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Este texto será publicado em Nardi, R. (in press) A pesquisa em ensino de ciências no Brasil. Bauru, Editora UNESP. UMA METODOLOGIA PARA CARACTERIZAR OS GÊNEROS DE DISCURSO COMO TIPOS DE ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS NAS AULAS DE CIÊNCIAS Eduardo F Mortimer 1 Tomas Massicame 2 , Andrée Tiberghien 3 , Christian Buty 4 1 Universidade Federal de Minas Gerais, CNPq e Capes. ICAR/CNRS /INRP. [email protected] 2 Universidade Pedagógica – Moçambique - [email protected] 3 ICAR - Université Lyon 2 - CNRS – ENS-LSH – ENS Lyon – INRP. França. [email protected] 4 ICAR - Université Lyon 2 - CNRS – ENS-LSH – ENS Lyon – INRP. França [email protected] Resumo Este trabalho descreve metodologia de análise de dados de sala de aula registrados em vídeo, na qual algumas ferramentas analíticas pré-existentes (Mortimer e Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien e Le Maréchal, 2004) foram adaptadas e expandidas para permitir a categorização dos dados em vídeo em tempo real, utilizando o software Videograph®. Neste artigo são descritas 5 dos 8 conjuntos de categorias utilizadas e apresentados os resultados gerais da análise de duas salas de aula francesas de ensino médio (Second de Lycée). Nelas, dois professores diferentes aplicaram seqüências de ensino diferentes para o mesmo conteúdo, que faz parte do programa oficial de física do ensino médio na França, no contexto do ensino de mecânica: interações e introdução ao conceito de força. Os dados gerais analisados neste artigo revelam diferenças significativas entre as duas classes, em relação às dinâmicas discursivas adotadas e ao peso e natureza da participação dos alunos. Esses dados gerais servem de pano de fundo para a micro-análise das estratégias enunciativas utilizadas pelos dois professores nessas mesmas seqüências, por meio das quais se procura caracterizar como o gênero de discurso das salas de aula de ciências é atualizado diferentemente em cada uma das salas. Palavras-chave: sala de aula; dinâmica discursiva; metodologia; gênero de discurso; estratégias enunciativas Abstract This article describes a methodology for analyzing classroom video data, in which some analytical tools (Mortimer and Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien and Le Maréchal, 2004) were adapted and expanded as to allow for the categorization of video data in real time using a software developed by IPN-Kiel, Videograph®. In this article we describe 5 of the 8 sets of categories and present the general results of the analysis of two French high school physics classrooms (Second de Lycée) in which two different teachers taught different teaching sequences for the same content matter. This content is part of the French official curriculum for high school physics in the context of mechanics: interactions and introduction of the concept of force. The data analyzed in this article show significant differences between the two classes related do the discursive dynamics utilized and to the nature and amount of the students participations. This general data function as a background for the micro-analysis of the enunciative strategies used by the two teachers, by which we try to characterize how the speech genre of science classroom is differently actualized in each of the classes. Keywords: classroom analysis; discursive dynamics; methodology INTRODUÇÃO Este trabalho descreve uma metodologia de análise de dados de sala de aula registrados em vídeo, na qual algumas ferramentas analíticas pré-existentes (Mortimer e Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien and Le Maréchal, 2004) foram adaptadas e expandidas para permitir a categorização dos dados em vídeo em tempo real, utilizando um software desenvolvido pelo IPN-Kiel, Videograph®. Essa metodologia permite que o trabalho de categorização seja feito diretamente sobre a imagem em vídeo das aulas, o que possibilita uma análise do discurso com “D” maiúsculo (Gee, 1996), pois leva em consideração um conjunto de modos de comunicação

UMA METODOLOGIA PARA CARACTERIZAR OS GÊNEROS DE DISCURSO ... · Já a teoria dos gêneros do discurso, formulada por Bakhtin, centra-se no estudo das situações de produção dos

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Este texto será publicado em Nardi, R. (in press) A pesquisa em ensino de ciências no Brasil. Bauru, Editora UNESP.

UMA METODOLOGIA PARA CARACTERIZAR OS GÊNEROS DE DISCURSO COMO TIPOS DE ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS NAS AULAS DE CIÊNCIAS

Eduardo F Mortimer1

Tomas Massicame2, Andrée Tiberghien3, Christian Buty4

1Universidade Federal de Minas Gerais, CNPq e Capes. ICAR/CNRS /INRP. [email protected]

2Universidade Pedagógica – Moçambique - [email protected] 3ICAR - Université Lyon 2 - CNRS – ENS-LSH – ENS Lyon – INRP. França. [email protected]

4ICAR - Université Lyon 2 - CNRS – ENS-LSH – ENS Lyon – INRP. França [email protected]

Resumo Este trabalho descreve metodologia de análise de dados de sala de aula registrados em vídeo, na qual algumas ferramentas analíticas pré-existentes (Mortimer e Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien e Le Maréchal, 2004) foram adaptadas e expandidas para permitir a categorização dos dados em vídeo em tempo real, utilizando o software Videograph®. Neste artigo são descritas 5 dos 8 conjuntos de categorias utilizadas e apresentados os resultados gerais da análise de duas salas de aula francesas de ensino médio (Second de Lycée). Nelas, dois professores diferentes aplicaram seqüências de ensino diferentes para o mesmo conteúdo, que faz parte do programa oficial de física do ensino médio na França, no contexto do ensino de mecânica: interações e introdução ao conceito de força. Os dados gerais analisados neste artigo revelam diferenças significativas entre as duas classes, em relação às dinâmicas discursivas adotadas e ao peso e natureza da participação dos alunos. Esses dados gerais servem de pano de fundo para a micro-análise das estratégias enunciativas utilizadas pelos dois professores nessas mesmas seqüências, por meio das quais se procura caracterizar como o gênero de discurso das salas de aula de ciências é atualizado diferentemente em cada uma das salas. Palavras-chave: sala de aula; dinâmica discursiva; metodologia; gênero de discurso; estratégias enunciativas Abstract This article describes a methodology for analyzing classroom video data, in which some analytical tools (Mortimer and Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien and Le Maréchal, 2004) were adapted and expanded as to allow for the categorization of video data in real time using a software developed by IPN-Kiel, Videograph®. In this article we describe 5 of the 8 sets of categories and present the general results of the analysis of two French high school physics classrooms (Second de Lycée) in which two different teachers taught different teaching sequences for the same content matter. This content is part of the French official curriculum for high school physics in the context of mechanics: interactions and introduction of the concept of force. The data analyzed in this article show significant differences between the two classes related do the discursive dynamics utilized and to the nature and amount of the students participations. This general data function as a background for the micro-analysis of the enunciative strategies used by the two teachers, by which we try to characterize how the speech genre of science classroom is differently actualized in each of the classes. Keywords: classroom analysis; discursive dynamics; methodology INTRODUÇÃO

Este trabalho descreve uma metodologia de análise de dados de sala de aula registrados

em vídeo, na qual algumas ferramentas analíticas pré-existentes (Mortimer e Scott, 2002 e 2003; Buty, Tiberghien and Le Maréchal, 2004) foram adaptadas e expandidas para permitir a categorização dos dados em vídeo em tempo real, utilizando um software desenvolvido pelo IPN-Kiel, Videograph®. Essa metodologia permite que o trabalho de categorização seja feito diretamente sobre a imagem em vídeo das aulas, o que possibilita uma análise do discurso com “D” maiúsculo (Gee, 1996), pois leva em consideração um conjunto de modos de comunicação

empregados nos processo de enunciação e não apenas a linguagem verbal. Tenta-se, dessa forma, superar uma limitação associada às análises que empregam a transcrição do discurso produzido, que por mais sofisticadas que sejam não possibilitam a incorporação mais sistemática de dados não-verbais. Além disso, a categorização utilizando Videograph permite gerar freqüências e tempos para cada categoria escolhida, possibilitando uma primeira aproximação dos dados e a comparação entre diferentes turmas em que um mesmo conteúdo foi ensinado ou entre diferentes conteúdos ensinados para uma mesma turma. Esses dados gerais servem como pano de fundo para a micro-análise em que se procura caracterizar como os gêneros de discurso das salas de aula de ciências é atualizado em cada classe, por meio da descrição e análise das diferentes estratégias enunciativas aí utilizadas. Por último, mas não menos importante, espera-se que a utilização dessa metodologia possibilite, a médio prazo, a obtenção de um volume de dados que potencialmente permite caracterizar diferentes formas de organizar a dinâmica das interações e a produção de significados em sala de aula e comparar diferentes escolas, sistemas educacionais e mesmo o ensino em diferentes países.

Ao tentar caracterizar uma sala de aula em termos de sua dinâmica discursiva, é importante tentar caracterizar as formas que os enunciados adquirem na interação entre os participantes – o gênero de discurso da sala de aula de ciências – e as linguagens sociais aí utilizadas. Essas são questões teóricas importantes que estão na base da ferramenta analítica (Mortimer e Scott, 2002 e 2003) que gerou o conjunto de categorias utilizados na metodologia a ser apresentada. Antes de discutir essas categorias, é importante esclarecer o que estamos entendendo por gênero de discurso enquanto um conjunto de estratégias usadas pelo professor para produzir, em interação ou não com seus estudantes, os enunciados numa sala de aula de ciências.

GÊNEROS TEXTUAIS, GÊNEROS DE DISCURSO E A SALA DE AULA1 O conceito de Gênero ganha relevo para a pesquisa da sala de aula e dos materiais

textuais que aí circulam na medida em que passa a ser aplicado ao conjunto dos enunciados produzidos em uma sociedade (Maingueneau, 2004) e não apenas à produção literária. Em decorrência, esse conceito tem sido abordado por diferentes tendências no estudo da linguagem, entre elas a Lingüística Sistêmico Funcional (Halliday, 1985) e as abordagens sócio-semióticas que dela derivam, a Análise do Discurso Francesa, as teorias Bakhtinianas e as várias vertentes discursivas e de análise textual a ela relacionadas (Araújo, Mortimer e Andrade, 2005)

Vamos considerar aqui apenas as concepções de Gênero, sejam elas textuais ou do discurso, propostas por autores que compartilham uma orientação sócio discursiva que tem alguma raiz na herança bakhtiniana. Entre esses autores incluem-se o próprio Bakhtin e seu círculo, seus comentadores (Holquist, Silvestre e Blank, Brait, Faraco, Tezza, Castro, Rojo), autores das vertentes francesas de análise do discurso como Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau e, ainda, autores da teoria dos gêneros textuais cujos principais expoentes são Marchuschi, Adam e Bronckart.

As correntes teóricas aqui abordadas propõem classificações e tipologias distintas quanto ao conceito, embora existam ainda autores que optam pelo método em detrimento a tipologia, entre os quais cabe incluir Rojo, 20032.

