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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS A QUESTÃO DA METAFÍSICA: ELIMINAÇÃO OU APROVEITAMENTO? ALMIR PAULO RANGEL DE ALMEIDA RIO DE JANEIRO 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

A QUESTÃO DA METAFÍSICA: ELIMINAÇÃO OU APROVEITAMENTO?

ALMIR PAULO RANGEL DE ALMEIDA

RIO DE JANEIRO 2019

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A QUESTÃO DA METAFÍSICA: ELIMINAÇÃO OU APROVEITAMENTO?

ALMIR PAULO RANGEL DE ALMEIDA

ORIENTADOR: ALBERTO OLIVA

Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica para obtenção do título de Mestre.

RIO DE JANEIRO 2019

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RIO DE JANEIRO

2019

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RESUMO

Ciência e metafísica são duas áreas do conhecimento que têm sido historicamente

contrapostas na medida em que sobre a segunda têm recaído questionamentos sobre sua

cognitividade, enquanto a primeira tem sido reconhecida por estabelecer suas teses em bases

epistemológicas sólidas. Costumam ser vistas como opostas em virtude de a primeira ser

apresentada como completamente dependente do acompanhamento dos fatos e a segunda ser

de natureza mais especulativa, muita vezes depreciada por isso.

Embora ciência e metafísica sejam opostas, não nos é claro se a metafísica é

totalmente dispensável para o desenvolvimento da ciência, pois há argumentos em favor da

possibilidade do aproveitamento de teorias metafísicas, reformuladas, pela ciência

tornando-se teorias empiricamente fundamentadas e testáveis. Como o que se deu, por

exemplo, com a teoria atomista de pré-socráticos como Demócrito que sustentava a tese de

que toda a realidade se reduz aos átomos e ao vazio, ou ainda de que o princípio (arché) é o

átomo. Tal teoria metafísica influenciou fortemente as teorias atomistas posteriores como de

Dalton e Rutherford, estas embasadas empiricamente em experimentos e postulando

diferentes estruturas para o átomo.

A questão referente à relação entre a metafísica e a ciência é correlata à discussão

sobre os critérios de demarcação ou cientificidade muito comum no século XX. Filósofos

como Schlick, Carnap e Ayer adeptos do verificacionismo e de um método indutivo para a

ciência preferiam a eliminação da metafísica e rejeitavam qualquer tipo de teoria não

fundamentada empiricamente sob alegação de serem estas vazias de significado cognitivo.

Carnap posteriormente passou a advogar a favor do confirmacionismo.

Por outro lado, na mesma época, Karl Popper propunha o falsificacionismo e um

método dedutivo (chamado por ele de hipotético-dedutivo) como critério de demarcação, com

base no qual a metafísica não era eliminada e sim recuperada como possível fonte de novas

hipóteses e teorias científicas. Mais tarde Popper também postulou a possibilidade das ideias

metafísicas participarem do processo do conhecimento científico por meio dos programas

metafísicos de pesquisa, funcionando como guias da pesquisa empírica.

Ficamos então com a seguinte questão para nossa dissertação: a metafísica deve ser

desqualificada como projeto cognitivo, pela falta de referentes empíricos de suas proposições,

pelas críticas sintáticas a que estão sujeitas suas construções, como pregam os positivistas

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lógicos, ou pode ter seu valor cognitivo parcialmente resgatado reconhecendo-se que suas

teses são passíveis de ser aproveitadas e contribuir, como sugere Popper, para a formulação de

novas teorias suscetíveis de ser confrontadas com a realidade.

Palavras-chave: Metafísica, Critério de Demarcação, Popper, Positivismo Lógico.

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ABSTRACT

Science and metaphysics are two areas of knowledge that have historically been

opposed and questions about their cognitiveness have fallen on the latter, while the former has

been recognized for establishing its theses on solid epistemological grounds. They are often

seen as opposites because the former is presented as completely dependent on the follow-up

of facts and the latter is more speculative in nature, often belittled because of this.

Although it has an opposition between science and metaphysics, it is not clear whether

metaphysics is totally dispensable for science development, as there are arguments in favor of

the possibility that science can take advantage of metaphysical, reformulated theories

becoming empirically grounded and testable theories. As was the case, for example, with the

Atomist theory of pre-socratics such as Democritus who supported the thesis that all reality is

reduced to atoms and emptiness, or that the principle (arché) is the atom. Such a metaphysical

theory strongly influenced later atomist theories such as Dalton and Rutherford, which are

empirically grounded in experiments and postulating different structures for the atom.

