava-se da mãe da minha mãe, Jenny Piper, e o desaparecido era o meu tio Stuart. Foi no ano de 1942. Jenny - a minha «Nana» - e o marido, Harry, já tinham passado pelo mesmo com o filho mais velho, Kenny: o telegrama entregue à porta, as palavras brutais: «Desaparecido e provavelmente morto» - abatido algures sobre a Alemanha. Os dois filhos estavam ao serviço da Real Força Aérea Canadiana no teatro europeu de operações. Ambos foram declarados desaparecidos e provavelmente mortos.Quando, um ano antes, lera o primeiro telegrama, contendo essencialmente as mesmas palavras e só diferindo no nome, a Nana sofreu um profundo choque. Passadas algumas semanas, teve um ataque cardíaco. Só recuperou quando, semanas depois, recebeu a notícia de que, afinal, Kenneth estava vivo - era prisioneiro de guerra, num campo de prisioneiros, na Alemanha.SONHADORESPor isso, quando a notícia do desaparecimento de Stuart chegou a Winnipeg (na sequência da Depressão, Henry e Jenny tinham partido de Manitoba para a Costa Ocidental, em busca de melhores perspectivas de trabalho), a família de Nana receou que ela sucumbisse a outro ataque cardíaco e insistiu em que voltasse para Leste, para descansar. Ela não quis. «Não vou até ter a certeza que o Stuart está vivo», disse. Então, um dia, ao fim de várias semanas de pesadelo, à espera de notícias do Stuart, a Nana desceu as escadas, entrou na cozinha e anunciou: «Já podemos ir para Winnipeg. O Stuart está bem. Tive um sonho.»De repente, deu-se uma explosão violenta. Uma bola de fogo no céu. Do centro dessa bola, ela viu sair uma coisa pequena e branca que o vento arrastou suavemente em direcção ao solo, em direcção à praia. Ela correu para a coisa e agarrou-a, instantes antes de as ondas a apanharem e arrastarem para o mar: parecia um pequeno envelope branco. Na superfície branca estava escrita uma única palavra: Stuart.Esta sequência de imagens, transmitidas à Nana pelo seu subconsciente, podia ser interpretada de várias maneiras. Mas, para ela, o significado era claro: tal como Kenneth, Stuart saltara de pára-quedas de um avião em chamas e sobrevivera. A sua fé na visão que tivera era inabalável. Dois dias depois do sonho da Nana, chegou um telegrama. Tudo acontecera tal como ela tinha profetizado: o avião em chamas, o pára-quedas branco. Tal como Kenneth, Stuart fora feito prisioneiro de guerra e estava bem vivo.O que tem isto a ver com a minha vida? De uma coisa tenho eu a certeza absoluta: se a Nana não tivesse tido aquele sonho, eu nunca teria percebido o meu. Porque, mais tarde, a Nana teve acerca de mim a mesma confiança inabalável que tinha tido em relação ao destino de Stuart. Ele iria escapar àquilo que, para todos os outros membros da família, era uma morte certa. E ela tinha a mesma certeza de que eu iria escapar ao destino que todas as outras pessoas da família pensavam ser o meu.Base militar de Chilliwack, Columbia Britânica - 1963 Não posso fingir que me lembro do meu estado de espírito aos dois anos de idade, mas é possível que o motivo que me levou a sair pela porta das traseiras não tenha sido

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especificamente «fugir». O mais provável é eu não ter sido capaz de reconhecer onde ficava a fronteira; que a porta da cozinha era uma linha para lá da qual uma criança não devia arriscar-se sozinha. A tendência para ir para além dos limites do meu mundo era uma coisa que eu nunca viria a ultrapassar e que, alternadamente, divertia, exasperava, deixava frustrados ou aterrorizava os adultos que me rodeavam; todos, menos a Nana.Há pouco tempo, perguntei à minha mãe qual tinha sido a reacção dela ao meu passeio não programado daquela tarde, em Chilliwack, um episódio que, para ela, definira o padrão do que seria criar-me. Segundo ela, eu era uma criaturinha misteriosa e inconstante.— Eu estava a tirar coisas dos caixotes, a arrumá-las e, de repente, não sabia de ti. Não te encontrava. Estávamos num sítio novo e, claro, entrei em pânico. Saí de casa e chamei, chamei por ti e, então, apareceu uma senhora que me perguntou se eu era a Senhora Fox. Quando respondi que sim, ela disse: «Anda à procura do seu filho? Olhe, ele esteve mesmo agora aqui. É um encanto. Fartou-se de conversar.» E, a partir daí, foi sempre assim: toda a gente da vizinhança sabia quem tu eras, antes de nós sabermos quem eles eram. Tantas vezes que eu ouvi: «Ah, aquele Michael! A senhora é a mãe do Michael Fox?» Sabes? Depois de te tornares famoso, toda a gente me dizia: «A senhora deve estar farta que lhe perguntem: 'É a mãe do Michael Fox?'» E eu respondia: «De maneira nenhuma. Perguntam-me isso desde que ele era bebé.»Apareci pouco depois do encontro da minha mãe com a nova vizinha. A sorrir, a rir, sem a mínima ideia de ter provocado um alvoroço: fora apenas fazer uma viagenzinha de reconhecimento da nova zona de residência, onde - como ficara contente por descobrir isto! - havia uma loja que vendia rebuçados, logo do outro lado do relvado por trás do nosso bloco. O meu pai tinhavoltado do trabalho e, enquanto a minha mãe lhe contava a minha aventura, voltei a escapar-me. Quando o telefone tocou, minutos depois, o dono da loja de doces tentava dissimular que estava divertido. «Tenho aqui o seu filho. Quer comprar uns doces.»Consigo facilmente imaginar a minha mãe, uma mão crispada sobre o auscultador e a outra a puxar uma madeixa do seu espesso cabelo ruivo, com a sua face rosada de anglo-irlandesa corada até à raiz dos cabelos, a olhar em volta, sem querer acreditar que eu tinha fugido outra vez. «Dê-lhe um rebuçado ou outra coisa qualquer. O meu marido já vai aí buscá-lo e paga-lhe.»Nessa altura, o dono da loja foi incapaz de conter o riso. «Ah, ele tem dinheiro. De facto, até tem bastante dinheiro.»O roubo não ocupava um lugar de destaque na lista dos meus pecados infantis. Limitara-me a estabelecer uma ligação, normal para uma criança de dois anos, entre a pilha de notas que o meu pai deixara em cima da mesa - todo o seu subsídio de realojamento - e a loja dos doces, cujas coordenadas eu já tinha memorizado. Foi em dias como este que comecei a acreditar que nada era impossível - e que os meus pais começaram a perceber que, no que se referia ao filho mais novo, o melhor era ficarem à espera do inesperado.O que não era brincadeira nenhuma. Nascidos durante o período de insegurança da Grande Depressão e tendo-se tornado adultos durante a Segunda Guerra Mundial, o meu pai e a minha mãe tinham construído cuidadosamente uma vida a dois que lhes evitasse surpresas. A decisão do meu pai de seguir a carreira militar deve ter sido uma troca calculada - da individualidade pela segurança - sem grandes hipóteses de fazer fortuna, mas também sem surpresas desagradáveis. As altas patentes podiam achar por bem mandar-nos de um extremo para o outro do Canadá mas, pelo menos, sabíamos que, no novo destino, estavam à nossa espera o mesmo emprego, uma zona residencial semelhante e uma casa quase igual.Fora das marcas, sem ligar nenhuma aos conselhos da maior parte dos adultos que fazia parte da minha vida e (segundo os meus irmãos mais velhos) sem nenhum juízo na cabecinha - eisum esboço breve, mas exacto, daquilo que eu fui durante os cinco primeiros anos da minha vida. Estão sempre a dizer-me que era uma criança muito simpática, cheia de curiosidade, conversadora - com uma terrível inclinação para todas as formas de auto-expressão, artísticas ou não, com acentuada atracção pelas novas

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possibilidades e igualmente acentuada indiferença por aquilo que os outros esperavam de mim.Claro que compreendia o que esperavam de mim, em termos de comportamento - as regras sociais básicas. Só levei a carteira do meu pai até à loja da esquina uma vez. A minha mãe acha que eu era mais do estilo Tom Sawyer que Dennis, o Pimentinha. Simplesmente, não estava interessado nas expectativas dos outros. Ou talvez deva dizer que, com o tempo, fui perdendo o interesse por elas. Recordo-me de duas experiências formativas relacionadas com as expectativas das pessoas e que talvez me tenham feito desistir de me ralar com elas, num sentido ou noutro.Não tive ciúmes quando, em 1964, nasceu a minha irmã mais nova, Kelli. Ela era engraçada e eu gostava de miúdos e de bebés - e, que diabo, quantos mais fossemos mais divertido era. Mas, quando cheguei aos cinco ou seis anos, ela tinha dois ou três e éramos do mesmo tamanho. Tenho uma recordação nítida de como eu e a Kelli nos divertíamos a enganar as pessoas, de sermos os dois convidados para várias casas, por pensarem que éramos gémeos. O meu autocontrolo e as minhas capacidades verbais ultrapassavam sempre aquilo que os adultos esperavam de uma criança tão pequena. Mas quando ficavam a saber que a minha suposta «gémea» era, na verdade, três anos mais nova, as reacções das pessoas mudavam, o que constituiu a minha primeira experiência perturbadora quanto ao reverso das expectativas. As pessoas esperavam que eu fosse maior. Para mim, isto era novidade. Era capaz de fazer toda a espécie de coisas fantásticas e maravilhosas, mas não conseguia ser maior. Isto enfure-cia-me. Só me apetecia roubar o rebuçado da minha irmã, amarrá-la com a fronha com que ela andava de um lado para o outro e fechá-la num armário qualquer.O outro incidente que me levou a associar expectativas comdesapontamento teve a ver com o meu pai. Desde muito criança, percebi que o meu pai não era homem para aturar tolices. Embora se deliciasse com as histórias, desenhos e canções que eu inventava, vivia numa realidade mais ordenada. Eu era um sonhador e ele uma pessoa firmemente ancorada aos pormenores práticos da existência quotidiana. Nunca o disse de uma forma explícita, mas eu tinha o estranho pressentimento de que esperava que, um dia, eu viesse a parecer-me mais com ele neste aspecto. Lembro-me da manhã de um dia em que, andava eu na pré-primária, o meu pai tinha voltado de uma comissão prolongada num posto de escuta da NATO (eufemisticamente designado por «estação meteorológica»), algures no Árctico; o meu pai ia bus-car-me à hora do almoço e, depois, íamos os dois a pé para casa.Em vez das tintas, das construções de cartolina e dos lápis, os professores tinham posto em cima das mesas de trabalho pedaços de madeira com umas formas esquisitas, martelos pequenos e latas de sopa Campbell cheias de pregos. Eu preferia as habituais pinturas. Mas, ao ver os outros rapazes aplicarem-se naquele projecto de carácter prático, meti na cabeça fazer uma coisa para o meu pai. Tinha a certeza de que era daquilo que ele ia gostar - era daquilo que ele estava à espera.E assim, com uma frustração crescente, passei toda a manhã, a esforçar-me em vão por construir uma coisa, qualquer coisa. Tinha metido na cabeça impressioná-lo como nunca o impressionara. Foi um desastre: não consegui sequer pregar um pedaço de madeira ao outro. Quando, por fim, o meu pai chegou, eu estava inconsolável. Ele pegou-me ao colo, assentou o meu traseiro na curva do seu braço forte e eu enterrei o rosto no seu uniforme. Ainda me lembro de como a fazenda era áspera e do cheiro que deitou depois de molhada com as minhas lágrimas. Pela primeira vez na minha vida, fiquei sem palavras. Fomos para casa a pé e, no caminho, fiz chichi nas calças. Até Tom Sawyer tinha dias maus.Não sei se foi nesse dia ou em qualquer outro da minha infância que deixei simplesmente de me preocupar com as expectativas dos outros e comecei a seguir o meu próprio caminho.A CAIXA DOS FANTASMASChilliwack, B.C.; NorthBay, Ontário; Burnaby, B.C. -1967-1972 Tal como um investigador de campo que marca e protege com um gradeamento um novo achado arqueológico, neste livro tentei organizar os períodos da minha infância em segmentos logicamente definidos. O primeiro quadrado do gradeamento enquadrou a

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salada obscura e impressionista dos meus primeiros anos de vida, até ter entrado para a escola; o segundo emoldura o período de 1967 a 1972, dos meus seis aos onze anos. Acontece que algumas cenas escolhidas desta época são fáceis de recuperar.Para o Natal de 1989, a minha irmã Jackie recolheu os pedaços dos filmes de família, feitos pelo meu pai com a sua câmara de 8 mm. Embora tenha sido apenas um cronista esporádico da família, o meu pai registou, apesar disso, um número de fragmentos da nossa vida de todos os dias suficiente para se poder compilar um documentário familiar mudo, um tanto tremido e desfocado, mas enternecedor. A Jackie contratou um técnico para passar os filmes de 8 mm para vídeo e explicou-lhe a cronologia dos pedaços dispersos de película.Nesse ano, a Tracy, o Sam e eu não conseguimos ir ao Canadá nas férias mas, quando recebi a cassete por correio especial, pu-la imediatamente no leitor de vídeo. Seria de esperar um ataque de nostalgia mas o facto é que as imagens da Nana, que morrera quando eu tinha onze anos, me deixaram os olhos toldados pelas lágrimas. Não fui capaz de ficar a ver a cassete por muito tempo e prometi a mim mesmo que, dali a umas semanas, a veria do princípio ao fim. Porém, antes de isso ter acontecido, o meu pai morreu, em Janeiro de 1990. A última coisa que me apetecia, nessa altura, era ver imagens do meu pai em vida. Assim, pus a cassete de lado e não voltei a pensar nela durante bastante tempo.De facto, não voltei a pensar nela até ter começado a escrever estas páginas. Encontrá-la, ao fim de tantos anos, significava procurar entre um sem número de cassetes com rótulos desbotados: festas de anos infantis, restos das Super Taças, de campeonatos de boxe, de jogos de hóquei e episódios do Larry Sanders. Mas, para minha surpresa, só tive que fazer uma busca nas prateleiras dos vídeos para encontrar este tesouro. Filmes da Família Fox: Como Nós Éramos, 1967-1972, dizia um rótulo torto, escrito na caligrafia legível, apesar de floreada, da Jackie.Fantástico, não é?Tirei-a da caixa coberta de pó e dirigi-me para o leitor de vídeo - não sem alguma hesitação. Depois do primeiro visionamento, em 1989, não tinha pensado muito naquilo que ia ver agora e, por isso, as imagens da Nana surpreenderam-me. Sabia que ela estava ali, e o meu pai também - a andar e a falar, a fumar e a dizer piadas - em movimento, pela primeira vez há mais de uma década.Aquelas duas figuras, a minha avó materna e o meu pai, representavam dois pólos distintos da minha infância, dois campos de gravidade que ajudaram a formar o meu carácter.O meu pai, militar de carreira, personificava os limites das expectativas e a aceitação das limitações pessoais, tanto exteriores como auto-impostas. Era um homem pragmático, realista, com poucos estudos e que dizia de si mesmo ser «diplomado» pela escola das dificuldades da vida. Tivera os seus sonhos, quando rapaz e como homem, mas estes tinham-lhe sido de facto arrebatados, golpe de que se ressentiria durante o resto da vida. Terrivelmente leal, o seu primeiro compromisso era para com a família, que estava determinado a proteger de todas as ameaças, incluindo o desapontamento, resultado inevitável quando se corre atrás de fantasias românticas.Em comparação, a Nana, a matriarca e visionária do tempo da guerra, possuía uma natureza intrínseca que insinuava a possibilidade de fuga, de transcender os limites da vida. Deliciava-se com os meus feitos e as minhas excentricidades e sempre me encorajou a acreditar no poder dos meus sonhos. Enquanto as outras pessoas da família manifestavam dúvidas quanto à orientação que eu seguia, ela era a minha mais acérrima defensora e a minha grande campeã. Ria-se das preocupações deles e piscava-me o olho, como se ambos soubéssemos qualquer coisa que estava para além do entendimento dos outros.Ao recuperar a cassete, ia poder voltar a ver os dois, uma perspectiva que me enchia de curiosidade e, também, de apreensão.REBOBINAR OS ANOSO quadro de abertura mostra a imagem de um cão pastor preto, com uma pequena mancha branca no peito. O preto da pelagem contrasta fortemente com o verde vivo do relvado à sua volta. Morto há mais de um quarto de século, volta a estar vivo no ecrã do meu televisor, coçando-se furiosamente para expulsar uma pulga

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escondida entre o seu pêlo abundante. O cão chamava-se Bartholomew. Não era nosso; o dono dele era o Ed, o namorado da minha irmã Karen. O meu pai detestava o cão e também não gostava muito do Ed, que rotulava de hippie, coisa que, em 1967, era a pior coisa que o meu pai podia chamar a alguém. Não me lembro das circunstâncias, mas o cão desapareceu mais ou menos ao fim de um ano; para desgosto do meu pai, o Ed continuou a aparecer, acabando por casar com a minha irmã.Corte para a minha irmã Kelli, aos três anos: um amor, de cabelos muito claros, a coçar o nariz que já partira duas vezes e a sorrir, com toda a atenção concentrada na objectiva. Tem vestido um casaquinho leve, vermelho, e faz pose. É um desempenho cativante, prenunciando um futuro nos palcos.Agora, uma imagem de interior; a câmara gira para a direita e apanha o meu pai. Tem um aspecto óptimo. Pesado mas não tão pesado como eu o recordo. Mais corpulento que gordo, enche por completo a camisa de manga curta, aos quadrados. Parece novo, penso, e depois chego à conclusão de que o homem cuja imagem tenho diante de mim é dois anos mais novo que eu, no momento em que estou a escrever. Abaixo do cabelo cortado à escovinha -durante toda a sua carreira militar, nunca usou o cabelo de outra maneira - os seus olhos brilham e ele lança-nos um sorriso rápido.Novamente no exterior: uma imagem de grupo. A minha mãe veste uma camisa de algodão sem mangas e umas calças curtas e justas; está a conversar com um grupo de vizinhas. A Kelli dança, em primeiro plano, e duas das mulheres observam-na, através dos óculos de aros de osso, com feitio de olhos de gato.Sequência seguinte. Ao longe, duas figuras avançam para nós, por um caminho ladeado de arvoredo por entre cujas folhas se filtra o sol. A mais pequena das duas tem as pernas arqueadas e uma maneira de andar característica que reconheço de imediato. É a minha avó. Agora mais perto da câmara, as suas feições destacam-se melhor. É linda. Nesse dia, em especial, tem o cabelo rebelde e grisalho penteado em pequenos caracóis presos com ganchos e armados com fixador. O rosto é sorridente - sempre sorridente - embora um estranho pudesse ter dificuldade em afirmá-lo, porque o lado esquerdo está descaído devido a um ataque de paralisia. Roliça e de aspecto tranquilo, a Nana traz um vestido simples, às risquinhas, e sapatos pretos abotinados; da mão, pende-lhe uma mala enorme, ridícula para a sua altura. As avós costumavam ter sempre este aspecto. A figura ligeiramente mais alta é o meu irmão Steve, que acompanha o ritmo das passadas da Nana. É muito parecida com a Rainha-mãe; súbdita britânica fiel, ficava encantada com a comparação.E ainda: eu, com seis anos, a empurrar a bicicleta. Mais uns passos rápidos e, depois, com uma calma concentrada acelero o ritmo, levanto a perna e lá estou eu em cima da bicicleta, a pedalar sobre o verde vivo do relvado. A minha mão esquerda segura o guiador e na direita tenho uma cobra inofensiva, a contorcer-se.Ainda estávamos na base de Chilliwack, mas a viver fora do aquartelamento, num apartamento duplex em Nicomen Drive. Em boa verdade, aquelas casas eram destinadas a militares de patente superior à sua mas, como então tinha cinco filhos, o meu pai tivera direito a uma casa melhor. Tinha-se candidatado a mudar de casa, em 1963, mal a minha mãe soubera que estava grávida da Kelli mas, recorde-se, o exército considerava as famílias como «pessoal não essencial» e não teve pressa em deferir o requerimento do meu pai. Basicamente, a atitude era: «Mostre-nos o bebé.» Por outras palavras, só começariam a estudar o seu pedido quando o mais novo rebento dos Fox fosse um facto material incontestável. (O meu pai aguentou vinte cinco anos desta merda.) Quase três anos depois do aparecimento da Kelli, os papéis foram finalmente aprovados e o apartamento ficou à nossa disposição. O nascimento dela pode ter-nos custado um televisor a cores mas, graças à persistência do meu pai, também nos valeu um pouco mais de espaço vital.Não que eu precisasse de muito espaço. Na fita, sou tão pequeno como reza a tradição. Em duas imagens com a minha irmã de três anos, parecemos realmente gémeos; quase do mesmo tamanho, excepto quanto à cabeça: a minha era desproporcionalmente grande, uma cabeça de abóbora.

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A medida que vou vendo, não posso deixar de reparar em como, aos seis anos de idade, eu já tinha autodomínio - sem fazer pose para a câmara, completamente empenhado no que estava a fazer na altura. Isto é como uma espécie de revelação pessoal. Dada a fama familiar de criança extrovertida e de vigorosa precocidade na escola, em casa e no meio social, sempre parti do princípio de que isto era verdade - que tinha em mim um desejo intenso de captar as atenções e de ser aceite.Ao remexer nas minhas próprias memórias e nas da minha família, na esperança de perceber quem sou, tenho tendência a ver-me a mim mesmo segundo o prisma daquilo em que me tornei. Os acontecimentos e as qualidades pessoais que servem de base à versão actual são inconscientemente isolados, distorcendo algumas recordações para estas iluminarem melhor o meu caminho. Mas a fita provoca um curto-circuito no processo da memória subjectiva. Como na analogia do gradeamento do arqueólogo, ver esta gravação de cerca de trinta minutos é como pegar numa amostra essencial, andando para trás para me mostrar quem eu era de facto, nessa época.Sempre aceitei a ideia de que me tornei actor porque precisava desesperadamente de amor e de atenção; de que, no meu caso, essa aprovação era a mãe da auto-invenção. A primeira vista, a fita apoia esta asserção. Quer dizer, mostra-me ocupado em todas as actividades de que ouvi falar: desenhar, ler livro atrás de livro, empunhar uma rede de pesca desmedida como quem se prepara para bater num tambor com uma baqueta, caminhando à frente dos meus pais, numa caçada às rãs-gigantes, na margem coberta de caniços de uma pequena represa local e - esta continua a ser a minha preferida - levando uma cobra a dar uma volta involuntáriade bicicleta nas traseiras da casa. Vendo bem, torna-se claro que todas aquelas palhaçadas foram feitas em benefício próprio e de mais ninguém. Em primeiro lugar e antes de mais nada, a imagem apresenta um rapazinho - eu - que está ali para se divertir, completamente alheio à presença da objectiva.Estas cenas mostram claramente que, em vários aspectos, eu sou quem sempre fui. Portanto, a pergunta não é «Porque é que me tornei assim?» mas «Porque é que continuei assim?». E a resposta é: «Não tenho a certeza de ter continuado.» Ao longo do percurso, houve omissões e dúvidas, desvios e ajustamentos, mas a fita diz-me que o adulto que sou hoje tem mais em comum com o miúdo da bicicleta do que com a pessoa que entretanto fui. É gratificante saber que, de certo modo, encontrei o caminho de volta e é estimulante perceber que o diagnóstico da doença de Parkinson desempenhou um papel importante para eu chegar até aqui.QUEM SAI AOS SEUSA primeira vez que vi The Honeymooners, quando Jackie Gleason apareceu no ecrã do nosso velho televisor a preto e branco, pensei: «Hum... É igual ao papá!» Para além da grande semelhança física com Gleason, o meu pai era parecido com o personagem em vários outros aspectos: imponente, divertido, apaixonado, dado a ataques de fúria ao mesmo tempo cómicos e assustadores. Também ele era capaz de, num abrir e fechar de olhos, passar de «Que bom que isto é» para «Um dia destes, Alice, zás, vais parar à Lua!» Os dois homens pareciam estar à mercê de forças que escapavam ao seu controlo mas, ao contrário de Ralph Kramden, o meu pai não tinha ideias românticas acerca de vencer na vida graças a um esquema para enriquecer depressa. Em vez disso, confiava na perseverança, numa ética rígida em questões de trabalho e na sua grande inteligência. Além disso, tinha uma coisa muito importante que o Ralph não tinha; uma coisa que, tenho a certeza, o fazia sentir-se mais rico do que alguma vez sonhara ser: uma família.Há algumas cenas-chave da gravação que me fazem sentir tão próximo do meu pai, tão esmagado pela sua presença que até dá vontade de chorar. Essas cenas passam-se em anos diferentes, mas cada uma delas é uma réplica da anterior. A imagem não mostra ninguém, nem mesmo o meu pai.É esta a imagem: um plano lento, cuidado, da esquerda para a direita, de uma árvore de Natal iluminada, numa sala às escuras, com destaque especial para os presentes que se encontram por baixo dos ramos ornamentados. A quantidade de prendas parece aumentar a cada ano que passa.É véspera de Natal e todas as outras pessoas foram já para a cama. A mão que segura a câmara é a do meu pai. Está sentado na sua cadeira preferida. Em vez do

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leite e bolinhos para o Pai Natal, convenceu-nos a deixar uma garrafa de cerveja, em cima da mesinha de apoio, ao seu lado.Era um ritual muito privado que se repetia todos os anos. Sei disso porque, em muitas vésperas de Natal, saltei da cama e, em pijama, fiquei parado no patamar, ao cimo da escadas, a olhar para ele, em silêncio. Houve um ano em que adormeci ali e, quando o meu pai me pegou ao colo para me levar para a cama, acordei por alguns instantes. Perguntei-lhe se ele estava à espera do Pai Natal. Ele sorriu e disse que sim, «para o caso de o Pai Natal ter que montar alguma coisa e precisar da ajuda de um braço forte».As vigílias do meu pai junto à árvore de Natal continuavam, na altura em que, já bem adulto, eu ia dos Estados Unidos, em férias, me escapava para encontros de véspera de Natal com os meus antigos colegas de escola, e entrava de rompante, sentan-do-me ao seu lado para bebermos um último copo juntos. Ele não falava muito, não dizia em que estava a pensar. Nem precisava. Eu sabia exactamente o que era.Durante a Depressão, o pai do meu pai (que também se chamava Bill) lutou para poder manter a família em Burnaby, um subúrbio de Vancouver. Foi uma batalha perdida. Perderam o pouco que tinham. Quando rebentou a guerra, desesperado para arranjar trabalho, Bill Sénior ofereceu-se para o serviço militar.O exército considerou-o demasiado velho para o serviço activo e nomeou-o guarda de uma prisão militar em Alberta. Isto implicou deixar o meu pai, a irmã mais velha deste, Edith, o irmão mais novo, Doug, e a mais nova de todos, Lenore, ao cuidado da mãe, Dolly. Mas Dolly só era mãe de nome. Na ausência do marido, não foi capaz de fazer face às responsabilidades de uma mulher sozinha e pobre, com quatro filhos. Procurou refúgio nas cervejarias de Hastings Street e nos nightclubs de Vancouver Leste.O meu pai e a Edie assumiram a tarefa de criar os irmãos mais novos. Abandonaram a escola para procurar trabalho; durante algum tempo, o meu pai foi vendedor no armazém Spencer. O meu pai e o Dougie, dois anos mais novo, eram especialmente próximos e, muitas vezes, deambulavam pelo bairro operário pobre e esquecido em busca de diversões que os fizessem esquecer a fome. A uns oitocentos metros da casa onde viviam, em Hastings Street, a rua principal de Burnaby Norte, ficava o recinto de feiras e exposições, com a maior pista de corridas de cavalos do Canadá Ocidental, em funcionamento durante o ano inteiro. Os dois rapazes adoravam a pista e passavam horas a espreitar para lá da vedação de ripas - não só às horas das corridas, mas também de manhã, quando os ajudantes dos estábulos passeavam os cavalos e lhes davam água e os treinadores os exercitavam. Cada vez mais ousados, os dois rapazes acabaram por passar para lá da vedação e, pouco depois, tinham-se insinuado no mundo exótico de uma pista de corridas.Os dois irmãos acabaram por arranjar alguns trabalhos, mal pagos, como fazer o aquecimento dos cavalos. Conta a minha mãe que o meu pai, na época com pouco mais de um metro e sessenta de altura e magro que nem um espeto, foi considerado um «jóquei potencial nato» e a sua aprendizagem foi levada muito a sério. Aos dezasseis anos, já participava em algumas corridas. Uma noite, deslumbrados com esta reviravolta do destino, os irmãos Fox embebedaram-se e foram a um dos sítios onde se faziam tatuagens, na turbulenta zona portuária de Vancouver. O meu pai ficou com o bíceps esquerdo permanentemente adornado com o perfil de um puro-sangue, que tem uma coroa de rosas em forma de ferradura à volta do pescoço.A guerra acabou e, com ela, acabou para o meu pai o sonho fugaz de uma carreira nas corridas de cavalos. Os militares que voltavam das frentes de combate inundaram o mercado de trabalho e, em breve, o meu pai acabou por concluir que lhe restavam poucas opções a não ser trocar de lugar com eles. Passara tempo suficiente entre os informadores clandestinos das corridas de cavalos, apontadores e agentes de apostas para saber que, para si, a aposta mais segura era seguir a carreira militar. Pouco depois de o meu pai se ter alistado, Doug, o irmão mais novo e o seu melhor amigo, teve meningite espinal e morreu antes de ter completado os dezoito anos. Bill Sénior regressou de Alberta mas, mais ou menos um ano depois, Dolly desapareceu de vez. Nunca mais ninguém da família voltou a ter notícias dela.No entanto, deste período acabou por resultar algo positivo

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- um acontecimento que veio alterar a vida do meu pai e que eleconsidera ter sido a sua salvação. Quando se encontrava no quartel de Ladner, o novo recruta foi a um baile local e conheceu umaruiva atraente e bem-disposta. Encontrou em Phyllis Piper alguémque o fazia sentir-se importante. Ela tinha, simultaneamente,uma faceta ferozmente independente, que ele respeitava. Comtoda a razão, achou que, se os dois se casassem e tivessem filhos,Phyllis era uma pessoa que nunca os deixaria.Todos os anos, na véspera de Natal, o meu pai ficava sentado, a olhar para a pilha de presentes e a pensar no caminho que percorrera. É claro que os presentes simbolizavam o sucesso material mas, para além disso, representavam o amor e as relações- uma família nuclear, intacta. Apesar de tudo aquilo por quepassara, Bill Fox tinha conseguido uma coisa importante. Com aminha mãe, ajudara a criar uma família, a cuidar dela e a protegê-la e, no fim de cada ano, os dois até conseguiam pôr algumdinheiro de lado. Pedir mais do que isso seria desejar o impossível. Pelo menos, é isto que julgo que ele pensava quando ficava sozinho, naquelas noites calmas. Com os olhos sempre fixosna árvore de Natal, recostava-se na cadeira, bebia a cerveja doPai Natal, a sua cerveja, e sorria.Não SE PREOCUPEM COM O MICHAELBurnaby, Columbia Britânica - 1971-1972 Em 1968, fomos novamente transferidos. Desta vez - o que constituiu um choque para o meu pai - para o outro extremo do país, para North Bay, Ontário. Pensara em reformar-se em 1971, altura em que já reunia as condições necessárias, e o carácter aparentemente arbitrário daquela última transferência cimentou a decisão. Ao fim de três anos no Leste, o meu pai reformou-se e regressou de vez com a família à Columbia Britânica. Para nós, foi o começo de uma nova vida, uma vida civil, com toda a liberdade e todas as incertezas que isso envolvia.Não fomos os únicos a fazer uma mudança destas. Quase todos os meus familiares adultos, do sexo masculino, tinham seguido a carreira militar e o começo dos anos setenta provocou uma onda de reformas. De todos os cantos do Canadá, todos os ramos da família Piper regressavam às suas raízes no Oeste. Instalados em casas novas, situadas na zona da grande Vancouver, todos a distâncias relativamente curtas uns dos outros, por estrada, os descendentes de Harry e Jenny Piper iniciaram uma série de mini-reuniões comemorativas, que, quase todos os fins-de-se-mana, reatavam as relações interrompidas há tantos anos.No caso das grandes reuniões sociais de que me lembro, quando era criança - aniversários, barbecues no quintal, férias e regressos a casa - a expressão «família e amigos» é redundante. Os amigos mais próximos e mais queridos dos meus pais eram quase todos da família. Não precisavam de grandes pretextos para se juntarem, beberem umas cervejas confortavelmente sentados, comerem uma enorme refeição e ficarem a olhar para os rebentos, uma mão cheia de primos em vários graus, que entravam e saíam da casa onde a tribo se reunira naquele fim-de-semana. «Ou entram ou saem, meninos, entram ou saem. E fechem a porta, pelo amor de Deus. Os vizinhos estão a queixar-se da barafunda.» Era uma das deixas favoritas do meu pai. Quem presidia às festividades, apreciando, talvez mais do que qualquer outra pessoa, o calor e o companheirismo, era a matriarca da família, a Nana.Nessa época, a Nana dividia o seu tempo entre as casas dos filhos que viviam na Columbia Britânica e as longas viagens pelo Canadá para ver os outros. Sempre bem-vinda, lançava mãos à obra para ajudar os adultos e levava sempre presentes para os miúdos. Quando nós nos escapulíamos, para ir à loja dos doces ou ao cinema, a Nana chamava-nos à parte e, discretamente, metia-nos uma nota de dólar no bolso.Eu tinha uma ligação muito especial com a minha avó. Tenho a certeza de que o meu irmão, as minhas irmãs e os meus primos experimentavam um sentimento idêntico mas o meu datava, literalmente, do dia do meu nascimento. Quando as enfermeiras entraram no quarto do hospital de Edmonton, para me pôr, pela primeira vez, nos braços da minha mãe, a Nana estava junto dela.

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— Tu e o Bill já escolheram algum nome?— Bem... — respondeu a minha mãe, afastando o cobertor azul do meu rosto rosado e franzido — Tínhamos pensado em Michael.A Nana não gostou da ideia.— Michael é um nome bonito mas já sabes que toda a gentevai chamar-lhe Mike.— Não forçosamente — argumentou a minha mãe.— Vão pois — garantiu a Nana. — Mas não à minha frente,porque não me agrada nada o nome 'Mike'. Não gosto. Vou chamar-lhe sempre Michael.E assim foi.Depois de o meu pai se ter reformado e de termos regressado à Columbia Britânica, ficámos num apartamento de três quartos, em Burnaby, nos arredores de Vancouver. Situado do lado oposto a uma grande zona comercial com um enorme parque de estacionamento, perfeito para horas sem fim de jogos de hóquei, o complexo de apartamentos orgulhava-se também de ter uma grande piscina descoberta, cuja manutenção deixava um pouco a desejar mas que era ainda mais fixe. O melhor do bairro ficava, porém, a cerca de dois quarteirões de distância: um prédio de apartamentos azul, com três andares e sem elevador, que parecia um caixote e onde a Nana se instalara pouco depois da nossa chegada.Eu deixava de boa vontade de atirar bolas de hóquei contra o estuque da parede da loja de bebidas ou de andar a chapinhar na piscina com os meus amigos, para ir visitar a Nana. Formávamos um duo insólito - um rapazinho de dez anos e uma mulher de setenta e tal - mas não havia nada de que eu mais gostasse do que de andar por ali, enquanto ela se entregava à mais ínfima das suas modestas tarefas. Sentava-me na cozinha e ela contava-me histórias, enquanto ia lavando e arrumando a sua colecção de chávenas e pires. Depois de secar as mãos na bata de trazer por casa, a Nana começava a remexer na sua gigantesca mala de mão, à procura de um rebuçado ou de uma caixa de pastilhas elásticas, que guardara para mim.«Agora, és tu quem vai contar-me uma história», exigia ela.O plano começa com uma panorâmica da divisão, cheia de fumo azulado de cigarros. Estão lá todos, menos o Kenny, que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial mas morreu de cancro em meados dos anos 60, quando tinha quarenta e dois anos. Vêem-se as cabeças desgrenhadas de várias crianças a entrar e a sair do enquadramento, mas a câmara está focada nos pais delas. A fumar os seus cigarros e a beberricar as suas cervejas estão: o tio Stuey, que, como o Kenny, foi libertado de um campo de prisioneiros, no fim da guerra; o tio Albert, que nunca entrou em combate; e a mulher de Al, Marilyn, a conversar com Fio, a mulher de Stu. A panorâmica continua, mostrando a irmã mais nova da minha mãe, Pat, e o marido, Jake, de pé, ao lado dos meus pais. A câmara afasta-se e vê-se que todos eles estão reunidos à volta de um sofá superestofado, no qual está sentada a Nana, a beber cerveja por uma caneca que faz as suas mãos parecer ainda mais pequenas. Ela afasta a caneca da boca, deixando ver um pequeno traço de espuma sobre o lábio superior. Agora, está a dizer qualquer coisa, talvez para consigo mesma, mas mais provavelmente em resposta a uma observação de alguém que não aparece na imagem.Claro que não há som e, por isso, não faço ideia do motivo por que o grupo se ri nem do que está a falar. Mas sei, por experiência própria, qual era um dos temas mais frequentes destas conversas familiares: eu.Em comparação com as outras crianças da família, eu continuava a ser pequeno e notoriamente hiperactivo e, por isso, era considerado quase uma raridade. Os meus pais falavam muitas vezes das últimas voltas e reviravoltas da estranha saga do filho mais novo: um médico recomendara que eu tomasse hormonas de crescimento; um professor insistia para que, por melhores que fossem as minhas notas, a minha ânsia desmedida de estímulos fosse travada com o equivalente da época do Ritalin. (O meu pai rejeitou decididamente as duas sugestões.) Como as aptidões que eu demonstrava apontavam para as artes, ninguém conseguia imaginar que eu viesse a ter um emprego que desse realmente dinheiro.«Não ias ser operário», explica a minha mãe. «Não ias ter uma profissão vulgar. Eram coisas que não estavam de acordo com a tua personalidade, para já não falar

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do teu físico. Eras um sonhador, com tendências artísticas. Quer dizer, ao fim de alguns anos, percebi isso. Mas, sinceramente, na altura, não percebia, porque era uma coisa que não havia na família do lado do teu pai nem do meu.»Por isso, houve muitas coçadelas de cabeça e conjecturas apreensivas acerca do que iria ser o meu futuro. Nessas alturas, a Nana interrompia sempre a conversa.— Não se preocupem com o Michael — dizia, em tomcalmo e seguro. — Vai correr tudo bem com ele. Vai fazer coisasque vocês nem são capazes de imaginar. E, um dia, há-de vir aser famoso.Depois, sorrindo, e sem dúvida com uma piscadela de olho, acrescentava:— E, quando isso acontecer, toda a gente vai conhecê-lo porMichael.Em muitos casos, isto era levado à conta de um favoritismo de avó babada, mas é preciso lembrarmo-nos da posição que a Nana ocupava na nossa família. Afinal, era ponto assente que a Nana tinha dotes psíquicos. Ela tinha tido O Sonho. Naquela manhã, em Ladner, trinta anos atrás, descera as escadas e anunciara que o Stuart estava vivo. Por isso, se a Nana o dizia, quem eram eles para a contrariar? Quero dizer: se, uma manhã, acordassem com o sol a brilhar mas a Nana dissesse «chuva», acreditem que todos eles iam passar o dia a pegar nos chapéus-de-chuva. Assim, por mais improvável que isso parecesse a todos, talvez, afinal, tudo viesse a correr bem para o filho de Bill e Phyl, Mike - Michael.DE REPENTE, NAQUELE VERÃOBurnaby, Columbia Britânica - 1972-1979 22 de Agosto de 1972: Eu estava na piscina quando ouvi as sirenes. Os meus pais tinham ido trabalhar: o meu pai como expedidor, na polícia de Ladner (um emprego pós-reforma); e a minha mãe como escriturária num armazém de frio na zona portuária. Assim, aquele dia de Verão era como um cheque em branco que eu podia preencher como me apetecesse. Podia ter ido ao cinema - A Conquista do Planeta dos Macacos estava em exibição pela segunda ou terceira vez - e, depois, dado uma volta até ao lago, na minha nova bicicleta de assento lustroso e guiador alto. Mas estava muito calor e, por isso, tinha optado pela água fresca da piscina. Talvez, mais tarde, fosse visitar a Nana, pensei, e cravar-lhe o almoço.Era quase meio-dia quando as sirenes começaram a tocar; lembro-me de me ter sentido inquieto ao ouvir aquele som. Saí da piscina, agarrei na toalha, abri o portão da vedação que rodeava a zona e subi as escadas para o nosso apartamento, que ficava no segundo andar.Mal tinha tido tempo para me secar e vestir, quando o telefone tocou. A minha mãe disse que ia sair cedo do emprego. A Nana tinha tido um ataque cardíaco.A Nana foi a primeira pessoa minha conhecida a morrer -nao um actor nem um político americano, mas uma pessoa que eu amava, alguém cuja voz, o toque ou o riso que me eram tão familiares como os meus. Do pai do meu pai guardo apenas uma vaga lembrança - ir por um passeio, ao lado de um homem magro e simpático, mais velho, que me segurava na mão - mas só tinhatrês anos quando ele morreu. Agora, tinha onze e a morte da Nana foi a minha primeira experiência de perda. Durante algum tempo - dias? semanas? um mês? - sempre que uma porta se abria eu vibrava, na expectativa irracional de ver entrar a Nana, e sonhava que ia ter com ela, a casa dela. O pior eram as alturas em que, por instantes, julgava que a tinha visto, nos armazéns Woolworth ou através da janela de um autocarro que passava. Acabava por cair em mim e ficar, simplesmente, triste.Com o tempo, assimilei a perda da Nana. Acabei o ensino básico e preparei-me para o secundário. Os meus pais tinham uma posição económica mais segura no mundo civil e, pela primeira vez, puderam começar a pensar em comprar uma casa. A vida continuava.Nos anos seguintes, porém, a Nana continuou a fazer parte da minha vida. Num sentido geral, sabia que ela pensava que eu era um miúdo fantástico; que me amava e me compreendia melhor do que qualquer outro dos adultos que fazia parte do meu mundo. Não me apercebera, contudo, até que ponto ela tinha sido a minha protectora, a minha ponte para o mundo dos outros adultos, incluindo o meu pai. E, mesmo depois de a Nana ter morrido, a fé que ela tivera em mim manteve-se. A sua convicção de que eu era diferente, de que precisava de uma atenção especial,

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tornou-se uma dádiva póstuma, um fundo de garantia emocional, que, embora por vezes com algumas dúvidas, os meus pais geriam escrupulosamente.UM APERTO DE MÃOA Nana não foi a única pessoa a acreditar piamente que eu estava destinado a ter um futuro brilhante. Eu e ela estávamos absolutamente de acordo quanto a este ponto. Em criança, não definia o sucesso em termos monetários nem materiais, mas costumava dizer aos meus pais que, um dia, ia comprar um carro novo para cada um deles e uma casa grande para vivermos todos. Eles sorriam e abanavam a cabeça. Às vezes, estes assomos de orgulhodesmedido não eram muito engraçados. Quando arrumava o meu quarto, depois de inúmeros pedidos para ser eu próprio a fazê-lo, a minha mãe perguntava:— Pensas que vais ter sempre alguém para te fazer isto, durante toda a tua vida?— Bem... penso que sim... quer dizer, vou pagar a alguém para fazer isso.Na minha ideia, estava só a ser honesto. Por isso, ficava bastante confuso, quando ela segurava no pano do pó com as duas mãos e parecia ter vontade de o enrolar à volta do meu pescoço magrizela.Como é que eu planeava alcançar essa vida de lazer? Tal como a maior parte dos miúdos canadianos, eu jogava hóquei com um ardor religioso e o hóquei constituía a nossa única via realista de acesso à fama e à fortuna. Como era pequeno, estava sempre a apanhar pancada (quanto cheguei à adolescência, tinha levado mais de uma dúzia de pontos na cara e partido uma quantidade de dentes). Apesar disso, empenhava-me a sério no jogo. Para ser realista, as minhas hipóteses de me tornar num novo Bobby Orr (na altura, Wayne Gretzky não passava de um miúdo ranhoso) eram entre fracas e nulas, mas não era proibido sonhar.Talvez a fé que eu depositava em mim mesmo se devesse ao reconhecimento de que conseguia fazer as coisas com grande facilidade. A escola foi canja, especialmente quando se tratava de escrever; era isso o que parecia deixar os adultos (como a Nana) mais entusiasmados. Com cinco ou seis anos, já escrevia longos poemas épicos de várias estrofes sobre as minhas aventuras, reais e imaginárias, e, mais tarde, passei a escrever contos, ensaios e críticas de livros que mereceram louvores.Mas também tinha outras paixões. Antes de eu entrar para a escola, quando voltava das suas viagens o meu pai trazia sempre presentes para todos os filhos; os meus eram quase sempre grandes livros com gravuras. Mais tarde, o meu pai contaria, espantado, que eu lia um livro do princípio ao fim e, a seguir, agarrava num papel e num lápis e, com toda a facilidade, reproduzia as gravuras página após página, sem copiar por cima, comtodos os pormenores. Assim começou uma paixão para toda a vida pela banda desenhada, incluindo as caricaturas, que deliciavam, muito de vez em quando, ou ofendiam, com mais frequência, os amigos e a família.A música era outra das minhas obsessões. Devo ter sido o único miúdo de oito anos a ficar entusiasmado, quando o Eric Clapton e o Steve Winwood se juntaram e formaram o super-grupo Blind Faith. Chateei os meus pais a pedir uma guitarra e, certo Natal, encontrei uma Fender reluzente, com amplificador e tudo, debaixo da árvore. Aprendi a tocar sozinho, ouvindo os LP do meu irmão.Talvez fossem estes os feitos que a Nana tinha em mente, quando fazia os seus sermões tranquilizadores; ou talvez não. Pela minha parte, nunca pensei no sucesso em termos de qualquer capacidade específica. Só sabia que havia uma série de coisas divertidas para fazer neste mundo e que eu era bastante bom em algumas delas.Lembro-me de me sentir ansioso por entrar para o secundário, sobretudo por duas razões: a primeira era as centenas de miúdos que, em breve, iriam entrar no meu pequeno mundo, oriundos das escolas primárias das redondezas, e a segunda as disciplinas facultativas. Estas davam aos alunos a oportunidade de escolherem o que queriam estudar. Uma enorme responsabilidade. Implicações graves. Ponderei tudo isto e escolhi teatro e guitarra. Os meus orientadores e os meus pais não ficaram muito entusiasmados mas eram estes os meus centros de interesse e, igualmente importante, era onde estavam as raparigas.As aulas de guitarra eram só umas luzes, umas noções realmente básicas, dedilhar o «Alley Cat», do Big Note Songbook. Mas foi nessas aulas que fiz um amigo que me ajudou a perceber as minhas ambições musicais. Andy Hill andava no ano a

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seguir ao meu e já era o rei indisputado da escola secundária de Edmond. Praticante de quatro modalidades - hóquei, basquetebol, râguebi e marcha - as suas proezas atléticas ficavam a perder de vista perante as suas capacidades, adquiridas à sua própria custa, no domínio da música. Tocávamos as improvisações de guitarra de Keith Richards, ficando eu geralmente no lugar de aprendiz, quando as sessões acabavam. No fim do primeiro semestre, tínhamos formado um grupo chamado Halex, como as bolas de pingue-pongue. No princípio da adolescência, já andávamos de um lado para o outro - a tocar em escolas, bases da marinha e em dois ou três outros sítios onde nem sequer podíamos entrar porque ainda não tínhamos idade legal. A meu ver, o rock and roll era uma aposta muito mais realista do que a Liga Nacional de Hóquei. Claro que, para todas as outras pessoas do meu mundo canadiano da classe trabalhadora, um mundo com o qual eu me sentia cada vez menos em sintonia, estas duas fantasias eram igualmente ridículas.Mas havia também as aulas de teatro. Antes do secundário, eu tinha entrado em algumas peças e descobrira, se não uma paixão, pelo menos uma grande afinidade com o teatro. Decorar as falas era fácil. E adorava as gargalhadas e a atenção. No secundário, dispondo de material mais interessante e estando mais concentrado no assunto, senti-me cada vez mais atraído para a comunidade teatral da escola.Foi então que tive uma verdadeira revelação: descobri que, com um esforço reduzido, era efectivamente capaz de me transformar em qualquer personagem que tivesse que representar. Numa altura em que, cada vez mais, tinha dificuldade em acompanhar os vários códigos de comportamento - escola, família, grupinhos sociais - representar proporcionava-me liberdade, obrigava-me mesmo a seguir os meus impulsos, a comportar-me da maneira que achasse melhor, desde que isso fosse bom para o papel. Excelente!Participei em todas as novas produções da escola, acabando mesmo por me juntar à companhia itinerante da escola, o que significou passar uma boa parte do meu tempo com o professor de teatro da secundária de Edmond, Ross Jones. O Sr. Jones era um desses a«íz'-professores carismáticos à volta dos quais tendem a gravitar os alunos da área das artes - cabelo comprido, bigode descaído, olhos raiados de vermelho - e tão subversivo que até nos deixava tratá-lo por Ross. Tal como a maior parte dos professores de teatro que conheci, o Ross era um actor frustrado, que se entusiasmava com os alunos que demonstravam ter aquele potencial de que, em relação a si próprio, sentia não ter tirado todo o partido. Insistiu comigo para eu levar o mais longe possível os meus estudos de teatro.— Pode ser esse o teu futuro, Mike.Eu ri-me.— Está a sonhar, Ross. Representar não é trabalho. Nãoposso viver disso... não é como o rock and roll.Enquanto frequentei o secundário, andei quase sempre com a cabeça nas nuvens, explorando o teatro, a música, a arte. Do ponto de vista académico, contudo, era outra coisa - uma porcaria, na opinião do meu pai. As minhas notas desciam vertiginosamente; os poucos Muito Bons que trouxe para casa ficaram memoráveis. Se se tomassem como indicadores os meus resultados escolares do secundário, eu não ia propriamente causar grande impacto neste mundo - pelo menos não no mundo real.Claro que era um excelente aluno nas disciplinas criativas; tinha sempre Muito Bom em teatro, música, escrita criativa e em várias disciplinas de opção como o desenho, a pintura, a estampagem, etc. Mas nas disciplinas que assentam em regras fixas, como a matemática, a química e a física, as minhas notas eram uma desgraça.Lembro-me bem da expressão exasperada da minha mãe quando chegava o boletim escolar e eu tentava explicar-lhe isto.— São coisas absolutas, mamã. São chatas. A matemática, por exemplo: dois e dois são quatro. Ou seja, isso já está nos livros, não é? Já houve alguém que resolveu o problema. Então, para que é que precisam de mim?A minha mãe suspirava e tratava de assinar o boletim escolar antes de o meu pai chegar a casa.Quando começaram a aparecer bandeiras vermelhas na frente escolar, o meu pai, como bom especialista de transmissões do Exército, meteu mãos à obra. Um ano

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passado à tangente ou um telefonema da escola relacionado com uma ida ao gabinete do director davam azo a uma dura reprimenda do meu pai, seguida deum interrogatório cerrado sobre em que diabo andava eu a pensar, e a uma intimação para parar imediatamente com aquilo e não repetir a graça. Em sentido estrito, o fracasso do meu desempenho não era rebelião; não era motivado por raiva contra os meus pais nem contra ninguém. Na verdade, sentia-me tão surpreendido como eles por não ter melhores resultados na escola. Apesar disso, ao longo do ensino secundário, as minhas notas foram piorando. As represálias imediatas do meu pai, dantes automáticas, foram-se tornando mais raras, à medida que ele reconhecia a futilidade destas. Em vez disso, passou a comprimir os lábios, a abrir os braços num gesto de desalento e afastar-se com um ar digno - isto, quando eu não me escapulia primeiro.Eu preferia evitar o confronto. Durante a adolescência, isso significou evitar o meu pai tanto quanto possível. A minha abordagem essencial à vida, a minha predilecção por planar sobre ela, era obviamente a antítese da sua. Ele não conseguia perceber. Eu não procurava alardear deliberadamente os meus pontos de vista antagónicos. Fazê-lo seria provocar a sua cólera e isso era a última coisa que eu queria fazer. Mas conseguia dizer coisas, aparentemente inócuas que, num abrir e fechar de olhos, transformavam a nossa conversa num discurso unilateral de rebelião.Graças a uma distanciação de vários anos, sou hoje capaz de ver as duas forças poderosas que se encontravam em jogo, os dois campos de gravidade a que já me referi: o pragmatismo do meu pai, posto à prova no terreno da luta, e a fé idealista da Nana no destino. Agora, parece-me óbvio que a minha reacção à morte dela foi fazer tudo quanto estivesse ao meu alcance para aumentar a minha distanciação relativamente à vida prática. De uma forma instintiva, eu resistia a todos os esforços destinados a enquadrar-me no padrão rotineiro que os meus pais e, antes deles, os seus pais tinham adoptado.Assim, entre o meu pai e eu instalou-se uma frieza desconfortável. Quando ele começou a limitar-se a abrir os braços num gesto de impotência, o facto não significou que eu o tivesse vencido pela persistência - no fim de contas, eu era o quarto decinco filhos. Penso que o cerne da questão tinha a ver com os próprios limites interiores do meu pai. O mais importante para ele era a segurança dos filhos, e isso implicava que estes desenvolvessem um sentido preciso daquilo que se esperava deles neste mundo, preparando-se para desempenharem papéis úteis numa sociedade que, de acordo com a sua experiência, não iria facilitar-lhes as coisas. Era este teste que eu não passava e ele não era capaz de descobrir uma maneira de me fazer entender o que estava em jogo.Isto não significa que o meu pai não tivesse orgulho nos meus feitos criativos. Ele e a minha mãe assistiam a todas as peças de teatro em que eu entrava e, pelo canto do olho, via-os sempre na primeira fila. E, quando não conseguia ver a cara dele radiante de prazer, ouvia as suas gargalhadas, que se sobrepunham às de todas as outras pessoas. Até se vangloriava das minhas façanhas musicais junto dos colegas de trabalho; um dia em que fui com a minha mãe buscá-lo ao emprego, fiquei muito surpreendido quando todos os polícias começaram a dar-me pancadinhas nas costas, a despentear-me o cabelo, que me chegava aos ombros, e a referirem-se a mim como «o puto do Halex».Para o meu pai, o rock and roll - ruidoso, ininteligível e anti-social - era um anátema. Apesar disso, assistiu a dois ou três espectáculos do nosso grupo, embora tivesse sempre ficado ao fundo da sala, tão afastado do som quanto era possível sem sair porta fora. Uma vez em que se deixou ficar, depois do concerto, a ver-nos arrumar o material, começou a fazer-me perguntas acerca dos enormes amplificadores que estávamos a carregar na carrinha. Expliquei-lhe que eram alugados, a 250 dólares por noite. «Quanto é que tu recebes?», perguntou. «100», respondi, num assomo de satisfação. Ele corou, mordeu os lábios e vi-o lutar para não perder a compostura. «Vamos lá ver se eu percebo. Vocês têm que alugar equipamento para fazer um trabalho que nem sequer rende o suficiente para pagar o aluguer do equipamento de que precisam para fazer esse trabalho?» Os braços fizeram uma vez mais o gesto habitual de desânimo. E lá se foram as tréguas.

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Uma vez, tive um emprego a sério. No Verão de 1976, tinha eu quinze anos. A minha mãe fez uma tentativa de diminuir as preocupações do meu pai e, ao mesmo tempo, de me empurrar suavemente para uma forma mais responsável de encarar o futuro. Houve uma vaga para o período das férias, no escritório do armazém de frio onde ela trabalhava - na verdade, uma vaga de paquete. Passei o Verão no escritório dela, a fazer café, uns pequenos trabalhos de escrita e de arquivo. Lá em baixo, nas docas, os barcos de pesca descarregavam peixe fresco e os seus capitães preenchiam requisições de armazenagem, que eu depois levava lá a cima, ao escritório.Ganhei 600 dólares por dois meses de trabalho, um feito pelo qual os meus pais me felicitaram profusamente. O contentamento deles evaporou-se num instante, quando eu gastei os 600 dólares na substituição da minha guitarra eléctrica, uma cópia japonesa, por uma guitarra a sério: uma Fender Telecaster de 1967, com caixa de madeira, que comprei a um velho músico de jazz através dos anúncios classificados.Os meus pais podem ter achado desconcertante a música (e o lado económico) do meu grupo mas, no seu entender, havia um lado positivo no meu envolvimento com o Halex: o Andy Hill. Bom aluno, vedeta de atletismo e respeitável filho de um conhecido cirurgião ortopédico, o Andy era exactamente o tipo de rapaz de que os pais gostam para companheiro do filho. E, diga-se de passagem, ele era exactamente o tipo de rapaz que qualquer um gostaria que o filho fosse.Eu não fazia apenas parte da banda do Andy, também fora aceite no seu círculo social, uma comunidade ultra-empreende-dora que incluía os melhores e os mais inteligentes de South Burnaby. A maior parte deles eram filhos e filhas de médicos, advogados e membros de outros grupos profissionais equivalentes e viviam na zona cara de Buckingham. Ir de bicicleta do meu bloco de apartamentos, passando pela zona comercial e pela velha escola do ensino básico e, depois, passar pela avenida ladeada de árvores que assinalava a fronteira deste enclave, era entrar noutro universo. Eu ia a casa dos meus novos amigos, que me pareciampalácios, nadava nas piscinas dos seus jardins e ensaiava a minha música nas salas de jogos das caves. Em casa do Andy, havia uma sala para uso exclusivo dos Halex; as paredes eram à prova de som, isoladas por cerca de dez centímetros de cortiça.No entanto, na altura, cheguei a ressentir-me do sentimento de liberdade e das oportunidades que aqueles miúdos tinham herdado dos pais. Quando completei os dezasseis anos, já começara a afastar-me do grupinho de Andy e, também, da banda.Na escola, havia outros rapazes com quem eu tinha mais em comum, pelo menos do ponto de vista sócio-económico, e comecei a passar mais tempo com eles, tanto na escola como fora dela. Era um grupo mais irrequieto. No essencial, eram bons rapazes (alguns deles continuam a ser meus amigos) mas mais abertamente rebeldes - cabelos mais compridos, música em volume mais alto e menos conformistas. Uma noite de sexta-feira com o Andy seria passada a ouvir todas as canções do Who s Next até muito tarde, enquanto uma noite em casa do meu amigo Bill incluía o ritual de fumar um maço de cigarros inteiro e de dar conta de uma caixa de cervejas.Os tempos tinham mudado. Eu já não me limitava a afastar-me dos padrões de comportamento geralmente aceites, para seguir as musas; agora, talvez impulsionado pela audácia derivada do meu gosto recentemente adquirido pela cerveja, rejeitava-os por completo. Além de fumar e beber, arranjei outro hábito. Já tirara a carta e tornei-me especialista em derrubar cercas, infligindo estragos de vários graus aos carros dos meus pais, sempre que tinha essa oportunidade. Apresentava todos os sintomas clássicos do adolescente em queda livre - atravessava o deserto da adolescência. Que me terá feito parar?SAIR DAQUI PARA FORA E VENCERDurante toda a minha vida, sempre foi meu hábito arrancar uma vitória no próprio limiar de uma derrota vergonhosa. Então, tal como viria a acontecer por várias vezes no futuro, quando o chãoparecia estar a fugir-me debaixo dos pés que nem pedras soltas a rolar pela encosta de uma montanha, conseguia firmar-me numa saliência que me permitiria alcançar pontos mais altos.

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Vejamos um exemplo: porque haveria o meu pai de continuar a deixar-me conduzir os carros dele, se eu os devolvia sempre com amolgadelas e farolins partidos? Para começar, pedia imensa desculpa. Depois, arranjava maneira de os estragos serem reparados e pagava os arranjos prontamente e na totalidade. Porque estava outra vez a trabalhar. Não no armazém de frio, mas num novo emprego - o emprego que iria continuar a ter ao longo dos vinte e cinco anos seguintes.Um dia, no Verão de 1977, o nosso grupo de teatro estava a arrumar os acessórios e os cenários que íamos utilizar num espectáculo que daríamos nessa tarde, numa escola primária local. Ross Jones estava a falar ao telefone, no gabinete - uma despensa reconvertida, por trás da sala de aulas de teatro. Chamou-me e entregou-me um recorte de jornal. Era o anúncio de um casting para um novo programa televisivo da CBC - Canadian Broadcasting Corporation.— Andam à procura de um rapazinho esperto de doze anos— disse ele. — E eu pensei que tu eras o miúdo de doze anos maisesperto que, alguma vez, eles podiam encontrar.O Ross sempre dissera que, um dia, a minha altura e o meu ar de miúdo ainda haviam de ser uma bênção.— Falei com eles e vão receber-te no fim desta semana.Fiquei mudo mas intrigado e, por estranho que pareça, senti-me imediatamente confiante. O Ross tinha razão. Eu podia agarrar esta oportunidade.— A propósito, Mike — disse ele, quando me mandou embora — não precisas de te preocupar com os meus dez por cento.Sorri. Não fazia a mínima ideia do que ele estava a falar.Era uma grande audição aberta, «juntar o gado», como se diz na gíria do mundo do espectáculo, para escolher um miúdo que seria o actor secundário da nova sitcom da CBC, Leo & Me, e as probabilidades eram de uma para mil. Eu queria fazer aquilo, mesmo que isso significasse fazer o papel de um miúdo de dozeanos. O Ross tinha razão: ali estava a recompensa por todos aqueles anos de piadas de segunda. À medida que o dia dos testes se aproximava, a minha confiança aumentava. A minha mãe deu-me uma boleia para os estúdios da CBC, no centro de Vancouver. Quando entrámos, a recepcionista entregou-me um guião. Olhei em volta da sala, repleta de miúdos cheios de esperança com as respectivas mães babadas, à procura de duas cadeiras para nos sentarmos e eu poder estudar as minhas deixas. Li as palavras que enchiam as páginas, percebi rapidamente onde estavam as piadas e, em silêncio, fui tentando ensaiá-las.A recordação que a minha mãe guarda desses momentos é esta:— Estavam lá aqueles miúdos todos com as mães a compor-lhes o cabelo, mas tu nem me deixaste tocar no teu. Os miúdosestavam a ensaiar as falas com as mães e, por isso, perguntei-te:'Queres ensaiar as falas comigo?' 'Não. Eu estou bem. Eu estoubem.' E encaraste tudo com uma grande calma.Leo & Me, explicou o realizador, ia ser uma comédia de meia hora acerca de um jogador de trinta e tal anos, que vivia num iate em muito mau estado que ganhara ao póquer. A vida de playboy de Leo fica de pernas para o ar, quando, inesperadamente, lhe é confiada a tutela de um sobrinho de doze anos, Jamie - o «me» do título da série. Nem sequer me dera ao trabalho de pensar na forma de dizer ao realizador, aos produtores e a todos os outros tipos da estação de televisão presentes na audição, que, na verdade, eu não tinha doze anos mas dezasseis. Seria isso um problema? Depois do meu teste, de que eles gostaram, a questão foi discutida. Eu deixei escapar que tinha ficado muito chateado, depois de ter chumbado pela segunda vez o exame para a carta de condução.— É discriminação — disse eu, furioso. — No mesmoinstante em que uma pessoa põe uma lista telefónica no assentodo condutor, eles põem logo uma cruz no quadradinho correspondente a «chumbado».Fizeram-me várias perguntas sobre o que acontecera a seguir e, à medida que eu ia revelando mais pormenores humilhantes, mais eles achavam a história hilariante. Quem é que vai querersaber que idade é que este rapaz tem?, devem ter pensado. É levado dos diabos.— Quando recebeste a resposta e conseguiste o papel, foi incrível — diz a minha mãe, encantada. — Eu nem queria acreditar.Ela não acreditava, mas eu sim.

