UM OTIMISTA INCORRIGIVÉL- MICHAEL. J. FOX

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Livro: Mccayres Digitalizao: Marina Reviso: Marisa

ISBN 978-85-7665-477-3 9788576654773 "Sheila". Copyright 1962 Sony/ATV Music Publishing LLC. Todos os direitos administrados por Sony/ ATV Music Publishing LLC, 8 Music Square West, Nashville, TN 37203. Todos os direitos reservados. Reproduzido com permisso. "Glory days", de Bruce Springsteen. Copyright 1984 Bruce Springsteen (ASCAP). Reproduzido com permisso. Todos os direitos reservados. "Magic Bus" reproduzida com a permisso de Pete Townshend. Copyright 2009 Michael J. Fox Todos os direitos reservadosTTULO ORIGINAL

Always looking up : the adventures of an incurable optimistPREPARAO REVISO

Adriane Gozzo Bel Ribeiro

DIAGRAMAO S4 EditorialCAPA

adaptada a partir do projeto grfico original de Phil RoseFOTO DA CAPA

Mark Seliger

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil) Fox, Michael J. Um otimista incorrigvel / Michael J. Fox ; traduo Cassius Medauar. - So Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2009. Ttulo original: Always looking up: the adventures ofan incurable optimist. ISBN 978-85-7665-477-3 1. Atores - Canad - Autobiografia 2. Atores - Estados Unidos -Autobiografia 3. Doena de Parkinson - Pacientes - Biografia 4. Fox, Michael J., 1961-1. Ttulo. 09-09440 790.4302 2009 Todos os direitos desta edio reservados EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA. Avenida Francisco Matarazzo, 1500 - 3a andar - conj. 32B2

CDD-790,4302

NDICE PARA CATLOGO SISTEMTICO 1. Estados Unidos: Atores: Autobiografia

Edifcio New York

Para Tracy, Sam, Aquinnah, Schuyler e Esm. E para Karen. Com amor.

SUMRIOINTRODUOPARTE UM

TRABALHOPARTE DOIS

POLITICAPARTE TRS

FPARTE QUATRO

FAMILIAEPILOGO

AGRADECMENTOS

3

INTRODUO

Nas primeiras pginas de Lucky man*, descrevo uma manh na Flrida h dezenove anos, quando acordei com uma bela ressaca e meu dedo mindinho tremendo. Nos anos seguintes, minha vida passou por grandes mudanas. Na maioria das manhs, por exemplo acordo e meu dedo mindinho est totalmente imvel; o problema o restante do meu corpo, que treme de forma incontrolvel. Tecnicamente; meu corpo s fica em paz ___*Um homem de sorte, primeiro livro de Michael J. Fox no qual descreve sobre os estgios iniciais de sua doena, ainda indito no Brasil (N.T.)

por completo quando minha mente est em repouso total - ou seja, dormindo. Atividade cerebral baixa significa menos neurnios queimando ou, no meu caso, pulando. Quando estou acordando, antes de a minha conscincia acordar e saber o que est acontecendo, meu corpo j recebeu insistentes instrues neurais para que se mova, se tora e contora. E qualquer chance de voltar a dormir j era.4

Nesta manh, Tracy j se levantou, est preparando o caf da manh e aprontando as crianas para a escola. Tateio o criado-mudo procura de um frasco de plstico, engulo dois comprimidos e sigo rapidamente para a primeira de uma srie de atividades que, mesmo sendo automticas, demandam grande determinao. Levanto as pernas e as levo at o lado da cama. No instante em que meus ps encostam no cho, os dois comeam a lutar. A distonia, uma doena complementar ao Parkinson, faz meus ps doerem e se curvarem para dentro, pressionando meus tornozelos contra o cho e fazendo as solas dos meus ps se encontrarem, como se estivesse juntando as mos em uma prece. Arrasto meu p direito at a ponta do tapete e pego com os dedos meu mocassim de couro. Foro o p para dentro dele e repito o processo com o esquerdo. Ento, com cuidado, me levanto. Confortados pela firmeza do couro, meus ps comeam a se comportar. Os espasmos pararam, mas as dores ainda vo durar uns vinte minutos. Primeira parada: banheiro. Vou poupar voc dos detalhes iniciais da minha visita. Digo apenas que, para quem tem Parkinson, essencial deixar o assento da privada levantado. Pegar a pasta dental no nada comparado ao esforo feito para coordenar o trabalho das duas mos, uma segurando a escova e a outra tentando colocar uma linha de pasta nas cerdas. Agora, minha mo direita j est levantada e fazendo movimentos circulares com meu punho, perfeito para o que farei em seguida. Minha mo esquerda guia a direita at a boca e, quando a parte de trs da escova toca a gengiva atrs do lbio superior, eu a solto. como soltar o elstico de um estilingue e, comparando, to poderoso quanto a melhor escova eltrica que existe no mercado. Contudo, no h o boto "desligar". Ento preciso parar meu brao direito com a mo esquerda, forando-o para baixo at a pia e desarmando-o da escova, como se faz com algum com uma faca em um filme. Em geral, consigo saber se estou em um bom dia para fazer a barba5

ou no, e, nesta manh, como na maioria delas, decido que cedo demais para arriscar uma carnificina. Resolvo passar apenas o barbeador eltrico rapidinho. E viva Miami Vice! Um banco no chuveiro d uma fora aos meus ps, e a gua batendo constantemente em minhas costas tem efeito teraputico, mas, se ficar muito tempo sentado aqui, posso no me levantar mais. Vestir-me j mais fcil, graas aos comprimidos, que comeam a fazer efeito. Evito roupas com muitos botes ou cordes, porm sou viciado em Levis 501, o que me faz ser uma vtima da moda no estrito senso da palavra. Em vez de me pentear de verdade, ergo os dedos tremulantes at a cabea, passo a mo no cabelo e toro para ter ficado bom. Viro-me devagar (minhas pernas ainda no ganharam confiana hoje) e sigo em frente para ver minha famlia. Na sada do meu quarto para o corredor, h um grande espelho antigo com moldura de madeira. No consigo evitar dar uma olhadela em mim mesmo enquanto passo por ele. Virando-me totalmente para o espelho, considero o que estou vendo. Essa verso refletida de mim, molhada, tremendo, enrugada, embaraada e um pouco curvada seria alarmante, no fosse pela expresso de satisfao estampada em meu rosto. Eu me faria a pergunta bvia, "do que voc est rindo?", mas j sei a resposta: "a partir de agora o dia s melhora". *** How to lese your brain without losingyour mind [Como perder seu crebro sem perder sua mente] era o ttulo original das memrias que escrevi h oito anos. Na segunda ou terceira pgina do primeiro rascunho, referi-me a mim mesmo como sendo um "homem de sorte". Depois de algumas edies, eu sempre voltava a essas trs palavras e, no fim, elas acabaram dando um jeito de chegar capa do livro. Combinavam com a capa, e combinam at hoje. J o ttulo deste novo livro* tem mais de um significado. Primeiro6

-vamos falar disso de uma vez -, uma piada de baixinho. Tendo pouco menos de 1,65 metro, a maior parte da minha interao com o mundo e com as pessoas nele requereram que eu inclinasse um pouco a cabea para trs e olhasse para cima. Mas isso no um manifesto sobre as dificuldades dos menos favorecidos em termos de altura. Sinceramente, minha altura, ou a falta dela, nunca me incomodou muito. Apesar de que no h dvidas de que contribuiu para o meu engrandecimento mental. Sempre sa na frente por ser subestimado, e me aproveitei disso. E este mais o esprito do ttulo: fazer aluso a uma perspectiva emocional, psicolgica, intelectual e espiritual que me serviu durante a vida e talvez tenha me salvado ao me ajudar a viver a vida com Parkinson. No que eu no sinta a grande dor da perda. Fora fsica, espontaneidade, balano, destreza manual, liberdade de fazer o trabalho que eu quiser, na hora em que e como quiser, e a confiana de que sempre estarei presente quando minha famlia precisar de mim - se todas essas coisas no se perderam por completo com o Parkinson, foram pelo menos comprometidas de maneira drstica. Os ltimos dez anos da minha vida, que so o grande assunto deste livro, comearam com uma grande perda: minha aposentadoria da srie Spin City. Tive de me esforar para me adaptar a uma nova dinmica, mudana das minhas personalidades pblica e privada. Eu era Mike, o ator, e depois Mike, o ator com Parkinson. E agora seria apenas Mike com DP? A Doena de Parkinson tinha consumido minha carreira e, em certo sentido, se tornado minha carreira. Mas onde tudo isso me deixava? Tinha de construir uma nova vida quando ainda era muito feliz com a vida antiga. Fui abenoado com uma carreira de vinte e cinco anos em um trabalho que amava. ____ *O autor de refere ao titulo original, Alwais Looking up, Sempre olhando pra cima, que alm de ser uma mensagem de otimismo, que no caso foi traduzida por Um otimista incorrigvel, uma bvrincadeira que se faz com as pessoas de baixa7

estatura

Tinha uma esposa brilhante, linda, engraada, que me apoiava totalmente, e uma famlia em expanso de filhos irrepreensveis. Se eu tinha de abrir mo de parte disso tudo, como poderia me proteger para no perder tudo? A resposta tinha muito pouco a ver com "proteo" e tudo com perspectiva. A nica opo que eu no tinha era ter ou no ter Parkinson. Todo o restante eu podia resolver. Podia me concentrar na perda e investir em quaisquer medidas reparadoras que meu ego conseguisse criar. E podia me apoiar na minha velha conhecida dos anos 1990, a negao. Ou ento podia simplesmente seguir em frente com minha vida e ver se os buracos nela comeariam a se preencher sozinhos. Nos ltimos dez anos, isto aconteceu mesmo, e das maneiras mais incrveis. O que voc vai ler a seguir so as memrias desta ltima dcada. Mas, diferentemente de Lucky man, o livro temtico, e no cronolgico. Trabalho, Poltica, F e Famlia. Esses so os pilares da minha existncia. E a base da minha vida. Juntos, formam uma proteo contra a destruio causada pela Doena de Parkinson. Minha identidade tem tudo a ver cora minha habilidade de me expressar, de mostrar minha criatividade e meu valor produtivo (trabalho), de defender meus direitos e os de qualquer comunidade da qual eu faa parte e, portanto, seja responsvel (poltica), de ter liberdade de procurar um propsito espiritual (f) e poder explorar os laos complexos que tenho com as pessoas que mais amo (famlia), sem os quais eu j teria sucumbido h tempos diante das foras do lado negro. Mesmo no sendo uma narrativa estrita, este Livro descreve uma jornada de autoconhecimento e reinveno. A histria um testamento das coisas que me trouxeram at aqui e que deram sentido a todas as reas da minha vida.8

Para tudo que a doena tomou de mim, algo de grande valor me Foi dado sVEZES

, foi apenas algo que me fez ir em uma nova

direo que jamais teria trilhado em outra situao. Claro que tudo isso pode parecer um passo para a frente e dois para trs, mas depois de um tempo com Parkinson aprendi que o que importa fazer com que aquele passo frente valha a pena; sempre mirando as estrelas. PARTE UM TRABALHO