The question concerning the relationship between metaphysics and science is

correlated with the discussion about the criteria of demarcation or scientificity very common

in the twentieth century. Philosophers like Schlick, Carnap, and Ayer who were adepts of

verificationism and of an inductive method for science preferred the elimination of

metaphysics and rejected any kind of empirically grounded theory on the grounds that it was

empty of cognitive meaning. Carnap subsequently advocated for confirmation.

On the other hand, at the same period of time, Karl Popper proposed falsificationism

and a deductive method (he called hypothetical-deductive) as a demarcation criterion, based

on which metaphysics was not eliminated but recovered as a possible source of new

hypotheses. scientific theories. Popper later also postulates the possibility that metaphysical

ideas could participate in science through metaphysical research programs, acting as

guidelines for scientific research.

We then have the following question for our dissertation: metaphysics must be

disqualified as a cognitive project, due to the lack of empirical referents of its propositions,

the syntactic criticisms to which its constructions are subjected, as logical positivists claim, or

it may have its cognitive value. partially rescued by recognizing that his theses are usable and

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may contribute, as Popper suggests, to the formulation of new theories that can be confronted

with reality.

Keywords: Metaphysics, Demarcation Criterion, Popper, Logical Positivism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO 1 – VERIFICABILIDADE E A ELIMINAÇÃO DA METAFÍSICA 15 SEÇÃO 1.1 POSITIVISMO LÓGICO E SUA HERANÇA HISTÓRICA 15 SEÇÃO 1.2 O CRITÉRIO DA VERIFICABILIDADE 20 SEÇÃO 1.3 LINGUAGEM E METAFÍSICA 27 SEÇÃO 1.4 METAFÍSICA E SEU SENTIDO EMOTIVO 30 CAPÍTULO 2 – AS CRÍTICAS DE POPPER AO POSITIVISMO LÓGICO 32

SEÇÃO 2.1 METAFÍSICA E RACIONALISMO CRÍTICO 32

SEÇÃO 2.2 O PROBLEMA DA CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE CIÊNCIA EMPÍRICA

37

CAPÍTULO 3 – O FALSIFICACIONISMO E O APROVEITAMENTO DA METAFÍSICA

41

SEÇÃO 3.1 A PROPOSTA POPPERIANA: FALSIFICACIONISMO 41

SEÇÃO 3.2 METAFÍSICA E CIÊNCIA 47

CONCLUSÃO 53

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INTRODUÇÃO

Contra as duras críticas feitas à metafísica pelo movimento empirista lógico, este

trabalho visa a abordar a questão da possibilidade de ideias ou teses metafísicas serem

reprocessadas e servirem de inspiração para a formação de uma teoria científica. Com esse

objetivo, discutiremos o conflito entre as visões defendidas pelos positivistas lógicos e por

Karl Popper com relação ao tema, tendo em vista a relevância histórica e filosófica destas

duas posições para o debate.

No primeiro capítulo, abordaremos as teses antimetafísicas centrais do positivismo

lógico. Trataremos primeiramente de sua herança histórico-filosófica que receberam dos

empiristas britânicos modernos como, por exemplo, Bacon, Locke, Hume e Mill. O

empirismo clássico nutre desconfiança pelos usos retóricos vazios criados por muitas

filosofias que exploram a sintaxe frouxa das línguas naturais. A teoria filosófica que se torna

refém de ciladas linguísticas é incapaz de gerar qualquer tipo de conhecimento. Na parte

seguinte, discorreremos sobre o critério da verificabilidade e sobre a problemática da “sintaxe

lógica” contraposta à sintaxe gramatical. Isto porque a verificabilidade e as críticas sintáticas

dirigidas à metafísica foram cruciais para o propósito de desqualificar a filosofia como projeto

cognitivo.

No segundo capítulo, trataremos do conflito entre o verificacionismo dos positivistas

lógicos e o falsificacionismo de Popper. Levando principalmente em conta as observações

críticas de Popper à tradição empirista e aos rivais neopositivistas contemporâneos. Popper

fará suas críticas à indução, essencial ao empirismo inaugurado por Bacon, recorrendo à

argumentação de Hume. Em vez da indução sustentará que o que de fato opera em nossa

mente é um raciocínio que cria hipóteses de antemão e depois as critica com base no que a

realidade exibe.