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Além deste papel na série, que ia começar a ser filmada no fim do Verão, ofereceram-me também o papel principal noutro projecto, um filme para a televisão cuja produção ia começar pouco depois de eu acabar a escola. Foi assim: muito fácil. No ano anterior, ganhara 600 dólares por um Verão inteiro de trabalho: agora, ia ganhar 600 dólares por semana. Naquele Verão, entre os oito episódios de Leo & Me e o filme para a televisão, meti ao bolso quase seis mil.Falo do dinheiro porque, quando as pessoas me perguntam por que motivo, entre os meus vários focos de interesse, acabei por escolher ser actor, costumo rir-me e optar pela resposta fácil mas essencialmente honesta:— Foi a primeira coisa pela qual me pagaram dinheiro quese visse.Em 1977, para um rapaz de dezasseis anos, da classe média baixa canadiana, filho de um militar, seis mil dólares era uma carrada de dinheiro. Mas isto é apenas uma parte da resposta.Gostei da experiência, do processo criativo e, mais do que tudo, do ambiente de trabalho do estúdio. Pela primeira vez, fui aceite como um igual entre adultos - pessoas com muito mais experiência do que eu, que reconheciam em mim capacidades que eu desconhecia ter e que me ajudavam a cultivá-las. E isto aplica-se não apenas aos colegas actores, aos produtores e realizadores, mas também ao número aparentemente sem fim de pessoas - electricistas, engenheiros de som, operadores de câmara, cabeleireiros e maquilhadores e todos os outros - que são precisas para fazer um espectáculo de televisão.Quando as câmaras não rodavam, estávamos sempre a rir e o tom daquele humor era muitas vezes mais negro, mais complicado e irreverente do que qualquer outro que eu já ouvira. Aqueles artistas e técnicos viviam a quilómetros de distância dossombrios e sérios locais de trabalho a que a maior parte dos adultos que eu conhecia se tinha resignado. Eram as pessoas contra as quais o meu pai me tinha posto em guarda. Senti-me em casa.No Outono de 1977, entrei para o secundário superior (que, no Canadá, começa no décimo primeiro ano), com uma confiança renovada - não na minha capacidade de atingir um melhor nível de classificações académicas, mas na convicção de que, mais que nunca, a escola era irrelevante para mim. Ao longo do décimo primeiro ano continuei a aceitar trabalhos de actor, anúncios, trabalhos na rádio e participações esporádicas noutras séries televisivas da CBC. Cada vez era mais difícil conciliar a minha incipiente carreira de actor com as exigências da escola, que, cada vez mais, considerava sem sentido. Lá me fui desembaraçando, embora, no fim do último semestre, ainda estivesse tecnicamente a alguns pontos de completar o décimo primeiro ano. Se quisesse obter o diploma do secundário, como os outros alunos da turma de 1979, ia ter que repetir algumas disciplinas no Outono. Se o décimo primeiro ano era difícil, o décimo segundo ia ser de arrasar.Antes disso, porém, aproveitando o que restava do Verão depois de Leo & Me estar acabado, decidi gastar parte do dinheiro ganho numa viagem à Califórnia, a minha primeira viagem. No ano escolar anterior, tinha feito um novo amigo chamado Chris Coady, que era finalista. Tão brilhante como o Andy Hill mas com uma faceta mais rebelde, Coady tinha uma irreverência e um sentido de humor retorcido que o tornavam o companheiro ideal para mim. Os Rolling Stones iam estar na Califórnia, em Agosto, apresentando o espectáculo Some Girls com que andavam em tournée, e nós planeámos ir ver o grupo ao Anaheim Stadium. O Chris tinha pouco dinheiro e eu paguei a maior parte da viagem - os bilhetes de avião, o quarto do motel perto da Disneylândia - e foi uma festa. «Vivendo à grande no Hotel Califórnia»1, ficávamos junto à piscina, a beber a aguada cerveja americana e a conversar com raparigas que, como nós, tinham1 «Hotel Califórnia», êxito do grupo The Eagles. (N. da T.)vindo de diversas partes do mundo para ver os Stones. No dia do concerto, tínhamos gasto quase todo o dinheiro e demos o que restava aos açambarcadores de bilhetes. Nos dois últimos dias, estávamos completamente falidos e o nosso único sustento foi chocolate quente, que arranjávamos num café, com uns cupões de oferta que surripiávamos no átrio do motel. Claro que eu não fazia a mínima ideia que, no Verão seguinte, estaria a viver na Califórnia. Aqueles dois dias

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de pobreza relativa foram um prenúncio dos dois ou três anos de verdadeiras dificuldades económicas que, em breve, iria atravessar.Durante a maior parte daquele Outono, pelo menos ostensivamente, eu ia à escola durante o dia e, à noite, desempenhava um papel numa peça que foi um grande sucesso e que esteve muito tempo em cena no Vancouver Arts Club, a mais prestigiada companhia profissional da cidade. E isso significava trabalhar até muito depois da meia-noite, todas as noites. De manhã, saltava da cama exausto, fazia o número do agora-vou-para-a-escola, metia-me na minha carrinha nova e ia até ao parque mais próximo. Encostava à sombra de um carvalho, pescava uma almofada de espuma da cabina, colocava-a sobre a cama da traseira da carrinha e voltava a dormir.A primeira aula da manhã era teatro e, na altura, o sempre protector Ross Jones ficara para trás, a dar aulas aos mais novos, pelo que dei comigo na estranha situação de receber críticas favoráveis como actor profissional, ao mesmo tempo que perdia o ano por faltas, no curso de teatro da escola secundária. Claro que chamei a atenção da professora de teatro para a ironia que isso representava, argumentando que a minha experiência de trabalho devia ser tida em conta. Mas ela não se comoveu.Em Novembro, tornou-se óbvio que eu ia chumbar em quase todas as disciplinas. Tudo o que se relacionava com a escola tornara-se uma farsa. Falei com os meus pais e disse-lhes que, na verdade, queria acabar o curso desde que o preço a pagar não fosse desistir da carreira promissora que tinha encetado. A minha mãe pediu-me que não desistisse e obrigou-me a prometer que, se ela e o meu pai conseguissem chegar a um acordo com a escola - para que a experiência de trabalho fosse tida em conta, com aulas particulares e exames de segunda chamada - eu faria o meu melhor. Espantosamente, o meu pai entendeu a minha frustração melhor do que a minha mãe. Eu estava a ganhar a vida. Na verdade, ele teria sido o primeiro a admitir que eu ganhava mais dinheiro por ano do que ele. Assim, os meus pais concordaram em lutar do meu lado e prometeram que, se não fosse possível negociar um acordo, apoiariam a minha decisão de deixar a escola e trabalhar a tempo inteiro.A direcção da escola recusou-se a ceder e, para meu alívio e surpresa, os meus pais mantiveram a palavra dada. Apesar de o sonho deles ter sido sempre que um dos filhos fosse para a universidade, apoiaram a minha decisão de abandonar a escola.Porque me terão deixado fazê-lo? A verdade é que uma parte do crédito cabe à Nana.— Não tínhamos qualquer razão para duvidar de que aquiloque a Nana tinha dito que ia acontecer eram aquelas oportunidades, as peças e o trabalho na CBC — diz, hoje, a minha mãe.— A Nana tinha sido tão firme na sua fé que, se não nos tivéssemos aguentado e apoiado a tua decisão, eu ia sentir que estávamos a desapontá-la. A ela e a ti. Foi por isso que eu e o teu paidissemos: 'Vai em frente.'Com a aprovação da minha mãe e do meu pai, anunciei que não ia voltar às aulas na Primavera. Dei a volta à escola, recolhendo as minhas coisas e dizendo adeus aos amigos e aos professores com quem ainda falava. As dúvidas deles quanto à sensatez da minha decisão foram quase unânimes. Lembro-me, em especial, das palavras que troquei com um professor de ciências sociais.— Estás a cometer um grande erro, Fox — disse ele. — Nãovais continuar a ser sempre assim tão engraçado.Fiquei a pensar naquilo por alguns instantes e, quando me voltei para sair da aula dele - da escola e, muito em breve, do Canadá - atirei-lhe um sorriso e respondi, num tom ponderado:— Talvez pelo tempo suficiente, professor. Talvez continuepelo tempo suficiente.

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CAPÍTULO TRÊSHollywood High1Interestadual 5, EUA - Abril de 1979É mesmo uma ideia insólita para um filme sobre companheirismo, uma espécie de filme intergerações do tipo «pela estrada fora» de Farley-Spade, de fins dos anos 70: o meu pai e eu,Trocadilho entre high - estar na maior - e o nome de uma escola de cinema da Califórnia, Hollywood High.guiando durante a noite, com destino à Califórnia, a caminho de Hollywood e da minha tentativa de me lançar em altos voos. No retrovisor, via-se o meu grande companheiro, o meu pai, com os seus 112 quilos contorcidos no banco traseiro do nosso Dodge Aspen, de 1977. Aproveitara para fechar os olhos, enquanto eu fazia o turno da noite na condução, seguindo as curvas traiçoeiras da Interestadual 5 através da cordilheira Cascade, no Oregon. íamos apanhar o sol ao chegar às colinas menos inóspitas da Califórnia. Agora que ele estava a dormir, já podia mudar a estação do rádio, que estava sintonizado num serviço noticioso de vinte e quatro horas. Sintonizei-o na única estação que não tinha estática e que transmitia música - os novos Doobie Brothers. «What a fool believes, he sees» - cantarolou Mike McDonald, «no wise man has the power to reason away».Lembro-me de, nessa noite, ter pensado na mudança que se dera nas minhas relações com o meu pai, nas últimas semanas. O facto de ele me acompanhar a Hollywood, depois de ter passado anos a encarar as minhas ambições com um franzir de sobrolho céptico, era uma viragem que eu nunca podia ter imaginado. Claro que a sua decisão de me deixar pôr a escola de lado era também uma faca de dois gumes: era obviamente uma prova de apoio, mas eu sabia que, ao mesmo tempo, era um desafio -mostra-o-que-vales-ou-cala-o-bico. No entanto, ele tinha dado uma volta interessante ao lugar-comum do meu sonho de fuga (abandonar a escola e partir para a América em busca de fama e de fortuna): já que eu ia ser um fugitivo, pelo menos ia ser um fugitivo com motorista.Naquele mês de Abril, a parte mais difícil foi a decisão de partir. Significava desistir de um trabalho que já tinha aceite para a Primavera e para o Verão, em Vancouver: uma produção de Huckleberry Finn para a televisão alemã. Mas Toni Howard, uma directora de casting de Los Angeles que eu conhecera num trabalho anterior, convencera-me de que a altura de passar ao ataque era aquela. Ela achava que eu tinha uma vantagem: os produtores americanos estariam desejosos de contratar um actor com experiência mas com um ar tão jovem que podia fazerpapéis de criança, uma vez que as leis do trabalho tornavam muito dispendioso o recurso a actores com menos de dezoito anos. A Primavera era também a altura dos castings para os episódios-piloto para as séries de televisão. Eu estava tão confiante que o meu destino era uma carreira em Hollywood, que não foi preciso muito para me convencer. Mas, como só fazia dezoito anos em Junho, precisava que os meus pais apoiassem o meu plano - e isso parecia-me uma coisa inconcebível. A minha mãe:— Tens a certeza de que é isso que queres fazer? Eu:— A certeza absoluta. O meu pai:— Tens ideia daquilo de que estás a desistir, não tens? Tensassim tantas certezas?Eu:— A certeza absoluta.E, aí, o meu pai deixou-me realmente espantado.— Bem, se queres mesmo ser lenhador, mais vale ires parao raio da floresta.O meu pai não se limitou a concordar em ir comigo até L. A.: também pagou toda a viagem com o cartão Visa.— É um adiantamento para o meu plano de poupança-reforma — disse, a brincar.Eu não podia ter sido mais rápido na resposta:— Combinado.E foi assim que partimos para o raio da floresta.Los Angeles - Abril de 1979

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Mal nos instalámos no quarto do Westwood Holiday Inn, no Wilshire Boulevard, corri para o telefone, para confirmar encontros com agentes que me disseram que sim, que a Toni tinha telefonado e que eles estavam à espera da minha chamada. O meu pai disse que me levava e trazia de carro às entrevistas - a sua maneira de dizer que o espectáculo era meu e não dele.A minha compostura foi posta à prova numa entrevista particularmente memorável. A agente sentada à minha frente não parecia nada entusiasmada com a perspectiva de me representar. No gabinete pairava o desconforto, qual nuvem de metano. Fosse lá pelo que fosse, ela não era capaz de me olhar nos olhos - estava sempre a olhar para os meus pés. Por fim, arranjou coragem para dizer o que estava a pensar, interrompendo uma das minhas tiradas mais espirituosas.— Oiça, Michael, você tem muito bom aspecto, é divertidoe encantador. A Toni disse coisas maravilhosas a seu respeito,por isso, sei que tem talento. Só não percebo porque é que elanão disse... ou seja, eu não estava à espera... pronto, não sabiaque você tinha uma deficiência.E, dito isto, os olhos dela voltaram a fixar-se nos meus pés.— Mas não tenho. Pelo menos, penso que não.— Então, porque é que usa sapatos ortopédicos? Ficámos os dois a olhar para os meus pés. Não eram sapatosortopédicos. Na verdade, nem sequer eram sapatos, eram botas -umas botas pretas e duras, de plataforma, com uns saltos de oito centímetros e umas solas de quatro - uma altura que, na minha conceituada opinião, estava muito na moda nos anos 70. Envergonhado, consegui rir e garantir-lhe que o meu único defeito era ter uns centímetros de altura a menos - e também, como me apercebi num relance que me pôs doente, vários anos de atraso em relação aos padrões da moda da Califórnia. De qualquer modo, a nuvem dissipou-se rapidamente e o resto do encontro correu bem.Depois de ir ter com o meu pai à sala de espera do escritório, fomos a um café e sentámo-nos num compartimento reservado.— Esta também quer representar-me — informei. — A propósito, pode emprestar-me mais cinquenta notas? Tenho quecomprar uns sapatos novos.Ao fim de quatro dias em Los Angeles, fizemos as malas para voltar para casa; não porque as coisas tivessem corrido mal - pelo contrário, tudo tinha corrido espantosamente bem. Todos os agentes com quem contactei se ofereceram para me representar. Muitos deles mandaram-me a audições, para avaliar asreacções, sondando os directores de casting para saberem a sua opinião. Todas as audições mereceram um telefonema de resposta e três destes resultaram em propostas concretas. Aquela coisa de Hollywood estava a começar a parecer fácil.Decidir qual o papel que ia aceitar foi simples. Só um dos filmes tinha o início da produção marcado para Junho, depois do meu aniversário - um filme da Disney chamado Loucuras da Meia-noite. Quanto menos se disser acerca do argumento melhor, mas Loucuras da Meia-noite foi o meu primeiro trabalho a sério na América e eu estava encantado por ter conseguido entrar nele.Só faltava contratar um agente. O meu pai e eu almoçámos com Bob Gersh, da Agência Gersh, o agente que me tinha mandado à audição da Disney. Naturalmente, Bob estava ansioso por obter a aprovação do meu pai e perguntou-lhe se ele tinha perguntas a fazer. O meu pai sorriu, pôs-me a mão no ombro e disse:— Prefiro que seja ele a fazer as despesas da conversa.Não podem fazer ideia de como estas palavras eram estranhas, vindas do meu pai.— Sabia que o pai dele, Phil Gersh, era o agente do Bogart?— perguntei ao meu pai, quando íamos a sair do restaurante deBeverly Hills.Limitou-se a abanar a cabeça. Era demais. Voltámos ao Holiday Inn, pagámos a conta e metemos as malas no porta-bagagem. Uma última paragem, para entregar um vaso com flores à Toni Howard, e estávamos de novo na 1-5, a caminho do Norte.Queen Elizabeth Park, New Westminster, Columbia Britânica -9 de Junho de 1979Festejei os meus dezoito anos em Vancouver. Tinha um bilhete de avião para Los Angeles para a manhã seguinte, onde ia começar a trabalhar no filme da Disney. Muitas felicitações e palmadas nas costas de toda a gente. A minha mãe, o meu

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pai e os meus irmãos estavam lá, evidentemente, e ainda a família alargada - na verdade, toda a gente que aparece na fita de vídeo, com a triste excepção da Nana. O Chris Coady também estava presente, tal como a Diane, a rapariga com quem eu andava havia seis meses.Nessa tarde, no parque, as cores eram de fazer cair o queixo. Por cima dos rosas pastel e dos vermelhos das flores do começo do Verão, imperava o céu azul-cobalto. Em toda a volta, dúzias de tonalidades diferentes de verde - das pálidas tiras dos líquenes junto às bermas de pedra do lago, ao verde-escuro dos abetos. Ao longe, as montanhas com os cumes cobertos de branco pareciam formar uma coroa sobre as copas das árvores. É por isso que, nas chapas de matrícula dos automóveis, está escrito Beautiful British Columbia e percebi, nesse momento, que ia sentir muito a falta dela. Mas toda aquela beleza natural só existia à força de chuva, lembrei a mim próprio, e um dia ocasional de espectáculo em tecnicolor era pago e repago com semanas e semanas de tempo cinzento, triste e húmido. Não iria sentir a falta desse cinzento.Se pudessem adivinhar os meus pensamentos naquela tarde, os meus amigos e a minha família tê-los-iam sem dúvida achado tolos e excessivamente dramáticos. Afinal, era apenas um filme - um trabalho, seis semanas. Não era a mesma coisa que estar a mudar-me para a Califórnia, diriam eles. Eu ia voltar. Eu sabia que não ia ser assim e, no fundo dos seus corações, a minha mãe e o meu pai também sabiam. Especialmente o meu pai. No caminho de regresso ao Canadá, fizera questão de me dizer que eu me tinha saído muito bem e que estava orgulhoso de mim.— Agarraste o mundo com as duas mãos — disse, enquanto seguíamos para Norte pela 1-5. — Não o deixes escapar.Percebi que, para mim, a viagem que fizemos juntos até Los Angeles tinha sido um rito de passagem ao estado adulto, uma cerimónia como as que se praticam em tantas culturas. Mas, ao contrário desses rituais, que, muitas vezes, envolvem abandono e até sacrifício - uma prova física do teste ou da provação que se sofreu - o meu não foi um ritual com feridas. O meu pai arranjara maneira de superar as suas dúvidas e de transformar o meu ritual numa cerimónia de cura.Quereria isto dizer que eu me tornara realmente adulto, ao fazer dezoito anos? O que se passou nos quinze anos seguintes poderia levar as pessoas a uma conclusão bem diferente. Mas, naquele dia 9 de Junho, no parque, com os amigos, a família eoutras pessoas que se nos tinham juntado para me desejar boa sorte, pensei que tinha atingido um novo grau de maturidade. Enquanto apagava as velas do bolo de aniversário, decorado com uma imagem do Rato Mickey, não havia dúvidas no meu espírito de que, agora, eu era verdadeiramente um homem. GENÉRICO Barracas de Beverly Hills - 1979-1981Inventário dos meus bens materiais por alturas de 1980: um saco de lona cheio de roupa (i.e. roupa suja), um fogão portátil, alguns utensílios de cozinha desemparelhados, artigos de toilette, cobertor, lençóis e um despertador. Ah, também havia a mobília: um colchão e uma cadeira de realizador em lona.O meu estúdio media menos de quatro metros e vinte por um pouco mais de três metros e sessenta, tinha uma casa de banho microscópica - sanita, duche, nada de banheira, e um lavatório/lava loiças. A bacia era demasiado pequena para poder lavar lá os pratos e, por isso, tinha que os lavar quando tomava duche. Por várias vezes, lavei a cabeça com detergente da loiça e os pratos com champô. Um armário fazia as vezes de cozinha.Tecnicamente, o meu endereço era o de um pequeno prédio de apartamentos cor-de-rosa em Shirley Place, em Beverly Hills, mas era raro eu ver a rua pacífica e cheia de árvores para onde dava a fachada do edifício - entrava pela entrada de serviço, nas traseiras. Havia um pequeno espaço de garagem, separado, onde os inquilinos podiam arrumar os carros. O meu estúdio era um dos três que tinha sido construído por cima desse espaço. A minha janela da frente dava para um caminho com cerca de um metro e oitenta de largura, na fachada traseira cor-de-rosa do edifício principal. Para se espreitar pela estreita janela de bandeira da casa de banho, era preciso ficar de pé no tampo da sanita. Como, lá fora, só havia carros estacionados e asfalto manchado de óleo,

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a vista não compensava o esforço. Mas por 225 dólares por mês, com um contrato de seis meses, era o paraíso.A minha viela das traseiras marcava a fronteira entre Beverly Hills e Century City, um pequeno conjunto de edifícios de escritórios altos, de ferro e aço, construídos em terrenos que, em tempos, tinham pertencido à velha Twentieth Century Fox. Shirley Place chamava-se assim em homenagem a Shirley Temple, a maior estrela da Fox na época em que os mapas foram redesenhados. Por vezes designado por «barracas de Beverly Hills», os prédios de apartamentos que rodeiam as zonas residenciais mais ricas são, na verdade, bastante atraentes e luxuosos - pelo menos segundo os meus padrões. É possível viver, por menos dinheiro, em apartamentos maiores em qualquer outro ponto da cidade, mas as pessoas ambicionam ter o código postal 90210, que viria a ser tornado célebre pelo folhetim cor-de-rosa Beverly Hills, de Aaron Spelling. Até a escola que ficava ao fundo da minha viela tresandava a privilégio e exclusividade. Passar por ela podia ser uma experiência intimidante, conforme descobri no dia em que comprei a cadeira de realizador.Arranjei a cadeira - a minha primeira grande compra - por trinta notas, no Thrifty Drugs. Ao voltar para o apartamento, para o meu lar, com a cadeira às costas, devia parecer mesmo um parolo, um verdadeiro palerma. Quando ia a virar a esquina da viela, passou por mim um aluno do secundário da tal escola, ao volante de um Porsche descapotável. Abrandando a marcha, observou-me por um segundo e depois gritou, acima do ruído de fundo do motor turbo: «Volta para o Vale!» Eu não fazia a mínima ideia de que era que ele estava a falar. O vale? Ele referia-se ao de San Fernando mas, para mim, estava a falar do vale do rio Fraser - Camp Chilliwack.Mas viver que nem um peixe fora de água em Beverly Hills não me chateava a sério. De uma maneira ou de outra, eu sempre tinha sido um outsider e L. A. - com os diabos, a América - parecia ser um sítio bom para outsiders. Dia após dia, no tempo que ali passei, era maior o número de excêntricos, amantes de riscos e livres-pensadores que encontrava. A espantosa diversidaderacial e étnica também era aliciante. Em meu entender, a Califórnia era tudo quanto o Canadá, com todo o seu provincianismo bem-educado e o seu culto da ordem, nunca poderia ser. Por isso, longe de me sentir um estranho, sentia-me em casa. A lógica desta Meca do inconformismo era esta: estar desenquadrado daquele sítio queria dizer que o meu lugar era exactamente ali.Além de um novo país, de uma nova cidade, de um novo emprego, de um novo apartamento e de uma cadeira nova, também arranjara uma nova identidade. A Screen Actors Guild proíbe dois actores de usarem o mesmo nome artístico e eles já tinham um «Michael Fox» registado. O meu segundo nome é Andrew mas «Andrew Fox» ou «Andy Fox» não ligavam comigo. «Michael A. Fox» ainda era pior, já que a palavra fox1 tinha, havia pouco tempo, passado a ser sinónimo de atraente. (Excesso de presunção?) Além disso, tinha uma sonoridade desconfortavelmente canadiana - Michael Eh?1 Fox - mas talvez eu estivesse só a ser demasiado susceptível. Então, lembrei-me do actor que fizera o papel de uma das minhas personagens preferidas, Michael J. Pollard, o cúmplice ingénuo de Bonnie e Clyde. Optei pelo J, que, de vez em quando, digo ser a abreviatura de Jenuine ou Jenius3, e voltei a apresentar a minha proposta de inscrição.Em consequência, na folha de chamada que eu ia buscar à caixa todas as noites desse Verão ou, mais exactamente, todas as manhãs, estava escrito Michael J. Fox. Fiel ao título, Loucuras da Meia-noite era, afinal, uma série interminável de noitadas: seis semanas de filmagens quase exclusivamente nocturnas. A combinação de noitadas e jovens actores dava ao estúdio um ambiente de festa de estudantes. Pelo menos, ainda nos rimos um bocado - muito mais do que, como pressentíamos com toda a razão, o público alguma vez riria. Pessoalmente, estava contente por estar ali. Portanto, que mal tinha estar a trabalhar toda a noite,'Raposa. (N. da T.)2 Trocadilho com a pronúncia inglesa da vogal A. (N. da T.)3 Genuine (genuíno) ou Genius (génio). (N. da T.)num projecto que não prestava? Ficava com os dias livres para fazer audições para outros melhores.

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Decidido a permanecer em L. A., fartei-me de gastar meias-solas para arranjar mais trabalho. No Outono, tinha conseguido o meu terceiro contrato pós-Loucuras. O único desapontamento foi não ter arranjado trabalho numa longa-metragem. Estive quase, em duas ou três, sobretudo em Gente Vulgar, e o realizador até me voltou a chamar. Mas o Robert Redford não pareceu nada entusiasmado com a minha leitura; durante a audição, esteve entretido a passar fio dental nos dentes. O meu papel seguinte para o grande ecrã só chegaria em 1981: um filme com um título então futurista, Classe de 1984, cujo tema era a adolescência e que faria o Loucuras da Meia-noite parecer o Casablanca.Entretanto, fui participando nos episódios de Family, Lou Grant e, em Setembro, tinha começado a trabalhar com contrato em Palmerstown USA, uma produção da CBS, com oito episódios de uma hora. Era a história da amizade entre duas famílias, uma branca, a outra negra, no Tennessee rural dos anos 30. De início relutante, aceitei fazer a série em grande parte por causa da força da equipa criativa e de produção de Alex Haley e Norman Lear. Para mais, a pronúncia sulista do personagem que eu ia interpretar - o rústico mas bem-intencionado filho do merceeiro local - ajudava a aplanar o meu notório sotaque canadiano.Acrescentando algum trabalho, ainda mais episódico, para a TV (Trapper John, M.D.; Heres Boomer), alguma publicidade (McDonald's, Tilex Foaming Tub e Tile Cleaner) e, ainda, o já referido clássico do cinema Classe de 1984, os meus primeiros dois anos e meio em Los Angeles tinham resultado numa corrida razoavelmente bem-sucedida. Nada de espectacular, não tinham sido abatidas nenhumas grandes árvores, mas eu conseguira arranjar uma reserva suficiente de nozes e bagas.Então, porque estava eu quase a morrer de fome, no momento em que 1981 fazia as despedidas e 1982 estava ali ao virar da esquina?A ingenuidade podia ser uma explicação generosa para a situação financeira precária em que me encontrava - dizer estupidez abjecta será, talvez, mais honesto. Isto devia ter-me servido de lição. Quando cheguei, como uma criança perdida na floresta, houve muitos habitantes sabidos da dita floresta que ficaram todos contentes por poderem oferecer os seus préstimos em troca de uma percentagem do que eu ganhasse. Não considero que fossem os maus da fita, mas não acredito que eles acordassem todas as manhãs, a pensar: «O que é que posso fazer hoje pelo Michael?» O único verdadeiro vilão era um monstro raivoso, criado por mim, que, inconscientemente, trouxera comigo do Canadá e guardara no armário da cozinha.SEM PERDÃOOs primeiros dias em L. A. foram estonteantes, mas eu ainda só tinha dezoito anos e estava muito longe de casa. Ficava sempre grato, quando os amigos e a família iam visitar-me à Califórnia. O Coady passou lá uma semana e, entre outras coisas, trepámos às colinas de Cahuenga Pass, em busca do letreiro de Hollywood, e tirámos várias fotografias de cada um de nós, pendurado nas suas letras gigantescas. Noutra altura, a minha namorada, Diane, também veio de visita e, antes de partir, prometeu voltar, o que se foi repetindo até, para todos os efeitos, estarmos a viver juntos. Todos quantos me visitaram manifestaram a mesma preocupação: eu tinha tratado muito bem da minha carreira, mas não parecia estar a tratar muito bem de mim próprio.É verdade que tinha adoptado algumas atitudes muito pouco saudáveis relativamente à alimentação e ao alojamento. Cansado de lutar com o fogão portátil e de andar às voltas com os tachos e panelas, escolhera Ronald McDonald como nutricionista exclusivo. E, no que se referia a qualquer sustento não incluído na ementa, improvisava: a cerveja e os cigarros devem ter um lugar qualquer num dos quatro principais grupos de alimentos.A forma displicente como eu encarava a arrumação da casa foi tornando a minha casinhota de uma divisão cada vez mais asfixiante. Um espaço tão pequeno não podia, simplesmente, comportar a quantidade de porcaria doméstica que atulha a existência de qualquer homem solteiro - caixas de Big Macs, revistas, páginas de guiões há muito obsoletos, roupa por lavar, pratos sujos e, até, sujidade suja. A certa altura, adoptei um gato para me fazer companhia. Era um macho, que se foi embora ao fim de pouco tempo, não sem antes ter impregnado o apartamento de um cheiro a condizer com o cenário.

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Um dia, o Bob Gersh veio buscar-me para almoçar. Depois de deitar uma olhadela ao meu apartamento (e de lhe sentir o cheiro), chegou à conclusão de que, embora ganhasse decentemente, o seu cliente mais recente não era nenhuma estrela em matéria de auto-preservação. Chegara a altura, concluiu, de chamar reforços.Apresentou-me a uma equipa de gestão, composta por marido e mulher, a quem me referirei como B & S Gestores e que, conforme explicaram, faziam tudo quanto os agentes não podiam fazer. Disponíveis a qualquer hora, concebiam a estratégia perfeita para a minha carreira, ajudavam-me a fixar e a concretizar objectivos e muito mais. Com a sua vasta rede de contactos, iam rapidamente abrir-me o caminho para o êxito. Resumindo: iam ser os meus melhores amigos em Hollywood.Pela sua intervenção, o Bob ganhou os habituais dez por cento sobre os meus honorários brutos e, para me segurarem na mão, os meus novos gestores levaram mais vinte por cento. (Quem foi que disse que a amizade não tem preço?) Quando precisava de um tipo de ajuda que eles não podiam proporcionar-me, a B & S encaminhava-me para o profissional de Hollywood adequado: um fotógrafo, um agente de publicidade, um advogado. Ainda adolescente e imbuído da ausência de malícia dos Canadianos, este sistema de delegar tudo e mais alguma coisa que precisava de fazer na vida gerou aquilo que eu pensava ser um círculo de «aliados» cada vez mais vasto. Só muito mais tarde percebi que «vertigem interesseira» talvez fosse uma descrição mais apropriada.A meio das filmagens de Palmerstown, o meu contrato de arrendamento acabou. Nessa altura, a Diane partilhava a casa comigo e precisávamos de mais espaço. Arranjámos um apartamento de uma divisão, um pouco maior, mas ainda de tamanho reduzido, ali perto, em Brentwood. A nova renda era quase o dobro, 425 dólares, mas, além de ter banheira, a casa tinha um lava-loiça propriamente dito.Por cima do lava-loiça, havia um armário - do tamanho indicado para um monstro. Foi mais ou menos por esta altura que os «absolutos» matemáticos contra os quais tinha protestado em conversas com a minha mãe, durante o secundário, começaram a chatear-me a cabeça. Sabem, eu não tinha paciência para números e, logo, tinha dificuldade em ter uma ideia das minhas dívidas e despesas.Eu ganhava pelas tabelas mínimas da SAG, que, vim a saber, mal davam para cobrir as necessidades básicas - apartamento, roupas, aluguer do carro, alimentação - e as despesas profissionais (aquelas percentagens todas). Havia ainda o Tio Sam. Durante o meu primeiro ano em L. A., não reparara num pormenor dos meus recibos de honorários: os meus patrões não tinham deduzido nos pagamentos nenhum imposto estadual nem federal e nunca me ocorreu, nem ocorreu àquelas pessoas muitíssimo bem pagas para me segurar na mão, que devia ir pondo algum dinheiro de lado para esse fim.Nesta altura, tinha adquirido o hábito de juntar todas as minhas contas, avisos para pagamento de impostos e mensagens ameaçadoras dos credores, num molho desorganizado, que atirava para dentro do armário da cozinha: um monstro de papel que ia crescendo. Como não me apetecia pensar naquilo mais do que o necessário e, muito menos, olhar para aqueles papéis com olhos de ver, só abria o armário para alimentar o monstro com mais papelada e fechava rapidamente a porta. Longe da vista, longe do coração, como se aquilo fosse uma gaveta cheia de «absolutos» ameaçadores e implacáveis.Quando recebi a primeira conta do IRS, telefonei em pânico para a B & S e eles recomendaram-me um contabilista, que elaborou um método organizado para ser aplicado a todos os meus ganhos presentes e futuros, com vista a atingir uma situação de solvência, incluindo o pagamento de impostos atrasados.Por este serviço, ele cobrava cinco por cento de todos os meus ganhos brutos, presentes e futuros, o que elevou os pagamentos adiantados que eu fazia para a espantosa percentagem de trinta e cinco por cento.— Também vai ter que acabar com essa história de os seus patrões alugarem carros para si e deduzirem a despesa dos seus honorários — aconselhou o meu novo contabilista. — As tabelas deles estão inflacionadas.Assim, generosamente, alugou-me o Porsche dele.O plano de recuperação financeira do meu técnico de contas nunca passou do papel. Em 1980, não pude trabalhar devido a uma greve prolongada da SAG e, quando começou o segundo e último período de rodagem de Palmerstown, estava praticamente falido. Quando a série foi cancelada, tive alguns trabalhos que mal

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me davam para viver - e menos ainda para começar a pagar as dívidas. Muitos actores sem trabalho complementam os seus rendimentos carregando caixotes de géneros de mercearia ou servindo à mesa, mas o meu estatuto de estrangeiro não permitia isso. O único trabalho legal que eu podia fazer nos EUA era como actor. Estava num beco sem saída.Seguindo a máxima incontestada de Hollywood que diz que a imagem é tudo, sentia-me um pouco melhor quando conduzia o Porsche - pelo menos, não parecia um desempregado.Mas, afinal, o contabilista arranjou-me mais sarilhos do que aqueles que eu já tinha. Atrasei-me também no pagamento das contas dele - as do aluguer do carro e as dos seus serviços. Ele livrou-se de mim e recuperou o Porsche, passando a ser mais um nome na longa lista dos meus credores.«PORQUE FOI QUE NINGUÉM ME DISSE NADA?»Uma palavra acerca da rejeição. Muitos actores que tentam fazer nome dir-vos-ão que as audições são uma treta. Dão-nos umas páginas de um guião e nós lemo-las vezes sem conta, na esperança de encontrar um indício sobre o personagem, uma perspectiva que nos dê uma ligeira vantagem para traduzir a palavra escrita em vida, respiração, empenho e numa profunda aproximação ao comportamento humano. Quem conseguir fazer isto melhor do que qualquer um dos outros actores que disputa o papel, arranja que comer; quem não conseguir não arranja. Pelo menos, iludimo-nos a nós mesmos a pensar que é tão simples como isto. Mas não é.Também temos que nos preocupar em não ser demasiado magros, gordos, altos, baixos, louros, ruivos, morenos, de pele clara, novos ou velhos, se a nossa voz é demasiado baixa ou alta, se há alguma coisa em nós que leve o/a realizador/a a lembrar-se da/o namorada/o, do pai, da mãe, do padre, do terapeuta ou do/a horrível enteado/a. É bom que nos mostremos familiarizados com o material ao ponto de podermos erguer os olhos da página de vez em quando, mas, pelo amor de Deus, não nos passe pela cabeça decorar o papel; isso iria parecer uma atitude arrogante, de quem já tivesse obtido o papel. Acima de tudo, por mais necessitados que estejamos de arranjar trabalho, por mais fome que tenhamos, por mais cansados de fugir do senhorio, nunca, mas nunca, devemos mostrar desespero. Para mim, esta primeira regra das audições era cada vez mais difícil de cumprir.Quando eu ainda era o puto recém-chegado à cidade, não tinha que carregar com o fardo das expectativas para as entrevistas. Ou seja, o produtor/realizador/director de casting não fazia a mínima ideia do que poderia esperar de mim, não tinha uma noção pré-concebida de quem eu era. Por isso, eu conseguia fazer um trabalho mais ou menos decente com o material, estonteá-los com um bocado de conversa antes e depois da leitura e ser considerado uma opção nova - nova e diferente.Mas, por esta altura, eu já estava em cena havia três anos. Era uma figura conhecida em todos os locais de castings da cidade e esgotara-se-me a conversa fiada. Começava a ter saudades da indiferença benigna do Robert Redford, enquanto limpava os dentes. Aquilo era quase uma ovação, se comparado com algumas experiências pelas quais passara nos últimos tempos. Algumas eram tão humilhantes que se tornavam quase cómicas. Como a do executivo publicitário, que gritou comigo, duranteuma audição para um anúncio. Segundo parece, eu não mordi o palito Wrigley como mostrava o diagrama inserido na folha de instruções afixada na sala de espera; em vez disso, tivera a ousadia de o meter na boca de lado, de qualquer maneira, num movimento único e indelicado. E dizia eu que era actor! O seguinte!A rejeição pode ser tão vulgar, tão impessoal, que se corre o risco de ficarmos insensíveis a ela. Ainda sentia a dor, mas esta tinha menos a ver com aquilo que aqueles estranhos pensavam de mim do que com aquilo que estava perigosamente perto de pensar de mim próprio. Durante muito tempo, as minhas acções tinham sido instintivas, um desafio confiante ao mundo que me rodeava. Sem essa fé em mim mesmo, estaria de facto perdido. Mas, até lá chegar, ainda havia uma hipótese. Claro que, mais do que qualquer outra coisa, aquilo de que eu precisava então, desesperadamente, era de alguém que pudesse ajudar-me, que partilhasse essa confiança.

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Felizmente, estava prestes a encontrar essa pessoa, embora -conforme ele me diria muitas vezes, mais tarde - não tivesse sido exactamente confiança à primeira vista.Estúdios da Paramount, Hollywood - 1982 — Tens que parar de me chatear por causa desse miúdo — disse o argumentista/produtor Gary David Goldberg a Judith Wiener, a directora de casting da sua nova sitcom. — Não é o tipo de pessoa de que precisamos.Desde que, havia um mês, Matthew Broderick, a sua primeira escolha para o papel do filho adolescente, recusara o trabalho, o Gary estava convencido de que, entre as centenas de jovens actores a quem era preciso fazer uma audição, não havia nenhuma alternativa aceitável. A Judith insistia em que Gary estava a cometer um grande erro ao recusar-se a ouvir outra vez o primeiro de todos os actores que ela trouxera para uma audição.— Estás a esquecer-te de que ele era bom, Gary. Qual é o mal de o chamar outra vez?Goldberg encolerizou-se por ver o seu instinto ser posto em causa. E porque não havia de se irritar? O seu instinto nunca o deixara ficar mal. Nascido em Brooklyn, ás do basquetebol nosecundário e, mais tarde, um marginal de Berkeley, Gary e a sua futura mulher, Diana, viveram os finais da década de 60 e princípios da década de 70 como nómadas da contra-cultura. Andaram pelo mundo, com o seu labrador preto, Ubu, e, durante algum tempo, viveram numa gruta na Grécia, até que o nascimento de uma filha os obrigou a assentar e a experimentarem ser adultos. No seu apartamento em San Diego, enquanto via uma retransmissão de Bob Newhart, num dia em que Diana andava à procura de emprego, Gary teve a intuição de que era capaz de escrever um guião ao estilo Newhart. E assim fez. Enviou-o para os produtores e, em menos de nada, o ex-radical barbudo de Berkeley passou a ser a vedeta em ascensão do grupo de escritores de comédias da MTM.Agora, poucos anos depois do período em que alimentava a família graças às senhas de alimentos para indigentes, Gary Goldberg era o produtor de uma série televisiva da sua autoria. Grant Tinker, o seu antigo patrão da MTM e então presidente da NBC, tivera o pressentimento de que a experiência de Gary e Diana como ex-hippies que constituíram família podia ser tema para uma série. O jovem argumentista dera tudo de si no guião do episódio-piloto e não ia agora lixar tudo com um mau casting. Mas a Judith estava mesmo a dar com ele em doido e, por isso, embora não sem um protesto final, ele aceitou reavaliar o candidato.— É tempo perdido, Judith. Nem penses que vou mudar de ideias acerca disto. Já sou crescidinho. Sei o que quero e o que não quero. E digo-te que não quero o Michael Fox a fazer o papel de Alex Keaton.Barracas de Brentwood- 1982Na Primavera de 1979, a minha primeira incursão na «floresta» parecera um conto de fadas dos irmãos Grimm mas, na Primavera de 1982, quando fiz a audição perante o Gary Goldberg, o argumento era, pura e simplesmente, sinistro1 - não estava à vista nenhum «e foram felizes para sempre».1 Jogo de palavras com Grimm, o nome do escritor de contos infantis, e grim, que significa «tenebroso», «sinistro». (N. da T.)De vez em quando, recebia um cheque residual de um velho anúncio ou de um episódio de uma série televisiva - em geral, somas pequenas, que passavam primeiro pelas mãos do meu agente e dos meus gestores, impostos pagos à cabeça, pelo que o montante que eu acabava por receber era ridiculamente pequeno. Embora, nominalmente, continuasse a ser a minha namorada, a Diane voltara para Vancouver e, dessa vez, ficara por lá para arranjar emprego a tempo inteiro. Diane gostava da Califórnia mas para quê viver a vida de um artista esfomeado, se não precisava de o fazer? Se eu era ou não um artista era discutível, visto que não tinha oportunidade para desenvolver a minha arte nem propostas para tal. Mas a parte relativa à fome encaixava. A minha dieta ficara reduzida a latas e caixas, com rótulos genéricosdo tipo ATUM OU MACARRÃO.Comecei a vender os poucos haveres que possuía, como a mobília. Ao longo de alguns meses, vendi, um a um, os módulos do meu sofá. O comprador foi outro jovem actor, que vivia no mesmo edifício que eu. Acrescentar o insulto à

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indigência fazia parte da natureza desta transacção, o que, de facto, punha em destaque as trajectórias inversas das nossas respectivas carreiras.Os meus pais, e até o Coady, Deus o abençoe, mandavam-me algum dinheiro quando podiam. Ultimamente, porém, os meus amigos do Canadá e a minha família instavam-me a desistir e a voltar para casa. O último cheque que o meu pai me enviou vinha acompanhado por uma carta extremamente eloquente, que já não tenho mas que, e em resumo, dizia o seguinte: estava, e tinha todas as razões para o estar, orgulhoso daquilo que eu tinha conseguido fazer, nos três anos que tinham passado desde a viagem que fizéramos juntos até Los Angeles. Dada a minha situação actual, porém, sugeria que seria sensato descer o pano, pelo menos para já. Não era vergonha nenhuma voltar ao Canadá e repensar as minhas opções.Opções? Em meu entender, as opções não eram muitas: o meu irmão poderia, é claro, ser bonzinho e contratar-me para trabalhar num dos estaleiros de obras que controlava. Dada a minhaexperiência e o meu físico, isso queria dizer apanhar pregos até haver uma vaga nos escritórios. O Coady era capaz de me arranjar emprego nos caminhos-de-ferro, onde estava a trabalhar, provavelmente num dos turnos da noite, a patrulhar a área de manobras com uma lanterna na mão ou a expulsar vagabundos dos vagões de mercadorias. Também havia a hipótese de um regresso mais que inglório ao armazém de frio, onde a minha mãe trabalhava. Além disso era preciso pensar na minha dívida do IRS. Se fugisse ao pagamento, bem podia dizer adeus aos Estados Unidos para sempre.Os meus velhos estavam certos num ponto: fosse um ignominioso regresso a casa na posição de perdedor, fosse uma miraculosa viragem da sorte, alguma coisa tinha que acontecer -e depressa. Eu estava a chegar aos meus limites.Estúdios da Paramount, Hollywood - 1982 A Judith Wiener veio ter comigo à zona da recepção. Estava vazia e a porta que dava para a sala de dentro fechada. Fiquei surpreendido por voltar a ser chamado. Já tinha passado muito tempo - quanto? um mês? - desde a primeira leitura de Quem Sai aos Seus. Tentei mostrar um ar confiante, apesar de, tenho a certeza, tresandar a desespero. A Judith anunciou-me o que ia acontecer.— Vais encontrar as mesmas pessoas: três argumentistas e ocriador/produtor, o Gary Goldberg. Toda a gente achou que a tuaprimeira audição tinha sido óptima.Isto era falso. Viria a descobrir que os outros argumentistas me tinham apoiado tão veementemente como a Judith, mas o Gary continuava a mostrar-se céptico.— Uma sugestão... Faz o possível para tornar a personagemmais cativante.Cativante? O tipo era um adolescente sabe-tudo engravatado, admirador ferrenho de Nixon, que adorava o dinheiro acima de qualquer outra coisa. Se calhar, tinham-se esquecido de incluir no guião a faceta de ele ser «cativante».— Está bem — prometi.Tinha que conseguir aquele trabalho. O que viesse a acontecer nos próximos dez minutos ia decidir o meu destino, num sentido ou noutro.A Judith mandou-me entrar. O Gary recitou um arrazoado sobre o que fazia vibrar Alex. Eu disse que sim com a cabeça. E, depois, fiz a minha leitura. Senti de imediato que ia pelo caminho certo. As gargalhadas eram muitas e não se tratava de «autores a rirem-se das próprias piadas» - eles riam-se do cunho que eu lhes estava a dar.O Gary deu-me algumas indicações breves e eu repeti tudo. Agora, sentia, se não convencimento, pelo menos qualquer coisa parecida com alegria. Até meti duas ou três buchas - uma manobra um pouco arriscada, mas eu estava a marcar pontos a cada fala que ia dizendo. Depois de ter acabado, as gargalhadas continuaram e, desta vez, eram diferentes; transmitiam uma coisa que, mais tarde, vim a saber ser alívio. Gary David Goldberg, um homem moreno, barbudo e corpulento, recostou-se na sua cadeira de couro, tentando em vão ocultar a sua satisfação, por trás de uma expressão de falsa ofensa.— Judith — gritou — Porque foi que ninguém me disse nada acerca deste rapaz?INVERTEM-SE OS PAPÉISEstúdios da NBC, Burbank, Califórnia - Março de 1982 O casting de Quem Sai aos Seus, como o de qualquer outro episódio-piloto de televisão, nunca seria

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definitivo até a cadeia de televisão ter aprovado a escolha final dos produtores, entre os candidatos a membros da equipa. A família Keaton, tal como fora seleccionada pelo Gary Goldberg, era composta por Michael Gross e Meredith Baxter Birney, os pais hippies, eu, Justine Bateman e Tina Yothers, os filhos da era yuppie. No entanto, esta lista nunca seria oficial até os chefões da NBC - especificamente Brandon Tartikoff, o novo director de programação prodígio -dar a sua aprovação final. Ingenuamente, devido ao desejo deGary de me dar o papel - ele tinha agora o zelo de um convertido - eu considerava esta última ronda de audições uma mera formalidade. Tinha a certeza de que seria escolhido e, além disso, estava a ignorar o facto de se tratar apenas de um episódio-piloto, pelo que o seu futuro como série ainda não estava assegurado. Não, este era o meu passaporte de saída do esquecimento pobretanas, o tal ponto de apoio que eu sempre conseguira arranjar para me içar para voos mais altos.Um dos requisitos da SAG impõe que, antes mesmo de o actor ser seleccionado para uma série, o contrato deve estar preparado e negociado, pronto a entrar em vigor, logo que .a cadeia de televisão aprovar o casting definitivo. Assim, na minha ideia, eu já tinha um contrato de seis anos.Nessa manhã, numa conferência telefónica, Bob Gersh, a B & S e eu já tínhamos delineado os pormenores. O que torna a cena memorável era a situação em que eu me encontrava, quando se deu esta conversa. A Pacific Bell havia muito que cortara o telefone do meu apartamento e, enquanto debatia as cláusulas do meu contrato - modestas, segundo os padrões actuais, mas incrivelmente vantajosas dada a minha penúria financeira - eu estava numa cabine telefónica, em frente a um restaurante da cadeia Pioneer Chicken. Ao mesmo tempo que o meu agente falava de um salário de sete algarismos, se a série durasse seis anos, eu olhava para a ementa, afixada na montra do restaurante, desejando ter 1.99$ para pagar um combinado de frango com puré de batata.Houve muitas gargalhadas, durante a minha audição perante os bem vestidos (com fatos Armani) executivos da NBC, em Burbank, embora não tenha podido deixar de reparar que Gary era o mais arrebatado - indiscutivelmente mais entusiasmado do que Brandon Tartikoff. O Brandon pediu-me que lhe desse pormenores sobre a minha experiência televisiva anterior e eu achei por bem falar da minha participação em programas da NBC -uma ideia completamente estúpida. Nessa altura, a NBC estava a afundar-se e a minha litania acerca das «bombas» da estação não contribuiu nada para me valorizar aos olhos de Brandon; sóserviu para o pôr crispado. Felizmente, o Gary veio em meu socorro, provocando uma enorme gargalhada, com o grito que lançou do fundo da sala: «Vamos aos sucessos, Fox, vamos aos sucessos.»Quando saí dos escritórios da NBC, tive uma vaga ideia da luta entre poderes que se travava, mas só mais tarde percebi o quadro geral. Tinha voltado ao mesmo limbo em que estivera no último mês, só que, agora, o Gary assumira o papel da Judith, como presidente do clube de fãs de Michael J. Fox, e Brandon era o céptico irredutível. Não queria de maneira nenhuma que me dessem o papel de Alex Keaton.«O que nos preocupava não eram as suas (de Fox) qualidades de actor», escreveria ele, mais tarde, no seu livro, The Last Great Ride, «mas a altura dele. Como é que alguém tão pequeno podia ser filho de Michael Gross e Meredith Baxter Birney?» E apresentou os seus argumentos ao Gary: — Quando era miúdo, quando via o Father Knows Best, sempre me chateou que o Bud Anderson fosse muito mais baixo que os pais. Para mim, isso punha em causa a credibilidade do espectáculo. Não vamos agora cometer o mesmo erro.Sem eu saber, a discussão aqueceu, até ao dia em que começámos os ensaios do episódio-piloto de Quem Sai aos Seus. Gary Goldberg manteve-se firme. «O Goldberg não é pessoa para mudar de ideias com facilidade», escreveu Brandon. «Por isso, eu acedi. 'Vai em frente, se é isso que queres.'»Durante os oito dias de ensaios, experimentei uma mistura estonteante de sentimentos; dia após dia, fui criando uma forte afinidade com a personagem e com o material, descobrindo e desenvolvendo músculos cómicos que nem sequer sabia que possuía. Ao mesmo tempo, com a vitória ao meu alcance, sentia-me aterrorizado ao pensar que esta podia fugir-me das mãos. Embora ignorando que

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Gary e Brandon estavam cada um a puxar para seu lado, percebi que, até ao momento em que começássemos a gravar em vídeo, seria relativamente simples despedirem-me e substi-tuírem-me por outro. Isso já acontecera a uma actriz convidada, no quarto dia. Saímos para almoçar e, quando voltámos, havia outrapessoa a ler as falas dela. No entanto, as minhas emoções predominantes eram de alívio e alegria. E, todas as manhãs, enquanto passava pelo Sunset Boulevard, de autocarro, a caminho dos estúdios, sentia-me a pessoa com mais sorte deste mundo.Ninguém tinha pensado que Alex Keaton fosse a personagem principal de Quem Sai aos Seus. O projecto inicial era a sitcom girar à volta da experiência dos pais, em especial da sua única vedeta encartada, Meredith Baxter Birney. Foi um simples golpe de sorte a história contada no episódio-piloto ser centrada em Alex e no seu desejo de convidar para sair a filha de um republicano rico. Era óbvio que os autores gostavam tanto da personagem que tinham criado, como eu gostava de desempenhar o seu papel. A partir do momento em que introduzi a inicial «P», na cena em que Alex atende o telefone, dizendo «fala Alex P. Keaton», a equipa de escrita e eu tornámo-nos parceiros de facto, criando em conjunto um monstro benevolente.A noite em que gravámos o episódio-piloto foi um enorme triunfo. O agrado do público foi ensurdecedor; tornou-se evidente e, dadas as atribulações recentes por que passara, especialmente gratificante o facto de eu estar a ser distinguido pelo meu desempenho. Durante a minha chamada «ao palco», uma curta aparição junto à barreira de fita que marca o limite do proscénio, os aplausos do público significaram mais para mim do que alguém possa imaginar. Quase me parecia que eles conheciam toda a história -os anos, meses e dias de desespero - que me tinha levado àquele momento e que as palmas eram uma saudação: «É assim mesmo, Mike. É assim mesmo, grande filho da mãe. Conseguiste.»A NBC adorou o episódio-piloto e encomendou mais treze para o Outono. E também me distinguiu - mas não para ser aprovado. O Brandon tentou mais uma vez que o Gary me despedisse. Mas, então mais que nunca, Gary não se deixou demover.— Sou eu que te digo, Brandon, este miúdo é espantoso.— Talvez — respondeu Brandon — mas digo-te eu que ele não tem o tipo de cara que alguma vez hás-de ver numa lancheira.O Gary ficou perplexo por isto poder ser um critério para a selecção de um actor. Por fim, exasperado, disse:— Eu só sei uma coisa: digo ao miúdo para dizer duas piadas e ele arranca cinco gargalhadas ao público.Felizmente, esta foi a salva final disparada na Campanha Despeçam o Fox, de Brandon. A guerra tinha acabado e Gary David Goldberg saíra vencedor.Eu soube destas trocas de palavras, não pelo Gary, como seria de esperar, mas pelo próprio Brandon. O facto de, três anos mais tarde, no auge do meu sucesso em Regresso ao Futuro, ele ter falado publicamente do assunto, como que para sublinhar que tinha sido um grande parvo, abona a favor da sua humildade e é uma prova do seu famoso sentido de humor autocrítico. Nessa altura, o Brandon e eu passáramos a ser amigos e encontrávamo-nos de vez em quando para almoçar e atazanar a cabeça um do outro, a falar do estado da comédia televisiva. Foi num desses almoços que ofereci a Brandon uma lancheira, que mandara fazer, ornamentada com o meu rosto sorridente e, agora, famoso. A lancheira tinha uma inscrição: «Para o Brandon: para guardar o vexame. Beijinhos, Michael J. Fox.»Em 1997, o Brandon perdeu o combate com o cancro do cérebro com o qual lutava em segredo havia dez anos. Ao longo da sua breve mas brilhante carreira, Brandon trouxe para a televisão um moderno sentido de humanidade, que inspirou inovações na programação, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. Por mais relutante que se tenha mostrado a princípio, tenho orgulho no facto de ele me ter permitido acompanhá-lo durante uma parte do seu percurso. E envaidece-me que, até ao último dia da sua vida, ele tenha conservado a lancheira numa prateleira por trás da secretária, no seu gabinete.A Diane encontrava-se no estúdio na noite decisiva da gravação em vídeo do episódio-piloto. Apesar de, formalmente, não termos acabado a nossa relação, ela estava a acomodar-se à sua nova/ /velha vida em Vancouver. Viera a L. A. durante a semana dos ensaios, acompanhou-me à festa que se seguiu à gravação e esteve ao

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meu lado, enquanto, uma após outra, as pessoas - familiares dos membros do elenco, dos argumentistas e dos executivos da estação e membros da equipa técnica - me vinham felicitar e desejar boasorte. A adrenalina era tanta que me sentia incapaz de imaginar uma maneira de a libertar. Mas a Diane teve uma ideia: dissemos rapidamente adeus a toda a gente e fomos para o meu apartamento.Deitámo-nos no chão, aos pés da cama, embrulhados nos lençóis, partilhando uma garrafa de champanhe que eu surripiara na festa. Eram já 4 da manhã e o estado de espírito era agridoce.Embora só tivéssemos começado a andar um com o outro nos últimos meses antes de eu ter vindo para Los Angeles, eu conhecia a Diane desde a primeira semana do início do secundário. Ela fazia parte do grupo de Andy Hill, era atlética, esperta e muito bonita: nunca imaginaria que viesse a ter qualquer interesse por mim. Naquela noite, ao olhar para os seus olhos castanhos, vi que ela percebia o impacto dos acontecimentos dessa noite e o rumo que estes iriam imprimir à minha vida. Generosamente, com grande ternura, foi isto que me disse naquela noite.— Isto é o que tu sempre quiseste e estou feliz por ti — preambulou. — A partir de agora, a tua vida vai ser muito diferente e eu não vou fazer parte dela. Só quero que saibas que percebo - que está tudo bem. Não é este o tipo de vida que quero ter.Mas gostaria que me prometesses que vais ter cuidado contigo.Eu ia ficar muito triste, se te acontecesse alguma coisa de mal.Claro que tinha razão. A partir daquela noite, a minha vida nunca mais seria a mesma. Na manhã seguinte, a Diane voltou para Vancouver e, apesar de termos continuado a ver-nos esporadicamente, acabámos por nos afastar. Alguns anos mais tarde, voltei a ter notícias dela. Casara com um piloto da aviação civil, instalara-se nos subúrbios de Vancouver e tinha uma família.A capa do álbum Exile on Main Street, dos Rolling Stones, incluía um destacável de postais perfurados. Alguns dias depois da gravação, arranquei um, colei-lhe um selo e rabisquei uma mensagem para o Coady.— Acabei de fazer o 'piloto' de uma sitcom chamada QuemSai aos Seus. É superdivertido.Ousaria pôr aquilo por escrito? - Ousei e assim fiz, acrescentando:— Penso que, finalmente, estou quase a ir longe.TELEFONEMA PARA LONDRESHotel Churchill, Londres - Junho de 1985 - 3.30 da manhã (hora de Verão britânica) Trrim... trrrim... Trrim... trrrim...«Aaargh!»Não era um toque americano, baixo e ronronante, do século xxi, mas um toque duplo, britânico, antiquado - a campainha do telefone retinia, como o Big Ben, na mesa-de-cabeceira. Acor-dou-me com a subtileza de um golpe de cutelo desferido sobre os miolos ensopados em cerveja e vinho. Santo Deus, a minha cabeça... Onde diabo estou eu?Ainda estás em Londres, foi a resposta que lentamente me ocorreu, a rodar um filme para televisão que nunca irá ser um clássico, chamado Quem Sai aos Seus Vai para Londres. Era a nossa terceira época e, após uma ascensão persistente, favorecida pela aparição do mastodonte do novo Cosby Show, a série Quem Sai aos Seus alcançara o segundo lugar nos índices de audiência de Nielsen. Éramos um sucesso.As pessoas do elenco gostavam realmente de estar juntas e toda a gente estava bem-disposta, quando aterrámos em Gatwick, alguns de nós com as famílias atrás. Mas os planos para explorar a cidade, fazer compras e passear foram por água abaixo num instante, arrastados pela realidade logística de rodar um filme para televisão, com um calendário apertado e num país estrangeiro. E, para tornar as coisas ainda piores, o material -uma história forçada e um guião mal feito - não tinha nada a ver com o nível habitual da série.Os guionistas desculpavam-se. Tinham-se matado a trabalhar ao longo da última época, enfrentando o desafio de agradar a um público que, de repente, duplicara e escrevendo episódio atrás de episódio, sem tempo para os trabalhar muito. Também tinham tido que ultrapassar a questão da gravidez da Meredith Baxter

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Birney, que esperava gémeos e fora mandada ficar na cama, pelo que o Gary e a equipa foram obrigados a escrevervários episódios tendo em conta este facto e, depois, a riscá-la de vários outros. Para cúmulo tínhamos tido que parar por um mês, mesmo a meio da época.Outra complicação daquela época aconteceu inteiramente por culpa minha e foi por isso que fiquei aterrorizado, quando ouvi o telefone, àquela hora pouco católica.— Sim — disse em voz rouca.Durante o meio segundo de atraso transatlântico até as palavras de quem me telefonava me chegarem aos ouvidos, os meus olhos semicerrados passearam pela zona de calamidade do quarto de hotel. Avaliar os estragos não era difícil, porque as luzes estavam todas acesas. O que indicava que eu não tinha adormecido mas caído para o lado. Segundo parecia, a festa tinha acabado ali. Havia garrafas de Guinness espalhadas pelo chão. Havia por todo o lado pratos com restos de sobremesas, trazidos pelo serviço de quartos, e o conteúdo de alguns tinha caído no chão. Na mesa-de-cabeceira, ao lado do telefone, estava um sapato. Se estivesse do lado mais próximo da mesa-de-cabeceira, teria pegado nele em vez de pegar no auscultador.— Michael, é o Pete... Peter Benedek... (Pausa.) O teu advogado. (No ano seguinte, Pete passaria a ser agente e eu seria o seu primeiro cliente.)— Pete? Estás em Londres?O meu cérebro ardia. A dor era tão forte que me sentia agoniado.— Não. Tu é que estás em Londres. Eu estou em Los Angeles.— Pois é... Acabei de acordar — murmurei. — Já deve ser bastante tarde, aqui.A noite começara de forma moderada, com um jantar no Tony Roma, com a minha mãe e o meu pai, que estavam em Londres havia mais ou menos uma semana. Iam comigo até ao trabalho todos os dias e até participaram no ensaio de uma das cenas. Desde os primeiros tempos de Quem Sai aos Seus que eles gostavam de ir ver-me aos estúdios da Paramount. Ficavam sentados durante horas, sozinhos, no espaço reservado ao público, a assistir ao meu ensaio, como se não fossem capazes de acreditar naquilo que viam. O Gary contou-me que, pelo menos uma vez em cada visita, o meu pai o chamava de lado e lhe perguntava:— Como é que ele vai, Gary? Vai bem? Quer que eu fale com ele acerca de alguma coisa?— Ele vai bem, Bill — respondia o Gary, a rir. — Vai muito bem, pode acreditar. Vai mesmo muito bem. Não há razões de queixa.Ainda um pouco incrédulo, o meu pai dizia:— Pronto, está bem... mas diga-me, se houver qualquer coisa.Ao jantar, bebemos duas garrafas de vinho e, ligeiramenteébrios, voltámos para o hotel. Acompanhei-os até ao quarto e dei-lhes as boas-noites. Teria feito melhor em ir até ao fim do corredor, para o meu quarto, e deitar-me. Em vez disso, atrelei-me a um músico cockney amigo que conhecera em Los Angeles e fomos a um pub. (No fim de contas, estávamos em Londres.) Não sei exactamente o que aconteceu depois disso. Naquela altura, eu andava sempre em festas de arromba, numa espécie de celebração contínua da minha enorme boa sorte. Hoje, em retrospectiva, penso que aquelas celebrações tinham o seu quê de predestinação, até mesmo um pouco de desespero, como se a festa pudesse acabar a qualquer momento.A verdade é que, nesses últimos três anos, a minha vida não podia ter sido melhor. Os primeiros dois anos de Quem Sai aos Seus foram de pura bem-aventurança - um trabalho que eu adorava e que me dava uma oportunidade perfeita de desenvolver a minha arte. Depois, com a explosão dos índices de audiência, veio uma quase garantia de estabilidade financeira. No fim da época, mesmo antes de partir para Inglaterra, fechei o contrato de compra da minha primeira casa: um bungalow com três quartos de dormir e piscina, aninhado nas colinas de Laurel Canyon. A negociação não correu muito bem. Para proteger a sua margem de manobra financeira no negócio, o meu contabilista (um novo contabilista) aconselhara-me a não me mostrar muito entusiasmado quando andasse a ver casas. Mas eu não ajudei muito quando, logo ao entrar na sala, atirei para o chão as chaves do meu 300 ZX novo e gritei:— É mesmo isto. Esta é minha.