Into the great wide open*Em vrios sentidos, a vida diria mais difcil agora que quando Lucky man foi publicado. Eu pensava que estava em mau estado em 2000, quando resolvi sair de Spin City. O peso de ter duas responsabilidades, produzir e atuar em uns cem episdios durante quatro anos, me deixou acabado. A cirurgia no crebro feita dois anos antes reduziu os tremores9

que eu tinha no lado esquerdo, mas no resolveu nada no direito nem nas pernas. Os medicamentos travavam uma batalha diria contra um inimigo em mudana constante. As diferenas de quando estava com e sem remdio, a transio de um estado para outro, em condies ideais, so como uma conversa civilizada, mas isso se deteriorou em discusses beligerantes e conversas paralelas. Em uma ftil tentativa de estar no modo "ligado" nos momentos--chave, ou seja, quando estava atuando, tentava fazer a parte da produo com o mnimo possvel de levodopa (ou L-Dopa; a dopamina sinttica que os pacientes de Parkinson usam para controlar os sintomas) no corpo, porque assim, quando tivesse de atuar, poderia aumentar a dose e ficar parado diante das cmeras. Raramente, talvez nunca, acertei a conta. E errando a dose principalmente ao tomar muita levodopa -, acabei tendo uma torrente de discinesias, movimentos involuntrios anormais que afetam, acima de tudo, as extremidades, o tronco ou a mandbula, como ondulaes, tremores, balanos e pulinhos. A ironia disso que eu praticamente no percebia nada at assistir filmagem na sala de edio._______ *Dentro da Imensido, msica famosa da banda de rock norte-americana Tom Petty and the Heartreakrs (N.T)

Tendo decidido na metade da quarta temporada que minha condio fsica no me deixaria fazer uma quinta, comecei a pensar que talvez nem conseguisse fazer os treze episdios que ainda faltavam. Meu regime dirio de medicamentos (que, por sinal, no tinham nenhum efeito psicotrpico, nada de barato) afetava meus padres de voz e s vezes fazia com que eu falasse enrolado ou hesitasse antes de falar, uma droga quando se est tentando fazer algo engraado. E em relao comdia fsica, na verdade, eu s tentava evitar uma tragdia. Mesmo todo mundo - elenco, equipe de produo e audincia10

-sabendo que eu tinha Parkinson, eu ainda estava tentando interpretar ura personagem que no tinha a doena. Qualquer que fosse a complexidade cmica ou dramtica de uma cena, meu maior desafio era sempre atuar como se eu no tivesse Parkinson. E, mesmo tendo continuado a usar os mesmos truques que me serviram to bem durante anos - segurar algo para controlar o tremor das mos, encostar em paredes, mesas e outros atores, girar em uma cadeira ou sentar atrs de uma mesa para esconder os movimentos incontrolveis das pernas e dos ps -, o avano dos sintomas comeou a me forar a aumentar meu repertrio. Descobri que, por curtos perodos de tempo, podia dirigir toda a energia ondulante do corpo para uma extremidade particular - mo, perna ou p. Ento, ao organizar uma cena, eu me colocava (e o restante do elenco tambm) em uma posio que escondesse bem a parte do corpo na qual estivesse confinada a energia do Parkinson. Como disse, o mesmo tipo de coisa que fiz durante anos, e pensei que, se explicasse para as pessoas por que estava fazendo aquilo, todo o processo ficaria bem mais fcil. Mas no ficou. A coisa continuou dura. As pessoas s passaram a ter uma idia de por que era to duro. Meu amigo Michael Boatman fazia o papel de Carter Heywood, um dos assistentes do prefeito. Ura dia, estvamos ensaiando uma cena na qual ns dois devamos passar pela porta do escritrio do prefeito . Um dia, estvamos ensaiando uma cena na qual ns dois simultaneamente e em direes opostas. Roteiros nas mos, comeamos a cena, mas, quando ambos chegamos na porta, em vez de passar por Michel, congelei exatamente na frente dele. __ Voc tem de se mexer - eu disse, mais por impulso que por querer dizer isto. Michael um dos caras mais legais do planeta, porm ficou confuso e perplexo com o que falei. - O qu? - ele disse.11

- Voc tem de se mexer. No posso me mexer at que voc se mova. Ele acabou atendendo ao meu pedido e, depois do ensaio, tentei explicar o que tinha acontecido. As vezes, quando meu crebro pede para o corpo fazer tarefas simples que envolvem algum grau de julgamento referente a relaes de espao, a mensagem acaba se perdendo no meio do caminho. necessrio algum estmulo externo, como o movimento de algum obstculo ou, curiosamente, a introduo de um, para eu conseguir me mover para a frente. Alguns parkinsonianos que param repentinamente ao andar conseguem continuar quando uma rgua colocada na frente dos ps deles e eles so forados a pisar nela. Claro que Michael aceitou minha explicao e at riu comigo por causa da estranheza da situao. Com o passar dos dias, das semanas, dos meses e dos anos, vrias situaes que necessitavam do mesmo tipo de explicao surgiram e se tornaram uma responsabilidade muito cansativa. As diferenas ao estilo o Mdico e o Monstro entre os remdios estarem funcionando ou no confundiam as pessoas - e com razo. As pessoas minha volta tinham dificuldade de entender e separar o enrgico e expressivo Mike Flaherty que viam diante das cmeras do confuso e mascarado Mike Fox que encontravam quando tinham de resolver seus problemas por trs das cmeras. Minha parceira na produo, Nelle Fortenberry, lembra de muitas ocasies em que chefes de departamento ou outros membros do elenco ou da equipe entravam em seu escritrio, fechavam a porta e imploravam para que ela dissesse por que eu estava bravo com eles. -O que o faz pensar que Le est bravo com voc? - Acabei de passar por ele no corredor e ele no sorriu, no acenou, e nem mesmo diminuiu o passo. Nelle sempre repetia que um dos sintomas do Parkinson a escassez de movimentos faciais - a mscara de Parkinson. Alm disso, uma12

coisa simples como virar a cabea e fazer um cumprimento fisicamente impossvel. Assim que comeo a caminhar, a quantidade de energia requerida para parar e depois comear de novo dez vezes maior que para uma pessoa com o crebro normal. Longe do set de filmagens, Nelle a pessoa com a qual eu mais interagia no dia a dia, com os produtores executivos Bill Lawrence e David Rosenthal e nosso diretor Andy CadifF. Era quando eu punha meu chapu de produtor e discutamos sobre oramento, tramas futuras, rascunhos de roteiros, propostas de design para o cenrio, questes de ps--produo, problemas com o elenco e a equipe e todas as mincias que aparecem ao fazer um novo episdio da srie a cada sete dias. Acredite se quiser, mas pode ser bem divertido. Todavia, tambm pode ser fatigante. Os problemas aparecem como pipoca; enquanto vamos resolvendo os que esto na tigela nossa frente, parece que temos uma grande panela do lado de fora do escritrio constantemente fazendo mais pipocas. s vezes eu ria quando Nelle explicava os desafios do dia. Eu a lembrava de que, por maiores que fossem, no seriam meu maior desafio. E no era uma reclamao, mas apenas uma nova perspectiva adquirida por causa da minha condio. Se pudesse voltar no tempo e falar comigo em 2000, em relao batalha diria travada contra o Parkinson, eu diria: - Voc ainda no viu nada! Na verdade, com a experincia que adquiri desde l, agora sei que ficaria muito pior antes de ficar... bem, pior ainda. Mesmo assim, com o que aprendi em todo esse tempo sobre controlar o estresse por meio de programaes criativas e a nova gerao de remdios que est bem prxima, provavelmente teria conseguido fazer umas boas sete temporadas. No estou querendo dizer que era o que gostaria de ter feito. Minha deciso de deixar Spin Ciy foi a coisa certa a fazer na hora certa.13

Naquela poca, tomar a deciso de como comprometer meu tempo e minha energia se transformou em como eu me sentia em oposio ao que pensava em relao s coisas. E com certeza a deciso de deixar a srie, na primavera de 2000 (nos Estados Unidos), foi toda "sentimento". A deciso ocorreu no final da tarde do ltimo dia do ano de 1999. Estava com minha famlia mergulhando nas lmpidas guas de St. John, nas Ilhas Virgens americanas. Visitvamos essa praia havia anos e nunca tnhamos visto uma tartaruga marinha. Quando por fim encontrei uma deslizando pela gua dentro da barreira de corais, nadei lentamente por trs dela, mantendo uma distncia respeitosa. Quando sa da gua, chutei as nadadeiras para longe, andei at onde Tracy secava as crianas, peguei uma toalha e comuniquei que ia me aposentar da srie. Talvez tenha sido por estar exausto at os ossos de lutar com os sintomas todos os dias apenas para fazer meu trabalho, ou talvez tenha sido somente a sublime indiferena daquela tartaruga, mas houve um clique em mim e, dependendo de como eu o aceitasse, uma luz estaria acendendo ou apagando em mim. Se a descuidada natureza do meu anncio assustou Tracy, ela disfarou bem. Era o momento de ela desabafar, se quisesse. Ela poderia ter rido como se fosse uma piada sem graa ou fingir que ignorava o que disse, oferecendo-me tacitamente a chance de reconsiderar. Ou ainda poderia ter dito: "Voc ficou louco?". Afinal, o que eu estava propondo de forma to casual traria grandes mudanas em nossa vida e tambm na das crianas. E nem mencionei a tartaruga, com medo de ela achar que s a estava consultando para pedir uma segunda opinio. Todos os momentos difceis do nosso casamento ocorreram quando um de ns - t bom, eu - resolveu agir de maneira unilateral. Para encurtar a histria, ela poderia ter tido vrias reaes diferentes. Mas o que Tracy fez foi me olhar nos olhos e dizer uma s palavra: "Certo", e me dar um abrao molhado e cheio de areia.14

Nos ltimos dias de frias no falamos sobre o assunto. Se eu estivesse esperando que ela me demovesse da idia, isso no iria acontecer. Mas a ruptura seria assim to simples to clara? Essa foi uma deciso de momento; com certeza foi uma das mais importantes da minha vida, e aconteceu abruptamente. E, sim, seria, em certo sentido. No duvidei nem uma vez, desde meu encontro com a tartaruga, de ter feito a escolha certa, da coisa certa a fazer na hora certa. Mas no foi fcil. No foi difcil tomar essa deciso, mas era uma deciso bem difcil de ser posta em prtica. Como em qualquer grande mudana, ou quando escolhemos um novo caminho e esquecemos o antigo, vo haver conseqncias. Estvamos na noite do ltimo dia do ano, prximos do Ano-Novo, perto de um novo milnio, e eu tinha decidido deixar para trs tudo que havia conquistado, buscado e acumulado ao longo dos ltimos vinte anos. Eu sabia que no estava deixando apenas a srie - estaria deixando de lado minha carreira de ator. Enquanto sempre tive dificuldade de me ver como um astro, orgulhava--me de ser um artista. Entendi que, embora sair oficialmente de Spin City no significasse abandonar minha carreira, no poderia abandonar esse compromisso, essa agenda e as condies de trabalho e esperar conseguir outro papel principal na TV ou no cinema. Era o fim. Eu estava tirando o fio da tomada. Adeus. At mais. John Gielgud, reverenciado por dcadas atuando nos palcos ingleses e famoso por ser o mordomo de Dudley Moore em Arthur, o Milionrio, certa vez descreveu o trabalho de sua vida desta forma: "Atuar meio vergonha, meio glria. Vergonha em exibir a si mesmo; glria quando consegue esquecer de si mesmo". Quando eu tinha 16 anos e estava embarcando na carreira, podia fazer essa relao. Arrisquei-me em outras reas, durante um tempo vislumbrei um futuro como escritor, ator de comerciais ou talvez msico, mas foi atuar que pareceu para mim a coisa15

mais natural do mundo. Em uma idade em que a maioria das pessoas impossvel de ser amada, encontrei algo que me parecia fcil e natural fazer. Eu podia ser qualquer um, qualquer coisa, de qualquer tamanho ou forma, e me transportar para qualquer tempo ou lugar. E, se fizesse direito, ainda haveria o bnus de receber a aprovao das pessoas que eu seria pressionado a agradar se a situao fosse outra. Alguns papis nas peas da escola, pequenos filmes locais e na TV me encorajaram a testar meu potencial, e logo fui percebendo que minha maior limitao era geogrfica. Eu precisava ir aonde o trabalho estava. Ser ator deu-me uma vida alm daquela que eu poderia imaginar - e olha que tenho uma imaginao fervilhante. Aos 18 anos, minhas aspiraes me levaram a Los Angeles. Passei por audies humilhantes e sem sentido e por rejeies rotineiras, com recompensas ocasionais, como um pequeno papel na TV ou um comercial em rede nacional que pagavam meu aluguel e mantinham meu esprito aceso. Ento veio o sucesso e, com ele, uma nova confiana em minha vida artstica e a coragem de tentar coisas novas - algumas com resultados positivos, outras nem tanto, mas nunca com arrependimento. Atuar era uma ocupao que exigia que eu fosse tanto observador quanto participante do mundo. Durante todos os anos de comdia, sempre me apoiei em uma habilidade intuitiva de achar graa em quase todos os tipos de situao. Sempre h um "lado engraado. A paleta do ator a totalidade da experincia humana. Uma carreira to longa e ocupada como a minha me permitiu ter empatia e uma conexo com as pessoas de forma que outras profisses no conseguiriam. E claro que tinha tambm os benefcios mais tangveis, como viagens, boa situao financeira e boa vontade acima de qualquer merecimento. Talvez o maior presente de todos tenha vindo graas a uma escolha fortuita de elenco: conhecer Tracy nas gravaes de Caras e Caretas.*16