No terceiro capítulo, discutiremos os traços distintivos do critério de demarcação

popperiano e os argumentos de Popper a favor da metafísica e contra os que defendem sua

eliminação por razões sintáticas ou por serem suas proposições insuscetíveis de verificação.

Os argumentos de Popper em prol da metafísica em um primeiro momento se limitavam a

tratar as ideias metafísicas como fonte de inspiração para ciência; posteriormente, Popper

passou a defender a ideia de que programas metafísicos de pesquisa podem se tornar diretrizes

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da investigação científica. Procuraremos avaliar se Popper é bem-sucedido em sua empreitada

de “salvar” a metafísica vinculando-a de um ou de outro modo à ciência

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1 VERIFICABILIDADE E A ELIMINAÇÃO DA METAFÍSICA

1.1 POSITIVISMO LÓGICO E SUA HERANÇA HISTÓRICA

O movimento positivista lógico tem desde sua origem forte relação com a ciência e

uma também igualmente forte preocupação com o status cognitivo da metafísica. Duas formas

de discurso que são, por justas razões, amplamente distintas e comumente tomadas como

opostas, inclusive pelo citado movimento filosófico. Carnap exemplifica esta posição quando

define metafísica como uma área da filosofia que busca o conhecimento da essência e de

coisas que transcendam a realidade empiricamente acessível (CARNAP, 1960, p. 80), citando

como exemplos os sistemas de Bergson, Heidegger e etc.

No que diz respeito à metafísica, o primeiro lado dessa oposição, sabemos que, num

primeiro momento, foi o nome dado a uma obra de Aristóteles que tratava de questões como a

do “ser enquanto ser”. O nome foi dado posteriormente para fazer alusão a outra obra de

Aristóteles – a Física – e indicar que este livro viria depois do primeiro (HAMLYN, 1989, p.

65). Ao que parece coincidentemente o nome funcionou também com um outro sentido: o de

que os assuntos tratados se situam para além da natureza ou do plano físico e sensível.

Todavia durante o século XX, alguns dos empreendimentos filosóficos podem ser

classificados pelo que na época se convencionou chamar de filosofia analítica e filosofia

continental. Dada esta, um tanto arbitrária, divisão, ergue-se mais de uma compreensão

possível para o termo “metafísica”. Se aceitarmos a divisão, nem sempre muito clara, que

separa o discurso filosófico contemporâneo em Analíticos e Continentais, teremos duas

formas mais ou menos distintas de trabalhar com os problemas metafísicos.

Temos por um lado os Analíticos, uma designação que significaria uma maneira

Britânica, e posteriormente Norte Americana de filosofar. Embora não devamos encarar essas

considerações geográficas de modo muito rígido. Todo o Círculo de Viena e Popper (que

trataremos mais a diante) são “continentais” com relação a sua origem geográfica, mas com

relação a natureza filosófica de suas discussões estão muito mais próximos dos analíticos.

Talvez esta seja uma maneira mais fiável de definir: a que leva em consideração a natureza

das discussões filosóficas. Os analíticos têm por natureza a ênfase na análise de conceitos,

com predileção pela lógica como instrumento do trabalho filosófico.

A filosofia Clássica (em três nomes: Descartes, Hume e Kant) situara a questão do conhecimento, ou seja, a relação entre pensamento e as coisas no centro de suas

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preocupações. Ao que parece, assistimos com Frege e Nietszche e também com o 1

filósofo americano C-S Pierce, fundador do pragmatismo, a uma reviravolta (falou-se de linguistic turn) que coloca o problema da linguagem, da significação e do sentido no lugar da questão tradicional do conhecimento. A questão da linguagem jamais se ausentou da filosofia, em particular entre os gregos, mas ela adquire uma importância muito particular na filosofia contemporânea. (LACOSTE, 1992, p. 18-19, grifo nosso)

Em oposição aos Analíticos, os Continentais representariam uma maneira de filosofar

voltada para o enfrentamento de problemas que não se resolvem apenas por meio de análise

conceitual. Considerando problemática a classificação com base no critério geográfico,

indicaríamos a França e a Alemanha como seu principal reduto, mas sem descurar que, na

verdade, estão presentes também em outras partes do continente europeu. É uma tradição que

se faz representar por nomes como Nietszche, Sartre, Heidegger, Derrida entre outros. Em

alguns casos recorrem à linguagem filosófica mais metafórica, algumas vezes à linguagem

mais poética, caso de Nietszche em Assim falava Zaratustra, ou simplesmente literária (como

Sartre em A Náusea), em contraposição ao rigor expositivo dos textos analíticos. No caso

específico do texto de Nietszche, Carnap chega a elogiar o autor por escolher uma linguagem

não teorética (e sim “poética”) para fazer metafísica (CARNAP, 1960, p. 80).