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Grande esperteza.O monstro instalado no armário da cozinha fora vencido havia muito mas não o impulso que começara por lhe dar vida: a recusa da realidade prática, exterior ao meu mundo de sonhos. Durante os primeiros anos que passei na Califórnia, o ameaçador tigre de papel, guardado no armário por cima do lava-loiça da cozinha, fora o substituto dos meus pais, professores e outras pessoas, e das suas advertências, quanto a «eu não conseguir safar-me » e a que havia de chegar o dia do ajuste de contas.Mas eu safara-me bem e o dia do ajuste de contas nunca chegara. Conseguira que todos eles passassem a acreditar. A Nana devia estar a sorrir, com aquele seu belo sorriso rasgado. E no entanto...De novo a voz do Pete:— Acabámos de ver o teu filme, Mike. É fantástico... espantoso. Vai ser de arrasar.— Está bem, Pete — murmurei. — Bestial... Qual filme?— O teu filme. Regresso ao Futuro.«Regresso ao Futuro. Certo.» Então, era por isso que o Pete estava a telefonar. Tinha acabado de sair de uma exibição, reservada a profissionais, do filme cuja estreia estava marcada para a semana seguinte. Agora, a minha mente começava a andar para trás.A Meredith, grávida, estivera fora de combate durante a maior parte do Outono de 1984 e eu tinha decidido manter-me ocupado, pelo que aceitei o papel principal de Lobijovem, um filme independente com um orçamento reduzido. Olhando para trás, não faço a menor ideia do que terei pensado. (Tinha resultado com o Michael Landon?) Um dia, durante as filmagens de exteriores, à hora do almoço recebi umas pessoas que tinham ido ver o cenário, vestido a preceito de jovem lobisomem. Várias camadas de espuma de borracha ajustadas ao corpo, revestidas de pêlos eriçados de iaque e coladas à cara com cola de aviões tornavam impossível comer como devia ser e, por isso, sorvi o meu almoço de batido de leite por uma palhinha. Inquieto, perguntei aos meus amigos se a escolha daquele papel não iria arruinar-me a carreira mas, como o que eu queria era ser tranquilizado, eles fizeram uma cara séria e, simpaticamente, mentiram: «Não te preocupes com isso. Vai correr tudo bem.»Nesse dia, estávamos a filmar na velha Pasadena, numa rua onde, dos dois lados, se alinhavam casas cujos andares eram desnivelados e onde os carvalhos que sobre ela lançavam as suas sombras eram tão velhos que as raízes empenavam os passeios. O efeito, simultaneamente exótico e familiar, tornava a zona um dos locais preferidos pelos cineastas; e, como não podia deixar de ser, enquanto explorávamos o ambiente para a nossa obra épica, encontrámos o grupo avançado de outra produtora, que fazia o reconhecimento do local.— Estão a trabalhar para o novo filme do Spielberg, Regresso do Futuro ou qualquer coisa assim — disse-me, mais tarde, o realizador-assistente. — Deve arrancar em fins de Outubro.— Quem é que entra no filme? perguntei.— Ninguém que eu conheça — respondeu ele, — tirando o Crispin Glover.Vil Eu também conhecia o Crispin - um jovem actor impetuoso, excêntrico e brilhante, com quem já tinha trabalhado -e, embora não fosse habitual eu ser competitivo em relação aos meus pares, senti uma ligeira ferroada, ao saber que o maluco do Crispin estava na calha para trabalhar num filme do Spielberg, enquanto, embrulhado em látex, eu estava amarrado a uma comédia de lobisomens de segunda categoria. Pelo menos, pensei, acabando por ceder aos instintos mais invejosos, ele não tinha conseguido o papel principal. Esse tinha sido dado, fiquei a saber, a outro actor igualmente impetuoso e brilhante, apenas ligeiramente menos excêntrico, chamado Eric Stoltz.Ora, mesmo que o Lobijovem viesse a destruir a minha carreira de actor de longas-metragens ainda antes de ela ter começado, restava-me Quem Sai aos Seus. A Meredith já dera à luz os gémeos e íamos recomeçar a trabalhar em Novembro, depois interrompíamos para as festas e voltávamos ao trabalho na primeira semana de Janeiro de 1985. Era a última etapa, os nove episódios que faltavam de uma encomenda de vinte e dois. Um

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regresso à normalidade, apesar dos contratempos. Pelo menos era o que eu pensava.Um ou dois dias depois das férias de Natal, o Gary chamou-me ao seu gabinete para uma reunião - tinha uma coisa muito importante para discutir comigo. Levou-me até ao seu gabinete no segundo andar, ao lado da sala de filmagens da NBC, onde estava a produzir o episódio-piloto de uma nova série. Uma fileira de janelas panorâmicas abria-se sobre o palco do estúdio - um esquema perfeito para ele vigiar o seu império em expansão. O Gary dirigiu-se à secretária, abriu uma gaveta e tirou de lá um envelope, do qual extraiu um guião. Era demasiado volumoso para poder ser um guião de Quem Sai aos Seus e, já agora, para ser um guião de qualquer outra sitcom.— Tenho que te confessar uma coisa — começou Gary. —Mesmo antes do começo da época, o Steven mandou-me umexemplar deste guião.Steven Spielberg e Gary eram muito bons amigos e, quando o Gary dizia «o Steven» eu sabia que se referia a Spielberg.— Ele é o produtor e o Bob Zemeckis, o fulano que fez o EmBusca da Esmeralda Perdida, é o realizador. O Steven e o Bobqueriam muito que fosses tu a fazer o papel principal. Perguntaram-me se havia alguma hipótese de te libertar da série. Na altura,não te disse nada, porque era mesmo impossível e não queriadesapontar-te. Espero que compreendas.Eu compreendia, de facto. Com Quem Sai aos Seus no limiar de um sucesso estrondoso, Gary seria doido se pusesse em perigo a série, correndo o risco de perder o intérprete daquela que passara a ser a personagem principal. No entanto, tudo isto estava a começar a parecer-me vagamente familiar e, de repente, lembrei-me porquê.— É essa coisa do Futuro, não é? — perguntei. — É o Eric Stoltz que está a fazer isso. Julgava que eles tinham começado a filmar há meses.— E começaram — respondeu Gary. — Mas não gostam daquilo que têm até agora. O Eric é óptimo, mas eles acham que não é a pessoa indicada para o papel. Quanto mais pensam nisso, mais acabam por voltar à escolha inicial, que eras tu. Vai sair-lhes muito caro, mas eles querem voltar a filmar toda a parte dele. A minha cabeça começou a andar à roda.— Terias que começar a trabalhar esta semana. Mas queroque compreendas o que é que isso significa. Não posso, demaneira nenhuma, alterar o calendário de Quem Sai aos Seus,especialmente depois de tudo quanto já aconteceu nesta épocacom a Meredith. Não temos condições para reescrever tudo portua causa, nem para te riscar de um único episódio. Vais ter quefazer o teu trabalho normal na série e, depois, vêm buscar-te elevam-te para o local das filmagens, onde deves ter que trabalharaté às duas ou três da manhã.(Acabaria por ser até às cinco ou seis da manhã.)— Vai ser assim durante o resto da época. Pensei muito nisto e não quero roubar-te esta oportunidade, pela segunda vez. Se achas que consegues dar conta do recado, por mim está tudo bem.— Sim... Acho que... Tenho a certeza que consigo — gaguejei.— Bom, agora vamos ao que interessa — concluiu Gary. — O filme chama-se Regresso ao Futuro. É tudo.E, ao dizer isto, empurrou o guião para o lado da secretária onde eu me encontrava e agarrei nele com as mãos a tremer.— Lê-o. Se gostares, logo vemos como é que vamos fazer.Peguei no argumento e balancei-o sobre a palma da mão esquerda, calculando o seu peso. Voltei a olhar para o Gary e, com um sorriso imbecil estampado na cara, pronunciei três palavras.— Adoro este guião.• * *Tinha poucas dúvidas de que aquele era o tipo de projecto de longa-metragem pelo qual esperava desde o primeiro dia, e é claro que corri para o meu apartamento, para me sentar a ler o guião. A história era fantástica, embora um pouco difícil

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de seguir à primeira leitura, e a personagem de Marty McFly - um aluno do secundário, músico de rock and roll, praticante de skateboard e engatatão - parecia ser do tipo que eu era capaz derepresentar a dormir. O que, na prática, acabaria por acontecer. Chegámos a acordo e marcaram-se as provas do guarda-roupa, os encontros com Steven, com o realizador Bob Zemeckis e com o co-autor do guião e produtor associado, Bob Gale. O Gary tinha razão: durante a semana, iam buscar-me no fim de um dia de ensaios de Quem Sai aos Seus e levavam-me para Pomona, onde, cerca das 2 da manhã, começava a gravar as primeiras imagens do filme. Dejeans e com um casaco que parecia um colete de salvação, agarrado a uma câmara de vídeo, eu passava por cima de um dos dois rastos de pneus flamejantes, no parque de estacionamento, molhado e deserto, de uma rua comercial fechada ao trânsito, e tartamudeava:— Está a construir uma máquina do tempo, usando um DeLorean?Telefonei para o Canadá, para partilhar as boas novas com os meus velhos. A minha mãe não distinguia o Steven Spielberg do Cecil B. DeMille.— Ainda bem, querido — disse ela. E acrescentou: — Masnão deixes que eles te estafem.Durante os três meses e meio que se seguiram, aliar o trabalho em Regresso ao Futuro com o trabalho em Quem Sai aos Seus absorveu-me por completo. Um motorista da equipa vinha buscar-me às 9 e 30 da manhã para me levar para a Paramount, onde passava o dia a ensaiar o episódio semanal, culminando, todas as tardes, cerca das 5 da tarde, com um ensaio geral. Depois, às seis, um motorista da outra equipa levava-me a toda a pressa para os Estúdios da Universal, ou para qualquer outro local onde fossemos filmar nessa noite, e trabalhava no filme até pouco antes de o sol nascer. Nessa altura, saltava para a parte de trás da carrinha da produção, com uma almofada e um cobertor, e um terceiro motorista levava-me de volta a casa - algumas vezes, tendo literalmente que carregar comigo até ao apartamento e que me meter na cama. Dormia umas duas ou três horas, até o motorista n.° 1 voltar a aparecer no meu apartamento, entrar com uma chave que eu lhe tinha dado, fazer-me uma caneca de café, abrir o chuveiro e arrastar-me dali para fora, para eu começar tudo outra vez.Nas noites de sexta-feira, gravávamos Quem Sai aos Seus em estúdio com público e, por isso, nessas noites, eu começava a trabalhar mais tarde no Regresso ao Futuro. E como, no dia seguinte, não trabalhava na série, era preciso compensar o atraso, trabalhando até muito depois de o Sol nascer, na manhã de sábado. As duas produções eram completamente independentes uma da outra. O ónus de coordenar o tempo entre as duas caía directamente sobre os meus ombros. Não que uma ou outra pudesse ter feito alguma coisa para aliviar o meu fardo; as duas tinham calendários que já tinham sido seriamente comprimidos por circunstâncias imprevistas - Quem Sai aos Seus pela ausência de Meredith e Regresso ao Futuro por ter substituído o intérprete da personagem principal e estar a filmar de novo todas as cenas em que o intérprete inicial entrava. Com alguma relutância, a Universal Studios tinha aceitado pagar as despesas decorrentes do passo em falso do casting, mas só na condição de isso não afectar a estreia programada para o Verão. Bob Zemeckis tinha montadores a trabalhar vinte e quatro horas por dia, para integrar as cenas que eu filmava nas cenas filmadas anteriormente e para montar todo o material, de forma a conseguir cumprir a data-limite. Assim, para ser imparcial, não era só eu que tinha uma arma apontada à cabeça, embora talvez fosse o único que sentia o aço frio dos canos de duas armas encostados à nuca.Zemeckis e Goldberg pareciam satisfeitos com a qualidade do meu trabalho, mas eu começava a ter algumas dúvidas. Ao fim de algumas semanas, foram várias as alturas em que atormentei o Bob Z. com perguntas acerca do resultado das filmagens do dia anterior - cenas que, por vezes, nem sequer me lembrava de ter filmado. Numa das noites de gravação com público de Quem Sai aos Seus, entrei em pânico nos bastidores. Prestes a fazer a minha entrada na cozinha, vasculhei freneticamente na mesa dos adereços, à procura da câmara de vídeo de Marty McFly. Já nem sabia onde diabo me encontrava. Como era que alguma daquelas merdas podia sair bem?

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Por isso, ali em Londres, empoleirado na beira da cama de hotel, com a mão esquerda a agarrar o auscultador do telefone eo punho da mão direita a massajar os olhos, numa tentativa de fazer parar a dor horrível da ressaca, a única resposta que me ocorreu para a declaração de Peter Benedek de que tinha acabado de ver o Regresso ao Futuro:— Desculpa, Pete, eu sei que fui uma desgraça. Para a próxima há-de sair melhor.— Estás maluco? — disse Pete, rindo. — Fizeste um trabalho óptimo. Digo-te que o filme vai ser uma bomba. A Universal quer que fales com os jornalistas, para promover a estreia. Mas, como ainda vais estar em Inglaterra na altura da estreia, eles precisam de mandar aí alguns repórteres e de marcar umas entrevistas por satélite. Ah, vão mandar-te uma cópia do filme, para veres, antes de falares com os jornalistas. Está bem?Claro que concordei em dar as entrevistas, pois não queria ser acusado de não jogar em equipa. Mas declinei ver o filme. Não queria vê-lo. Pelo menos, não naquele momento.— Só há uma primeira vez para se ver uma coisa —expliquei ao Pete. — E eu quero vê-lo pela primeira vez aí, nosEstados Unidos, numa sala de espectáculos, com um públicoa sério.A verdade era que estava com medo. O telefonema tinha sido como um choque eléctrico. De repente, tudo fazia sentido. Agora, já podia associar aquele sentimento de fatalidade que, nas últimas semanas, me acompanhara para todo o lado, com um acontecimento real, próximo. Era uma sensação que, nos anos seguintes, viria a repetir-se em vésperas de muitas das estreias dos filmes em que participei. O momento crucial da verdade aproximava-se. Não havia absolutamente forma nenhuma de eu poder influenciar o desenrolar dos acontecimentos. Não era tanto o facto de ter uma má opinião daquilo que fizera, como sugerira ao Pete, mas o facto de mal me lembrar de ter feito fosse o que fosse. Contudo, este sentimento de distanciação tinha duas caras: por um lado, era uma fonte de ansiedade (ter-me-ia saído bem?) mas, por outro, funcionava como uma espécie de amortecedor, visto que quase não sentia como meu o desempenho que estava prestes a ser avaliado.Até àquela altura, o meu sucesso tinha sido tão inesperado -nem de perto nem de longe era capaz de o assimilar - que eu considerava-o sobretudo uma questão de sorte. A sorte manter-se-ia? Parecia bom demais para ser verdade.Quando eu tinha quatro anos, em Chilliwack, a minha mãe esteve empregada durante algum tempo e deixava-me entregue a uma baby-sitter, uma vizinha que também tinha crianças. Para mim, estava muito bem desaparecer quando me apetecia, mas não gostava muito que os adultos que faziam parte da minha vida fizessem o mesmo. Foi nessa altura que a minha cabecinha de quatro anos descobriu o poder da psicologia dos contrários. A partir das quatro da tarde, ficava de pé no pátio de entrada da baby-sitter, com as lágrimas a correr pela cara abaixo, entoando uma vez e outra o mesmo mantra: «A minha mãe não vai voltar... a minha mãe não vai voltar.» Claro que ela voltava sempre - um milagre que eu atribuía ao facto de estar preparado para o caso de ela não voltar.Talvez fosse isso que eu estava a fazer, nos dias que antecederam a estreia de Regresso ao Futuro. A minha sorte estava quase a acabar, dizia a mim próprio, o raio ia cair-me em cima. E, quando isso acontecesse, queria estar convenientemente preparado. Despedi-me de Pete e desliguei o telefone. Dirigi-me ao minibar e abri uma garrafa de cerveja. Se isto era o princípio do fim, era forçoso admitir que tinha sido uma grande aventura.Afinal, o futuro provaria que a aventura mal tinha começado.

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CAPÍTULO QUATROPerdido na Casa das DiversõesQuiosque de jornais americano -por alturas de 1986GQ: «Ascensão e ascensão de Michael J. Fox» US: «Michael J. Fox - Regresso ao meu Futuro» People: «O segredo de um sucesso» Rolling Stone: «O tema quente - Michael J. Fox»P/oygj>/;«Batendo as ruas com Michael J. Fox» Bop: «Quem é mais giro? Kirk Cameron ou Michael J.? - Você decide!»No MEU ANTIGO BAIRRO DE STUDIO CITY, na esquina sudoeste dos boulevards Van Nuys e Ventura, há um quiosque de jornais. Nos anos 80 pós-Regresso ao Futuro, eu parava lá de vez em quando - boné de basebol descaído sobre a testa, óculos escuros na cana do nariz - e, discretamente, olhava para os escaparates. Não, não andava a espreitar o que traziam a Hustler ou a Juggs, ou qualquer outra revista do género, mas a ver quantas versões de mim havia expostas - People, US, GQ, TV Guide, MAD, Cracked, AdWeek, Variety, McCalVs, Family Circle, The National Enquirer, The Star, The Globe, Seventeen, 16, Tiger Beat, Bop, etc, etc.Para onde quer que olhasse, via reflexos da minha imagem. Mas o problema era esse: nenhum desses reflexos era uma representação verdadeira do meu eu real, fosse esse eu o que fosse; era mais como uma daquelas casas dos espelhos, que nos mostram imagens deformadas. Em vez de imagens reflectidas, eram facetas diferentes daquilo que era a minha imagem pública, distorcidas pelos diversos directores e editores para melhor promoverem os pontos de vista deles - não os meus - e, mais importante ainda, para atraírem os sectores de público que tinham por alvo. Assim, na capa da People, eu era um rapaz comum, igual ao vizinho do lado; na capa da GQ, um yuppie bem vestido; na da Playgirl, um símbolo sexual... Reconhecia alguns deles mas, quanto aos outros, bem podiam ser extraterrestres que habitavam o meu corpo - o que, na verdade, bem poderia ter sido o título de um dos tablóides.A casa dos espelhos no boulevard Van Nuys é a metáfora perfeita para aquilo em que a minha vida se transformara, depois de ter dado comigo metido na labiríntica casa das diversões de uma mega-celebridade da América - um sítio onde, como viria a descobrir, é fácil uma pessoa perder-se.Eis os factos, uma recapitulação da minha história, até então.Em 1979, sentindo-me limitado pelo conformismo em que fora criado e cheio de sonhos de vir a ser actor, troquei o Canadá por Los Angeles. Ao longo dos três anos que se seguiram, tive um sucesso modesto e anónimo mas, na Primavera do terceiro ano, estava na penúria. A conquista do papel de Alex, em Quem Sai aos Seus, em 1982, despoletou uma viragem. Rodeado de produtores, actores e guionistas talentosos, desempenhei o papel de um personagem que fez vibrar os corações dos telespectadores. Conquistei alguma notoriedade - tipo segundo-convida-do-no-Johnny-Carson, um perfil de duas páginas na TV Guide (depois do problema de palavras cruzadas). Depois, pela primeira vez na minha carreira, além dos compromissos de trabalho na televisão, comecei a receber propostas para fazer filmes. No Verão de 1985, Quem Sai aos Seus era o segundo programa mais visto do horário nobre, Regresso ao Futuro atingia o número um das vendas de bilheteira e, inexplicavelmente, Lobi-jovem ocupava o segundo. E eis como, no curto espaço de seis anos, me tornei famoso.E aqui está a ironia: o meu plano sempre tinha sido esse. Esperem aí: era ou não era? Eu não tinha partido para Hollywood, aos dezoito anos, para procurar fama e fortuna e, três anos mais tarde, não tinha anunciado ao Coady, depois de ter filmado o episódio-piloto de Quem Sai aos Seus, que finalmente, estava quase a ir longe? Não tinha sido sempre esse o meu objectivo -a ideia fundamental - tornar-me, um dia, rico e famoso?Mas não é assim tão simples. Ser «ricoefamoso» era uma fantasia recorrente, para mim como para qualquer motorista de camião. Por isso, na medida em que implicava liberdade, ser «ricoefamoso» tinha atractivos. Mas, se essa fantasia se tornasse sinónimo de, por exemplo, milhões e adoração, então, não, não acredito que

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nenhuma destas palavras, juntas ou separadas, representassem as minhas primeiras motivações.Relativamente ao meio em que fora criado, rico significava comprar a minha comida e a minha roupa e poder pagar a renda. Na altura, para mim, a fama era uma coisa tão básica como não ter que estar sempre a dar explicações, conquistar uma reputaçãoe, com ela, um espaço onde pudesse concretizar os meus interesses. Não queria que ninguém andasse a lamber-me as botas, só queria chegar a uma posição onde não pudessem pisar-me os calos.Para simplificar, a minha maior ambição era ser actor. O meu objectivo principal era arranjar trabalho e não tornar-me rico. Segundo a lei das probabilidades, a carreira de actor não é um meio provável de alcançar a riqueza. E, no que se refere à fama - se ela fosse o único objectivo, poderia ter havido um caminho mais fácil, embora não tão directo como os que presentemente existem. Hoje, bastar-me-ia ir acampar, com um bando de narcisistas igualmente maquiavélicos, em Bora Bora ou no deserto australiano, comer meia dúzia de ratos, uma mão-cheia de larvas de varejeira e, zás, todos os programas e magazines televisivos do país apareceriam em força.Aquilo que eu realmente desejava - e, durante muito tempo, mesmo isso me parecia pedir muito - era que ser actor fosse um meio de ter meios. Queria que cada papel que representava fosse seguido de outro e assim por diante. E que, se alguma coisa acontecesse, fosse bom demais para ser verdade.Essa qualquer coisa aconteceu.Vou conduzir-vos numa curta visita guiada - com holofotes e sem holofotes - ao que é Ser-Famoso-na-Casa-de-Diversões-da-América, um mundo em mudança constante, no qual apenas uma coisa é perfeitamente clara: não há nada que nos possa preparar para esta viagem.Não existem mapas nem guias e poucos são os que, tendo visitado o labirinto, deixam para a posteridade conselhos susceptíveis de ajudar ou, pelo menos, uma ou outra pista críptica no que se refere a armadilhas ou atalhos. Estava por minha conta. Tinha de confiar nos alicerces morais e éticos que a minha família me proporcionara (neste aspecto, tive sorte) ou fiar-me nos meus próprios impulsos (neste departamento já não tive tanta sorte).Além disso, ao contrário da opinião generalizada, antes de se entrar na casa das diversões, ninguém nos entrega nenhum CONTRATO DE VENDA DA ALMA AO DIABO para assinar: Quer ser actor? Óptimo. Mas, ao escolher uma vocação tão vil e, pior ainda, tão egoísta (admita que a única coisa que quer é ser ricoefamoso,), você renuncia por este meio ao direito de se queixar de, discutir ou pôr condições, quanto ao que quer que seja que lhe possa vir a acontecer. Escreva o seu autógrafo aqui, na linha ponteada... Não estou a queixar-me, mas tenho a certeza absoluta de não terassinado nada.Não é de espantar que a fama - pelo menos a fama do show-biz - seja tão desconcertante. Afinal, o teatro, onde tudo começa, baseia-se num jogo de engano mútuo. O actor finge ser alguém que não é e o público suspende voluntariamente a sua descrença. É um jogo de confiança, no qual as duas partes correm o risco de sofrer a humilhação de fazerem papel de parvas. Ao partir do princípio de que o público lhe concederá o tempo e a atenção necessários para desenvolver a sua arte, o actor torna-se vulnerável à atrapalhação do fracasso. Em troca, o público depende dos dotes do actor para não se sentir idiota por ter acreditado. Quando é bem negociado, toda a gente pode ganhar com este contrato. A recompensa é aproximadamente uma hora de pensamento colectivo mágico - e inofensivo.A relação simbiótica entre o artista e a assistência funciona mais ou menos assim: o público vê os seus mais negros medos e as suas mais profundas fantasias serem representados num meio seguro - enriquecimento da experiência sem riscos emocionais. A actuação coloca diante de nós um espelho, no qual podemos observar as nossas facetas mais secretas, sem corrermos o risco de outra pessoa reconhecer o nosso reflexo. O actor é compensado com os aplausos e com a sua percentagem do preço das entradas - a forma mais básica da fama e da fortuna.Contudo, uma vez ultrapassados os limites materiais e temporais da sala de espectáculos, o acordo torna-se mais complicado. Com a televisão e o cinema, por

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exemplo, o sentido de escala torna-se tão distorcido que a ideia e o valor desse espelho se perdem. Veja-se o caso do actor de cinema - ampliado de modo a ocupar as dimensões de um ecrã de seis metros, esse actor assume a dimensão de um deus. Vendo-o a partir do espaço às escuras, quase de igreja, da sala, alguns espectadores poderão mesmo começar a vê-lo como tal - logo, como ídolo da matinée. Pelo contrário, o actor de televisão é miniaturizado, torna-se omnipresente como se fosse um novo membro da família do telespectador. Também nesta ilusão há um poder quase divino, que depende da ubiquidade dessa mesma ilusão e do número total de pessoas que o actor consegue atingir, no espaço privado das suas salas de estar.Estas percepções são amplificadas por todas as outras formas de mass media - jornais, revistas, rádio, livros e a internet. Neste momento, quase todos os limites do conceito teatral original desapareceram e o palco da celebridade cresce e passa a ocupar o mundo inteiro. Neste novo reino multimédia, parece não haver princípio nem fim da actuação, parece não haver palco nem bastidores, não haver proscénio. Agora, tudo faz parte do espectáculo - incluindo a vida privada do actor.Uma boa parte deste pensamento mágico é instintivo e escapa ao controlo das celebridades. A fama não é uma coisa que alguém faça; é uma percepção que tem origem e reside não na mente dessa celebridade mas na imaginação colectiva do público. Com o tempo, as compensações do actor e as expectativas do público são cada vez menos controladas e, cada qual pelas suas razões, toda a gente fica contente por esquecer que o exercício se baseia numa ilusão. Um simples truque de magia, confinado a uma sala de cinema ou a um ecrã de televisão, transforma-se numa epidemia de pensamento mágico que atinge toda a sociedade.Por estranho que possa parecer, tornar-me famoso foi uma coisa que me aconteceu, do mesmo modo que a doença de Parkinson é uma coisa que me aconteceu. Não estou a dizer que a celebridade é uma doença mas pode despoletar uma situação psicológica anormal semelhante à mania ou à amnésia. Fiquei tão embriagado com o néctar do dinheiro e com a ambrósia das possibilidades ilimitadas que me deixei dominar por completo, esquecendo por algum tempo que nada daquilo era real.Felizmente, apareceu alguém na minha vida que me fez lembrar que tudo aquilo era resultado de artes de prestidigitação; que, embora não havendo mal em deixar-me arrastar pelo que aquilo tinha de maravilhoso, nunca deveria esquecer-me de como funcionava o truque. Como muitas outras pessoas na mesma situação, acabei por ser obrigado a fazer uma escolha: viver num mundo no qual acreditava na ilusão e aceitava o privilégio como um direito; ou rejeitar o pensamento mágico e fazer os possíveis por manter os pés no chão do mundo real. Sinto-me envergonhado ao dizer que não foi uma escolha fácil mas, por fim, decidi-me pela segunda opção. E ainda bem que o fiz - porque, se ainda continuasse a viver segundo as regras da casa das diversões, quando me foi diagnosticada a doença de Parkinson, tenho a certeza de que o diagnóstico me teria destruído.É BOM SER O REINão me interpretem mal - passei umas horas muito, muito agradáveis.Quando era miúdo, era maluco por raparigas. Ainda me lembro de cada paixoneta específica que tive, em cada ano da escola primária; até sou capaz de dizer os nomes delas. Mas, quando cheguei à adolescência, era bastante tímido em relação ao sexo oposto. Talvez isso tivesse a ver com a insegurança por causa da minha altura. Também me tinha resignado ao facto de, pelo menos na escola, as raparigas preferirem os atletas aos fraca-lhotes do teatro. Apesar disso, e embora não se pudesse dizer que fosse um engatatão, tive alguns namoricos e, na altura em que abandonei a escola secundária, andava com a Diane, a minha primeira relação duradoira.Em meados dos anos 80, a conversa era outra. Conhecem a velha frase que começa com «as raparigas que nem sequer se dignavam dizer-me as horas...?» Eu acabá-la-ia assim: «passaram a convidar-me para ir a casa delas ver as horas nos despertadores da mesinha-de-cabeceira.» E também havia a pergunta: «Não te incomoda o facto de ela querer dormir contigo só porque tu és uma celebridade?» Para a qual a minha resposta era: «Ah... não.» No papel de Luís XVI, em Uma Louca História do Mundo, Mel Brooks disse-o melhor, quando, com os braços à

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volta das cinturas espartilhadas de duas damas-de-honor, declarou, efusivamente: «É bom ser o Rei.»• * •Pode ser que eu me tenha sentido um rei, mas senti-me deslocado na companhia de uma princesa de verdade. Voltei a Inglaterra no Outono de 1985, para a estreia real de Regresso ao Futuro. A princesa Diana assistia à estreia. Quando chegámos à sala, Bob Zemeckis, Steven Spielberg, os intérpretes e outros convidados, fomos conduzidos à zona de recepção perto da entrada. O chefe do protocolo real preparou-nos para a apresentação formal a Diana. A suar desesperadamente, dentro do meu smoking alugado, cheio de goma, a verdade era que tinha mais razões para estar nervoso do que o resto do grupo. Afinal, era canadiano e, portanto, súbdito real. E estava prestes a ser apresentado à minha futura rainha. Ocorreu-me que a Nana poderia estar a ver aquilo.Enquanto esperávamos no bar, até sermos escoltados para a fila de recepção, caí na asneira de emborcar umas cervejas para acalmar os nervos. Não fiquei bêbedo, mas esse estado não é a única consequência de se beber cerveja numa altura pouco indicada.A princesa foi cordial e era ainda mais bonita - mais sexy - do que eu esperava. Usava um vestido de noite de seda azul sem costas; em volta do pescoço esguio e elegante, trazia um colar de pérolas muito comprido, que dava uma volta e lhe caía pelas costas abaixo. Eu gostaria de lhe dizer que, na minha humilde opinião, o colar e o vestido lhe ficavam muito bem, mas a oportunidade não se proporcionou. O fulano do protocolo foi impiedoso na sua litania do que se devia e não devia fazer e eu segui as instruções à risca. Para alívio de toda a gente (talvez mesmo até da Nana), passei pela prova da apresentação sem cometer nenhuma gaffe séria.Em breve teria outra aberta.O grupo real entrou para a sala e, depois de os terem instalado, os escudeiros vieram buscar o resto do grupo. Fui conduzido ao meu lugar e quase que tive um ataque cardíaco. Era ao lado de Diana. Ia passar uma noite no cinema, com a Princesa Diana. Santo Deus, pensei, tirando o facto de ela ser casada e de ser a Princesa de Gales, isto é quase o mesmo que sair com ela. Pelo menos, podia fingir, não é? Desde que não me deixasse entusiasmar, não fingisse adormecer, nem lhe pusesse o braço por cima dos ombros. E se o braço ficasse preso naquelas pérolas todas? Dei comigo a suar outra vez.Nos momentos que antecederam a projecção do filme, houve uma pequena conversa trivial, iniciada pela Princesa. Uma das muitas regras do Sr. Protocolo, além de todos os títulos honoríficos a utilizar quando lhe dirigíamos a palavra, era que não podíamos falar com ela, a menos que ela falasse primeiro connosco; se estivéssemos sentados, não podíamos levantar-nos antes de ela se levantar; e nunca, mas nunca, podíamos ficar de costas para ela. Não me pareceu que houvesse qualquer problema em cumprir todas estas instruções, até as luzes se apagarem e o genérico de Regresso ao Futuro começar a desfilar pelo ecrã.Então, aconteceu: um enorme e inconfundível desconforto -precisava de verter águas. Urgentemente. Era normal - a ansiedade, a maldita cerveja - mas que diabo podia eu ia fazer? Era refém da etiqueta. Ela era capaz de ser suficientemente bem-educada para não falar comigo durante o meu filme e, se dissesse alguma coisa, fosse o que fosse, a resposta apropriada não era de certeza: «Peço perdão a Vossa Alteza mas tenho que ir ali e já venho.» Não podia levantar-me e sair da sala, a menos que ela o fizesse. E, mesmo que pudesse, iria ter que sair dali, a tropeçar nas outras pessoas da fila e era mesmo capaz de cair de costas. Claro que havia outra opção - mas era impensável.E, assim, a minha fantasia de uma noite no cinema com uma princesa transformou-se nas duas horas mais terríveis da minha vida, um aviso oportuno da Natureza de que não devia deixar-me arrastar por situações estonteantes. Por mais que inúmeras pessoas se esforçassem por me fazer acreditar o contrário, eu era apenas um ser humano. Em breve, haveria outras coisas a recordar-me este facto. E eu precisava dessas recordatórias.Embora não fosse rei, nem mesmo príncipe, estava rapidamente a ganhar o suficiente para viver invulgarmente bem. Em finais de 1986, o caminho que levava à minha casa de Laurel Canyon parecia um parque de carros de luxo. Tinha um

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Ferrari, um Range Rover, um Mercedes 560 SL descapotável, um jeep Cherokee e um Nissan 300 ZX. Não consigo lembrar-me da enorme complicação que devia ser decidir qual dos carros ia levar, quando ia trabalhar - se calhar, dependia do tempo, de qual dos automóveis tinha mais gasolina no depósito ou de qual deles tinha os estofos que ligavam melhor com a camisa que vestira nessa manhã.E havia ainda a própria casa. Mandara fazer umas remodelações, no Verão de 1986, enquanto estive fora a fazer dois filmes, um atrás do outro: A Luz do Dia, em Chicago, e O Segredo do Meu Sucesso, em Nova Iorque. A casa já tinha três quartos de dormir e, por isso, não mandei fazer mais. Por quase meio milhão de dólares, mandei fazer grandes alterações ao quarto principal, criando uma enorme suite com clarabóias de abrir e fechar e uma zona de jacuzzi/banho turco, rematada com uma lareira, dois televisores e um belo bar. Para um miúdo de vinte e cinco anos que ganhara a lotaria, o dinheiro não tinha importância -bom gosto tampouco.Lembro-me de uma passagem do Saturday Night Live do princípio dos anos 80, na qual o Eddie Murphy se disfarça de branco e descobre outra América. A primeira paragem que faz, depois da cadeira do maquilhador, é numa banca de jornais de um edifício de escritórios. Murphy pega no jornal da manhã, espera que um cliente negro acabe de fazer as suas compras e, então, coloca o jornal no balcão, juntamente com uma moeda de 25 cêntimos. A princípio, o vendedor fica confuso e, depois de verificar nervosamente que o cliente negro se foi embora, sorri e devolve o dinheiro. «Está a brincar comigo, não está?», diz o homem dos jornais, rindo. «Você não tem que pagar. Pegue nojornal e leve-o.» Mais tarde, numa instituição bancária de poupança e crédito, quando um bancário afro-americano interroga o Murphy caucasiano sobre o seu historial de crédito, um bancário branco vem em seu socorro. Quando ficam sós, o bancário pede desculpa e, com uma piscadela de olho, põe-lhe à frente um monte de notas novinhas de 100 dólares. «E não se preocupe com o reembolso... Precisa de mais?» Murphy conclui que, quando não há afro-americanos presentes, os brancos dão coisas uns aos outros, de graça. Mas ainda há mais. A caminho de casa, a carruagem do metropolitano em que seguia deixa para trás os últimos passageiros não brancos e, de imediato, começa uma festa, com champanhe, aperitivos e um quarteto de jazz.Que tem esta sátira sobre a experiência afro-americana a ver com a minha história? A nível político, pouco ou nada. Mas, tal como o atónito homem comum negro representado por Murphy, eu estava a experimentar o choque e a excitação vagamente ilícita de uma passagem inesperada para um universo paralelo, um universo de cuja existência não fazia a mínima ideia.Tal como os brancos da sátira de Murphy, as celebridades recebem uma quantidade de coisas, de borla. Na altura em que, finalmente, tinha dinheiro para comprar os sapatos que me apetecesse, fui convidado a visitar a sala de exposições da Nike em Santa Mónica, onde me entregaram um saco de viagem enorme e me convidaram a enchê-lo com tantos pares de sapatos com o símbolo da marca quantos lá coubessem. As motivações da Nike eram óbvias: uma única fotografia de uma celebridade, calçada com aqueles sapatos, valia tanto como um anúncio, sem a despesa de pagamento de honorários. Uma vez, no programa Tonight, o Jay Leno perguntou-me se eu gostava de viver nos Estados Unidos. «É óptimo. Só não gosto da cerveja. A cerveja americana é um bocado aguada», confidenciei. «Por isso, bebo Moosehead Ale, importada do Canadá.» Uma semana depois, estava eu sentado à mesa da cozinha, ouvi o ruído do motor de um veículo pesado a subir o caminho até minha casa. Afastei a cortina, olhei lá para fora e vi um camião verde com um enorme logótipo da Moosehead pintado num dos lados. «Há muitas maisde onde estas vieram», disse o homem das entregas, entregando-me um cartão de visita. «É só telefonar-nos, quando estas estiverem a acabar.»Acabara de tropeçar num dos truísmos menos conhecidos da sociedade americana: quem mais tem mais consegue. Não admira eu ter podido comprar uma cabine de sauna em granito preto - quase tudo o resto era de borla. Tinha refeições, viagens em primeira classe, quartos de luxo em hotéis - tudo de graça. Desde os tempos em que andei pelos pubs de Londres até ao dia em que, finalmente, deixei de beber, não me lembro de me terem posto muitas contas à frente, em cima dos balcões dos bares -quer se tratasse ou não de Moosehead.

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Melhor ainda do que quem mais tem mais consegue, a «taluda» desta caixa de presentes de primeira é a piscadela de olho. Não se pode comprar uma piscadela de olho - o reconhecimento, não verbalizado, de quase toda a gente que encontramos (os donos das lojas, os seguranças dos bares, os chefes de mesa, os empregados de balcão das companhias de aviação e, até, os poucos civilizados funcionários do Departamento de Veículos Motorizados) de que fomos considerados merecedores de uma nova série de privilégios; de que, para nós, as normas habituais não se aplicam. Deixámos de ser pessoas vulgares.O mais espantoso era o número de pessoas vulgares dispostas a alinhar num jogo cujas regras me favoreciam de uma forma tão absurda. Se eu quisesse contornar as regras, quebrá-las ou ignorá-las por completo, as pessoas pareciam ficar contentes por me fazer a vontade. Fosse qual fosse a direcção que eu decidisse seguir, essa transformava-se numa via com menos obstáculos, uma verdadeira «faixa de rodagem rápida».O máximo era eu ainda continuar a ser um rapaz simpático. Não tive que sacrificar a minha boa educação canadiana, para mandar alguém sair do meu caminho. Embora deva confessar que, ao fim de algum tempo, sentia uma indignação secreta, quando alguém não se apressava a fazê-lo. Uma pessoa habitua-se facilmente a estas mordomias.• • •Adorava os meus automóveis mas, depois de ter escolhido qual deles ia levar nessa manhã para o trabalho, desenterrá-lo do meio do resto da frota era uma tarefa árdua. Sentia-me um empregado de um parque de estacionamento super bem pago. A solução para o problema (e que problema!) foi esta: eu continuava a ir periodicamente ao Canadá - em quase todas as férias, fims-de-semana prolongados e assuntos de trabalho - e, assim, da próxima vez, ia levar o 300 ZX e deixá-lo lá, para utilizar durante as minhas futuras visitas.Ia repetir o trajecto de mais de dois mil quilómetros que fizera, sete anos antes, com o meu pai. Só que, desta vez, o co-piloto ia ser o meu irmão Steve. O Steve chegou de avião, numa sexta-feira à tarde, em finais de Agosto de 1986, e pusemo-nos a caminho depois da gravação dessa noite de Quem Sai aos Seus. O nosso plano era fazer a viagem L. A./Vancouver sem paragens e em menos de vinte e quatro horas.Fui eu a conduzir durante a parte inicial da viagem e consegui um bom ritmo na saída da cidade. Numa demonstração literal da minha atitude de ir sempre pela faixa mais rápida, em breve comecei a sentir-me frustrado, quando os carros mais lentos não me deixavam ultrapassar. Uma das lesmas era particularmente teimosa. Por mais que eu fizesse sinais de luzes ou aproximasse o meu carro desportivo turbo da traseira do carro dele, o Sr. Qual-é-a-Pressa? recusava-se a sair do caminho.— Que diabo é que este gajo vai a fazer na faixa de rodagemrápida?O Steve, cujo sentido de humor e da oportunidade eu tomara como modelo para Alex Keaton, inclinou-se, espreitou para o conta-quilómetros e, depois, olhou para o carro que ia à nossa frente.— Ah — respondeu. — Vai a fazer cerca de 140.Antes de partir para o Canadá, eu mandara instalar um detector de radar por baixo do pára-choques do 300 ZX. Não posso garantir que funcionasse bem - não apitou uma única vez em toda a viagem. Mas o simples facto de utilizar um dispositivo destes significava que eu reconhecia as regras do código da estrada, ainda que tentasse torneá-las. Mais tarde, a experiência ensinar-me-ia que talvez não precisasse de me preocupar.Um dia, ao começo da tarde, vinha eu a acelerar pelo Ventura boulevard, no meu Ferrari - estava atrasado para uma reunião num dos estúdios do Valley, uma sessão de casting. Nessa altura, já não fazia audições; havia anos que não tinha que fazer audições para nada. Nessa época, os papéis tinham-se invertido; os actores vinham fazer as suas leituras comigo e para mim, na esperança de conseguirem um papel no meu próximo filme. No entanto, ainda tinha uma memória recente do que era estar no lugar deles e da tortura que era ser deixado à espera. Por isso, queria chegar o mais depressa possível e, recorrendo a uma

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maravilha da tecnologia automóvel italiana no valor de 100 000 dólares, ia chegar mais depressa que um relâmpago.A minha manhã fora deveras estranha. Estava de regresso de Nova Iorque, de um encontro com a imprensa, ainda a sentir os efeitos do cansaço provocado pela diferença horária quando, no caminho do aeroporto para casa, recebi um telefonema frenético do meu assistente. Burnaby, o meu até então perfeitamente amigável e inofensivo pit bull, tinha escolhido aquela manhã para abocanhar o pescoço do cão do vizinho e estava, naquele preciso momento, com os dentes lá cravados. Numa conversa telefónica surrealista e unilateral, eu gritava a palavra «Larga!» repetidas vezes, enquanto o meu assistente encostava o telemóvel ao ouvido do cão. Quando cheguei, o Burnaby estava em segurança, em casa, e, embora exibisse um pequeno buraco de ventilação indesejada na laringe, o cão do vizinho parecia ir sobreviver. Os donos estavam assustados, mas não especialmente zangados. Afinal, o seu husky da Sibéria tinha ido passear para o meu quintal, transgressão que, penso, tinha despoletado o instinto de defesa territorial do Burnaby.Por mais amigáveis que os vizinhos fossem, eu já era uma figura pública havia tempo suficiente para poder vir a ser um potencial réu num processo judicial por causa da mordidela docão. Assim, enquanto saltava para dentro do Ferrari e descia a toda a velocidade o caminho da minha casa, para ir para a reunião no estúdio, marquei o número do meu advogado no telefone do carro para o pôr de sobreaviso. Ironicamente, ainda estávamos a falar quando, seguia eu em excesso de velocidade pelo Ventura boulevard, vi as luzes azuis e vermelhas intermitentes de um carro da polícia de Los Angeles a piscar no meu retrovisor.— Merda. Não vais acreditar — disse eu ao meu advogado.— Não desligues... Sou capaz de precisar de ti daqui a unssegundos.Encostei e, pelo retrovisor lateral, observei o polícia a apro-ximar-se - a mão esquerda na coronha do revólver e a mão direita a passar pelos contornos do Ferrari preto. Talvez precisasse de se convencer de que o carro tinha parado de facto; mesmo parado, parecia ir a 80 à hora. A primeira frase que pronunciou deu-me a entender que estava lixado.— Por acaso, tem carta de condução?Sentado no assento de um carro, pareço sempre pequeno e, dentro de um Ferrari, um carro especialmente baixo, devia parecer, pelo menos da perspectiva dele, um miúdo de escola que tinha ido dar uma volta. Só depois de ele ter observado a fotografia de identificação que eu lhe entregara com os dedos a tremer - de pânico, não devido à doença de Parkinson - olhámos directamente um para o outro. A sua cara de pau abriu-se num sorriso.— Miike! — disse ele, tirando os óculos escuros. — Tem que ter cuidado, amigo. Este carro é muito pesado e nós não queremos que se magoe.— Peço desculpa — balbuciei, apesar de não se poder dizer que o seu reparo amável exigisse um pedido de desculpas.— Pronto — disse ele, inclinando-se para o interior do carro para me devolver a carta de condução e apertar-me a mão. — Um bom dia para si e tenha calma. Eu e a minha mulher queremos continuar a ver Quem Sai aos Seus. Adoramos essa série.Aplicaram-me muitas multas de trânsito - todas merecidas -mas houve umas tantas cenas como esta, embora talvez não tão ostensivas. Senti um tremendo alívio, seguido de um impulso de euforia por saber que tinha escapado a um castigo ao qual não deveria ter escapado. Depois, a história começou a chatear-me um bocado. Claro que estava contente por me terem mandado seguir. Não me passou pela cabeça chamar o polícia e insistir para que ele me passasse uma multa e o melhor era mesmo preencher a porcaria do papel. Mas, andar a 120 numa avenida comercial, com semáforos a cada esquina, à hora do almoço de um dia de semana, era zombar descaradamente das regras que todos os outros cidadãos de Los Angeles eram obrigados a cumprir. Acrescente-se o meu estado de espírito naquele momento - sob os efeitos da diferença horária, cheio de pressa, preocupado com os acontecimentos disparatados daquela manhã - e a verdade é que eu merecia não apenas uma multa, mas ser pura e simplesmente proibido de circular na via pública. Porém, mal aquele polícia descobriu que o puto de escola do Ferrari era

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o rapazinho engraçado da caixa que havia na sua sala de estar, a ameaça transformou-se num «Miike». Enquanto voltava a entrar, lentamente, na fila do trânsito, não pude deixar de perguntar a mim mesmo: «Que raio de merda é esta?»SIM, SIMNão sei o que se passou com os vossos filhos, mas a primeira palavra que os meus disseram foi «não». Aconteceu o mesmo comigo, quando era bebé e talvez também tenha acontecido convosco. É a partir do «não» correctivo («Não, não podes comer bolo ao jantar.») e do «não» protector («Não, João! Não se faz chichi para cima das tomadas.») que começamos a ter noção dos limites. Mas isto não quer dizer que o «não» se aplique apenas aos limites. Ao darmos à criança os meios para ela definir a sua identidade única e o seu sentido do eu, pronunciar a palavra não constitui o primeiro passo no caminho para a autonomia.A meio da casa dos vinte, eu ainda era muito criança, mas já não ouvia a palavra não com muita frequência, se é que ainda a ouvia. E, francamente, andava demasiado contente para meimportar com isso - ao princípio. Ouvir «sins» a toda a hora estava óptimo para mim. «Sim, Sr. Fox. Esta noite, temos as mesas todas marcadas, mas vamos já arranjar uma para si e para as dez pessoas que vêm consigo. Por aqui, por favor.» «Sim, sim. Acrescentar uma casa de banho de trinta e seis metros quadrados ao seu quarto é uma ideia espantooosa.» «Sim, aqui tem o meu número de telefone. Ligue-me quando quiser.»Quando era criança, estava sempre a sonhar com um mundo de possibilidades ilimitadas e a falar dele. E, agora, verificava que esse mundo afinal existia e pronto - eu tinha chegado ao reino mágico do «sim», que as outras pessoas me tinham dito só existir nos contos de fadas. No entanto, há alturas em que, por mais espectaculares que sejam os êxitos de bilheteira e os índices de popularidade, uma pessoa sã de espírito espera ouvir um «não» - por exemplo, numa frase como: «Não, não pode guiar ao dobro do limite de velocidade legal dentro da cidade.»Foi em momentos como este que comecei a sentir as implicações de levar uma vida sem limites precisos. Em breve comecei a compreender que a ausência de muros não significa apenas liberdade; também significa vulnerabilidade. Demorei algum tempo, mas acabei por formular e, depois, por dar resposta a duas perguntas aterradoras. Será que mereço tudo isto? E, se não mereço (e alguém merecerá?), o que é que vai acontecer, quando as pessoas descobrirem? Assim, concebi uma estratégia em três vertentes, para me proteger contra um hipotético «não», desagradável, humilhante e inibidor, que estivesse à minha espera no fim de uma longa cadeia de sins.Para começar, a fim de atenuar a culpa nascente que sentia por nunca ouvir ninguém dizer-me não, bani praticamente a palavra do meu próprio vocabulário. Achava que, fosse o que fosse que alguém me pedisse ou quisesse de mim, o mais seguro era dizer que sim. Sê bom rapaz, colabora, dá-te bem com toda a gente. É claro que quem só ouve sins e só diz que sim acaba por dar consigo encalhado no meio de coisa nenhuma, sem fronteiras estabelecidas entre si e o mundo exterior, desarmado.As pessoas a quem eu dizia sim mais vezes e de melhor vontade eram os fãs. Afinal, fora a resposta deles ao meu trabalho (uma espécie de imenso sim colectivo) que tornara possível o meu sucesso. Alguns conheciam-me havia anos, de Quem Sai aos Seus; outros só mais recentemente, de Regresso ao Futuro. Era sempre fácil distinguir uns dos outros. Os fãs da série eram animados, amigáveis e descontraídos; de facto, a minha reacção instintiva à familiaridade das palmadas que me davam nas costas era pensar que devia ter andado com eles na escola (por mais breve que tivesse sido a minha passagem por lá). Pelo contrário, os fãs do filme reagiam como se tivessem encontrado o Sasquatch1 durante um piquenique no bosque. Dada a minha visibilidade no pequeno e no grande ecrã, estes tinham, evidentemente, um pé em cada um dos campos - e não sabiam bem se haviam de me dar uma palmadinha no ombro ou de me rasgar a camisa.Isso não tinha importância. Quantas vezes não são os bombeiros abordados na rua, por estranhos, que os cumprimentam pelo último desentupimento que fizeram? Com um «obrigado», um sorriso e aceitando tirar uma fotografia ou dar um autógrafo - um simples «sim» - consegui, literalmente, fazer ganhar o dia a algumas pessoas

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e sempre considerei isso um privilégio. Claro que, por vezes, o encontro é inoportuno ou embaraçoso. As máquinas fotográficas, por exemplo, têm tendência a nunca funcionar à primeira. Tiradas à pressa de um bolso ou de uma mala de mão e nervosamente passadas de mão em mão, enquanto, por entre gargalhadinhas, cada membro do grupo de amigos se coloca à vez ao meu lado, para tirar a foto, os flashes não funcionam ou o rolo acaba. Uma pequena dica: as máquinas descartáveis precisam de ser rebobinadas depois de cada exposição.Assinar autógrafos pode, por vezes, ser igualmente cómico -longos momentos a rir, enquanto as pessoas procuram atabalhoadamente uma caneta ou um lápis, um lápis para os olhos ou um batom. Depois, o que é que eles querem mesmo que se assine? Um cartão de visita, uma carteira de fósforos, uma fotografia de1 Animal fantástico das florestas do Noroeste dos Estados Unidos e do Canadá. (N. da T.)criança tipo passe, a pala de um boné de basebol, uma parte visível do corpo ou, no caso dos melhor preparados, um livro de autógrafos. Alguns actores, mesmo os mais complacentes, como o meu amigo Alan Alda, recusam-se em absoluto a dar autógrafos - por pensarem que este ritual cria uma barreira que os separa da experiência de conhecer pessoas. Lembro-me de uma noite, num restaurante chinês, em Nova Iorque, quase ter ficado histérico, enquanto, recorrendo à mímica e ao inglês pidgin\ o Alan tentava explicar a um perplexo cantonês da equipa da cozinha o motivo por que era melhor apertarem simplesmente as mãos. Provoquei-o sem piedade, enquanto rabiscava o meu nome, em resposta aos pedidos de todo o pessoal do restaurante.— Eu respeito os teus princípios, Alan, mas os teus crepes estão a ficar frios. Assina lá!Mas percebo o ponto de vista dele; afinal, o que é realmente um autógrafo? Um contrato assinado, pelo qual um fulano qualquer da televisão reconhece a existência do Phil, natural do Ohio? Penso que se trata apenas de mais um exemplo de pensamento mágico. De qualquer modo, para mim, dar autógrafos é simplesmente uma maneira indolor de dizer sim e muito obrigado.Havia também outros pedidos mais sensatos. Fundações como a Starlight e a Make-A-Wish, criadas com a finalidade de satisfazer os desejos de crianças muito doentes, telefonavam regularmente a pedir para eu passar algum tempo com essas crianças e com as famílias. Era meu hábito, quando andava em filmagens, programar uma visita ao hospital pediátrico da cidade onde me encontrasse. Conheci crianças com leucemia e outras com cancros, crianças com fibrose quística que lutavam a cada inspiração de ar, jovens diabéticos em diálise, lutando pela vida, na esperança de que fosse encontrado um doador de rim enquanto ainda era tempo. Sem excepção, enfrentavam a doença com uma graça e uma dignidade que qualquer adulto na mesma situação1 Versão adulterada do inglês, usada como língua franca entre Chineses e Europeus. (N. da T.)teria dificuldade em igualar. Muitas vezes, a sua maior preocupação não era por si mesmos, mas pelos pais e irmãos. São crianças que sabem tudo acerca do «não» e que compreendem a injustiça das limitações. Na altura, as suas lições de coragem e aceitação tornavam-me mais humilde. Só recentemente, quando tive que lutar com o «não» do médico, assimilei de facto essas lições. Sinto-me grato a todos os meus jovens professores. Se, de cada vez que disse «sim» a estas crianças, fiz uma dádiva, o verdadeiro beneficiário acabei por ser eu.Naquelas circunstâncias, eu teria sempre dito «sim». Mas há uma lista mais longa de coisas que aceitei fazer apenas para manter a máquina do sucesso bem oleada e a funcionar perfeitamente. Sim a entrevistas e a apresentações públicas, sim aos pedidos dos estúdios, sim aos pedidos das estações de televisão e, quando havia conflitos: «Sim, não se preocupem, eu resolvo isso.» A estreia real em Londres, por exemplo, foi numa noite de domingo, antes do começo de uma semana de ensaios. O que queria dizer que eu tinha que sair de Heathrow às 8.00, GMT1, chegar a Nova Iorque às 10.00, EST2, apanhar outro avião e estar no palco de Quem Sai aos Seus logo a seguir ao intervalo para almoço, às 14.00, PST3. A minha política de responder sempre pela afirmativa, nalguns casos por uma questão de diplomacia e que, em todos eles, se tornava extenuante, era essencial para a minha estratégia de autopreservação em três vertentes.

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O que me leva à segunda parte dessa estratégia de sobrevivência: trabalho. No caso de Quem Sai aos Seus, sentia uma obrigação especial de ser receptivo e diplomático. O Gary fora alvo de duras críticas dos seus pares da indústria do cinema por me ter deixado fazer o Regresso ao Futuro; quando o filme se tornou um êxito, censuraram-no, acusando-o de ter sido tolo. «Está visto que o miúdo nunca mais vai voltar», diziam. «Vai ficar tão convencido que nem sequer volta a aparecer para a1 GMT, Greenwich mean time: hora de Greenwich. (N. da T.)2 EST, eastern standard time: hora da costa Leste (EUA). (N. da T.)'PST, Pacific standard time: hora da costa do Pacífico (EUA). (N. da T.)próxima época.» Porém, sempre que alguém me perguntava se eu ia continuar na série, a minha resposta era sim - com certeza. Aquela era a minha casa, aqueles eram os meus amigos, o Gary dera-me a grande oportunidade e, além disso, eu adorava fazer o papel de Alex Keaton.Sem pôr em causa os meus compromissos com Quem Sai aos Seus, ocupei muito do tempo que a série me deixava livre noutros projectos. Por vezes à custa de noites em branco, como foi o caso de Regresso ao Futuro, outras vezes fazendo dois filmes em duas épocas, tentando limitar os riscos através da escolha de um drama e de uma comédia, como A Luz do Dia e O Segredo do Meu Sucesso. Não era só por ainda me lembrar do período negro de desemprego, mas porque pensava que trabalhar arduamente era uma maneira de me proteger.Nos períodos em que não andava a tomar banhos de multidão, a promover este ou aquele projecto, a ser diplomático ou a fazer qualquer outra coisa, dedicava-me a aplicar a terceira componente da minha estratégia em três vertentes para sobreviver em Hollywood: estar sempre em festa. Afinal, era um período digno de ser celebrado - havia tantas coisas a correr bem, porque é que eu não havia de comemorar? A minha taça estava a transbordar e eu tentava a todo o custo não desperdiçar uma só gota. Recordo este período da minha vida - até onde consigo lembrar-me desta parte da minha vida - como uma sucessão de festanças: a bebida era de graça e, em geral, o convidado de honra era eu. Para algumas pessoas, o consumo excessivo de álcool é um escape mas, pelo menos neste ponto da minha vida, isso era a última coisa que eu queria. Habitava já num mundo essencialmente de fantasia e não havia outro sítio para onde me apetecesse fugir. Já que o álcool era um conservante, pensava, haveria melhor maneira de preservar aquela ilusão feliz? Por isso, passava uma boa parte do tempo «de conserva».Não bebia quando estava a trabalhar ou tinha qualquer outro compromisso. Mas o sentido da responsabilidade não era o único motivo desta disciplina. Quando estava a representar ou a desempenhar qualquer outra função relacionada com a minha carreira, o próprio ambiente servia de suporte à fantasia e o trabalho era suficientemente estimulante.O essencial era manter-me ocupado - de forma construtiva ou não. Durante este período, o meu credo - trabalhar muito, beber muito, dizer (e ouvir) apenas «sins» - era de facto uma maneira de garantir que, fosse em que situação fosse, estava sempre ocupado e quase não tinha tempo para reflectir. Talvez por o meu sucesso ter sido tão repentino e tão sobredimensionado, tinha a sensação de estar a fugir com qualquer coisa que não me pertencia. Às vezes, sentia-me como quando era adolescente e queria agarrar nas chaves do carro sem acordar o meu pai, que dormitava no sofá da sala. Tirava as chaves de cima da mesinha de apoio, a alguns centímetros do seu vulto adormecido, sem o perturbar e incorrer na sua cólera. A estratégia básica era: manter-me em movimento, entrar e sair o mais depressa possível.A expressão que me ocorre é «como se», como em «age como se tudo isto fosse normal». Mas claro que não era. Pelo menos para mim. Não conseguia impedir-me de sentir que havia qualquer coisa de não autêntico em tudo aquilo - se não a própria situação, pelo menos a minha posição em relação a ela. Talvez houvesse qualquer coisa que se podia fazer para merecer tudo aquilo - o dinheiro, a atenção, a tolerância. Mas será que eu cumpria os critérios? Assim, com o tempo, comecei a sentir-me um impostor. Era quase como se esperasse que, a qualquer momento, alguém me batesse à porta, a dizer que a brincadeira já fora longe de mais. A festa acabara; chegara a altura de voltar para o Canadá e era melhor nem

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pensar em levar comigo algo do que ali estava. Não sei quem pensava eu que me ia lançar um tal ultimato mas, pelo sim pelo não, o melhor era estar bêbedo quando isso acontecesse.Ainda me lembro de, um dia, ter ido à banca de jornais do boulevard Van Nuys e de, entre todas as revistas para adolescentes, tablóides de mexericos e outras publicações periódicas que tinham a minha cara na capa, ter visto uma que me deixou paralisado de medo. Convenci-me que o momento tão temido tinha chegado - ali estava: finalmente, eles tinham-me apanhado.PERDIDO NA CASA DAS DIVERSÕESPor que outra razão haveria eu de aparecer na capa da Psycho-logy Today? Agarrei na revista e, freneticamente, folheei as suas páginas, à procura do artigo de capa.Afinal, não tinha nada a ver directamente comigo - era apenas um artigo genérico sobre a permeabilidade da cultura americana à celebridade. Penso que o meu nome nem sequer era mencionado. A revista estava apenas a usar a minha cara para vender mais exemplares (se não podes vencê-los, explora-os). Por um momento, porém, não tive a menor dúvida que tinha sido total e merecidamente desmascarado.EU SOU FAMOSO, TU ÉS FAMOSOA minha mulher, Tracy, nova-iorquina de gema, deitava-me abaixo com os seus reparos veementes acerca de L. A. - em especial sobre os extremos a que a cidade é capaz de chegar na adulação dos seus habitantes mais celebrados.— Espanta-me que não tenham um parque de estacionamento para celebridades — troçou ela uma vez. — Um parque como os que há para os deficientes, só que com mais comodidades.E prosseguiu, dizendo que esses locais de eleição deveriam ser sinalizados não com a habitual estrela mas com uma imagem ainda mais adequada: a imagem de perfil de um boné de basebol a flutuar sobre um par de óculos escuros.Uma coisa que me intrigava, à medida que me ia dando mais com pessoas famosas, foi o facto de serem tantas as que pareciam ser amigas umas das outras. E também me espantava (sim, pronto, lisonjeava) o facto de muitas saberem quem eu era. Uma estrela de cinema, cuja carreira eu acompanhava havia anos, sentava-se ao meu lado e começava a conversar, como se tivéssemos andado juntos na Liga Júnior. Gradualmente, dei-me conta de que, embora uma certa percentagem destas amizades entre famosos fosse genuína, muito daquilo que eu interpretava como amizade era uma ilusão, como tantas outras da indústria cinematográfica. Não quero com isto dizer que se trate de uma sociedade de gente fingida, capaz de nos apunhalar pelas costas; só que, em muitos casos, aquelas pessoas «conheciam-se» umas às outras da mesma maneira que vocês as conhecem - pela simples razão de que são todas largamente conhecidas. A diferença é que todas elas sabem que são muito conhecidas e, por isso, nessa medida, duas celebridades conhecem-se uma à outra e, além disso, têm uma coisa em comum: sabem que a outra sabe o que é ser-se conhecido pelas outras pessoas todas. Isto estabelece um certo vínculo e gera uma espécie de camaradagem estranhamente fácil. É a este fenómeno que a Tracy (quem mais poderia ser?) designa por clube dos «eu sou famoso, tu és famoso».Apesar de nunca ter sido particularmente fanático das estrelas, havia alturas em que não podia deixar de me sentir impressionado por estar na companhia de algumas delas. Em Março de 1986, fui a Las Vegas com o Sugar Ray Leonard. Embora nunca nos tivéssemos encontrado, éramos co-investidores num negócio imobiliário de um empresário rico, em cujo avião particular viajámos, para ver o combate de boxe desse fim-de-semana entre Marvin Hagler e John Mugabi. Entusiasmado por ter um lugar nas primeiras filas, eu estava ainda mais entusiasmado por estar na companhia de um dos meus pugilistas favoritos.Depois do combate, fomos escoltados até ao casino. Numa área isolada por cordas de veludo, apinhada à volta das mesas de jogo, encontrava-se uma pequena multidão particularmente cintilante - o clube dos «eu sou famoso, tu és famoso», num fim-de-semana fora de portas. Estavam lá velhos amigos, muitos dos quais se encontravam pela primeira vez, e fiquei espantado pela facilidade com que me inseria nas suas fileiras; pela forma banal como eles me aceitaram, a mim, um

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recém-chegado. A festa continuou até às 5 ou 6 da manhã e, à despedida, choveram promessas ardentes de nos encontrarmos e almoçarmos, quando voltássemos a L. A.Claro que nem todas as pessoas que fazem parte deste clube de elite estão ansiosas por ver aumentar o número de membros -por acreditarem que, na verdade, devia haver cordas de veludodentro das cordas de veludo - e essas pessoas apressam-se a emitir um sinal. Nos Óscares desse ano, eu apresentei um prémio e, depois disso, nos bastidores, passei pela Cher, que, ostentando todos os acessórios próprios de uma diva, estava à espera de um elevador.— Olá — disse eu, estendendo a mão. — Eu sou o Mike Fox.Talvez fosse por eu ser mais ou menos da mesma altura queo Sonny ou pelo facto de ela ter contracenado, em Máscara, com Eric Stoltz, o actor que eu substituíra em Regresso ao Futuro. Seja como for, a Cher não pareceu nada encantada por me conhecer.— Eu sei quem você é — disse ela secamente, do outro ladode uma corda de veludo imaginária. E, sem parar para me apertar a mão, deu meia volta e entrou no elevador. Eu sou famosa,tu... nem por isso.A escolha de Tracy para designar esta confraria isolada e insular foi tão subtil que é quase o mesmo que «eu estou bem, tu estás bem». «Eu sou famoso, tu és famoso» sugere uma espécie de grupo de apoio. A interacção com outros que, em muitos casos, têm o mesmo modo de vida e, por uma razão ou por outra, os mesmos privilégios, reforça a ideia de que esta existência etérea é um estado normal.Talvez fosse apenas por eu não ser assim tão bom nessas coisas - a baixar a voz, para os outros terem que fazer um esforço para ouvir as minhas pérolas de sabedoria. Porque, com o passar do tempo, descobri que não me sentia mais à-vontade no papel de «estrela» e percebi que se aproximava o momento em que iria ter que fazer uma opção: ficar no mundo real ou fixar residência permanente ali, do outro lado do espelho.Não que a vida do outro lado não fosse cheia de tentações. O pensamento mágico é contagioso e foram muitos os momentos em que sucumbi à tentação, mas um deles foi especial. Tendo crescido no Canadá nos anos sessenta e setenta, eu idolatrava o Bobby Orr, o defesa lendário dos Boston Bruins. Como qualquer adepto de hóquei de Boston poderá dizer-vos, o dia em que ele foi vendido aos Blackhawks de Chicago foi o início de um longo período de luto. Por isso, quando, em meados dos anos oitenta, anos depois de ter abandonado o hóquei devido a problemas nos joelhos, foi anunciado que eu ia liderar uma equipa da velha guarda da Bruin contra uma equipa de celebridades, num jogo de beneficência, no Boston Garden, os bilhetes esgotaram de imediato. Senti-me arrebatado por ter sido convidado a jogar e fiquei literalmente sem fala quando, minutos antes de o jogo começar, o Bobby Orr veio falar comigo.Foi o George Wendt, da Cheers - Aquele Bar, o treinador honorário da nossa equipa e também admirador ferranho de Orr, quem, enquanto eu apertava os patins, me bateu no ombro, chamando-me agitadamente a atenção para a aproximação do deus do hóquei. Orr era uma pessoa cordial e muito terra a terra. Mas, quando começou a falar comigo, percebi que estava demasiado excitado para apreender o que ele estava a dizer. Limitei-me a acenar com a cabeça.Depois de ele se afastar, o George voltou a sentar-se ao pé de mim.— De que foi que vocês estiveram a falar? — perguntou.— Não faço ideia — admiti. — Mas ele foi o máximo. Quase no fim da primeira parte do jogo, a velha guarda daBruin estava a impor o seu jogo à minha equipa, quando eu apanhei o disco e, patinando na direcção de Orr, que estava a defender a linha azul, executei uma finta rápida, fiz deslizar o disco entre os pés dele, contornei-o e voltei a apoderar-me do disco do outro lado, avançando em seguida em direcção à baliza adversária. O meu patim bateu numa falha no gelo e eu caí por breves instantes, mas consegui recuperar antes que alguém se aproximasse, fiz uma tabela lateral pela esquerda e o disco passou entre as pernas do guarda-redes deles.Foi sem dúvida um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Quando voltei ao banco, estava quase a entrar em hiperventilação. Enquanto bebia grandes golos de água, pensei: Com os diabos, acabei de fintar o Bobby Orr e marquei um golo,

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numa jogada individual! Então, de repente, lembrei-me do que Bobby Orr me tinha dito, antes do jogo:— No fim da primeira parte — dissera — vou deixar que passes o disco entre as minhas pernas, que arranques e marques um golo.Eu sei que era apenas um jogo de hóquei sobre gelo com fins de beneficência e que os golos de bandeja são uma das características destes acontecimentos. Mas o facto de ter sido capaz de me enganar a mim próprio, ainda que apenas por pouco tempo, acerca do que acabara de acontecer, simboliza o poder de sedução do pensamento mágico e como é fácil e perigoso confundir a fantasia desta vida com a realidade.«QUATRO PALMOS DE ALTURA»Naquele sábado de Agosto de 1986, o Steve eu conseguimos chegar sãos e salvos a Vancouver - apesar da minha tendência para guiar depressa demais. Na verdade, a minha sede insaciável de velocidade reduziu a nossa estimativa de viagem: em vez de demorar vinte e quatro horas, atravessámos a fronteira passadas apenas dezoito horas.Eu adorava aquelas viagens até ao Canadá: mais do que isso, tornara-me dependente delas. Ironicamente, o carácter prosaico da vida na Columbia Britânica, a mesma normalidade que, quando era criança, eu achara tão limitadora, passara a ser uma coisa de que tinha necessidade absoluta, pelo menos em doses pequenas. O tempo passado longe de casa e a natureza desmedida da minha experiência tinham-me dado uma nova perspectiva. Surpreendida, mas feliz pelo meu sucesso, a minha família nunca tentou apoderar-se dele, tirar partido dele ou fazê-lo passar por seu.É verdade que os meus pais me deixaram fazer algumas coisas por eles: ajudá-los a pagar a hipoteca sobre a sua velha casa e a trocá-la por outra, arranjar um carro melhor para o meu pai e convencê-lo a reformar-se cedo - na realidade, pagando-lhe a pensão acerca da qual ele falara a brincar, antes da nossa viagem a Los Angeles, em 1979. Tive que insistir; eles tinhamtrabalhado tanto, durante toda a vida. Estes gestos foram bem recebidos, mas os meus pais deixaram bem claro que nunca tinham estado à espera de nada. Na verdade, as minhas primeiras tentativas de liberalidade foram delicada, mas firmemente, rejeitadas. Nos estonteantes primeiros anos de Quem Sai aos Seus, por exemplo, eu ia a casa passar o Natal e submergia a família toda com presentes disparatadamente espaventosos - electrodomésticos, como televisores de ecrã gigante e máquinas de lavar e secar. Depois do jantar de Natal, sentávamo-nos todos à volta da árvore, evitando desastradamente falar da minha mania idiota de superar todas as outras prendas e a beber cocktails B-52 empurrados com cerveja - uma espécie de reencenação bizarra da vigília da véspera de Natal de outrora do meu pai, só que, agora, era eu o pater famílias do horário nobre. Eu acabava por passar para o outro lado - ou, pior, por vomitar no tapete - e eles metiam-me na cama. A minha família sempre me fez sentir que a nossa casa era um sítio onde podia continuar a ser eu próprio.Na altura em que Steve e eu entrámos na cidade, na recta final da nossa corrida da Costa Ocidental até ali, a questão da fama tornara-se demasiado grande para ser deixada na fronteira: não havia um sítio onde me pudesse esconder daqueles que, por todo o lado, me lembravam que era célebre. Em retrospectiva, é óbvio que eu sentia alguma ambivalência em deixar a fama para trás - por que outra razão me dera ao trabalho de trazer até ali o meu espampanante carro desportivo?Nesse ano, Vancouver organizou a Exposição Mundial, a Expo 1986, e uma tentativa de dar uma volta por lá com a família revelou-se impossível. Atraí tantas atenções que a segurança acabou por ter que intervir e organizar rapidamente uma visita privada para nós, utilizando as portas das traseiras e outras vias de bastidores para evitar a passagem pelas entradas do público para os pavilhões.Contudo, antes de as coisas terem começado a ficar fora de controlo, reparei numa cabina de fotografias de recordação - um desses cenários onde as pessoas se colocam junto a um cartão recortado, com a imagem de uma celebridade ou de um políticofamoso, e tiram um retrato. Entre o Rambo e o Reagan, lá estava uma coisa parecida comigo - aliás, Marty McFly a olhar para o relógio, a pose do cartaz do filme. A minha família achou aquilo divertidíssimo e insistiu em que eu posasse

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comigo próprio. De cabeça baixa, para o fotógrafo não se aperceber do que se passava até ao último segundo ou não chegar mesmo a dar-se conta, entreguei-lhe cinco dólares e saltei para a frente da máquina. Lembro-me da gargalhada do meu pai, que fora o primeiro a reparar naquilo: o eu de cartão era uns bons doze centímetros mais alto que eu. Talvez seja, pensei para comigo, olhando para a figura recortada, mas, pelo menos, eu tenho rabo.Umas semanas mais tarde, estava novamente em Los Angeles - em Pasadena, para ser mais exacto - no Civic Auditorium. Tinha sido nomeado para o Emmy de comédia, na categoria de actor principal. No ano anterior, já tivera uma nomeação como actor secundário. Não esperara ganhar e não ganhara. Neste ano, numa categoria mais competitiva, estava ainda menos confiante mas, como andava em maré de imensa sorte, tudo parecia possível. Não preparara nenhum discurso - uma superstição óbvia -mas havia uma frase, uma pequena piada, que andava às voltas na minha cabeça desde o dia da nomeação. A princípio, parecia não passar de uma tirada de humor autodepreciativo, de uma brincadeira com o facto de a minha altura, ou melhor, a falta dela, ser motivo de tantas atenções. As piadas como a que eu tinha em mente têm dois objectivos: mostram que estamos dispostos a rir de nós próprios e constituem uma manobra preventiva - diz isso acerca de ti próprio, antes que alguém tenha oportunidade de o dizer.Por isso, quando o meu compatriota canadiano, Howie Mandei, abriu o envelope e anunciou «O Emmy de actor principal, numa série cómica, vai para... Michael J. Fox.», saltei para o palco, aceitei a estatueta, passei os dedos pelos cabelos, emiti uns ruídos breves, roucos e inarticulados e exclamei: «Não acredito.» Depois, endireitei os ombros, passeei o olhar pela sala e disse mesmo: «... Sinto-me como se tivesse quatro palmos de altura.»Ao longo dos anos que se seguiram, tornou-se claro, pelo menos para mim, que a piada tinha a ver com muito mais do que a minha altura. O que eu queria expressar era que me sentia esmagado pelo meu sucesso, reconhecendo tacitamente que não me julgava merecedor de tudo o que me estava a acontecer. Não estava à altura.Nas férias seguintes, levei o troféu para Vancouver - em parte para partilhar o prémio com os meus pais mas, francamente, também para o exibir. A minha mãe arranjou um lugar de honra para o Emmy: numa mesa no hall de entrada de casa, mesmo em frente da porta da rua. Nessa noite, o meu irmão e as minhas irmãs reuniram-se em casa do pai e da mãe. Houve muitas gargalhadas e comemorações. Mas a experiência ensinara-me que, por entre todas aquelas palmadas nas costas, o Steve ou um dos outros havia de arranjar maneira de me beliscar, de fazer o meu balão descer à terra. Como o golpe ainda não fora desferido na altura em que já bebera demasiada cerveja, desci as escadas para a cave, onde ficava o quarto de hóspedes, e adormeci.Na manhã seguinte, quando cheguei ao hall de entrada onde o Emmy passara a noite, desatei a rir. Rodeando a estatueta dourada, como que a tentar dominá-la pelo simples poder do número, estavam o troféu de boxe que o meu irmão conquistara quinze anos antes, o troféu de bridge da minha mãe, o troféu de curling do meu pai, os troféus de bowling e de natação das minhas irmãs, mais umas quantas provas dos triunfos individuais de todos eles. Perfeito.Era este tipo de gestos cómicos, simples mas oportunos, que me dava segurança. Se aquela corrida atordoadora tivesse um fim abrupto, se o raio me caísse em cima, se eu fosse desmascarado como impostor, ainda tinha para onde voltar. Ainda tinha uma casa no mundo real.No entanto, poucas semanas depois, já não tinha bem a certeza disso. Os meus velhos foram visitar-me a L. A. e trouxeram o Emmy com eles. Mal chegaram à minha porta, vi que o meu pai estava perturbado. Acontecera qualquer coisa terrível.Abraçámo-nos à entrada e o meu pai pediu desculpa e entrou em casa antes de nós, com a bagagem e um saco de mão. A minha mãe tocou-me no braço, pedindo sem palavras para eu me deixar ficar para trás, com ela; tinha qualquer coisa para me dizer.— Houve um acidente na viagem para cá — disse ela. —Foi o teu Emmy. Ficou muito partido. Acho que não deve terconserto.