___ *Family Ties, no original (N.T.)

No fiz faculdade nem mesmo acabei o colegial. Ser ator era a nica carreira que eu conhecia e, agora, graas ao conselho de uma tartaruga, estava pronto para abandonar tudo to facilmente quanto secar a gua das minhas costas queimadas de sol? No fundo eu sabia que meu grande amor pelo trabalho - aquele arrepio que passava pela minha espinha quando uma piada bem escrita era encenada certinha e aceita pela pblico - ainda estava l. Um conforto conseguido a duras penas, desenvolvido aps muitos anos de atuaes. No indolncia, mas uma confiana racional de que, independente da emoo, da inteno ou da atitude que eu tivesse de tomar, essa flecha estaria na minha aljava quando eu a procurasse. Quando era um jovem ator, s vezes podia esconder minha insegurana em determinada cena usando um movimento gil e puramente fsico: Alex Keaton colocando as mos nos bolsos e pulando para trs do balco da cozinha; Marty McFly andando agachado, fazendo piruetas e deslizando bastante ao cantar Johnny B. Goode; Brantley Foster fazendo a pose do Hulk no elevador, usando apenas samba-cano; ou mesmo Mike Flaherty tirando as calas em pleno ar enquanto girava por cima da cama e de sua namorada, que o esperava. Sempre pude contar com o fsico. A triste ironia que, quando senti que possua o controle total das dimenses emocionais e intelectuais da minha identidade performtica, no podia mais contar com meu corpo para apoila. No quero, como ator, fazer escolhas baseadas em incapacidades em vez de em habilidades. Apesar de no poder afirmar que tenho memrias lcidas daquela noite, tenho certeza de que passei o Ano-Novo de 1979, meu primeiro como jovem ator na Califrnia, bebendo at cair e fazendo promessas loucas sobre tudo que ia conseguir nas dcadas seguintes. Agora, vinte anos17

depois, aproveitando um Ano-Novo calmo e sbrio com minha famlia e refletindo a respeito de tudo que aquele jovem tinha conseguido realizar, preparava-me para entrar em um futuro incerto.

ESTDIO D, CHELSEA PIERS 17 DE MARO DE 2000 Para uma srie de televiso, em especial as comdias, atingir cem episdios representa uma importante conquista. Tradicionalmente, a marca dos cem o mnimo exigido para um programa obter sucesso com a venda dos direitos para emissoras independentes e para o exterior.* Ao entrar na nossa quarta temporada e tendo programados vinte e dois episdios para ela, espervamos termin-la chegando aos noventa e seis programas gravados. Nosso acordo de venda de direitos j estava fechado, ento no era crucial que fizssemos mais quatro programas e chegssemos a cem. Mas, mesmo estando em paz com minha deciso de deixar o programa, fiquei obcecado em atingir aquele marco. E isso poderia significar adicionar mais um ms de produo, porm, no tnhamos nem tempo nem dinheiro. Ento, em vez de facilitar as coisas e deixar o programa tranqilamente, criei um esquema logstico duro que s vezes fazia com que gravssemos um programa e meio por semana e que nos permitia bancar seis episdios em quatro semanas. O plano era fazer um final especial de uma hora, editado como dois episdios por causa da venda dos direitos. Ele foi filmado em duas semanas, a maior parte no estdio e sem platia, alm de um dia filmando em Washington, D.C. Depois, esse material foi editado, organizado e exibido no nosso final de temporada, ao vivo de Nova York,18

com platia e intercalado com cenas feitas na hora. Tenho certeza de que foi um perodo difcil para o elenco e a equipe tcnica, apesar de j sabermos no ltimo ms e meio da temporada que minha sada no seria o fim de Spin City, mas apenas uma transio. O programa continuaria. Charlie Sheen tinha aceitado ser o novo assistente do prefeito, e a produo se mudaria para Los Angeles, onde Charlie e Gary Goldberg, o cocriador do programa, moravam. (Gary iria reassumir o cargo de produtor-executivo.)___ * o que os norte-americanos chamam de syndication. (N. T.)

Claro que essa seria a temporada final para a equipe de Nova York. Para o pblico, porm, no seria um adeus ao show, mas apenas para o personagem Mike Flaherty. O episdio final foi complicado de ser criado e executado porque a trama era recheada de realidade. Mike Flaherty, por razes injustas, era forado a deixar prematuramente o trabalho que amava. E posso dizer que todos os outros atores da srie estavam to preocupados comigo quanto seus personagens estavam com Mike. Era tudo um grande (e o mesmo) problema. E ento era isso. Tinha mesmo acabado. As perspectivas fictcias de Mike Flaherty eram melhores que as minhas. Provavelmente ele trabalharia de novo. Mas eu trabalharia? Dificilmente. Pelo menos no dessa forma, gravando semana sim, semana no, diante de uma platia ao vivo. Trabalhei com David Rosenthal, Bill Lawrence e o restante dos escritores para garantir que Mike tivesse pelo menos uma cena substancial com cada um dos personagens fixos da srie. Isto era para dar ao pblico a sensao de que todos os relacionamentos que ele tivera haviam sido bem resolvidos e tambm para que eu pudesse dividir o palco com cada um daqueles artistas talentosos, dos quais vim a gostar muito nos quatro anos19

em que trabalhamos juntos. A coisa toda foi carregada de emoo; a carga logstica que havamos criado s tinha agravado a exausto, que era a razo inicial que me fizera sair do programa. Fora dos palcos, meus planos de deixar a srie criaram uma onda de apoio e carinho comparvel a dois anos antes, quando eu havia anunciado que tinha a Doena de Parkinson. Houve um enorme interesse da mdia nos meus ltimos dias de mandato, com reprteres aparecendo no estdio e acompanhando nossa preparao para meu ltimo programa. Todos - elenco, equipe tcnica, escritores e equipe de produo - estavam, ao mesmo tempo, dando o mximo e meio perdidos. Mas agarravam-se a algo que parecia estar fugindo de mim. Esse episdio final marcava um momento de virada na minha vida, um abalo tectnico. Eu olhei em volta, entendi o que havia sido colocado em movimento e o que aconteceria em seguida e disse: - Puta merda! O que foi que eu fiz? Eu tinha navegado em guas estreitas e rasas demais para poder virar o barco. No como se estivesse totalmente por fora do que estava acontecendo; fui dominado pela emoo como todos os outros. E tambm me sentia culpado, sabendo que, ao escolher mudar a direo da minha vida, havia tirado tantos outros de seus cursos naturais. Eu esperava que no fosse algo irreversvel, mas com certeza havia sido inesperado. Ou talvez no tenha sido to inesperado assim. Todos podiam ver minha batalha fatigante. E o ltimo esforo para fechar tudo de maneira correta, a presso para atingirmos a marca dos cem episdios, o sacrifcio fsico de produzir e atuar simultaneamente apenas reforaram que eu tinha tomado uma deciso sbia. Todavia, a necessidade de eu conseguir essas ltimas risadas e desmaiar depois de cruzar a linha de chegada sobrepuseram-se a qualquer pensamento a respeito do que eu enfrentaria ao cruzar aquela linha invisvel. Naquele momento, o que me manteve seguindo em frente foi a necessidade de parar.20

Mesmo que eu no tenha aparecido dizendo "Puta merda!", disse por procurao. Para podermos fazer com que Mike Flaherty sasse do emprego na Prefeitura (e eu sasse de Spin City), precisvamos criar o momento certo para ele, e essa sada honrosa me deu certa perspectiva. O conceito era o seguinte: apesar de ser inocente e de no ter feito nada errado, o prefeito acaba envolvido em um escndalo e a prefeitura ligada ao crime organizado. No vendo outro jeito de tirar o chefe dessa enrascada, Mike decide assumir a culpa de tudo e resolve pedir demisso do cargo. Os colegas de trabalho ficam chocados e ele tambm, fica abalado, mas tem certeza de que esta a coisa certa a fazer. Ento ele comea a costurar as pontas soltas de um trabalho que o definia. Depois de seu ltimo dia no emprego, j em casa e com a namorada e colega de trabalho Caitlin, Mike expressa sua ansiedade. Que diabos vai fazer agora?

CAITLIN EST COLOCANDO A COMIDA NA MESA JANTAR PARA DOIS. MICHAEL ENTRA. Caitlin Oi. Michael Ei, voc no apareceu no bar. Caitlin As coisas estavam meio confusas no escritrio. Michael , ouvi dizer que perderam Caitlin Ele era s um rostinho bonito.21

um

cara

bem

importante hoje..

Sempre senti que Heather Locklear subestimada como atriz, provavelmente porque muito natural e faz tudo sem esforo diante das cmeras. E uma grande prova da sua habilidade ocorreu bem na minha frente, enquanto trabalhvamos juntos no tal ltimo episdio. Caitlin podia ser uma rocha, mas Heather estava mal, chorando antes e depois de cada cena. Ela foi tima naquela semana, como j havia sido durante toda a temporada. Afinal de contas, ela havia entrado para me ajudar quando o trabalho comeou a ficar pesado demais, e fez um trabalho espetacular, assim como Carlin estava fazendo com o futuro ex-assessor do prefeito. Mas a situao que fechava a semana era, na verdade, sobre mim e Tracy, um reconhecimento de quo me sinto fortalecido por ela acreditar em mim, na vida e na famlia que construmos juntos. s vezes s tenho a coragem das convices dela, do seu apoio incondicional e da sua segurana, quase como se eu devesse confiar sempre no meu corao, na minha coragem e no amor dela. E, relembrando no apenas um momento da nossa histria recente juntos, as palavras e as emoes evocaram lembranas de outros tempos, quando eu oferecia minhas dvidas e medos minha esposa - a bebida, as crises da carreira, o Parkinson - e ela nunca me julgava, apenas os dividia comigo. Quando tudo parecia perdido, contava com Tracy para me ajudar a achar o caminho - ou, melhor que isso, ficar ao meu lado at que algo novo aparecesse. E s vezes isso demorava.