Feita essa primeira distinção entre estilos e escolas de filosofar que envolvem, ao

menos indiretamente, a “questão da metafísica”, voltemo-nos agora para a segunda parte da

problemática: a concernente à ciência. Em seu Manifesto, Wissenschaftliche Weltauffassung:

der Wiener Kreis, os positivistas lógicos já demonstravam seu interesse no diálogo com as

ciências naturais e formais (principalmente) devotando pouca atenção às humanas. O

programa que intitularam “Concepção Científica do Mundo” almejava alcançar a “Ciência

Unificada” a partir do recolhimento de resultados obtidos em diversos campos de forma a

integrá-los.

Ainda no Manifesto, também demonstravam sua confiança na capacidade da ciência

de dar conta de toda a realidade, incluindo alguns dos tradicionais problemas filosóficos. Esta

é um posicionamento certamente herdado de Wittgenstein (1968, p. 76-77) que, fazendo um

duro balanço crítico da história da filosofia, defendia que “a filosofia não resulta em

1 De certo que não consideraríamos Nietszche um analítico. A intenção de Lacoste neste trecho é salientar o conflito entre as duas correntes e apontar a partir daí o que chamou de lingustic turn que colocou as questões da linguagem no cerne das discussões filosóficas. No entanto, a parte grifada fala muito mais sobre a corrente da filosofia analítica.

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‘proposições filosóficas’ mas em tornar claras as proposições. A filosofia deve tomar os

pensamentos que, por assim dizer, são vagos e obscuros e torná-los claros e bem delimitados”.

Para a concepção científica do mundo não há nenhum enigma insolúvel. O esclarecimento dos problemas tradicionais da filosofia nos levam em parte a desmascará-los como pseudo-problemas e em parte a transformá-los em problemas empíricos e, assim, sujeitá-los ao julgamento da ciência experimental. A tarefa do trabalho filosófico reside neste esclarecimento de problemas e afirmações, não na apresentação de pronunciamentos “filosóficos” especiais.

(CARNAP, HANS, NEURATH, 1973, p. 306)

Essa preocupação remonta aos empiristas modernos com destaque para Bacon, Locke,

Hume e, derivadamente, J. S. Mill, que em suas obras mostravam especial preocupação com a

questão do quanto o bom uso das palavras é importante na busca por conhecimento. A

linguagem mal utilizada cria empecilhos para o entendimento. Muito do trabalho conceitual

do positivismo lógico se inspirou nas filosofias do empirismo britânico .Empiristas, como os 2

três citados, já desenvolviam suas teorias e críticas acerca do uso equívoco e nebuloso da

linguagem que fomenta a formação de confusões linguístico-conceituais. Essa questão depois

se tornou um dos temas principais do positivismo lógico: a frouxidão sintática e os problemas

de semântica que podem causar problemas na busca por conhecimento.

Francis Bacon, por exemplo, em seus Ídolos do Foro trata dos problemas causados

pelos usos confusos da linguagem comum. Bacon argumenta que apesar das palavras

receberem seu significado a partir do uso comum, as palavras também podem causar muitas

vezes desentendimentos, seja porque “são nomes de coisas que não existem” ou porque “são

nomes de coisas que existem, mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas, de

forma temerária e inadequada” (BACON, 1973, p. 35). Nota-se nessas definições uma

antecipação do trabalho posteriormente empreendido pelo positivismo lógico, pela

preocupação com a semântica e indiretamente com a sintática. Novamente observamos

antecipações semelhantes no trecho citado abaixo, quando Bacon chega a sugerir

implicitamente o emprego de um método de “terapia linguística”, para minorar os problemas

2 Quando consideramos, também, que Hobbes e Bentham estavam principalmente ocupados em dar definições, e que a melhor parte do trabalho de John Stuart Mill consiste em um desenvolvimento das análises realizadas por Hume, podemos afirmar que, ao sustentar que a atividade de filosofar é essencialmente analítica, estamos adotando um ponto de vista que sempre esteve implícito no empirismo inglês. Não que a prática da análise filosófica esteja confinada aos membros desta escola. Mas é com eles que temos a maior afinidade histórica. (AYER, 1990, p. 42)

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do uso desatento da linguagem. Este será um traço marcante do trabalho do positivismo

lógico.