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O saco de mão com a estatueta tinha sido guardado na bagageira por cima dos assentos, explicou, e, durante o voo, a bagagem de outro passageiro caíra para cima do saco, esmagando a estatueta.— É por causa disso que o pai está tão aborrecido? Que disparate!Quando entrei em casa, o meu pai estava sentado à mesa da casa de jantar. Poucas vezes o vira tão abalado. A cena em si tinha o seu quê de uma estranha inversão de papéis. Olhei para ele e lembrei-me das muitas vezes em que, quando era miúdo, fizera amolgadelas no guarda-lamas, no pára-choques ou nas portas do carro e, sentindo-me muito infeliz, ficara à espera que ele entrasse na sala e me ralhasse. Perturbou-me vê-lo tão perto das lágrimas.— Pai — disse, sorrindo e inclinando-me para o abraçar. —Esqueça isso. É um troféu. É só um pedaço de metal. E, alémdisso, sei que já aconteceram coisas assim - eles dão-me outro.Não se preocupe com isso, está bem?O alívio dele foi instantâneo e palpável.Este incidente ficou-me na memória porque me fez pensar no modo como a fantasia da celebridade pode cravar as garras até nas pessoas mais equilibradas. Ali estava o meu pai, outrora embaixador do princípio da realidade, a tratar aquele pedaço de lata laminada como se de uma relíquia sagrada se tratasse. Como se, de certo modo, aquilo personificasse o sucesso, o poder ou eu próprio. Se, entre todas as pessoas, ele tinha sucumbido a este tipo de pensamento mágico, então toda a gente que fazia parte do meu mundo sucumbira também. Quem haveria de pensar que, de toda a minha família, eu seria o único que se conservava céptico?Mas, desta vez, encontrara outro aliado, dotado de uma dose saudável de cepticismo e com um entendimento claro das pressões extremas que eu estava a enfrentar. Esta ponte para o mundo real entrara em cena havia já um ano, no momento em que eu e os meus pais nos acotovelávamos à volta do Emmy mortalmente ferido - só que eu ainda não sabia isso.TRACYNo fim do Verão de 1985, quando estava em curso a época 1985-1986 de Quem Sai aos Seus, aconteceu uma coisa importante: Alex Keaton arranjou uma namorada. O despontar de um romance com Ellen, uma estudante de arte que Alex conhecera na universidade, captou de imediato a imaginação do público da série - os índices de audiência subiram até ao ponto atingido no fim da época anterior e chegaram mesmo a ultrapassá-lo.Para mim, os efeitos deste facto teriam um alcance ainda maior. De repente, tinha uma parceira. Como actriz, a jovem a quem fora dado o papel tinha uma naturalidade, uma integridade e um talento que me obrigaram a elevar o nível do meu trabalho, simplesmente para aguentar o meu lugar em cena ao lado dela. Mais do que qualquer outra pessoa, foi ela a responsável por, um ano depois, eu ter subido aquelas escadas de Pasadena, para receber um Emmy. Mais tarde, como amiga, ajudar-me-ia a formular e a dar resposta a muitas das questões com que agora me debatia. Não havia forma de o prever mas, alguns anos mais tarde, eu teria uma pergunta a fazer-lhe e ela responderia «sim»; como minha mulher, amar-me-ia e ficaria ao meu lado ao longo dos desafios para os quais nenhum de nós teria uma resposta fácil. Tracy Pollan tinha entrado na minha vida.Eu fizera uma leitura com a Tracy, antes de ela conseguir o papel de Ellen. Mal tínhamos começado a ler as nossas falas, encontrámos um ritmo, um toma-lá-dá-cá que funcionava - não porque estivéssemos a encarar o material segundo a mesma perspectiva mas porque, em vários aspectos, os nossos estilos erammuito diferentes. Com uma formação da escola de teatro de Nova Iorque, a Tracy trouxera para aquele trabalho uma qualidade sólida, disciplinada, que contrastava de modo flagrante com a minha abordagem instintiva, sem escola, só-porque-é-engraçado. A sua beleza - cabelo loiro pelos ombros, escadeado, a emoldurar um rosto delicado, de maçãs salientes e olhos grandes e sérios - era pouco habitual em televisão. Não era o tipo de rapariga engraçadinha que masca pastilha elástica e que se vê, num anúncio, a dizer: «Bem-vindos ao McDonald s.»Além disso, era simpática, divertida e inteligente.Durante o período em que participou em Quem Sai aos Seus, a Tracy tinha uma relação e eu próprio andava com outra pessoa, de forma bastante regular, mas sou perfeitamente capaz de indicar o momento exacto em que me apaixonei por ela.

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Embora, durante bastante tempo, não tenha sido correspondido, este amor nunca diminuiu (até hoje).À falta de um nome melhor, chamaremos a este raio esclarecedor «o incidente dos camarões fritos». Mas, primeiro, vamos apresentar um resumo do contexto. No princípio da época 1985-1986 de Quem Sai aos Seus, Regresso ao Futuro continuava indiscutivelmente a ser o filme número um das bilheteiras. De regresso à série naquele Verão/Outono, fui acolhido como o herói da história do filho pródigo. Sempre tivera uma óptima relação com o elenco e com a equipa técnica - partilhávamos uma camaradagem barulhenta, sarcástica e bem-disposta. Agora mais que nunca, toda a gente era muito tolerante comigo. Afinal, «a estrela» era eu; aquele estúdio era o meu domínio e, embora nunca tivesse sonhado fazer de lorde relativamente aos outros, a verdade é que me saía sempre bem, por mais incrível que fosse o meu comportamento. Apesar dos esforços desesperados do director de cena, acabava por ser eu quem marcava o ritmo dos ensaios - quando estávamos prontos e podíamos avançar e quando fazíamos longos intervalos para telefonemas ou parávamos por completo, entregando-nos a lutas quase apocalípticas com comida. Uma vez, «desviei» o Woody Harrelson do estúdio da Cheers - Aquele Bar e fi-lo desempenhar o papel de Jennifer durante uma cena inteira, incluindo sentar-se ao colo do Michael Gross.Um dia, umas quatro semanas após o início da época, a Tracy e eu estávamos a encenar uma cena, quando foi anunciado o intervalo para almoço. Por essa altura, já éramos amigos e passávamos muito tempo a conversar, no estúdio, mas costumávamos ir cada um para o seu lado, à hora do almoço. Nesse dia, ela foi a um restaurante italiano. Depois do almoço, recomeçámos onde tínhamos parado - batiam à porta da casa dos Keaton, o Alex ia abrir e a Tracy entrava. No momento em que pronunciou a primeira fala, detectei um leve cheiro a alho e achei que era uma boa oportunidade de me divertir um bocadinho à custa dela.— Uau. Camarões fritos com alho ao almoço, não foi,miúda?Primeiro, ela não disse nada. A expressão do seu rosto nem sequer mudou. Mas não foi preciso muito para se ver que a minha piada a surpreendera e magoara. Ali estava eu, um colega actor, em quem ela começava a aprender a confiar, de quem talvez começasse a gostar, a pregar-lhe uma rasteira, com a minha falta de sensibilidade. Fitando-me nos olhos, lentamente, num tom uniforme e demasiado baixo para que as outras pessoas pudessem ouvir, disse:— Essa foi mazinha e ordinária. E tu és uma besta quadrada,meu grande filho da mãe.Fiquei sem respiração. Ninguém falava comigo assim, pelo menos nos últimos tempos. Aquela mulher não se sentia nada intimidada nem impressionada com quem eu julgava que era e, ainda menos, com quem os outros pensavam que eu era. Um porco é um porco, por mais filmes de sucesso que tenha feito. Senti o sangue subir-me à cara. Sentia-me esmagado por uma emoção que, para minha surpresa, descobri não ser cólera. Percebi que não estava chateado - estava apaixonado.Apresentei desculpas e ela aceitou-as. Voltámos ao trabalho e «o incidente dos camarões fritos» não voltou a ser mencionado.No começo da relação Alex/Ellen, Alex apaixona-se violentamente por Ellen, mas descobre que ela está noiva e vai deixar a escola para se casar. Destroçado, vai atrás dela até à estação de caminho-de-ferro, onde Ellen está prestes a apanhar o comboio e a sair da vida dele para sempre. Apesar de divertida, a cena, tal como foi escrita pelo Michael Weithorn, era também terna e emotiva. Nas mãos de uma actriz menos capaz que a Tracy, poderia ter sido exagerada ao ponto de se tornar ridícula. Lembro-me de, durante a gravação, ter perdido momentaneamente a noção de que eu também estava em cena e ficado a olhar para ela, tão fascinado como o resto do público. Mas o meu sonho acordado não podia durar muito, porque trabalhar com a Tracy exigia de Alex uma atenção e um grau de honestidade, que não me sentira compelido a tentar alcançar nas primeiras três épocas. Aquela cena, como todas as cenas em que contracenei com ela, obrigou-me a ser melhor do que alguma vez fora.A Tracy recebeu a oferta de um contrato para uma nova época, mas sentia a falta de Nova Iorque, da família e do teatro e preocupava-a ficar presa a um compromisso televisivo de longo prazo. Olhando agora para trás, é difícil

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acreditar que ela só apareceu em sete episódios de Quem Sai aos Seus. Provocou um impacto tremendo - não apenas na série e na minha personalidade mas também na maneira como, a partir de então, eu viria a encarar a profissão. É por isso que atribuo a Tracy tanto crédito pelo Emmy que recebi naquela época.Mas ela deixou-me muito mais em que pensar do que a forma como eu representava. Quando não estávamos a ensaiar, a gravar ou a colaborar um com um outro para tirarmos o máximo partido de cada guião e darmos o maior colorido possível ao romance Alex/Ellen, andávamos muito pelo estúdio, juntos. A conversar nos bastidores ou preguiçando nas cadeiras do público, durante os intervalos na acção, foi-se criando uma amizade. Eu apreciava o seu sentido de humor, a sua inteligência e, também, a sua sofisticação, totalmente isenta de cinismo.Os sete episódios em que a Tracy participava foram distribuídos ao longo de toda a época, o que lhe deu um lugar naprimeira fila para poder ver a roda-viva em que a minha vida se transformara desde a estreia de Regresso ao Futuro. A maior parte das pessoas que me rodeavam só via o lado positivo daquele sucesso espectacular e concluía que eu só podia estar espantosamente feliz - o que era verdade, a maior parte do tempo -mas a Tracy tinha noção do preço desse sucesso. Tendo crescido no Upper East Side de Manhattan (Park Avenue, para ser mais exacto) e andado numa escola privada com os filhos e filhas de famílias conhecidas, não se deixava atordoar facilmente pelas armadilhas do sucesso. Era perspicaz e conseguia ver a pessoa que havia por trás da personalidade e, embora não fosse nada atrevida ou intrusiva, deixou ocasionalmente escapar a insinuação de que eu devia prestar mais atenção a algumas das minhas opções de vida.Perturbava-a em especial a quantidade de bebida que eu ingeria e, tanto quanto me lembro, foi uma das primeiras pessoas a dizer-me, discretamente, que o álcool era uma coisa com que era preciso ter cuidado e que talvez devesse perguntar a mim mesmo se beber não estaria a transformar-se num problema. Também falámos da necessidade que eu sentia de não deixar ninguém ficar mal, de provar que merecia as oportunidades que me apareciam e de escolher projectos que me garantissem sucesso atrás de sucesso, mesmo que isso significasse deixar escapar oportunidades de crescer como actor.Antes de voltar para Leste, como expressão de amizade e de esperança em que eu sairia são e salvo do terreno minado de Hollywood, a Tracy deixou-me um presente. Ia voltar para a sua vida em Nova Iorque e já me tinha dito que, apesar de ter passado uns tempos óptimos, pensava que não ia ficar na série. Prometemos que nos manteríamos em contacto mas, partindo do princípio de que o tempo que passáramos juntos chegara ao fim, disse-me que havia uma canção que gostava que eu ouvisse.Eu ia a sair do parque de estacionamento da Paramount, no meu 300 ZX ridiculamente cheio de acessórios, quando a Tracy passou por perto, a caminho do seu Volkswagen descapotável alugado. Era um dos nossos últimos dias de trabalho juntos e eladebruçou-se sobre o carro para me entregar a cassete de que tinha falado. Convidei-a a entrar para a ouvirmos mesmo ali, no parque de estacionamento. Ela pôs a cassete e a música começou imediatamente a brotar dos altifalantes, incluindo os gigantescos altifalantes de baixa frequência instalados nos assentos. Envergonhado, baixei apressadamente o volume e desliguei os altifalantes que faziam os assentos vibrar com tanta força que as nossas colunas vertebrais estremeciam. A voz de James Taylor, agora a um nível de decibéis mais adequado ao seu estilo único, invadiu o carro.Os meus gostos musicais iam mais para The Clash - talvez Elvis Costello, nos períodos de maior reflexão - e, por isso, não era capaz de imaginar com exactidão o que poderia o Sweet Baby James dizer-me, que tivesse alguma importância pessoal. Quando ouvi as linhas que se seguem, que percebi serem acerca de John Belushi, captei de imediato a mensagem que ela queria que eu ouvisse. Como qualquer outro actor cómico da minha geração, eu tinha um fascínio por aquele cómico desaparecido; na minha sala, havia uma litografia emoldurada de Belushi, de Ron Wood. Para me pedir que não deixasse que o álcool me fizesse a mim o que a droga lhe fizera a ele, a Tracy contou-me que, no começo dos anos oitenta, quando era adolescente e trabalhava como empregada de mesa em Martha's

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Vineyard, vira Belushi várias vezes. Ao pôr aquela música, estava a sugerir que o erro fatal seria eu perder-me no meio da festa que a minha vida era nessa época. Ao querer ser sempre tudo, para toda a gente, podia acabar por não ser nada para mim próprio.John s gone, found dead Died high, he 's brown bread Later said to have drowned in his bed After the laughter, the wave ofdread It hits us like a ton oflead.It seems, learn not to bum Means to turn on a dime.Walk on, ifyou 're walkingEven ifits an uphill climb.Try to remember that working s no crime.Just don 't let them take and wasíe your time.Thats why I'm here...Durante o ano louco que se seguiu, pensei muitas vezes nesta canção e na Tracy. Na Primavera de 1987, a Tracy, por essa altura sem compromissos, foi a uma audição para um papel em As Mil Luzes de Nova Iorque, um filme que eu ia começar a rodar em Manhattan. Ficou com o papel e, quase no fim das filmagens, apaixonámo-nos um pelo outro e iniciámos a relação que tínhamos fingido ter nos sete episódios que passaram nos ecrãs de televisão da América. Procurámos casa em Vermont, em Outubro, ficámos noivos no Natal e casámos no Verão seguinte.E é esta a história propriamente dita...UMA QUESTÃO DE OPÇÃOArlington, Vermont - Julho de 1988Tracy e eu casámos a 16 de Julho de 1988 e as críticas foram terríveis. The Globe anunciava na primeira página que o casamento fora «um fiasco». The National Enquirer citava uma «fonte interna» que relatara que «as pessoas estavam quase a desmaiar, enquanto cambaleavam lá para fora, depois da cerimónia. Vinham a abanar-se com leques e a arfar.» A People censurou a forma como íamos vestidos, uma coisa extraordinária, uma vez que ninguém da revista nos vira. «Casamento secreto transforma-se num circo», dizia a primeira página do Star, cujo artigo começava assim: «O actor meia-leca Michael J. Fox...» Sempre que um jornal ou uma revista está chateado comigo, começo imediatamente a encolher. Na cobertura do nosso casamento, eu era microscópico.O facto de o nosso matrimónio ter sido motivo de «críticas»é bastante estranho; a Tracy e eu não o tínhamos concebido como parte da nossa oeuvre. Além do mais, nenhum dos supostos «críticos» testemunhara nenhum dos acontecimentos que pretendiam descrever e denegrir. Quaisquer que fossem os padrões utilizados, foi um casamento com muito pouca gente - apenas a família mais próxima e os amigos mais íntimos - nem sequer convidámos tias, tios ou primos em primeiro grau. Esta foi uma prova da influência positiva da Tracy na minha vida; era importante que, desde o começo da nossa vida em comum, abríssemos um espaço íntimo só para nós, separado do tumulto das nossas carreiras.Mas tudo indicava que, ao tentarmos fazer um casamento privado, com poucas pessoas, em Vermont, tão longe quanto possível de Hollywood, tínhamos inadvertidamente atirado a luva à cara da imprensa. Os tablóides lançaram uma ofensiva geral, em várias frentes, para descobrir onde e quando se ia realizar o casamento e para, depois, custasse o que custasse, obterem uma fotografia do acontecimento. A Tracy e eu estávamos decididos a manter o nosso plano inicial de ter uma cerimónia familiar, sem filmagens para a televisão, e o resultado desta decisão mútua foi um complicado jogo do gato e do rato, que nos fez perceber como ia ser complicado estabelecer uma fronteira entre as nossas vidas públicas e privadas.Na altura, as tentativas dos tablóides - umas vezes cómicas, outras perigosas - de se intrometerem naquilo que nós considerávamos ser uma cerimónia privada e os comentários escarninhos que publicaram depois de não o terem conseguido, chatearam-me até mais não. Desde então, muita coisa mudou. Para começar, estou muito menos zangado, se é que estou de facto zangado. Por outro lado, as práticas a que a imprensa se entregou no dia do nosso casamento são uma coisa do passado - pelo menos na imprensa do espectáculo. A cólera pública que se seguiu à trágica morte da princesa Diana, quando ia a ser perseguida pelos paparazzi,

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levou a imprensa a abrandar, ou mesmo a renunciar por completo às tácticas de guerrilha que empregavam nos anos 80 e no começo dos anos 90.Finalmente, mas não menos importante, sinto-me grato, porque o casamento acabou por fortalecer a minha decisão de abandonar de vez a casa das diversões. Não se tratava apenas do meu futuro, mas também do futuro da Tracy. Não era apenas uma questão de opção - ia ter que lutar para criar e proteger esta barreira, a fronteira entre vida pública e vida privada. Isso significava manter-me sóbrio e suficientemente determinado para dizer não a algumas pessoas que estavam habituadas a ouvir-me dizer sempre sim. Era preciso tornar claro para nós próprios, para as nossas famílias e para quaisquer outras pessoas interessadas que, a despeito da profissão, a nossa nova vida em comum ia ter «residência» no mundo real.Um mês antes do casamento, o Enquirer noticiou que a Tracy e eu íamos casar em Vermont, a 16 ou 17 de Julho. Não sabemos como conseguiram a informação, mas era correcta. Para terem a certeza de que nós percebíamos que, convidados ou não, iam lá estar, publicaram uma fotografia aérea da nossa nova casa em Vermont. Pouco depois, o meu agente de publicidade recebeu um telefonema do Enquirer: conheciam todos os pormenores e tinham uma proposta a fazer. Se lhes garantíssemos, em exclusivo, o direito a fotografarem o casamento, pagavam-nos 50 mil dólares e forneciam a segurança, para que os repórteres e fotógrafos da concorrência não perturbassem a cerimónia. A fotografia aérea era, evidentemente, uma ameaça velada: ou nos convidam para a festa ou nós entramos sem ser convidados.Depois, começaram a telefonar os outros tablóides e revistas. Um dos semanários de mexericos optou pela que julgou ser a melhor via. Em vez de dinheiro, ofereceram-nos «aquilo que demos ao Burt e à Loni». Ou seja, segurança (tal como o Enquirer, a sua principal prioridade era proteger o exclusivo), um artigo favorável e a fotografia do nosso casamento na capa.Nas suas propostas, o National Enquirer e os outros referiam as minhas «obrigações para com os fãs». Argumentavam que as pessoas que mais tinham contribuído para o meu sucesso e a minha felicidade deveriam poder partilhar comigo o dia mais feliz da minha vida. Parece um argumento de espíritos nobres,até se perceber que estas publicações não se ralariam nada com a minha relação com os meus fãs, se não estivessem interessadas em tirar partido dela. Sugerir que eu «partilhasse» o casamento com o público era, de facto, uma maneira delicada de me convidar a participar no empacotamento e venda da cerimónia, recebendo em troca tanto espaço impresso quanto possível.Talvez possa parecer estranho, mas a verdade é que tínhamos dificuldade em pensar no nosso casamento como se ele fosse uma espécie de evento da NCAA', cujos direitos podíamos vender. Se íamos fazer isso, porque não arranjar também um patrocínio (chamemos-lhe as Núpcias Nike) e realizar a cerimónia em Madison Square Garden, com Regis Philbin a celebrar o casamento e Bob Costas a fazer a entrevista pós-coito? Escusado será dizer que recusámos todas as propostas.As regras do combate tinham sido fixadas; se não estávamos dispostos a vender-lhes aquilo que eles queriam, iam pura e simplesmente roubá-lo. É verdade que podíamos ter alterado os nossos planos; chegámos a encarar a possibilidade de fugir para casar em Las Vegas. Mas assumir uma posição tão reactiva aos planos para o nosso casamento parecia teimosia. Decidimos ir por diante conforme previsto - havia sempre a hipótese de a imprensa saber menos do que dava entender, pensámos. E estaríamos preparados para o caso de eles aparecerem mesmo. Contratámos a empresa de segurança de Gavin De Becker (e ficámos contentes por pagarmos do nosso bolso).A cerimónia estava marcada para sábado, 16 de Julho, numa tenda contígua à West Mountain Inn, em Arlington, Vermont. A estalagem em si era um sítio acolhedor, anichado nuns dez hectares de campos bucólicos de Vermont. O único acesso era por um caminho que tinha uma ponte sobre o rio Battenkill e serpenteava através de prados onde pastavam lamas.Durante a semana que antecedeu o grande dia, foram acontecendo coisas cada vez mais estranhas. Um repórter acampou praticamente à porta do apartamento da Tracy, em Nova Iorque,1 National Collegiate Athletic Association. (N. daT.)

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perguntando a todas as pessoas que passavam se a conheciam e, em caso afirmativo, se ela tinha falado com elas nos últimos tempos sobre alguma coisa que estivesse para acontecer na sua vida. Em Vermont, o Enquirer estabeleceu um posto de comando no Equinox, em Manchester (o mesmo hotel onde a Tracy e eu estávamos instalados). E tomaram posições em todos os hotéis, motéis e estalagens das redondezas, prometendo dinheiro aos empregados, em troca de pormenores sobre as idas e vindas dos nossos amigos e familiares. Um homem que afirmava ser Bill Fox, o meu pai, deleitou os estranhos com planos para o casamento (quando não estão a fazer perguntas, os repórteres dos tablóides estão a delinear cenários imaginados para alguém confirmar). Dúzias de jornalistas percorreram as duas cidades, oferecendo subornos a toda a gente que lhes pudesse dar informações. A certa altura, um repórter mais empreendedor de um dos tablóide foi ao ponto de tentar raptar a avó de Tracy, de oitenta e dois anos, procurando convencê-la a entrar no carro dele, ostensivamente para a levar a dar uma volta pela zona mas, na realidade, para ver se conseguia sacar-lhe informações. Colocaram fotógrafos, vestidos de camuflado, nas colinas em volta da West Mountain Inn. Mais tarde, soubemos que até tentaram alugar uma máscara de lama, para ver se conseguiam aproximar-se mais das instalações.No dia do casamento, acordei ao som de helicópteros. Resumindo, os vários jornais, revistas e programas televisivos sobre o mundo do espectáculo tinham alugado, nas proximidades, um total de seis helicópteros. Era óbvio que alguns tinham unido esforços e recursos, pelo que fotógrafos e operadores de câmara concorrentes partilhavam os voos; mesmo assim deve ter sido terrivelmente dispendioso. O Enquirer reservou dois só para si e um destes iria manter-se a voar sobre as nossas cabeças durante todo o sábado. Aqueles helicópteros não se destinavam de modo algum a tirar fotografias do casamento - os jornalistas sabiam que a cerimónia ia ser debaixo de uma tenda e, além do mais, quem é que se casa às 9 da manhã? Não, os helicópteros eram apenas uma forma de guerrilha psicológica. A ideia era manter a pressão, até eu recuar e lhes dar oportunidade de tirar fotografias.Mas penso que ficariam igualmente satisfeitos, se eu saltasse para fora da tenda à Sean Penn e os ameaçasse com o punho. Os helicópteros nunca me incomodaram muito, embora nos tenhamos sentido desconcertados quando compreendemos que aqueles gigantes com asas de aço disputavam entre si uma reduzida área do espaço aéreo directamente por cima das cabeças das pessoas que nos eram mais queridas.Porque foi que a Tracy e eu nunca cedemos? Porque não saímos debaixo da tenda e não lhes acenámos? Nem fomos até ao fundo do caminho de acesso, onde havia imensos jornalistas (e poucos fãs, se é que havia alguns)? Porque não nos limitámos simplesmente a deixá-los fazer uma fotografia do casamento, coisa que deixaria toda a gente contente? Para começar, depois de tudo o que os tablóides tinham feito, não estávamos na disposição de lhes ser agradáveis. Em segundo lugar, uma única fotografia não exclusiva não lhes bastaria. Depois dessa, iam querer a fotografia dos noivos a cortar o bolo, a fotografia «exclusiva» da noite do casamento e, em seguida, uma fotografia em fato de banho durante a lua-de-mel.A Tracy e eu percebemos que ceder, naquela altura, teria sido desistir de muito mais do que a possibilidade de deixar que nos tirassem uma simples fotografia. Teria sido um voto a favor do pensamento mágico; um lugar onde se vive e se morre em função dos recortes de imprensa, dos índices de audiências e de bilheteira - um lugar onde a representação dura vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. A decisão de enveredar por esse caminho teria correspondido à opção de permanecer para sempre na casa de diversões e dizer adeus ao mundo real.Durante a cerimónia, os helicópteros «atacaram» em força. Debaixo da tenda estava calor mas ninguém desmaiou nem ficou com falta de ar. Do lado que era aberto para o céu, tínhamos as abas da tenda descidas mas, do lado oposto (do qual os helicópteros não podiam aproximar-se por causa do terreno), a tenda estava aberta e deixava entrar a brisa. De certo modo, a loucura que reinava lá fora tornou o acontecimento ainda mais terno, por ter aproximado ainda mais as pessoas umas das outras.

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Por inimaginável que possa ter parecido àqueles que se encontravam no exterior, foi um belo casamento, um êxito tremendo. A despeito dos subornos, dos helicópteros e dos subterfúgios, os seus esforços conjugados não lhes valeram uma única fotografia. Assim, pagámos a privacidade com a moeda das críticas dos jornais e revistas, que lançaram directamente para cima de nós o embaraço do seu fracasso. Foi um preço que valeu a pena pagar porque, de uma penada, nos permitiu unirmo-nos no ritual do casamento e estabelecer uma linha de demarcação que criava um espaço só para nós. Um espaço nosso que, embora não o soubéssemos na altura, nos ajudaria a enfrentar uma tempestade mais séria, que o futuro nos reservava.

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CAPÍTULO CINCOA realidade é duraStudio City, Califórnia - 6 de Janeiro de 1990Enquanto a limusina percorria os quatrocentos metros da nossa casa na encosta até ao cruzamento do boulevard Laurel Canyon com o boulevard Ventura, o céu escureceu, as luzes das ruas acenderam-se e uma chuva fraca começou a cair sobre as ruas. Quando nos aproximámos de Ventura, o semáforo passou a amarelo e, sensatamente, o motorista optou por abrandar em vez de tentar passar com o vermelho já quase a cair. Havia crianças no carro e, apesar de saber que estávamos com pressa de chegar ao aeroporto, ele também sabia qual era o motivo daquela viagem. Para quê correr o risco de juntar uma tragédia a outra tragédia?Nós os cinco tínhamos que apanhar o próximo voo para Vancouver, onde o meu pai dera entrada de urgência no hospital. Não se sentia bem havia cerca de um mês; não que ele alguma vez se tivesse sentido em grande forma durante a maior parte da sua vida adulta. Fumava sem parar e as horas extraordinárias tinham-lhe valido uns 14 quilos a mais, num corpo outrora tão magro que lhe permitira ser jóquei. Naquele primeiro sábado da nova década, esse corpo cedera por fim a sessenta e um anos de maus-tratos. O primeiro a falhar fora o coração, depois os rins começaram também a falhar. Segundo as últimas notícias, ainda estava vivo, mas a sua vida estava por um fio.A Tracy e eu sentámo-nos um de cada lado da minha irmã Jackie, que chorava baixinho. A Tracy deu a mão à Jackie. Preso à sua cadeirinha, no banco à nossa frente, atrás das costas do motorista, o nosso filho Sam, de sete meses, tinha adormecido. Ao lado dele, Matthew, de nove anos, filho da Jackie, remexia-se, irrequieto, limpando à manga da camisa as lágrimas de medo e desilusão. Já tinha idade para perceber que o avô estava muito doente, mas era ainda suficientemente criança para considerar, o que era compreensível, que o problema mais grave era o súbito cancelamento das suas férias na Califórnia, incluindo a expedição do dia seguinte à Disneylândia.Enquanto esperávamos que o sinal ficasse verde, parou ao nosso lado um sedan branco - para ser mais exacto, um Chrysler Fifth Avenue de 1987, branco. Soube instantaneamente qual era o ano e o modelo, porque, da capota de pele cor de marfim aos pneus radiais brancos e ao castanho avermelhado dos estofos de riscas finas, era o mesmo carro que eu comprara para o meu pai quando ele fizera cinquenta e nove anos. Era o carro do meu pai. Só que, evidentemente, não era.Olhei para o lado esquerdo, para a cara da minha irmã; ela estava a olhar para fora da janela, para aquele carro. Apesar das lágrimas que lhe molhavam as faces, a sua boca esboçou um sorriso.— É bom sinal — murmurou.— Pois é — respondi.Enquanto a abraçava, o meu olhar cruzou-se com o da Tracy. Também estava a chorar, mas não sorria. Pensava que o carro fantasma não era bom sinal; não era mesmo nada bom sinal.No aeroporto de Los Angeles, toda a família entrou para o avião, mas eu fiquei para trás, na sala de espera, para responder a um telefonema. Tinha uma mensagem no telemóvel, de um amigo da família. Logo que consegui ligar-lhe, as suas primeiras palavras foram: «Lamento muito.» E fiquei a saber que o meu pai morrera. Não pude deixar de pensar no carro branco, quando ele disse que o meu pai tinha morrido enquanto íamos a caminho do aeroporto.Fui ter com a minha família ao avião. A hospedeira estava a oferecer cocktails; eu pedi um Jack Daniel's e um Bacardi. Quando as bebidas chegaram, emborquei o bourbon e levei o rum pelo corredor fora. Poisei-o na mesa em frente da Jackie, sentei-me ao lado da minha irmã e disse-lhe que o nosso pai tinha morrido.• * *Os quatro anos que se seguiram à morte do meu pai foram totalmente diferentes dos quatro anos anteriores. Contudo, ao mesmo tempo, estes anos representam uma espécie de imagem reflectida num espelho. Para mim, a morte do meu pai é um pouco como a dobra numa folha de um teste de Rorschach ou talvez, mais propriamente, um fulcro que equilibrava com dificuldade dois mundos opostos, mas estreitamente ligados. Embora só muito mais tarde me tenha apercebido disso, os

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quatro anos que acabara de passar, lutando para abrir caminho na casa das diversões do sucesso, da celebridade e do pensamento mágico, seriam uma brincadeira de crianças, comparados com os quatro anos que me esperavam: uma luta muito mais difícil com a realidade que é a nossa qualidade de mortais, com a maturidade e com a doença de Parkinson - a vida real é uma resposta dura ao pensamento mágico. Naquele dia de Janeiro de 1990, sem que eu o soubesse, estava a atravessar um limiar.Burnaby, Columbia Britânica - 10 de Janeiro de 1990 Na manhã seguinte à cerimónia fúnebre, Steve e eu fomos à casa funerária buscar a urna incrivelmente pequena que continha as cinzas do nosso pai. A caminho de casa (agora a casa da nossa mãe), fui eu a conduzir e o Steve sentou-se no lugar do passageiro do Chrysler do meu pai (da minha mãe); de repente, ficámos horrorizados porque nos estávamos a rir, por termos chegado à conclusão de que era só desta maneira que costumávamos partilhar os bancos da frente com o pai. Algumas horas mais tarde, ficámos igualmente surpreendidos por estarmos a conter o riso, quando a mãe nos pediu que arrumássemos umas coisas do pai e o Steve e eu encontrámos um esconderijo onde ele guardava os comprimidos para o coração.— O que é que fazemos com isto? — perguntei.— Deitamo-los fora, digo eu — respondeu Steve. E, passado um bocado, acrescentou: — Parece que não deram grande resultado.Qualquer pessoa que tenha passado por um processo de luto reconhecerá a existência de momentos como estes. Não era que não amássemos e respeitássemos o nosso pai mas, abalados pelo seu súbito desaparecimento, havia alturas em que parecia que as nossas reacções mais naturais eram exactamente iguais às que ele teria tido: sempre que possível, tínhamos que nos rir de qualquer coisa.É igualmente comum, no entanto, quando as famílias se juntam no luto, haver divisões e catarses entre os seus membros. Nessa noite, em casa da minha mãe, desenrolou-se uma cena que inesperadamente degenerou numa zanga.Era tarde, quase meia-noite; a minha mãe tinha ido para a cama e a Tracy e o Sam estavam a dormir lá em baixo, no quarto de hóspedes. Só tínhamos ficado o meu irmão, as minhas irmãs e eu, reunidos à volta da mesa da cozinha, uns sentados eoutros, como eu, a andar para trás e para diante, entre o frigorífico e a mesa, ou sobre a linha que separava o linóleo do tapete da cozinha. A conversa era, entre outras coisas, acerca da melhor maneira de cumprir as últimas vontades do nosso pai.O pai não queria que nos sentíssemos obrigados a cumprir o ritual de visitar uma sepultura ou um monumento. Havia pessoas que amara enterradas em cemitérios próximos e ele sentia-se mal por raramente arranjar tempo para lhes ir prestar homenagem. Por isso, dissera que, quando morresse, queria ser cremado é que as suas cinzas fossem espalhadas sobre essas sepulturas. Esta cerimónia iria realizar-se na manhã seguinte, apenas com a presença da minha mãe e dos seus cinco filhos.Enquanto preparávamos a logística para a manhã seguinte, Kelli e a minha irmã mais velha, Karen, estavam a cortar as participações da morte do pai de uma pilha de jornais. Karen perguntou se eu queria que me guardasse uma. A verdade era que eu já tinha metido uma participação na mala, nessa manhã, mas estava cansado e um pouco confuso e respondi de um modo frívolo, que soou mal.— Não te rales com isso — disse. — O meu serviço de recortes trata disso.A Jackie repreendeu-me, furiosa, e a repreensão mais parecia uma ordem.— Senta-te e cala-te, Michael — rosnou.Por essa altura, eu estava ainda menos habituado a ser censurado do que quatro anos antes, quando a Tracy me dera uma descompostura por causa do «incidente dos camarões fritos», no estúdio de Quem Sai aos Seus. Aquilo chateou-me mesmo e decidi que estava na hora de ir para a cama, mas não sem uma alfinetada final.— Eh, Jack — disse eu, já a dirigir-me para a porta da cave,para ir ter com a Tracy e o Sam ao quarto de hóspedes. — Vai-telixar.Admito que a tirada não foi diplomática nem espirituosa, mas nunca esperei que pudesse desencadear a súbita explosão que ouvi atrás de mim. Quando me virei, o Steve pusera-se de pé de

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um salto, quase derrubando a mesa da cozinha, e avançava para mim - a grande velocidade.Só tinha um segundo para me defender e, quando ele se aproximou, dei-lhe um empurrão, destinado a ganhar o tempo suficiente para chegar à porta que dava para a cave. Eu gostava muito do meu irmão e, como é evidente, lutar com ele, então ou em qualquer outra ocasião seria a última coisa que o meu pai quereria que acontecesse. Além do mais, sejamos honestos, o tipo tinha uns oito centímetros e uns vinte e cinco quilos mais do que eu. Quando fiz a segunda tentativa de chegar à porta, ele agarrou-me pela T-shirt - uma T-shirt que eu pedira emprestada à Tracy. E, quando eu puxei, a parte da frente da T-shirt rasgou-se. Steve continuou agarrado a mim e as minhas irmãs seguiram-no, até chegarmos todos ao hall de entrada, ao cimo das escadas.E ali ficámos parados, nada à vontade, os quatro em círculo à minha volta - uma imagem sinistramente parecida com uma outra, registada a poucos passos de distância, alguns anos atrás. Estou a referir-me ao tampo da mesa do hall de entrada da casa dos meus pais, onde a colecção de troféus de família, ali colocada à pressa, suplantava e cercava o meu Emmy novinho em folha. Olhando para trás, esta imagem destaca o drama dentro do drama - a forma desastrada como o meu eu da casa das diversões tinha enfrentado uma tragédia no mundo real. Quando penso nos acontecimentos daqueles dias e os encaro do ponto de vista do meu irmão, estremeço e consigo perceber facilmente porque foi que as coisas chegaram àquele ponto.• • •O Steve estava em casa, quando o meu pai começou a sentir-se realmente mal. Foi ele quem chamou a ambulância. Foi ele quem viu a expressão assustada do pai, enquanto o pessoal do serviço de urgência lhe espetava agulhas nos braços e o colocava na maca, antes de o levarem a correr para a sala de urgências. Foi ele quem tratou de tudo no hospital, quem falou com os médicose quem transmitiu o prognóstico sombrio à nossa mãe, tentando mantê-la tão calma quanto possível. Depois, teve que telefonar a todos nós, a dar a notícia que o pai estava muito doente, em perigo de vida.Quando me telefonou, tenho a certeza de que o Steve estava a chegar aos limites da resistência física e emocional. Dada a percepção que ele tinha da gravidade da situação, a minha reacção deve ter-lhe parecido absurda. Eu estava a apoiar-me naquilo que julgava serem os meus melhores trunfos, aos quais podia recorrer com a maior facilidade: dinheiro e influência.— Ele tem que ser visto pelos melhores médicos, Steve —disse eu. — Se tiver que ser transportado, arranja um helicópteroe manda-o para Seattle, se for preciso. A Jackie e eu vamos lá ter.Vou fazer uns telefonemas, a ver se arranjo um avião privado.O Steve deve ter abanado a cabeça. Só abona a favor das suas boas maneiras sob pressão o facto de não ter aproveitado a oportunidade para me desancar, para dizer ao seu presumido irmão mais novo que nem mesmo ele, Michael J. Fox, podia negociar, subornar ou desenrascar uma saída para aquele problema.— A única coisa que é preciso é tu e a Jackie virem para casa— disse ele, simplesmente. — O mais depressa possível.Enquanto eu fazia uma série de tentativas fúteis de contactar amigos e directores do estúdio com acesso a aviões particulares, a Tracy telefonou para a American Airlines e fez as reservas que acabaríamos por utilizar nessa noite para viajar para Vancouver.A imensa tristeza silenciosa da minha mãe, as expressões nos rostos das minhas irmãs - como se, subitamente, tivessem levado uma estalada, a meio de uma conversa agradável - e a angústia de Steve, enquanto descrevia a provação que tinham sido os últimos momentos de vida do nosso pai - eis o que me esperava à porta de casa, em Bumaby, e que me lançou de imediato numa paisagem de desgosto, uma paisagem dominada pela ausência do meu pai. Foi a mais dura confirmação das verdades contra as quais me rebelava. O dinheiro, os bens e o prestígio não eram um escudo contra a realidade.Como se a situação não fosse já suficientemente horrível, osjornais de mexericos fizeram tudo para a tornar ainda pior. Para eles, não se tratava de uma tragédia privada, mas de uma história pública. Incomodaram a

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minha mãe com os seus telefonemas indiscretos e alguns deles até apareceram à porta de casa, como se viessem apresentar as condolências. A empresa de Gavin De Becker mandou pessoal de segurança da Califórnia, uma iniciativa que viria a revelar-se acertada, porque, nos dias seguintes, foram apanhados fotógrafos dos tablóides a esconder máquinas fotográficas e a tentar introduzir-se no velório do meu pai. Mais teatro do absurdo, da parte dos mesmos fulanos que tinham recorrido a máscaras de lamas, usado helicópteros como armas e raptado avós. O mais espantoso era que eles não eram capazes de fazer a distinção entre o meu casamento e o funeral do meu pai. Segundo a sua lógica distorcida, qualquer coisa em que eu estivesse envolvido era acerca de mim. Como poderia a minha família compreender isto e porque haveria de fazê-lo?No velório, os amigos mais próximos da família vinham ter comigo e falavam comigo como se eu fosse o único herdeiro do papel de esteio da responsabilidade familiar, como se, agora, tudo estivesse nas minhas mãos. Eu não estava de forma alguma preparado para assumir esse papel e, além disso, apesar de bem-intencionadas, essas pessoas estavam a ser muito injustas para com o Steve, que, com tanta competência, já carregava sobre os ombros uma boa parte desse fardo e que, afinal, era oito anos mais velho que eu. Isto deve tê-lo ofendido.Tudo isto contribuiu para que, naquela noite, em casa dos meus pais, o Steve e eu tivéssemos chegado à beira do precipício. Pensava eu que tinha ido a casa simplesmente porque queria estar presente, como filho e irmão, num momento de luto. Como é evidente, levara comigo uma série de bagagem extra - pelo menos aos olhos dos outros, incluindo da minha família. O resultado foi ter-se cavado um fosso entre os meus irmãos e eu, o que era a última coisa de que precisávamos.Foi a Tracy quem, sem dizer uma palavra, fez cessar o confronto. O barulho acordara-a, tal como ao Sam, que vinha ao seu colo quando subiu as escadas por trás do meu irmão. Quando avi, larguei a camisa do Steve. Ele reparou que o meu olhar se desviara e largou o que restava da minha, afastando-se em seguida para deixar passar a minha mulher e o meu filho. A Tracy não queria intrometer-se numa questão de família. Limitou-se a dar-me a mão e a descer as escadas até ao quarto de hóspedes. Já no quarto, comecei a debitar a minha versão da história. A Tracy fechou a porta, pôs o Sam no berço e voltou a meter-se na cama.— Contas-me amanhã de manhã. Precisas de dormir.Apagou a luz da mesa-de-cabeceira e eu deitei-me ao ladodela, às escuras. Ela passou-me o braço sobre o peito.— Aquela era a minha t-shirt preferida, sabias?Na manhã seguinte, enquanto eu e os meus irmãos fazíamos a triste ronda dos cemitérios da zona - falando uns com os outros só através da nossa mãe - sabia que as feridas da noite anterior acabariam por sarar. (Acerca disto, tinha razão.) A minha atenção voltou a centrar-se no meu pai. De acordo com a maneira como, então, encarava as coisas, para ele e para mim não havia mais acabaremos por: a nossa relação seria, para sempre, a que existia a 6 de Janeiro de 1990. O que viesse a acontecer no futuro não teria qualquer influência sobre ela. (Nisto estava enganado.) Sentia-me grato por o meu pai ter vivido o suficiente para conhecer a Tracy e para segurar nos braços o nosso filho Sam. A presença da Tracy e do Sam na minha vida representava um feito pessoal, tão significativo e, possivelmente, do ponto de vista do meu pai, tão improvável como a minha fama e fortuna. Duvido que ele alguma vez tenha esperado que eu escolhesse uma companheira tão realista como a Tracy ou que assumisse de tão bom grado as responsabilidades da paternidade.Contudo, a minha carreira impressionou-o de facto e senti-me feliz por ele ter vivido o suficiente para a poder apreciar. Para o seu carácter prudente, os riscos que corri (embora com o seu apoio firme, mas relutante) foram excessivos, ainda que compensadores. Claramente orgulhoso e pródigo nos elogios, o tom da relação que tinha comigo mudou - embora, verdade seja dita, só depois de eu ter tido êxito. O essencial era que, agora, eu era intocável e ele sabia isso. Um dos meus feitos mais improváveismais gratificantes continua a ser ter conseguido que o meu pai aceitasse as coisas com naturalidade e seguisse a onda. Conforme prova o caso do Emmy partido, o meu pai tinha cedido ao poder da magia.

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Que teria ele feito perante os acontecimentos futuros? Em que medida teria a sua reacção influenciado a minha? Receio que o meu pai tivesse considerado o diagnóstico que me foi feito como uma confirmação da sua visão sombria do mundo; uma prova de que não nos podemos fiar na felicidade e no sucesso. Ele acreditava que a vida funcionava de acordo com um sistema de compensações inflexível, segundo o qual tudo quanto se ganha na vida tem que ser pago com uma perda equivalente. Embora, evidentemente, não possa ter a certeza, suspeito que ele teria considerado a minha doença de Parkinson como o preço cósmico que eu tinha que pagar pelo meu êxito. Isso não me teria ajudado, sobretudo porque já houve alturas em que senti o mesmo e acreditar numa coisa - que, afinal, não passa de uma superstição -apenas tornou mais difícil conseguir sentir-me melhor.Desde os dias sombrios desse período da minha vida, aconteceram muitas coisas que gostaria que o meu pai tivesse podido ver. Ele morreu precisamente na altura em que a merda começava a vir à superfície e sinto-me aliviado por ele não ter sido obrigado a passar por diversas coisas, algumas das quais não são motivo de orgulho para mim. Lembro-me de, pouco depois de ele ter morrido, ter pensado que pelo menos vivera o suficiente para ver a magia, para apreciar e tomar parte no sucesso do filho. Hoje, sei que ainda estavam para acontecer muitas coisas mágicas e que gostava muito de as ter partilhado também com ele.DIAGNÓSTICO: NEGAÇÃONova Iorque - Outubro de 1991Uma manhã, menos de dois anos depois, eu andava às voltas pelos corredores do Hospital Mount Sinai, de Nova Iorque. O nome do médico e o número do seu gabinete - listado nas indicações afixadas no enorme átrio do edifício - condiziam com os que estavam escritos num pedaço de papel que eu trouxera comigo para o hospital metido no bolso esquerdo. Depois de ter passado dez minutos a explorar o labirinto do centro médico, esquecera-me por completo do número. Não havia problema, pois não? Bastava voltar a olhar para o papel.A verdade é que esta era uma das coisas a que eu estava a ter grande dificuldade em habituar-me: em especial a meio da manhã, ainda havia alturas em que quase não tinha sintomas e podia utilizar a mão esquerda, como fizera durante os primeiros trinta anos da minha vida, para fazer coisas como, por exemplo, meter um pedaço de papel na algibeira dos jeans. Mas depois, sem qualquer aviso prévio, os sintomas voltavam a atacar e a mão esquerda começava a tremer incontrolavelmente, como agora estava a acontecer, e conseguir tirar aquele pedaço de papel do bolso era tudo menos evidente. Obrigava-me a fazer passar o braço direito em volta do corpo, numa manobra que, na melhor das hipóteses, parecia desastrada e, na pior, obscena.Enfermeiras e médicos de batas brancas entravam e saíam das portas e andavam pelo corredor. Qualquer deles devia conhecer o nome do médico que eu procurava e poderia indicar-me como chegar ao seu gabinete mas havia um problema: era tão provável reconhecerem-me a mim como reconhecerem o nome do médico. E eu não queria que se espalhasse o rumor que Michael J. Fox fora procurar um dos mais eminentes neurologistas da América do Norte, uma figura de renome no tratamento da doença de Parkinson.O diagnóstico inicial fora feito havia umas duas semanas e, para além da família, eu só tinha dito a muito poucas pessoas. Não queria que ninguém que não privasse directamente comigo me associasse àquela doença. Só precisava que o Dr. Sabe-Tudo me desse uma terceira opinião, uma opinião que esperava fosse definitiva, para poder voltar para a privacidade do meu apartamento.Depois de mais alguns minutos passados a palmilhar o chão de mosaico, cheguei ao Serviço de Neurologia e, finalmente, à porta do médico. A sala de espera estava vazia - o que foi umalívio. Estava apenas a alguns segundos do santuário do seu gabinete e da protecção da confidencialidade médico-doente.A enfermeira/assistente na recepção conduziu-me a uma sala de observação. Informou-me que o doutor vinha já e, enquanto eu despia o casaco e tirava o boné de basebol, reparou no tremor da minha mão esquerda.— Está tudo bem — disse. — Não precisa de ficar nervoso.Fiquei perplexo por instantes e acabei por perceber que elaestava a falar do tremor.

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— Ah — respondi — é por isso... É por isso que estou aqui.Quero dizer, no consultório de um neurologista.Passado um segundo de embaraço mútuo, a enfermeira saiu, fechando a porta atrás de si. Minutos depois, a porta voltou a abrir-se e entrou o famoso neurologista em pessoa, tão seco, mal-humorado e prático como me tinham dito que ele era.— Diz aqui que lhe foi diagnosticada a doença de Parkinson — resmungou, um pouco incrédulo. — Quantos anos tem?— Trinta — respondi. Ele abanou a cabeça, como se estivesse chateado por eu estar a fazê-lo perder o seu tempo.— Hum... Duvido que tenha a doença de Parkinson — disse ele. — Tremor idiopático, talvez. Possivelmente outra coisa qualquer. É muito improvável uma pessoa da sua idade ter Parkinson. Mas, já que aqui está, vamos lá ver isso.Tê-lo-ia abraçado se, logo a seguir, não me tivesse mandado tirar as calças e subir para a marquesa. Ia submeter-me a uma série de testes que, na altura, eu já conhecia tão bem, que era capaz de os fazer sozinho. Mas tinha esperança. Finalmente, pensei, vamos chegar ao fundo da questão. Este fulano sabe o que está a dizer. Esta história da doença de Parkinson foi um erro tremendo.Em termos práticos, o diagnóstico inicial tinha sido um não acontecimento. Contar à Tracy e, depois, à minha mãe e ao resto da família fora angustiante - muitas lágrimas e muitos abraços. Mas, depois disso, o que ia eu fazer com aquela informação? - se esta fosse mesmo verdadeira e se eu optasse por acreditar que sim. (Eram dois grandes «ses».) Resolvi fazer de doente e meti-me nacama - como se dar um nome às sensações físicas que experimentava havia mais de um ano as tornasse de repente dez vezes pior e exigisse um protocolo totalmente diferente. Mas aquilo não me parecia certo. Na verdade, sentia-me um perfeito tolo.Numa reacção clássica de abata-se o portador de más notícias, recusei-me a ser acompanhado pelo neurologista que fizera o primeiro diagnóstico - nunca mais voltei a consultá-lo. De uma forma ilógica e irracional, eu estava muito chateado com o fulano por ele ter tido a ousadia de dizer que era aquele o meu destino. A curto prazo, iria pedir uma segunda opinião e, se esta não pusesse termo a uma tal farsa, pediria uma terceira.Entretanto, pareceu-me que fazia sentido levar a cabo alguma investigação pessoal. Não com o objectivo de descobrir factos sobre a doença de Parkinson que pudessem relacionar-se com os meus sintomas; queria, sobretudo, encontrar razões que desmentissem a hipótese de eu ser vítima desta doença. A fonte mais à mão era, evidentemente, a Columbia School of Medicine Encyclopedia of Health da Tracy. Aquilo que o livro dizia sobre a doença de Parkinson vinha entre AVC e Epilepsia. O primeiro parágrafo rezava:A doença de Parkinson, por vezes designada por paralisia agi-tante, começa em geral entre os 50 e os 65 anos de idade. Os sintomas incluem rigidez muscular, lentidão e dificuldade de movimentos e tremor. Podem ter estado presentes outros sintomas, antes do diagnóstico definitivo. Entre estes incluem-se a diminuição dos movimentos das pálpebras e uma menor espontaneidade da expressão facial, posições rígidas, perda da facilidade em mudar de posição (como quando a pessoa tenta sentar-se ou pôr-se de pé) e a tendência para permanecer na mesma posição por períodos invulgarmente longos. Contudo, em geral, é o tremor pronunciado das mãos que acaba por levar o doente ao médico.Na primeira frase, estava o dado sobre o qual assentavam as minhas esperanças: «...começa em geral entre os50eos65 anos de idade». Os meus sintomas, se era disso que se tratava, tinhamaparecido antes dos trinta anos. Como é que eu podia ter aquela doença de velhos?Nos dias e semanas que se seguiram ao diagnóstico, fui observando qualquer coisa como dúzias de pessoas com sintomas de Parkinson, todas elas idosas. Era espantoso não ter reparado antes que havia tantas, embora tenha a certeza de que a minha distracção podia ser atribuída àquilo a que chamo o Efeito Bebé. Quando era solteiro, os bebés eram praticamente invisíveis para mim. Depois, a Tracy ficou grávida do Sam e, de repente, para onde quer que olhasse, parecia haver sempre grávidas, mães a amamentar os filhos, a empurrar carrinhos e a meter

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crianças pequenas em autocarros. Aqui, dava-se o mesmo fenómeno, só que era infinitamente mais deprimente. Aquelas pessoas idosas, vestidas com casacos de malha, que tinha visto a caminhar desajeitadamente por Central Park West, ao lado de enfermeiras ou damas de companhia, eram, percebia-o agora, vítimas da doença de Parkinson. A boa educação sempre me ensinara a deixar as pessoas de idade entrar primeiro nos elevadores, mas nunca tinha percebido que a razão por que algumas demoravam tanto tempo a entrar, a encontrar e a premir os botões adequados era a hesitação debilitante provocada pela doença de Parkinson. Quando trocava de lugar num restaurante, para não ter que olhar para uma senhora de idade que, do outro lado, lutava com o prato de ovos com bacon, nem uma só vez me ocorreu que podia estar a virar as costas aos danos infligidos pelo Parkinson.Acho que se pode pôr isto na conta da arrogância própria da juventude. As pessoas prestam atenção a estas coisas quando se trata dos seus avós - caso contrário, não me chateiem. Sou novo e saudável, tenho outras coisas com que me preocupar.O Parkinson Jovem (o aparecimento de sintomas em pessoas com menos de 40 anos), explicara o médico que fizera o diagnóstico, é raro. Estes doentes constituem menos de dez por cento do total da população que sofre de Parkinson. Mais tarde, ficaria a saber que esse facto me tornava num dos cerca de cem mil norte-americanos que sofria do mesmo mal. Desta vez, desafiar a lei das probabilidades não me trouxe qualquer satisfação.Tentei recordar-me se alguma vez conhecera alguém, com menos de setenta anos, que pudesse sofrer desta doença e só me lembrei de uma pessoa. Uma jornalista - a meio da casa dos quarenta - que me entrevistara, num café de Greenwich Village, para uma peça para uma revista. A conversa tinha sido muito agradável mas lembro-me de ter sentido uma impaciência um tanto culpada perante os seus movimentos desordenados, o barulho do pacote de açúcar enquanto ela se esforçava por o abrir e despejar o seu conteúdo no café, o ritmo irregular da colher a bater na chávena - na realidade, ela não estava a mexer o café, limitava-se a segurar a colher e a deixar que o tremor da mão misturasse as natas e o açúcar. Tal como a assistente do neurologista, parti do princípio que se tratava de nervoso e lembro-me de me sentir ligeiramente lisonjeado por ser capaz de produzir um tal efeito. Mas, passado um bocado, percebera que não se tratava de nervos. Nada do que ela dizia indicava que estivesse minimamente perturbada; pelo contrário, mostrava-se cheia de confiança e muito profissional. Este deve ter sido o meu primeiro contacto com o Parkinson Jovem.Pronto, está bem, obviamente que, em teoria, isto se incluía no domínio das possibilidades mas... «em geral entre os 50 e os 65 anos». Podia haver outra explicação. No entanto, a cada nova frase, a Columbia Encyclopedia descrevia uma situação claramente semelhante à minha. «Os sintomas incluem rigidez muscular, lentidão e dificuldade de movimentos e tremor.» Todas estas características encontravam-se indiscutivelmente presentes, sobretudo no lado esquerdo do meu corpo. A «dificuldade de movimentos» (eu julgava que deixara as dificuldades para trás, nos bairros pobres de Brentwood) tinha sido o que chocara a Tracy, quando interrompeu o meu jogging em Martha's Vineyard - o braço esquerdo quase não oscilava e não estava em sincronia com o resto do meu corpo. Havia ainda a rigidez da anca, que me fazia coxear de forma quase imperceptível, e o facto de acordar de manhã com o pescoço e o ombro esquerdo hirtos, o que também acontecia com as articulações do joelho, pulso e tornozelo.«Podem ter estado presentes outros sintomas, antes do diagnóstico definitivo...» Passei em revista a minha história recente, em busca de provas de que isto poderia ser verdade e, infelizmente, encontrei alguns indícios. Analisei o primeiro exemplo: diminuição dos movimentos das pálpebras e menor espontaneidade da expressão facial. Isto podia ser facilmente confirmado, através da visualização, por ordem cronológica, das minhas interpretações, gravadas em vídeo. Não estava disposto a fazê-lo - só a minha mãe era capaz de aguentar tanto tempo a olhar para mim - mas a descrição dos sintomas dizia-me de facto qualquer coisa. No entanto, sempre pensara que as minhas «diminuição dos movimentos das pálpebras» e «menor espontaneidade da expressão facial» correspondiam a um maior à vontade diante das câmaras, menos caretas e uma