MICHAEL

SENTA-SE

MESA. Michael

PELA

PRIMEIRA

VEZ EM MUITO TEMPO, ELE RESPIRA FUNDO. Quer saber? Estou bem. Vou dar a volta

por cima, no vou?22

Caitlin Claro que vai, Mike. Michael No o fim, n? Caitlin Ainda est muito longe do fim. Michael Mas estranho. Desde que me lembro, sempre tinha algum lugar para ir todas as manhs. 0 que vou fazer amanh, quando o despertador comear a tocar? Caitlin Vou deixar o despertador desligado.Na noite do programa, o lugar ficou lotado. A imprensa estava l, e muita gente do estdio e da rede de TV tambm; minha famlia tinha vindo de Vancouver; todos os produtores e roteiristas que haviam trabalhado no programa nos ltimos quatro anos apareceram para se despedir. E, mesmo tendo muitos convidados especiais, muitos ingressos foram reservados para as pessoas comuns, aqueles leais espectadores que sempre vinham ver nosso programa desde que fora criado. E claro que Tracy passou a maior parte da noite nos bastidores, vendo o programa pelos monitores ao lado de Gary, os dois chorando enquanto assistiam ao episdio e a esse captulo de nossa vida chegarem ao final. No fim da noite, corri para juntar o elenco para o cumprimento ao pblico que planejamos para ser includo como parte do episdio. Eu usava23

a jaqueta esportiva favorita de Mike Flaherty, da Universidade de l;ordham, e abracei cada membro do elenco e acenei minha despedida. Ao fundo tocava Glory days, msica que Bruce Springsteen gentilmente nos deu permisso para usar. Foi uma escolha sentimental, mas tambm era para ser irnica. O tempo passa e deixa voc sem nada, cavalheiro; sobram apenas histrias chatas dos dias de glria. Claro que meus dias de glria ainda no tinham acabado. Eu ainda teria muitas histrias para contar. Depois do programa, reunimo-nos em um restaurante prximo que j tnhamos reservado para aquela noite. Danamos e festejamos, rimos at a barriga doer e fizemos nossas despedidas. Naquela noite, quando Tracy e eu fomos para casa, deixei o despertador desligado.

Mexido, no batidoQuando fui diagnosticado com a doena, em 1991, estava determinado a absorver o impacto, esquecer todo o medo, a confuso e as dvidas e ficar agradecido por ter um pequeno grupo de amigos e a famlia me apoiando. Eu entendia que os sintomas indicavam um progresso lento da doena, e isso me deu o tempo e a privacidade de que precisava para processar a situao. Da mesma forma, quando anunciei o que estava acontecendo, em 1998, aps sete anos medindo o tamanho e o peso do fardo que estava carregando, o que eu queria, em grande parte, era aliviar um pouco esse fardo. Apesar de estar nervoso em relao a como as pessoas reagiriam quando contasse a verdade, estava muito mais preocupado em como reagiriam se eu continuasse a esconder a situao. Sendo brutalmente honesto, na maior parte daquele tempo eu era a nica pessoa com Parkinson do mundo. Claro que digo isso no sentido abstrato da coisa. Acabei ficando sensvel em perceber pessoas minha24

volta que tinham sintomas da Doena de Parkinson, mas enquanto elas no se identificassem comigo eu tambm no tinha pressa nenhuma de me identificar com elas. Minha situao me permitia, seno uma negao completa, pelo menos certo isolamento. Mas isso iria mudar. No sa do meu isolamento, e pronto. Ir a pblico foi uma deciso difcil, e eu tinha muitas desconfianas. Minha experincia subjetiva era agora um fato objetivo no mundo selvagem. No pertencia mais apenas a mim - apesar de eu logo aprender que nunca tinha pertencido apenas a mim desde o incio. Mais de um milho de outros norte-americanos e suas famlias estavam passando pelo mesmo que eu - alguns abertamente, outros em segredo, com medo de ser incompreendidos e marginalizados. Eu representava algo para eles e, tendo ou no planejado isso, agora tambm os representava na mente das pessoas. Eu reconhecia que tinha uma responsabilidade com essa nova comunidade e ao mesmo tempo a oportunidade de fazer algo positivo. Podia me relacionar com os pacientes que me escreviam, em especial os que estavam on-line, nas salas de bate-papo sobre Parkinson. Em geral, eu fazia isso usando um pseudnimo, mas era sempre estranho quando as pessoas me perguntavam o que eu achava de mim. Uma das maiores revelaes que tive foi que, apesar de termos o mesmo fardo, nossas experincias podiam ser muito diferentes umas das outras. A Doena de Parkinson pode se apresentar de muitas formas - e, por alguma razo, cada um tem uma verso diferente. Uma terapia com medicamentos ou uma cirurgia que funcionem para um podem no dar certo para outro. Nossas reaes - emocionais, psicolgicas e fsicas - variam muito, e isto com certeza afeta nossa habilidade de reagir. Minha interao com a grande populao de portadores da Doena de Parkinson levou-me a ver que tinha sorte, e isso me deu certo consolo. Por alguma razo, eu tinha sido poupado da tortura da depresso. No25

quero dizer com isso que no tenha tido momentos de tristeza, medo ou ansiedade acerca de minha condio, alm de ter precisado passar por cima do sentimento de negao para reconhecer tudo isso. Mas a depresso clnica um sintoma comum enfrentado por 40% dos pacientes com DP. Igual demncia, ela pode estar presente desde o incio, pode aparecer ao longo do tempo ou de uma hora para outra nos ltimos estgios da doena. E, como eu disse, apesar dos altos e baixos j esperados em uma vida com Parkinson, no tenho de lutar com o desequilbrio qumico que ativa uma depresso severa. Nunca sa de uma sala de bate-papo daquelas sem me sentir ura cara de sorte. Minha famlia, minha relativa juventude, minha situao financeira e tambm minha posio como homem pblico deram-me tremenda vantagem para lidar com a doena. Apesar de o Parkinson ter impacto direto em minha habilidade de fazer meu trabalho, eu era, para todos os efeitos, meu prprio chefe. Ento, para mim, decidir contar ou no sobre minha doena no envolvia nenhum grande risco. O anonimato da internet tambm me permitiu ver o impacto que minha revelao teve sobre outros pacientes, suas famlias e as pessoas com as quais interagiam todos os dias. E tenho certeza de que o efeito teria sido o mesmo com vrias outras pessoas conhecidas, mas o fato de algum com a habilidade de atrair tanto interesse pblico jogar uma luz no problema da categoria significou mais do que eu poderia imaginar. Certo, pensei, e agora, o que fao com isso? Alguns meses depois do meu anncio, comecei a me integrar na comunidade de pacientes com Parkinson e a me familiarizar com as diversas organizaes e fundaes que haviam me procurado. Convidei alguns representantes a irem ao meu apartamento para discutirmos seus programas e estudar como eu poderia me encaixar nos planos deles. Apesar de eles serem muito profissionais, dedicados e comprometidos, eu ainda estava26

procurando algo com foco mais agressivo em relao a pesquisas que descobrissem uma cura. Em uma dessas ocasies, um grupo chamado Parkinson's Action Network (PAN), liderado por Joan Samuelson, uma paciente jovem em estgio inicial e advogada ativista, tocou nessas questes logo de cara, falando tambm da disparidade dos financiamentos federais para as pesquisas com Parkinson em relao a outras doenas. O Subcomit de Verbas do Senado para Trabalho, Sade e Servios Sociais tinha marcado uma audincia em Washington para algumas semanas depois, e Joan apresentou seu caso dizendo que meu testemunho poderia atrair ateno para a questo e fazer com que o Congresso nos apoiasse. Vendo uma chance de fazer a diferena, aceitei dar meu depoimento. O que agora um fato pblico e divulgado era pouco conhecido na poca: sou viciado em poltica. Quando era pr-adolescente, fui inspirado pelo primeiro-ministro canadense Pierre Trudeau e assombrado pelo presidente Richard Nixon. Virei adolescente e fui voluntrio do Partido Liberal da Colmbia Britnica nas eleies locais, distribuindo propaganda do meu candidato e redistribuindo as do adversrio no lixo atrs da loja de bebidas. (Mas no adiantou; meu favorito danou na eleio.) Ao longo dos anos, acompanhei a poltica com avidez e sempre tentei me manter informado sobre os polticos e as polticas pblicas. Todavia, como deixei o Canad quando fiz 18 anos, no tive moradia fixa em nenhum lugar durante anos, e porque no tinha virado cidado norteamericano at o ano 2000 nunca tinha votado em nenhuma eleio. E, sem ter meu prprio voto, no me sentia no direito de influenciar o voto dos outros. No entanto, na poca da audincia do Senado, eu j estava com tudo encaminhado para me tornar cidado norte-americano. Minha papelada j estava sendo processada, e com isso eu tinha a conscincia limpa para27

defender meu caso. Eu no era especialista em como andavam as pesquisas cientficas na rea. Falaria sobre o efeito que a doena tem sobre os norteamericanos, dividiria nossas esperanas e dificuldades, reivindicar nossos direitos e expressaria nossas expectativas. Escrever meu testemunho ao Congresso foi provavelmente meu primeiro esforo concentrado em comunicar o que tinha vivido nos ltimos oito anos. No queria que as pessoas sassem do meu depoimento resmungando "Coitadinho dele!". Na verdade, esperava que pensassem Acho que podemos ajudar". O otimismo que levei comigo nas audincias e a certeza de que qualquer situao, com as circunstncias certas, pode melhorar foram validados pelo testemunho do Dr. Gerald Fischbach, diretor do Instituto Nacional de Problemas Neurolgicos e Derrames (parte do National Institute of Health*). Ele afirmou que, com um bom investimento em pesquisas, os cientistas poderiam descobrir a cura para a Doena de Parkinson entre cinco e dez anos. Se uma das cmeras estivesse me filmando em dose, tenho certeza de que teria sido uma das melhores performances de surpresa da minha carreira. Esperava que ele mostrasse confiana e lanasse um desafio para que outros pesquisadores o seguissem e o Congresso os apoiasse da melhor maneira possvel, mas no estava preparado para ter uma idia certa de tempo. O testemunho dele me deu energia. Era algo manejvel. Recebi o recado de que uma cura era possvel, e precisava agir de acordo com essa informao.__ *Trata-se da Agncia nacional de Sade dos Estados Unidos. (N.T.)

Comecei a perceber que eu era ridiculamente desqualificado para contribuir com esses esforos de maneira substancial. No tinha MBA nem Ph.D., apesar de alguns anos antes ter conseguido meu GED.* Mas meu otimismo havia se cristalizado em uma esperana definitiva. E ao longo do28

ano seguinte a esperana virou a inspirao para uma fundao privada, que poderia estimular a comunidade dos pacientes e criar uma estrutura de arrecadao significativa de dinheiro, identificar cientistas sub financiados e providenciar o suporte de que eles precisavam o mais rpido possvel. O irnico que para fazer o trabalho da minha vida tive de me aposentar do meu emprego do dia a dia.__ * o equivalente ao ensino mdio (N.T.)

Frias permanentesPEYPIN D'AIGUES, PROVENCE, FRANA JULHO DE 2000 Em um estacionamento de cascalho na vila provenal de Peypin d'Aigues encontro uma rvore lisa e observo com a mesma fascinao respeitosa algo to atemporal quanto a tartaruga que vi na costa de St. John no inverno anterior: dois senhores idosos franceses usando roupas brancas amassadas e jogando uma partida de boules.**Parece mais uma dana que um jogo, alm de a conversa deles ter certa qualidade musical gutural. Depois de uma pequena discusso, aparentemente ocorrida por causa do ponto exato de lanamento das bolas, os senhores deram alguns passos at um banco de madeira, pegaram duas taas de vinho e, no tempo que cada um levou para dar um gole, j tinham se esquecido da briga. Tomei um belo gole da garrafa de gua que tinha trazido desde o aeroporto de Marselha. Sam tinha ficado nos Estados Unidos (ele no queria perder o acampamento de vero) e nossas gmeas, Schuyler e Aquinnah, ento com29

5 anos, estavam dormindo no carro. Tracy tinha entrado na imobiliria para se encontrar com nosso contato, enquanto nosso amigo Iwa pagava o motorista de txi que nos guiara at ali, a apenas um quilmetro da propriedade que tnhamos alugado pelas duas semanas seguintes. O agent de biens immobiers nos levaria o restante do caminho.__ **Jogo tradicionalssimo na Frana e no Brasil, aqui conhecido como bocha. (N.T.)