1 Essa parte do texto é uma adaptação de um verbete sobre Gênero de Discurso produzido por Angélica de Oliveira Araújo, Eduardo Fleury Mortimer e Luisa Andrade para o II Encontro Internacional Linguagem e Mediações no Ensino de Ciências, realizado na Faculdade de Educação da UFMG, em Belo Horizonte, em 30 e 31 de março de 2006. 2 Esta autora faz uma releitura da noção de gênero bakhtiniana oriunda dos primeiros textos de Bakhtin e seu círculo apontando que essa idéia já era iminente desde o início. Ressalta que os primeiros textos do autor possibilitam a

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Desse modo, as diferentes classificações de gêneros, elaboradas por pesquisadores da área, deram lugar a múltiplas tipologias de acordo com os critérios de classificação instituídos, já que alguns falam de gênero de discurso, outros de gêneros de texto e outros ainda de tipos de texto. Para definir a noção, leva-se em conta ora a ancoragem social do discurso, ora sua natureza situacional, ora as regularidades composicionais do texto, ora as características formais do texto produzido (Charaudeau e Maingueneau, 2004, p.251).

Maingueneau (2004) identifica um conjunto de critérios utilizados pelos pesquisadores para o estabelecimento de tipologias. Trata-se de critérios lingüísticos (fundados na enunciação, na distribuição estatística das marcas lingüísticas e na organização textual); funcionais (textos com finalidades lúdica, didática, etc.); situacionais (tipo de atores implicados, circunstâncias da comunicação, canal utilizado, etc.) e discursivas (combinam critérios lingüísticos, funcionais, situacionais). No âmbito da análise do discurso francesa e da vertente bakhtiniana, os gêneros do discurso são mais comumente definidos a partir de critérios situacionais. Ao passo que a teoria dos gêneros textuais dá maior ênfase aos critérios lingüísticos embora não negligencie os outros.

Charaudeau assume uma filiação psicossociológica e define os gêneros do discurso como “gêneros situacionais”, pois dependem essencialmente das condições de produção em situações específicas, e essas determinam as características da organização discursiva e formal. Os gêneros são determinados no ponto de articulação entre “as coerções situacionais determinadas pelo contrato global de comunicação, as coerções da organização discursiva e as características das formas textuais” (Maigueneau e Charaudeau, 2005, p.251). O discurso é, desse modo, ancorado no aspecto social.

A teoria dos gêneros textuais centra-se na descrição da composição e da materialidade textual. Na definição de Marchuschi:

“Usamos a expressão Gênero Textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (2002, p. 23).

Os teóricos dessa vertente estabelecem uma tipologia para os tipos de texto que, segundo eles, podem agrupar-se em cinco categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Os Gêneros Textuais, por sua vez, são inúmeros. Para Bronckart,

“(...) a organização dos gêneros apresenta-se, para os usuários de uma língua, na forma de uma nebulosa, que comporta pequenas ilhas mais ou menos estabilizadas (gêneros que são claramente definidos e rotulados) e conjuntos de textos com contornos vagos e em intersecção parcial (gêneros para os quais as definições e os critérios de classificação ainda são móveis e/ou divergentes)” (Bronckart, 1997, p. 74, apud Rojo, 2005).

Deste modo, associam o conceito de gênero textual a uma família de textos expressos nas seguintes considerações,

“em função de seus objetivos, interesses e contextos específicos, as formações sociais elaboram diferentes espécies ou ´famílias` de textos que apresentam características suficientemente estáveis para que as qualifiquemos como ´gêneros`” (Bronckart, 1997, p. 138, apud Rojo, 2005).

Já a teoria dos gêneros do discurso, formulada por Bakhtin, centra-se no estudo das situações de produção dos enunciados ou textos e em seus aspectos sócio-históricos. Bakhtin estabelece que a utilização da língua dá-se em forma de enunciados (orais e escritos; concretos e únicos), que emanam nas diferentes esferas da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo leitura de uma perspectiva de Gênero muito mais estruturada do ponto de vista conceitual e metodológico, que em muito ultrapassa a noção que define o Gênero como tipos relativamente estáveis de enunciados.

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temático e por seu estilo verbal, mas também por sua construção composicional. Os enunciados relacionam-se, portanto, com as especificidades de uma dada esfera da comunicação. Assim, para o autor “cada esfera na qual a linguagem é usada desenvolve seus tipos relativamente estáveis de enunciados”, denominado “gêneros do discurso” (1986, p. 60).

O gênero de discurso, desse modo, tem uma incidência decisiva sobre a interpretação dos enunciados. Não podemos interpretar um enunciado se não sabemos a qual gênero relacioná-lo. Bakhtin pontua que,

“Ouvindo as palavras do outro, sabemos de pronto, desde as primeiras palavras, pressentir seu gênero, adivinhar o volume (a distinção aproximativa de um todo discursivo), a estrutura composicional dada, prever seu fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo” (BAKHTIN, 1984, p. 285).

Bakhtin estabelece uma tipologia na qual diferencia gêneros do discurso primários e secundários. Os primários são mais simples e formaram-se nas condições da comunicação discursiva imediata: diálogo cotidiano, conversa familiar, etc. Já os secundários – romances, dramas, artigos científicos, etc. - “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente escrito)” (Bakhtin, 1953/1992, p. 263), por exemplo, ligados às atividades científicas, artísticas, socio-políticas, etc. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituem em circunstâncias de uma comunicação verbal mais espontânea.

Se contrapomos a teoria bakhtiniana com a teoria dos gêneros textuais, percebe-se que na última busca-se fazer uma descrição mais propriamente textual, quando se trata da materialidade lingüística do texto ou mais funcional/contextual, quando se trata de abordar o gênero. Ao passo que a busca do analista bakhtiniano é a da significação, da acentuação valorativa e do tema, indicados pelas marcas lingüísticas, pelo estilo e pela formação composicional do texto (Rojo, 2005).

De maneira geral pode-se considerar que as diferentes teorias de gênero fazem referência, na sua análise, à situação social no qual o discurso é produzido e às restrições discursivas e formais que advém dessa ancoragem social dos discursos e textos. O que as distingue é o método utilizado e a hierarquia estabelecida entre os diferentes níveis de análise. Enquanto umas privilegiam o texto e desenvolvem sua análise a partir desse nível, outras privilegiam o contexto social e como ele define as outras restrições à produção dos enunciados/textos.

Os gêneros de discurso da sala de aula de ciências

O esforço de definir a categoria gênero, seja textual ou discursivo, justifica-se levando em consideração a necessidade de caracterizar tanto as estratégias enunciativas (enunciação) utilizadas pelo(a) professor(a) para introduzir e desenvolver os conteúdos de ensino, quanto os diferentes textos que circulam na sala de aula – livro didático, roteiros de atividades, provas, textos paradidáticos, etc.

A caracterização das estratégias enunciativas leva em consideração as interações verbais produzidas entre professor e alunos e entre alunos e como as diferentes estruturas de interação utilizadas correspondem a diferentes funções do discurso. O estudo das salas de aulas de ciências, conforme esboçado neste artigo, poderá permitir a caracterização de um conjunto de estratégias enunciativas comuns a essa área que seriam atualizadas por cada professor de uma maneira particular. A escolha dos temas, sua vinculação ideológica, a forma e a ordem como eles são introduzidos também são aspectos importantes na caracterização das salas de aula, e deverão ser levadas em consideração na definição desse gênero.

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Neste artigo tentamos caracterizar os gêneros de discurso da sala de aula de ciências por meio da análise das estratégias enunciativas utilizadas por dois professores franceses para ensinar o mesmo conteúdo – introdução ao conceito de força. Como já foi dito, essas estratégias são caracterizadas contra o pano de fundo estabelecido por um conjunto de dados gerais obtidos para cada sala de aula por meio da aplicação sistemática de um procedimento de categorização que utilizou 5 conjuntos de categorias que definiremos a seguir. Antes, porém, é conveniente nos determos na questão das unidades de análise e nas estratégias utilizadas para mapear os dados obtidos por meio da vídeo-gravação. MAPEANDO OS DADOS: UNIDADES DE ANÁLISE E METODOLOGIA DE COLETA DE DADOS

Os dados apresentados neste artigo foram coletados usando duas câmeras: uma delas é

colocada no fundo da sala e focaliza o professor e suas ações. A segunda câmera é colocada próxima ao grupo ou dupla de estudantes escolhida para ser filmado. Uma câmara é fixa enquanto a outra é operada pelo pesquisador. A decisão sobre qual câmera deve ser operada depende da dinâmica da aula que está sendo filmada. Sempre que as ações do professor predominam numa aula, é a sua câmera que é operada. O áudio do professor e da dupla ou grupo de estudantes é gravado junto com o vídeo, mas utilizando microfones sem fio. Salas de aula são espaços nos quais ocorrem múltiplas atividades. As duas câmeras fornecem um pouco mais de informações sobre essas múltiplas atividades mas geram dois “textos” diferentes, o que impõe decisões sobre que “texto” considerar. Ao elaborar o mapa de episódios e ao codificar os eventos usando o sistema de categorias e o software Videograph®, usamos como principal fonte de informação e como a fita associada para a codificação, aquela que documenta a ação do professor. O vídeo dos estudantes é usado para coletar informações adicionais sobre as ações, participantes, etc. O discurso produzido pelos estudantes também pode ser utilizado para evidenciar eventos de aprendizagem, como o engajamento disciplinar produtivo dos estudantes (Engle and Conant, 2002). Nossa análise, no entanto, privilegia o texto produzido pelo professor na sua interação com os estudantes. Isso porque as pautas enunciativas que determinam o discurso “oficial” na sala de aula são determinadas pelo professor. Além disso, estamos interessados em caracterizar e comparar estratégias enunciativas utilizadas pelos professores para tornar visíveis essas estratégias e utilizar esses conhecimentos em processos de formação inicial e continuada de professores.

Existem duas conseqüências importantes para o mapeamento dos dados em vídeo, de se trabalhar com o princípio bakhtiniano de que “qualquer enunciado é um elo na cadeia de comunicação verbal” (Bakhtin, 1986, p. 84) A primeira é que, para caracterizar a sala de aula e suas dinâmicas discursivas, não é suficiente analisar uma única aula, mas um certo número mínimo de aulas que permita a identificação de dinâmicas e seqüências interativas que configurem a rotina daquela sala de aula. Há que se pensar em uma unidade mais global de análise que forneça o contexto e confira sentido às ações dos participantes documentadas em um segmento mais curto da vida daquela classe, como uma aula. No contexto deste trabalho, delimitamos uma seqüência de aulas para a introdução do conceito de força como essa unidade global de análise. A outra conseqüência importante desse princípio bakhtiniano refere-se à necessidade de construir uma visão de conjunto de como os episódios constituintes dessa seqüência se organizam temporalmente, e para isso é necessário uma primeira aproximação global dos dados com o objetivo de elaborar um mapa de episódios por meio do qual cada aula é segmentada em uma série temporal de episódios. Por meio desse mapa, cada episódio é localizado no contexto mais geral da seqüência de ensino na qual ele tem lugar.