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interpretação menos afectada - em geral, uma melhoria do meu desempenho de actor. «Não», dizia aquele livro. «Não estás a ficar melhor, estás a ficar mais doente.»Quanto às «posições rígidas, perda da facilidade de mudar de posição (como quando a pessoa tenta sentar-se ou pôr-se de pé)», a minha experiência profissional passada representava mais um indício. A minha parte favorita do Regresso ao Futuro original, filmado em 1985, era a sequência de Johnny B. Goode, durante a dança «Enchantment Under the Sea». Na minha qualidade de músico frustrado, sentia-me óptimo a aprender os acordes de guitarra e os arranjos de solo e, também, a trabalhar com um coreógrafo para imitar e integrar na produção alguns dos estilos e movimentos de palco característicos dos meus heróis do rock and roll. Filmar esta cena ao longo de dois dias fez-me suar e foi um trabalho cansativo, mas eu era novo, estava em grande forma (pensava eu) e a coisa não foi especialmente extenuante.Quatro anos mais tarde, no Regresso ao Futuro II, de 1989, tive que repetir o número de Johnny B. Goode, duplicando-o até ao mais ínfimo pormenor. Achei os movimentos muito mais difíceis de realizar e, além disso, o grau de esforço foi chocante. Fiquei dorido durante semanas. Na altura, não pensei muito no cansaço e nas dores, atribuindo-os ao facto de estar quatro anosmais velho. Mas quatro anos não podiam explicar a dificuldade que tive em repetir a cena.As últimas palavras da penúltima frase do parágrafo da enciclopédia - «tendência para permanecer na mesma posição por períodos invulgarmente longos» - também eram premonitórias. Fizeram-me pensar na Tracy, ou melhor, numa coisa com que ela estava sempre a arreliar-me. Tentando conciliar o vendaval hiperactivo que eu era por vezes com a criatura mole e preguiçosa em que, noutras vezes, me transformava, ela dizia: «Tu és a definição de inércia tal como vem nos livros. Quando começas a mexer-te, não és capaz de parar; mas, quando paras, é quase impossível fazer-te voltar a arrancar.» Era um retrato perfeito e, infelizmente, uma descrição bastante boa do que é o dia-a-dia de quem sofre da doença de Parkinson.Hoje, percebo bem demais que a razão por que os sintomas se foram apresentando de uma maneira tão gradual (a minha caracterização pessoal seria insidiosa) tinha a ver com os efeitos das perturbações sobre o funcionamento do sistema nervoso central. Uma parte do cérebro conhecida por substantia nigra contém um grupo de células que produzem um mediador químico chamado dopamina, que actua como mensageiro, transmitindo sinais no cérebro. Quando, por qualquer razão, estas células começam a morrer, o resultado é a redução gradual da quantidade de dopamina produzida. As mensagens não são transmitidas de forma adequada, ou deixam de ser transmitidas, a determinadas células nervosas do cérebro, ou neurónios, essenciais à função motora, e estes ficam descontrolados. Em resultado disto, o dono do cérebro (neste caso eu) deixa de ter domínio sobre os movimentos do seu corpo. Como um automóvel sem óleo no motor, um cérebro sem dopamina começa lenta mas inevitavelmente a falhar. As alterações físicas que eu não fui capaz de reconhecer como sintomas eram o correspondente à luz vermelha no painel de instrumentos. Mas quem é que se lembra de olhar? Pensando bem, eu sempre tinha ignorado as luzinhas vermelhas no painel de instrumentos - para grande desgosto do meu pai.É possível que já tivesse Parkinson havia cinco ou mesmo dez anos, antes de reparar no tremor do dedo mindinho, naquela manhã, na Florida. Os cientistas pensam que, na altura em que o doente detecta o mais ínfimo tremor - a luz vermelha intermitente, se se quiser - cerca de oitenta por cento das células da substantia nigra produtoras de dopamina já se encontram mortas, totalmente perdidas, sem qualquer possibilidade de recuperação.O que me leva à última frase do parágrafo: «Em geral, é o tremor pronunciado das mãos... que acaba por levar o doente ao médico.» Não bastava já eu ter uma doença cerebral crónica degenerativa? Ainda por cima, tinha também que ser tão estupidamente previsível? Esta previsibilidade não era uma coisa sem importância naquele rol de horrores. Uma das coisas que eu tinha a perder com isto era a liberdade e não estou a referir-me apenas à liberdade física decorrente da morte de milhares de pequenas células cerebrais. Se o diagnóstico estivesse correcto,

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se eu tivesse essa doença, ficaria para sempre amarrado a esse diagnóstico e, com ele, a uma identidade em cuja criação não participara. Ia ser seguido e estudado, comparado a outros como eu, e as conclusões seriam analisadas ao milímetro para ver se e como eu diferia da norma e em que medida a minha evolução divergia das projecções. E, entretanto, esperava-se que eu cumprisse as regras estabelecidas para o processo de enfrentar a doença: as cinco etapas do desgosto de Elisabeth Kiibler-Ross (negação/isolamento, cólera, negociação, depressão e aceitação); a minha experiência pessoal mais dura, reduzida a uma vulgar lista de lavandaria, por uma mulher suíça qualquer que eu nunca vira na vida.Por mais que o repita, é difícil dar uma ideia do golpe que esta perspectiva de ser infalivelmente previsível representava para o meu sentido do eu enquanto indivíduo. Além disso, se o diagnóstico se tornasse conhecido, não seria simplesmente uma questão de as pessoas que me davam emprego ficarem a saber e, talvez, passarem a julgar-me de um modo diferente. Ou de a Sra. Jones, a vizinha do quintal do lado, comentar o assunto com os outros pais, na carrinha da escola. Não, toda a gente ia saber.Depois do meu casamento e do funeral do meu pai conhecia bem a forma como a imprensa popular iria tratar uma história destas - ia apossar-se dela e, desse modo, apossar-se de uma parte de mim muito superior àquela de que eu estava disposto a abdicar. Não estava apenas a perder o cérebro, estava a perder o direito a gerir a minha vida.Voltemos à tal primeira frase: «A doença de Parkinson, por vezes designada por paralisia agitante, começa em geral entre os 50 e os 65 anos de idade.» Era esta a escapatória a que me agarrava como se fosse uma tábua de salvação; a minha única esperança de redenção. Como dissera o médico, era muito pouco provável um fulano da minha idade ter doença de Parkinson.No Hospital Mount Sinai, no momento em que estava a acabar de fazer os últimos movimentos dos dedos e toques no nariz em honra do grande médico, da principal sumidade em doença de Parkinson, tive consciência de que falhara miseravelmente. Por isso, o facto de, depois de me ter vestido e passado para o seu gabinete particular, ele me ter pedido que me sentasse na cadeira diante da sua secretária, não constituiu uma surpresa.— Lamento muito — disse o médico. A sua anterior impaciência cedera o lugar à compaixão. — Mas tenho a certeza de que você tem, de facto, a doença de Parkinson Jovem.»E agora?O ÁS DAS FUGAS - NOVA VERSÃODepois de o Dr. Sabe-Tudo ter pronunciado o seu veredicto, não tive outro remédio senão concordar com o consenso geral de que me encontrava na fase inicial do Parkinson Jovem. Note-se que concordar está muito longe de ser aceitar - conforme explica a Sra. Kúbler-Ross. Eu ia ter que percorrer uma longa distância até chegar, finalmente, à aceitação. Claro que percebia que todos os factos médicos apontavam para a confirmação do diagnóstico; que teria que me comportar como se tivesse realmente aquela doença, que descobrir qual era a medicação adequada, tomar a que fosse mais indicada, etc. Mas não abdicara totalmente da negação.Agarrava-me teimosamente a fantasias de fuga, na esperança insensata de que, fosse lá como fosse, viesse a provar-se que aquele diagnóstico estava errado. Ou, melhor ainda, de que, tendo desafiado a lei das probabilidades por fazer parte da reduzida população de jovens adultos afectada pelo Parkinson, eu iria mais uma vez desafiá-la, tornando-me o único caso registado em que a doença desaparecera por artes mágicas. Não teria sintomas durante uns dias e, de repente, a Tracy diria, casualmente, que passara a comprar outra pasta de dentes - se eu não tinha reparado - e, então, eu bateria com a mão na testa e diria: «Santo Deus, querida, a pasta dos dentes! Era isso! Curaste-me!» Sei que isto parece uma coisa de doidos mas, bem, vocês ainda só leram metade do livro.Desespero, frustração e medo eram, naqueles dias, os meus companheiros constantes, mas nunca dei comigo a culpar fosse quem fosse. Quem havia eu de culpar? Deus? A minha noção de espiritualidade era diferente da que tenho hoje mas, mesmo que fosse o mais fundamentalista dos crentes, partiria do princípio

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de que Deus tinha mais que fazer do que castigar-me arbitrariamente com uma paralisia agitante. Eu não era Job.Atribuir as culpas a qualquer coisa implica causalidade e, neste aspecto, a doença de Parkinson continua a ser um problema obscuro. Os investigadores ainda não descobriram a sua causa exacta. A maior parte pensa que se trata de uma combinação de factores genéticos e ambientais, mas não há dados conclusivos. Por exemplo: não havia uma história de doença de Parkinson na minha família, mas isso não significa que não haja uma predisposição genética para o desenvolvimento desta doença, em quem tivesse estado exposto a determinados poluentes ambientais, como por exemplo os pesticidas.Anos depois, vim a saber que pelo menos outras três pessoas que trabalharam comigo nos estúdios da CBC, em Vancouver, onde, em meados dos anos 70, gravámos Leo & Me, tiveram Parkinson, em idades que os colocavam na categoria de doentesde Parkinson Jovem. Seria este pequeno grupo uma coincidência ou uma prova de uma causa ambiental comum - um «edifício doente» ou exposição a determinados químicos? Soube recentemente que um grupo de investigadores estava a proceder a um estudo e tenho um interesse óbvio nos resultados desse estudo. Sinto curiosidade em saber a que conclusões irão chegar, embora não para poder culpar alguém, um mau da fita sobre o qual possa descarregar a minha cólera, através de um processo judicial com imensos advogados. A verdadeira razão por que estou curioso é que as conclusões desses cientistas podem fornecer mais uma pista para a resolução do mistério da causalidade, e descobrir a causa é o caminho mais seguro para a cura.Os médicos tinham-me perguntado se eu trabalhara com ou estivera exposto a uma enorme lista de produtos químicos derivados de metais, ou se consumira em excesso opiáceos como a heroína, o láudano ou compostos de morfina; houve casos avançados de Parkinson em alguns jovens viciados em heroína, que usaram uma versão sintética da droga contendo o composto químico MPTP. A resposta a todas estas perguntas foi não. Havia ainda a hipótese de a responsabilidade ser de uma lesão na cabeça; eu sofrera várias concussões a jogar hóquei e não pude deixar de pensar em Muhammad Ali, cujo Parkinson poderia, concluí, talvez erradamente, estar relacionado com os inúmeros golpes que recebeu no ringue. Mas todos os médicos afastaram rapidamente o trauma na cabeça como um factor que pudesse ter desencadeado os meus sintomas.Embora, conscientemente, não tivesse feito nenhuma parvoíce que pudesse ter-me colocado em risco, houve alturas em que de facto me culpei a mim próprio. Na minha ideia, a culpabilidade tinha a ver com a falha em prever esta calamidade. Apesar da luta que, até ao fim, travei em defesa do Não - o grande desastre que iria varrer para longe todos os dias tranquilos dos anos passados na casa de diversões - nunca me tinha preparado para nada tão terrível, tão absolutamente destrutivo. Porquê eu? Porque não eu? Faz parte da natureza humana procurar um significado para as coisas e eu senti-me intensamente tentado a encarar a minha doença como uma metáfora (uma tendência que Susan Sontag analisa de forma brilhante no seu livro Ilness as Metaphor). O meu Parkinson representava o raio que me caíra em cima. Era o preço a pagar. Era a chegada da conta a uma mesa coberta de restos, no fim de um banquete imerecido e não devidamente apreciado. Uma reviravolta que eu só podia encarar como imparcial. Devia ter previsto o que ia acontecer. De certo modo, isto era conversa do meu pai, mas houve alturas em que o sentimento era meu.Zangado ou não, o meu único recurso imediato era viver com aquilo, até conseguir arranjar uma maneira de sair daquilo. Ainda tinha pela frente vários anos antes de começar a ter consultas periódicas com um neurologista, mas o médico que fizera o diagnóstico inicial passara-me receitas para dois medicamentos diferentes: o Sinemet, a versão marca registada da levodopa ou L-dopa, e um outro chamado Eldepryl (genericamente conhecido como hidrocloreto de selegilina). Cada um deles actua de modo diferente sobre o cérebro, atenuando os sintomas, e são apenas dois medicamentos do sempre crescente número de terapias medicamentosas vulgarmente administradas, que incluem: Comtan (entacapone), Parlodel (bromocriptina), Requip (ropini-role), Permax (pergolide) e Mirapex (pramipexole dihydrochlo-ride), Artane (trihexifenidilo), Cogentin (benzatropina) e Sym-metrel (amantadina). Alguns deles resultam melhor que

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outros, outros não resultam de todo, o que depende do doente e da gravidade das idiossincrasias daquilo que, para todos os fins práticos, é a sua doença pessoal. Ao longo dos anos, numa altura ou noutra e em combinações diferentes, dei uma voltinha com todas estas drogas. Claro que nenhuma delas é uma cura. Na altura em que escrevo, a cura é coisa que não existe.O médico queria que eu começasse a tomar o Eldepryl, que atenua os sintomas, retardando a queda da dopamina que o cérebro ainda produz. Tomei Eldepryl durante algum tempo, uma semana talvez, e descobri que tinha um efeito insignificante sobre o tremor crescente da minha mão esquerda. Mais uma vez, é importante sublinhar que cada doente sofre de uma manifestação única do vasto leque de sintomas que se enquadram no diagnóstico geral da doença de Parkinson. Pela mesma ordem de ideias, cada doente reage de maneira diferente ao tratamento e, por isso, é importante que ele ou ela coopere estreitamente com um neurologista, para encontrar o modo mais eficaz de gerir a doença, para já não falar de encontrar um equilíbrio tolerável entre os benefícios e os efeitos secundários dos diversos medicamentos. Se tivesse seguido este conselho sensato, a minha experiência com o Eldepryl poderia, talvez, ter sido melhor sucedida; mas eu andava à procura de resultados mais imediatos. Basicamente, só queria que os sintomas desaparecessem, para me poder esquecer daquela porcaria durante o maior período de tempo possível e, mais importante ainda, para impedir que os outros soubessem. Por isso, tratei de passar ao medicamento seguinte. O primeiro medicamento especificamente aprovado para a doença de Parkinson (em 1970) e que continua a ser o que é receitado com maior frequência, é o Sinemet (levodopa). O Sinemet é levado até ao cérebro e transformado em dopamina, o neuro-transmissor que o doente de Parkinson já não é capaz de produzir em quantidades suficientes. O Sinemet melhora significativamente a mobilidade da maior parte dos doentes e permite-lhes levar uma vida quase normal. Contudo, à medida que a doença de Parkinson avança, este medicamento torna-se menos eficaz e passa a ser necessário tomar doses maiores, o que faz aumentar os riscos de efeitos secundários debilitantes, como as disquinésias - movimentos involuntários e tiques. Por este motivo, alguns médicos tentam adiar tanto quanto possível o momento em que os seus doentes passam a utilizar o Sinemet. É, ainda, geralmente aceite que, embora atenue os sintomas, o Sinemet afasta também qualquer dúvida de que a pessoa se encontra na fase de pleno desenvolvimento da doença de Parkinson. Assim, os meus sentimentos eram decididamente contraditórios, no dia em que tomei pela primeira vez meio comprimido de Sinemet e, cerca de trinta minutos depois, descobri que os sintomas tinham desaparecido para só voltarem a aparecer ao fim de quase cinco horas. O lado mau era óbvio: tratava-se de mais uma confirmação de que eu tinha a doença de Parkinson. O lado bom era que podia escondê-la.Na minha profissão, a própria noção de esconder qualquer coisa parece absurda - a expressão «gato escondido com o rabo de fora» levada ao extremo. Mas nem por um instante pensei em divulgar o diagnóstico fora do círculo mais íntimo da minha família, amigos próximos e colaboradores de confiança. Não via nenhuma razão que me obrigasse a fazê-lo. Não sentia, e ainda não sinto, estar a enganar ninguém ao não o tornar público imediatamente - o problema era meu, era eu quem tinha que lidar com ele. Com o Sinemet, passava a dispor de um meio de ocultar por completo os sintomas. Se aqueles que me davam trabalho não notavam nenhuma diferença no meu desempenho - e, de momento pelo menos, não havia diferença - não tinha qualquer razão para sentir os remorsos de quem está a vender uma mercadoria estragada.Como não tinha um neurologista (nem sequer tinha um internista fixo em Nova Iorque, onde vivia a maior parte do tempo), sempre que precisava de mais Sinemet pedia ao meu clínico geral da Califórnia que me passasse as receitas. Trazia comprimidos soltos, nos bolsos das camisas, dos casacos, das calças, e engolia-os de qualquer maneira até obter o resultado desejado. Era um jovem com uma família recém-constituída, tinha trabalho para fazer e tencionava fingir que nada disto me estava de facto a acontecer. Embora, sabendo o que sabia, se tornasse difícil levar a vida por diante como se nada fosse.

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Depois de ter me anunciado que tinha a doença de Parkinson, o primeiro neurologista a fazer o diagnóstico apresentou um prognóstico que, julgo eu, ele considerava bom.— Com um tratamento adequado — assegurou — não vejo razão para que não possa trabalhar mais uns bons dez anos.Dez anos? Eu tinha acabado de fazer trinta.A perspectiva de me reformar aos quarenta era uma ironia cruel. Havia anos que, a brincar, eu dizia aos meus amigos incrédulos que, aos quarenta anos, tencionava arrumar definitivamente as malas, ir com a minha família para a nossa quinta emVermont e dedicar-me a outras coisas. Riamo-nos todos muito. Claro que se tratava de uma ameaça vã, de uma fantasia de assumir o controlo dos caprichos do mundo do espectáculo: posso ir-me embora e viver a vida como me apetecer. Mas agora, confrontado com uma realidade muito mais dura do que a determinada pela volubilidade do público ou por um desastre de bilheteira, aquilo que podia ser uma posição de recuo hipotética e voluntária passava, de repente, a ser o meu destino. Qual abdicação qual carapuça, isto é um golpe de Estado, e o meu pânico era tal que decidi arrancar as fronhas das almofadas, saquear o palácio e fugir com tudo quanto pudesse levar comigo.Nunca é boa altura para se descobrir que se tem uma doença incurável mas, do ponto de vista da carreira, sentia-me especialmente vulnerável. Depois de Quem Sai aos Seus, o meu futuro no mundo do espectáculo teria que assentar no trabalho em filmes e esses alicerces estavam já a dar indícios de ir estalar. Dr. Sarilhos tinha sido um êxito modesto para a Warner Brothers, mas a comédia de acção da Universal que o precedera, Sócios à Força, fora um fracasso desolador. Em circunstâncias ideais, eu poderia fazer face a este desastre na minha carreira de duas maneiras: o primeiro cenário seria ir buscar confiança a sucessos passados, sem tentar duplicá-los, e tentar reinventar-me a mim próprio -aproveitar oportunidades interessantes, escolher projectos de baixo perfil com maiores ambições artísticas, se não comerciais. Ou podia simplesmente tentar repetir-me e rezar para que o milagre acontecesse outra vez. Isto significava «correr atrás da própria cauda» e jogar pelo seguro, fazendo comédias românticas de fórmula imutável, que tinham sempre hipóteses de ser um negócio de arrasar.Do ponto de vista criativo, a primeira opção era obviamente preferível; mas poderia eu dar-me ao luxo de desperdiçar o tempo que ela exigia? Dez anos, dissera o homem - dez anos para fazer todo o trabalho que alguma vez iria fazer - dez anos para construir toda a segurança financeira que alguma vez poderia proporcionar à minha mulher, ao meu filho e aos outros futuros filhos. Até onde podia permitir-me tentar ser o «grandeartista»? Por isso, quando a Universal me fez uma oferta pós-Dr. Sarilhos (e, sem eles o saberem, pós-diagnóstico) de oito algarismos, para três filmes em cinco anos, o meu instinto aconselhou-me a agarrá-la com as duas mãos. A Tracy, contudo, opôs-se firmemente.— Vais ficar encurralado — avisou.Argumentei que isso não era verdade, porque o contrato me permitia trabalhar noutros projectos. Ela contrapôs, com toda a razão, que a maior parte dos guionistas, produtores e realizadores com quem eu ia querer trabalhar tinham contratos exclusivos com outros estúdios. Eles não podiam ir para a Universal nem estar à espera que eu estivesse disponível para os seus filmes. E ambos sabíamos o que a Universal tinha em mente - continuar a repetir a receita de O Segredo do Meu Sucesso, enquanto desse dinheiro.— Tu não percebes. — As palavras soaram-me estranhasantes mesmo de terem saído dos meus lábios. Alguma vez eu dissera uma coisa destas à Tracy? - A minha janela de oportunidadeé muito limitada. Este acordo vai dar-me a possibilidade de passar através dela e chegar com qualquer coisa ao outro lado. Vouaceitar.A SOMBRA DO OUTRO LADO DO ESPELHOLos Angeles /Nova Iorque - Primavera/Verão de 1992 Nos tempos que precederam a pré-produção de Por Amor ou Por Dinheiro, o primeiro filme do meu contrato com a Universal (mais ou menos um remake de O Segredo do Meu Sucesso), andei ocupado

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com outros projectos, uns pessoais, outros profissionais. A Tracy, o Sam e eu fomos de avião para a Califórnia (nessa altura, ainda tínhamos lá uma casa), onde eu ia realizar um episódio de Brooklyn Bridge para o meu velho amigo e mentor de Quem Sai aos Seus, Gary Goldberg. Tinha passado um ano desde que eu realizara o episódio de Contos de Arrepiar e aceitei prontamente a proposta de Gary; a realização passara de ocupação secundária interessante para possível opção de carreirafutura. Além deste trabalho e numa tentativa de me alhear dos meus problemas de saúde e perder alguns quilos, lancei-me num regime defitness radical.Não me bastava o meu treinador vir, todos os dias, às 4 da manhã, bater à porta para me levar a fazer uma corrida à volta do campus da UCLA e escada acima, escada abaixo, pelos degraus das bancadas do Drake Stadium, antes de me arrastar até à garagem para uma esgotante meia hora de levantamento de pesos: ainda seguia uma dieta que ele me prescrevera e que estava a dar cabo de mim. Uma coisa era obrigar-me a ingerir refeições que mal davam para saciar a fome de um hámster, outra era reduzir-me o consumo de álcool a um único dia por semana - isso era tortura.Nem percebia realmente que diabo andava a fazer, mas hoje compreendo que tinha passado, como era de prever, à terceira fase do paradigma de Elisabeth Kúbler-Ross relativo ao modo como enfrentamos a perda - depois da negação e da cólera, vem a negociação. Embora ainda não fosse capaz de me aperceber das consequências do facto de o Parkinson se ter apoderado do meu corpo e, por conseguinte, da minha vida, o instinto dizia-me que começasse desde já a negociar com firmeza os direitos de controlo das áreas que ainda era possível controlar. Uma vez que o Parkinson ia roubar-me a capacidade de trabalhar diante da câmara como actor, eu ia atribuir-me um papel por trás dela, como realizador. Para atenuar eventuais perdas financeiras, aceitara o pagamento garantido da Universal, à custa da minha liberdade criativa.No que se refere ao treino de fitness, a minha teoria era que as provações auto-infligidas reforçariam a minha posição em duas frentes. Convenci-me de que uma melhor condição e resistência físicas poderiam servir de escudo contra a erosão neurológica. Por outro lado, pensei, aquilo iludiria as outras pessoas. A medida que ia ficando cada vez mais doente, aqueles que desconheciam o meu verdadeiro estado de saúde poderiam interpretar o meu bom aspecto exterior como prova de que eu estava mais saudável que nunca.Para algumas pessoas, beber álcool só uma vez por semana poderá não ser nada difícil - se calhar, nem pensavam no assunto. Mas eu tive dificuldade em manter esta disciplina. Uma vez, enquanto emborcava umas cervejas fresquinhas, na companhia de Pete Benedek, o meu agente, enquanto via os Redskins humilharem os Bills, na Super Taça, pus-me a falar da minha experiência sobre as agruras da temperança e dei comigo a debitar este exemplo impagável de lógica de bêbedo:— Ainda bem que não tenho um problema de alcoolismo — confidenciei. — Porque acho que não era capaz de deixar de beber.Ser bem-sucedido na minha carreira de bebedor exigiu algum esforço e, até, perseverança. A verdade é que nunca tive físico para isso - era uma coisa em que não era bom. Era demasiado pequeno, embebedava-me depressa demais. Mas havia sempre uma boa razão para emborcar uns copos. No final dos anos setenta, era a rebeldia da juventude - os copos constituíam um antídoto para o acanhamento que me consumia, enquanto adolescente excêntrico em busca de uma identidade. Nos anos oitenta, enquanto o leque das minhas experiências e a dimensão dos meus feitos ultrapassavam os sonhos mais loucos, o álcool (toda aquela Moosehead à borla) passou a ser um ingrediente essencial daquilo que era, ostensivamente, uma década de festa da vitória.Digo «ostensivamente» porque a finalidade mais profunda de tantas celebrações pode muito bem ter sido uma forma de obliterar sentimentos de insegurança e medo. Mas nada de confusões: exteriormente - e, nos anos oitenta, havia alguma coisa mais importante do que a fachada? - o estado de espírito predominante era o abandono hedonístico. Era um modo de beber social, a duas mãos, em equilíbrio sobre um enorme balcão de carvalho, empunhando uma magnum de champanhe Cristal, à frente de uns cem dos meus compinchas mais próximos, a cantar em coro «Somos os campeões». E para além do facto de, de vez em quando, acordar com um exército

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de formigas de fogo a passear dentro da cabeça, nada disto parecia ter repercussões significativas. Toda a gente sabia quem eu era e que trabalhava imenso - é o Mike a deixar sair a pressão. «Estava bêbedo» passou a ser, nessa época, a minha desculpa sempre pronta para qualquer indiscrição que tivesse cometido.Quando aos anos oitenta se sucederam os anos noventa, o meu casamento com a Tracy - uma pessoa do género um-copo-de-vinho-ao-jantar, que eu nunca vi toldada - provocou uma mudança voluntária dos meus hábitos, no que se referia à bebida. Estava pronto a enveredar por uma vida mais calma. Os meus dias de frequentador habitual dos bastidores dos concertos de rock e dos clubes nocturnos VIP de Nova Iorque acabaram. Sentia-me feliz por trocar bebedeiras de cerveja com a rapaziada por algum tempo a sós com a minha mulher e, pouco depois, com o nosso bebé. Embora o meu novo estilo de vida fosse francamente menos social, beber continuava a ter o seu lugar. Com a Tracy, bebia apenas um ou dois copos de vinho ao jantar - como se tivesse realmente aderido ao ponto de vista dela de que era assim que se devia beber, e não com a finalidade de passar para o outro lado - e raramente me embebedei ao pé dela. De vez em quando, ainda apanhava uma ou outra bebedeira, sobretudo quando andava em viagem, e chegava mesmo a apanhar umas atrás das outras, quando estava fora, a trabalhar num filme. Mas, de um modo geral, a festa acabara e sentia-me bem assim, desde que ninguém fechasse o bar de uma vez por todas.O diagnóstico da doença, em 1991, trouxe consigo outra mudança na minha relação com o álcool. A quantidade que bebia estava muito abaixo dos níveis dos anos oitenta, mas a qualidade dessa bebida era completamente diferente. No fundo, sempre soubera que bebia para preencher um vazio, para camuflar uma necessidade de ser mais qualquer coisa do que aquilo que era então. Agora, sem as pretensas comemorações e a camaradagem para ocultar os abusos, precisava desesperadamente do álcool como resposta directa à necessidade de ter um escape para a minha situação. Sem alegria e às escondidas, bebia para desligar; agora, beber tinha a ver com isolamento e automedicação.• * *Voltámos de Los Angeles para Nova Iorque no princípio da Primavera de 1992. A Tracy estava em ensaios de uma nova peça deNeil Simon, Jake 's Women. A peça ia estar em cena fora da cidade, na Carolina do Norte, durante algumas semanas, antes da estreia na Broadway, mais ou menos ao mesmo tempo em que eu começava a filmar Por Amor ou Por Dinheiro, nos primeiros dias de Maio.Mal começámos as filmagens, senti-me pessimamente. No meio desta grande tempestade interior e da negociação psicológica, não deve ter sido uma coincidência eu ter aceitado fazer o papel daquela personagem específica - um porteiro astuto e hiperactivo de um hotel de luxo de Nova Iorque. Um porteiro, ou pelo menos aquele que o nosso filme apresentava, é uma criatura cheia de manhas, um fulano calculista, capaz de tudo para agradar aos clientes do hotel e, por conseguinte, para sacar uma bela gorjeta. A aspiração daquele porteiro era, um dia, vir a ter o seu próprio hotel mas tornara-se tão frenético e tão receoso de falhar que a única coisa que era capaz de fazer na vida era estar sempre em movimento - continuar a dançar tão depressa quanto possível, na esperança de que as pessoas continuassem a atirar moedas. Para mim, aquilo era a mesma coisa que representar em marcha-atrás.Como actor, senti de facto que estava a repetir-me, mas não me atrevi a queixar-me ao pé da Tracy. Tinha medo que ela me respondesse com uma variante do «eu bem te tinha dito». E, quer fosse ou não justo da minha parte, isso tornou mais profundo o meu sentimento de solidão. No fim do dia de trabalho, bebia duas ou três cervejas na minha caravana e, depois, mais duas ou três quando o motorista da equipa me levava a casa. Ao jantar, perguntava à Tracy se ela queria vinho. Se ela dizia que sim, escolhia uma garrafa, servia um copo para cada um de nós e, depois, a pretexto de a pôr no frigorífico para arrefecer, levava a garrafa para a cozinha. Na outra mão, levava o meu copo. Uma vez chegado à cozinha, esvaziava a garrafa, deitava-a no caixote da reciclagem, junto ao elevador de serviço, e tirava uma garrafa igual da garrafeira. Abria-a e bebia o suficiente para o conteúdo ficar ao mesmo nível da garrafa que trouxera da sala. Quando

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voltava da cozinha, como se tivesse passado os últimos cinco minutos a ver como estava o assado, perguntava à Tracy se ela queria mais vinho, enchia-lhe o copo e voltava a encher o meu.Apesar de todas estas manhas, sabia que não conseguia esconder assim tão bem que andava a beber. No fim do jantar, a minha voz soava disparatadamente alta e as palavras saíam entarameladas. Havia noites em que saía da cama, depois de a Tracy ter adormecido, e continuava a beber. Nas alturas em que a Tracy me confrontava com o facto, ficava zangado e na defensiva. A distância que o meu comportamento estava a cavar entre mim e a minha família assustava-me - mas esse medo era suplantado pelo medo ainda maior de que o raio me caísse em cima: a factura tinha enfim chegado e eu não tinha forma de a liquidar.Que podia eu dizer à Tracy? Como explicar-lhe? Não havia nenhuma explicação. Nada fazia sentido. O «tu não percebes» deixara de ser uma frase que só muito raramente dizia à minha mulher e passara a ser uma espécie de mantra virtual. Ela não percebia; ninguém percebia. Nem eu percebia o que a doença de Parkinson me iria fazer, como iria mudar a minha vida. Mas, quando estava bêbedo, era um pouco mais fácil ignorar tudo isso.Se esta espiral descendente tivesse continuado por muito mais tempo, tenho a certeza de que teria havido uma intervenção qualquer. Mas, em Junho de 1992, mesmo antes de eu ter acabado o trabalho em Por Amor ou Por Dinheiro, ia haver mais uma bebedeira, uma última manhã em que, ao acordar, estavam à minha espera sentimentos de confusão, de medo e de remorso, para já não falar da ressaca monumental. Foi então que, num momento de lucidez, uma coisa que só posso atribuir a uma graça que me foi concedida, decidi acabar com aquilo.Nesse Verão, a Tracy passou a maior parte das noites no palco, na Broadway, e eu ficava o dia todo nas filmagens, e por isso estivemos menos tempo juntos do que era habitual. Mas, à medida que se aproximava o fim de Por Amor ou Por Dinheiro, que seria antes da segunda semana de Julho, tínhamos passado à fase típica do fim de todas as produções, as filmagens nocturnas. Na sexta-feira 26 de Junho, por acaso, a Tracy e eu saímos à mesma hora para o trabalho, ela para o palco e eu para o estúdio. Tinham-me dito que íamos ter que trabalhar até às 5 da manhã e eu avisei a Tracy de que provavelmente só nos veríamos na manhã seguinte. Nesse dia, tínhamos planeado que eu iria com o Sam para o Connecticut e que a Tracy iria ter connosco no domingo -já que domingo e segunda-feira eram os seus dias livres, os dias em que não há espectáculo na maior parte dos teatros de Nova Iorque. Mas, mal cheguei ao estúdio, fiquei a saber que houvera um erro de calendarização. Não ia ter que trabalhar pela noite fora; na verdade, ia acabar por volta das 21.30 ou 22 horas e chegaria a casa antes da Tracy.Em circunstâncias normais, num período menos perturbado, esta perspectiva ter-me-ia animado e eu teria ido a correr para casa, contente por dispormos de tempo para estarmos juntos. Mas, em casa estava aquela nova realidade, a minha doença de Parkinson. Por isso, o meu primeiro impulso foi este: disse que só ia chegar a casa de madrugada, por isso tenho cinco ou seis horas das quais não preciso de dar contas — horário nobre para beber à vontade.Era uma necessidade premente, uma ânsia pela festa dessa noite, como se, de certo modo, eu soubesse que ia ser a última. Ainda estava em frente da câmara - a única coisa que tinha que fazer era uma cena de duas páginas, numa esquina de Tribeca, ao crepúsculo - e já alguns dos companheiros de equipa tinham arranjado uma garrafa de litro de tequilla, um saco de limas, e mandado vir um misturador. íamos na terceira rodada de margaritas, quando o realizador adjunto gritou «corta!».Às 10 da noite, tínhamos invadido um pequeno restaurante/ bar na Village, cujo nome seroe varreu da memória, como muitos outros pormenores dessa noite. Devia ser um restaurante russo, porque me lembro de ter emborcado shots de vodka gelado. Entre a tequilla e a vodka, tínhamos bebido umas quantas cervejas. Não sei se era hábito da casa ou se foi uma coisa que inventámos e que a gerência decidiu tolerar mas, a cada shot de vodka, atirávamos os copinhos para a lareira e eles explodiam numa chuva de pequenos cristais. Este disparate continuou até muito depois da hora de fecho e, a seguir, fomos até à minha caravana, em Tribeca, para acabar com as cervejas que havia no minibar.

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Não me lembro de como fui até casa, só de entrar sorrateiramente pouco antes de o sol nascer. Não há nada mais barulhento do que um bêbedo que tenta passar despercebido. Não tardou muito até a Tracy espreitar por trás da porta do quarto.— És tu, Mike?— Sou... cheguei agora do trabalho — menti.— Está bem. Anda para a cama — disse ela, fechando a porta.Eu sabia que ela ia adormecer segundos depois de ter voltado para a cama.Fui direito ao frigorífico e agarrei numa cerveja. A viagem da cozinha até ao sofá da sala deve ter sido acidentada porque, quando levantei a argola da lata, a cerveja saltou e fez muita espuma. Bebi um grande gole de espuma e deixei-me cair no sofá, com os pés por cima do braço deste - ainda tinha os sapatos calçados. Pus a cerveja no chão, ao alcance da mão, mas não voltei a tocar-lhe. Passei-me para o outro lado, ainda com o gosto daquele último gole na boca. Uma cerveja aguada: que fim patético para uma carreira de bebedor.ABSOLUTAMENTE SÓBRIO— Acorda... acorda, papá... vamos embora para o Coneck-ti-kut.Eu tinha adormecido completamente vestido e estava empapado em suor. O sofá estava voltado para a grande janela panorâmica do nosso apartamento do West Side, que dava para o Central Park. Enquanto curtira a bebedeira, o meu corpo estivera a ser cozinhado pelo sol de Verão, que nascia sobre o East Side. Lentamente, um após outro, os fragmentos da minha situação actual foram-se juntando.Naquele momento, Sam, o meu filho de três anos, o bebé que eu tanto amava, não passava de um mosquito gigantesco que trepava para cima de mim, zunindo aos meus ouvidos, obrigan-do-me, de forma irritante, a voltar ao estado consciente. Apetecia-me enxotá-lo, tirá-lo de cima de mim, atirá-lo para o chão.Em vez disso, levantei-me com muita dificuldade e sentei-o ao meu lado. Resisti a abrir por completo os olhos; havia demasiada luz na sala e os seus lúmens pareciam alfinetes que se me espetavam nos miolos. O meu olhar desfocado poisou sobre a carpete, sobre a qual jazia a lata de cerveja, por certo derrubada horas atrás por um movimento brusco do braço. Servi-me dela como ponto de focagem, para me orientar. A carpete tinha uma mancha escura, do líquido que escorrera da abertura da lata.A seguir, vi uns pés. Os pés da Tracy. Os pés tinham sapatos calçados. Merda. Que horas seriam? Se calhar, ela estava a caminho do teatro, para a matinée de sábado. Eu tinha dormido a manhã toda - ou melhor, tinha estado do outro lado durante a manhã toda. Mantive os olhos abertos, enquanto o olhar ia subindo dos ténis dela para os joelhos, para a mala de mão e, pouco a pouco, mais para cima. Estava a preparar-me para o que iria encontrar, quando os nossos olhares se cruzassem. Ela estava de certeza furiosa, enojada. Ia ouvir das boas, estava mesmo a ver que era isso que ia acontecer.Mas quando, finalmente, arranjei coragem para olhar para a cara dela, não deparei com nenhuma expressão de raiva. O que vi no seu rosto era muito mais inquietante. Ela estava a encarar o estado lamentável em que eu me encontrava com uma calma próxima do tédio. Não, era pior que tédio; era indiferença.— Tenho que ir para o teatro — disse ela, num tom átono. — Achas que vais estar em condições de levar o Sam para o campo?— Sim — gaguejei. — Só... só preciso de um segundo para... ouve, ontem à noite...— Não quero ouvir nada — disse a Tracy, ainda terrivelmente calma. Dirigiu-se para a porta e, então, virou-se para trás, fitando-me com um olhar diferente. — É isto que queres? — perguntou. — É isto que queres ser?Não era uma pergunta. A seguir, saiu porta fora. As minhas mãos começaram a tremer, mas não apenas por causa da maldita doença neurológica. Nunca na vida me sentira tão assustado.«Bater no fundo» é uma expressão que os alcoólicos emrecuperação utilizam frequentemente. Descreve um ponto de desespero físico, emocional e espiritual a que chegaram pelo seu próprio pé, atrás de mais uma bebida, o momento em que compreendem que descer mais baixo seria insustentável.

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Pelo menos no que se refere à minha carreira de bebedor, naquela manhã em que acordei no sofá, bati no fundo.Tive sorte. Comparada com as experiências de outros que lutaram contra o álcool, a minha aterragem foi bastante suave. Tenho a certeza de que muitas pessoas que estão a ler isto pensam: «Mas que merda... Eu vomitei mais do que tu bebeste.» É com certeza verdade. Ouvem-se histórias de total ruína financeira, terríveis desastres de automóvel, ferimentos e mortes, penas de prisão, casamentos destruídos, degradação e humilhação que suplantam de longe tudo quanto eu sofri. Mas, se tivesse continuado a beber, qualquer um destes destinos podia ter sido o meu.Ao princípio, eu encarava o álcool como um aliado na minha luta com o Parkinson. Naquela manhã, deitado no sofá, com o Sam a trepar por mim acima, percebi que isso não era verdade. O álcool passara a ser mais um adversário - um adversário que ameaçava afastar de mim tudo o que era importante na minha vida.Não podia fazer nada quanto à doença de Parkinson, mas com o álcool era diferente: aqui, pelo menos, podia escolher e, naquele dia, fiz a minha escolha. Ajudar-me a fazer essa escolha foi a primeira coisa que tive a agradecer ao Parkinson. Parte da «dádiva» desta doença é uma certa lucidez crua acerca do resto da nossa vida. O controlo brutal do Parkinson sobre cada vez mais aspectos da nossa vida leva-nos a apreciar todas as áreas sobre as quais ainda detemos a soberania. A doença de Parkinson obriga-nos a distinguir os primeiros das segundas e a defender aquilo que ainda é possível defender. O que queria dizer que o álcool tinha que ser posto de lado.Quando, nessa tarde, me dirigia para o noroeste do Connec-ticut, com o Sam a dormitar na sua cadeirinha no banco de trás, não pensava ainda nestes termos. Na diminuta medida em que a minha mente funcionava, o que me ocorria eram passagens de um guião, que incluía um diálogo contrito, desculpas e pedidos de desculpa. A minha primeira prioridade, quando chegasse ao destino, era telefonar à Tracy e queria ter qualquer coisa preparada. Folheando o meu catálogo interior de mea culpas pelas bebedeiras anteriores, concluí que a minha motivação tinha sido sempre apaziguar a cólera desiludida dela. Mas não tinha nada com que pudesse responder àquela expressão do rosto dela. A Tracy não parecia disposta a discutir, parecia resignada a con-siderar-me um caso perdido. Era aquilo que eu queria? Era aquilo que eu queria ser?Quando falei com ela ao telefone, a Tracy estava no intervalo entre o espectáculo da tarde e o espectáculo da noite de sábado. Disse-lhe um «olá» tímido e ela respondeu com um «estou» evasivo. Percebi que ia ter que ser eu a preencher a terrível pausa que se seguiu. E foi isto o que me saiu pela boca fora:— Desculpa - só queria dizer que tenho um problema de alcoolismo e que estou disposto a deixar de beber... caso saibas de alguém com quem eu possa falar...— Fica aí ao pé do telefone — respondeu ela, rapidamente. E, antes de desligar, acrescentou: — Amo-te.Poucos minutos depois, o telefone tocou.— Olá, Mike — disse uma voz feminina, que reconheci imediatamente.Era uma grande amiga da Tracy e minha. De repente, dei-me conta que, apesar de termos jantado várias vezes com esta mulher, nunca a tinha visto beber nada, nem mesmo um copo de vinho. Nunca me dera ao trabalho de me perguntar porquê -julgo que não queria saber.— A Tracy disse-me que, finalmente, achas que já chega.— Pois é.Seguiu-se uma breve troca de palavras, uma sessão exploratória no decurso da qual ela me fez algumas perguntas e pareceu ficar convencida de que, de facto, eu estava a precisar de ajuda e disposto a aceitá-la. Combinámos encontrar-nos na cidade na segunda-feira. Mas ela tinha ainda uma pergunta a fazer.— Achas que és capaz de não beber até lá?Demorei algum tempo a responder. O que estava eu a fazer? Estaria realmente preparado para enfrentar a vida sem anestesia? Ou isto era apenas mais uma negociação? Uma coisa do género «Por favor, meu Deus, liberta-me disto e eu nunca mais toco numa gota de álcool»? Mas, que diabo, faria alguma diferença? Os meus dias de copos tinham acabado.

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— Sim, acho que sou capaz.Aquela cerveja Coors que não acabara de beber tinha sido a última bebida. Passaram-se dez anos e não tive que estender a mão para mais nenhuma, embora não se trate de um feito que, honestamente, possa atribuir à minha própria força de vontade. Naquela segunda-feira, fui ter com a minha amiga e, ao longo dos dias, meses e anos seguintes, ela e um círculo sempre crescente de novos amigos, que preferem conservar o anonimato, mostraram-me que era possível viver sem álcool.Poder-se-á pensar que a decisão de me manter sóbrio marcaria o início de uma curva ascendente inspiradora, mas na verdade não foi assim tão simples. Acabaria por chegar a um ponto de viragem bem definido, quando comecei a evoluir para uma maneira inteiramente nova de entender a minha doença e a minha vida, mas ainda tinha pela frente mais uns anos difíceis. Por muito que o álcool me tivesse feito bater no fundo, a abstinência far-me-ia bater mais fundo ainda, de uma forma aterradora, mas incontornável. Embora viver sem o filtro do álcool me desse oportunidade de analisar todas as etapas da minha vida, a ausência desse filtro não me dotou de imediato da capacidade de compreender o que tinha de enfrentar e de tomar decisões racionais sobre a forma de reagir.Durante o primeiro ano em que me mantive sóbrio, concen-trei-me precisamente nisso - manter-me sóbrio. Ao princípio, o simples facto de fazer aquilo que se espera de nós, de viver um dia de cada vez, constitui uma sucessão de actos heróicos. Sobreviver às ocasiões sociais, pela primeira vez sem o conforto de uma bebida, representa um marco comportamental. O casamento da minha irmã Kelli, no qual, ironicamente, fui eu quem propôs os brindes, foi um dos marcos mais notáveis. Depois, veio o meu Primeiro Natal Sóbrio, seguido por uma infinidade de acontecimentos e ocasiões, desafios e celebrações semelhantes, durante os quais, dantes, eu teria sentido a necessidade de pegar pelo menos numa cerveja. Nos doze meses após aquela última ressaca, acabei um filme, comecei e acabei outro e comecei um terceiro, tudo sem tocar numa gota de álcool. Cada uma destas pequenas vitórias deu-me alguma satisfação.A curto prazo, porém, dedicar tanta atenção à abstinência tornou-se uma válvula de escape quase tão importante como a embriaguez tinha sido. Deixar de beber era uma coisa indiscutivelmente positiva mas, no que dizia respeito ao resto da minha vida, continuava a guiar-me pela mesma agenda baseada no medo, definida nos dias que se seguiram ao diagnóstico. Quanto à carreira, mantivera-me fiel ao plano de fazer o maior número possível de comédias lucrativas, destinadas ao grande público. Depois de Por Amor ou Por Dinheiro, fiz valer os meus direitos de opção para trabalhar independentemente do contrato da Universal mas, em vez de procurar algo que constituísse um desafio - um risco criativo, para contrabalançar o plano de segurança comercial da Universal - aceitei uma proposta da Disney para actuar em Um Talento Especial, uma comédia familiar melosa acerca de um ex-actor infantil frustrado que, um dia, é roubado na rua por uma garota endiabrada com potencial de artista. A garota passa a ser sua protegida e ele o seu agente. Mais uma variante da velha história de cordel.O desapontamento da Tracy foi óbvio, mas recusei-me a discutir o assunto. «Eu sei o que estou a fazer - confia em mim.» Mas como podia ela confiar em mim, se era dolorosamente notório que eu não confiava em mim? Com bebedeiras ou sem elas, não deixara de me isolar da família e continuava mergulhado numa tempestade interior que não compreendia, a não ser na medida em que tinha a certeza de que não havia mais ninguém que a compreendesse. Por seu turno, a Tracy continuava a trabalhar; foi com o Sam para Los Angeles para fazer um filme para a televisão, enquanto eu passei o Inverno de 1992-1993 em Toronto, a trabalhar no filme da Disney. Assim, à distância emocional que se ia criando entre nós juntava-se muitas vezes a separação geográfica.O ano de 1993 revelou-se uma repetição monótona de 1992. Dispus de muito tempo sozinho para poder pensar, mas gastei muito pouco desse tempo a pensar num futuro com a doença de Parkinson. Dedicava-me sobretudo a congeminar formas de me manter ocupado com qualquer coisa. Não fiz qualquer esforço para arranjar um neurologista nem para aprender mais sobre a doença. Assinei um contrato para mais uma comédia da Universal, Os Gananciosos, que ia começar a ser produzida em L. A., em Maio. Recomecei a fazer exercício com outro treinador -adquirindo uma considerável massa muscular e conseguindo ter um ar mais saudável do que da vez

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anterior, apesar de os meus sintomas estarem a acentuar-se. Durante as filmagens de Os Gananciosos, em L. A., nesse Verão, Um Talento Especial estreou e foi um fiasco. Quando finalmente chegou às salas de cinema, no Outono, Por Amor ou Por Dinheiro também não alcançou grandes receitas. Tal como despedira o meu antigo agente por querer iniciar a minha carreira no cinema com Peter Benedek, nessa altura dispensei o Pete e assinei um contrato com uma das três mega-agências. Parecia apostado em repetir os mesmos erros, mas ficava à espera de resultados diferentes. Quase no fim do ano, comecei a perceber o motivo por que, no processo de recuperação, as pessoas descrevem tantas vezes esta abordagem como uma espécie de insanidade funcional.Registar a evolução das minhas emoções durante este período é uma tarefa desagradável e espinhosa porque não se trata de uma época que eu tenha atravessado com os olhos bem abertos. Na verdade, mantive a cabeça baixa e investi em frente, tremendo com medo de esbarrar contra as paredes, mas sem a lucidez ou a sensatez necessárias para ver que iria deparar com elas. Não foi tanto uma jornada, mas sobretudo uma experiência de andar perdido na terra de ninguém - muito mais desnorteante do que qualquer casa dos espelhos, um sítio onde, pelo menos, poderia reconhecer um reflexo de mim próprio, ainda que distorcido.Embora na altura não o soubesse, precisava desesperadamente de objectividade, de fazer um balanço honesto e completo da minha vida até ao ponto em que me encontrava e de como ou porquê ali chegara. Só assim podia ter seguido em frente em segurança. Precisava de parar de correr e de iniciar um processo idêntico àquele a que os advogados chamam descoberta - a recolha de pedaços díspares de informação em bruto, como limites de tempo, pistas e provas fúteis, para desenvolver uma teoria persuasiva sobre o motivo e o método, a acção e a consequência. Depois de concluída a «descoberta», do que eu precisava era de me sentar muito quieto, pelo tempo que fosse preciso, como se estivesse num tribunal, e de examinar aquilo que descobrira, fazendo a ligação entre os vários pontos até descobrir a verdade. E foi exactamente isso que aconteceu. Embora não tivesse sido eu a levar-me a julgamento - houve alguém que se sentiu muito contente por me fazer esse favor.TOMO A DEUS POR TESTEMUNHA...Tribunal de Los Angeles - Novembro de 1993 Lembram-se da casa de solteiro em Laurel Canyon - com uma piscina nas traseiras e um jaccuzzi no quarto? Pouco depois do Sam ter nascido, a Tracy e eu decidimos vendê-la e mudar-nos para Leste. Depois da venda, o comprador resolveu fazer reclamações e processou-me. Não é preciso entrar em pormenores sobre o processo; os litígios do foro civil são exasperantes, angustiantes e muitas vezes chatos. Mas, como verão, aprendi muito com esta experiência e não tenho pressa de a repetir.O ponto crucial do caso era o seguinte: o comprador afirmava que a casa e os jardins tinham defeitos que eu pretendera voluntariamente ocultar, cometendo por conseguinte uma fraude. Além disso, afirmava-se no processo que dessa ocultação tinham resultado danos emocionais e físicos. Os advogados pediam alguns milhões de dólares de indemnização, o que correspondia a várias vezes o valor da própria casa.Com todas as preocupações que já tinha no começo dosanos noventa - a morte do meu pai, o diagnóstico da doença de Parkinson, os revezes na minha carreira cinematográfica e o resto - só muito vagamente tive consciência da tempestade que se aproximava. Contudo, com o tempo, foi marcada uma data de audiência e eu fui chamado a prestar depoimento, tal como alguns dos meus ex-empregados. Os advogados da minha companhia de seguros avisaram-me de que o caso ia mesmo para a frente. Estavam tão espantados como eu por o queixoso insistir numa indemnização de vários milhões de dólares e, também, por o juiz não ter considerado o caso improcedente.Agora, estava mesmo irritado. Eu não tinha defraudado ninguém nem tivera qualquer intenção de o fazer. Tudo aquilo era ridículo e deixara de ser um aborrecimento para se tornar um pesadelo. Eles estavam à espera que eu passasse um cheque e resolvesse o assunto, mas disse aos meus advogados que nem pensar em tal, mesmo que isso significasse ter de ir a tribunal.

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A pessoa que me processava exerceu o seu direito de optar por um julgamento com júri. Isto queria dizer que o caso podia arrastar-se em tribunal por duas ou três semanas. Não me interessava. Decidi estar presente todos os minutos de todos os dias que o julgamento durasse. Este foi marcado para Novembro de 1993, num tribunal de Los Angeles. Por acaso, a Tracy ia ter que estar em Los Angeles por essa altura, por causa de um filme para a televisão e, por isso, eu organizei a minha agenda e toda a família se instalou num hotel de West Hollywood.O processo arrastar-se-ia até à segunda semana de Janeiro de 1994. Só a escolha do júri durou quase uma semana. O advogado do queixoso massacrava os potenciais jurados com perguntas como «Acha que o Alex Keaton seria capaz de mentir?» - e obrigava o tribunal a dispensar quem respondesse achar que não. Quando eram aceites pelo advogado da parte contrária, o meu advogado fazia-lhes, por seu turno, uma série de perguntas e expunha as nossas desqualificações técnicas. De vez em quando, deixava escapar um potencial aliado. Depois de o meu advogado ter agradecido e dispensado uma potencial jurada, uma senhora de idade, esta passou pela nossa mesa, quando se dirigia para a saída da sala do tribunal, inclinou-se, deu-me um beliscão na bochecha e disse:— Oh, gosto tanto de si.Voltei-me para o meu advogado e sussurrei:— Aí está. Vamos despachar isto. Quaisquer doze servem.Tudo aquilo me parecia ridículo e exagerado. Não se tratavade um julgamento de um caso de homicídio, era só uma disputa relativa a uma propriedade, mas não havia dúvida de que a presença de uma celebridade numa sala de tribunal originara um verdadeiro circo legal.Apesar de não ser completamente cega, a Justiça também não piscava o olho. De facto, esta era uma faceta da fama que eu não conhecera antes. Ser célebre não ia valer-me qualquer consideração especial, apenas tornar-me alvo de um exame mais minucioso. Ser engraçado não me servia de nada; o encanto que, neste cenário, podia ser erradamente interpretado como astúcia, era mais um inconveniente que uma vantagem. A estratégia óbvia do advogado da parte contrária era aumentar o fosso entre as pessoas honestas e trabalhadoras, sentadas na bancada do júri, e eu, o arrogante jovem príncipe de Hollywood. Essa estratégia não veio a dar qualquer resultado com os jurados: deliberaram contra a acusação em todas as questões essenciais - fraude, intenção de cometer fraude - embora eu tenha acabado por pagar algumas obras. Mas a estratégia da acusação foi bem-sucedida na medida em que criou uma oportunidade rara e perturbante de me ver a ser julgado. Dia após dia, fiquei sentado sob a luz crua da sala do tribunal, a ver desfilar diante de mim os pormenores da minha vida.A base da minha defesa, a verdade central que acabou por convencer o júri de que eu não tivera intenção de cometer fraude, teve igualmente o poder de tornar claro, pelo menos para mim, até que ponto a minha situação pessoal se tornara patética. A base era a ignorância - ou seja, a falta de conhecimento sobre a minha própria vida. Como poderia eu ter tido a intenção de falsear uma transacção na qual praticamente não estivera envolvido? Tinha delegado a venda da casa em terceiros, assinado o contrato de venda que me fora enviado por correio expresso e seguido em frente. Nunca vira ou falara com o comprador - que raio, antesdo processo, nem sequer tinha visto o corretor imobiliário. A casa tinha problemas? Pensava que não e, se os houvesse, teria mandado fazer obras, mas isso era o género de pormenores em que, na minha existência de conto de fadas, nunca teria reparado.Para provar a minha inocência, tinha tido que demonstrar um padrão bem preciso de distanciação das minudências da vida quotidiana, uma ausência de responsabilização pessoal que deve ter chocado os homens e as mulheres do júri. Apresentei-me diante deles, no banco das testemunhas, sentado sobre as minhas mãos trementes, não fossem eles confundir o tremor do Parkinson com o nervosismo de um mentiroso, e expliquei o complicado funcionamento do mecanismo ao qual eu confiava as tarefas quotidianas. Tinha agentes, gestores financeiros e assistentes pessoais para tratarem dos aspectos mais práticos da vida -porque estava demasiado ocupado (a brincar ao faz de conta, como modo de vida) para

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poder fazer pessoalmente esse tipo de coisas. A certa altura do meu testemunho, fui obrigado a admitir: «Nem sequer compro as minhas peúgas.» Em vez de prestar testemunho, bem podia ter posto um gravador portátil diante da bancada do júri e debitado «Life's Been Good to Me», de Joe Walsh. A minha «defesa» foi esta: a minha vida afastara-se de mim. Não é de admirar que tivesse ocultado o diagnóstico da minha doença e tivesse encarado a realidade deste com um olhar duro e frio. Porque havia o Parkinson de ser diferente de todas as outras coisas da minha vida? Então eu não pagava às pessoas para tratarem disso?Não demorei muito tempo a perceber que o julgamento se prolongaria até depois das férias de Natal, altura em que a Tracy, o Sam e eu planeávamos regressar a Nova Iorque. Depois das férias, a Tracy ia começar a trabalhar num novo projecto. O que significava que teria que voltar sozinho para Los Angeles, em Janeiro, para assistir às últimas semanas do processo, uma perspectiva que me assustava. Pelo menos, pensei para comigo, com um horrível sentimento de depressão, sei que não vão sentir a minha falta.Este deve ter sido o aspecto mais humilhante de toda aquela provação. Estava redondamente enganado, se pensava que, porter largado tudo para fazer uma defesa espectacular da minha integridade pessoal, o mundo parava de girar. O meu afastamento - da minha família, da minha carreira - não provocava um vazio visível; tanto quanto me parecia, as pessoas mal davam por ele. Não havia nenhum projecto que tivesse que ser adiado -estava a preparar um filme de longa-metragem para eu próprio realizar, mas ainda faltava um ano para começar e, de qualquer modo, começava a duvidar da minha capacidade de o levar por diante. Outro actor poderia referir-se à situação em que me encontrava como um compasso de espera «entre dois trabalhos», mas um cidadão comum chamar-lhe-ia, simplesmente, desemprego. Eu prefiro o termo britânico «redundancy»1. Era mesmo assim que eu começava a sentir-me - redundante, desnecessário.A Tracy esteve a trabalhar enquanto isto se passava e, aparentemente, a sair-se muito bem. No passado, ficava sempre contente e orgulhoso sempre que lhe davam uma oportunidade de mostrar o seu talento, mas aquela fase estava a ser horrível. Todas as manhãs, quando saía do hotel, a caminho da armadilha sombria que era aquela sala de tribunal, para apresentar a minha defesa de «eu não sou uma fraude, sou só um excêntrico», a Tracy já tinha saído para o local das filmagens. Tenho que admitir, também, que, pela primeira vez desde o nosso casamento, estava com ciúmes. Tanto quanto eu sabia, o actor que contracenava com ela, Peter Horton, da popular série televisiva Os Trintões, tinha um certo encanto animal e, tanto quanto eu sabia, não estava a ser processado por ninguém. Tudo aquilo estava a dar comigo em doido.A Tracy tinha plena consciência de que eu estava atolado numa situação terrível. Uma noite, poucos dias antes de partirmos para o Connecticut, para passar o Natal, tentou falar comigo sobre os meus sentimentos.1 Quando há «redundancies» (excedentes), as empresas despedem alguns empregados, porque o seu trabalho deixou de ser necessário ou porque deixaram de lhes poder pagar. Neste sentido, a palavra é normalmente traduzida por «despedimento». Em literatura, a tradução pode ser «redundância», «pleonasmo». (N. da T.)Eu não sabia o que dizer e fiquei tão surpreendido como ela com as palavras que, finalmente, acabei por murmurar:— Nunca me senti tão infeliz na minha vida.Estava à beira das lágrimas.— Tens que parar de te atormentar, querido. Acho que deviasprocurar ajuda.Enfiado num sítio qualquer, eu tinha o papel onde ela escrevera o número de telefone de um terapeuta de Nova Iorque com fama de ser muito bom.Abanei a cabeça. A Tracy já tinha falado nisto uma ou duas vezes, mas eu não tinha feito nada. Acrescente-se que ela passara os dois últimos anos a suplicar-me que arranjasse um neurologista e eu também tinha encolhido os ombros. Antes de ter deixado de beber, houve alturas em que pusera a hipótese de marcar uma consulta para um psicólogo, mas esse plano fora sempre travado por um pequeno embuste preparado especialmente para esse fim. Nessa época, o mais provável era qualquer terapeuta digno desse nome dizer-me que a primeira coisa que tinha a

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fazer era enfrentar o meu problema de alcoolismo e, como é evidente, eu não queria fazer tal coisa. Inversamente, não valia a pena ter uma consulta com qualquer profissional de saúde mental que passasse mais de uma hora comigo e não me recomendasse que deixasse de beber. Logo, nada de psiquiatras.— Não, eu sou capaz de resolver isto sozinho — disse à Tracy.Vi que ela não tinha ficado nada convencida.— Só preciso que não me abandones — murmurei, semperceber realmente que, desta vez, estava a falar comigo mesmo.FELIZ NATAL (A GUERRA ACABOU)Los Angeles - Dezembro de 1993Cada dia passado no tribunal a desmontar a minha elaborada rede de defesas, ostensivamente para convencer o juiz e os jurados da inexistência de intenção de defraudar alguém, foi deixado a nu um homem que até eu tinha dificuldade em reconhecer. Estávamos a falar da minha vida, mas sentia-me como se, na realidade, esta não me pertencesse. Quando assimilei este facto, a saída do tribunal ao fim de cada sessão, fingindo que continuava a ser dono dela, tornou-se num martírio.Em Dezembro de 1993, bati no fundo, foi o Inverno do meu desfasamento. Quando chegava ao hotel, abraçava o Sam, mas sentia-me demasiado desalentado para brincar com ele. Procurava ser delicado com a Tracy, mas falava pouco. A cólera que sentia - por causa do julgamento, por causa de mim (e, claro, por causa da doença de Parkinson mas, na verdade, ainda não tinha chegado bem a essa fase) - era tão incipiente que tinha tendência a lançar-me em discussões amargas, mas sem sentido. Por essa altura, a minha auto-estima andava tão por baixo que, mesmo quando procurava ser terno ou romântico, sentia que estava a amaldiçoá-la com o meu afecto. Não tinha apetite nenhum e utilizava essa desculpa para não jantar com a minha família, coisa que me parecia uma tentativa falsa e patética de aparentar normalidade.Em vez disso, refugiava-me na casa de banho e punha um banho a correr. Enquanto tirava a gravata e despia a camisa e o fato de ar respeitável que nesse dia levara para o tribunal, tinha o cuidado de evitar olhar, mesmo de relance, para a minha imagem no espelho. Quando a banheira estava cheia e o espelho embaciado pelo vapor, apagava as luzes e metia-me na água quente, agora tão nu como me sentira no tribunal, mas mais seguro. A banheira passou a ser o meu refúgio, o meu esconderijo.O corpo doía-me. Ao longo das semanas passadas no tribunal, violentara-o, forçando-o a uma posição extremamente desconfortável, para dissimular os tiques e tremores. Tinha bastante prática deste embuste mas, nas filmagens, havia intervalos, minutos ou horas durante os quais podia recolher à caravana e deixar que os sintomas se manifestassem livremente. Perguntava sempre quando iam voltar a precisar de mim e, depois, programava a medicação em conformidade. Mas, encurralado na cadeira de madeira, à mesa do meu advogado, estas tréguas nãoexistiam. Contorcia-me e agitava-me, naquela sala onde já tinha exposto tanto de mim, mas não estava disposto a deixar que ninguém - jurados, queixoso, juiz ou advogado - visse aquilo que eu próprio ainda não queria ver. No banho, ouvia a minha mão esquerda a bater contra a superfície da água tépida, sentia o lado esquerdo do meu corpo contorcer-se debaixo de água mas, com as luzes apagadas, era poupado à visão desse espectáculo. Era nisto que tinha acabado a minha busca de toda a vida de um espaço vital: numa caixa de água, dentro de uma divisão com menos de três metros por cinco, sem luz, sem janela - com medo de sair daquele útero artificial, de ir lá para fora, onde só podia arranjar problemas, desapontar a minha família e a mim próprio. O melhor, pensava, era ficar ali, onde não podia lixar nada. E ali ficava, dia após dia, durante horas, por vezes três ou quatro vezes aos fins-de-semana, a tentar meter a cabeça debaixo de água.Connecticut - Véspera de Natal, 1993Na noite da véspera de Natal, eu estava a fazer uma lista.Na casa de fim-de-semana que eu e a Tracy tínhamos, perto da quinta dos pais dela, no Connecticut, as outras pessoas estavam todas a dormir: a Tracy, o Sam e a minha mãe, que viera de Vancouver passar as festas connosco. Não conseguia dormir. Estava inquieto, mas não devido à excitação que costumava sentir nas

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vésperas de Natal da minha infância, dando voltas e voltas, na expectativa da maior festa do calendário das crianças. Incapaz de dominar as disquinésias do meu corpo, saltara da cama e, com cuidado, para não acordar a minha mulher, saíra do quarto. O primeiro impulso fora meter-me na banheira, mas a casa era tão pequena e as canalizações tão antigas que pôr a água a correr iria, por certo, acordar toda a gente e a última coisa que eu queria ter era companhia.Pouco depois, dei comigo na sala, de caneta na mão, debruçado sobre umas folhas de papel que arranjara e colocara em cima da mesa de apoio. A única luz acesa era a de um candeeiro de pé que eu aproximara da mesa, de modo a fazer incidir a luz fraca da lâmpada sobre o meu espaço de trabalho improvisado.Aquilo que eu rabiscava furiosamente não estava por ordem, como as listas costumam estar; na verdade, era mais aquilo a que os meus companheiros dos alcoólicos anónimos chamariam um quarto passo, que deveria ter sido dado havia muito, um inventário da minha vida até à data. Mesmo isto, porém, parece demasiado linear. Era mais uma acta do barulhento comité das vozes que soavam dentro da minha cabeça, guinchando que nem macacos enfurecidos. Pensei que, se conseguisse passar tudo aquilo para o papel e, depois, ler o que escrevera e isolar umas coisas das outras, talvez pudesse encontrar um pouco de paz ou, pelo menos, ter uma noção de para onde me devia virar.As horas que se seguiram deram origem a um documento notável e perturbador: uma autodissecação desconexa e ocasionalmente incoerente, um rol de erros e fracassos, ressentimentos e recriminações. As palavras que enchiam a página descreviam a minha situação presente, mas também aludiam ao passado: ser baixo, ter que estar sempre a afirmar-me, a superar circunstâncias que não conseguia controlar; o modo como, depois de ter feito tudo isso, deitara tudo por água abaixo. Escrevi acerca do meu pai, de como ele duvidara injustamente de mim para depois passar a acreditar que me tornara numa coisa que, afinal, eu não era. Escrevi que sentia a sua falta, reconheci o meu amor por ele. Anotei que ter a minha mãe comigo, ali, naquele momento, era terrivelmente difícil. A confiança que ela tinha em mim era tão absoluta que perguntava a mim próprio se ela seria capaz de ver a dor que eu sentia. Queria protegê-la dessa dor, o que era uma ideia ridícula, visto eu próprio estar esmagado por ela. No que se referia à Tracy, escrevi várias vezes as palavras «será que ela ainda me ama» e, se ama, «como é possível?». Afirmei várias vezes o meu amor por ela e manifestei a esperança de conseguir recuperar a sua confiança. Sempre tínhamos falado em ter mais filhos depois do Sam, mas notei que ela já não falava tanto nisso. Que tipo de pai poderia eu ser, no futuro? E, já agora, que espécie de pai era eu naquele momento? Pedi desculpa ao Sam. Percebi que estava a submeter uma criança de quatro anos a uma enorme pressão, obrigando-a a lidar comigo e com a situação queeu estava a atravessar, de uma maneira que nem mesmo os adultos eram capazes de suportar.Por muito tristes que fossem, aquelas páginas continham coisas que acabaram por me fazer rir. Ao longo delas, referia-me mais de uma vez ao meu desejo intenso de ser uma pessoa com «pouca manutenção» - alguém mais fiável e mais autoconfiante. Esta expressão aparecia três ou quatro vezes e, a seguir à última referência, eu rabiscara entre parêntesis «é assim que se escreve manutenção?».Acabei por ficar farto de escrever ou, então, tive cãibras na mão ou, simplesmente, não tive forças para continuar. Li aquilo que escrevera e chorei. Mesmo que também fosse outra coisa qualquer, aquilo era uma declaração de rendição. No dia seguinte, ia procurar o número de telefone que a Tracy escrevera num papel havia semanas - o número da tal psiquiatra de Manhattan. Ia telefonar-lhe - fosse dia de Natal ou não. Já não era capaz de fazer face àquilo sozinho.Ao ler hoje o meu manifesto, aquilo que ele tem de mais espantoso é a única coisa que não mencionei:Que tinha a doença de Parkinson e que esta não ia desaparecer nunca.