Tinha sido uma longa viagem e eu no fazia idia do que esperar do lugar. Mas, quando estvamos chegando propriedade, minhas preocupaes desapareceram. Depois de uma ltima curva, pudemos ter uma viso ampla do que nos esperava: espalhando-se pelo terreno e aumentando enquanto nos aproximvamos estava um telhado colonial de cor creme, feito de telhas de barro, grandes torres e um moinho flutuando em um mar de lavanda. No podia ter pedido por um lugar melhor para refletir sobre as transformaes ocorridas na primeira metade do ano e ponderar sobre as possibilidades da segunda metade. Meus ltimos meses como Mike Flaherty foram emocionais, exaustivos e agridoces. Mas, exceto por minhas preocupaes com o elenco e a equipe tcnica, cujos trabalhos seriam afetados, pelo menos no curto prazo, eu no tinha arrependimentos. Tambm no tinha nenhum plano real. A caminhada at o ltimo episdio coincidiu com um desejo rudimentar de criar algo como uma fundao (apesar de no ter idia do que isso significava). O amor, apoio e encorajamento que recebia de amigos, da famlia e de incontveis pessoas mundo afora estavam, me impulsionando durante essa transio. Ocorreu-me que esse poderia ser o momento certo para uma autobiografia. O resultado, pensei, seria uma oportunidade de reflexo e perspectiva, ao mesmo tempo que me daria o ensejo de mostrar minha gratido a tudo que aconteceu em minha vida - de bom e de mau. E30

tambm pensei que, se o livro desse dinheiro, eu poderia do-lo s pesquisas sobre Parkinson. Para ser sincero, minha vida antes da viagem Frana era composta de pginas em branco, iguais s do livro que eu pretendia escrever. Aps esse perodo de descanso, viria o restante da minha vida, que, por enquanto, era formado de tempo e espaos ainda no dedicados a nada. Eu no estava tirando frias. Estava embarcando em uma odissia que, sem dvida nenhuma, duraria muito mais que essas duas semanas longe de Nova York. Para minha famlia, estvamos de frias; para mim, era uma invocao. Eu esperava um sinal ou pressgio - e estava disposto a pagar em francos. Porm, eu mal sabia que, nessa quinzena na Frana, seria visitado por uma musa, no exato sentido homrico da coisa, que tomaria a forma de um corredor solitrio descendo do topo de uma montanha - ou algo parecido com isso. Provence era um sonho. O momento e a paisagem inspiraram-me a parar e apreciar quo abenoada era minha vida. Afinal, l estava eu, o moleque que veio do Canad, passando duas semanas com a famlia em uma propriedade francesa que existia havia sculos. Fotos da famlia dos proprietrios, a maioria dos filhos pequenos, cobriam as paredes da casa. Genevieve, cozinheira e empregada, muito simptica e graciosa, mas que no falava uma palavra em ingls, apontava com orgulho os retratos das meninas e exclamava: "Princesse! Princesse!". Tomamos isso como uma simples expresso de afeto dela pelas crianas, at notarmos fotos de pessoas muito elegantes em cenrios de realeza, roupas de cama de linho com brases elaborados e, finalmente, encontrarmos um documento personalizado identificando o dono da propriedade como o herdeiro do trono de um principado europia. No conseguia parar de rir. Tnhamos furado uma bela fila. Enquanto as crianas se esbaldavam na piscina gelada, Jean-Luc,31

marido de Genevieve, era meu guia em caminhadas dirias pelas redondezas. Super naturalista, ele sempre andava olhando para o cu, procurando as muitas jovens guias nascidas naquela primavera. - Michel! - ele exclamava, apontando para o horizonte ou acima de sua cabea. - Regarde, regarde! Aigle, aigle! Eu dava uma olhadela rpida, mas no sem certa trepidao. Na primeira de nossas caminhadas, Jean-Luc alertou-me de que, alm das guias, a fauna local tambm tinha grande populao de porcos selvagens - os javalis - ou, como diria Jean-Luc, cochons sauvages. E um presunto peludo e malvado de cem quilos que, sem aviso, pode atacar saindo de um arbusto e eviscerar voc com as longas presas. E nem precisam ter um motivo. - Sim, j vi a guia, Jean-Luc... No, no preciso de um binculo, merci. J Tracy descobriu uma coleo de bicicletas em um galpo atrs da casa. Jean-Luc cuidava delas e disse que podamos us-las. Minha mulher sempre foi uma entusiasta do ciclismo e ficou animada com a possibilidade de pedalar para cima e para baixo pelos vales e cidadezinhas dos arredores de nossa casa de campo. Ela at me convenceu a ir com ela, mas depois de duas ou trs subidas cruis ser eviscerado por um javali no me pareceu uma idia to m assim. O pouco de TV que vimos desde que chegamos a Provence inclua a cobertura da espetacular Volta da Frana. O evento anual e de maior tradio esportiva do pas vinha rodando pelas montanhas e cidadezinhas do interior, e os hericos atletas, em especial o norte-americano Lance Armstrong, tinham inspirado Tracy. Eu tambm acompanhava o progresso de Lance, mas por razes diferentes. Em um dos nossos ltimos dias em Provence, descobrimos que o trecho seguinte da Volta da Frana passava por uma cidadezinha prxima chamada Pertuis. Acordamos cedo, comemos uma baguete com queijo32

delicioso no caf da manh no terrao e partimos para a cidadezinha. Depois de mais ou menos uma hora esperando os ciclistas, durante a qual nos embriagamos com o ambiente e as cores do local e deixamos as crianas tomarem um sorvete atrs do outro de um vendedor prximo, um burburinho comeou a surgir na multido. Podamos sentir o cho sob nossos ps comear a vibrar. Os espectadores espremiam-se para conseguir uma vista melhor. Pelo que eu tinha visto desses eventos na televiso, sempre pareceu que a multido se aventurava perto demais dos ciclistas, e me surpreendia no haver muitos acidentes por causa disso. Tracy e eu pegamos uma gmea cada uma pela mo e as seguramos firme enquanto o peloto passava zunindo por ns. Era difcil distinguir uma bicicleta da outra; juntas, elas se tornavam um grande borro metlico. O arco-ris de cores das camisetas das equipes e o cromo brilhante das bicicletas atraam as pessoas como um grande m. Pensvamos que aquele dia em Pertuis havia sido o melhor encontro pessoal que poderamos ter com a Volta da Frana. Mas no sabamos o que nos esperava em Paris. PARIS, FRANA -SBADO, 22 DE JULHO DE 2000 Apesar de um perodo particular e repugnante em sua histria, quando serviu de quartel-general para os nazistas durante a ocupao na Segunda Guerra Mundial, amamos o Hotel de Crillon. As grandes janelas do nosso quarto, que iam do cho ao teto, tinham vista para a Place de La Concorde, oferecendo uma clara viso do Jardin des Tuileries, do Muse de l'Orangerie e, do outro lado do Sena, do Palais Bourbon. Pouco depois de nos registrarmos, liguei para nosso amigo Philippe de Boeuf, o gerente do hotel. Perguntei-lhe porque havia uma bandeira do Texas tremulando acima do hotel, coisa que reparei Logo que chegamos. - para Lance Armstrong - ele respondeu com. seu sotaque . Ia Charles Boyer. - Ele est na cidade por causa da Volta da Frana. Amanh33

a ltima etapa, e o Crillon a casa dele quando est em Paris. Alm de termos um grande apreo pelas conquistas que levaram Lance a ser o maior ciclista competitivo da histria, Tracy e eu tambm fomos inspirados, como tantos outros no mundo todo, pela coragem e perseverana dele em superar o desafio de um cncer de testculo, que ameaava no apenas sua carreira, mas tambm sua vida. Ele se tornou um heri para muitas pessoas com cncer. Fiquei especialmente impressionado pela fora dele em enfrentar a prpria provao e ainda reconhecer a situao enfrentada pelos outros. A Fundao Lance Armstrong, mesmo sendo relativamente nova, j conseguia cumprir a misso qual se propunha: "Inspirar e capacitar quem sofre com o cncer e seus familiares sob o mote A unio faz a fora, o conhecimento traz poder e atitude tudo"'. Eu considerava Lance e Christopher Reeve modelos a seguir para o que eu queria realizar. Os dois eram homens que tinham enfrentado desafios que os havia transformado. Cada um deles pegou o problema e o transformou em algo positivo. Eu no precisava deixar a doena me definir - eu mesmo tinha de me definir. E talvez, no processo, conseguisse algo melhor para mim e para todos os outros na mesma situao. - Engraado voc mencionar a bandeira - continuou Philippe. - A mulher de Lance, Kristin, viu voc e sua famlia no saguo e gostaria de convid-los para uma recepo que teremos aqui no hotel hoje tarde. No precisei pensar no assunto nem perguntar nada a Tracy. Antes de desligar o telefone, ainda tinha um pedido a fazer a Philippe. Um dia ou dois antes de sairmos de Provence, recebemos um telefonema dos Estados Unidos informando que cada um de ns havia sido indicado ao Emmy - eu pela ltima temporada de Spin City e Tracy pela participao especial em um episdio de Law e Order SUV. Enquanto ela estava no quarto das gmeas ajudando-as a desfazer as malas, perguntei a34

Philippe se o chef do hotel poderia fazer um bolo com a forma de um Emmy. Claro que precisei explicar que porcaria era um Emmy e com o que ele se parecia. Mas tarde; menos por causa dos meus poderes descritivos e mais pela capacidade artstica e culinria do chef, o bolo de chocolate em forma de Emmy mostrou-se incrivelmente acurado e delicioso. To estranho quanto ver a bandeira do Texas sobre o Hotel de Crillon foi estar em uma sala cheia de gente, em Paris, falando com sotaque texano. Levou um tempo para eu me acostumar. Pelo menos duas pessoas estavam conversando em francs - Tracy e a esposa de Lance, Kristin. Tracy sempre fantasiou morar na Frana, imergindo na lngua e na cultura daquele pas. E eu no achava a idia ruim; no me importaria em morar em Provence por um ms ou por quanto tempo precisasse para aprender a dizer a seguinte frase em francs: - Fui atacado por um javali. Ajude-me a encontrar meu bao! Enquanto isso, Schuyler e Aquinnah estavam provando minha teoria de que, quando em uma sala cheia de adultos, crianas so instintivamente atradas para qualquer ser humano menor que elas; neste caso, Luke, o filho de 1 ano de Lance e Kristin, foi o alvo delas. Eu tinha tido uma surpresa boa ao encontrar um velho amigo no meio dos texanos - Robin Williams. Ciclista fantico, rodando centenas de quilmetros por semana nas ruas prximas baa de So Francisco, Robin tinha uma parceria de admirao mtua de longa data com Lance. Eles sempre pedalavam, e Robin at trouxe uma de suas bicicletas a Paris para poder treinar com Lance. Lance fez uma apario rpida. Nem poderia ser diferente; afinal, ele ainda estava competindo. Nunca encontrei um ser humano to em forma - seu fsico era to bom que poderia cortar um papel. Suas famosas belas feies, com olhos brilhantes e acolhedores, no exprimiam a fadiga intensa que ele com certeza sentia, tendo chegado ltima etapa de um dos35