Ao mapear os dados em episódios, trabalhamos com um conjunto de unidades de análise, que são determinadas considerando tanto a perspectiva dos participantes quanto o fato de que o

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ensino é uma prática social e institucional com uma série de regras sobre como gerenciar a sala de aula e de como administrar o tempo e dividí-lo em seqüências de ensino, aulas, atividades e fases de atividade. Esse contexto institucional determina como o tempo é segmentado e utilizado na prática escolar e, dessa forma, define algumas unidades de análise. Normalmente, essas unidades são previstas pela professora em seu planejamento. Quando essas unidades predeterminadas são colocadas em prática, elas dão origem àquilo que chamamos de episódios da vida de sala de aula. Esses episódios são construídos no fluxo das interações entre os próprios participantes e entre os participantes e os recursos materiais (livro ou texto didático, quadro de giz, aparato experimental, etc.). Os episódios podem coincidir com as fases da atividade previamente planejada, mas como eles são constituídos na interação on-line entre os participantes, a imprevisibilidade está sempre presente.

Esses episódios, por sua vez, podem ser decompostos em unidades menores, as seqüências de interação. Essas seqüências podem ser pensados como os enunciados que caracterizam o gênero de discurso da sala de aula de ciências. Ao enunciar um determinado tema, seja um fenômeno, um principio, uma lei científica, o professor pode recorrer a diversos expedientes que envolvem desde a enunciação pura e simples, sem interlocução, até uma troca de turnos com os estudantes. O turno constitui a menor unidade de análise considerada neste trabalho. Normalmente cada seqüência, considerada como um enunciado e, portanto, como a unidade de comunicação verbal característica do gênero de discurso da sala de aula, comporta um tema e uma intenção didática bem definidos. No entanto, como os enunciados são elos na cadeia de comunicação verbal (Bakhtin, 1986), muitas vezes essas seqüências estão encadeadas de modo a produzir enunciados mais gerais, que configuram os grandes temas introduzidos nas aulas.

Nossa definição de episódio é uma adaptação da definição de evento na tradição da etnografia interacional (Bloome and Bayley, 1992, p.186). Assim, um episódio é definido como um conjunto coerente de ações e significados produzidos pelos participantes em interação, que tem um início e fim claros e que pode ser facilmente discernido dos episódios precedente e subseqüente. Normalmente, esse conjunto distinto é também caracterizado por uma função específica no fluxo do discurso. Marcadores de fronteira entre os episódios incluem aspectos verbais e não-verbais. As pistas contextuais, a que se referem Bloome e Bayley (1992) e Gumperz (1992), incluem mudanças proxêmicas (relacionadas a orientação entre os participantes) e kinestésicas (relacionadas aos gestos e movimentos corporais), mudanças de entonação, de ênfase, de tópico ou tema, de gênero, pausas, etc. Essas pistas permitem a determinação precisa das fronteiras de cada episódio no fluxo do tempo. No entanto, o episódio mesmo não é definido pelas pistas contextuais que determinam suas fronteiras, mas por um conjunto de características que incluem seu tema, a fase da atividade na qual ele tem lugar, as ações dos participantes, as formas como os participantes se posicionam no espaço físico no qual ocorrem as interações, as formas pelas quais eles interagem entre si e com os recursos materiais que eles usam. Para incluir todas essas características, elaboramos um mapa de episódios para cada aula filmada, em que cada linha corresponde a um episódio e as 10 colunas contemplam o número seqüencial do episódio, o tempo inicial, o tempo total, as formas de interação, a posição dos participantes no espaço físico, os recursos materiais utilizados, as ações dos participantes, a fase da atividade de ensino e o tema do episódio. Cada mapa é identificado pelo nome da escola no qual o vídeo foi realizado, a data e a tema mais geral da aula.

Como estamos trabalhando com múltiplas unidades de análise, correspondentes a diferentes escalas temporais do processo de ensino e aprendizagem, a leitura dos mapas de episódios permite pensar uma aula como constituída por unidades menores que chamaremos atividades didáticas. Cada atividade comporta uma clara intenção do professor, ainda que essa possa permanecer implícita e ser reinterpretada pelos alunos. Cada atividade comporta certas configurações espaço-temporais da sala de aula e das interações que aí se produzem e a execução

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de uma ou de um conjunto de ações. A simples leitura do texto do modelo pela professora da escola A é um exemplo de atividade da mesma forma que a execução de uma atividade envolvendo um experimento e questões sobre o lançamento de uma medicine ball. A caracterização das estratégias enunciativas e dos tipo de enunciados produzidos faz-se levando em consideração a existência de diferentes tipos de atividade utilizadas pelo professor.

Cada atividade comporta um certo número de fases didáticas. Por exemplo a atividade experimental com a medicine ball comporta uma introdução, em que a professora explicita o que deve ser feito; a execução do experimento pelos alunos, que lançam verticalmente e recolhem a bola; a discussão e resposta de um número de questões pelos estudantes; a correção dessas questões, que pode envolver os estudantes reproduzindo suas respostas no quadro e sendo corrigidos pela professora. O SISTEMA DE CATEGORIAS

Nós descreveremos o sistema de categorias e, ao mesmo tempo, os procedimentos, em

ordem cronológica, utilizados para codificar os vídeos utilizando Videograph. O sistema de categorias, inspirado da estrutura analítica de Mortimer e Scott (2002, 2003) e nos trabalhos sobre modelos e modelagem de Tiberghien (1994), comporta dois níveis de categorização, definidos de acordo com o grau de inferência necessário para definir a categoria. No primeiro grupo incluímos categorias superficiais, de baixa inferência, que obtém índices de concordância entre diferentes codificadores da ordem de 100%: posição do professor, locutor e tipo de conteúdo do discurso. No segundo grupo incluímos categorias de média a alta inferência, que obtém índices de concordância entre diferentes codificadores menores que 100%: padrão de interação, abordagem comunicativa, conteúdo do discurso e intenções do professor. Cada categoria comporta um conjunto de variáveis que permite caracterizar aquele aspecto da sala de aula. Uma limitação importante do Videograph é que a categorização em cada grupo é excludente, ou seja, ele permite a codificação de apenas uma categorias para cada grupo. O tempo mínimo de codificação é de 1 segundo. Para variáveis como o locutor, para a qual podem ocorrer falas simultâneas, isso pode acarretar limitações que podem ser sanadas pela definição de dois ou mais grupos diferentes da categoria locutor contendo os mesmos falantes. No que se segue procederemos à descrição de cinco conjuntos de categorias para as quais serão apresentados resultados de duas salas de aula francesas em que o mesmo conteúdo de física – introdução ao conceito de força – foi ministrado.

Tipo de conteúdo do discurso e posição do professor Na primeira etapa de trabalho com todos os registros em vídeo obtidos para uma

seqüência de ensino, ao mesmo tempo em que produzimos o mapa de episódios, definimos os próprios episódios, a posição do professor e o tipo de conteúdo do discurso, usando Videograph. Há duas razões principais para se começar por essas categorias. A primeira é que essas categorias são superficiais e de baixa inferência, e podem ser determinadas objetivamente numa primeira aproximação aos dados. A segunda é que a codificação das outras categorias depende do tipo de conteúdo do discurso, o que é uma conseqüência de estarmos utilizando a estrutura analítica proposta por Mortimer e Scott (2003). Esses autores especificam diferentes conteúdos do discurso escolar: “a estória científica que está sendo ensinada (provavelmente envolvendo questões conceituais, tecnológicas e ambientais); aspectos procedimentais da ciência escolar (por exemplo, como conectar um circuito elétrico); questões de organização e manejo de classe (dar instruções sobre o trabalho de casa; pedir silêncio enquanto um estudante oferece um comentário” (Mortimer e Scott 2003, p.26). Seguindo essa sugestão, nós decidimos codificar os tipos de conteúdo do discurso antes de prosseguir com a análise, porque nem todas categorias

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posteriores são igualmente aplicáveis aos discursos que são puramente de gestão e manejo de classe ou de aspectos procedimentais da ciência.

Seguindo essas indicações e a observação preliminar de algumas aulas, definimos 5 categorias para caracterizar o tipo de conteúdo do discurso. Lembrando que, para cada conjunto de categorias, Videograph permite a escolha de apenas uma delas, a ocorrência simultânea de dois tipos de discurso nos obriga a decidir sobre aquele que é predominante. Das 5 categorias, 3 já foram definidas: 1 - Discurso de conteúdo; 2 - Discurso de gestão e manejo de classe; 3- Discurso procedimental. As outras duas são assim definidas: 4 - Discurso da experiência: quando o professor demonstra ou os alunos fazem um experimento sem usar palavras mas apenas a ação. 5 - Discurso de conteúdo escrito: quando o(a) professor(a) ou um(a) aluno(a) escreve no quadro de giz sem nada dizer.

Para codificar as posições do professor utilizamos, até o momento, 4 categorias: 1. Quadro de giz: quando a professora escreve no quadro ou aí se posiciona para falar com a

classe. 2. Frontal: a professora posiciona-se em frente à primeira fila de carteiras dos alunos. 3. Deslocamento: a professora desloca-se pela classe. 4. Bancadas ou mesas dos alunos: a professora se posiciona dentro das bancadas dos alunos

(no caso das escolas de ensino médio francesas) ou junto ao grupo de estudantes (no caso das escolas brasileiras). Embora a posição por si só nada informa sobre sua função no fluxo do discurso da aula,

quando essa categoria é examinada no mapa de episódios ela já fornece uma quantidade razoável de informações sobre a dinâmica de cada aula. Por exemplo, o número de diferentes posições “bancada ou mesa” e “deslocamento” adotada pela professora num episódio em que os alunos realizam uma atividade fornece uma indicação da estratégia adotada pela professora para seguir, orientar e controlar esse tipo de trabalho.