As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes inculca o vulgo seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com frequência, acabem em controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria (conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem, começando pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das noções e dos axiomas. (BACON, 1973, p. 35)

Em Hume (2003, p. 20) notamos também essa preocupação na introdução do Tratado

da Natureza Humana quando o filósofo protesta contra o sucesso que fazem certas teses

metafísicas obscuras: “Em meio a todo esse alvoroço, não é a razão que conquista os louros,

mas a eloquência; e ninguém precisa ter receio de não encontrar seguidores para suas

hipóteses, por mais extravagantes que elas sejam, se for hábil o bastante para pintá-las em

cores atraentes”. Porém um momento ainda mais interessante de se notar é aquele em que

Hume diz:

Portanto, sempre que alimentarmos alguma suspeita de que um termo filosófico esteja sendo empregado sem nenhum significado ou ideia associada (como frequentemente ocorre), precisaremos apenas indagar: de que impressão deriva esta ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão, isso servirá para confirmar nossa suspeita.

(HUME, 2003, p. 39)

O que Hume propõe aqui é uma aplicação do princípio do empirismo para o qual todo

o conhecimento provêm da experiência. A própria aquisição da linguagem parte de definições

ostensivas. Em complemento há a ideia de tábula rasa derivada de Locke (SCIACCA, 1968,

p. 97). Hume estabelece que no caso de suspeitarmos da inexatidão de algum termo filosófico

devemos investigar qual a impressão sensível tal termo foi derivado por maior que seja a

sequência que nos leva ao ponto de partida. Não sendo possível, é um sinal de que de fato o

termo carece de contraparte real, de enraizamento nas coisas. Este é um procedimento muito

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similar, guardadas as devidas proporções, ao que o positivismo lógico adotará no século XX

para determinar se uma sentença veicula ou não significado cognitivo.

No século XIX, a preocupação com o problema do significado das palavras se faz

presente com destaque na obra de outro empirista. Mill (1989, p. 89), como se pode notar no

primeiro capítulo de A System of Logic, se empenha em mostrar a importância de estudar a

linguagem quando se trabalha com lógica, pois “sem isso, não poderão conhecer o valor das

proposições”.

a linguagem é, evidentemente, e pelo consenso de todos os filósofos, um dos principais instrumentos ou auxiliares do pensamento; e qualquer imperfeição no instrumento ou modo de empregá-lo está, evidentemente, sujeita, mais ainda do que em qualquer outra arte, a confundir e entravar a operação e destruir qualquer confiança em seus resultados.

(MILL, 1989, p. 89)

Apesar das convergências, há uma diferença entre os empiristas lógicos e os 3

empiristas modernos, indicada exatamente pela introdução do termo “lógico”. Os empiristas

lógicos, ao contrário de seus antecessores modernos, deram muito mais atenção à lógica em

seus empreendimentos aliando-a à busca do conhecimento empírico com o objetivo

justamente de escapar das ciladas que podem ser criadas pelo mal uso da linguagem apontado

pela tradição empirista moderna.

Em Bacon, por exemplo, todo conhecimento têm origem na experiência e a única

demarcação a ser feita é entre as Interpretações e Antecipações da Natureza. Entende BACON

(1973, p. 24) por Antecipações da Natureza “a forma ordinária da razão humana voltar-se

para o estudo da natureza (…) sendo coligidas a partir de poucas instâncias”, e as

Interpretações da Natureza, “à que procede da forma devida, a partir dos fatos (…) sendo

coligidas a partir de múltiplos fatos, dispersos e distanciados.

Apesar de considerar as verdades lógicas e matemáticas como Relações entre Ideias

(Relations of Ideias), Hume, dedicou a maior parte de seu trabalho ao que chamou de

Questões de Fato (Matters of Fact) e, principalmente, à discussão da relação de causa e efeito.

Segundo Hume (2003, p. 54), é o que fundamenta todos os raciocínios que se referem aos

3 Via de regra, há uma diferença histórica entre “empirismo lógico” e “positivismo lógico”: O termo “positivismo” é mais utilizado pelo Círculo de Viena, enquanto o termo “empirismo lógico” é a nomenclatura adotada pela Sociedade de Berlim pela Filosofia Científica. Mas no que se refere às doutrinas defendidas pouco ou nada se diferem os dois grupos. Portanto, aqui neste trabalho os considerei sinônimos.