enduros mais cansativos do mundo. Eu lhe disse que desde nossa chegada Frana estivemos acompanhando seu progresso, mas tinha de pedir desculpas, pois no iramos ver o final da corrida - nossa volta a Nova York seria no Concorde do domingo de manh. Lance logo nos convenceu a mudar nossos planos, no s nos convidando para ficar e ver a corrida com a famlia dele da tribuna principal na Champs-Elyses como tambm para participar da festa da vitria no domingo noite, no Muse d'Orsay. Por sorte, nosso agente de viagem conseguiu reservar passagens para ns no vo da segunda-feira. Durante um tempo, parecia que teramos de ficar at tera-feira. Tudo bem, pensamos, mesmo se no desse para ir na segunda, pegar o Concorde da tera no seria a pior coisa do mundo. Na verdade, do jeito que as coisas aconteceram, talvez tivesse sido a pior coisa do mundo. Mas voltarei a esse assunto mais tarde. PARIS, FRANA - DOMINGO, 23 DE JULHO DE 2000 Manhs de vero ensolaradas em Paris so sempre um presente, mas, nesse contexto, esse dia foi excepcional. O lugar no palanque principal da Champs-Elyses reservado para a famlia de Lance ficava a apenas alguns passos da Place de Ia Concorde. Estvamos posicionados bem ao lado da linha de chegada, perto o bastante da ao para sentir um friozinho pelo vento criado pelo peloto de ciclistas que passava rugindo por ns a cada volta. E naturalmente um coro de apoio partia do nosso grupo quando a camisa amarela de Lance passava por ns. Mas ento parecia que toda Paris estava torcendo por aquele norte-americano fenomenal. E, como se o borro barulhento dos competidores passando por ns no fosse suficiente, ainda ramos entretidos pelos comentrios histricos de Robin Williams e de seu lendrio amigo Eric Idle, do Monty Python.36

Robin Williams est sempre ligado, metralhando rapidamente qualquer um que tenha sorte de estar ao alcance de sua voz ou at mesmo de seu campo de viso. E voc nem precisa "entend-lo" para ach-lo absurdamente hilrio. As gmeas, que tinham 5 anos, eram entretidas por um "gigante" menino de 10 anos, que elas descreviam como engraado e assustador. Robin, f fantico do ciclismo, estava especialmente excitado por estar to perto da ao ou, como descreveu a experincia mais tarde ao The New Yorker, "bem no meio da grande mishpocha... ela lhe d uma chute no corao E depois ficou ainda melhor. Pouco antes de o peloto passar zunindo para a penltima volta da corrida, Robin, Eric e eu recebemos uma daquelas chances nicas na vida. Se queramos ir no carro oficial da Renault quando ele fosse liderar os ciclistas at a ltima volta pela Champs-Elyses? provvel que eu tenha dito "Oui", ou talvez tenha sido "Oiieebbaa!", mas de qualquer forma minha resposta foi afirmativa. Sempre que sou abenoado com uma oportunidade como essa, meu sentimento de gratido me lembra de quantas oportunidades extraordinrias tive na vida. Joguei hquei com Bobby Orr no gelo do Boston Garden; sentei-me ao lado da princesa Diana na estria real londrina de De volta para o futuro; toquei guitarra no palco, em ocasies separadas e no muito bem, com Bruce Springsteen, Elvis Costelo, Sting, Eltonjohn, Billy Joel, James Taylor, Levon Helm, John Mayer e Aerosmith; tambm jantei na Casa Branca e sentei-me ao lado de Nancy Pelosi, no escritrio dela, nos minutos que antecederam sua apario como a primeira mulher da Cmara dos Representantes dos Estados Unidos a presidir o State of the Union Address. Tenho certeza de que h muitos outros momentos Forrest Gump que estou esquecendo. No digo isso para me gabar; apenas so evidncias de quo ridiculamente sortudo tenho sido em ter a vida que tenho. O que eu ia fazer em seguida servia muito bem de metfora da vida que tinha levado37

e vivido at agora. Alm de ser uma das pessoas mais amveis e divertidas que conheo, Robin Williams tambm (no estou sendo indiscreto; ele at famoso por isso) uma das mais suadas. Ele um daqueles caras que to peludo que, quando damos uns tapinhas nas costas dele, parece que estamos afofando um edredom - e, se for um dia quente, um edredom molhado. Segundos depois de entrarmos no carro da Renault, a temperatura l dentro subiu bastante, pois o ambiente absorveu o calor extra que emanava de Robin Williams. Mas logo o carro andou, aumentou a velocidade, e a brisa secou o suor de nossa testa e pescoo enquanto nos posicionvamos para ver toda a ao. J bem legal quando essa trovejante horda de homens e mquinas passa voando por voc, ali parado, a uma distncia no to segura ao lado da pista, mas testemunh-los vindo de frente para voc, em velocidade total, protegido por uma distncia flutuante fora de seu controle, uma adrenalina pura. Era fcil distinguir Lance e os colegas de equipe dos outros competidores. Lance, claro, usava a camiseta amarela de lder, mas eu estava to chocado e impressionado com o fato de ele e os companheiros pedalarem e beberem ao mesmo tempo, no de suas garrafas de gua, mas de taas de cristal com champanhe. Lance explicou mais tarde que, na ltima volta, a equipe vencedora d champanhe aos adversrios em sinal de respeito, adicionando meio sem convico que eles bebem de mentirinha. Lance e sua equipe (U.S. Postal Team) chegaram ao ltimo dia com a vitria assegurada. Quando falei com ele no dia anterior, ele sabia que sua segunda vitria consecutiva na Volta da Frana estava ans le sac, mas acrescentou: - A ltima etapa tambm vale. Pode parecer bem cerimonial, mas, se estiver liderando com sete minutos de vantagem e cair a trinta metros da linha de chegada e no conseguir terminar a prova, voc perdeu.38

De onde Robin, Eric e eu estvamos sentados - e ningum mais tinha lugares to bons -, podamos ver que nem um balde de champanhe poderia evitar que ele cruzasse a linha de chegada, nem que conseguisse a vitria. E, s para constar, a viso da frente do carro tambm era bem impressionante. O Renault acelerando em uma Champs-Elyses completamente vazia, ladeada por grandes massas de parisienses delirando, deixou-nos sem palavras - bem, quase sem palavras. Durante um trecho da nossa rota, quando nos aproximvamos de uma das marcas registradas mais icnicas de Paris, Robin soltou a seguinte prola: - Desde Hitler, ningum teve uma vista como esta do Arco do Triunfo. At hoje, todas as vezes que me encontro com Robin ou Eric, a primeira coisa que dizemos "Sempre teremos Paris". Por mais longa que seja minha lista de Alice no pas do espelho, tenho certeza de que, dadas a vida e a carreira de meus companheiros, a lista deles deve ser maior e mais sensacional. Mas nenhum de ns estava passado demais a ponto de no ter outras aventuras. Esse dia foi especial, "como estar do lado de fora do estdio dos Yankees e por sorte encontrar Joe DiMaggio", segundo Robin. Ao sair do carro e me juntar famlia Armstrong (e com a minha, inclusive com uma visivelmente enciumada Tracy) para a entrega dos prmios, pensei em voz alta, perguntando com quem teria de falar para que todos dessem mais uma volta e eu pudesse tirar fotos dessa vez. Naquela noite, no hotel, enquanto Tracy e eu nos vestamos para ir festa da vitria no Muse d'Orsay, Schuyler me perguntou sobre o livro que eu pretendia escrever. - sobre o qu? Boa pergunta. - Bem, acho que sobre mim - comecei. - Mas sobre o que de voc? - Aquinnah perguntou. - Sobre voc ser pai?39

- Ah, sobre voc ser um "Pai que Treme" - Schuyler disse. - Isso! - respondi, impressionado com sua percepo. Aquinnah queria saber mais. - Mas um Pai que Treme fazendo o qu? Andando de bicicleta? Tracy, caindo na risada, olhou para mim querendo saber at onde eu iria com aquilo. - Sim, isso mesmo - respondi. - Papai que Treme andando de bicicleta, ou algo assim. Mais tarde, quando chegamos ao Muse d'Otsay, a antiga estao ferroviria e atual museu de arte estava banhada em um brilho de conto de fadas. Mesmo na era da eletricidade, a noite de Paris parece iluminada apenas por luzes a gs, manchas repletas de luminosidade, um milho de velas tremeluzindo de dentro de grandes jarros de vidro redondos. A princpio, o museu parecia um lugar estranho para aquela festa; afinal, teramos atletas e esportistas que tinham acabado de ganhar a Copa do Mundo das corridas de bicicleta. E no s ganharam, mas detonaram os adversrios. No quero dizer que estivesse esperando um barril de chope ou algo assim, porm aquilo me parecia refinado demais. Nos Estados Unidos, imagino o time todo no Score, jogando champanhe barata nas danarinas, em vez do que ocorre na Frana, onde se comem canaps tomando champanhe Cristal, com o belo quadro Whistlers Mother de fundo. Essa comemorao aumentou minha impresso de como os franceses vem os esportes de maneira diferente de ns. Obviamente eles no esto imunes mcula dos excessos comerciais, s grandes trapaas e aos egos inflados na mesma proporo do salrio, mas, mesmo que celebrem algum atleta, a maior deferncia que tm com o esporte em si. Apesar de Lance e sua equipe j terem vencido l, e de ainda vencerem muitas outras vezes nos anos seguintes, a elegncia daquela noite mostrava com clareza que a vitria na Volta da Frana era um momento a ser saboreado.40

Tracy e eu passamos boa parte da noite com a me de Lance, Linda. Quando voc pergunta a Lance de onde vem seu otimismo, a resposta sempre sobre a me: - No tnhamos o dinheiro ou as oportunidades que outros tinham. Mas ela nunca reclamou. E, se eu reclamava de algo, minha me sempre dizia: 'Amanh ser um novo dia. Otimismo sempre foi um estilo de vida para ns. A festa incluiu um grande nmero de pacientes com cncer, alguns sobreviventes, outros ainda lutando contra a doena. Aprendi que a presena deles era uma constante em eventos como aquele. Lance me explicou: - Este tem sido um grande fator de motivao para minha carreira. Ver pessoas na mesma situao, que entendem que estou correndo no s para ganhar uma corrida de bicicletas, mas por um monte de outras razes tambm. Tracy e eu ficamos muito tocados com a generosidade que ele mostrou ao dividir conosco aquela disposio. Um homem capaz de feitos quase sobre-humanos era mais admirvel ainda por causa da vulnerabilidade e da vontade de que isso fosse parte tanto de sua identidade quanto de sua fora. Mais tarde, antes de voltarmos ao Crillon, Tracy e eu procuramos Lance para agradecer-lhe no s por ter nos convencido a ficar e ver a corrida, mas tambm por nos convidar para a comemorao. Eu tinha muitas perguntas a respeito de pessoas que conheci aquela noite, em especial sobre aquelas que tinham ligao com a Fundao dele. Como Lance juntara essa fbrica de apoios? Quanto disso teve a participao direta dele, de sua liderana? E como fizera para implantar e manter uma cultura na Fundao que fosse to fiel ao seu esprito de coragem, esperana e realizao? Fizemos planos de nos encontrar outra vez depois do41