O locutor, os padrões de interação e as seqüências de interação Após a codificação desse primeiro conjunto de categorias, procede-se a uma segunda

etapa de trabalho, onde todas as fitas serão assistidas novamente para a codificação, em conjunto, das categorias “locutor” e “padrão de interação”, pois o padrão de interação é determinado pela troca de turnos entre os participantes no fluxo de discurso da sala de aula. Ao mesmo tempo que essas duas categorias são codificadas, as seqüências de interação com fronteiras temáticas claras são determinadas. Essas seqüências constituem os enunciados típicos do gênero de discurso da sala de aula. Elas normalmente adquirem alguns padrões que correspondem aqueles descritos por Mortimer e Scott (2003), sejam padrões triádicos do tipo I-R-A (Iniciação do professor, Resposta do aluno, Avaliação do professor); ou padrões não triádicos constituídos por cadeias de interação fechadas (do tipo I-R-P-R-P-R-A, onde P corresponde a uma fala do professor para sustentar o produção discursiva do aluno e dar prosseguimento a sua fala) ou cadeias abertas (do tipo I-R-P-R-P-R..., nas quais o professor não faz uma avaliação final). Há ainda outros tipos de padrão, por exemplo os que envolvem a iniciação de seqüências pelos próprios alunos. Também acontecem, ainda que raras nas aulas analisadas, situações de trocas verbais entre professor e alunos que adquirem tal complexidade que não podem ser reduzidas aos padrões de iniciação e respostas. Chamamos esse tipo ocorrência de “trocas verbais”.

É importante considerar que o tipo de iniciação ou questão formulada pelo professor ou estudante tem uma influência importante na duração e natureza das respostas e no potencial para gerar cadeias de interação por meio de feedbacks ou prosseguimentos do professor. Uma questão que demanda uma escolha (“o sentido da força é para cima ou para baixo?”) ou um produto

8

(“qual é o gás produzido nessa reação?”) (Mehan, 1979) tende a elicitar respostas curtas constituídas por uma única palavra, que são avaliadas pelos professores, gerando seqüências do tipo I-R-A. Por outro lado, questões que demandam descrição ou explicação de processos ou metaprocessos (“O que acontece com a bola quando ela é lançada?”; “Por que a temperatura muda?”; “O que você quer dizer com isso?”) tendem a elicitar enunciados completos ou a gerar cadeias de interação. Para dar conta dessa diversidade de situações e padrões, definimos um conjunto de 21 categorias para codificar os turnos e identificar os padrões de interação. Tomando por base o trabalho de Mehan (1979), foram definidas 4 tipos de iniciação, aplicáveis tanto às iniciações da professora quanto às dos estudantes: 1. Iniciação de escolha: de acordo com Mehan (1979: 44) “a elicitação de escolha demanda ao

respondente que concorde ou discorde com uma afirmação feita pelo perguntador”. Nos dados obtidos em aulas de ciências da natureza, além da escolha entre sim ou não, temos também a escolha entre duas possibilidades diferentes (“O sentido da força é para baixo ou para cima?”; “A reação é exotérmica ou endotérmica?”)

2. Iniciação de produto: de acordo com Mehan (1979: 44) “a elicitação de produto demanda ao respondente uma resposta factual como um nome, um lugar, uma data, uma cor”. Nas salas de aula de ciências, esse tipo de iniciação normalmente toma a forma de um questão do tipo “o que” ou “qual”, que elicita um substantivo ou adjetivo denotando um agente, um evento, um processo nominalizado, uma propriedade, etc.

3. Iniciação de processo: de acordo com Mehan (1979: 45) “a elicitação de processo demanda a opinião ou interpretação do respondente. Nas salas de aula de ciências, elas normalmente tomam a forma de questões do tipo “por que”, “como” ou “o que acontece”, que elicitam uma processo específico que deve ser descrito ou explicado, normalmente, por uma frase completa.

4. Iniciação de metaprocesso: de acordo com Mehan (1979: 46) “um quarto tipo de elicitação demanda aos estudantes que sejam reflexivos sobre o processo de estabelecer conexões entre elicitações e respostas. Essas elicitações são chamadas de metaprocesso porque elas pedem ao estudante para formular as bases de seu pensamento.”

Correspondendo a esses 4 tipos de iniciação, existem também 4 tipos de resposta. No fluxo de discurso da sala de aula, há que se considerar que uma iniciação de um tipo pode gerar respostas do mesmo tipo ou de outros tipos. Esse conjunto de 4 categorias, combinado com a possibilidade de uma iniciação ou uma resposta ter sido enunciada pelo professor ou por um estudante, dá origem a 16 diferentes categorias.

Além dessas 16 categorias, definimos outras 5: 17 – Avaliação, pelo professor: um enunciado que é usado para fechar tanto uma seqüência triádica quanto uma cadeia fechada de interações. 18 - Feedback ou prosseguimento, normalmente pelo professor: um enunciado que demanda uma elaboração adicional do aluno, dando prosseguimento à sua fala. Normalmente dá origem a cadeias de interação. 19 – Síntese final da interação, pelo professor: quando o professor, geralmente após fechar uma seqüência com uma avaliação, produz um enunciado final para sintetizar os pontos principais ou o conteúdo do enunciado que foi produzido na seqüência. 20 – Sem interação: quando apenas o professor fala, sem trocar turnos com os alunos ou sem que essa fala seja o fechamento de uma seqüência de troca de turnos. 21 – Troca verbal: uma seqüência de troca de turnos que é muito aberta e difícil de enquadrar-se nas categorias definidas anteriormente.

9

Categorizando a abordagem comunicativa

O conceito de abordagem comunicativa fornece a perspectiva de como o professor trabalha com os estudantes para desenvolver os significados na sala de aula. De acordo com Mortimer e Scott (2003), quando esse trabalho é desenvolvido, a abordagem do professor pode ser caracterizada ao longo de duas dimensões. A primeira pode ser caracterizada como um contínuo entre dois pólos extremos: o professor considera o que os estudantes têm a dizer do ponto de vista do próprio estudante; ou o professor considerada o que o estudante tem a dizer apenas do ponto de vista da ciência escolar. A primeira dessas posições é chamada de abordagem comunicativa dialógica – mais de um ponto de vista é considerado e há inter-animação entre diferentes idéias conforme elas são exploradas – e a segunda, abordagem comunicativa de autoridade – apenas um ponto de vista é considerado.

Em termos gerais, enquanto a abordagem dialógica é aberta a diferentes perspectivas, a abordagem de autoridade restringe o foco a uma única perspectiva. De acordo com Mortimer e Scott (2003), uma importante conseqüência da distinção entre as abordagens dialógicas e de autoridade é que uma seqüência de fala pode ser de natureza dialógica ou de autoridade independentemente de ser enunciada individualmente ou entre pessoas. O que faz o discurso funcionalmente dialógico é o fato de diferentes idéias serem consideradas e não o fato de ser produzido por um grupo de pessoas ou por um indivíduo solitário. Isso leva os autores a apresentar a segunda dimensão a ser considerada na abordagem comunicativa: que ela pode ser interativa, no sentido de envolver a participação de mais de uma pessoa, ou não-interativa, no sentido de envolver a participação de apenas uma pessoa. Combinando essas duas dimensões, temos um conjunto de quatro categorias que são usadas par codificar a abordagem comunicativa: 1 – Interativa e dialógica (I/D); 2 – Interativa e de autoridade (I/A); 3 – Não-interativa e dialógica (NI/D); 4 - Não-interativa e de autoridade (NI/A)

Embora esses aspectos tenham sido desenvolvidos em relação ao papel e às ações do professor, elas também podem ser usadas para caracterizar as interações entre estudantes. RESULTADOS, PARTE 1: Dados Gerais

Nesta primeira parte apresentaremos apenas alguns resultados gerais que esse sistema de categorização permite evidenciar. Os resultados referem-se a duas classes francesas do primeiro ano do ensino médio (“Second de Lycée”), nas quais foram analisadas as seqüências de aproximadamente 3 aulas em que o conceito de força foi introduzido, como parte do programa oficial francês para o ensino médio de física na parte dedicada à Mecânica. A professora de uma das escolas (que chamaremos de Escola A) faz parte do grupo Sésame, grupo de Lyon que reúne professores de escolas e pesquisadores universitários com o objetivo de propor atividades para o ensino de ciências que levem em consideração os resultados da pesquisa na área de educação em ciências. O professor da outra escola (que chamaremos de Escola B) não tem qualquer relação com o grupo Sésame. Ambos os professores são bastante experientes e têm uma relação muito boa com seus alunos. Ambas as escolas estão situadas em Lyon, a segunda cidade francesa em população, e atendem à classe média. As escolas dispõem de boas instalações e além das aulas teóricas com toda a turma (30 alunos, em média, duração de uma hora), são realizadas também aulas práticas, com a metade da turma e duração de uma hora e meia. Os gráficos de 1 a 8, a seguir, contêm a síntese das categorizações realizadas para as duas escolas. Uma leitura em conjunto desses gráficos, associado às informações que o processo de categorização fornece ao investigador, revela diferenças significativas entre as duas classes e entre as dinâmicas discursivas aí empregadas.

10

O gráfico 2 mostra que a professora da Escola A passou uma parte significativa do tempo nas posições de deslocamento (29,27% do tempo total) e nas bancadas atendendo aos alunos ou controlando o seu trabalho (29,31%). Para o professor da Escola B, essas posições correspondem a 5,61% (deslocamento) e 9,82% (bancada). Esse dado já mostra uma diferença marcante entre as duas classes: na Escola A é significativo o tempo utilizado pelos alunos para fazerem atividades em duplas. Durante esse tempo, a professora desloca-se entre as duplas, controlando o trabalho, respondendo a perguntas dos estudantes ou formulando as suas. O professor da Escola B também adota essa estratégia, mas ela é menos significativa. Nas suas aulas, as posições que ele adota predominantemente são frontal (60,37%), normalmente para interagir com os alunos, e quadro (24,20%), para escrever sínteses do conteúdo que foi discutido por meio dessas interações. Essas estratégias também são utilizadas pela professora da Escola A, mas elas são bem menos freqüentes (33,61% na posição frontal e 8,01% no quadro).

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teúd

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Escola A Escola B

Tipos de discurso

ConteúdoGestão de classeProcedimentalExperimentoConteúdo escrito

Tempo total codificado nessa categoria: 2h03m29s na Escola A e 1h39m44s na Escola B Gráfico 1 – Tipos de discurso nas Escolas A e B (em porcentagem do tempo total)

11

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8,0

1%

Fron

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50,00%

60,00%

70,00%

Escola A Escola B

Posição do Professor

QuadroFrontalDeslocamentoBancadaOutra

Tempo total codificado nessa categoria: 1h59m28s na Escola A e 1h39m18s na Escola B Gráfico 2 – Posições do professor nas Escolas A e B (em porcentagem do tempo total)

Esse posicionamento do professor no espaço físico relaciona-se com diversas outras

características das duas salas de aula, como veremos. A primeira delas é justamente a porcentagem de tempo despendida em cada uma das salas no discurso de gestão e organização de classe (17,79% na Escola A; 9,94% na Escola B). Como o trabalho dos alunos em duplas é bem mais freqüente na Escola A, a professora dessa escola faz mais intervenções disciplinares para assegurar que os alunos trabalhem e, dessa forma, tornar essas atividades mais produtivas.