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CAPÍTULO SEISO ano dos prodígios(ou: O [verdadeiro] segredodo meu [verdadeiro] sucesso)Connecticut - 26 de Dezembro de 1993Já uma vez tinha falado com um analista - mas isso tinha sido numa sitcom. No decurso da quarta época de Quem Sai aos Seus, o Gary Goldberg e o produtor Alan Uger foram co-autoresde um guião de uma hora intitulado «Hum... o meu nome é Alex». O melhor amigo de Alex morre num desastre de automóvel enquanto andava a fazer uma mudança - que, se não se tivesse desenfiado à última hora Alex, deveria tê-lo ajudado a fazer. Debatendo-se com o enorme sentimento de culpa do sobrevivente - agravado pela consciência de ter sido poupado devido a um acto de egoísmo - Alex procura os conselhos de um psicoterapeuta. Admitir a necessidade de uma ajuda deste tipo era absolutamente incaracterístico em Alex P. Keaton. Afinal, a confiança em si mesmo é a pedra de toque da personificação do rapaz-maravilha gabarola que mostra ao mundo: imparável, Alex ascende em linha recta ao futuro que escolheu.A morte do amigo, porém, fá-lo interromper a sua trajectória e coloca-lhe questões às quais, desta vez, não consegue responder de ânimo leve. Tal como sugere o título, tipo canção infantil, do episódio, Alex tem agora de passar em revista a sua vida, desde a mais tenra infância, a fim de harmonizar o medo e as dúvidas que, no íntimo, sente acerca de si próprio, com a admiração e os elogios que toda a vida recebeu do mundo exterior. O episódio foi gravado ao estilo teatral de Our Town, no qual o psicoterapeuta nunca aparece na imagem: Alex olha directamente para a objectiva enquanto responde às perguntas perspicazes que lhe são feitas por uma voz masculina sem corpo.Esse episódio valeu-me um Emmy mas, agora, imerso nesta intimidante versão real da angústia do meu alter-ego e, tal como ele, à procura de ajuda profissional, a única recompensa que eu desejava era o alívio. Em muitos pontos, podia compreender a perplexidade de Alex. Tal como ele, nunca tinha pensado poder vir a ter alguma coisa a ver com psicólogos e psicoterapias. Sempre fui uma pessoa do género descobre-por-ti-mesmo mas, desta vez, era dolorosamente óbvio que não fazia a mínima ideia de por que ponta começar. Tal como Alex, também eu tinha investido muito para ser visto como um vencedor, por mim e pelos outros. Ver-me tão derrotado e vulnerável fazia-me sentir como se, afinal, me tivesse de algum modo transformado num vencido. Mas perder é uma coisa e desistir é outra: graças a Deus, nofundo de mim próprio havia qualquer coisa que me impedia de desistir.Ao contrário da voz sem corpo do episódio «Hum... O meu nome é Alex», a voz do outro lado da linha telefónica era a de uma mulher, um ser humano não pertencente ao mundo da ficção - a terapeuta de Nova Iorque cujo número de telefone eu tinha guardado e que marquei, por fim, no dia seguinte ao Natal de 1993.A Joyce é uma analista da coirente de Jung, com consultório no lado ocidental de Manhattan. Quando, recentemente, a interroguei sobre essa primeira chamada, ela disse-me que eu parecia «um rapazinho que preferia morrer a admitir que estava muito assustado». Com a voz a tremer (a Joyce diz que «mal me ouvia»), lembro-me de ter dito à desconhecida, do outro lado do telefone, que me sentia «como se a minha vida estivesse em chamas». É interessante nenhum de nós se lembrar de a doença de Parkinson ter sido referida, naquela que seria a primeira de uma série de centenas de conversas.Senti imediatamente, visceralmente, que fizera bem em procurar ajuda. Tudo o que queria saber na altura era dentro de quanto tempo podia ter uma consulta. A Joyce chamou-me a atenção para o facto de eu estar a telefonar durante o período de férias e de ela não dar consulta até à semana seguinte. No entanto, ouvira atentamente o que eu tinha e não tinha dito e logo concluíra que eu estava em crise e precisava de ser atendido de imediato. Não sendo pessoa para dar importância a coincidências, a Joyce soube dar a importância devida ao facto de, ainda que tivesse previsto estar fora da cidade nesse dia, estar por acaso no consultório quando eu telefonei.

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— Posso recebê-lo esta tarde às três horas — propôs, dando-me a morada. Houve uma pausa. Nessa tarde? Não tínhamos planeado voltar para a cidade tão cedo - a minha mãe viera visi-tar-me, era o dia a seguir ao Natal e, em qualquer dos casos, eu tencionava passar uma hora ou duas na banheira.— Não sei se consigo estar aí a essa hora — respondi.Do outro lado, a Joyce não devia conseguir acreditar no queouvira. Eu queixava-me de ter a vida em chamas e punha-me a discutir a hora da consulta?— Tem alguma hora disponível ao fim da tarde ou talvez ànoite? — Não consegui evitá-lo: negociar passara a ser um reflexo automático.A Joyce manteve-se firme.— Hoje às quinze horas — disse.AH... O MEU NOME É MICHAEL26 de Dezembro de 1993 - Primavera de 1994 A minha ansiedade era evidente; o telefonema para a Joyce esti-mulara-a e ela estava pronta a saltar. Apareci no consultório às cinco para as três e, alguns segundos depois, estávamos sentados um diante do outro, a Joyce com um bloco de apontamentos no colo e eu com a cabeça entre as mãos. Quando se fala desta primeira sessão, a Joyce diz que eu cheguei «sem defesas», como se «me tivessem arrancado a pele». Comecei a contar-lhe a minha história, a princípio com hesitações e depois de jacto. Fiquei lá até às seis da tarde.Antes desse primeiro encontro com a Joyce, o pouco que sabia acerca de psicologia, psiquiatria, terapia e/ou análise era o que lera em livros e revistas ou vira (ou interpretara) na televisão. Além disso, havia os filmes do Woodie Allen. Tinha-me rido com os cartoons do New Yorker - um homem deitado no sofá de um analista, com as mãos cruzadas sobre o estômago e, por baixo, uma legenda que dizia: Sonhei que estava a conseguir resultados. Ouvi dizer que Freud chamava «cura falante» à psicanálise. A Joyce seguia a abordagem de Cari Jung mas, fosse qual fosse a escola em que tinha tropeçado, em breve eu estava a ter grandes conversas, a sonhar muito e a conseguir resultados.Como é que isto funcionava? O escritor E. B. White disse, acerca do humor, que avaliá-lo de perto «é como dissecar uma rã. Há poucas pessoas interessadas em fazê-lo e a rã morre». Penso que o mesmo se aplica à análise. Afinal, tem muito a ver com oterapeuta ou, mais precisamente, com a empatia entre o analista e o analisado. A ligação entre mim e a Joyce foi quase imediata. Depois de ter posto a nu todos aqueles pormenores da minha desgraça no nosso primeiro encontro, fiquei aliviado por não ter recebido, nas sessões subsequentes, sinais de alerta, avisando-me que depositara a minha confiança nas mãos erradas. Não senti estar a ser julgado nem criticado e não havia dogmas. Soube posteriormente que a Joyce tinha feito teatro e, portanto, quando lhe falei sobre questões relacionadas com a minha carreira, não foi preciso tradução. Mesmo assim, isto não era uma amizade: ela foi clara quanto ao facto de eu não poder baldar-me ao confronto com os meus demónios - ou com aquilo a que Jung chamaria «a minha sombra» - recorrendo ao charme, à esperteza saloia ou à conversa fiada.Tenho, no entanto, que atribuir algum mérito a mim mesmo. Uma vez lançado neste processo, comprometi-me a levá-lo por diante e tinha três sessões semanais com a Joyce. Nem sequer me ocupava tanto tempo como possa parecer. Aquelas três horas libertavam-me para viver o resto da minha vida, para reagir às situações que se me deparavam sem que o seu peso fosse acentuado pelo fardo emocional que eu carregava. O gabinete da Joyce tornou-se, como ela dizia, num local para «guardar a energia», num santuário onde, após ter descerrado as portas do meu inconsciente e exposto os medos e incertezas que lá havia, podia deixá-lo em segurança até lá voltar para o explorar mais profundamente. Já não precisava de me esconder na banheira, com medo de dizer coisas que não devia. Podia dizer tudo o que não devia durante os cinquenta e cinco minutos de cada sessão, três vezes por semana. A redescoberta do duche - uma passagem por água para me lavar em vez de me deixar ficar horas de molho - foi não só uma forma de poupar tempo como a abertura de novos horizontes.O fumo começava a dissipar-se. Conseguia ver que a minha vida não estava totalmente em chamas mas era dificultada por inúmeros pequenos focos de incêndio

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que, com a ajuda da Joyce, comecei a apagar. Alguns velhos hábitos desapareceram, por vezes à força. Ao fim de algumas semanas, a minha assistentetelefonou para mudar uma sessão e a Joyce pediu para ser eu a ligar. Quando lhe telefonei, disse-me textualmente que eliminasse o número de telefone dela da agenda da minha assistente. Quando tivesse alguma coisa para lhe dizer teria de ser eu próprio a falar com ela. O mesmo aconteceu quando me entregou o primeiro recibo e eu lhe dei a morada do meu contabilista: recusou-a dizendo:— Não, isto é entre nós os dois: eu apresento-lhe a conta e você paga-me.Subtil mas firmemente, a Joyce estabeleceu as regras da nossa associação de uma forma que punha em causa os pontos críticos da minha relação com o mundo exterior ao consultório. Responsabilidade Básica de um Adulto, como eu principiava a compreender. É assim que vive a maioria das pessoas. Não há bolhas de ar.A doença de Parkinson era um incêndio que a Joyce e eu não podíamos apagar, mas podíamos trabalhar sobre a minha recusa. O primeiro passo foi eu admitir, enfim, o diagnóstico da doença - passar a dominá-la em vez de deixar que ela me dominasse. A aceitação não se passou sem lampejos de fúria e acessos de dor, tanto psíquica como física. A Joyce recordou-me que, sempre que o meu braço esquerdo se punha a tremer com força durante as sessões, eu lhe dava murros, por vezes massacrando-o ao ponto de ficar com nódoas negras. Algumas semanas depois de ter começado a tratar-me com a Joyce e por sugestão dela, fui a outro especialista em medicina interna, o Dr. Bernard Kruger, em Manhattan. Este mandou-me ao Dr. Allan Ropper, um dos melhores neurologistas de Boston. Marquei uma consulta (eu próprio!) e, na primeira semana de Fevereiro de 1994, apanhei um voo para ir ao seu consultório.Allan Ropper é um daqueles médicos cuja postura transmite automaticamente autoridade e segurança, co-autor dos Princípios de Neurologia, um calhamaço que é a bíblia dos neurologistas. Durante uma das minhas consultas, muitos anos depois, o Allan estava a tentar explicar-me a razão de eu ter uma determinada reacção a uma determinada medicação. Abriu o gigantescomanual, desfolhou algumas páginas e disse entre dentes, sem parecer embaraçado:— Não consigo lembrar-me do que é que escrevi acerca disso.O Dr. Ropper examinou-me e depois sentámo-nos no seu gabinete para conversar. Passou-me algumas receitas novas. Tinha ideias próprias sobre diversos tipos de medicação e de como deveriam ser doseados, a fim de extrair o máximo proveito e de atenuar possíveis interacções.Explicou-me as razões de diversos sintomas com os quais eu me debatia havia muito tempo, atribuiu nomes a tiques e comportamentos que eu nunca pensara estarem ligados à doença. Por exemplo, a minha tendência para juntar os dedos da mão esquerda num molho, como se estivesse a tentar fazer a sombra da cabeça de uma avestruz, era um fenómeno chamado «tenting». O facto de apresentar sintomas apenas do lado esquerdo também era típico, disse ele. Na fase inicial, a doença de Parkinson é quase sempre assimétrica ou unilateral; é comum os sintomas de um doente limitarem-se a um dos lados do corpo durante vários anos (embora esses sintomas venham inevitavelmente a estender-se ao outro lado). O próprio Dr. James Parkinson notou este fenómeno quando, em 1817, descreveu a doença pela primeira vez.Todas estas informações ajudaram a fazer diminuir, pouco a pouco, as minhas incertezas e a sensação de isolamento. Aquilo que eu sentia era real, isso sabia eu, mas o médico foi o elo de ligação até um corpo de conhecimentos mais vasto sobre o Parkinson, o que me ajudou a ver a doença como algo de distinto da minha experiência em relação a ela. Eu não era um fenómeno: havia outras pessoas a passar pelo mesmo. Ainda que não ficasse especialmente satisfeito com isto, ajudou-me a compreender que não se tratava de nada pessoal.Para minha surpresa, o Dr. Ropper também me fez elogios. Passou por cima de tudo o que eu não sabia acerca da doença de Parkinson, as falhas de conhecimento que, dado o facto de a doença me ter sido diagnosticada havia anos, seriam indesculpáveis e elogiou a minha capacidade para observar e descrever os sintomas que apresentava.— O facto de ser actor faz com que, automaticamente, você

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preste muita atenção ao seu comportamento. O modo como sentiu e exprimiu a sua experiência é muito diferente do dos meusoutros doentes. Isso coloca-o em vantagem para gerir a doença.Por estranho que pareça, a conversa com o Dr. Ropper reconfortou-me. Tinha passado tanto tempo desde a última vez que falara com um neurologista, com alguém que tivesse mais conhecimentos do que um simples leigo acerca da doença de Parkinson. Por um lado, abordou com toda a franqueza o prognóstico feito aquando do primeiro diagnóstico - que ainda tinha «uns bons dez anos» para poder trabalhar, um prazo que agora estava reduzido a sete e de que eu tinha plena consciência. Que tal acrescentar-lhe um tempinho extra? Sejamos francos, os últimos três anos não foram lá muito «bons». O Dr. Ropper afastou toda e qualquer noção de prazo, excepto ao dizer que, no meu caso, todos os indícios apontavam para uma progressão lenta, dado as outras características essenciais, como a rigidez, serem ainda diminutas face às tremuras do meu lado esquerdo.— Acho que ninguém sabe o tempo que lhe resta. Em indivíduos mais jovens, sabe-se que a taxa é mais lenta e imprevisível. A única coisa que se pode prever é que, tal como o envelhecimento, vai acentuar-se.Antes da Joyce e do Dr. Ropper, a minha crença, nunca verbalizada, era de que pensar no Parkinson iria acentuar os sintomas. Era como se pudesse escolher entre ficar no passado, onde o Parkinson não existia, e um futuro no qual a doença se apossaria de mim. A vida tornara-se uma série de inultrapassáveis complicações, acontecimentos e desenlaces dos quais eu fugia ou para os quais me precipitava ou - pior ainda - que se precipitavam em direcção a mim. Esta atitude defensiva e compartimentada perante uma vida com o Parkinson também afectava a minha carreira e as minhas relações pessoais mais importantes. Estou a pensar sobretudo na Tracy e no Sam.Não sou capaz de resolver o problema? Então, nem sequer quero ouvir falar nele. Já é bastante mau ter uma filosofia pessoal deste tipo, mas aplicá-la ao casamento é veneno puro. Infelizmente, pensei que estava a fazer um favor à Tracy - ao fim e ao cabo, ela não podia fazer nada pela minha doença: para quê sobrecarregá-la com conversas sobre o assunto? Perante um problema desta dimensão, não falar dele significava não falar de quase nada. Até a conversa de circunstância era arriscada; afinal, quem sabe a que magnas questões poderia esta levar? Já era suficientemente mau permitir que o Parkinson me dominasse, mas o meu silêncio - que impedia a minha mulher e a minha família de partilhar esta experiência - tornava-os também escravos da doença. E apesar de a minha situação ser dramática, isso não evitava, claro, que a Tracy tivesse os seus próprios problemas. Deus a livrasse de me fazer perguntas anómalas sobre assuntos da sua própria vida que precisava de resolver. A menos que a resposta fosse óbvia para mim, sentia que ela me estava a colocar a questão só para me confrontar com a minha ineficácia.Não sou capaz de resolver o problema? Então, nem sequer quero pensar nele. É claro que sabia que isto não ia impedir a Tracy de continuar a pensar na minha doença. Sem nunca ter falado directamente sobre elas, as ideias da Tracy sobre o assunto, quaisquer que fossem, tornaram-se numa obsessão. Ter trabalhado estas questões no gabinete da Joyce, sessão após sessão, aju-dou-me a ver que estava a armar uma ratoeira à Tracy por nunca falar directamente do assunto e que o meu comportamento isola-cionista não contribuía para facilitar a comunicação. Ficaram por responder perguntas do tipo: «Assusta-te o facto de eu estar doente? Lamentas que eu seja uma pessoa diferente daquela com quem casaste? Estás preocupada com o futuro? Continuarias a gostar de mim, se soubesses que eu estou com medo, eu lamento, eu estou preocupado com o futuro?» O que não me impediu de preencher os espaços em branco. Tal como as imaginei, as respostas da Tracy seriam devastadoras. Não era justo da minha parte imaginar o pior- ela não me tinha deixado, não podia deixar de salientar este facto - mas, na minha guerra contra a doença, a primeira vítima tinha sido a confiança. Ninguém tinha culpa da minha doença, nem sequer eu próprio; mesmo assim, não conseguia evitar uma sensação de traição - com o passar do tempo,acabei por projectar esta sensação sobre toda a gente, até mesmo a pessoa que me estava mais próxima. Começava a compreender a que ponto isto era injusto. Mas, ainda que fosse incorrecto inventar simplesmente o ponto de vista da Tracy, sem

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lhe dar uma oportunidade de o aceitar ou contradizer (ou até mesmo para apresentar o seu próprio ponto de vista) havia uma área em relação à qual o silêncio dela falava por si e muito alto: ela nunca mais voltou a falar em ter outro filho. Está tudo não dito.* * *Acho que foi quando, em finais da Primavera, esse terrível e longo silêncio foi enfim quebrado, que me dei conta do trabalho desenvolvido com a Joyce e de que os progressos realizados no que se referia a começar a aceitar o diagnóstico da minha doença tinham provocado uma mudança profunda na minha vida. É impossível atribuir este redespertar a uma descoberta ou a uma percepção súbitas - eu não saí de repente de um casulo de medo. Tampouco foi uma evolução linear, um mapa de auto-redesco-berta fácil de seguir. Como diria a Joyce, foi tudo uma questão de desmascarar a minha vida - e conseguir fazer um bom trabalho. É assim que a Tracy se recorda desses primeiros meses de 1994, da mudança gradual da minha atitude:— A tua confiança e o teu sentido de humor voltaram. A tensão reinante diminuiu. Já não estavas sempre zangado. Era comose esse muro tivesse começado a desmoronar-se e tu não estivesses a tentar reconstruí-lo logo a seguir.Num certo fim de tarde de Primavera, estávamos nós sentados na relva a ver o Sam a correr atrás de um primo mais novo por entre os arbustos de budleias, no jardim da avó, em Connec-ticut, a Tracy sorriu e disse-me:— O Sam vai adorar fazer de irmão mais velho.ESCOLHA UMA PROFISSÃO QUE ADORE...Manhattan, Março-Abril de 1994Antes de ter Parkinson, quando grande parte da minha identidade estava ligada à minha carreira de actor, a pergunta candente dentro de mim era Quanto tempo vou conseguir continuar a viver assim? Depois veio o Parkinson e, com ele, uma pergunta um pouco mais angustiante: Quanto tempo vou conseguir continuar a viver? O meu sentido das coisas que valiam de facto a pena ficou completamente virado de pernas para o ar e eu saí desse período de auto-reflexão com uma perspectiva inteiramente nova sobre a minha vida e o meu trabalho.Em Março de 1994, a comédia que eu fizera no Verão anterior com o grupo dirigido pelo Kirk Douglas, intitulada Os Gananciosos, estreou e desapareceu sem deixar rasto, tal como indicavam as sondagens. Este não era o meu primeiro fracasso de bilheteira, mas tinha qualquer coisa de diferente. Não foi só o facto de o Pete Benedek não ter telefonado no sábado, logo de manhã, com aquela entoação soturna:— Azar, pá.Mesmo que o Pete ainda fosse meu agente, duvido que estivesse à espera do seu telefonema a consolar-me. Depois de tudo aquilo por que já passei, os altos e baixos do showbiz já não me pareciam tão importantes.Os meus novos agentes da CAA, Bryan Lourd e Kevin Huvane, tinham de enfrentar sérios desafios. O primeiro e o mais evidente era encontrar uma maneira de restaurar o meu estatuto no meio cinematográfico - especialmente agora, após mais um fracasso de bilheteira. Mas, antes de me aceitarem, estes tipos já sabiam que Os Gananciosos ia ser um desastre e ressuscitar uma carreira que já fora prometedora era exactamente o tipo de «número no arame» que lhes dera fama. O maior desafio era, no entanto, como arranjar trabalho para alguém que não quer trabalhar.Bom, não era bem assim. Como diz a máxima de Confúcio: «escolhe um trabalho que adores e não terás de trabalhar um único dia da tua vida.» Eu queria encontrar trabalho, mas teriaque ser um trabalho que eu adorasse. A ansiedade que sentira em relação à minha carreira nos últimos anos tinha menos a ver com o trabalho em si do que com o desejo de me abstrair da provação mais difícil da vida de todos os dias. Agora, tinha voltado a viver a minha vida, a viver em tempo real, e saboreava os dias passados com a Tracy e o Sam como nunca antes fizera. Não me apetecia deixar tudo isto passar-me de novo ao lado. Os versos daquela velha canção do James Brown, que a Tracy me fizera ouvir no parque de estacionamento da Paramount,

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nunca tinham parecido tão verdadeiros: «Try to remember that working's no crime, just don't let them take and waste your time1».«Deixa-te de andar atrás de mais um êxito, deixa-te de querer ganhar mais dinheiro.» Quantas vezes a Tracy me tinha dito isto! «A menos que aches mesmo que temos de viver como o Donald Trump para o resto da vida. Faz só as coisas que te apaixonem - ganhaste esse direito.»Ela não dizia o que ambos sabíamos: que, à minha maneira, eu já tinha tentado fazê-lo, mas sem resultado. Aquilo que a Tracy dizia sempre tivera lógica: só agora, porém, eu lhe dava ouvidos. Mas será que eu ainda tinha paixão pelo meu trabalho? Será que eu ainda gostava de representar?Acreditem ou não, depois de Os Gananciosos, continuei a receber propostas, embora nenhuma delas de grande qualidade: uma comédia de acção baseada num brinquedo muito popular; alguns guiões inspirados, se assim se pode dizer, em comédias de televisão clássicas, dos anos 50 e 60; e mais algumas criações hollywoodescas de produção em série. Não tinha qualquer dificuldade em seleccionar e rejeitar rapidamente guiões deste tipo. Os rapazes do CAA, honra lhes seja feita, também não morriam de amores por este material.— Vais ver — prometiam. — Hão-de aparecer coisas melhores.— Pois é, sabem, eu quero ir com calma durante algum tempo... estar com a família — disse-lhes. — Mas se o Woody Allen telefonar, avisem-me.

1 «Tenta lembrar-te de que trabalhar não é crime, mas não deixes que roubem e desperdicem o teu tempo.» (N. da T.)Invocar o nome do Woody Allen era uma forma críptica de fazer passar a mensagem aos meus agentes. Já não me sentia motivado pela necessidade de êxitos comerciais. Aquilo por que agora ansiava era uma nova forma de experiência criativa, com um realizador, actor ou escritor que se estivesse nas tintas para tudo o que não fosse contar uma história interessante de uma forma cativante. Woody Allen era uma combinação dos três e, por isso, o nome dele foi o primeiro a passar-me pela cabeça. (Ou, talvez por ter passado tanto tempo a fazer análise, queria trabalhar com uma pessoa capaz de criar relações.) Ora bem, qualquer que fosse o projecto seguinte do Woody Allen, não conseguia imaginar que «Michael J. Fox» fosse o primeiro, segundo, terceiro ou sequer o quadragésimo quarto nome a passar pela cabeça dele. É possível que estivesse apenas a tentar ganhar tempo para pensar no meu futuro.E não é que o Woody Allen telefonou? OK, não foi o Woody em pessoa quem telefonou, e teria sido mais exacto dizer que o Bryan e o Kevin lhe telefonaram ou, pelo menos, ligaram aos produtores dele. Os meus agentes leram que a ABC tinha um acordo com o Allen para produzir, dirigir e protagonizar o filme Don 't drink the water. Havia um papel para mim no guião e eles foram tentar obtê-lo.O Woody Allen estava a adaptar para a televisão a sua comédia teatral clássica, desempenhando ele o papel do odioso patriarca da família Hollander, uns turistas americanos confundidos com espiões durante uma visita a um país fictício da Cortina de Ferro, durante os anos 60. Estes refugiam-se e põem de pantanas a embaixada americana, temporariamente dirigida pelo incompetente filho do embaixador, Axel McGee. Foi este papel que Allen me ofereceu. A rodagem começaria na primeira semana de Abril, em Nova Iorque.O trabalho implicava o regresso à televisão, pela primeira vez depois de Quem Sai aos Seus. Pagavam uma miséria - pelas tabelas da SAG - e nem sequer me podiam prometer um camarim. Ali estava um trabalho que eu era capaz de adorar.E assim foi. Filmar assim tão perto de casa (entre a Seventy-ninth e a Fifth Avenue, do outro lado do parque, mesmo em frente do nosso apartamento) permitia-me dar uma saltada a casa e almoçar quase todos os dias com a Tracy e o Sam. Uma tarde, ao passar pela entrada do prédio com ar descontraído, ainda vestido com a roupa «vintage» dos anos 60 (fato estilo Bobby Kennedy, de lapelas estreitas, calças de perna direita, camisa branca de colarinho duro e gravata estreita) o porteiro fez-me parar.— Está impecável, Mike.Levei a mão à lapela.— Ah, o fato? — respondi. — Pois é, nada mal. Acho quenunca mais tinha sido usado desde 1963.

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— A sério? — replicou ele. — Ainda lhe fica muito bem.Como a maioria dos filmes que Woody Allen realizou nessaépoca, Don 't drink the water foi filmado num estilo livre cinema vérité. Os longos takes ininterruptos, sem cortes, forçavam o director de fotografia Cario DiPalma a nadar por entre os actores e à volta deles, agitando a câmara manual em golpes panorâmicos, ao ritmo da cena. Algumas plateias poderão achar ligeiramente perturbador este estilo aos solavancos «você está aqui e tudo isto está a acontecer agora» mas participar nele como actor era uma emoção estonteante. Não havia uma cena que fosse filmada duas vezes da mesma maneira. O ritmo, a intensidade, o próprio diálogo, variavam desvairadamente a cada take. O Woody Allen escritor não se importava nada com isso: era tudo menos inflexível em relação ao seu argumento.— Não liguem ao argumento — dizia-nos ele. — Digam oque vos passar pela cabeça na altura.Escritores de muito menor mérito insistem muitas vezes com os actores para tratarem os seus textos como se fossem as escrituras e aqui estava o Woody Allen a dizer-me «não ligues ao argumento». Agradeço a confiança, Woody, mas para mim o teu texto está óptimo.O Woody Allen actor, porém, não nos dava outra hipótese que não fosse fugir ao guião. Subestimado como actor, na minhaopinião devido à facilidade com que consegue fundir os elementos idiossincrásicos da sua própria personagem numa interpretação fluida, o Woody Allen é um improvisador dotado e hilariante. Uma vez que era impossível prever o que ele ia fazer a seguir, era inútil tentar planear antecipadamente a minha interpretação. Não havia grandes planos nem enquadramentos: cada actor tinha sempre de dar tudo por tudo ou sentiria a deslocação do ar quando a câmara do Cario era apontada para outro plano. Mesmo quando era óbvio que tudo estava a desmoronar-se, continuávamos a representar porque, neste tipo de todos-ao-monte a improvisar, a comédia resulta muitas vezes do caos.Para além da representação, havia outra coisa que nunca esquecerei. Lembremo-nos que, nessa época - Primavera de 1994 - a vida privada de Woody Allen entrara em turbilhão e era exposta na praça pública. Ao vê-lo representar e dirigir o filme, ninguém diria que, nessa mesma manhã, o seu rosto e a descrição das suas atribulações tinham aparecido escarrapachados nas primeiras páginas dos tablóides de Nova Iorque. Fiquei espantado com a forma como ele conseguia mergulhar totalmente no trabalho. Numa altura em que as minhas próprias dificuldades nunca me saíam da cabeça (graças a Deus, ainda não eram do conhecimento público) a concentração do Woody era inspiradora.Inesperadamente e por mero acaso, acabei por ganhar outra coisa com esta experiência. Certa tarde, no local das filmagens, entre duas cenas, eu e alguns actores estávamos entretidos com um jogo de perguntas. Tínhamos chegado à questão: «Se pudesse escolher outra época para viver, que época escolheria?» Cada um lançou a sua ideia e nesse momento, o Woody, que até ali não tinha prestado grande atenção à conversa, resolveu intervir com um argumento de peso.— Eu não queria viver numa época anterior à invenção da penicilina — disse ele.Desatámos todos a rir às gargalhadas - era uma resposta perfeita, a condizer com a personagem. Apesar de tudo o que lhe estava a acontecer nessa Primavera, para ele continuava a não haver nada mais aterrador do que uma doença incurável. E, subitamente, a coisa bateu-me em cheio. Ei, eu tenho uma doença incurável e estou para aqui a rir. Devo estar a safar-me bem.Los Angeles - Outubro de 1994Com os cantos das páginas dobrados devido às múltiplas leituras durante o voo de Nova Iorque e manchado por círculos castanhos da lata de refrigerante, a minha cópia do argumento de Uma Noite com o Presidente ia bem presa debaixo do braço quando entrei no escritório do Rob Reiner. Talvez por ter alguma dificuldade em acreditar que um guião tão bom me tinha vindo parar às mãos, queria protegê-lo, defendê-lo da hipótese de poderem vir a tirar-mo.— Ainda não é uma proposta — dissera-me o Kevin antes da partida. — O Rob quer apenas que lhe dês uma vista de olhos e que vás a Los Angeles para uma reunião. Tá bem, já olhei para ele e gostei do que vi. Por isso, faz-me lá uma proposta,

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Rob, nas desde já te aviso que não aceitarei um tostão a menos do que «de graça».Claro que não lhe disse isto, mas também não escondi o facto de o guião do Aaron Sorkin, conhecido na altura por Homens de Honra e, hoje, pela série de televisão Os Homens do Presidente, ser um dos melhores que alguma vez lera. Pouco me importava que o papel que ele me destinava não fosse o papel principal; valia a pena ser actor secundário com o Michael Douglas a desempenhar o papel de Presidente e a Annette Benning o da namorada lobbyista do primeiro.O Rob Reiner e eu falámos sobre filmes e sobre as nossas crianças, mas a conversa ficou bastante mais animada quando o tópico passou a ser a política. Newt Gingrich e o seu «Contrato com a América» dominavam os grandes títulos nacionais e os Democratas estavam a poucas semanas de perder o controlo da Câmara dos Representantes. Pela cara do realizador, a que, desde Quem Sai aos Seus, me habituara de tal maneira que me parecia conhecê-lo muito melhor do que, na verdade, o conhecia, perpassou uma variada gama de emoções, à medida que ele ia exprimindo, com paixão, opiniões políticas muito próximas das minhas. Os motivos que o levavam a querer realizar este filme eram evidentes. Esta comédia romântica inteligente era, também, um comentário oportuno sobre como, na política de Washington, o cinismo pode, por vezes, ser confundido com patriotismo. Fiquei entusiasmado quando, ali mesmo no seu escritório, me pediu para desempenhar o papel de Lewis, uma versão ficcionada de um bem conhecido assessor de Bill Clinton.Mas eu ainda não tinha dobrado o cabo dos trabalhos. Semanas mais tarde, depois de uma reunião de leitura com todo o elenco, numa sala de conferências das Castle Rock Produc-tions, de Rob Reiner, aconteceu uma coisa que me apavorou. Convenci-me, pela primeira vez, que a doença de Parkinson ia custar-me um emprego.Depois da leitura, houve um animado bruáá quando os actores e o pessoal da produção se levantaram da mesa de conferência. A manhã correra bem e o ambiente era tranquilo, embora eu sentisse uma certa pressa de me despedir, sair do edifício e entrar no carro. Embrenhado na leitura, esquecera-me de tomar o Sinemet; os tremores estavam prestes a aparecer e eu queria estar sozinho, em segurança e fora de vista quando isso acontecesse. Antes que me pudesse escapar, porém, o produtor pediu a atenção do elenco.— Queremos resolver hoje mesmo a questão dos vossos exames médicos para a companhia de seguros — informaram-nos. — Por favor, esperem no átrio e o médico vai chamá-los um por um.Fiquei petrificado. Ninguém me tinha avisado. E porque haviam de o fazer? Os exames médicos na fase de pré-produção faziam parte da rotina: um exame superficial pró-forma, feito pelos médicos que trabalhavam para as seguradoras dos estúdios. Consistindo habitualmente em dizer aahhh e medir a tensão arterial, estes exames eram apenas um modo de as empresas cinematográficas tentarem evitar contratar alguém que batesse a bota a meio do filme e afundasse a produção.A minha mão esquerda começou a bater descontroladamente contra a coxa esquerda. Escondi-a no bolso das calças, engoli aseco metade de um Sinemet e alterei rapidamente a minha estratégia de saída. Comecei a empatar, pus-me a andar a passo de caracol; se fosse o último da fila, talvez a dopamina sintética me chegasse ao cérebro antes de eu chegar ao pé do médico.Tinha feito grandes progressos na forma de lidar com a doença mas ainda não estava seguro da reacção das outras pessoas. Era melhor guardar o assunto só para mim. Comigo, o Sinemet costumava dar sempre bons resultados e eu aprendera a controlar tão bem os meus sintomas que, tão depressa, eles não iriam colidir com qualquer calendário de produção. Teriam eles medo de me contratar por causa do Parkinson? Sabendo o que agora sei acerca do lado bom da maioria das pessoas, é provável que não mas, nessa altura, não estava preparado para o descobrir. Um dia, hei-de dizer aos meus empregadores que tenho esta doença, mas esse dia ainda não tinha chegado.— Michael Fox.

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Era a minha vez. Tirei a mão do bolso dos blue-jeans: firme como uma rocha. Tinha conseguido fintá-los.As filmagens de Uma Noite com o Presidente estenderam-se de Dezembro de 1994 a Março de 1995. Para mim, todas as cenas, todos e cada um dos magníficos actores com quem trabalhei, todos os dias que passei no local das filmagens foram fontes de prazer. O que já não apreciei tanto foram os dias em que não havia filmagens. Preso em Los Angeles, longe da família, que ficara em Nova Iorque (por razões que depois explicarei), passei horas a ver televisão, a comer as refeições, sempre iguais, trazidas pelo serviço de quartos e a tentar apanhar a Tracy e o Sam ao telefone. Como qualquer criança em idade pré-escolar, o Sam não gostava de falar muito tempo ao telefone. Para conseguir que ele falasse comigo, por vezes punha-me a falar com voz esganiçada e fingia ser o Rato Mickey.Era duro trabalhar tão longe de casa. Mas que havia eu de fazer? Tendo limitado as minhas hipóteses de emprego a fazer apenas os trabalhos que adorasse, não ia agora limitá-las ainda mais, fazendo apenas os que adorasse e que fossem filmados em Nova Iorque. E que tal apenas os papéis que adorasse e fossemfilmados em Nova Iorque com horários que se adaptassem perfeitamente ao ritmo da minha família? Havia poucos projectos a filmar em Nova Iorque e nenhum deles teria horários de produção previsíveis, do tipo das-nove-às-cinco, dia sim, dia não. No cinema, isto era impossível.Mas na televisão... talvez houvesse uma hipótese.Passei a ideia aos meus agentes, que ficaram horrorizados. Tendo conseguido por fim meter-me num filme da categoria «A», com um realizador excelente e conhecido, e tendo ouvido muitos zunzuns positivos sobre o meu desempenho, provenientes do estúdio, achavam que voltar agora para a televisão era a última coisa a fazer. Para grande desgosto deles, eu estava sempre a abordar o assunto. É evidente que, depois de se ter dado o salto para as longas-metragens, a opinião geral sobre um regresso à televisão era que isso significava um retrocesso na carreira. Nos quatro anos anteriores, havia pelo menos uma coisa que eu tinha aprendido: aquilo que os outros possam pensar de mim não me interessa para nada.Para satisfazer a minha curiosidade pessoal, fi-los pôr pessoas a apalpar terreno junto da comunidade televisiva. O que os criativos disseram foi que diversos guionistas-produtores muito conceituados estariam interessados em trabalhar comigo numa nova sitcom. As cadeias de televisão tinham feito constar que, na prática, eu podia pedir o dinheiro que quisesse. Não estava propriamente a pensar em dinheiro, mas fiquei admirado ao descobrir que ninguém poria objecções, se eu quisesse fazer um espectáculo rodado totalmente em Nova Iorque e arredores. E, já agora, se tivesse êxito, o espectáculo podia render uma pipa de massa.Discuti a ideia com a Tracy. Ela mostrou-se hesitante: não queria ver-me outra vez preso numa armadilha, comprometido com uma coisa que me fizesse infeliz. Mas gostou muito da ideia de vivermos todos no mesmo sítio, com uma vida familiar tão normal quanto possível.A curto prazo, porém, isto não passava de um sonho: ainda antes da produção de Uma Noite com o Presidente ter começado,eu já aceitara fazer outro filme, em Abril de 1995: o terceiro e último compromisso incluído no meu contrato com a Universal, Agarrem-me Esses Fantasmas, ia ser filmado - imagine-se - na Nova Zelândia. Dado o meu desejo de estar em casa, os leitores poderão perguntar por que motivo concordei em fazer um filme tão longe, noutro país, noutro hemisfério, nos antípodas. É uma longa história, mas bastará dizer que a vida nem sempre segue uma linha recta. No meu caso, esta linha fez-me desviar muito do meu caminho, durante cinco meses. Mas, pelo menos, quando esta experiência acabou, eu sabia exactamente para onde queria ir.Corte para a Nova Zelândia. Estou a viver numa casa alugada, perto de Wellington, passo horas a ver vídeos que me mandam dos Estados Unidos. Em cada cassete há diferentes episódios das mesmas coisas: sitcoms - Seinfeld, Amigos, NewsRadio, O Psiquiatra da Rádio. Nos seis anos decorridos desde Quem Sai aos Seus tinha visto muito pouca televisão e, aqui sentado, sozinho, no fim do mundo, fiquei espantado ao ver que as comédias televisivas americanas tinham

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melhorado bastante. Agora, percebia porque é que nunca havia guiões divertidos para filmes - todos os escritores de comédia verdadeiramente dotados estavam a trabalhar para a televisão.Algures a meio da minha estadia nos antípodas, tomei uma decisão. Quando voltasse para os States e para Nova Iorque, ia também voltar para a televisão.Houve outros factores que pesaram a favor desta decisão. Desta vez, não ia trabalhar para ninguém, ia entrar no negócio como sócio de pleno direito. Quem quer que viessem a ser os meus sócios, dir-lhes-ia, logo à partida, que me tinha sido diagnosticada esta doença. O Dr. Ropper afirmara que não havia um calendário fiável para a evolução dos sintomas mas, por mais optimista que fosse, calculava que não devia ter pela frente mais de seis ou sete anos de trabalho estável. No entanto, seis ou sete anos era a definição exacta de uma série de sucesso numa cadeia de televisão. Ao proporcionar-me um calendário regular, horários compatíveis, sócios que compreendessem o meu problema, a proximidade dos médicos e do apoio da família, uma série televisiva constituía a melhor opção possível para poder desfrutar o tempo que me restava para exercer a minha profissão.Mas havia outra coisa: ao ver aqueles cassetes, sozinho, na minha casa alugada nos antípodas, enquanto me ria da sofisticação desta nova espécie de comédia de televisão e começava a habituar-me ao riso do público em estúdio, senti inveja daqueles actores. Estavam a fazer aquilo que eu fazia dantes, uma coisa que adorava fazer e que me sentia ansioso por voltar a fazer. Assim, acabei por dar ouvidos a Confúcio. Optei por um trabalho que adorava.O VERÃO DE SAMNova Iorque, 1994SAM: Porque é que estás sempre a abanar a mão?Eu: Não estou propriamente a abaná-la. Ela treme sozinha.SAM: A tua mão tem alguma coisa?Eu: Bom... não, não é a mão. Sabes que, quando queres correr,saltar ou atirar uma pedra, tens de dizer isso primeiro ao teucérebro e, depois, ele diz ao corpo o que deve fazer, não é? SAM: O teu cérebro não quer dizer à tua mão para deixar de tremer? Eu: Isso mesmo. A parte do meu cérebro que fala com a mão nãoestá a funcionar muito bem. SAM: Mas tu não estás sempre a tremer. Eu: Pois não, se tomar um comprimido posso consertar a parte docérebro que está estragada, durante algum tempo. Mas, àsvezes, basta-me pregar-lhe uma partida para fazer parar a mão. SAM: Consegues enganar o teu cérebro? Eu: O cérebro e a mão, os dois ao mesmo tempo. É um segredomas, se eu te mostrar como se faz, ajudas-me a fazer isso devez em quando? SAM: Claro!O tremor provocado pelo Parkinson é muitas vezes descrito como um «tremor lento». Ou seja, acontece quando o membro afectado está imóvel ou numa situação de repouso. Curiosamente, isto não se aplica ao sono, durante o qual, e à excepção das fases de sono mais leve, a diminuição da actividade cerebral elimina quase por completo as contracções musculares, fazendo desaparecer o tremor. Ainda que este regresse logo que o membro mude de posição, qualquer movimento voluntário pode fazer diminuir ou desaparecer o tremor, pelo menos momentaneamente. É por isso que, em especial na fase inicial, eu conseguia esconder as tremuras através de manipulações simples, como levantar e pousar uma chávena de café, brincar com um lápis ou rodar uma moeda entre os dedos da mão esquerda. Fazer isto durante o trabalho ou em público - mudar ligeiramente de posição ao fim de quatro ou cinco segundos, durante horas a fio -era um passe de prestidigitação eficaz, mas que me deixava exausto. Além de ser um trabalho solitário: apesar de pensarem que estava a fazer uma determinada coisa num dado momento, eu estava também a fazer uma outra coisa. Era literalmente obrigado a ser distraído.Na Primavera de 1994, à medida que passei a reconhecer e a aceitar melhor o Parkinson como um facto da (minha) vida, percebi que também aplicara aqueles truques à minha família. A minha recusa em deixar a Tracy e o Sam verem uma imagem de mim que não fosse perfeita tinha criado entre nós uma distância que

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decidi abolir. Assim, baixei a guarda em casa e permiti-me ser franco quanto aos sintomas diante da minha família. Foi um alívio poder estar à-vontade, para variar. A reacção deles foi uma agradável surpresa. Como é evidente, a Tracy não viu nada de que não se tivesse já apercebido. Ficou apenas aliviada e estimulada por esta minha confiança renovada. Já para o Sam, a descoberta dos meus sintomas não foi a fonte de preocupações que eu receara: era antes um motivo de interesse e curiosidade, como transparece na nossa conversa no início deste capítulo. A confiança total e franca das perguntas do meu filho ensinaram-me muito a respeito dele e a forma que encontrei para partilhar esta realidade com ele ensinaram-me muito a respeito de mim mesmo.Foi assim que, antes de o Sam fazer cinco anos, lhe ensineique, quando visse a minha mão a tremer, podia apertar-me o polegar ou torcê-lo um bocadinho para a fazer parar.— Depois — expliquei-lhe — conta até cinco e torna a apertar ou a torcer: assim, consegues enganá-la e ela fica quieta.Sam fez a experiência durante alguns minutos, contando primeiro em voz alta, depois para dentro, cruzando os olhos com os meus e acenando para me fazer perceber que era altura de dar o apertão. Vi que ficou encantado por ser capaz de o fazer a tempo, conseguindo sempre enganar o tremor. Mas quando percebeu que este voltava sempre, reparei que o seu olhar dizia qualquer coisa do género: mas em que é que me fui meter?— Sabes, Sam — disse-lhe, para o tranquilizar. — Isto nãoquer dizer que tenhas de estar sempre a fazer isto. Não é nenhuma obrigação nem nada que se pareça. Só me apertas o dedoquando te apetecer.O seu rosto voltou a animar-se.— Ainda consegues fazer isto sozinho, não consegues?— Claro — respondi.O Sam ficou a pensar no assunto e depois disse:— Mas eu faço melhor.— Sem dúvida — ri-me. — Além disso, gosto muito que me dês a mão.A boa-vontade infantil do Sam em aceitar a minha situação sem ficar a matutar sobre todas as suas implicações teve uma poderosa influência sobre mim. Eu obrigara-me a encarar os sintomas da doença estritamente como provas de privação, de perda de facilidades e de liberdade, mas a reacção do Sam sugeria outras possibilidades. A sua curiosidade despertou a minha. Se esta situação me proporcionava uma oportunidade para comunicar com o meu filho de um modo tão franco e tão íntimo, que outras coisas poderia trazer-me? Para o Sam, era óbvio que eu continuava a ser o «papá», o «papá com a mão a tremer». Seria possível eu conseguir ver as coisas da mesma maneira, seria possível eu continuar a ser eu - um eu, com Parkinson?Nessa Primavera, senti-me muitas vezes como uma versão mais jovem de mim mesmo - eu, na minha versão de Chilliwack,a pedalar na bicicleta sobre o relvado das traseiras com uma cobra de jardim pendurada na mão, absorvido pelas possibilidades que cada novo dia oferecia. As perdas de ontem e as provações de amanhã deixaram de ser os únicos pólos da minha existência - havia um outro lugar onde podia voltar ao normal e o Sam fora capaz de me mostrar onde era esse lugar. A ameaça da passagem do tempo, conduzindo-me cada vez mais depressa para um destino incerto, começou a desvanecer-se.«Nunca deixar antever o fim da história» é uma das regras de ouro da arte de representar, provavelmente a profissão mais infantil que existe: a sua essência consiste na interpretação exploratória, no faz de conta. Para um actor, deixar antever o fim da história é concentrar-se na situação em que a personagem se encontrará no final da cena ou da peça, em vez de se concentrar na situação em que este se encontra numa determinada parte do enredo. A trajectória ou o desvio em relação a ela e, também, as possibilidades dramáticas do momento presente - quando o futuro e o nosso percurso até ele são desconhecidos, tal como na vida - podem ir passear. Tal como na vida real e independentemente do cenário, uma representação resume-se a uma série de opções, cada uma das quais condiciona a seguinte. Por mais inesperado que seja, tudo o que sucede enquanto esta dura -

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um acessório perdido, outro actor que, inexplicavelmente, se afasta do guião e começa a improvisar, ou até as paredes do cenário a desabarem sobre o palco - tem de ser integrado. De outro modo, mais vale descer já o pano.Nessa Primavera, dei por mim a fazer as coisas mais estranhas e mais maravilhosas. Como, por exemplo, estar sentado à mesa, com o Sam empoleirado no meu colo a brincar com um dinossáurio de plástico, enquanto um explicador de matemática me ensinava todas as subtilezas do teorema de Pitágoras. Eu fingira sempre estar orgulhoso de ter conseguido grandes coisas na vida sem nunca ter concluído o ensino secundário mas, na verdade, isso sempre me incomodou. Depois de falar do problema com a Joyce, ao longo de algumas sessões, apercebi-me de que o facto de ter abandonado a escola poderia ter sido, em tempos,resultado de determinadas circunstâncias mas, à medida que os anos foram passando, tornou-se uma questão de opção. Se não ter nenhum diploma me incomodava - se não condizia com a minha concepção da pessoa que eu agora era - pelo menos podia tentar remediar essa lacuna. E, assim, com a tenra idade de trinta e dois anos e um filho matriculado na pré-primária a partir do Outono seguinte, candidatei-me a fazer exame para obter o Diploma de Equivalências Gerais.Depois de passar algumas horas, distribuídas ao longo de duas semanas, com o explicador de matemática (a matemática era a única cadeira em que me sentia vulnerável, por causa daqueles malditos absolutos), senti-me preparado. Na cafetaria de um liceu da baixa de Manhattan, integrado num grupo de duzentos e tal alunos de todas as idades, fiz as cinco provas do exame de D. E. G. com uma perna às costas (até consegui ter 60% a matemática!). Tornei-me um dos membros mais improváveis da turma de 1994 e, como para muitos dos outros examinandos, o Verão a seguir ao fim do liceu foi um dos melhores da minha vida.Vermont - Martha s Vineyard — Verão de 1994 Nos meses de Junho, Julho e Agosto desse ano dividimos o tempo entre os dois lugares de que mais gostávamos: passámos a primeira metade do Verão na nossa quinta em Vermont e a segunda metade em Martha's Vineyard. Nunca na vida me sentira tão feliz e esse Verão continua a ser para mim um sonho precioso. Em Vermont, há dois salgueiros-chorões, tão próximos da margem do lago da quinta que, no Verão, a superfície da água, pontilhada de verde, parece uma pintura impressionista. Suspensa de um dos ramos da árvore mais alta, há uma corda para nos baloiçarmos. Com os braços do Sam à volta do meu pescoço e as suas pernas compridas e magricelas enroscadas na cintura, agarrava-me à corda e, de cima da mesa de piquenique transformada em rampa de lançamento, saltávamos os dois por cima da água. No ponto mais alto do movimento pendular eu largava a corda e partíamos o espelho cheio de folhas. Nadávamos até à margem, rindo perdidamente, salpicávamos com água fria a Tracy, que tomava banhos de sol estendida numa pedra de granito, e jurávamos a pés juntos que conseguíamos ver as trutas a fugir quando nós caíamos.A Tracy adquirira uma paixão pelo ciclismo. Passávamos horas a explorar os trilhos rochosos e as veredas no meio dos campos, à volta da quinta. As colinas de Vermont eram duras de roer, pelo menos para mim, mas as estradas planas alcatroadas na parte mais alta da Vineyard, refrescadas pelas brisas oceânicas, mostraram ser mais o meu género. Contudo, aquilo que melhor recordo desse mês de Agosto foi estar a observar a Tracy na praia. Sempre gostei de ver a minha mulher em fato de banho mas, agora, dava uma atenção especial a uma parte específica da sua anatomia - a barriga. Estava grávida de oito semanas: só ela e eu conseguíamos ver que começava a notar-se.Manhattan - Outubro de 1994A marquesa era inclinada, pelo que a Tracy estava numa posição em que ela e o obstetra podiam ver o monitor, à medida que este lhe passava o transdutor sobre a barriga suavemente arredondada. Ou poderiam ver, se eu não estivesse no caminho.— Mike, estás a monopolizar o ecrã.— Desculpa, amor.Tinha-me esquecido dos óculos e estava colado ao ecrã. Era a primeira vez que íamos ver o bebé e sentia-me nervoso, embora sem nenhuma razão específica. Sabíamos que não havia praticamente nenhuma hipótese de o nosso filho herdar a minha doença. Ainda antes de ela engravidar, os médicos também nos tinham

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garantido que os medicamentos que eu tomava para o Parkinson não ofereciam risco. Eu só estava nervoso porque -que diabo, todos os futuros pais estão nervosos nestas ocasiões.Sou bastante bom quando se trata de interpretar cartas meteorológicas por satélite e ecografias. No essencial, não há grandes diferenças, à excepção desta: numa carta meteorológica procuro a linha da costa e numa ecografia tento localizar a coluna vertebral.E ali estava ela, perfeita. Mas esperem aí, passa-se qualquer coisa estranha. A espinha está a dividir-se, a separar-se em duas ao centro, agora está a abrir-se como uma tesoura. Que raio é isto?— Olhem para isto — tartamudeei. — Quererá dizer que... A Tracy já estava a rir-se.— Gémeos — disse o obstetra.Voltei-me para a Tracy mesmo a tempo de a ouvir repetir a mesma palavra: «Gémeos.»— Oh, meu Deus — disse eu à Tracy, já com um sorriso adespontar. — Afinal são dois!Ainda durante esse mês, uns dias mais tarde, o Sam e eu fomos dar uma volta de carro, entre homens. Com a chegada dos gémeos (o Sam ainda não fazia ideia de como o seu mundo ia levar uma volta), sabia que tão depressa não iríamos ter oportunidade de fazer um passeio assim, só os dois. (Dois anos depois, havíamos de passar dezasseis dias a atravessar a América de carro, de Manhattan até Malibu, mas isso merece outro livro.)— Se pudesses ir passar um fim-de-semana onde quisesses,o que é que gostavas de ver? — perguntei ao meu filho de cincoanos.Já estava disposto a fazer todos os preparativos para ir de avião até Orlando, mas o Sam surpreendeu-me, coisa que, aliás, faz muitas vezes.— Grutas — respondeu.Assim, apanhámos um avião para Washington, alugámos um carro e lá fomos até ao Vale de Shenandoah, na Virgínia. Segundo os roteiros de viagem, é possível encontrar ali todos os circuitos de visita em família a grutas naturais que se queira fazer na vida. Acreditem em mim, há mesmo. (O sítio preferido do Sam: as grutas Luray, onde existe o único «Órgão de Estalactites do Mundo».)Contudo, antes de sairmos de Washington fomos à Casa Branca, visitar o George Stephanopoulos, que, na altura, era o namorado da melhor amiga da Tracy. O George oferecera-se para nos apresentar ao Presidente Clinton. Enquanto estávamos sentados na Sala Oval, à espera que o Grande Chefe fizesse a sua entrada, o Sam repreendeu-me por estar de t-shirt e com um boné de baseball numa ocasião tão importante.— Acho que, com este Presidente, não há problema — tranquilizei-o.Quando, finalmente, Bill Clinton entrou de rompante, viu-se que eu tinha razão. Acabado de vir de um jogo de futebol, disputado no grande relvado da Casa Branca com alguns colegas de liceu, estava de t-shirt e boné de baseball e usava uns calções de corrida justos, de nylon. O Sam é um grande coleccionador de tralha e recordações, a que chama mojo; já tinha uma colecção eclética de moedas velhas, pontas de seta índias e outros tesouros semelhantes. O Presidente tinha sobre a secretária uma impressionante colecção pessoal de tchotchke e o Sam teve direito a uma «visita guiada».Recordo-me de ter ficado particularmente fascinado ao ver o George Stephanopoulos fazer o seu trabalho, enquanto nós ali estávamos, informando discretamente o Presidente sobre os compromissos pendentes para aquela manhã de sábado. A certa altura, sugeriu que, se tivesse de escolher entre usar ou não gravata, durante a conferência de imprensa organizada à pressa sobre a mais recente violação da zona de exclusão aérea do Iraque por parte de Saddam Hussein, o patrão deveria usar gravata e, mais especificamente, uma gravata que tivesse um cunho patriótico. Qualquer actor vive para este tipo de voyeurismo. Uma demonstração do bom karma e da sincronia que caracterizaram esta fase da minha vida foi o facto de, apenas algumas semanas depois, o Rob Reiner me ter proporcionado a oportunidade de representar o papel de George, ou uma versão próxima dele, no filme Uma Noite com o Presidente.

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Fevereiro de 1995No fim da segunda semana de Fevereiro, deixei o local das filmagens na Califórnia e apanhei um avião para Nova Iorque. Os gémeos não deviam nascer antes de Março mas, como nos tinha dito o obstetra da Tracy, «é mais fácil tirar da garagem doisVolkswagens do que dois Buicks» e, portanto, recomendava que o parto fosse provocado um mês antes do fim do tempo. Ainda não fazíamos a menor ideia de qual era o sexo dos bebés mas, pela amniocentese, sabíamos que eram gémeos verdadeiros. Fossem rapazes ou raparigas, a Tracy ia ter um par igualzinho.A 15 de Fevereiro de 1995, chegaram as nossas gémeas. A primeira a nascer era pequena e branca como alabastro; a segunda, oito minutos mais nova, pesava mais meio quilo e nasceu vermelhusca. Ainda no útero, ocorrera um fenómeno chamado transfusão intergémeos, que leva a que um dos bebés quase monopolize o sangue em circulação. Felizmente, poucas semanas depois do parto as duas meninas estavam em condições de saúde idênticas.A primeira e mais pequena das gémeas demos o nome de Aquinnah, que é, em dialecto dos índios Wampenoag, o nome da cidade de Martha's Vineyard onde tínhamos passado tantos Verões. Queríamos um nome cheio de cor para esta criaturinha pálida e delicada e, de acordo com a tradução, Aquinnah significa literalmente «belas cores ao pé do mar». À mais nova chamámos Schuyler, que significa, em holandês, académico ou professor.Eu tinha vindo a aprender coisas importantes acerca da vida no decorrer deste ano de prodígios e o nascimento das gémeas acabou por dar significado a toda essa aprendizagem. Durante o longo período de agonia que se seguira ao diagnóstico da doença, quando a Tracy, por razões agora evidentes, se mostrava relutante em relação à hipótese de aumentar a família, tinha-me tornado amargo devido ao desgosto. Disse para comigo: «Esse tempo, tal como o filho que poderíamos ter tido, passou à História.»Agora, tínhamos sido abençoados com duas bebés maravilhosas. Era esta a lição: não deveria ter-me preocupado com o tempo ou com a perda; deveria, sim, ter apreciado cada dia que passara, ter andado para a frente e acreditado que coisas mais importantes estavam para vir, coisas que tinham um equilíbrio próprio e um momento próprio para acontecer.