vero, em Nova York, para podermos aprender mais sobre o trabalho dele na Fundao. Minha miniodisseia gaulesa - muito melhor que a verso pica, porque pude levar a famlia junto - parecia ter servido a um propsito maior que ser apenas duas semanas de descanso e recreao. Minha invocao tinha sido respondida. Lance havia descido das montanhas com o que bem poderia ser um mapa parcial para a prxima perna da minha jornada. AEROPORTO CHARLES DE GAULLE, PARIS, FRANA 24 DE JULHO DE 2000 No h experincia igual a voar em um Concorde. ridiculamente caro e, logo que se est a bordo, voc percebe que o preo no especial para ter mais espao para as pernas, a cabea ou o corpo. Os lugares so to luxuosos quanto possvel, dadas as restries decorrentes do formato tubular, como se fosse uma flecha. Claro que o grande atrativo e a razo do preo alto so o tempo que se economiza com ele - de Paris a Nova York em trs horas. Alguns anos antes, acordei um dia em Londres, tomei o caf da manh, peguei o Concorde para Nova York, de l peguei um vo da American Airlines para Los Angeles e j estava filmando Caras e Caretas no estdio uma da tarde. Mesmo com a diferena de fuso horrio, ainda um bom exemplo do milagre que o Concorde. Pelo menos a rea de espera do aeroporto Charles de Gaulle tinha bastante espao para nos espalharmos. Naquela segunda-feira de manh, aps a Volta da Frana, minha famlia estava se aproveitando de cada espao oferecido. As gmeas corriam freneticamente, o que aos 5 anos quase a descrio do trabalho delas. Nosso amigo Iwa ficava de olho nas crianas e checava novamente com a atendente se nossas bagagens haviam sido processadas de forma correta. Eu estava ocupado conversando com Tracy, e ela estava ocupada preocupando-se com o avio - no que algum42

tenha notado, mas sei quando ela est perturbada assim como ela percebe quando estou falando abobrinha. Desde que a conheo, Tracy j melhorou muito era relao ao medo de voar. O que foi bom, pois no comeo de nossa famlia viajvamos constantemente, a trabalho e tambm por diverso. Talvez parea meio insensato e frgil viajar uma distncia to longa em to pouco tempo, mas tinha algo em relao ao Concorde que deixava Tracy nervosa. E hoje no era diferente. Eu estava fazendo o mximo possvel para ser paciente. Voar nunca havia me incomodado, mas no Concorde eu me sentia particularmente seguro, em especial no Concorde da Air France. No que tivesse alguma evidncia que embasasse minha sensao. Apenas me parecia que os franceses tinham uma operao muito eficiente, por isso naturalmente deviam manter as aeronaves sempre em ordem. Contei essa teoria a Tracy, mas ela no ficou impressionada. Em um ltimo esforo, recomendei um Valium. - Ah, claro - ela disse -, faz sentido. - Eu prometo ento, Tracy - eu disse, dando-lhe um copo-d'gua para tomar o comprimido -, que, se isto lhe d tanto medo assim, esta ser a ltima vez que voaremos em um Concorde. A viagem foi tranqila, sem nenhum susto, e, como previsto, durou aproximadamente trs horas entre a decolagem e o pouso no aeroporto JFK. Mais ou menos no mesmo horrio no dia seguinte, tera-feira, 25 de julho, sentei em meu escritrio em Manhattan com a televiso ligada e comecei a separar a correspondncia que se havia acumulado no tempo em que ficamos fora. Uma chamada na tela da TV anunciava uma notcia de ltima hora. Quando apareceram as imagens, o que quer que eu estivesse segurando caiu no cho. O vdeo, to grfico, to assustador, foi a nica informao sensorial que consegui processar. Eu estava surdo para o som que acompanhava as imagens. O Concorde da Air France, ao tentar pousar ou abortar uma decolagem - eu no conseguia discernir -, despencou no43

cho, desintegrando-se em um redemoinho de chamas vermelhas e fumaa preta. O vdeo foi passado novamente, e desta vez prestei ateno aos detalhes. - Aproximadamente s cinco da tarde, horrio local, um Concorde com destino a Nova York explodiu em uma bola de fogo logo depois de decolar, matando 113 pessoas. s vezes, quando se est sozinho, vrios minutos se passam at que voc perceba que est chorando.

CIDADE DE NOVA YORK - SETEMBRO DE 2000 Lance cumpriu a promessa e, ao chegar setembro, encontramo-nos no escritrio da minha produtora em Nova York para discutir a criao de uma fundao. Acompanhando Lance estavam Howard Chalmers, presidente da Fundao Lance Armstrong, e Jeffrey Garvey, diretor. Conheci os dois em Paris. Lance relembrou que, em 1997, sentou mesa de um restaurante mexicano com alguns amigos e scios e comeou a sonhar com o que sua Fundao poderia realizar. Admiravelmente, Lance estava comeando algo que talvez no chegasse a ver concludo. Naquela poca, seu cncer de testculo havia se espalhado para o abdmen, os pulmes e o crebro, e os tratamentos no garantiam que iria se recuperar ou at mesmo sobreviver. Agora, em 2000, com a doena em remisso, ele tinha duas camisetas amarelas da Volta da Frana no armrio e arrecadado milhes para os esforos contra o cncer. Lance dera Fundao mais que um nome e uma cara. Ele a imbuiu com sua atitude e paixo pela vitria. - Olha, no como se a gente recebesse boas notcias todos os dias durante nossa luta. Mas continuamos nela, motivados, e sempre pensamos que podemos fazer a diferena.44

Alm do bsico - os aspectos do negcio no dia a dia ao se gerir uma empresa 501(c)(3)* -, Lance explicou o que significava ter seu nome na porta da Fundao, esboando as maneiras pelas quais seu perfil pde influenciar aqueles que sua Fundao queria ajudar. Tambm falamos dos estigmas ligados ao Parkinson e ao cncer e de quo importante foi para as pessoas que puderam e conseguiram falar a respeito disso. - Eu era jovem e tinha cncer de testculo. Voc pode imaginar quantas abobrinhas as pessoas falaram sobre isso. E ainda falam at hoje. Eu no ligo. No deixo esse tipo de coisa me afetar. Eu j estava motivado, mas Lance deu um jeito de me deixar ainda mais aceso. Pensando de forma prtica, perguntei-lhe qual era o ingrediente essencial para uma Fundao bem-sucedida. - Depende das pessoas que estaro ao seu lado - ele disse. - Voc no tem como fazer isso sozinho.______ *501 o cdigo dado pelo governo dos Estados Unidos a organizaes sem fins lucrativos, e o nmero que vem a seguir as separa por ramos de atividade (N.T.)

Estranhamente familiarEm junho de 1989, alguns dias depois do nascimento de Sam, meus pais vieram l do Canad para conhec-lo. Talvez meu pai soubesse que seria uma das poucas chances que teria de embalar o neto em seus braos de urso - em janeiro ele se foi -, porque no queria soltar o menino. Minha me teve de arrancar o nen dele. Estvamos sentados na beira da piscina em uma manh e minha me fazia Sam dormir em seu colo, sob o sol da Califrnia, quando fez a seguinte previso: -Alguns dos melhores amigos que vocs tero na vida sero feitos atravs de seus filhos: pais e mes dos amigos deles, pais da escola deles.45

Vocs vo ver. Foi assim para mim e Bill. uma das muitas ddivas de ter filhos. medida que Sam foi crescendo, ele nos apresentou, de uma maneira ou de outra, a muitos novos amigos, vrios dos quais esto entre nossos mais chegados atualmente. Quando as gmeas Aquinnah e Schuyler nasceram, nosso crculo de amizades cresceu muito. Eu j aceitara fazia tempo a previso de minha me como a mais pura forma de sabedoria, mas mesmo ela no poderia ter previsto o fenmeno que encontrei quando as garotas foram para a pr-escola. Depois das primeiras vezes que me encontrei com Curtis Schenker, meu desejo no era convid-lo para fazer parte de nosso crculo de amizades, mas pedir uma medida cautelar contra ele. Durante a vida, estabeleci algumas metas grandiosas para mim mesmo. Em cada caso e em vrios nveis, minha busca pelo objetivo desejado foi cheia de ambio, esperana, arrogncia e imaturidade juvenil (e, as vezes, no to mais juvenil). Cada insucesso eu considerava uma falha minha, mas cada vitria era dividida. Sempre posso citar uma Lista de pessoas que tiveram algo a ver com coisas que deram certo. Foi assim com minha carreira - Gary Goldberg, Bob Zemeckis, Steven Spielberg, os atores com quem trabalhei e, claro, o pblico que me manteve no negcio - e tambm com minha famlia - Tracv. Tracv e Tracv Por outro lado, impossvel imaginar como a histria da Fundao teria se desenrolado se no fossem as contribuies precoces, constantes e irrepreensivelmente otimistas de um coordenador de um fundo de investimento que nunca havia tido contato prvio com a Doena de Parkinson. Desde o momento em que a vimos, amamos a filha de Curtis Schenker, Ally. Ela era uma mquina de sorrisos muito esperta e adorvel, e seu temperamento, interesses e aparncia fsica eram to similares aos das46

nossas filhas que Tracy e eu a apelidamos de "A terceira gmea". As trs eram super unidas. Carolyn, mulher de Curtis e me de Ally, parecia ser a anttese do clich que so as mes socialites que moram no Upper East Side. Seu humor gracioso, o senso de perspectiva e a natureza doce logo atraram Tracy, e a amizade delas cresceu e tornou-se muito mais que s aqueles papos na hora de deixar e pegar as crianas na escola. Enquanto isso, Ally tinha se tornado a amiguinha fixa que ia em casa sempre depois do colgio e nos finais de semana, e falei com Carolyn nas poucas vezes em que dei uma escapada da agenda de Spin City e fiz o trabalho de "leva e traz". E estive em algumas visitas dos pais escola, em excurses da classe e em jantares improvisados antes de associar Carolyn ou Ally a esse raivo de olhos selvagens chamado Curtis. Eu sabia que ele era o pai de uma das crianas, mas podia jurar que estava me seguindo. Empoleirado em uma dessas pequenas cadeiras vermelhas da pr-escola, mexendo nos pedacinhos que haviam no meu suco de ma, viro-me e l est ele ao meu lado, em uma pequena cadeira tambm. Eu sempre sentia que ele tinha comeado a falar um ou dois minutos antes de eu prestar ateno e continuado por pelo menos mais dois depois de eu j ter perdido minha ateno. E ento teve a figurao. E foi onde ele me ganhou. Era a festa anual de arrecadao de fundos da pr-escola 92nd Street Y, que pediu aos pais e amigos que doassem produtos de alto valor, servios e experincias para serem leiloados. Figuraes - papis pequenos em filmes ou sries sem nenhuma fala - so itens muito valorizados nesses leiles. No sei se fico chocado ou acho engraado que nova-iorquinos bem de vida, sofisticados e bem resolvidos cheguem a doar milhares de dlares pelo privilgio de passar o dia como figurante ou, na nossa linguagem, um "artista perifrico". Esse o nono crculo do inferno da indstria do entretenimento,47