12

Prof

esso

r; 65

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Prof

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20,00%

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80,00%

90,00%

Escola A Escola B

Tempo de fala de professor(a) e alunos

ProfessorAlunosPausa

Tempo total codificado nessa categoria: 1h43m40s na Escola A e 1h24m40s na Escola B Gráfico 3 – Tempos de fala de professor(a) e alunos (em porcentagem do tempo total)

O gráfico 3 mostra que nas duas salas acontecem muitas interações entre professor e alunos, com uma diferença importante: enquanto na Escola B os 360 turnos de fala do professor correspondem a 80,15% do tempo total e os 345 turnos dos alunos, a 14,80%, na Escola A, os 459 turnos de fala da professora correspondem a 65,80% do tempo total e os 501 turnos dos alunos a 23,40%. A análise dos vídeos permite evidenciar que os alunos da Escola A produzem mais enunciações completas, seja como resposta ao professor, seja como iniciação. Na Escola B, a grande maioria das intervenções dos alunos restringe-se a palavras para completar lacunas nos enunciados do professor. Essa participação diferenciada dos alunos da Escola A reflete-se também num maior número de interlocutores privilegiados (gráfico 4), definidos pelo critério de haverem falado mais de um minuto durante toda a seqüência de ensino: 5 na Escola A e 2 na Escola B. Essa participação é diferenciada não só no tempo total, mas também na natureza das intervenções, o que se reflete na abordagem comunicativa (gráfico 5). Enquanto na Escola B praticamente só ocorreram abordagens de autoridade (53,82% interativa/de autoridade, 45,26% não-interativa/de autoridade e apenas 0,93% interativa/ dialógica), na Escola A, a abordagem interativa/dialógica corresponde a 1/5 do tempo total (20,61%) e a abordagem não-interativa/de autoridade (26,05%) ocupa um tempo menor do que na Escola B. A porcentagem do tempo total, gasto na abordagem interativa/de autoridade, é equivalente (51,79% na Escola A e 53,82%na Escola B).

13

Alun

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3,5

2%

Alun

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2,2

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1,5

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1,2

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o 1;

2,2

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Alun

o 2;

1,6

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0,00%

0,50%

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1,50%

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2,50%

3,00%

3,50%

4,00%

Escola A Escola B

Locutores privilegiados (% do tempo total)

Aluno 1Aluno 2Aluno 3Aluno 4Aluno 5

Gráfico 4 – Locutores privilegiados (em porcentagem do tempo total)

Inte

rativ

a/de

aut

orid

ade;

51,

79%

não-

inte

rativ

a/de

aut

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Inte

rativ

a/di

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rativ

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a/de

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rativ

a/de

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45,

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Inte

rativ

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0,9

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não-

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alóg

ica;

0,0

0%

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

Escola A Escola B

Abordagem Comunicativa (porcentagem do tempo total)

Interativa/de autoridadenão-interativa/de autoridadeInterativa/dialógicanão-interativa/dialógica

Tempo total codificado nessa categoria: 1h33m29s na Escola A e 1h24m40s na Escola B Gráfico 5 – Abordagem comunicativa (em porcentagem do tempo total)

14

Inic

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o do

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%

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final

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40,00%

45,00%

Escola A Escola B

As interações (porcentagem do tempo total)

Iniciação do professor

Resposta do aluno

Iniciação dos alunos

Resposta do professor

Feedback do professor

Avaliação do Professor

Síntese final

Sem interação

Troca verbal

Tempo total codificado nessa categoria: 1h31m55s na Escola A e 1h17m38s na Escola B Gráfico 6 – As interações (em porcentagem do tempo total)

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etap

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Escola A Escola B

Tipos de iniciação do professor

de escolhade produtode processode metaprocesso

Gráfico 7 – Tipos de iniciação do professor (em porcentagem do tempo total)

15

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Escola A Escola B

Tipos de resposta dos alunos

de escolhade produtode processode metaprocesso

Gráfico 8 – Tipos de resposta dos alunos (em porcentagem do tempo total)

O gráfico 6 também revela diferenças importantes entre as duas salas de aulas, que são bastante compatíveis com os resultados mostrados nos gráficos anteriores. Enquanto que a porcentagem do tempo total de iniciação do professor (17,32% na Escola A e 14,96% na Escola B) e dos alunos (4,64% na Escola A e 3,28% na Escola B) tem valores próximos para as duas salas de aula, o mesmo não se pode dizer das respostas dos alunos, que representam 20,83% na Escola A contra 10,56% na Escola B. Da mesma forma, enquanto a porcentagem do tempo total gasto pelo professor com feedbacks, avaliações e sínteses finais (24,73% na Escola A e 27,03% na Escola B) não diferencia muito as duas salas de aula, o mesmo não se pode dizer do tempo total que caracteriza um discurso “sem interação” enunciado pelo professor, onde a porcentagem na Escola B (43,19%) é significativamente superior à da Escola A (28,92%).

Em relação à natureza dessas interações, o gráfico 7 mostra que não há diferenças significativas quando se compara a porcentagem do tempo total para os diferentes tipos de iniciação dos professores nas duas escolas. Já para as respostas dos alunos (gráfico 8), a porcentagem do tempo total para as iniciações de produto e de processo é significativamente maior na Escola A (9,68% e 8,70%, respectivamente) do que na Escola B (4,27% e 2,75%, respectivamente). Podemos inferir, a partir desses dados combinados àqueles do gráfico 3, que a diferença entre o tempo total das falas produzidas pelos alunos nas duas escolas é conseqüência principalmente de um maior número de respostas de produtos e de processos dos alunos da Escola A, que incluem também muitas respostas com enunciados completos.

Discussão dos dados gerais

Por meio da apresentação desses dados gerais, resultantes da categorização dos vídeos usando o sistema de categorias apresentado e o software Videograph, foi possível mostrar diferenças significativas entre as duas salas de aula francesas. Apesar de as duas salas apresentarem aproximadamente as mesmas dinâmicas, o peso de cada uma delas é significativamente diferente em cada sala e isso reflete-se de forma direta nos dados apresentados: uma das salas teve uma participação dos alunos mais expressiva em termo dos

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tempos de fala, apresentou abordagens interativas/dialógicas e envolveu um tempo maior nas dinâmica mais centrada nos alunos, em que o professor desloca-se entre as duplas para assistir o trabalho de realização de atividades. A outra sala apresentou predominantemente uma dinâmica interativa centrada no professor, que demonstrava experiências, fazia perguntas, sempre avaliava as respostas dos alunos e conduzia as interações a um fechamento por meio de uma síntese final na interação. Apesar de essa dinâmica estar presente nas duas salas, ela é mais freqüente em uma delas.

Esse primeira aproximação dos dados será completada por outra, mais qualitativa, na qual descreveremos as principais dinâmicas discursivas utilizadas, os tipos de padrões de interação que são gerados (triádicos, cadeias abertas e fechadas) e quais estratégias utilizadas na Escola A permitem o aparecimento de abordagens dialógicas. Isso será feito a seguir, na segunda parte dos resultados, na qual procuraremos responder a algumas questões mais relacionadas à natureza e a qualidade das interações. Nesta segunda parte do artigo vamos aprofundar a análise e mostrar como essas diferenças entre as duas escolas, ressaltadas nos dados que acabamos de apresentar, são o resultado de diferentes estratégias enunciativas usadas pelos dois professores, o que resulta em duas forma diferentes de utilização das formas variadas de enunciados disponíveis no gênero de discurso (Bakhtin, 1986) da sala de aula de ciências. RESULTADOS PARTE II: formas típicas de enunciação nas duas escolas Formas típicas de enunciações na Escola B

A primeira das duas aulas analisadas da Escola B mostra uma forma típica de enunciado que se repete ao longo de toda a aula. Nessa aula nós analisamos apenas a segunda parte, a partir da qual o professor começou a introduzir do conceito de força. Isso porque, como já explicitamos, estamos analisando apenas essa parte do conteúdo de mecânica, O professor faz isso discutindo o que ele denominou “Efeitos de uma força”. Seguindo uma característica marcante do gênero de discurso das salas de aula de ciências nas quais a abordagem comunicativa interativa tem um peso significativo (lembre-se que essa abordagem representa mais da metade do tempo total nessa escola, 54,75%), o professor não produz os enunciados sozinhos, mas por meio da interação com os alunos. No caso da escola B, o professor por várias vezes realiza uma demonstração antes de iniciar uma série de perguntas por meio das quais enuncia interativamente uma “descrição” do fenômeno demonstrado. Nós vamos exemplificar a nossa análise para um desses enunciados típicos. Essa parte da aula consistiu em 12 episódios (num total de 30m17s), dois deles nos quais o discurso restringiu-se à gestão de classe (que correspondem a 3m44s). Nos 10 outros foram produzidas 26 seqüências discursivas (que correspondem a 25m41s), uma pequena seqüência de gestão de classe (que dura 22s) e uma pausa longa (que dura 30s). Das 26 seqüências discursivas, 10 são produzidas interativamente com os alunos, 9 são produzidas sem interação com os alunos, e 7 de maneira mista (parte interativa e parte não-interativa). O professor termina o primeiro episódio analisado na aula, que consiste apenas em um discurso de gestão de classe, com algumas ações que tipicamente constituem-se em pistas contextuais de que um novo tópico vai ter início. Ele apaga o quadro, coloca-se defronte sua mesa, sobre o tablado, organiza a mesa e começa a falar para a toda classe, dizendo que eles vão começar a estudar a noção de força. Nós marcamos o começo do segundo episódio justamente por meio desses índices contextuais e pelo começo da fala, que contém um marcador lingüístico de transição típico na língua francesa – “Bien, Alors”. Logo em seguida, o professor fala que “essa noção vocês já conhecem desde a escola secundária e nós vamos retomar isso começando pelos efeitos de força”. Nos 1m33s de duração desse episódio 2, ele realiza, na seqüência, duas

17

demonstrações. Na primeira delas ele lança para frente, aproximadamente na horizontal, a esponja usada para apagar o quadro. À seguir ele faz o seguinte comentário3: Transcrição 1: A demonstração do deslocamento da esponja Tempo Transcrição da fala Comentários

contextuais 00:24:44 1. Prof.: Se a lançamos nós percebemos que este objeto se desloca,

e nós temos um movimento e uma certa força. Esta é uma primeira coisa. Segunda coisa ...