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CAPÍTULO SETEUm buraco na cabeçaBoston - Março de 1998Quer beber alguma coisa? — perguntou a Tracy ao médico, era sábado à noite e estávamos numa suite no hotel Four Seasons, em Boston. Eu ia ser operado ao cérebro na manhã seguinte. Por razões de segurança - mais especificamente, por razões de secretismo - ficaria no hotel nessa noite e só dariaentrada no hospital cerca de uma hora antes de ir à faca ou, no meu caso, à broca. Para minimizar as hipóteses de a notícia da intervenção se espalhar, o Dr. Bruce Cook, o neurocirurgião, acedera a fazer a operação num domingo de manhã, altura em que o bloco operatório do hospital estava praticamente vazio. (Mais tarde, o médico revelou-me que os profissionais de segurança de Gavin De Becker tinham tentado passar «tão despercebidos quanto possível, para um grupo de indivíduos enormes a falar para dentro das mangas»). O Dr. Cook passara pelo hotel nessa noite para, uma vez mais, nos explicar, à Tracy e a mim, como as coisas iriam desenrolar-se e passar em revista as vantagens e os riscos potenciais.— Uma Coca-cola light, se tiver, por favor — disse o médico, sentando-se no sofá.— Estou admirada por ver um neurocirurgião beber refrigerantes light — disse a Tracy, pondo a bebida sobre uma mesa de apoio. — Ouvi dizer que contêm produtos químicos que podem ser nocivos para o cérebro.Revirei os olhos. Sou viciado nesta bebida e há anos que oiço este sermão da Tracy.— É possível — disse o médico. — O que eu sei é que, senão os beber, começo a ficar nervoso.O Dr. Cook começou a passar em revista os métodos e os objectivos da operação da manhã seguinte. Eu estava familiarizado com este exercício mas, para a Tracy, a maior parte daquelas coisas era novidade. A minha mãe viera do Canadá de avião para estar comigo durante a operação e assistiu a esta reunião com o médico. Não sabia nada do que iria passar-se e estava visivelmente nervosa. Eu sabia que a confiança calma e prática do Bruce iria tranquilizar as duas.— Como devem saber — começou ele — esta intervençãonão se destina especificamente ao tratamento da doença deParkinson. Não é uma cura. Não vai diminuir a rigidez, melhorar o equilíbrio ou quaisquer outros sintomas da doença. O quevai fazer, se for bem-sucedida, é eliminar o tremor do lado esquerdo do corpo.Aquele tremor do lado esquerdo que, em tempos, em Gaines-ville (havia séculos), era um simples tique aborrecido do meu dedo mindinho e, há quatro anos apenas, a «mão a tremer» que, como eu explicara ao Sam, podia ser enganada, tornara-se algo muito mais intenso e debilitante. Na verdade, já não podia descrever esse tremor como uma característica da minha mão esquerda ou do meu braço esquerdo: ele passara a ser uma presença dominante em todo o lado esquerdo do meu corpo.Cada vez que o efeito da última dose do Sinemet passava, a doença presenteava-me com uma versão resumida dos sintomas - primeiro o dedo mindinho começava a tamborilar, depois a mão a dançar e, passado mais ou menos um quarto de hora, todo o braço esquerdo começava a tremer. Bem, tremer é uma palavra demasiado subtil - o tremor punha-me todo o braço esquerdo aos saltos. Batia como a asa de um pássaro ferido e produzia uma energia sísmica que, embora tivesse origem apenas num lado, tinha força suficiente para fazer abanar o corpo todo. Por vezes, enquanto esperava que o comprimido começasse a produzir efeito, tinha que assentar todo o peso do corpo sobre aquele braço para esconder os efeitos do tremor. Não estou a dizer que me sentava em cima da mão, sentava-me em cima do braço - com a nádega esquerda encaixada na dobra do cotovelo. Ficava sentado naquela posição ridícula e esquisita durante alguns minutos, uma torre humana, inclinada pelo Parkinson.Claro que o tremor não é o único sintoma do Parkinson mas, na minha versão pessoal da doença, o tremor era de tal forma dominante, tão avassalador em comparação com os outros sintomas, que se tornara problemático tratá-lo com o Sinemet. Diminuir o tremor significava tomar uma quantidade que ultrapassava as

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minhas necessidades noutras áreas. Em relação aos outros sintomas, como a rigidez e a falta de equilíbrio, uma dose maciça de Sinemet equivalia a matar um mosquito com uma espingarda para elefantes. O resultado era desconforto e disquinésias. Ao longo dos quatro anos de consultas com o Dr. Ropper, tínhamos debatido as formas de lidar com esta disparidade. Experimentámos diversas terapias medicamentosasdiferentes, mas a opção pela cirurgia começou, cada vez mais, a estar presente nas nossas conversas.Se eu optasse por essa via, havia uma operação específica, a talamotomia, que o Dr. Ropper achava poder ajudar. Falou-me de um neurocirurgião de Boston, o Dr. Bruce Cook, que estava a obter resultados bastante bons com esta operação. Prometendo prestar mais atenção aos doentes e aos resultados das intervenções do Dr. Cook, o meu neurologista disse que, quando chegasse a altura certa, organizaria uma reunião entre nós três. Essa reunião aconteceu em Janeiro de 1998.Fui de avião para Boston, onde me encontrei com o Dr. Ropper, e fomos os dois de automóvel até à clínica do Dr. Cook, em North Andover, Massachusetts. Propositadamente, não tinha tomado medicamentos nessa manhã, para os dois médicos poderem ver o tremor no seu pior. Uma vez mais, submeti-me à panóplia habitual de análises mas, desta vez, houve um elemento novo. O Dr. Cook filmou-me em vídeo no auge da crise e depois mandou-me tomar os comprimidos. Continuou a gravar enquanto a dopamina artificial começava a fazer efeito e os tremeliques iam passando. Em seguida, fomos os três para o gabinete contíguo.O Bruce Cook é uma versão adulta do miúdo mais sabichão do liceu - magro, com muita presença e uma calvície incipiente - e fazia um grande contraste com o Allan Ropper, de porte mais atlético, queixo quadrado e firme e farta cabeleira grisalha. Num aspecto, porém, eram indiscutivelmente semelhantes: os tipos eram espertos. Quanto mais o Dr. Cook explicava a intervenção e o alívio que ela me poderia proporcionar, mais eu me sentia atraído pela ideia de ser operado, e operado por ele. Uma vez que os sintomas se encontravam ainda circunscritos ao meu lado esquerdo, menos dominante (sou destro) o fim do tremor nesse lado era tão bom como voltar ao normal.Finalmente, pensei, o meu lado interior concordaria com o meu lado exterior. Antes de ter Parkinson, numa altura em que, exteriormente, eu era a imagem da confiança e da agilidade física, da felicidade e do êxito, interiormente duvidava de mim próprio,estava desequilibrado e dependia do álcool para contrabalançar estes problemas. Agora, depois de ter enfrentado os meus medos e atingido um certo nível de responsabilidade pessoal e de paz, o meu aspecto exterior dava uma impressão totalmente oposta. Iria aquela operação conseguir, por fim, sintonizar os dois lados?Pelo menos, era esse o meu sonho. Levar o Dr. Cook a concordar era outra questão.— Quanto aos tremores do Parkinson — disse-me o Dr. Cookrecentemente — os seus são graves. Na maioria dos casos nãosão tão acentuados. Tento levar as pessoas a evitar a cirurgia, seesta não for a solução para os seus casos. A operação tem de terum objectivo razoável.Hoje percebo que não era eu que o estava a interrogar, era ele que me estava a interrogar.— Lembro-me perfeitamente de que, quando lhe pergunteide que maneira o tremor lhe transtornava a vida, que problemasou incapacidades lhe levantava na sua actividade quotidiana,você respondeu que estava a fazer uma série na televisão e queera difícil esconder o tremor com toda aquela gente a olhar parasi. Tenho que lhe confessar que isso não produziu qualquer efeitosobre mim. Pensei: «E depois? Não passa de um espectáculo deTV. Talvez para o ano haja outro.»A série televisiva era, naturalmente, Cidade Louca, na altura quase no fim da segunda época. A sitcom foi, em muitos aspectos, o regresso à televisão com que eu tinha sonhado na Nova Zelândia. Pouco tempo depois de ter regressado a casa,

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tive notícias de dois velhos amigos da profissão que sabiam do meu interesse em voltar à televisão. Um deles era o Jeffrey Katzenberg, o dinâmico e bem-sucedido ex-executivo da Paramount e da Disney que, recentemente, constituíra, com o Steven Spielberg e o David Geffen, a produtora DreamWorks. O Jeffrey telefonou a dizer que tinha ouvido falar numa ideia fantástica para uma sitcom, que parecia ter sido feita para mim, uma ideia de alguém que eu conhecia muito bem: o Gary Goldberg.Hesitei. É claro que o Gary tinha sido uma das primeiras pessoas com quem eu pensara falar, mas o nosso êxito com QuemSai aos Seus fora tão grande que me parecia arriscado tentar repeti-lo. Por um lado, tinham passado sete anos desde que trabalháramos juntos e, desde então, eu mudara tanto que sabia ser impossível - e pouco sensato - tentar reatar o nosso antigo relacionamento, que era praticamente de pai para filho. Eu queria ter uma posição de sócio de pleno direito neste negócio - o Gary estaria de acordo com isso? Por outro lado, estava decidido a não me repetir, fazendo de novo uma comédia de tipo familiar, e a tentar qualquer coisa mais madura e mais sofisticada, com a componente de ousadia cómica que eu tinha admirado em séries como Seinfeld.Porém, uma das características do Jeffrey era nunca desistir: mandou o Gary e o Bill Lawrence, um jovem guionista-produtor com quem o Gary estava a trabalhar, a Nova Iorque, no jacto da Works. Os dois foram para o hotel Four Seasons de Manhattan e foi aí que me encontrei com eles. Foi óptimo voltar a ver o Gary. Assim que ele começou a falar, lembrei-me logo, se é que alguma vez me tinha esquecido, de como ele era bom no seu trabalho. O Bill, superexcitado, histérico e superelegante, tinha vinte e poucos anos. A sua energia juvenil parecia ser o complemento ideal da experiência comprovada do Gary. A ideia deles era a personagem de um vice-presidente da Câmara de Nova Iorque, que fazia lembrar a personagem que eu desempenhara em Uma Noite com o Presidente, embora um pouco mais evasivo e francamente cómico. Uma semana depois, enviaram-me por fax o guião, que fui lendo à medida que saía da máquina. Li a primeira página, ri-me e passei-a à Tracy, que começou a rir enquanto eu passava à página seguinte. Quando, por fim, as páginas pararam de chegar, e nós dois deixámos por fim de rir, estávamos totalmente de acordo - esta era A série.Depois de ter reunido um elenco fantástico e um grupo de primeira classe de guionistas jovens e divertidos, estreámos em Setembro de 1996. As críticas foram excelentes e, apesar de terem baixado ao cabo de algumas semanas, os nossos níveis de audiência, de início espectaculares, estabilizaram a um nível que augurava um êxito a longo prazo.O meu instinto estava certo. Ali estava eu, a viver em Nova Iorque com a família, a fazer rir o público em estúdio, numa série de que podia orgulhar-me. No entanto, e por mais perfeitas que sejam as condições, ser simultaneamente actor e produtor de uma série semanal para uma cadeia de televisão envolve uma grande dose de stress. E as condições eram praticamente perfeitas, excepto quanto a um pequeno senão: como eu já receava, a minha sociedade com o Gary estava a sofrer uma certa fricção. Apesar de todo o respeito mútuo e do passado comum, cada um de nós era demasiado opinativo e perfeccionista para abdicar de ter a última palavra sobre as questões criativas. O Gary estava a trabalhar em produção havia muito mais tempo do que eu e opunha-se ainda mais do que eu à ideia de ter de se justificar perante alguém. As duas primeiras épocas tinham sido um êxito mas, somado a todas as outras pressões que uma série semanal ocasiona, o stress gerado pelo nosso conflito criativo estava a fazer sentir os seus efeitos e, sem dúvida alguma, a exacerbar os meus sintomas.Foi assim que, quase no final da minha segunda época de Cidade Louca, me encontrei com os Drs. Ropper e Cook para debater a possibilidade de uma intervenção cirúrgica. Mas, como hoje diz o Dr. Cook, na sua opinião, as exigências de uma série semanal de televisão não eram uma razão suficiente para uma intervenção tão drástica. Há pouco tempo, perguntei-lhe o que tinha acabado por o convencer a aceitar-me como doente.— Foi outra coisa que você disse — respondeu-me. — Faloudo Sam. De como se tinha tornado difícil fazer coisas tão simplescomo ler-lhe um livro. Que não era capaz de segurar no livro

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nem de virar as páginas sozinho e que tinha que ser ele a segurarno livro. Também me contou que era muito difícil ir às reuniõesescolares, porque não podia ter a certeza de conseguir programarcorrectamente a medicação.O Dr. Cook resumiu a coisa da seguinte forma:— Há imensas pessoas que podem fazer televisão mas sóuma pode ser pai do seu filho. Quando me expôs a situação nestestermos, achei que fazia sentido. Decidi-me a fazer a operação.Informei os meus sócios das minhas intenções, satisfeito por os ter posto a par da minha doença desde a primeira hora. Ainda que, andássemos cada vez mais às turras por causa das questões criativas, o Gary deu-me o máximo apoio. Ele e o Jeffrey compreenderam as dificuldades físicas que eu tivera de enfrentar e estavam esperançados num resultado positivo. Em seguida, convidei cada um dos membros do elenco a ir ao meu gabinete e atirei-lhes com duas desgraças. Disse-lhes, pela primeira vez, que sofria de Parkinson e que ia ser operado ao cérebro no final da época.A Aquinnah e a Schuyler eram pequenas demais para perceberem o que eu estava prestes a fazer; tive-as ao colo na véspera de partir para Boston e senti-me feliz por, dentro de pouco tempo, elas não irem precisar de voltar as páginas do seu livro de histórias favorito, para eu o poder ler.Mas o Sam tinha agora mais um livro para segurar, um livro que o Dr. Cook mandara poucas semanas antes da operação: O Grande Livro do Cérebro. Com a ajuda das suas ilustrações simples, mas bem feitas, consegui explicar ao meu filho de oito anos o que o médico tencionava fazer. Era, basicamente, a versão cirúrgica do nosso velho jogo de apertar o polegar, embora, se tudo corresse como previsto, pudéssemos passar a contar muito mais do que até cinco.NEUROCIRURGIÕES E CIENTISTAS ESPACIAISNeste momento, quase três meses depois de nos termos conhecido, o Dr. Cook estava na nossa suite de hotel, em Boston, e eu estava a cobiçar a sua bebida. Tinha entrado no período sem líquidos de doze horas antes da cirurgia. A propósito, também não podia tomar o Sinemet - os sintomas tinham de estar totalmente presentes durante a intervenção. Cheio de sede e de sintomas da doença, um pouco nervoso também, estava ansioso por passar à acção.— Não se importa de explicar outra vez o que vai fazer e qual será o resultado? A Tracy e a minha mãe estão um bocadonervosas acerca da história da lesão... como é que destruir uma pequena parte do cérebro me pode realmente ajudar.O Dr. Cook concordou com um aceno e inclinou-se sobre a mesinha.— O objectivo da operação é neutralizar as células cerebraisresponsáveis pelo tremor. O alvo está localizado numa zona profunda da parte do cérebro chamada tálamo, uma zona do tamanho de uma avelã, que controla os movimentos do corpo. Estamosà procura de uma estrutura específica no interior do tálamo queé responsável pelo tremor: o globus pallidus, um grupo de células com cerca de dois milímetros de diâmetro.«Você vai ser levado para a sala de operações e vão pôr-lhe uma espécie de moldura ou halo metálico, aparafusado à cabeça com parafusos pequenos. Durante a operação, esta moldura estará também aparafusada à mesa de operações para o impedir de mexer a cabeça. Igualmente importante é o facto de a moldura nos ajudar a orientar os nossos instrumentos.«Enquanto isto se passa, você vai estar anestesiado com Va-lium líquido: não se lembrará de quase nada, mas estará acordado. Na realidade, precisamos que esteja consciente durante toda a cirurgia, para responder às nossas perguntas; isto é parte integrante da operação, ajudar-nos a confirmar que estamos realmente na zona do cérebro que pretendemos atingir.«Quando a moldura estiver posta, mas ainda não aparafusada à mesa de operações vamos levá-lo para fora da S. O. até à máquina de imagiologia por ressonância magnética.»— Deixe-me perguntar uma coisa — interpôs a Tracy. — Vão fazer a RM depois de ele ter a moldura posta? Pensava que não se podia ter qualquer espécie de metal perto dessas máquinas.

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— É verdade. Mas a moldura que vamos utilizar é de alumínio — respondeu o Dr. Cook. — É um metal não-ferroso, o que significa que não afecta os magnetos.Pensei, impressionado: Boa pergunta, Tracy.— Faremos a RM para localizar o globus pallidus. Tambémveremos as zonas que queremos evitar, a cápsula interna quecontém toda a informação responsável pelo movimento que vaido seu cérebro pela espinal-medula abaixo. Se esta cápsula interna ficar danificada, existe risco de paralisia.«Em seguida, voltamos para a sala de operações, apara-fusamos a moldura à mesa de operações e vamos soerguê-lo numa posição inclinada, quase como se estivesse sentado numa cadeira de repouso. Então, fazemos-lhe um furo no crânio e utilizamos um microeléctrodo... um tubo comprido com uma ponta estreita que contém um filamento, para explorar a zona. O eléctrodo permite-nos detectar os sinais eléctricos emitidos pelas células cerebrais e vê-los num ecrã de computador. Estes sinais são incrivelmente pequenos e fracos: estamos a falar das emissões eléctricas de apenas uma ou duas células. O mais pequeno sinal emitido por qualquer outro equipamento eléctrico causa uma interferência enorme, pelo que temos de desligar tudo o que houver na sala, incluindo as luzes.»— Desculpe — interrompi. — Não me lembro de já ter ouvido essa parte da história. Vai operar-me ao cérebro com as luzesapagadas?Já estava a ver uma cena com barbeiros medievais a fazerem-me uma trepanação ao cérebro à luz da vela. O Dr. Cook sorriu de modo tranquilizador.— Nesta sala de operações há uma parede totalmente envidraçada, esteja descansado.A alta tecnologia cruza-se com a baixa tecnologia, pensei. Desde esse momento, tenho desligado religiosamente o meu telemóvel quando entro num hospital. O médico continuou.— Passamos o eléctrodo através do tálamo, à procura desinais característicos. Enquanto procuramos essas tais células evamos fazendo coisas como tocar num dos seus dedos, porexemplo, procuramos respostas no ecrã do computador. Aquiloque procuramos é um ponto onde só temos resposta quandotocamos nos seus dedos polegar e indicador, porque essa zonaestá logo por trás do ponto onde queremos chegar.«A etapa seguinte é fazer passar uma corrente eléctrica, através do eléctrodo, e perguntar-lhe se sente alguma coisa semelhante a um formigueiro ou a dormência, no polegar ou noindicador. É por isso que você tem que estar consciente. Quando obtivermos essa resposta, estaremos exactamente por trás do ponto que pretendemos alcançar.«Queremos encontrar esse ponto tão depressa quanto possível porque, de cada vez que se experimenta um novo percurso com o eléctrodo, o risco aumenta.»— Quais são exactamente esses riscos? — desta vez, era a minha mãe. Mas pela linguagem corporal da Tracy consegui perceber que ela tinha ficado apenas a um milissegundo de colocar a sua versão da mesma pergunta.— O maior risco é a ocorrência de hemorragias cerebrais resultantes das várias tentativas. Globalmente, a estimativa nacional é de uma probabilidade em cem de causar qualquer hemorragia mas, graças aos microeléctrodos que utilizamos, estas são raríssimas. Os outros riscos são a paralisia, como já referi, a dormência, a fala entaramelada ou a incapacidade para engolir e controlar as secreções.Houve uma breve pausa, durante a qual senti todos os olhares voltarem-se para mim. Sorri, com a certeza de estar a irradiar uma confiança genuína, do fundo do coração. Tinha plena consciência dos riscos e, embora não os encarasse de ânimo leve, sentia que eles eram largamente ultrapassados pelos potenciais benefícios.— Tudo bem, doutor, pode continuar.— Em seguida, avançamos três milímetros a partir do ponto onde encontrámos a melhor resposta. Fazemos passar um pouco de corrente no eléctrodo: se estivermos no sítio certo, isto fará parar momentaneamente o tremor. É um óptimo sintoma. A única coisa que faltará fazer, nesse momento, será pôr um eléctrodo ligeiramente maior, capaz de provocar uma lesão... de matar as células-alvo. Quando o ligamos, esse macroeléctrodo poderá ocasionar dificuldades temporárias na fala,

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porque a corrente se espalha para além da zona de intervenção. Mas, antes disso, fazemos um teste, aumentando em alguns graus a temperatura da sonda, o suficiente para parar a actividade, mas não o bastante para provocar uma lesão. Fazemos-lhe exames para verificar se vocêmantém todas as funções que não queremos prejudicar: se engole, se fala e tudo o mais. É aqui que o doente participa no programa. Depois, passamos para uma corrente mais forte, até termos aquecido a área de intervenção à temperatura necessária para matar as células. Em seguida, retiramos o eléctrodo e está pronto.Coisa complicada. Toda a gente ficou calada. Era um momento muito sério, mas não me saía da cabeça uma frase que já tinha repudiado milhões de vezes: Isto não é uma operação ao cérebro. Só que, desta vez, era mesmo. Isto fez-me perguntar:— Porque pensa você que... que a neurocirurgia se distingue de todos os outros feitos, mesmo dos da ciência espacial, e éconsiderada a proeza mais estimulante do génio humano, aquelaque exige o máximo da inteligência humana? — perguntei aoDr. Cook, para quebrar a tensão, por um lado, e porque queriarealmente saber.Para minha surpresa, o Dr. Cook reflectiu de facto sobre a minha pergunta por um segundo, bebeu um gole da sua Cola light e deu a resposta:— Não há margem para erros.Céus, ele tem razão - caí em mim. É isso. Quero dizer, quando se pensa nisso, é de facto isto que dá aos neurocirurgiões uma ligeira vantagem sobre os cientistas espaciais. Todos vimos o Apollo 13. Os tipos da NASA podem sempre recorrer à velha opção «saco de plástico, tubo de cartão e fita adesiva» quando a coisa dá para o torto. Um neurocirurgião não tem essa margem de manobra. O que se passa é o seguinte: quando um neurocirurgião faz merda, isso significa um processo de milhões de dólares por incompetência profissional. Mas, quando um cientista espacial faz merda, isso significa um filme de milhões de dólares, um grande êxito de bilheteira, com o Tom Hanks no principal papel.Não há margem para erros. Ainda me sentia maravilhado pela perfeição daquela resposta. Ele tem toda a razão, basta um soluço e... Então porque estou a sorrir?Holy Family Hospital, Methuen, Massachusetts - Manhã de domingo, 15 de MarçoApesar do Valium, lembro-me de certas coisas. Lembro-me de me raparem a cabeça e de ter pedido para deixarem algumas madeixas à frente, para, depois da operação, as poder deixar de fora do meu boné de baseball, levando as pessoas a julgar que eu ainda tinha o cabelo todo. Lembro-me da ferroada do aperto dos parafusos e de resmungar qualquer coisa acerca de Torquemada quando me prenderam a armação de alumínio à cabeça. Lembro-me de sentir uma leve vibração, uma certa pressão indolor, quando me fizeram o buraquinho no alto da cabeça.Lembro-me - isto deve ter sido duas horas depois de a operação ter começado - de o Dr. Cook me ter pedido para contar até dez em voz alta. No entanto, algures entre o dois e o quatro, a voz que eu ouvia a contar soava como a voz de outra pessoa. De início era um gorjeio suave de barítono mas, de repente, subia e descia, variando de tom, de velocidade, como se fosse um disco a tocar e um bêbado qualquer estivesse encostado ao gira-discos. Aos oito, parei de contar.— Ehhh... — rosnei, na minha nova voz de Incrível Hulk,em câmara lenta. - Vocês estão a remexer-me no cérebro.Lembro-me de os ouvir rir.Em seguida, lembro-me que alguém (o Dr. Cook?) me pediu para pôr a mão numa posição que a fizesse tremer. Queria que eu provocasse o tremor da mão, queria vê-la estremecer. Tentei, mas a mão não quis colaborar. Voltei a mexê-la, mas ela não quis tremer. Comecei a ficar furioso comigo próprio, achei que estava a ser um mau doente.— Desculpem — lembro-me de ter dito, já no meu tom devoz normal. — Ela não quer, não consigo fazê-la tremer. Elarecusa-se.— Óptimo. É isso mesmo — disse o médico. — Conseguimos.Lembro-me de ter erguido a mão esquerda em frente da cara,

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de a ter voltado para todos os lados, de ter aberto os dedos, obediente, sorrindo. É isso mesmo. Eles conseguiram.Anguilla, Caraíbas, Abril de 1998 Mais um dia no paraíso.O Dr. Cook deu-me autorização para apanhar um avião para as Caraíbas com a família, dois dias depois da operação: eram as férias de Primavera do Sam. Durante essas duas semanas de descanso e de convalescença, levantava-me cedo todas as manhãs, por volta das seis, antes da Tracy, do Sam ou das miúdas, e esse dia não foi excepção. Levantei-me da cama sem acordar a Tracy, vesti uns calções e uma T-shirt, pus uma bandana azul na cabeça rapada (com aquela madeixa cómica à frente), escapuli-me pela porta das traseiras do bungalow e desci as escadas da falésia até à praia.Depois de ter caminhado perto de 400 metros, sentei-me na areia branca e macia e pousei os antebraços nos joelhos. Havia pelicanos a pescar a três metros da praia, girando e mergulhando espectacularmente, mas não eram eles que me prendiam a atenção. Eu estava concentrado na minha mão. Olhei-a fixamente e esperei. Antes de terem passado cinco minutos os meus dedos começaram a agitar-se. Era um movimento muito subtil, nenhuma outra pessoa teria reparado nele, mas era um facto.Era como no princípio, era tal como antes, mas com uma enorme diferença: não estava a olhar para a minha mão esquerda. Não havia dúvidas de que a operação fora um êxito: o lado esquerdo do meu corpo estava tão quieto como a baía azul abrigada que se estendia à minha frente. Agora, o problema era o lado direito - o tremor tinha passado para o lado direito do meu corpo. Não fiquei surpreendido. Não era uma novidade e não tinha nada a ver com a operação. De facto, nada do que os médicos tinham feito nesse dia podia ter causado esta recente evolução dos meus sintomas. A lesão fora feita no hemisfério direito do cérebro e, portanto, só podia produzir efeitos sobre o lado esquerdo do corpo. Na realidade, eu já tinha começado a notar isto em Fevereiro, depois da primeira consulta com o Dr. Cook. É possível que o desaparecimento do tremor do lado esquerdo tenha tornado mais visível a deterioração do lado direito.Fiquei triste, mas não zangado. Havia anos que sabia que isto era inevitável. Tenho doença de Parkinson, que é uma doença evolutiva. Está apenas a fazer o que se espera que faça. E, agora, que se espera que eu faça? Levantei-me, sacudi a areia que se colara às pernas e comecei a andar, de volta para a minha mulher e os meus filhos adormecidos. A resposta era clara. Depois de tudo por que tinha passado, depois de tudo o que tinha aprendido e de tudo o que me tinha sido oferecido, ia fazer o que tinha vindo a fazer nos últimos anos: dar a cara e fazer o melhor possível em função do que me surgisse pela frente.Apanhei conchas para as crianças e meti-as nos bolsos dos calções; algures durante o percurso, tal como fazia quase todos os dias desde que, seis anos antes, deixara de beber, rezei esta oração:Deus me dê serenidade para aceitar as coisas que nãoposso mudar Coragem para mudar as que puder mudar E sabedoria para distinguir umas das outras.

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CAPÍTULO OITOAbrir um presentePRECISO EXPLICAR o que é o fenómeno «ligado-desligado». Este melodrama Jekyll-and-Hyde é uma fonte permanente de vergonha para o doente de Parkinson, em especial para um doente como eu, decidido a manter-se fechado no armário. «Ligado» refere-se ao período durante o qual a medicação diz ao cérebro tudo o que este quer ouvir. Sinto-me relativamente relaxado, fluido, com o espírito desanuviado e os movimentos sobcontrolo. Só um observador bem treinado poderá detectar a doença. Durante os períodos de «desligado», embora não seja capaz de diagnosticar especificamente o Parkinson, até o mais míope dos leigos consegue perceber que tenho um problema grave.Quando estou «desligado», a doença assume o controlo total da minha pessoa física. Fico completamente à mercê dela. Por vezes, há lampejos de funcionamento e consigo desempenhar eficazmente algumas tarefas físicas básicas, como alimentar-me e vestir-me (embora com tendência para usar mocassins e sweaters) ou coisas que exijam mais a força bruta do que a habilidade manual. Nos piores dos piores períodos de «desligado», passo por toda a panóplia de sintomas clássicos do Parkinson: rigidez, arrastar os pés, tremores, falta de equilíbrio, diminuição do controlo dos pequenos movimentos e o conjunto insidioso de sintomas que torna difícil, e por vezes mesmo impossível, a comunicação, oral ou escrita.Hipofonia, fácies em máscara e «voz entaramelada» podem, todos eles, impedir a expressão verbal de sentimentos e ideias. A hipofonia enfraquece de tal modo a voz que, em alguns casos, como o de Muhammad Ali, o simples facto de falar de forma audível exige um esforço tremendo. Até agora, fui poupado a esse problema específico. Quando estou «desligado», a minha luta é contra a «voz entaramelada» combinada com o fácies parkinsó-nico ou «efeito de máscara» muitas vezes observado na cara dos doentes de Parkinson. A minha capacidade para transformar pensamentos e ideias em palavras e frases não é afectada: o problema é transformar essas palavras e frases num discurso articulado. Os músculos dos lábios, da língua e dos maxilares recusam-se, pura e simplesmente, a colaborar. As poucas palavras que consigo obrigar a furar este bloqueio são audíveis, ainda que nem sempre compreensíveis. Por mais que tente, não consigo articular o discurso de forma a reflectir o meu estado de espírito. E nem sequer posso alegrar o tom monótono e hesitante com um franzir de sobrolho: o meu rosto, totalmente inexpressivo, recusa-se em absoluto a responder. Como o Emmett Kelly, mas sem a maquilhagem teatral, por fora pareço muitas vezes estar triste, aindaque, cá por dentro, esteja a sorrir - ou, pelo menos, a esboçar um sorriso sardónico interior.Micrografía é mesmo aquilo que parece - escrita pequenina. Tenho um amigo corretor, um colega com Parkinson Jovem (por estranho que pareça, a nossa amizade é anterior ao diagnóstico da doença), que veio a consultar um neurologista por sugestão da sua secretária. Ao longo de cerca de um ano, ela foi tendo cada vez mais dificuldade em decifrar as notas que ele lhe deixava e, por fim, pô-lo perante a evidência de uma escrita de tamanho cada vez mais reduzido. Sem medicamentos, a minha caligrafia torna-se também microscópica. Além disso, a recusa teimosa do meu braço «desligado» em mover-se com suavidade numa direcção lateral, da direita para a esquerda, tem como resultado uma coluna fragmentada de gatafunhos minúsculos.Isto:£/W <£,'»>, Vv^ y%^Transforma-se nisto:Jfe» *+\ ********Estas restrições à auto-expressão não são a característica mais penosa ou mais debilitante da doença de Parkinson mas, apesar disso, enfurecem-me mais do que o pior dos tremores corporais, daqueles que até fazem bater os dentes. Quando já nem os medicamentos produzem efeito e o Parkinson me tornou prisioneiro no meu próprio corpo, a suspensão da capacidade de telefonar e de escrever parece-me um abuso.

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Além disso, há a sensação de não ser capaz de ficar quieto num mesmo lugar, por mais de um ou dois segundos. Quando estou «desligado», sinto-me como se estivesse pendurado num cabide, que tivesse sido implantado cirurgicamente sob a minha pele, nos músculos das minhas costas entre as omoplatas. Não é exactamente uma sensação de estar suspenso no ar, é mais como ser levantado com um macaco e ficar com os dedos dos pés a raspar e a bater no chão, lutando por conseguir um ponto de apoio, para, nem que seja só por um instante, conseguir ter os dois pés firmemente apoiados, a suportar todo o peso do corpo. Durante os anos que passei a cultivar a ficção de que nada disto estava verdadeiramente a acontecer-me, o único recurso que me restava era isolar-me e, de dentes cerrados, esperar que passasse.Três a quatro vezes por dia, passo pelas fases intermédias entre os dois extremos, atravessando a traiçoeira faixa entre a terra do «desligado» e a do «ligado». O aspecto mais surrealista desta viagem electrizante é que, durante a fase de «ligado», tento iludir-me e acreditar que a minha situação «normal» é esta e não a outra.Nenhum dos comprimidos que tomo me dá sequer uma leve ganza, mas a liberdade de movimentos e o interregno de bem-estar físico que me proporcionam são inebriantes. Não desperdiço nem um nanossegundo desse tempo a filosofar sobre a verdade pouco agradável de que o que sinto não é «real». Não penso nisso enquanto brinco na rebentação com a Aquinnah e a Schuyler, quando vou pescar trutas com o Sam ou quando fico sem fôlego a tentar acompanhar a Tracy nos passeios de bicicleta de que ela tanto gosta. Consigo realmente esquecer e, mergulhado nesta normalidade sublime, é fácil não reparar nos tiques subtis, na rigidez crescente, nas sensações de vibração que deveriam levar-me a abrir o frasco e a tomar mais uma pastilhinha azul.Cada doente de Parkinson é um caso único. A minha experiência é esta: se não reparar nestes sinais de alerta se os ignorar, não há segunda oportunidade. Estou «fora» durante sessenta a noventa minutos. Não serve de nada aumentar a dose - quando,por fim, a L-dopa começa a fazer efeito, o resultado são disquinésias exageradas (movimentos descoordenados, espasmódicos e hiperalargados das extremidades). Tal como acontece durante o período de «ligado», é difícil acreditar que o período de «desligado» vai acabar e não serve de nada recordar a mim mesmo que isso acontece sempre.Organizar a vida de forma a estar «ligado» em público e «desligado» durante o menor espaço de tempo possível é um número de equilibrista para todos os doentes de Parkinson. No meu caso, havia a perspectiva angustiante de perder o equilíbrio, em sentido literal e figurado, durante, por exemplo, uma gravação ao vivo, ou uma cerimónia pública, no decorrer da qual não houvesse hipótese de evitar olhares atentos, uma perspectiva tanto mais provável quanto mais tempo eu demorasse a revelar a minha situação.Aprender a dosear a medicação de modo a esta fazer efeito antes de aparecer em público ou de um espectáculo, por vezes a minutos da minha deixa, tornou-se num processo em permanente aperfeiçoamento - montes de tentativas sem grande margem para erro. Programar uma tirada cómica final era impossível, se não tivesse tomado os medicamentos na altura certa. Tornei-me num génio de controlo da tomada de medicamentos, conseguindo obter o efeito máximo no local devido e à hora exacta.Quando a L-dopa começa a produzir efeito e a corrente muda de «desligado» para «ligado» de fresco, o simples alívio da transformação já é um pico. As pessoas que me são mais próximas estão sintonizadas para a cerimónia física que assinala a minha transição de volta ao mundo das pessoas totalmente funcionais - um suspiro débil, acompanhado por um ou dois espasmos súbitos da perna esquerda, logo seguidos por um esticar de braços e um rolar da cabeça. Os impulsos da perna são involuntários, mas muito bem-vindos, pois indicam o princípio do fim. A medida que desaparece do meu corpo, a tensão desloca-se sempre para baixo, através daquela perna em especial e, depois, passa para o pé, que gira três ou quatro vezes. Por fim, como se estivesse a ser aspirada, a tensão desaparece, escapando-se pela sola do meu sapato esquerdo. O estender dos braços e o rolar

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da cabeça são apenas a forma que o meu corpo tem de festejar a reunião do espírito com o movimento.Este fim ritual de um período de «desligado» é imediatamente seguido por um rito pessoal, que assinala o regresso ao estado de «ligado». Se perguntarem à Tracy ou a qualquer outra pessoa que passe muito tempo comigo, elas dir-vos-ão que faço e digo sempre a mesma coisa: sorrio, fecho os olhos e depois, tal como Barry White sob o efeito do hélio, trauteio: «Oh, baby... I love it when the drugs kick in1.»«LIGADO», «DESLIGADO»... E «AVARIADO»Cidade Louca, terceira época - 1998Nunca é fácil apresentar uma imagem dos meus sintomas num ponto temporal preciso, mas o que acabei de descrever retrata, com bastante fidelidade, o corpo com o qual tive de trabalhar até ao início da terceira época de Cidade Louca. Nos meses que se seguiram à talamotomia e no que se refere a domesticar o lado esquerdo do meu corpo, o êxito da operação foi uma realidade palpável. Porém, a rápida escalada do novo tremor do lado direito tornou-se igualmente evidente - piorava de dia para dia, a um ritmo que até eu conseguia detectar. Pergunto a mim mesmo se o desaparecimento daquela agitação desordenada do lado esquerdo teria também provocado um maior alívio dos outros sintomas (rigidez, fácies em máscara e quejandos). Fosse qual fosse a razão, não havia dúvidas de que, após um período pós-operatório agradável, mas demasiado curto, a doença estava a confrontar-me com um novo conjunto de desafios, pessoais e profissionais. Estava, também, a apressar uma decisão, há muito adiada, de fazer a ponte entre os lados público e privado da minha vida. Manter secreta a minha doença estava a tornar-se rapidamente insustentável - e destrutivo.1 «Oh, linda... Adoro quando a droga começa a trepar.» (N. da T.)A maioria dos doentes de Parkinson dirá que o stress lhes exacerba os sintomas e, no Verão de 1998, o meu trabalho começou, de repente, a provocar-me muito mais stress. Devido aos nossos permanentes conflitos criativos, o Gary Goldberg resolveu não participar na terceira época da série e, em vez disso, ficar em Los Angeles com a família e desenvolver outros projectos. Embora, na altura, tenha sido muito dura do ponto de vista emocional, estou persuadido de que esta ruptura acabaria por preservar a nossa amizade - hoje mais forte do que nunca, sob muitos aspectos - e por, dois anos mais tarde, abrir caminho a uma reconciliação profissional que viria a garantir o futuro da série depois eu ter saído. A curto prazo, porém, assumi o poder criativo pelo qual ansiara durante as duas primeiras épocas, o que representava um enorme aumento das minhas responsabilidades. Tem cuidado com os teus desejos: agora, era eu o responsável pelo espectáculo.É verdade que tive imensas ajudas. O Bill Lawrence voltou a fazer parte da equipa, tal como o guionista-produtor David Rosenthal e a maioria dos nossos talentosos, ainda que excêntricos, escritores, pessoal técnico e administrativo. O Andy Cadiff, que, na época anterior, fora um realizador brilhante, passou a ser o produtor de Cidade Louca e revelou-se um parceiro inigualável na direcção das filmagens. A presidente da minha produtora, Danelle Black, passou a produtora consultiva e, sendo a executiva mais próxima de mim, foi inundada por pedidos de pessoas que precisavam da minha disponibilidade e da minha atenção. A habilidade da Danelle para gerir as interferências em meu lugar ultrapassou a simples responsabilidade profissional - era lealdade e amizade do mais alto grau.Mesmo assim, eu ainda tinha de resolver incontáveis problemas da produção e tomar um sem-número de decisões, ao longo de todos aqueles dias de doze-a-catorze-horas: reescrever o episódio semanal, escrever as story Unes e sinopses para os guiões com semanas de antecedência, fazer castings e contratar pessoal, dar opiniões sobre o guarda-roupa e o cenário, supervisionar a música e a edição, para não falar da tarefa contínua de manter relações diplomáticas com a cadeia e os estúdios de televisão. Todas estas coisas me agradavam - bem, quase todas: como inimigo de longa data da matemática pura, a obrigação menos grata era definir e respeitar o orçamento semanal de produção.Tudo isto exigia de mim um esforço enorme e, entretanto, comecei a aperceber-me de que estava a tornar muito difícil a vida das pessoas que trabalhavam comigo -

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a maioria delas ignorava os meus problemas de saúde. Estou a lembrar-me dos muitos casos em que os sintomas da doença me obrigaram a alterar, quase no último minuto, a hora das reuniões com diversos chefes de departamento, que depois tinha que voltar a alterar uma vez e outra e que, às vezes, era forçado a cancelar sem dar qualquer justificação. Na melhor das hipóteses, o meu comportamento devia parecer inconsequente e, na pior, arrogante e destituído de respeito fosse por quem fosse. Os inúmeros atrasos de última hora na produção, que podiam demorar entre poucos minutos e meia hora ou mais e que eu normalmente atribuía a uma vaga dor ou a um «telefonema importante da Costa Oeste», devem ter sido motivo de espanto e aborrecimentos. Mas não era mais fácil para as pessoas que sabiam o que se passava. A Danelle, o Bill, o Andy, os actores e a meia dúzia de outras pessoas que conheciam o meu segredo estavam sob pressão constante para me dar cobertura, para arranjar novas desculpas e, se não tivessem tempo para coordenar a história deles com a minha, ficavam preocupados com a possibilidade de trair a minha confiança, se fossem apanhados numa mentira esfarrapada.Já havia boatos a circular, isso sabia eu. Alguns deles oriundos de Boston, penso. As minhas deslocações frequentes a essa cidade para tratamentos ou consultas tinham, de alguma forma, despertado a atenção de alguns colunistas de bisbilhotices dos jornais locais.Acho que foram eles os primeiros a, logo em 1997, associar-me a uma vaga e indefinida doença «mistério». Para grande indignação desses senhores, limitei-me a ignorá-los e, sendo as suas especulações tão imprecisas, as notícias não tiveram grande impacto. Só em 1998 os grandes tablóides nacionais pegaram nahistória, com muitas precauções. Começaram por publicar pequenos artigos, sem mencionar nomes, e, depois, outros directamente relacionados comigo, referindo que eu sofria de uma doença desconhecida e estava em tratamento.Para mim, foi um choque muito pessoal-e intransmissível ouvir, pela primeira vez, a palavra «Parkinson», pela «voz» de um dos jornais nacionais de escândalos, sedeado na Florida. Certa manhã, no início de 1998, pouco antes de ser operado, o Jimmy Nugent, o meu motorista da Cidade Louca e amigo de longa data, veio buscar-nos, ao Sam e a mim, ao nosso apartamento no Upper East Side. Como era habitual nos dias de semana, o Jimmy ia primeiro deixar o Sam à escola e depois levava-me ao local das filmagens. Estávamos a percorrer os poucos metros entre a porta da frente do edifício e o todo-o-terreno estacionado, quando uma mulher, que parecia ter-se materializado ali, naquele instante, saltou para a minha frente, com um ar muito preocupado, ignorando o Sam e atrapalhando o Jimmy. Identificou-se como jornalista de The Star e começou a bombardear-me com perguntas acerca do meu estado de saúde. Sem dizer palavra, sorri, encaminhei o Sam para dentro do carro e entrei atrás dele. Começámos a afastar-nos do passeio e, para meu espanto, a mulher saltou para o meio da rua, atrás de nós, a agitar os braços e a gritar com todas as suas forças «doença de Parkinson»! O que é que ela queria? Que, ao ouvir aquelas palavras, eu mandasse parar o carro, saísse e dissesse, «Bem, na verdade é isso mesmo»?Durante todo o ano de 1998, as pessoas que trabalhavam comigo continuaram a receber telefonemas dos tablóides, em especial de The Enquirer. Agora, já utilizavam correntemente a palavra «Parkinson», pelo menos nas conversas privadas connosco, embora ainda tivessem pejo em fazer uma afirmação dessas por escrito. A resposta habitual era, como seria sempre para uma pergunta deste tipo, «sem comentários», seguida de uma nota: «Publiquem o que quiserem, mas tenham bem a certeza daquilo que publicarem, porque, se não estiver correcto, vão ter notícias nossas.» Não sentia que fosse desonesto assumir esta posição. Não sou político nem fui eleito para nenhum cargo,logo o interesse público ficava melhor servido pela divulgação de informações privadas sobre a minha saúde.The Enquirer apresentou o caso sob o ângulo de os meus fãs terem o «direito» de saber, uma justificação que fazia lembrar os protestos apresentados na altura do meu casamento. A minha reacção foi praticamente a mesma. Estou certo de que as pessoas que acompanharam a minha carreira estariam interessadas em saber da minha situação. Mas também estou certo de que essas pessoas não gostariam de saber que eu estava a ser forçado a fazer uma revelação deste tipo e de que,

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além disso, a sua ira acabaria por se voltar contra os que me queriam forçar a isso. Os tablóides sabem que é assim e receiam tanto a reacção dos seus leitores como os processos judiciais. Retiveram a história.Mas quem seriam os bufos? No caso das primeiras notícias de Boston, ocorrem-me diversas possibilidades: empregados do aeroporto, motoristas dos táxis e rádiotáxis que me levavam aos hospitais e clínicas, talvez mesmo outros doentes que me tenham visto entrar e sair sorrateiramente pelas portas laterais dos gabinetes dos médicos.Na realidade, que importa isso? Não ia começar a desgastar-me com este jogo de adivinhas. Agora, já tinha ido longe demais e não estava disposto a render-me a uma paranóia que podia ser tão destrutiva como qualquer doença. E se quem fazia os comentários não me interessava, o porquê desses comentários ainda me interessava menos. As pessoas fazem o que fazem por razões pessoais - não tenho nada a ver com isso e são coisas que escapam totalmente ao meu controlo. Só posso preocupar-me comigo mesmo e ser responsável pelas acções que eu próprio pratico.Na verdade, muito mais do que a bisbilhotice do pessoal menor, era esse sentido da responsabilidade que me estava a empurrar para «fora do armário». A vida dos meus amigos, da minha família e dos meus colaboradores tornar-se-ia muito mais fácil se eu fosse franco acerca do meu estado de saúde. Para além de que também tinha responsabilidades para comigo mesmo: o meu trabalho como produtor seria grandemente facilitado se nãotivesse de dedicar tanta atenção ao secretismo e, além disso, o aspecto de Cidade Louca de que eu mais gostava - representar -tornar-se-ia muito menos desgastante.Tal como as coisas estavam, cada episódio semanal constituía uma nova série de desafios criativos e físicos. Poderia eu ter a certeza de que, durante a actuação, o meu corpo ia responder da mesma forma que durante os ensaios? Isto tornou-se gradualmente num ponto controverso, uma vez que os ensaios eram, cada vez mais, um luxo que não podia permitir-me - mais um comportamento perturbador aos olhos dos ignorantes e que facilmente podia ser tomado por arrogância ou indiferença.Conseguia agora perceber que o esforço a que me obrigava (e aos outros) ao tentar ser engraçado, sem me deixar ultrapassar pelo meu elefante de estimação invisível, era absurdo e esgotante. Em palco, parecia estar a fazer uma coisa mas, na verdade, estava a fazer outra bem diferente: estava a esconder os sintomas, recorrendo a um repertório de pequenos truques e manobras de diversão - a mexer nos adereços, encostado às paredes e aos móveis e, quando tudo o resto falhava, a enfiar as mãos nos bolsos. Houve muitos dias em que tive de me concentrar mais na minha relação física com a cena que se desenrolava à minha volta do que no seu conteúdo emocional, cómico ou dramático. Enquanto isto, ia fazendo cálculos - quanto tempo terá passado desde o último comprimido? Quanto tempo demorará o efeito a desaparecer? Em que altura do espectáculo vou ter que tomar outro? «Deus queira que seja durante uma cena em que eu não participe!»Já referi a rapidez de reacção que é preciso ter aos sintomas de um período de «desligado» e o que acontece se não se reagir a tempo. Quando o aviso chegava no meio de uma cena de quatro a cinco minutos, não havia nada a fazer para esconjurar o regresso dos sintomas. Tinha chamado a estas crises circunstanciais «tornar-me numa abóbora».«Tornar-me numa abóbora» ao vivo, num palco, ia estragar tudo. Se o público presente no estúdio detectasse um tremor no meu braço, uma fala mais arrastada ou uma certa rigidez de movimentos, seria a prova de que alguma coisa não estava bem e que essa coisa, fosse lá o que fosse, não era certamente divertida. Era este o meu maior receio, tal como fazer rir o público continuava a ser um dos meus maiores prazeres.Por isso, fiz tudo quanto podia para o público não saber que eu estava doente. Em 1998, isto passara a ser, a par do resto, a minha grande «representação». Sempre me alimentei da relação que mantinha com o público e receava correr qualquer risco que me afastasse dele ou que prejudicasse essa relação. «Sair do armário» era um desses riscos. Dizer uma piada na altura certa dependia de ter o público na mão, fosse em que circunstâncias fosse, e se perdesse a atenção das

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pessoas, mesmo que só por um segundo, enquanto elas olhavam para o meu braço ou para uma mudança na minha maneira de andar, perdia-as para sempre. Começava a tomar consciência de que, mais do que qualquer outra, esta era a verdadeira razão pela qual eu não queria dizer às pessoas que sofria de Parkinson. Se não conhecesse o problema que eu estava a enfrentar, o público não saberia que sintomas procurar e, assim, ainda me restava uma hipótese de o fazer rir. Mas se, mesmo antes de se sentarem na plateia ou de ligarem os televisores, já soubessem que eu estava a lutar com uma doença neurológica incurável, as pessoas ainda se deixariam levar pela ilusão ou, pelo contrário, pôr-se-iam à procura de sintomas e a ter pena de mim? A questão central era esta: uma pessoa doente poderá ser engraçada ou - para ser mais directo - será que podemos rir-nos de uma pessoa doente sem nos sentirmos uns estupores?Começava, porém, a tornar-se bem claro que continuar a comportar-me como fizera durante a primeira metade da época de 1998 só podia contribuir para a destruição do meu sentido do eu, que tanto me custara a conseguir. Ao logo dos últimos sete anos, eu passara por muitos altos e baixos e, por fim, decidira-me a enfrentar os meus medos. Tinha percorrido um longo caminho até conseguir fazer sair as minhas relações e os meus comportamentos dos compartimentos onde os encerrara, estabelecendo uma relação mais verdadeira entre o que sentia cá dentro e o que diziaou fazia. A distância que a doença criara entre mim e os que me eram queridos fora em grande parte reduzida. Mas que devia eu fazer quanto ao público? Até me sentir capaz de lhes contar a minha história, a minha vida não seria totalmente integrada e, por mais feliz que fosse em todos os outros aspectos - o casamento com a Tracy, a relação com as crianças e todas as minhas outras interacções com o mundo exterior - este último medo, enraizado na preocupação com a minha carreira, ou seja, com a minha relação com o público, impedia-me de ser totalmente livre.Lembro-me com grande nitidez das noites em que o público presente em estúdio tinha, sem o saber, de esperar que os meus sintomas abrandassem. Eu estava nos bastidores, estendido na carpete do meu camarim, a torcer-me e a rebolar, tentando convencer os meus neuroreceptores a aceitar e processar a L-dopa que gentilmente lhes fornecera. Quando essa abordagem falhava, enfeitava as paredes com buracos do tamanho dos meus punhos, os grafitti da minha frustração. Por quanto tempo mais podia isto continuar?Manhattan — Novembro de 1998Mal entrei no gabinete da Joyce, deixei-me cair no divã. Era sexta-feira de manhã, tinha que estar em cena nessa noite e começava a sentir o peso de uma semana de trabalho a esmagar-me todas as partes do corpo.— Ultimamente, tenho tido esta sensação — comecei. —Uma sensação que já não tinha havia anos: como se estivesse àespera que um raio me caísse em cima.A Joyce ficou calada, a olhar para mim, por alguns instantes. Em seguida, quando teve a certeza de que eu lhe estava a dar a máxima atenção, esboçou um sorriso e disse, suavemente, com simplicidade:— Michael, você tem a doença de Parkinson, o raio já lhecaiu em cima há muito tempo.Como se me tivessem dado um grande abraço, senti-me de imediato envolvido por uma onda de emoção. Os meus olhos ficaram rasos de água e as lágrimas mornas escorreram-me pela cara: não eram lágrimas de tristeza ou de autopiedade, mas lágrimas de alívio, de orgulho, de profunda gratidão. A Joyce tinha razão, o raio já caíra e eu sobrevivera. Não havia mais nada a temer. Quanto mais tempo mantivermos a doença em segredo, pior nos sentimos.Chegara a hora, eu estava preparado.ALADINO SAUDÁVELNova Iorque - 30 de Novembro de 1998 A fase um estava concluída. A revista People já tinha a história e, no preciso momento em que o último número desta publicação chegava às bancas, eu dava início à fase dois: voltar a contar a história, desta vez frente às câmaras da televisão.Era um plano muito simples - duas entrevistas, uma na imprensa escrita outra na televisão, a notícia era divulgada e eu podia continuar com a minha vida. Mas,

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mais do que qualquer outra pessoa, eu já devia saber que as coisas nunca acontecem como nós as planeamos. A People deu a notícia através da sua página na internet, na véspera do Dia de Acção de Graças, quase uma semana antes do previsto. A reacção ultrapassou tudo o que eu pudesse ter imaginado, a minha vida nunca mais voltaria a ser o que era e, para cúmulo - mais uma reviravolta surrealista - dei comigo no meio de uma discussão entre a minha mulher e a Barbara Walters.Discussão é capaz de ser uma palavra demasiado forte. Era mais um pequeno desacordo - sobre um casaco de cabedal. Cerca de uma semana antes, eu tivera um encontro com a Barbara Walters (e com o produtor dela) no seu apartamento, no East Side, para debater os parâmetros da entrevista que me propunha dar. Quando ia a sair, ela reparou que eu estava a ter dificuldade em vestir o casaco - estava com disquinésias e não conseguia enfiar o braço na manga. Ela perguntou se aquilo era um sintoma do Parkinson. Respondi que sim. De repente, a meio da gravação, aproveitando uma pausa para os operadores mudarem asbobinas, ela perguntou se eu estava disposto a despir o casaco e a voltar a vesti-lo em frente às câmaras, para mostrar o que eram as disquinésias.A Tracy opôs-se terminantemente e resolveu intervir. Achava que encenar uma demonstração desse tipo seria interpretado como uma tentativa de despertar a compaixão e a Tracy sabia que isso era a última coisa que eu desejava. A Barbara argumentou que verem-me a lutar com o casaco daria às pessoas uma imagem mais exacta dos sintomas de que eu padecia. Meti-me na conversa e expliquei que, de qualquer forma, não valia a pena discutir a questão. O Sinemet estava a começar a actuar naquele preciso momento e eu ia poder vestir e despir o casaco sem dificuldade. Não tinha qualquer problema em descrever esse sintoma específico para a câmara, desde que evitássemos o espectáculo ao vivo. A tensão desapareceu de imediato e a Barbara inclinou-se para dar um abraço à Tracy.— Você é um fulano com sorte, Michael. Ela gosta mesmode si.Como se eu não soubesse. Com que então, Tracy, a defender-me, mesmo correndo o risco de fazer frente à Barbara Walters!Quando voltámos para o estúdio, e antes de as câmaras começarem a rodar, a Barbara deu-me uma pancadinha no joelho.— Sabe, isto não é apenas curiosidade mórbida — disse. —As pessoas gostam realmente de si. Isto é uma aprendizagempara todos nós.Los Angeles - 19 de Novembro de 1998 Quando, por fim, tomei a decisão de partilhar a minha experiência do Parkinson, tinha um objectivo: fazer um relato honesto sobre a forma como, durante os últimos sete anos, tinha conseguido integrar a doença numa vida enriquecedora e produtiva. Para mim, era importante transmitir este optimismo, esta gratidão, esta perspectiva, mesmo uma certa capacidade para rir de alguns aspectos da vida com o Parkinson. Sou um verdadeiro crente na máxima do escritor de anedotas: comédia = tragédia +tempo. Encarava a revelação da doença como uma forma de seguir em frente com a minha vida e a minha carreira, não como uma obrigação ditada pela catástrofe.Isto não era a história do coitadinho, como a Tracy recordara à Barbara Walters; eu não queria que me lamentassem nem que chorassem por mim. Também não estava disposto a fazer o papel do herói relutante, que quebra um silêncio sofredor para tornar público o seu combate e dar a cara para os anúncios da «causa» do Parkinson. (Informara-me sobre as fundações existentes e, para ser franco, achara o panorama demasiado confuso para meu gosto.) Simplesmente, estava farto de esconder a verdade e, por fim, sentia-me preparado para a revelar nos meus próprios termos, na esperança de que as pessoas reagissem dentro do mesmo espírito.Em última instância, porém, tornar pública a doença seria o melhor teste para uma teoria que viera a desenvolver durante os últimos sete anos na selva. Lança-te para a frente e não te rales com os resultados. Isto soa bem e eu era realmente capaz de o dizer - mas seria capaz de o fazer? No momento em que o jornalista da revista People, o Todd Gold, puxou do bloco-notas e verificou se o gravador tinha pilhas, a última coisa que me apetecia era dizer fosse o que fosse. Mas fugir era impossível - por um lado, estava tão nervoso que as minhas

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pernas pareciam gelatina e, por outro, estava decidido a levar a minha avante e ia conseguir fazê-lo.A entrevista foi feita em Los Angeles, no escritório da Nanei Ryder, a minha agente de publicidade. Tinha ido a L. A. para informar os responsáveis da DreamWorks e da ABC da minha decisão: tinham-me dado apoio total e inequívoco. Quando a entrevista terminou, passadas duas horas, o bloco-notas e as cassetes do Todd estavam cheios - as gravações continham as minhas palavras e os gatafunhos em estenografia tinham registado o meu comportamento, os meus tiques, tremores e expressões faciais. Comecei a perceber o que acontecera: Meu Deus, o que foi que eu fiz? Não partilhara a minha história, tinha-a lançado ao vento. Deixara de ser minha.O Todd sabia, e eu estava a começar a perceber, que as minhas palavras seriam apenas uma parte do artigo que ele ia escrever a meu respeito. Por mais sinceros que fossem o meu optimismo e a minha abordagem filosófica da doença, a cobertura jornalística apresentaria, inevitavelmente, a realidade subjectiva da minha experiência com o Parkinson agregada à realidade objectiva da doença, com toda a sua crueldade destrutiva. Assim o exigiam as regras do bom jornalismo. Médicos, cientistas e, com toda a probabilidade, outros doentes, apresentariam um quadro sombrio desta doença incapacitante que atinge cerca de milhão e meio de americanos - e, de caminho, obrigar-me-iam a voltar a olhar para mim próprio. Quando, finalmente, o artigo do Todd apareceu nas páginas da revista People, fiquei a saber que nem sequer o Dr. Ropper, o meu neurologista, suavizara a minha situação quando, com minha autorização, falou com o repórter:O Dr. Ropper tem esperança que Michael J. Fox continue a estar operacional pelo menos durante mais dez anos e, talvez, mesmo até ser bastante idoso. Mas não pode afastar a pior hipótese, que é Michael J. Fox ser obrigado a deixar de trabalhar - e não se sabe se não irá precisar de fazer uma nova operação ao cérebro. «É uma doença neurológica extremamente grave», disse o Dr. Ropper. «Nos casos extremos, os doentes ficam presos a uma cama e totalmente dependentes.»Pensei nos meus filhos. Até ali, a Tracy e eu tínhamos conseguido enquadrar a doença: éramos os únicos a explicar-lhes o impacto potencial que ela teria nas suas vidas. Agora, iam também ficar a saber o que era o Parkinson através das reacções dos professores, colegas de turma e inúmeras outras pessoas, longe da segurança das nossas explicações tranquilizadoras. O génio saíra da lâmpada e não havia maneira de saber até que ponto ia crescer nem de avaliar o seu estado de espírito. Iria voltar-se contra mim, furioso por o ter mantido cativo durante tanto tempo?Fim-de-semana de Acção de Graças, Connecticut - 26 a 29 de Novembro de 1998Assim que a história apareceu na página web da People, foi um inferno. Estávamos a fazer as malas para ir passar aquele fim-de-semana de quatro dias com a família da Tracy, no campo, e não consegui sair da cidade a tempo. O telefone não parava de tocar. Demasiado nervoso para falar com quem quer que fosse, controlava frequentemente o voice mail para ouvir as mensagens dos amigos e familiares. Algumas delas, em especial as dos meus associados, como a Nanei Ryder, incluíam listas enormes de outras mensagens de editores de jornais e revistas, jornalistas da rádio e pivots de noticiários de televisão. Não sei bem porquê, a referência a um telefonema do Dan Rather teve o efeito de um soco no estômago. Seria ridículo sugerir que não estava à espera de despertar alguma atenção dos media, sobretudo da imprensa do mundo do espectáculo, mas nem por sombras tinha imaginado uma reacção de tamanhas proporções. Estavam a tratar-me como tema de uma notícia de primeira página. Dan Rather?Não foi preciso muito tempo para se tornar claro que eu era o grande acontecimento noticioso daquele fim-de-semana festivo. A revelação da minha doença era a notícia do dia em todos os noticiários das diferentes cadeias, havia actualizações de hora a hora nos canais por cabo e títulos garrafais nos jornais das grandes cidades dos Estados Unidos e do Canadá.Refugiado no Connecticut, fiz o melhor que pude para evitar a televisão e os jornais. Dizer que estava arrependido seria pecar por defeito - o meu arrependimento já atingira o grau superlativo e continuava a subir. Tinha a certeza absoluta de que não ia gostar de nenhuma das histórias a meu respeito. O meu maior receio era que me retratassem como uma figura trágica, uma vítima

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impotente. O rapaz-da-porta-ao-lado que, em tempos, fora vedeta da televisão, atacado por uma doença incurável, transformado num frágil objecto de compaixão. Pobre tipo. O tempo que a história durou foi outra provação. Perante os telefonemas que recebia dos amigos, o aumento da pilha de mensagens de várias pessoas que me desejavam as melhoras e as repercussões nosmedia de todo o mundo, percebi que, como se diz no mundo do espectáculo, a minha história tinha pernas para andar. Um dia depois, dois dias depois e, até, três dias depois, a notícia continuava a sair, sempre nas primeiras páginas ou a abrir os noticiários. Convenci-me de que as pessoas fugiriam a correr, quando voltassem a ver-me à sua frente. Depois daqueles panegíricos infindáveis, julgariam estar a ver um fantasma.No entanto, quando por fim molhei o pé na torrente tumultuosa das notícias, fiquei a saber que avaliara erradamente a situação. Ainda que alguns meios de comunicação (os suspeitos do costume) destacassem o ângulo piegas e sensacionalista, o tom da grande maioria das notícias era de uma surpresa marcada pelo respeito - e de preocupação. Nas entrevistas de rua, o público demonstrava uma empatia genuína e não compaixão, como eu temera, e fazia votos sinceros para que o problema fosse ultrapassado. Melhor ainda: a maioria das notícias que continuou a ser publicada centrava-se menos em mim e mais na própria doença de Parkinson: saíram artigos de fundo pormenorizados que descreviam a doença, entrevistas com médicos que explicavam como se chegava ao diagnóstico e ao prognóstico, e que enumeravam os vários tratamentos existentes. Um tópico de discussão recorrente era o até aqui pouco conhecido fenómeno do Parkinson Jovem. Os jornais locais e as delegações das televisões espalhadas pelo país entrevistavam doentes de todas as idades, dando-lhes oportunidade de falar sobre as suas experiências e as suas dificuldades sobre os seus medos e sobre a esperança no futuro. Cientistas e investigadores debateram descobertas potenciais e curas possíveis, num horizonte temporal não muito distante.Como vim a descobrir na última noite que passámos no Connecticut, eu despoletara, sem querer, um debate nacional sobre a doença de Parkinson. Na altura, ainda não me sentia capaz de ligar a televisão mas, ingenuamente, pensei que não havia problema em ver o correio electrónico. Errado - assim que a página de entrada da AOL apareceu no meu ecrã, lá estava o meu retrato, pendurado num título em movimento. Quase fiquei à espera de ouvir o guincho de robô do ElwoodEdwards a cumprimentar-me com um «Bem-vindo! Você tem Parkinson!»1Adiei a leitura do correio electrónico - havia demasiadas mensagens - e, em vez disso, comecei a dar a volta a alguns sites sobre Parkinson que consultara nos últimos meses. Um deles, em especial, chamou-me a atenção. Era um chat room em tempo real para doentes de Parkinson. Fiquei a rondar por ali, durante algum tempo, a «escutar» as conversas. Sem excepção, estes doentes estavam a anunciar a minha revelação uns aos outros e mostravam-se entusiasmados com a viragem na cobertura noticiosa, que passara do ângulo da estrela famosa para a comunidade de doentes. Alguns comentavam o impacto que esta atenção já começara a ter nas suas vidas.Lembro-me perfeitamente de uma pessoa ter escrito: «Fui ao mercado esta manhã e a caixa perguntou-me por que era que a minha mão estava a tremer. Disse-lhe que sofria de Parkinson e ela ficou muito interessada. 'Oh, como o Michael J. Fox.' Foi a primeira vez em muitos anos, que não me senti envergonhado.»Encorajado, liguei finalmente a televisão e, como não podia deixar de ser, lá estava eu. A MSNBC tinha passado os arquivos a pente fino, recuperara várias entrevistas para a televisão que cobriam toda a minha carreira e compilara-as sob a forma de uma biografia atamancada. Uma grande parte era em câmara lenta, o que lhe dava um ar sombrio: Este é o Michael J. Fox que outrora conhecemos. Como qualquer figura pública vos poderá dizer, quando a televisão começa a passar legendas a respeito de alguém em câmara lenta, essa pessoa está metida num sarilho -morreu, está doente ou foi condenada. Quase me parecia estar a ver o meu próprio elogio fúnebre.Mesmo assim, pela primeira vez em muitos dias, comecei a ter a sensação de que, afinal, tudo iria resolver-se. Claro que algumas pessoas iam encarar as notícias sobre a minha doença como o meu fim, mas eu começava a sentir que, no fundo, se

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1 Referência ao filme «Você tem uma mensagem» - em inglês, «You've got mail». (N. da T.)tratava na verdade de um começo. Estava pronto para voltar para Nova Iorque. Logo de manhã, tinha a entrevista com a Barbara Walters. Ia contar mais uma vez a minha história, arbitrar um diferendo sobre um casaco de cabedal e concordar com um aceno de cabeça quando a Barbara se inclinasse para dizer: «Sabe, isto é uma aprendizagem para todos nós.»DO ARMÁRIO PARA A SALA DE AULAPois bem, Barbara, não há dúvida de que foi uma experiência enriquecedora para mim. Na sequência daquele bendito Dia de Acção de Graças, aprendi grandes lições, tão educativas como os sete anos anteriores - as minhas aulas particulares sobre o Parkinson - e tornei-me mais humilde. Não há dúvida que precisara de todos os minutos daqueles sete anos para chegar a uma adaptação pessoal ao Parkinson, mas ainda bem que não adiei mais a partilha da minha história. Esperar mais teria sido privar-me daquilo que foi uma das experiências mais compensadoras -e mais educativas - da minha vida.Agora, os meus melhores professores pertenciam à própria comunidade das pessoas com doença de Parkinson. Viria a veri-ficar-se que a revelação do meu estado de saúde teve impacto sobre as suas vidas mas, mesmo antes disso, as suas histórias -coligidas daquilo que eu lera nos web sites sobre doença de Parkinson, subitamente tornados em centros de conversa - tiveram um impacto não menos profundo sobre a minha. Era como se estivesse a espreitar por uma janela e, para meu alívio e conforto, lá dentro houvesse luzes e pessoas - pessoas como eu.Na verdade, eram pessoas mais iguais a mim do que eu alguma vez pensara - para além do diagnóstico comum, para além das colecções idênticas de frascos de medicamentos que tínhamos nos armários dos remédios e das atribulações físicas que todos experimentávamos. Tal como eu, muitos dos doentes de Parkinson entravam no ciberespaço a partir da segurança bem protegida dos seus armários privados. Eu sempre pensara que omeu impulso para manter o meu diagnóstico como um segredo cuidadosamente oculto era motivado apenas pelo meu estatuto de celebridade. Em breve descobriria que um grande número de doentes de Parkinson, em especial os que se incluíam no grupo do Parkinson Jovem, também escondiam a doença dos outros. Cada um deles tinha as suas razões, mas havia alguns aspectos recorrentes. Encontrei-os em muitas cartas e e-mails que recebi, depois de ter revelado o meu segredo.O medo de ser marginalizado ou mal compreendido -estigmatizado - é uma preocupação que aparece frequentemente. Cari, um professor do ensino secundário do Texas, tinha quarenta anos quando me viu no noticiário local do meio-dia, naquele Dia de Acção de Graças de 1998. Embora o seu diagnóstico oficial só viesse a ser feito daí a duas semanas, não teve dúvidas de que os sintomas com os quais tinha vivido ao longo dos últimos dois anos eram quase iguais àqueles que eu estava a descrever. Escreveu a agradecer-me o meu «testemunho público», dizendo que este «tornara um pouco mais fácil a sua metamorfose». E acrescentava: «Mostrou que uma pessoa boa, inteligente e vigorosa pode vir a ter a doença de Parkinson; isto atenua o estigma da aberração que costuma aplicar-se aos doentes crónicos, em especial quando são novos.»Carol, uma jovem mãe de Nova Jérsia, doente de Parkinson e que, hoje, é uma defensora das pessoas com Parkinson, diz: «Durante cerca de quatro anos, andei a fingir que não tinha nada. Que não tinha quaisquer tremores. Não sei bem como, mas conseguia fazer isso. E sentia-me muito mal por ter que enganar as pessoas. Quando [você] resolveu falar e fez do Parkinson uma doença de que não temos que nos envergonhar, isso fez-me parar de fingir, fez-me deixar de me sentir atrapalhada perante a ideia de participar numa marcha para angariar fundos. Fez os meus filhos ver a doença como... não como normal, mas já não esquisita.»A perspectiva de serem consideradas esquisitas, anormais ou dignas de piedade basta para manter algumas pessoas dentro do armário. Outras, porém, têm uma preocupação ainda mais básica, que tem a ver com a sua sobrevivência e a das suas famílias. Os adultos jovens, muitos a começar a abrir caminho ou a acertar o passo na vida, com filhos e empréstimos para compra de casas, prestações do carro e objectivos de carreira ainda por concretizar, ficam aterrorizados