porm com lanche grtis. Mas tudo bem. Se servisse para arrecadar dinheiro para uma boa causa, eu sempre estava disposto a oferecer uma vaga em Spin City. Foi o que fiz. E adivinha quem comprou o papel? Chamei minha mulher ao meu camarim em nosso estdio em Chelsea Piers. - Tracy, voc no vai acreditar em quem est aqui - sussurrei com urgncia. Muitas paredes finas e uns cem metros separavam-me de qualquer um que pudesse ouvir o papo, mas minha voz baixa tinha mais a ver com falta de ar que discrio. - Acabei de ir ao ensaio de gravao e o ruivo louco l da Y est no estdio. - Curtis Schenker - Tracy disse. - O pai de Ally. Lembra-se de minha amiga Carolyn? - Curtis. Certo. Curtis, o louco. - Ele no louco - Tracy disse, contrariada. - Ele s amigvel. Voc vai gostar dele. E inteligente, engraado e muito generoso. Voc no vai acreditar em quanto ele deu de lance para estar aqui hoje. Seja legal com ele. De volta ao estdio, estvamos arrumando o fundo de cena, ou seja, a posio das pessoas que no falam nada e preenchem o fundo dos programas que assistimos. Determinado a ser um bom anfitrio, apesar de minhas desconfianas, coloquei um sorriso no rosto e fui at o sortudo vencedor do papel. - Curtis - eu disse -, esta cena abre com uma cmera em movimento-me filmando. Ela vem me acompanhando, vai indo para trs enquanto deso pelo corredor e dou a volta na mesa, e me deixa na porta do escritrio. Vamos garantir para que voc fique enquadrado todo esse tempo, participando assim da cena. Achei interessante ele estar se esforando bastante - e no se cansar de jeito nenhum. Na verdade, ele at possua certo charme. Coloquei-o na48

frente e bem centralizado na cena de abertura do episdio durante quarenta segundos de filmagem ininterruptos. E ele fez um bom trabalho - ficou relaxado, natural, no se moveu e no ficou olhando direto para a cmera. Quando o encontrei em outro dia, disse que ele iria amar o episdio. Ele ligou para uns dez amigos e falou para eles assistirem. Todavia, quando fomos fazer a edio final do episdio, tnhamos oito minutos sobrando. Algo precisava ser feito. E esse algo acabou sendo a cena de abertura, e, com isso, a parte em que Curtis aparecia. Eu j tinha ouvido histrias verdicas sobre pessoas que haviam pago muito dinheiro em um leilo para participar de um filme ou de uma srie, mas porque tinham sido cortadas entraram com um processo na justia. Por sorte, Curtis no fez isso. Alm de aceitar minhas explicaes e desculpas com muita calma e senso de humor, ele disse que doaria o dinheiro para a Y de qualquer forma. E que adorara o dia, de qualquer forma. Curtis, no final das contas, no era um louco que me perseguia, mas um cara bem legal. Aparentemente, ns dois no tnhamos muita coisa em comum, a no ser a idade. Curtis era produto do sistema privado de ensino de Nova York, graduou-se pela Penn, foi bem em Wall Street e ento criou um fundo de investimentos de muito sucesso, e isso antes dos 30 anos. J eu, passei por vrias escolas pblicas canadenses, larguei os estudos no ensino mdio e me dei bem interpretando um cara que queria trabalhar em Wall Street e mexer com fundos de investimentos. Mas logo as coisas em comum foram aparecendo. Ns dois ramos pessoas que adorariam ser estrelas do rock e que podiam identificar quaiquer msicas antes que o rdio mostrasse na telinha o nome delas. Ns dois no merecamos de jeito nenhum as mulheres maravilhosas que conseguimos convencer a se casar conosco. E ns dois ramos otimistas incurveis. CIDADE DE NOVA YORK 31 DE MAIO DE 200049

Em maio de 2000, Curtis e Carolyn convidaram Tracy e eu para o baile e leilo Robin Hood, em Nova York. Esse evento anual definia um "quem quem" na comunidade financeira da cidade. Gerentes de fundos de investimentos, investidores de aes, investidores de capitais de risco, banqueiros, diretores de empresas, investidores de imveis e de todos os outros tipos de investimentos. O evento reunia em uma sala, em uma s noite, os pesos pesados pesadssimos de Wall Street. E tambm eram convidadas celebridades do esporte e do showbiz, como Gwyneth Paltrow e o tcnico de basquete Pat Riley. Robin Williams era o mestre de cerimnias, e a msica ficou por conta do The Who. Com boa parte da fortuna privada mundial em apenas um salo, os tits de Wall Street eram as grandes estrelas. No dava para lanar um milionrio sem acertar um bilionrio. Tenho certeza de que, com a crise econmica atual, muitos gostariam de fazer isso. Como todos sabemos agora, algumas dessas supernovas iriam, no num futuro muito distante, espatifar-se na terra. Mas no resta nenhuma dvida quanto generosidade daquela noite (e, alm do que voc vai ver, independentemente do que pense da comunidade financeira, posso atestar que a generosidade deles contnua, com senso de responsabilidade social). Os beneficirios da muito bem nomeada Fundao Robin Hood incluam uma grande variedade de grupos e agncias privadas que ajudavam os mais necessitados da cidade. Tracy e eu ficamos assombrados com os nmeros que ouvimos durante o leilo mais de 1 milho de dlares em um dos itens mais disputados, algo como um pacote de viagem em classe executiva para o Egito, com direito a descer o Nilo em um iate privativo. Ao escrever sobre esta noite em Lucky man, mencionei os riscos de ser um paciente com Parkinson em um leilo como este. Um espasmo de brao na hora errada acabaria com o dinheiro da faculdade das crianas, Ento, para me garantir, sentei em cima das mos e tentei evitar movimentos bruscos.50

Havia algo diferente no ar filantrpico naquela noite. No era apenas um patrocnio, era uma participao; no apenas caridade, mas um investimento futuro. No dias que se seguiram, Curtis e eu discutimos a possibilidade de criar em Nova York um fundo de arrecadao para as pesquisas com Parkinson. Curtis tinha certeza de que, quando fosse o momento certo, ele poderia falar com amigos e associados e ter uma boa margem de sucesso.

Nossa srta. BrooksQuase inconscientemente, fui pegando os conselhos de Lance, juntando as partes e montando uma mquina capaz de organizar, processar e converter esperana em uma resposta para o Parkinson. O que eu mais precisava era de um parceiro, um diretor executivo que pudesse implementar minha viso. - Encontre algum de Wall Street - foi o conselho de Curtis. - O modelo de negcio que voc procura inovador, agressivo e empresarial; um bom comeo. Contatamos uma empresa de RH que encontrava executivos e era especializada no setor de organizaes sem fins lucrativos. - Mas no procurem apenas candidatos de organizaes filantrpicas tradicionais - instrumos. - Procurem no setor privado. Eles pensaram que ramos malucos. Como iramos tirar um executivo de seu salrio milionrio de Wall Street? No incio de outubro, minha parceira de Spin City, Nelle Fortenberry, e alguns amigos da comunidade advocatcia do Parkinson tinham reduzido a lista de muitas dezenas de candidatos a apenas trs finalistas. Quando as portas da sala de conferncia se abriram, Debi Brooks51

entrou a passos largos para a entrevista, com ar bem confiante, como se soubesse que tinha o que precisvamos, mas era amvel e humilde o bastante para nos dar o tempo de que necessitssemos para descobrir isto por ns mesmos. Ela nos atraiu de imediato. E logo ficou claro que seu maior recurso era a mente, com o corao ficando bem perto, em segundo lugar - precisamente a combinao requerida para capitanear uma organizao sem fins lucrativos e competitiva. Virei-me para Nelle e perguntei: - Quando voc pretendia me falar dela? Tendo sido vice-presidente do banco Goldman Sachs, Debi no via minha afirmao de que era possvel encontrar uma cura para o Parkinson como o simples desejo de algum aflito pela doena. Eu j podia ver, durante aqueles primeiros minutos de um relacionamento que se tornaria um dos mais duradouros da minha vida, que, para Debi, otimismo e pragmatismo no eram como leo e gua. Enquanto os outros candidatos tambm eram muito qualificados e com certeza teriam trazido seus talentos nicos para nossa misso, era bvio que Debi era um "gol de placa"'. No final desse dia, ela recebeu nossa oferta de trabalho e aceitou; trs dias depois estava no escritrio - e samos de l. REUNIO DE PLANEJAMENTO DA FUNDAO MJF CIDADE DE NOVA YORK 23 DE OUTUBRO DE 2000 To cedo quanto dei as boas-vindas a Debi, tambm expliquei o que me levaria a demiti-la. - A ltima coisa que quero que eu e voc cheguemos ao ponto de discutir a respeito de nosso vigsimo evento anual de arrecadao de fundos. Na verdade, se isso acontecer, voc ser demitida. Ela riu, mas eu sabia que Debi entendia a urgncia da situao. Nossa meta era simplesmente conseguir que fssemos esquecidos. E foi52

mais ou menos isso que disse para um grupo de apoiadores que se reuniram na sede da Dreamworks em Nova York: - Quero que me ajudem a me aposentar desse negcio. Sentados em volta da mesa estavam CEOs, empresrios e donos de companhias enormes - tits do mais alto nvel. E l estava eu, pedindo a eles que me ajudassem a montar um negcio que no era feito para durar: - Se encontrarmos uma cura para o Parkinson, nosso trabalho estar completo. Poderia ter sido uma cena do filme O segredo do meu sucesso ou um dos sonhos melados de Alex Keaton - o jovem executivo falando com os subordinados em sala de reunies chique. E, na realidade, em minha vida at ali, eu s tinha usado terno e gravata em meus personagens - Alex P. Keaton, Mike Flaherty ou algum outro jovem sonhador. Nunca fizera esse esforo por executivos do estdio ou em entrevistas para a mdia. Mas ali estava eu, de terno azul, gravata vermelha e camisa azul. Explicando melhor o tema "criando um negcio feito para acabar", que foi minha abertura, contei que o que queria era construir uma organizao fundamentalmente diferente de todas as que j existiam. - No estamos criando um banco - falei. - Quando entrar dinheiro, ele sair imediatamente. E Debi completou assim: - No estamos criando um fundo. Estamos dispostos a gastar cada centavo do que arrecadarmos. Essa filosofia envolvia riscos, coisa que a maioria das organizaes filantrpicas tambm experimentava. Para mim, risco igual oportunidade. Quase todos naquela sala tinham uma relao diria com o risco. Alm de gerentes de fundos e outras pessoas do meio econmico, tambm havia executivos de publicaes e da indstria do entretenimento - e todos entendiam que no h como vencer se voc no apostar. Ou, como Debi53

colocou: - No estamos aqui para fazer o bsico, mas tudo o que for necessrio para achar a cura do Parkinson. Agora sei como Ray Kinsella, de Campo dos sonhos, se sentiu quando entrou no campo de beisebol que construra em seu milharal, em Iowa, e encontrou Shoeless Joe e o time de 1919 do White Sox fazendo aquecimento. Como Ray, eu tambm tinha ouvido uma voz interior que dizia: "Se voc construir, eles viro". Eu sabia que no precisava chegar para esse grupo e perguntar: - Podemos construir? Em vez disso, eu perguntaria: - Como construiremos isso? Em duas semanas, a Fundao Michael J. Fox para pesquisas de Parkin-son recebeu seu certificado oficial de criao e nosso nmero de identidade provisrio como empresa 501(c)(3). Havia menos de um ano eu tinha abandonado minha carreira de ator sem saber ainda para onde ia. E agora estava comeando uma nova carreira, com uma direo bem definida.

Subindo a bordoCIDADE DE NOVA YORK 13 DE NOVEMBRO DE 2000 Dois colegas de fundos de investimentos de Curtis, John Griiin e Glenn Dubin, que espervamos recrutar para nossa diretoria, recomendaram um "evento" - ao estilo de Wall Street - para apresentarmos nossa recm--criada empresa a possveis apoiadores. Curtis e Carolyn ofereceram-se para fazer a reunio no seu apartamento na Park Avenue e fizeram uma lista de amigos e associados. Muito ricas e generosas, essas pessoas eram abordadas todos os dias por gente com uma histria para54

contar e uma sacolinha pedindo ajuda. No vou a muitas festas e, como a maioria das pessoas, sinto-me desconfortvel em pedir algo a algum, mas Curtis me disse para eu no me preocupar. - Provavelmente vamos precisar das duas m