Esta fala é importante, pois demonstra a forma como o professor lida com o conhecimento que está em jogo, o que vai ser uma constante nessa aula: ele atenua a distinção entre mundo dos objetos e eventos e mundo dos modelos. Neste caso ele confere à força (uma entidade abstrata que pertence ao mundo das teorias e modelos) o estatuto de observável e a coloca no mesmo plano do evento realmente observável: o deslocamento do objeto, que é redefinido logo a seguir como “movimento”. A “segunda coisa” a que se refere o professor é a segunda demonstração que ele realiza. Ele deixa cair uma balão cheio de ar e no meio da queda dá um tapa no balão de modo a alterar sua trajetória. O episódio 3 inicia-se justamente quando o professor começa a enunciar a “descrição” do que se passa com o balão por meio de uma seqüência de interações com toda a classe. Na seqüência discursiva 2 apresentamos a transcrição desse primeiro enunciado. Transcrição 2: Seqüência 1 do episódio 3 Tempo Transcrição da fala Comentários

contextuais 00:25:41 00:26:00

1. Prof.: Assim, segunda coisa, então, antes de passar para os outros exemplos, para começar com esse fenômeno aqui, o que acontece quando eu dou um tapa neste balão? O que acontece ... então, eu lhes escuto, Gaire. 2. Gaire: Há duas forças ... ((algumas falas simultâneas)) 3. Prof.: Duas forças. E antes de mais nada, você considera o movimento de que objeto? 4. A?: Do balão? 5. Prof: O balão. Esse movimento é? 6. Marie: Acelerado? 7. Prof.: A-ce-le-ra-do ((em voz pausada)). Isso quer dizer que o balão vai? 8. Amélie: Modificar 9. A??: Mais rápido. 10. Prof.: Então, ele vai mais rápido. Quando? Gaire 11. Marie: Desde que a mão toca o balão. 12. Prof.: Desde que a mão toca o balão. Vocês estão de acordo?

Um aluno, Gaire, levanta a mão Gaire levanta a mão novamente

3 Nas transcrições sempre introduzimos o tempo (em hh:mm:ss) em que ocorreram alguns dos enunciados, de acordo com a marcação do software Videograph. O valor zero corresponde ao momento em que se iniciou a filmagem da aula e normalmente coincide com o início da aula. O número 1 é sempre atribuído ao primeiro turno da seqüência que está sendo apresentada. Sempre que foi possível identificar o aluno usamos o seu nome, se não, usamos A??. Comentários são adicionados na coluna apropriada ou entre duplo parêntesis. Pausas maiores do que 1 segundo são indicadas entre parêntesis no lugar em que ocorreram. O sinal ] sobre duas falas consecutivas indica falas simultâneas. O sinal // indica uma fala que foi interrompida pela fala seguinte. Negrito indica uma fala com mais volume ou um aumento da entonação.

18

00:26:37

13. Amélie: Sim, mas a (inaudível) é modificada também, sim a trajetória ela pode ser modificada. 14. Prof.: Ele desce verticalmente e depois a trajetória é totalmente modificada. E depois, talvez se eu bater suficientemente forte, eu agora não bati suficientemente forte, seu eu bater suficientemente forte a velocidade aumenta.

Prof. repete a demonstração enquanto fala

Essa primeira seqüência do episódio 2 demonstra a estratégia mais usada pelo professor

para produzir os enunciados nessa aula. Ele começa a seqüência com uma iniciação de processo, bastante aberta (turno 1: “O que acontece quando eu dou um tapa neste balão?”). Como ele não obtém a resposta desejada, ele decompõe a iniciação de processo em um série de iniciações de produto (por exemplo, turno 3: “...você considera o movimento de que objeto”) obtendo respostas curtas dos alunos, por meio de palavras que completam as lacunas que o professor deixou na sua fala por meio das suas iniciações de produto (respostas de produto, como no turno 4, “do balão?”). Ao final, o professor produz uma síntese final da interação, na qual resgata o conteúdo temático do enunciado produzido (turno 14: “...a trajetória é totalmente modificada.... seu eu bater suficientemente forte a velocidade aumenta.”). Podemos resumir essa seqüência da seguinte maneira4: Ipc-Rpd-A; Ipd-Rp-A; Ipd-Rpd-A; Ipd-Ra1pc-Ra2pd-A; Ipd-Rpd-A; Impc-Rpc-Sf

Algumas particularidades importantes devem ser observadas. Todos os turnos intermediários do professor (com exceção do primeiro e último, turnos 1 e 14, que contêm a primeira iniciação e a síntese final da interação, respectivamente) contêm a avaliação da resposta dada pelo aluno no turno anterior e o iniciação da nova seqüência. Isso é uma característica bastante recursiva aos padrões de interação triádicos, do tipo I-R-A (Sinclar e Coulthard, 1975; Mehan, 1979). A iniciação de metaprocesso do professor no turno 12 (“Vocês estão de acordo?”) gera uma resposta de processo de Amélie no turno 13 (“Sim, mas a (inaudível) é modificada também, sim a trajetória ela pode ser modificada”), a única resposta que comporta um enunciado completo, e cujo conteúdo é retomado na síntese final produzida pelo professor. Se consideramos essa análise à luz dos gráficos de 1 a 8, apresentados na primeira parte dos resultados, percebemos que ela consegue explicar aqueles dados gerais relativos a essa escola. Por exemplo, predominam, entre as iniciações do professor, as de produto. Junto com as iniciações de escolha, que também são usadas nessa estratégia de decompor a questão inicial de forma a torná-la manejável pelo aluno, elas perfazem 10,13% do tempo total. Por outro lado, as respostas de produto dos alunos também predominam (4,27% do tempo total, contra 2,75% para as respostas de processo), pois como vimos na seqüência analisada os alunos “entram no jogo” e fazem exatamente o que o professor espera que façam. Como já indicamos na parte 1 dos resultados, as relações professor-aluno são muito boas nas duas salas e turma participa amplamente (17 alunos, do total de 27 presentes, participaram nessa aula).

4 Usamos a o seguinte código: I – indica uma iniciação, R – uma resposta, A – uma avaliação, F – um feedback, P – um prosseguimento e Sf – uma síntese final da interação. Tanto as iniciações quanto as respostas podem ter como índices os seguintes códigos: es – iniciação ou resposta de escolha; pd – de produto; pc – de processo; mpc – de metaprocesso. E ainda, a1, a2, etc. para indicar a situação em que mais de um aluno deu uma resposta à mesma pergunta; e al quando um aluno inicia e pf quando o professor responde.

19

Outra aspecto que a análise da seqüência 1 explica são os dados do gráfico 3, sobre os interlocutores. Enquanto os números de turnos de alunos e professores são praticamente os mesmos (360 e 345), o tempo total de fala dos alunos corresponde a apenas 14,80% enquanto o do professor a 80,15% do total. Isso pode ser explicado pela predominância das respostas de produto e escolha dos alunos, que geralmente consistem apenas numa palavra completando a lacuna deixada pelo professor na sua fala ao proferir a pergunta correspondente, como mostramos na análise da seqüência 1. Por outro lado, a predominância de iniciações de produto e processo explica a alta incidência de respostas em coro que é observada nas aulas da Escola B. A análise da seqüência 1 do episódio 2 também explica porque, de acordo com o gráfico 6, as avaliações (6,87% do tempo total) são bem mais freqüentes que os feedbacks ou prosseguimentos (1,27% do tempo total), o que indica que as interações triádicas do tipo I-R-A predominam sobre as cadeias de interação, pois estas são produzidas justamente a partir de feedbacks ou prosseguimentos por parte do professor. Por último, esse conjunto de fatores ajuda a compreender o resultado das abordagens comunicativas, mostrado no gráfico 5. A predominância de seqüências como a que acabamos de analisar explica a ausência de abordagens dialógicas, pois a grande maioria das interações são bastante dirigidas para a obtenção de respostas certas. O professor ignora ou avalia negativamente as respostas erradas. As poucas iniciações dos alunos que procuram introduzir um ponto de vista diferente e que potencialmente poderiam produzir seqüências dialógicas (um aluno tenta, p.ex., discutir o papel do ar) são descartadas pelo professor (nesse caso ele diz que “isso (o ar) não tem nada a ver”). De forma muito semelhante ao que foi mostrado para a seqüência 1, foram produzidas mais 9 seqüências em interação com os alunos. Existem três tipos principais de variação em relação à estrutura da seqüência 1, para essas seqüências interativas. A principal delas, para as que ocorreram mais ao final, é que o professor, ao invés de iniciar a seqüência a partir da demonstração de algum fenômeno para chegar a uma descrição ou explicação geral, faz o movimento oposto. Ou seja, parte de um princípio geral e chega aos fenômenos que já haviam sido demonstrados nessa aula. A outra variação é que há seqüências que não apresentam uma pergunta geral no início – uma iniciação de processo, como foi mostrado em relação à seqüência 1 - mas já começam com uma iniciação de produto ou de escolha. Essas seqüências seriam idênticas a seqüência 1, mas sem a primeira das tríades. A terceira variação é que para algumas seqüências o professor utiliza feedbacks ou prosseguimentos para gerar cadeias fechadas de interação. As 9 seqüências produzidas sem interação normalmente são momentos de síntese em que o professor retoma os enunciados já produzidos nas outras seqüências ou momentos em que ele introduz um fenômeno por meio de uma demonstração. As 7 seqüências mistas também são predominantemente momentos de síntese. No quadro 4 relacionamos as 18 primeiras das 26 seqüências discursivas, mostrando o tempo final e inicial, o tempo total, os temas dos enunciados que foram produzidos e os tipos principais de interação para cada seqüência. Quadro 4: as primeiras 18 seqüências discursivas dessa aula da Escola B

Episódio/Seqüência Tempos initial – tempo final

(total)

Conteúdo temático Padrões de interação

Episódio 2 : Seqü 1 Deslocam de objetos

23:59 – 24:59 (01:00)

Deslocamento da esponja Demonstração, sem interação

Seqüência 2 24 59 – 25:32 (00:33)

Deslocamento do balão Demonstração, sem interação

Episódio 3: Seqü 1 Efeitos de força em

relação ao balão

25:32 – 26:37 (01 :06)

Modificação da trajetória do balão Ipc (Ipd-Rpd-A) x 4 Sf

Seqüência 2

26:37 – 27:41 (01:04)

Professor demanda uma frase com a palavra força mas não a obtém

Ipd-Rpc-A Duas cadeias

20

fechadas-Sf

Seqüência 3 27:41 – 28 :17

(00 :36) Professor demanda uma frase com a

palavra força, a obtém e a parafraseia Ipc-Rpc-F-Rpd-A (Ipd-Rpd-A) x 2 Ipd-Rpd-A

Seqüência 4

28:17 – 29:41 (01:24)

Professor procura “a forma do balão é modificada pela força”.