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perante a hipótese de o Parkinson os fazer perder o emprego e, muitas vezes, têm bons motivos para tal.«Algumas pessoas devem ter suores frios durante a noite, só de pensar se o dia seguinte será o seu último dia de trabalho», diz Greg, um advogado que conheci on-line, num site sobre a doença de Parkinson. Quando lhe foi diagnosticado o Parkinson Jovem, em Março de 1995, Greg trabalhava como redactor/editor de uma empresa fornecedora de informação jurídica. Na altura, tinha quarenta e três anos; hoje, está reformado por invalidez. «Eu costumava aconselhar as pessoas a informarem os patrões [sobre os diagnósticos que lhes eram feitos], porque o Americans with Disabilities Act1 (ADA) protege as pessoas com deficiência, 'privadas de actividade vital básica', como ser capaz de trabalhar», explicou-me recentemente o Greg.«Alegadamente, a pessoa está protegida, se informar o patrão e pedir ajustamentos. As palavras mágicas são: 'Eu tenho isto e preciso daquilo para fazer o meu trabalho.' Mas quando o patrão esgotou as adaptações razoáveis ou tentou fazer adaptações e achou que isso era demasiado difícil ou, simplesmente, se o patrão for um finório e quiser fazer trapaça - é sempre possível arranjar outro motivo para despedir o empregado. Os patrões começam a pensar: 'Quanto é que isto me vai custar?'»«Com ADA ou sem ADA», diz Greg, «uma coisa é a lei e outra o mundo real.»Como eu muito bem sabia, quando se é doente de Parkinson Jovem e se está preocupado com a hipótese de o facto de se falar abertamente da doença poder prejudicar ou mesmo destruir a nossa carreira, é uma grande tentação deixarmo-nos apanhar pela complicada rede do encobrimento. É uma via insidiosa: a doença em si é nossa cúmplice neste engano. A sua progressão é lenta,1 ADA - lei sobre as pessoas com deficiência. (N. da T.)os sintomas não se tornam imediatamente óbvios - e, seja como for, quem poderá estar à espera de os ver numa pessoa de quarenta anos? Exteriormente, a pessoa parece estar bem e continua a sua vida. O problema é que a pessoa não está bem, está a piorar e, por isso, deixa correr todo o tempo que puder antes de contar a alguém, acrescentando o terrível fardo do segredo ao já considerável peso da doença.A medida que ia conhecendo outros doentes de Parkinson, fui começando a formar uma imagem da comunidade da qual eu era agora membro de pleno direito. Fiquei a saber que éramos perto de um milhão e meio, mas a comunidade está dividida em dois grupos demográficos bem diferentes. Cerca de noventa por cento dos doentes de Parkinson são idosos em fins da casa dos sessenta, na casa dos setenta e mais velhos; muitos estão entrevados e vivem de rendimentos fixos - e não têm muita influência política. Os restantes dez por cento são os doentes de Parkinson Jovem, que poderiam constituir uma verdadeira força política, se não fosse o facto de muitos deles estarem ainda «clandestinos».Começava a perceber o motivo por que, até ali, a doença de Parkinson merecia tão pouca atenção pública e relativamente poucas verbas governamentais para investigação. Fiquei a saber que, em meados dos anos noventa, os National Institutes of Health1 gastavam uma média anual de 2.400 dólares por vítima em investigação sobre o HIV/SIDA, 200 dólares para o cancro da mama, 100 dólares para o cancro da próstata, 78 dólares para a doença de Alzheimer, 34 dólares para a doença de Parkinson e apenas 20 dólares para a diabetes e doenças das coronárias.No caso do Parkinson, a falta de financiamento era particularmente trágica por as oportunidades de investigação serem muito prometedoras. Em meados dos anos noventa, os cientistas estavam a investigar algumas pistas excitantes que apontavam para a descoberta de uma cura num futuro não muito distante. Uma das pistas mais importantes fora descoberta, ainda nos anos'NHI - Institutos Nacionais de Saúde. (N. da T.)oitenta, em São Francisco. Um médico chamado Bill Langston descobrira um composto químico, o MPTP, na heroína sintética, que provocava sintomas de tipo Parkinson avançado, em jovens drogados da zona da baía. (Langston escreveu um livro apaixonante sobre este fenómeno, chamado The Case of the Frozen Addicts.) A identificação de um agente que produzia sintomas de Parkinson abria uma série de vias de investigação prometedoras e deu aos cientistas a capacidade de

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induzir estes sintomas em cobaias de laboratório. «Essa identificação provocou um relançamento da investigação sobre o Parkinson», diz hoje o Dr. Langston. «E também despertou o interesse pela possibilidade de haver uma causa ambiental da doença.»Havia uma razão mais séria pela qual muitos cientistas encaravam a doença de Parkinson como uma área excitante de investigação neurológica. Segundo o Dr. Jeffrey Kurdower, professor de neurologia do Rush-Presbyterian-St. Luke Medicai Center, de Chicago, «das três doenças neurológicas degenerativas - Parkinson, Alzheimer e ELA (esclerose lateral amiotrófica ou Doença de Lou Gehrig) - pensamos que o Parkinson será a primeira barreira a ceder.«Conhecemos a patologia, que resulta da perda de células produtoras de dopamina e, ao contrário das outras doenças degenerativas, sabemos tratá-la bastante eficazmente, neste caso com dopamina sintética. Conhecemos a localização anatómica exacta onde ela ocorre e temos excelentes modelos animais. Estes são os três principais factores de uma investigação bem-sucedida.»«Na doença de Parkinson», disse o Dr. Langston, «a ciência tem estado bastante à frente do dinheiro.»Eu estava a chegar à conclusão de que a questão não era se o Parkinson podia ser curado, mas quando isso aconteceria. A resposta era: tão depressa quanto pudéssemos pagar os custos da investigação científica.Quando são debatidos os financiamentos federais para a investigação médica, parte-se do princípio de que se trata de um jogo de números. Todos os grupos de «interesses especiais», sejam eles em prol dos doentes com SIDA, cancro ou Parkinson, disputam entre si a fatia maior do bolo. Claro que aquilo que é preciso é simplesmente um bolo maior. Entretanto, porque é que alguns grupos de doentes conseguem mais do que outros? E porque é que os outros são excluídos, quando o dinheiro é distribuído? Em parte, a resposta tem a ver com o zelo e o empenho dos grupos de pressão e isso começa dentro das próprias comunidades de doentes.É esclarecedor estabelecer uma comparação entre o Parkinson e o HIV/SIDA, o grupo que recebe a maior parte das verbas governamentais para investigação. O activismo a favor dos doentes com SIDA, talvez o movimento melhor sucedido e mais inspirado de sempre em prol de uma acção do Governo federal para a cura de uma doença específica, encontrou os seus mais fortes porta-vozes na comunidade homossexual. Uma boa parte daqueles que se encontram em risco ou infectados são jovens, enérgicos, criativos e ricos e, por isso, conseguiram mobilizar-se de uma forma rápida e estratégica em apoio da sua causa. Apesar de alguns membros deste movimento se encontrarem, como os doentes de Parkinson Jovem, «no armário», a premência da situação compeliu muitos deles a revelar-se publicamente e um sistema de apoio mútuo no seio da comunidade facilitou essa transição. No entanto, os que sofrem de Parkinson Jovem, claramente o segmento da nossa comunidade melhor posicionado para se empenhar de forma enérgica na defesa e no activismo a favor dos doentes de Parkinson, têm-se mostrado, pelas razões que já apontei, relutantes em dar a cara e, ainda mais, em agir. Como o seu avanço é muito lento, a doença de Parkinson desincentiva o envolvimento, pelo menos nas fases iniciais, altura em que o doente mais teria para dar. Ainda relativamente pouco incapacitadas, muitas pessoas não conseguem ver o que as espera, até virarem a esquina e baterem contra a parede. (Sei isto pela minha experiência pessoal.) Em comparação, um diagnóstico de SIDA era, pelo menos até há bem pouco tempo, uma sentença de morte, que não deixava ao doente tempo para perder. Na realidade, os activistas da luta contra a SIDA levaram o rápido avanço da doença em consideração, na organização do seu movimento. Planearam a sua própria sucessão, de tal modo que, quando os dirigentes ficavam doentes, havia um novo porta-voz preparado para pegar no megafone. Foi uma resposta brilhante e eficaz a uma crise devastadora. Este grau de organização esteve praticamente ausente entre os que sofrem da doença de Parkinson.O Greg é um dos raros doentes de Parkinson Jovem envolvidos no lançamento do activismo em favor dos que sofrem desta doença. Lembra-se do dia em que ouviu dizer que eu anunciara publicamente o meu diagnóstico.— É um bocado embaraçoso falar disto, mas tenho que tedizer que a minha reacção foi "graças a Deus". De repente, a

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doença pela qual ninguém se interessava passou a ser a doençado momento. Surgiu um enorme interesse, entre o público e nacomunidade científica.E acrescentou:— Embora eu soubesse que só era uma boa notícia se tu utilizasses o teu tempo de uma forma sensata e se te envolvesses.Esse dia iria chegar. Eu não queria reagir de uma forma excessiva, por simples emoção; queria ponderar toda esta nova informação com muito cuidado. Adoptara uma posição um tanto taoista de encarar as coisas: se não tens bem a certeza do que vais fazer, não faças nada por enquanto; mais te será revelado.Tinham-me dado muita coisa em que pensar e uma das mais importantes era o facto de não ter sido o único a cumprir pena fechado no armário. E quanto mais pensava nisso melhor percebia que o meu armário pessoal tinha sido bem macio, confortável e seguro. A minha carreira, a minha posição no mundo e a minha situação financeira davam-me vantagens para enfrentar a doença, vantagens com que a maior parte dos outros doentes de Parkinson nem sequer sonhava. E, agora, depois de me ter identificado publicamente como uma pessoa que vivia com a doença de Parkinson, pouco havia que me impedisse de desempenhar um papel activo. Na verdade, encontrava-me na posição ideal para ocupar o espaço deixado por todos os doentes que tinham muito mais a perder se divulgassem a sua situação. Tinha muitoa agradecer e, agora, dispunha de uma oportunidade única de dar qualquer coisa em troca. Mas, ainda assim, se não tens bem a certeza do que vais fazer...Em finais de 1998, a minha secretária estava coberta de cartas com o logótipo de várias organizações de ajuda aos doentes de Parkinson de todo o país. De uma forma ou de outra, todas elas queriam a minha ajuda. Os nomes de alguns destes grupos pareciam indicar que tinham âmbito nacional mas, analisando melhor, verificava-se que se tratava de organizações locais ligadas a universidades, hospitais ou, mesmo, a determinados investigadores. Algumas não tinham de modo algum sido criadas com vista à investigação; dedicavam o seu tempo e os seus recursos às necessidades mais básicas dos doentes - grupos de prestação de cuidados, questões de qualidade de vida e outros aspectos merecedores de atenção.Era um panorama confuso e desencorajador e eu lancei-me no estudo dos diferentes actores, lendo a literatura por eles publicada e reunindo com eles sempre que possível. Em breve, comecei a perceber que um dos motivos por que a agenda do Parkinson não tinha sido posta em prática com um sentido de finalidade e de unidade tinha muito a ver com o carácter divisionário de muitos destes grupos, que se recusam a trabalhar em conjunto. O director de uma fundação que pretendia a minha ajuda foi mesmo ao ponto de dizer, textualmente: «Bem, se não nos quiser ajudar, pelo menos não os ajude a eles.»Comecei a ter a sensação de me encontrar num casting para o papel de «cabeça de cartaz», numa produção que não tinha pernas para entrar no horário nobre. Conhecia-me o suficiente para saber que, se e quando me envolvesse, teria que dar um contributo maior do que emprestar o meu nome a uma organização.Mas eu ainda não chegara a essa etapa. Ainda tinha um trabalho por acabar...A ÚLTIMA VOLTA1Nova Iorque - Dezembro de 1998Sexta-feira à noite. Dezanove horas, mais minuto menos minuto, se a minha alquimia tivesse sido correctamente programada e se o comprimido e o cérebro funcionassem bem em conjunto. Hora do espectáculo. O público em estúdio está acomodado nos seus lugares das bancadas e os actores estão nos bastidores, à espera das chamadas à cena. Um após outro, à medida que os seus nomes vão sendo anunciados, correm para o centro daquilo a que chamamos o curro dos bois - o palco do escritório principal de Cidade Louca- até chegarem à linha imaginária onde deveria estar a quartaparede. Recebem os aplausos do público, acenam, fazem véniasou, no caso dos homens, inclinam-se e, depois, fazem um movimento «direita volveo> e dão a volta, de regresso aos bastidores.Eu sou o último a sair e, em geral, executo o ritual do mesmomodo, mas paro por instantes para desejar boa sorte aos guionistas,

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que se acotovelam à volta do monitor do estúdio. Na altura em quevolto para junto de Barry Bostwick, Michael Boatman, Alan Ruck,Alexander Chaplin, Connie Britton, Victoria Dillard, RichardKind e do realizador Andy Cadiff, todos eles já estão lançadosnuma algazarra do estilo das que antecedem a representação, umaimitação parodiada de uma equipa universitária de futebol,incluindo palmadas nas costas, com todos à molhada e a gritar ohino da equipa - nada parecido com o formal VÃO-ATAQUEM-GA-NHEM - uma simples explosão ruidosa de palavrões ao acaso.íamos a meio da nossa terceira época e sempre tínhamos começado o espectáculo da noite desta maneira. Mas esta noite de sexta-feira não é igual a nenhuma outra. É a primeira vez que apareço perante o público em estúdio depois de ter revelado o meu estado de saúde e sei que aquilo que acontecer durante as próximas três horas será um teste para o resto da minha carreira- dure esta muito ou pouco. Os meus amigos do elenco percebem1 Trocadilho entre spin (volta) e o título da série Spin City (Cidade Louca), na qual o actor estava a trabalhar. (N. da T.)aquilo por que eu estou a passar e sinto que me apoiam. Embora um pouco menos barulhentos do que habitualmente, são ainda mais generosos nos abraços - e este grupo gosta de abraços.Quando o meu nome é anunciado, corro para o centro do curro dos bois mas, desta vez, não paro nem aceno, nem faço a «direita volver» para regressar aos bastidores. Continuo a andar, através da quarta parede, em direcção às bancadas. Com a ajuda de um dos operadores de câmara, salto por cima da balaustrada. Agora, estou no meio do público, praticamente em cima dos dedos dos pés das pessoas da primeira fila. Preciso de estar bem perto. Preciso que eles vejam que estou bem.E mais: sinto que também preciso de lhes dar autorização para rir. Por isso digo olá, conto meia dúzia de piadas e pergunto se alguém tem perguntas a fazer. Uma rapariga faz a sua, de um modo simples:— Como é que se sente?— Melhor do que pareço — respondo rapidamente, com um sorriso. — E não sei qual é a sua opinião, mas eu acho que sou bastante giro.Regista-se uma pausa breve e, depois, graças a Deus, uma onda de gargalhadas calorosas. Isto é capaz de correr bem.Minutos mais tarde, as câmaras estão a postos e nós começamos a representar a cena inicial do episódio. Em geral, fazemos a mesma cena duas vezes, por uma questão de segurança e, em regra, as gargalhadas são sempre mais fortes durante o primeiro take; no segundo take, o público já sabe quais são as piadas e quando vão ser ditas.Esta noite é uma excepção. A reacção é muito maior da segunda vez, apesar de o desempenho ser praticamente igual. O primeiro take confirmou os meus piores receios. O público estava a apalpar terreno, sem saber o que podia esperar, a olhar para mim e não para o meu desempenho. Mas, graças a Deus, o take dois afastou esses receios. Depois da hesitação inicial, as gargalhadas mostraram que o público era capaz de distinguir a minha situação do meu trabalho. Enquanto aquilo que eu fazia fosse engraçado, as pessoas estavam preparadas para rir.Aquilo que me aguardava no estúdio, naquela noite, era idêntico à reacção geral à minha revelação, uma reacção que, sem excepções, foi generosa, empática e de preocupação. Na verdade, não sabia o que esperar e não era possível prever nem preparar-me para o caudal de apoios que recebi - houve alturas em que o senti como se fosse um abraço. O meu medo de passar, a partir de então e para sempre, a ser definido pela minha doença desapareceu por completo. Era uma dádiva sem esperar nada em troca. Senti que o amor e as orações das pessoas me enriqueciam e ninguém me pedia que os pagasse com a minha identidade ou com a minha dignidade. As pessoas reconheciam que eu continuava a ser eu, apenas eu com Parkinson. Foi a dádiva mais generosa que alguma vez recebi.Depois de todos os anos passados a fazer Quem Sai aos Seus e os meus muitos papéis em filmes, em especial na trilogia Regresso ao Futuro, estava habituado a ser abordado pelas pessoas com variações do tema Parece-me que cresci consigo. Sempre experimentei um sentimento de apreço e de gratidão para com essas

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pessoas, que eram, afinal, o meu público. Uma parte considerável das coisas boas da minha vida tinha acontecido devido ao seu apoio. A minha forma de encarar isto fora sempre como uma transacção respeitável e com benefícios mútuos. Mas o tsunami de boa-vontade que agora se abatia sobre mim desmascarou o engano que esta ideia de uma troca directa ou comercial representava. Percebi que, em tudo isto, havia qualquer coisa mais profunda, uma relação intensa. Eu também tinha crescido com eles e, agora, eles estavam a dizer-me que tencionavam continuar ao meu lado.Também tive notícias de outras pessoas, incluindo figuras públicas a quem tinha sido diagnosticado Parkinson. Billy Graham e Janet Reno escreveram-me e também recebi uma mensagem telefónica de Muhammad Ali. Não sei porquê, mas respondi a essa mensagem do telefone da casa de banho. O espelho devolvia-me a imagem dos meus olhos rasos de água, enquanto ele dizia, num murmúrio: «Lamento que tenha isto mas, agora, com nós os dois nesta luta, vamos vencer.»E havia ainda as pessoas que encontrava na rua, em Nova Iorque, quando ia às compras ou levar os meus filhos à escola. Nas semanas que se seguiram ao meu anúncio público, tive dúzias de encontros com estranhos, alguns dos quais evoluíram num sentido bastante curioso. Muitas pessoas abordavam-me, motivadas pela simpatia ou mesmo pela piedade, uma coisa que, pelo menos até começar a percebê-la, me deixava pouco à-vontade. Essas pessoas lamentavam-me, talvez porque, para elas, a notícia do meu diagnóstico era recente. Tendo vivido com essa «notícia» ao longo de sete anos, eu esgotara o desgosto e já não tinha paciência para o aturar. No entanto, ao fim de algum tempo, passei a compreender melhor esses encontros. Quando vinham ter comigo, sentia que os olhos dessas pessoas procuravam os meus, em busca de um sinal de medo. Não o vendo, aqueles que me queriam consolar acabavam, penso eu, por ver sim o reflexo do seu próprio medo e, por vezes, choravam. A doença é uma coisa assustadora e, lá bem no fundo, ou talvez não tanto no fundo como isso, todos nós nos interrogamos sobre se nos poderá acontecer o mesmo e sobre como conseguiríamos lidar com isso, caso acontecesse. Muitas vezes, acabei por ser eu a consolar e abraçar as pessoas que queriam consolar-me e, antes de nos despedirmos, dei comigo a tranquilizá-las, dizendo-lhes que ia correr tudo bem com elas.Em períodos difíceis ou de perdas pessoais, já todos nós ouvimos alguém dizer-nos que ia «rezar por nós». Sempre pensei que se tratava de uma frase feita, até sentir o poder desse sentimento, quando nos é oferecido por dezenas de milhares de pessoas que querem dizer isso mesmo. É um sentimento esmagador; não duvido que ser o destinatário final de tamanha energia espiritual contribuiu em muito para me dar forças ao longo dos últimos anos. Deixei de subestimar o poder da oração.E, segundo parece, o mesmo se passa com alguns cientistas. Recentemente, li um artigo sobre uma experiência, durante a qual investigadores da Columbia University testaram o poder da oração para ajudar mulheres com problemas de fertilidade a conceber. Foi pedido a um grupo de pessoas desconhecidas, membros de vários credos religiosos diferentes da América, que rezasse por um grupo de mulheres em tratamento numa clínica de fertilidade da Coreia, que não tinha conhecimento da experiência. Mas, no mesmo período, não foram pedidas orações por um outro grupo de controlo, na mesma clínica. No fim do estudo, cinquenta por cento das mulheres pelas quais muitos desconhecidos tinham rezado engravidaram, enquanto apenas vinte e seis por cento das mulheres pertencentes ao grupo de controlo conceberam. O resultado foi exactamente o oposto àquele que os investigadores esperavam - estes afirmaram que a sua intenção tinha sido provar a falta de eficácia da oração.A reacção à divulgação do meu estado de saúde permitiu-me voltar à minha rotina habitual com um sentimento renovado de liberdade. Embora continuasse a esforçar-me por parecer tranquilo no meu trabalho - a verdade era que Mike Flaherty não sofria de Parkinson - deixei de sentir a pressão que era esconder os sintomas durante o resto do tempo. Agora, podia escolher o local e a hora de recorrer à medicação e fazê-lo para me sentir mais confortável, não como camuflagem.Sem sequer me dar conta, todo o sistema de gestão dos sintomas mudou. Comecei a perceber que ficar «desligado» em público só era um problema se isso me perturbasse - se me impedisse de fazer qualquer coisa que eu quisesse fazer.

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Caso contrário, ficar «desligado» passou a ter o estatuto de um mero desconforto. Os tremores, o arrastar dos pés e as disquinésias podiam atrair sobre mim segundos olhares das pessoas mas, que diabo, eu era o tal fulano da televisão. Estava habituado a que as pessoas olhassem insistentemente para mim. Portanto, não tinha importância se, agora, o segundo olhar queria dizer «ah, pois é, ouvi dizer que ele tinha Parkinson».Uma noite, alguns meses depois de ter revelado a minha doença, a Tracy e eu fomos a uma sessão para angariação de fundos, em Nova Iorque, uma dessas galas com muitos discursos, um leilão de caridade e, para acabar em beleza, um nome sonante do mundo da música - neste caso, os The Who. Durante a primeira parte do serão, ou seja, os discursos e a angariação defundos, as luzes do salão de banquete estavam todas acesas e, sob elas, na mesa número seis, estava eu, com uma invulgar manifestação dos meus sintomas. Talvez tivesse alguma coisa a ver com os aperitivos de salmão - por vezes, ingerir demasiadas proteínas interfere com o Sinemet. Rígido ao ponto de quase parecer uma estátua, não fora a agitação persistente do meu braço direito, tinha consciência de que muitos dos convivas das mesas à nossa volta não conseguiam desviar os olhos de mim. Isso não me incomodava nada, embora tenha redobrado os cuidados durante a fase do leilão - num leilão, ter Parkinson pode sair bastante dispendioso.— Só espero que os comprimidos façam efeito, quando os The Who começarem a tocar — disse eu à Tracy. — Apetece-me descontrair-me e apreciar a música.Era isto o que mais me preocupava. Apercebi-me de que houvera uma viragem de 180 graus na minha maneira de encarar o problema, só possível por eu ter deixado que os outros soubessem da minha doença. Um ano antes, teria encarado a situação de uma forma diametralmente oposta. Se conseguir aguentar-me agora, para ninguém reparar, teria dito a mim mesmo, não me importa como vou sentir-me quando as luzes se apagarem e começar o espectáculo. A revelação permitira-me organizar a minha vida, de modo a aproveitá-la melhor. Claro que, quando as luzes se apagaram, o Pete Townshend rodopiou e o Roger Daltrey gritou, senti os bem-vindos espasmos na minha perna esquerda - oh, linda... adoro quando a droga começa a trepar.Não ter que ocultar a doença permitia-me ajustar as minhas responsabilidades e acabar a época 1998-1999 de Cidade Louca foi bastante mais fácil do que teria sido, se eu tivesse continuado fechado no armário. Mas a doença era indiferente ao facto de as pessoas saberem ou não saberem e os sintomas continuaram a piorar constantemente. Mesmo sem o fardo de tentar manter as aparências, a pressão do trabalho continuava a ser considerável e, em começos de Abril, quando a série foi interrompida e fomos todos de férias, era óbvio que eu estava em pior forma do que quando começáramos a produção, em Agosto do ano anterior.Para preparar a época seguinte, fizemos algumas alterações, na esperança de tornar mais leve o meu trabalho. Uma delas foi ideia do Gary. Eu e ele tínhamos resolvido as nossas divergências - o Gary telefonara para me manifestar o seu apoio, pouco depois dos acontecimentos do Dia de Acção de Graças.— Não há nada que te obrigue a fazeres o espectáculo dassextas-feiras à noite — disse ele. — Porque é que não filmasantes às terças-feiras? Assim, ficavas com dois belos dias de descanso, no meio da semana de trabalho.Em Junho, como de costume, reunimos os produtores e os guionistas, para discutir as nossas ideias para a época seguinte da história. Os guionistas desenvolveriam essas ideias durante os meses de Verão e, quando voltássemos ao trabalho, em Agosto, estas teriam sido passadas ao papel. Foi numa dessas reuniões que sugeri a inclusão de um novo membro no elenco, alguém com alguma notoriedade, que pudesse tirar uma parte da pressão de cima de mim. A minha associada, Danelle Black, propôs a Heather Locklear, a mulher fatal de Dinastia e Melrose Place. Alguns anos atrás, a Tracy e eu tínhamos estado na mesma mesa que Heather e o marido, o guitarrista dos Bon Joví, Richie Sambora, nos Globos de Ouro, e eu lembrava-me deles como companheiros de jantar divertidos e descontraídos. Passáramos uma boa parte da noite a brincar um com o outro, dizendo que aquela mesa era a mesa dos «vencidos», porque, nesse ano, embora Heather e eu tivéssemos sido nomeados, nenhum de nós recebeu nenhuma estátua.

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— Para nós, ela pode ser uma boa aposta — disse eu aosguionistas de Cidade Louca.Era verdade que Heather nunca fizera uma sitcom, mas eu pensava que ela não iria ter nenhum problema em fazer uma comédia. Afinal, Melrose Place e Dinastia eram séries pouco sofisticadas; uma e outra estavam apenas a uma gargalhada de distância das sitcoms. Assim, a proposta foi feita e ficámos muito contentes quando ela a aceitou. A ideia foi boa e, em meu entender, acabou por garantir o futuro da série.No entanto, mesmo com a entrada de Heather, que passou aocupar-se de boa parte da acção e do trabalho publicitário que, dantes, recaía sobre mim, logo no princípio desse Outono percebi que os meus dias como actor de uma série televisiva semanal estavam a chegar ao fim. Por mais concessões que fizesse à doença - menos dias de trabalho, menos tempo de ensaios, delegando noutros cada vez mais tarefas secundárias - estas nunca eram suficientes. A doença cada vez exigia mais de mim. Ainda era capaz de fazer o meu trabalho, mas concluí que a maior parte do tempo em que não estava no estúdio era, agora, passada a descansar, a preparar-me para saltar a barreira do episódio seguinte. Mais que nunca, a energia que gastava para desempenhar bem o meu trabalho roubava-me a oportunidade de dedicar tempo aos outros interesses da minha vida. Não sobrava muito para a minha família e para aquilo que estava a tornar-se um envolvimento crescente no movimento em defesa dos doentes de Parkinson.Ilhas Virgens, EUA - 31 de Dezembro de 1999 Quem tenha lido este livro até aqui poderá concluir que todas as manifestações divinas que se deram na minha vida tiveram por cenário uma praia ou as proximidades de uma praia. Pois bem: cá vai mais uma. A Tracy e eu estávamos a fazer mergulho com Sam, enquanto Aquinnah e Schuyler brincavam com uns amigos perto da água. Era um fim de tarde, a melhor altura, segundo nos tinham dito, para ver tartarugas marinhas. Eu tinha dúvidas. Havia três anos que, nas férias de Inverno, vínhamos para aquela estância balnear e ainda não vira nenhuma. Mas, desta vez, mesmo à minha frente, na água azul esverdeada, o Sam apontava, muito excitado. Em seguida, a cabeça dele desapareceu sob a superfície. A Tracy e eu fomos ter com ele. «Viram?», perguntou, em tom veemente. «É uma das grandes.»Voltámos a mergulhar os três, mesmo a tempo de ver uma tartaruga marinha afastar-se do fundo arenoso onde estivera a descansar, deixando atrás de si uma nuvem de areia fina e branca. Mantendo uma distância respeitosa, nadámos atrás dela, enquanto o animal mordiscava as fiadas de algas do recife decoral. Contentes por, finalmente, terem podido observar bem uma daquelas criaturas ariscas, a Tracy e o Sam voltaram para terra. Mas eu sentia-me hipnotizado.Enquanto eu e a tartaruga continuávamos a nadar um atrás do outro, a tartaruga a tentar ignorar-me e eu a tentar não ser uma ameaça, lembrei-me dos documentários que tinha visto quando era miúdo: centenas de tartarugas bebés, correndo para a segurança do oceano, enquanto as aves marinhas desciam em voo picado, apanhando-as uma a uma. Poucas sobrevivem. E isto é apenas o começo das provações de qualquer tartaruga. Reparei que aquela não tinha um bom pedaço da barbatana traseira do lado esquerdo. Que idade teria? Era obviamente um animal adulto. Por que guerras teria passado?Deixa-a em paz, pensei. Ela conquistou o direito a ser deixada em paz. E voltei para terra. Quando cheguei à praia, a Tracy estava deitada na toalha, a ler um livro. Docemente, tirei-lhe o livro da mão, humedecendo as páginas com os dedos molhados e salgados.— Acabou-se — disse eu.— Está bem, querido — respondeu ela. — Porque é que não te secas um bocadinho, enquanto eu leio mais umas páginas? Depois, arranjamos os miúdos e jantamos.— Estou a falar da série. Para mim, a série acabou. Venho-me embora no fim da época."Sessão Anual dos Prémios Emmy - Shrine Auditorium Los Angeles - 10 de Setembro de 2000Depois de quatro épocas e cem episódios a fazer o papel de Mike Flaherty, em Cidade Louca, esta era a minha quarta nomeação por esse papel. Nos três anos anteriores, tinha ido para casa de mãos a abanar, mas a Tracy e eu nunca

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tínhamos deixado de nos divertir nos Emmys. Era uma boa desculpa para uma das nossas raras escapadas românticas de fim-de-semana; instalávamo-nos no nosso hotel preferido de L. A., passávamos os dias deitados à beira da piscina no telhado e íamos jantar a um ou dois bons restaurantes. Era também uma oportunidade para vermos os amigos que tínhamos deixado para trás, quando nos mudáramos para Nova Iorque.Ganhando ou não, a cerimónia dos Emmys era sempre uma festa e isso foi especialmente verdadeiro neste ano. O último episódio de Cidade Louca em que participei foi para o ar a 23 de Maio de 2000, apesar de eu ter anunciado o meu afastamento em Janeiro, pouco depois de termos voltado das Caraíbas. Como não tinha a certeza do que a minha saída poderia significar para o futuro da série, queria avisar o elenco e a equipa técnica com antecedência suficiente, para o caso de eles terem que procurar trabalho ou que reinstalar as respectivas famílias. Quando o episódio de despedida foi transmitido, fiquei mais uma vez esmagado pela reacção do público. Nessa noite, um terço da audiência televisiva assistiu ao meu último episódio.Melhor ainda: afinal, a série ia poder continuar. Gary Goldberg aceitou voltar a ser o produtor executivo, desde que a rodagem da série fosse transferida para a Costa Ocidental. Heather e a maior parte do elenco também iam voltar e Charlie Sheen ia ser o novo presidente da câmara adjunto. Tive pena da equipa de Nova Iorque, cujos membros iam ter que procurar emprego, mas fiquei encantado por causa do elenco e da escolha de Charlie, que, além de ser um actor de talento, era também um velho amigo. Por outro lado, a continuação da série era uma coisa boa para mim, porque tinha interesses financeiros nela. Ia poder ver o Charlie fazer o meu antigo papel e, ainda por cima, ser pago por isso. Deus abençoe a América.O que tornou aquele fim-de-semana dos Emmys verdadeiramente especial teve mais a ver com a Tracy do que comigo. No princípio do ano, como artista convidada, ela tivera um desempenho magistral e comovedor, no papel de uma vítima de violação, em Law and Order: SVU, que lhe valeu a sua primeira e bem merecida nomeação para um Emmy. Os prémios nas categorias de artistas convidados já tinham sido entregues na semana anterior e, infelizmente, a Tracy não ganhou mas, durante a cerimónia, foi apresentado um clip do trabalho dela e dos outros nomeados. Foi perfeito termos partilhado o serão deste modo.Durante todo o nosso casamento, o ritmo da minha carreira e, depois, a minha doença, tinham representado uma enorme pressão para as aspirações da Tracy como actriz e este reconhecimento pelos seus pares era-lhe por demais devido.Seria pouco sincero da minha parte dizer que fiquei surpreendido, ao ouvir Gillian Anderson chamar o meu nome para ir receber o prémio como actor principal de uma série cómica. Embora me sentisse orgulhoso do trabalho que fizera naquela época, seria preciso eu estar mergulhado numa atitude de profunda rejeição para não reconhecer que era o favorito, do ponto de vista sentimental. Mas, sinceramente, era na Tracy que eu estava a pensar quando subi ao pódio. Sempre fizéramos questão de não sermos um desses casais espalhafatosos de Hollywood; dávamos grande valor à intimidade da nossa relação e defendíamo-la mas, desta vez, não pude deixar de me manifestar. A maior parte do meu discurso de agradecimento foi preenchido com expressões de admiração, gratidão e amor pela minha mulher.Foi um grande momento e entreguei-me a ele de alma e coração. Se tivesse tido um pouco de tempo para reflectir sobre isso, talvez tivesse pensado que, hoje, era uma pessoa bem diferente do jovem - do rapaz - que, quinze anos antes, se apresentara perante aquele público para receber aquele prémio. Deslumbrado e inseguro, a piada que dissera acerca de mim próprio - «sinto-me como se tivesse quatro palmos de altura» -reflectia, muito mais do que me apercebi na época, aquilo que eu então era. E embora, desta vez, não o tivesse dito, não podia haver melhor maneira de destacar a evolução que tinha conseguido alcançar desde essa outra noite longínqua do que dizer, simplesmente: «Sinto-me como se tivesse cinco palmos e meio de altura.»Nem mais, nem menos: é precisamente esta a minha altura1.'«Cinco pés e meio de altura» no original (ou seja, 1,65 metros). Para respeitar o sentido irónico da frase, traduziu-se «pés» por «palmos» (N. da T.)

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REGRESSO AO FUTUROE esta a verdadeira alegria da vida: sermos utilizados para um fim que nós mesmos reconhecemos como heróico; sermos completamente consumidos antes de sermos postos de lado; sermos uma força da natureza e não um insignificante amontoado febril e egoísta de padecimentos e agravos, a queixar-se por o mundo não se dedicar a fazê-lo feliz.George Bernard ShawSessão do Senate Appropriations Subcommittee\ Washington D.C. - 28 de Setembro de 1999O cenário não podia ser mais intimidante: uma dessas salas de audiências do Senado que vimos inúmeras vezes na televisão, onde a pessoa que presta declarações acaba invariavelmente por tapar o microfone e por se inclinar, para ouvir os conselhos sussurrados do seu advogado. Agora, essa testemunha sou eu, à espera de prestar declarações perante uma subcomissão do Senado. Dezenas de lâmpadas de flashes piscam à minha frente, cegando-me momentaneamente. Não estou aqui por me encontrar em apuros. Ou melhor, estou - eu e mais cerca de um milhão e meio de outras pessoas que sofrem de Parkinson, em nome das quais vou falar - em sérios apuros, embora de um tipo mais grave do que aqueles que qualquer grupo de senadores alguma vez poderá provocar. Contudo, estes senadores podem ajudar-nos a sair desses apuros e foi por isso que vim a Washington. Em questão está o financiamento federal para a investigação sobre a doença de Parkinson, que, conforme eu disse à subcomissão, é inadequado e sem qualquer relação com os montantes destinados a outras áreas da investigação médica. O subfinanciamento da investigação sobre a doença de Parkinson, digo eu aos senadores, representa a perda de uma oportunidade ideal, dada a situação actual da ciência e a perspectiva bem real de cura. Os cientistas que depõem a seguir a mim declaram que a cura serápossível dentro de dez anos mas só se, para tal, for feito um investimento financeiro suficiente.A minha presença nesta audiência assinala um passo pessoal importante. Já há quase um ano que revelei que sofro de Parkinson, mas esta é a primeira vez que assumo uma posição pública de apoio a esta causa. Se não tens bem a certeza do que que vais fazer, não faças nada por enquanto; mais te será revelado. Bem, agora, fora-me revelado mais: o facto de que a minha presença nesta audiência poderia alterar as coisas. Pelo menos foi o que me disse Joan Samuelson, fundadora e directora da Parkinson 's Action Network (PAN), para me convencer a ir a Washington. Joan estava a organizar um painel, integrando cientistas e doentes, para pedir ao Congresso que atribuísse mais dinheiro ao National Institute of Neurological Disorders and Stroke\Joan é uma advogada do norte da Califórnia a quem foi diagnosticada a doença de Parkinson, em finais dos anos oitenta, quando ela tinha trinta e sete anos. Continuou a sua carreira de advogada até 1991, quando os democratas do Congresso lançaram uma acção destinada a levantar a proibição da administração Bush de atribuição de financiamentos federais para a investigação sobre tecidos fetais. (Os cientistas queriam determinar se as células cerebrais saudáveis de fetos que iam ser deitados fora poderiam ser transplantadas para os cérebros de pessoas com doença de Parkinson; os activistas antiaborto convenceram a Administração Bush a proibir este estudo.) Desiludida com a inacção das diversas fundações nacionais de defesa dos doentes de Parkinson, Joan mudou-se para Washington e começou a fazer lobby. Os seus esforços e os de Arme Udall, filha do falecido congressista Mo Udall (que era doente de Parkinson), constituíram um contributo importante para o levantamento da proibição, em 1992. Desde então, Joan continuou a ser uma das principais figuras do movimento de defesa dos doentes1 Subcomissão de Finanças do Senado. (N. da T.)'Instituto Nacional das Perturbações Neurológicas e AVC. (N. da T.)de Parkinson, fundando a PAN e tornando-se uma verdadeira heroína do movimento.Depois da audiência, o nosso pequeno grupo de doentes e cientistas iniciou uma ronda pelos gabinetes dos vários senadores e congressistas. Reunimo-nos com o congressista Bill Young, presidente da comissão de finanças da Câmara dos Representantes, com o congressista Jerry Lewis, presidente da subcomissão de finanças da Defesa, e, do lado do Senado, com o (então) líder da maioria, Trent

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Lott (e com uns doze senadores republicanos que ele reuniu no seu gabinete), e com o senador Arlen Specter, presidente da subcomissão de finanças do Senado, responsável pelos NIH. Toda a gente nos concedeu bastante tempo e nos ouviu com todo o respeito. E, embora os senadores não tenham concedido novos financiamentos, os dois congressistas presidentes das comissões da Câmara dos Representantes acabaram por emitir directivas específicas que resultaram num maior financiamento para a investigação sobre a doença de Parkinson.Quando saímos dos corredores do poder, Joan e eu devíamos parecer dois marinheiros bêbedos; os acontecimentos trepidantes do dia levaram ao rubro os nossos sintomas e estávamos os dois um pouco oscilantes. Mas, além disso, Joan tinha mais qualquer coisa a perturbá-la - reparei que ela estava a reprimir as lágrimas.— O que é que se passa? — perguntei, confuso. — Pensei que nos tínhamos saído bastante bem.— Oh, essa parte foi óptima — disse ela. — É só porque tem sido sempre tão difícil conseguir que alguém nos oiça, quanto mais convidar-nos a entrar nos seus gabinetes. — A sorrir, acrescentou: — Isto é completamente novo.Vários noticiários televisivos dessa noite transmitiram imagens do meu testemunho. Uma das frases da declaração que eu tinha preparado mereceu um destaque especial: «Aos quarenta anos, tenho pela frente desafios que a maior parte das pessoas não terá que enfrentar antes dos setenta ou oitenta anos ou que não enfrentará nunca. Mas, com a vossa ajuda, se fizermos tudo quanto está ao nosso alcance para erradicar esta doença, quando tivercinquenta anos poderei dançar no casamento dos meus filhos.» Deliberadamente, tinha optado por me apresentar sem medicação perante a subcomissão. Parecera-me que a ocasião exigia que o meu testemunho sobre os efeitos da doença e sobre a necessidade que a nossa comunidade sentia de uma acção urgente fosse vista e não apenas ouvida. Para as pessoas que nunca me tinham visto naquele estado, a transformação deve ter sido um choque.Horas mais tarde, nesse mesmo dia, quando finalmente pude ver a transmissão integral da audiência no C-SPAN, também eu fiquei abalado, embora por causa de uma transformação de um tipo completamente diferente. Claro que os sintomas eram graves - parecia que um brutamontes invisível estava a abanar-me enquanto eu lia a minha declaração. A minha cabeça balanceava, desequilibrando-me os óculos, como se estivessem a bater-me na nuca. Procurava não deixar cair as páginas do discurso, com os braços a tremer, como se alguém estivesse a tentar tirar-me os papéis das mãos. Mas não vacilei nem por um instante. Vi nos meus olhos um sentido de finalidade, firme e controlado, que nunca, antes, tinha visto em mim. Ironicamente, embora tremesse que nem uma folha batida pelo vento, havia firmeza em mim. Nunca fui capaz de ficar tão quieto até me ser impossível manter-me quieto. O brutamontes atacava por todos os lados, mesmo de dentro do meu próprio corpo, mas eu não estava disposto a ceder nem a ser impedido de fazer aquilo que viera fazer.Em vez disso, pronunciei um desafio que assumiu a forma de promessa: «O tempo da instrução militar chegou ao fim. A guerra contra o Parkinson é uma guerra que pode ser ganha e eu decidi ter um papel nessa vitória.»LEVAR UMA TAREFA A BOM TERMONos últimos anos, passei do falar com o meu agente pelo telefone celular para discutir biologia celular com alguns dos melhores cientistas do planeta. É um mundo completamente diferente. Quando estou com os meus pares do mundo do espectáculo, posso, pelo menos, fingir que sou um dos mais espertos. Num grupo de neurologistas, só posso tentar ouvir atentamente e tomar inúmeras notas.Muitas vezes, as pessoas consideram que as minhas actividades de activista e o trabalho que faço na fundação que criei depois de sair de Cidade Louca são o meu novo emprego. Talvez seja, mas não é esta a palavra que mais facilmente me vem à ideia. Nos últimos tempos, tenho muitas tarefas; muitas delas não são exclusivamente minhas e são poucas ou nenhumas as que se enquadram num horário das 9 às 5. O meu emprego é aquilo que faço num determinado momento - quer se trate de fazer um discurso, mudar uma fralda, escrever um livro ou dobrar a voz de um rato criado por computador. O trabalho na fundação passou, porém, a ser a

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minha paixão, na qual invisto todos os recursos, internos e externos, que tenho à minha disposição.Durante a entrevista de candidatura ao cargo de director executivo da Michael J. Fox Foundation for Parkinson's Research1, expliquei à Debi Brooks que o objectivo da nossa instituição era nada menos que o envelhecimento planificado. Aquilo que eu tinha em mente era uma organização criada para obter resultados rápidos, fugindo à burocracia e adoptando uma abordagem empresarial com vista a ajudar os investigadores a fazerem aquilo que eles dizem que pode ser feito: descobrir uma cura para a doença de Parkinson no prazo de uma década. Neste aspecto, o nosso optimismo só encontra paralelo na nossa impaciência.— Lembro-me — recorda Debi, de quarenta e dois anos, ex-vice-presidente da Goldman Sachs — de me teres avisado que, se alguma vez desses comigo a programar o Décimo Jantar Anual para Angariação de Fundos, podia considerar-me despedida.Não havia um modelo para a concretização daquilo que nós queríamos. Debi e os membros do conselho de administração (um grupo de pessoas extraordinárias pertencentes não apenas ao meu mundo, o mundo do espectáculo, mas também ao de Debi,' Fundação Michael J.Fox para a Investigação sobre a Doença de Parkinson. (N. da T.)a comunidade financeira de Nova Iorque) enfrentaram o desafio de inventar um sistema capaz de identificar os investigadores que estavam a realizar o melhor trabalho e, em seguida, fazer-lhes chegar dinheiro às mãos o mais rapidamente possível.Desde sempre que o trabalho de investigação médica e o financiamento dessa investigação avançam a passo de caracol. Vejamos um exemplo: os National Institutes of Health demoram quase um ano a conceder subvenções para as candidaturas que lhe são apresentadas. Na nossa fundação, começámos por acelerar o sistema, alterando os procedimentos próprios da atribuição de subvenções. Trabalhando com uma comissão de aconselhamento científico presidida pelo Dr. William Langston, concebemos uma forma de integrar o processo, através da simplificação do formulário de candidatura e da criação de uma comissão de avaliação científica capaz de identificar as propostas com maior mérito no prazo de três meses.Ficámos a saber que tínhamos conseguido qualquer coisa quando os NIH perguntaram à nossa fundação se seria possível canalizar uma parte dos seus fundos através do nosso sistema. No fim do primeiro ano, já tínhamos atingido dois grandes objectivos que, mesmo nos momentos de maior optimismo, eu pensara que demorariam anos a alcançar. Na busca de uma cura para a doença de Parkinson, tínhamos identificado alguns dos projectos de investigação mais prometedores. E tínhamos levado o Governo federal a adoptar a nossa metodologia e o sentido de urgência no financiamento dessa investigação.Desde o meu primeiro testemunho em Washington, fui frequentemente convidado a representar a comunidade dos doentes de Parkinson nos media, com especial destaque para o debate nacional sobre a investigação relativa às células estaminais de embriões, que monopolizou os noticiários durante boa parte do Verão de 2001.As células estaminais são retiradas de embriões com dez dias, que sobram da fertilização in vitro e que são deitados fora pelas clínicas de fertilidade. Todos os anos, milhares destes grupos de células supérfluas, mais pequenas que a cabeça de um alfinete, são congelados e, passado algum tempo, destruídos. Muitos especialistas em biologia celular pensam que, por serem demasiado jovens para se terem especializado em qualquer uma das funções fisiológicas - célula cerebral, célula renal, célula da medula óssea - estas células são «polivalentes». Ou seja, poderão vir a transformar-se em qualquer um dos tipos de células humanas. Introduzidas, por exemplo, na substantia nigra de um doente de Parkinson, estas células poderão transformar-se em células produtoras de dopamina.As implicações desta tese são assombrosas. Se as potencialidades da investigação sobre células estaminais se concretizarem, o facto significará o fim do sofrimento de milhões de pessoas - a salvação, a cura. Mas os benefícios potenciais destas células não se limitam ao Parkinson. As células estaminais poderão conduzir ao fim do impasse no desenvolvimento de tratamentos e curas

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para quase todas as doenças terminais em que possamos pensar. Esta é uma das razões por que o apoio a este trabalho mobilizou uma coligação de activistas de quase todas as comunidades de doentes da Nação. Se a investigação sobre as células estaminais for bem-sucedida, não há uma única pessoa no país que não beneficie dela ou não conheça alguém que possa vir a beneficiar.Contudo, existe uma polémica. Apesar de os embriões de que estas células provêem se terem desenvolvido fora do útero e serem regularmente destruídos, os activistas antiaborto opõem-se tenazmente à sua utilização na investigação, por maior que seja o número de pessoas que poderia beneficiar dessa investigação.Durante a campanha para as presidenciais de 2000, sabia-se, nos meios médicos e mesmo entre o público em geral, que George W. Bush se opunha à utilização de células estaminais, apesar de alguns dos principais conservadores e, até, alguns legisladores republicanos partidários do direito à vida, apoiarem este tipo de investigação. Talvez porque a doença é apartidária, o problema ultrapassou as habituais fronteiras políticas. Umas semanas antes das eleições, escrevi um artigo de opinião para o New York Times, em que me dirigia ao então governador doTexas, insinuando que autorizar o financiamento federal para esta área de estudo - uma área que poderia salvar as vidas de milhões de americanos de hoje e de amanhã - se enquadrava exactamente no tipo de conservadorismo compassivo que ele abraçava. Haveria alguma coisa mais «pró-vida»?A questão era muito importante para nós, comunidade de doentes, e ficámos surpreendidos e contentes por, no Verão seguinte, a investigação sobre células estaminais ter merecido uma grande atenção dos órgãos de informação. Vi-me envolvido num debate político nacional, dando entrevistas atrás de entrevistas e pressionando pessoalmente os funcionários da Administração. Por fim, o recém-eleito Presidente Bush foi obrigado a tomar posição e acabou por autorizar uma verba, ainda que limitada, de financiamento federal para que este trabalho pudesse ter seguimento. Não era tudo quanto estávamos à espera, mas era mais do que aquilo que a posição inicial do Presidente levara toda a gente a esperar.Tenho falado das células estaminais como doente e não como presidente de uma fundação. A fundação em si não é, de modo algum, política - a nossa única preocupação é identificar os melhores projectos de investigação e, tão depressa quanto possível, obter fundos e distribui-los pelos cientistas que têm em mãos esses projectos. Contudo, devido à nossa abordagem empresarial, podemos reagir rapidamente às correntes políticas e, por vezes, de uma forma criativa. Pouco depois de o Presidente Bush ter limitado drasticamente o número de células estaminais disponibilizadas para estudo, nós oferecemos uma subvenção de 2,5 milhões de dólares a qualquer investigador ou instituição científica que reunisse condições para desenvolver um tipo de células «dopaminérgicas» - células capazes de produzir dopamina. Não íamos permitir que nada nos desencorajasse, nos desviasse da nossa missão ou a dificultasse.Quando participo num debate público sobre estas e outras questões, faço-o, em primeiro lugar, como doente, mas não há dúvida que o facto de eu ser uma figura conhecida ajuda. Ser famoso é uma das razões pelas quais consigo angariar fundos e chamar as atenções para uma causa. No entanto, tento evitar ser considerado apenas como o «cabeça de cartaz». Na verdade, quando criámos a fundação, não queria que ela tivesse o meu nome. A certa altura, até tinha arranjado um nome óptimo: PDCure. Antes de o apresentar ao conselho de administração decidi, porém, testá-lo com a Tracy. Escrevi o nome num pedaço de papel, pus-lhe o papel à frente e perguntei:— O que é que achas?Passado um bocado, ela abanou a cabeça e disse, num tom sem cor:— Pedicura?O meu nome chama a atenção, facilita-nos a acesso a determinadas pessoas e, portanto, ajuda-nos a alcançar os nossos objectivos mais depressa do que seria normal. Será justo? Estará certo? São perguntas complicadas, mas a verdade é esta: eu tenho esta doença. Não estou a desempenhar nenhum papel. Tal como acontece com qualquer outro doente, a minha participação decorre unicamente da minha experiência. Conheço os problemas, sou obrigado a compreender a ciência e partilho do sentimento de urgência da comunidade a que pertenço.

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Independentemente de tudo isto, possuo uma moeda rara e útil - a fama - e descobri uma maneira maravilhosa de a gastar.Washington. D. C. - 14 de Setembro de 2000 Não há muito tempo, voltei a depor perante uma subcomissão do Senado, desta vez sobre a necessidade premente do financiamento federal para a investigação de células estaminais embrionárias. Nesse dia, uma parte do meu testemunho foi dedicada à questão do activismo praticado por pessoas famosas, ao motivo preciso por que eu tinha sido convidado a falar e por que aceitara o convite. Foi isto o que eu disse aos senadores:Por esta altura, muitos de vós já ouviram a minha história. Mas há uma história que não ouviram - a de Arme, uma editora de trinta e oito anos, que, por causa do Parkinson, perdeu o emprego numa editora de livros, o que a fez transitar da classe média de Nova Iorquepara uma situação de pobreza. Hoje, é obrigada a viver dos subsídios do Medicare1 e do SSDI, que são gastos, na quase totalidade, pelos custos mensais da sua medicação. Também não ouviram falar de Greg, um ex-advogado, que agora vive da reforma por invalidez e que se corresponde regularmente comigo. Há duas semanas, os seus familiares e amigos ficaram a olhar, horrorizados, a vê-lo mergulhar na imobilidade absoluta, enquanto esperava que fosse aviada uma receita que se atrasara. Não há nada que prove melhor a que ponto a «normalidade» é ténue para alguém que sofre de Parkinson. E também nunca ouviram falar de Brenda, ex-técnica de informática, de cinquenta e três anos. Não há muito tempo, os medicamentos não fizeram efeito e Brenda ficou a gelar, dentro da banheira, sem ninguém que lhe acudisse. Ficou lá durante horas, até lhe ter chegado ao cérebro a dose de medicação suficiente para ela poder sair da banheira. Quando foi capaz de sair, sofrera um ataque de pânico e não era capaz de falar. Finalmente, conseguiu chegar ao computador e serviu-se dele para contactar os amigos a pedir ajuda.Nenhuma destas pessoas se importa com o facto de eu ser alvo de mais atenção do que elas. Aquilo que me dizem, repetidamente, é que, se tiver oportunidade de chegar perto de um microfone, devo começar a falar.É por isso que estou aqui.UMA ÁRVORE EM BURNABYApartamentos Middlegate, Burnaby, Columbia Britânica - 1971 Quando eu tinha dez anos e vivia no tal bloco de apartamentos de três andares, aquele onde havia uma piscina de água fria e uma zona comercial do outro lado da rua, tínhamos um rato lá em casa. Pelo menos para mim, não era uma praga mas um animal de estimação; um pequeno roedor branco, com os olhos, o nariz e as orelhas cor-de-rosa. Pu-lo a viver num aquário, com uma daquelas rodas para exercício, um bebedouro e uma tampa de vidro, que mantinha no lugar colocando-lhe um livro em cima.1 Sistema federal de seguro de saúde para pessoas com mais de 65 anos. (N. da T.)Mas, afinal, o livro não tinha peso suficiente. Talvez devesse ter utilizado o Guerra e Paz, porque o rato fugiu. E o momento da fuga não podia ter sido pior. A Nana tinha vindo passar uns dias connosco, enquanto estava à espera de que o apartamento dela, na vizinhança, ficasse pronto para ela se mudar. A Nana tinha um medo terrível de ratos e um coração fraco, e toda a gente, muito especialmente eu, estava aterrorizada com a ideia de o rato poder escapar-se, por exemplo quando ela estivesse a dormir, e saltar para a cama dela, quem sabe se não mesmo para cima da cabeça dela, provocando-lhe uma paragem cardíaca.Felizmente, isso não aconteceu. A Nana mudou-se para a casa nova e nunca mais ninguém viu o rato. Fui proibido de comprar outro. O meu pai confiscou o aquário e encheu-o com terra e algumas velhas plantas de interior. O aquário reconvertido foi relegado para a estreita varanda do nosso apartamento e foi essa a última vez que aqueles filodendros ou lá o que eram mereceram a atenção de alguém. Passadas poucas semanas, as plantas tinham morrido. No Verão seguinte, a Nana também tinha morrido: o seu coração acabara por ceder.No Natal seguinte, a minha mãe pôs um prato de nozes descascadas em cima da mesa de apoio. Eu não gostava de nozes, mas agarrei numa e andei com ela de um lado para o outro, durante um bocado. A certa altura, fui até à varanda, deitei a noz para dentro do aquário e empurrei-a com o dedo, para dentro da terra. Nunca mais me lembrei de tal coisa até à Primavera seguinte, quando, para meu espanto, vi

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que emergira da terra um pequeno rebento verde. A noz criara raízes. Talvez porque, na minha nada linear lógica infantil, associava o aquário à fuga do rato e à minha avó, sempre achei que aquele pequeno milagre era uma mensagem da Nana, um sinal de que ela continuava comigo. Não me lembro de ter contado isto a ninguém, mas lembro-me de tratar da plantinha durante algum tempo, nunca me esquecendo de a regar e, de vez em quando, de a pôr ao Sol. Mas a Primavera sempre foi sinónimo de limpezas da Primavera e, um dia, ao voltar da escola, descobri que a minha pequena nogueira desaparecera.Los Angeles - Março de 1995As filmagens de Uma Noite com o Presidente estavam a chegar ao fim. O Sam, a Tracy e as nossas duas bebés, Aquinnah e Schuyler, estavam à minha espera em casa, em Nova Iorque. Tinha começado a pensar em voltar à televisão para, de futuro, não ser obrigado a estar assim, longe deles, mais do que o necessário. Atravessava um período de grande optimismo, de mudança da minha vida, e uma boa parte da minha felicidade devia-se a estar a trabalhar com a Joyce. Claro que ela também estava em Nova Iorque, mas eu respeitava o meu horário habitual das consultas das 9 da manhã e acordava cedo para lhe telefonar, às 6 da manhã, hora da Costa Ocidental. Uma manhã, antes de telefonar, mandei-lhe um fax. Tinha tido um sonho, rabisquei o que sonhara em papel do hotel e mandei-o à Joyce.Estou na nossa quinta em Vermont. Estou a ajudar um rapazinho, de cerca de dez anos (o Sam? Eu?), a atravessar um prado onde pastam cavalos. Do outro lado, fica a casa do caseiro. Quando lá chegamos, ele manda-me entrar para uma grande cozinha rústica e aquilo que vejo deixa-me espantado. Em todas as superfícies - a mesa, o balcão e a consola da lareira - há vasos e tabuleiros cheios de rebentos de plantas e de árvores. E um viveiro dentro de casa e está muito viçoso. Atravessamos a cozinha e, a um canto, há um pequeno armário embutido na parede. Sorrindo, o rapaz diz: «Espera aí, quero mostrar-te uma coisa.» E escancara a porta do compartimento.É difícil descrever aquilo que vi. Não é possível — mas, dentro daquele espaço minúsculo, escuro, sem ar, cresceu uma árvore. Crescer não é a palavra indicada - é incrivelmente exuberante. Por causa do reduzido espaço onde se encontra, ficou com o aspecto de uma árvore bonsai. O tronco e os ramos são grossos e, agora, com a porta aberta, a árvore continua a crescer diante dos meus olhos, como se, neste curto lapso de tempo, novos ramos se estendessem para a luz e para o ar da cozinha, cobrindo-se de folhas.Percebo imediatamente que árvore é aquela. É uma nogueira. E esteve a crescer durante todos estes anos.

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AgradecimentosA QUINNAH E SCHUYLER: agora que o livro do Papá Tremuras está pronto, vou passar a levar-vos mais vezes à escola. Sam: obrigado pelo esforço adicional com os trabalhos de casa, para eu poder ter mais tempo para fazer os meus. Tracy Pollan, minha mulher, minha melhor amiga: amo-te. Já foi muito teres feito esta jornada comigo, mas teres-me permitido partilhar tantos pormenores íntimos com terceiros foi um acto extremamente generoso. Ainda continua a espantar-me que, em menos tempo do que aquele que levei a conceber, criar e produzir este livro, tenhas conseguido fazer o mesmo com a nossa quarta filha, EsméAnnabelle. (Pronto, está bem, eu ajudei na concepção.) Ela é um milagre - e, agora, há mais um casamento no qual tenho esperança de poder vir a dançar. Temos ainda tantos capítulos felizes para escrevermos juntos. Esta família, esta vida, este amor, fazem de mim um homem cheio de sorte.A minha mãe, Phyllis Fox, merece uma boa parte dos créditos por este livro - e não estou a referir-me apenas às horas que ela passou ao telefone, guiando-me na visita à história fascinante da nossa família. (Quem me dera ter podido incluir mais pormenores dessa história.) A ela e ao meu pai, William Fox, devo também a capacidade e a força de que precisei para levar a bom porto este livro e esta vida. Os preparativos para o escrever incluíram longas conversas com o meu irmão mais velho, Steve, acerca de muitas coisas mas, sobretudo, acerca daquele incidente difícil, por alturas da morte do nosso pai. Ele percebeu o motivo por que eu tinha que o incluir nestas páginas e, talvez, por se ter tratado apenas de uma sombra passageira sobre uma amizade profunda e duradoura, deu-me a sua aprovação. Às minhas irmãs, Karen, Jackie e Kelli, gostaria de dizer que aprendi muito por ser membro desta família e que gosto muito mais de todas elas do que seria possível dizer aqui. Talvez num outro livro. Joyce: obrigado por tudo. Trabalhar neste projecto implicou passar mais horas sozinho do que alguma vez tinha passado e foste tu quem tornou possível eu apreciar realmente a companhia.Sempre soube que tinha que ser eu mesmo a escrever este livro. A história era demasiado pessoal para poder ser contada por palavras que não fossem as minhas (mais ou menos 100 000, das quais pelo menos 40 000 são pronomes pessoais). Seja como for, nunca tinha feito isto. Não sou um escritor profissional. Percebi que ia precisar de um mentor, de um editor experiente e talentoso, de preferência alguém que me fosse próximo, para me dizer como devia fazer e que fosse honesto comigo quanto ao que funcionava e ao que não funcionava. Felizmente, o meu cunhado Michael («Sempre em Frente») Pollan, acedeu a desempenhar esse papel. Só com um mestre tão sensato e paciente, erapossível enfrentar este desafio aparentemente impossível. Ao longo dos últimos doze meses, o Mike trabalhou comigo sobre os acontecimentos da minha vida, embora talvez tivesse preferido concentrar-se nos da sua, em especial no recente sucesso do seu livro, o brilhante êxito de vendas The Botany ofDesire. A minha gratidão é extensiva à sua mulher, Judith Belzer, e ao filho de ambos, Isaac, por me terem permitido roubar tanto do tempo que pertencia à família. O discernimento, a amizade, o humor e a paixão pelo poder da palavra escrita não foram as únicas coisas que o Michael partilhou comigo. Também foi gentil ao ponto de me apresentar a sua agente, Amanda «Binky» Urban. Obrigado, Binky, pelo apoio, entusiasmo e experiência, que me guiou no mundo labiríntico da edição. E pensava eu que o mundo do espectáculo era uma casa de diversões.Em Dezembro de 2000, quando comecei a escrever sobre Gainesville, Florida, e a incontrolável dança do dedo mindinho, cheguei a andar à procura de um assistente de escrita. No essencial, precisava de alguém que escrevesse no computador. Não consigo trabalhar com um teclado. Bem gostava de poder atribuir as culpas ao Parkinson, mas a verdade é que nunca soube dactilografar. Heidi Pollock apareceu à porta do meu gabinete e ficou a trabalhar comigo durante um ano. Escrevia mais depressa do que eu sou capaz de pensar e, além disso, estabelecia alguns limites para a minha loucura, ajudando-me a organizar, investigar e, quando eu estava realmente encalhado, a encontrar le mot juste. A Heidi provou ser uma colaboradora extremamente inteligente, divertida e de enorme valor; sem ela, eu não teria sobrevivido a esta experiência.

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A confiança que todas as pessoas da Hyperion depositaram neste projecto, mesmo quando eu ia falhando prazo de entrega após prazo de entrega, foi incrível. Presidente Bob Miller: mais uma vez obrigado pelas suas cartas maravilhosas; os seus cumprimentos generosos, «embrulhados» em metáforas desportivas, foram sempre uma ajuda, nos momentos em que eu mais precisava dela. Leslie Wells: não seria possível desejar trabalhar com um editor mais esperto e mais compreensivo. Obrigadotambém à assistente da Leslie, Carne Covert, e à Martha Levin, que me ajudou a não parar. Bob Iger: tinhas razão - não há nada como a nossa casa.Este livro nunca teria sido escrito, se não fosse o apoio e o estímulo que me foram dados pela comunidade dos doentes de Parkinson. Desde que tornei público o diagnóstico da minha doença, os meus companheiros doentes foram os meus melhores mestres. Ajudaram-me a ver que a minha história não é só a minha história, que muitos dos 40 000 pronomes pessoais na primeira pessoa do singular são, afinal, pronomes pessoais na primeira pessoa do plural - porque nós somos um «nós», todos no mesmo barco e à espera da mesma salvação. Não percam a esperança, porque ela vem aí.Nem todas elas se aperceberam do facto, mas as pessoas que se seguem ajudaram a tornar possível este livro e para elas vai o meu amor e a minha gratidão:Dr. Allan Ropper, Dr. Bernard Kruger, Dr. Bruce Cook, Corky e Stephen Pollan, Lori Pollan e Allan Bahn, Dana Pollan e Mitchell Stern, Danelle Black, Joan Samuelson, Debi Brooks, Michael Claeys, Mindy Miller, Greg Mann, a equipa da Fundação Michael J. Fox para a Investigação sobre a Doença de Parkinson, Lonnie e Muhammad Ali, Dr. Micthell Blutt, Joyce e Barry Cohen, Steve Cohen, Glenn Dubin, David Golub, John Griffin, Irwin Helford, Jeffrey Katzenberg, Kathleen Kennedy, Milly e Mort Kondracke, Fredric Mack, Nora McAniff, Michael Price, Lily Safra, Jeffrey Kiel, Carolyn e Curtis Schenker, Donna Shalala, Fred Weiss, Dr. J. William Langston, Jeffrey Kordower, Jackie Hamada, Miyoko Love, Natasha Klibansky, Kim Kimbro, Iwa Goldstein, Amuna Ali, Bridgette Roux-Lough, Nanei Ryder, Leslie Sloane Zelnik, Cliff Gilbert-Lurie, Skip Brittenham, Marian Toy, Raquel Tinio, Glenn Koetzner, Chris Coady, Greg Wasson, Peter Benedek, Mark Seliger, Michael Rosen, Sally Fanjoy, Gavin De Becker, Gary David Goldberg, Bill Lawrence, Andy Cadiff, Justin Sternberg, Bryan Lourd, Kevin Huvane, Bob Philpott, Cam Neely, Jimmy Nugent, Pat O'Brien, o elenco, equipa técnica e guionistas de Cidade Louca (Tom Hertz e TimHobert, obrigado pela piada), Bob Gersh, Todd Gold, Barbara Walters, Jennifer Grey e Clark Gregg, Denis Leary, Chris Rock, Jon Stewart, Amanda e Ted Demme, Emma Tillinger, James Taylor, Ariene e Alan Alda, Phoebe Cates e Kevin Kline (adorei aquela citação do Shaw), o pessoal da Dream Works, da ABC-TV e tantos outros...

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Nota da APDPk à edição portuguesaMichael J. Fox, é uma das personalidades que muito contribuiu para a que a doença de Parkinson fosse vista de uma forma mais justa pela sociedade e também pelas autoridades, que lhe deveriam prestar mais atenção, quer quanto à investigação, quer ao apoio que deve ser prestado aos doentes e seus cuidadores.Em Portugal, os doentes de Parkinson contam com uma entidade para os ajudar, a Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson, que muito tem feito, apesar dos parcos recursos financeiros, em defesa de melhores apoios e legislação que possa proporcionar aos seus doentes, dentro das possibilidades, a melhor qualidade de vida possível.Este livro, cujo conteúdo representa uma explicação do que se passa com uma grande maioria dos doentes de Parkinson, um exemplo que deve ser tido em conta para que haja uma maior compreensão, é de capital importância pedagógica para o público em geral e particularmente, uma oportunidade para divulgar a doença e os seus problemas.Os direitos de autor revertem a favor da Fundação Michael J. Fox, mas o editor responsável pela edição do livro no nosso país fez questão de doar à APDPk uma percentagem sobre cada livro vendido, contribuindo assim para ajudar a causa, em Portugal.A Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson quer agradecer a todas as pessoas que adquiriram este livro.Duarte Cancella de Abreu Emissário Permanente APDPkAssociação Portuguesa de Doentes de ParkinsonRua Duarte Galvão, n° 34 , 7o Dt° Apart. 4008 1501-001 LisboaTel: 93. 899 32 22 Fax: 21. 757 68 [email protected]