Efeitos de uma força: alteração da forma e do movimento

Ipd-Rpd (Ipd-Rpd-A) x 2 Sf (Ipd-Rpd-A) x 2

Episódio 4 Efeitos da força em relação à esponja

Seqüência 1

29:41 – 30:25 (00:44)

Efeitos da força em relação à esponja

Ies-Res Ies-Res-A Ipc-Rpc-F-Rpd-F-Rpd-A

Seqüência 2 30:25 – 31:05 (00:40)

Papel da terra Um aluno sugere que o ar tem um

papel mas é descartado

Ipc-Rpd Ipc-Rpc-Ipc-Rpc-A Ialuno-Rpf-Ial-A

Episódio 5: Seqü 1 Desvio da trajetória da

esfera pelo imã

31:05 - 32:47 (01:42)

Desvio da trajetória da esfera pelo imã

Sem interação. Demostração realizada 3 vezes.

Seqüência 2 32:47 – 33:06 (00:19)

Professor demanda aos alunos a descrição do que foi visto

Ipd-Rpc-F-Rpd-A

Episódio 6: Seqü 1 Modificação do

movimento

33:06 – 33:37 (00:31)

Modificação do movimento da esfera pela força magnética

Ies- ? Sem interação

Seqüência 2 33:37 – 34:04 (00:27)

Síntese dos efeitos de força: modificação do movimento e deformação

Sem inter Ich-Rch-A Sem inter

Episódio 7 Demonstração: Imã e

esfera Seqüência 1

34:04 – 35:42 (01 :38)

Efeito de força: colocar um objeto em movimento

Sem inter Ich-Rmp Sem inter Ich-Rch (Ipd-Rpd-A) x 2 Sf

35:42 – 36:04 Gestão de classe Episódio 8: Seqü 1

Síntese das 3 demonstrações

36:04 – 37:09 (01:05)

Ação da terra sobre a esponja Sem interação Ipd-Rpd-Ipd-Rpd-E-Sf

Seqüência 2 37:09 – 37:58 (00:49)

Ação da mão sobre o balão Sem interação

Seqüência 3 38:03 – 38:56 (00 :53)

Ação do imã sobre a esfera Sem interação Iales-Rpfes

Episódio 9 Síntese da aula

Seqüência 1

38 56 – 39 :51 (00 :55)

Escrito no quadro: Cap : movimento e força I) Caráter relativo movimento

Sem interação

Seqüência 2 39:51 – 42 :26 (02 :35)

II) Força a) Experiências b) Efeitos de força s/ objeto: deformá-lo, colocá-lo em mov, modificar seu movimento (sua velocidade e sua trajetória)

Sem interação

Por meio dessa análise acreditamos ser possível caracterizar as estratégias enunciativas

que constituem o gênero de discurso dessa sala de aula, pelo menos em relação a essa aula. Até o episódio 9, os enunciados foram produzidos interativamente a partir da demonstração de uma fenômeno. Quando a seqüência começa por uma iniciação de processo, ampla e aberta, a seguir ela é decomposta em iniciações bem específicas, de produto e escolha, o que conduz naturalmente à síntese final do professor, que pode ser enunciada interativamente (como na seqüência 4 do episódio 3) ou não. Predominam interações triádicas do tipo I-R-A mas também acontecem cadeias fechadas de interação. Ao final, todos esses enunciados obtidos interativamente são retomados, geralmente sem interação ou com pouco interação e por último o

21

professor escreve essa síntese no quadro. Essas estratégias resultaram na produção de uma série de enunciados parciais que conduzem ao enunciado mais global – a generalização teórica – que é resultado dessa parte da aula: uma força pode deformar um objeto, colocá-lo em movimento ou modificar o seu movimento - sua velocidade e/ou sua trajetória.

Essa análise permite evidenciar que as estratégias enunciativas utilizadas pelo professor produzem uma cadeia de enunciados que vão conduzir a esse enunciado global. De certa forma, esse enunciado global é uma síntese dessa parte da aula que remete ao primeiro enunciado, em que o professor anuncia que vão ser discutidos os “efeitos de força”. Nos 20 minutos (aproximadamente) que separam esse anúncio e a síntese dessa parte, escrita no quadro, foram produzidas 16 seqüências de interação, que podem ser consideradas os enunciados que, em cadeia, preparam esse enunciado global. Esse encadeamento demonstra o princípio bakhtiniano de que cada enunciado é um elo na cadeia de comunicação verbal.

Uma observação importante diz respeito à decisão sobre a unidade de análise mínima que produz significado sobre uma sala de aula. Se tivéssemos analisado apenas esta aula, teríamos um quadro homogêneo mas bastante distorcido das interações que ocorreram nas aulas desse professor. Na aula seguinte o professor adotou também uma outra estratégia, semelhante à que vamos descrever para a Escola A, que teve maior participação dos alunos, inclusive sob a forma de enunciações completas, ainda que não tenha ocorrido uma mudança significativa em relação às abordagens comunicativas.

Formas típicas de enunciados na Escola A

A Escola A tem uma maior variedades de formas típicas de enunciados, incluindo alguns bastante semelhantes àqueles mostrados para a Escola B. Considerando a limitação de espaço que temos nesse capítulo, vamos nos ater a uma forma típica de enunciado, com suas variações, que foi bem característica da Escola A: os enunciados produzidos quando o professor desloca-se pela sala para controlar o trabalho e os significados que os alunos produzem nas atividade realizadas em duplas. Há que se mencionar também a ocorrência, nessa aula, de pelos menos mais 5 tipos de estratégias enunciativas diferentes daquelas descritos para a Escola B: um estratégia em que a professora, numa abordagem não-interativa/de autoridade, lê e comenta o “texto do modelo”, que neste caso descrevia o princípio de inércia; uma série de enunciados em interação com alunos que foram ao quadro para fazer a correção de atividades; alguns enunciados da professora com a sala toda, que têm uma estrutura semelhante àquela mostrada para a Escola B, mas que resultam em perguntas de processo, respostas de processo sob a forma de enunciados completos pelos alunos, e cadeias abertas que caracterizam uma abordagem comunicativa interativa e dialógica; nesse mesmo movimento ocorrem iniciações dos alunos; e enunciados produzidos entre os alunos nos trabalhos que eles realizavam em duplas, algo que ocorreu na segunda aula da Escola B, mas com freqüência bem menor. Há que ressaltar, ainda, que durante os episódios em que a professora percorre as duplas que estão fazendo as atividades, várias seqüências são iniciadas pelos alunos. Nós vamos mostrar duas seqüências do episódio 5 que ocorreram uma logo após a outra e que exemplificam como essas interações com as duplas de alunos, quando a professora se desloca pela sala durante a realização dos exercícios, são bem características da aula dessa professora: ela não age da mesma forma com todos os grupos, mas modula sua interferência tendo por base o que ela verifica que o aluno já fez (pela inspeção de seu caderno) ou está fazendo (pela pergunta ou argumento enunciado pelo aluno). Podemos dizer que a professora age na zona de desenvolvimento proximal do aluno (Vygotsky, 1978), fornecendo a quantidade de suporte que ela julga suficiente para que o aluno desempenhe a tarefa sozinho (Bruner, 1985). Quando ela estima que a dupla necessita de uma quantidade apreciável de suporte, as seqüências lembram aquela que apresentamos para a Escola B, como veremos em relação à seqüência 4 do episódio 2 dessa aula. Quando ela estima que a dupla não necessita de muito suporte, sua atuação

22

limita-se a confirmar os enunciados oferecidos pelos alunos, como veremos em relação à seqüência 5 do episódio 2 dessa aula.

A atividade que os alunos faziam no episódio 2 envolvia: determinar as diferentes fases do movimento de uma medicine ball quando ela é lançada verticalmente para cima e agarrada novamente após a subida e a decida; e determinar quais são as ações exercidas sobre a medicine ball em cada fase, quem ou o que exerce essa ação e em qual direção a ação é exercida. Cada dupla de alunos tinha uma medicine ball e eles reproduziram o movimento que estava em questão várias vezes antes de começar a responder às questões. Nas duas seqüências, a professora discutiu com as duplas de alunos a resposta que eles davam a uma das questões da atividade: em que momento(s) sua mão exerce uma ação sobre a medicine ball e qual o sentido dessa(s) ação(ões). Na seqüência 4 do episódio 2, a professora é chamada pelo aluno do grupo, verifica a resposta dada à questão, faz um comentário avaliando a resposta e inicia a interação com um dos alunos da dupla por meio de uma questão. Logo após ela dirigi-se à outra dupla e isso dá origem à seqüência 5. Nós vamos apresentar as transcrições das duas seqüências. Como a seqüência 5 envolvia a dupla de alunos que estava sendo filmada pela segunda câmera, nós temos gravada a conversa que antecedeu o momento em que a professora chega ao grupo e vamos apresentá-la para ilustrar outro tipo de interação mais comum nessa sala do que na sala da Escola B: a interação entre alunos na realização das atividades em dupla. Transcrição 4: Seqüência 4 do episódio 2 da aula de 08/02/05 da Escola A Tempo Transcrição da fala Comentários

contextuais 00:46:11 00:46:30 00:46:56

1. (4s) ((a Profa. se aproxima da dupla e verifica o que o aluno escreveu no caderno))

2. Prof.: Ah bom, isto é porque você não fez o que eu pedi. Me mostre que gesto você faz quando você lança e a//

3. Noé: lançar é assim // 4. Profa.: Sim // 5. Noé: E abaixo é assim. 6. Profa.: Agora, sua mão age sobre a medicine ball em que

momento? por exemplo 7. Noé: Quando a gente lança// 8. Profa.: Quando você lança] 9. Noé: E quando a gente agarra] 10. Profa.: Agora, pergunta em que ((a professora interrompe sua

fala para chamar a atenção de um aluno de outra dupla que continua a jogar a medicine ball para cima)) Thibaut responda às questões, coloque a medicine ball sobre a mesa e responda às questões ((retomando a conversa com a dupla)) Em que sentido, o que quer dizer “em que sentido”?

11. Xavier: Para cima e para baixo? 12. Profa: Para cima e para baixo. 13. Noé.: Só isso? 14. Profa.: Ah, isso já é muito. Responda à caneta. (4s) Vamos.

Noé faz gestos com as mãos indicando sucessivamente para cima e para baixo A profa. observa mais um pouco o caderno do aluno e então deixa o grupo.

Transcrição 4: Seqüência 5 do episódio 2 da aula de 08/02/05 da Escola A Tempo Transcrição da fala Comentários

contextuais 00:46:23

1. Marelene: Como a gente representa uma ação? 2. Cindy: Uma ação a gente representa por uma flecha.

23

00:47:10

3. Marlene: Assim nós vamos colocar... a medicine ball, em seu centro

4. Cindy: Você quer que eu te mostre? ((ela fala enquanto faz a representação no seu caderno))

5. Marlene: Centro da medicine ball ((também fala enquanto faz a representação no seu caderno))

6. Cindy: (inaudível) 7. Marlene: Em um só sentido? ((fala olhando o caderno de

Marlene)) 8. Cindy: Sim, desse jeito ((fala em referência ao diagrama em

seu caderno)) 9. Marlene: E também, na medicine ball, no seu centro ((da

bola)) e para baixo. ((refere-se à representação do centro da bola por um ponto)) (2s)

10. Cindy: Mas não. Nas duas vezes ((refere-se aos momentos em que a bola é lançada e em que a bola é agarrada)) a gente empurra para o ar.

11. Marlene: Não, quando a gente agarra a gente puxa para baixo. 12. Cindy: Sim, mas você se esquece .... olhe, olhe o movimento

que você faz ((Cindy simula com suas mãos a ação da medicine ball quando chega ao fim do movimento descendente e é agarrada por Marlene, empurrando as mãos de Marlene para baixo)). Não, mas segure com força ((Nesse momento Marlene segura com força e quando Cindy tira a sua mão, a mão de Marlene faz um movimento para cima))

13. Profa.: Isso é a medicine ball? 14. Cindy: Sim, mas de fato, porque ela ... os dois movimentos

que a gente faz com a bola eles vão para o ar. 15. Marlene: Ela diz que quando a gente pára ela ela vai ] 16. Cindy: Quando a gente pára ela vai ] 17. Profa.: Me diga, vocês estão em qual parte? ((refere-se a que

parte da atividade que elas estão fazendo)) 18. Cindy e Marlene: Indique quando é que... quando é que

exercemos uma ação 19. Prof.: Sim 20. Cindy: Quando é que exercemos uma ação, quando a jogamos

para o ar e quando a agarramos e depois, a ação, de fato, ehh, nós queremos mostrar em que sentido essas ações são exercidas.

21. Prof.: Sim, claro 22. Cindy: E de fato, ela está ((se refere a Marlene)) falando que é

uma para cima e a outra para baixo. Mas de fato essa que vai para baixo não é para baixo, ela ((refere-se à mão)) vai para baixo por causa da força, mas a mão, ela empurra para o ar. O que eu quero lhe mostrar ((refere-se à Marlene)) se ela segura a medicine ball que eu desço ((refere-se ao movimento da sua mão, empurrando a mão de Marlene, como se fosse a bola)) e eu relaxo ((nesse momento ela solta a mão e a mão de Marlene sobe)), ele vê bem que é uma ação para o ar. Assim, nas duas vezes a ação é no sentido do ar.

Faz gesto com as mãos de empurrar para cima Faz gesto das mãos indo para baixo Cindy simula três vezes Nesse momento a professora chega junto à dupla Faz gesto indicando para cima As duas fazem gesto para cima para completar a frase Gesticula com a bola na mão enquanto fala Gesticula indicando os sentidos enquanto fala Retoma a simulação da ação da bola com suas mãos Gesticula indicando para cima

24

00:47:52

23. Prof.: ((Dirigindo-se a Marlene)) Você está convencida? 24. Marlene: Sim

Balança a cabeça afirmativamente

É marcante a diferença entre essas duas seqüências. A seqüência 4, na qual a professora

interage com a dupla Noé e Xavier, tem uma estrutura bastante semelhante àquela mostrada para a Escola B. A professora faz uma iniciação de produto, o aluno responde, a professora avalia. Essa seqüência triádica Ipd-Rpd-A ocorre para os turnos 2-3-4 e 6-7-8. No turno 10 ela faz uma iniciação aparentemente de processo, mas a resposta do aluno é de produto e também acontece a avaliação final. A principal diferença é que ela não chega, com essas interações, à resposta completa à questão, que seria dizer em que sentido a mão age sobre a medicine ball no momento em que lança e no momento em que agarra novamente a bola. É por isso que falamos que a professora modula sua intervenção na ZDP do aluno. Nesse caso, ela assegura-se de que os alunos compreenderam a tarefa e que responderam à primeira parte. Mas ela não chega a formular a resposta completa, preservando dessa forma o espaço de trabalho do aluno. Também nessa intervenção fica claro o controle que a professora exerce sobre toda a turma durante a realização dessas atividades em dupla, exemplificado pela fala disciplinar dirigida ao Thibaut, aluno de uma outra dupla. Isso exemplifica aquilo que comentamos na primeira parte dos resultados, que as atividades em dupla explicam a maior freqüência do discurso de gestão de classe nas aulas da Escola A quando comparadas às aulas da Escola B. Na intervenção da professora junto a dupla de Cindy e Marlene, que gerou a seqüência 5, ela limita-se a perguntar em que parte estão as alunas e a autorizar (no sentido de conferir autoridade) as intervenções feitas pelas alunas. Ao perceber que as alunas, sozinhas, são capazes de realizar a atividade e que Cindy é capaz mesmo de simular o efeito da medicine ball para convencer Marlene da justeza de seu argumento, as professora simplesmente diz “sim” para sustentar a elaboração de Cindy. Novamente ela modula sua intervenção de acordo com a avaliação que faz da ZDP dos alunos. Aqui ela percebe que a única intervenção necessária é confirmar o enunciado de Cindy, conferindo-lhe autoridade. A característica mais marcante dessa seqüência é a forma pela qual Cindy leva em consideração a objeção de Marlene, de que o sentido da ação da mão, no momento em que a medicine ball é agarrada, é para baixo (na clássica concepção alternativa de que a ação se dá na direção do movimento). Cindy é capaz de elaborar um “experimento”, no qual sua mão simula a ação da medicine ball, para mostrar para Marlene que o sentido da ação da mão é, na verdade, para cima. Essa seqüência exemplifica uma das forma pelas quais a abordagem comunicativa interativa e dialógica acontecem nas aulas da Escola A, a qual na maioria das vezes não foi registrada nos dados apresentados na primeira parte5 – na interação entre os alunos. Como mostramos na primeira parte dos resultados, a presença das abordagens comunicativas dialógicas nas aulas da Escola A correspondem a 20% do tempo total e marcam uma diferença importante em relação às aulas da Escola B, onde elas praticamente não ocorreram. Como, a essas abordagens que ocorrem por iniciativa do professor, somam-se aquelas que ocorrem entre os alunos e que não foram categorizadas, o peso das abordagens dialógicas na Escola A é significativo. Outra aspecto importante dessa seqüência é que ela mostra como esse tipo de abordagem dialógica pode ser importante para a estabilização do conhecimento adquirido pelo aluno. É justamente por levar em consideração um ponto de vista diferente do seu – o que caracteriza as abordagens dialógicas – que Cindy é capaz de construir um argumento bastante sofisticado, que convence definitivamente Marlene de que seu ponto de vista não é adequado para a situação.

5 Lembre-se que esses dados foram obtidos pela categorização do vídeo que gravou o professor e a sala como um todo.

25

Conclusões Neste trabalho mostramos como a metodologia desenvolvida, combinando dados gerais de resultados de uma categorização exaustiva dos vídeos e a micro-análise de estratégias enunciativas específicas é útil para caracterizar o gênero de discurso da sala de aula de ciências. Segundo Bakhtin, o gênero de discurso não é uma forma de linguagem, mas uma forma típica de enunciado, que relaciona-se ao lugar social onde o discurso é produzido. Julgamos que uma das principais contribuições da metodologia apresentada é conseguir concretizar esse conceito de enunciado de Bakhtin, mostrando como os enunciados adquirem uma estrutura e uma composição bem peculiares no espaço enunciativo da sala de aula, resultado de diferentes estratégias enunciativas utilizadas pelos professores; e como se articulam na produção de enunciados mais gerais, constituindo-se como elos na cadeia de comunicação (Bakhtin, 1986). A metodologia apresentada também permite combinar diferentes níveis e unidades de análise. Ao relacionar os resultados gerais e a micro-análise das seqüências de interação, demonstramos como a articulação entre esses dois procedimentos metodológicos permitem elucidar dois aspectos importantes que o uso isolado de um ou de outro procedimento não alcançaria: em primeiro lugar, essa articulação permite evidenciar que as estratégias enunciativas descritas foram empregadas sistematicamente nas aulas analisadas. Dito de outra forma, os dados gerais corroboram as conclusões sobre as estratégias enunciativas utilizadas, pois procura-se demonstrar como esses dados gerais são obtidos a partir do emprego dessas estratégias. Em segundo lugar, a micro-análise permite dar sentido aos dados gerais obtidos pela categorização sistemática dos vídeos, explicitando as diferenças entre as duas salas de aula, que esses dados permitem antever, por meio da análise das estratégias enunciativas, dos tipos de enunciados e das interações.

Acreditamos que a metodologia descrita tem potencial para ampliar o conhecimento sobre a sala de aula, ao possibilitar a combinação da já tradicional micro-análise de episódios ou eventos com a categorização exaustiva que permite determinar o peso desses episódios na dinâmica das salas de aula. Por outro lado, o uso dos vídeos no lugar da transcrição (reservando esta apenas para os episódios que serão apresentados em artigos) permite evidenciar a importância de outros registros semióticos, para além da linguagem verbal, na produção de significados, algo que ficou evidente em relação ao diálogo entre Cindy e Marlene, mostrado na análise do seqüência 5 do episódio 2 de umas das aulas da Escola A. Finalmente a análise por meio de contraste entre duas práticas pedagógicas diferentes usadas para ensinar o mesmo conteúdo mostra-se um instrumento eficiente para revelar os tipos de mais comuns de estratégias enunciativas utilizadas nas salas de aula de ciências – os gêneros de discurso aí empregados. Esses dados têm também potencial para serem usados em processos de formação inicial e continuada de professores, possibilitando a reflexão sobre a ação e tornando mais consciente o uso dessas diferentes estratégias pelo professor. AGRADECIMENTOS Trabalho financiado pelo CNPq, Capes, CNRS e INRP. Agradecemos aos professores pela oportunidade de registrar suas aulas e documentar suas habilidades em conduzí-las, e aos seus alunos; à Layal Malkoun e Nada Souassy que ajudaram na filmagem das aulas e contribuíram decididamente para a elaboração da metodologia apresentada, ao participarem das discussões dos dados; e aos grupos de pesquisa do ICAR, Lyon e da UFMG, pelas vários questionamentos e sugestões. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

26

Bakhtin, M.M. The dialogic imagination, ed. by Michael Holquist, trans. by Caryl Emerson and

Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981. Bakhtin, M.M. Speech Genres & Other Late Essays, ed. by Caryl Emerson and Michael

Holquist, trans. by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1986. Bakhtin, M.M. (V. N. Volochínov). Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. Marxismo e Filosofia da

Linguagem. 11ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2004. Brait, B. e Melo (org) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. Bruner, J. (1985). Vygotsky: a historical and conceptual perspective. In J. Wertsch, Culture,

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