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fatos. Todavia é importante dizer que a noção de causa é por muitos hoje considerada obsoleta

para a ciência. Monteiro (2009, p. 73) advoga que “em vez de utilizar termos como ‘causa’ e

‘efeito’, as ciências limitam-se a descobrir leis que exprimem apenas relações funcionais entre

eventos”. Podemos creditar a Hume o mérito de ter problematizado a ideia de nexo causal,

evitando uma visão ingênua que tendem a confundir conjunção constante com conexão

necessária.

Já Mill tem uma visão bastante peculiar no que diz respeito, por exemplo, à natureza

da matemática. Sua teoria matemática aparentemente mais próxima de princípios

fundamentais do empirismo é bastante controversa. MILL (1882, p. 189) sustenta que a

matemática tem fundamentação empírica porque “todos os números têm de ser números de

alguma coisa: não existe algo como números em abstrato.”; e também porque a indução,

segundo Mill, está de alguma maneira na base do cálculo aritmético. Normalmente entende-se

os raciocínios matemáticos como dedutivos, mas o que Mill parece sugerir é que na verdade

chegamos às verdades matemáticas por meio da indução. Como se fosse um processo

resultante de termos diversas vezes “observado” que dois dados objetos unidos a dois outros

objetos formam quatro objetos tivéssemos a partir daí alcançado uma lei geral de que “dois

mais dois é igual a quatro”.

Por fim, os empiristas lógicos, sem abandonar a necessidade de se referir a realidade

para fundamentar o conhecimento, também se utilizam da lógica para buscar superar ciladas

geradas pelo uso sintaticamente descuidado das línguas naturais. Inspirando-se mais uma vez

em Wittgenstein (1968, p. 72) quando proclama que “compreender uma proposição é saber o

que ocorre, caso ela for verdadeira.” Esta pode ser vista como a versão seminal do que os

empiristas lógicos iniciais viriam a propor como o cerne de sua filosofia: o critério da

verificabilidade.

1.2 O CRITÉRIO DA VERIFICABILIDADE

A verificabilidade é o critério formulado pelos positivistas para distinguir enunciados

que podem fazer parte do discurso científico de outros tipos de enunciado, mais adequados a

outros tipos de discurso, de natureza especulativa (como a metafísica). Há algumas diferentes

formulações para o mesmo critério. Trataremos aqui, nesta seção, de forma sucinta das

principais versões que o critério assumiu em Schlick, Carnap e Ayer, analisando os possíveis

impactos que, ao fim, seriam causados tanto à metafísica quanto à ciência.

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Em sua primeira formulação o critério da verificabilidade nos é apresentado por

Schlick, (membro fundador e líder do Círculo de Viena), de forma muito próxima ao que

Wittgenstein sugeriu no Tractatus. decreta-se que uma sentença só tem significado se houver

um meio de aferir sua verdade ou falsidade, ou ainda, “uma descrição das condições em que a

sentença formará uma proposição verdadeira, e daquelas em que formará uma falsa”

(SCHLICK, 1936, p. 341, tradução nossa).

Schlick (1936, p. 344-345) destaca a ideia de verificabilidade em princípio. Nesse

caso, equivale à possibilidade de verificação. Se houver algum meio possível (ainda que não o

seja realizável no momento, que ao menos seja concebível) de verificar a verdade ou falsidade

da sentença, então ela é verificável. Tomemos a sentença: “Há em Plutão organismos vivos

semelhantes aos que existem aqui na Terra.” Embora não tenhamos como verificá-la agora,

pois não temos ainda nenhuma sonda ou satélite em Plutão, sabemos o que devemos fazer 4

para verificar se esta sentença é verdadeira ou falsa.

Não só nesta, mas em todas as suas versões, a verificabilidade é um critério abrangente

na medida em que ambiciona ser ao mesmo tempo um critério de significatividade e de

cientificidade. Mesmo porque uma sentença inverificável é tanto vazia de significado como

também incapaz de ser científica ou até mesmo de ser alguma forma de conhecimento. Se

insuscetível de verificação equivaler a nada poder ser informado, então o critério se transmuta

também em critério de comunicabilidade. Uma sentença nada comunica se é desprovida de

conteúdo, se deixa de indicar o que poderia torná-la verdadeira ou falsa. Carnap explica o

funcionamento do critério da verificabilidade (de maneira similar a Schlick) nos dois âmbitos:

linguístico e epistêmico.

Se soubermos o que deve haver para uma determinada sentença ser verdadeira, então saberemos qual é o seu significado. E se, para duas sentenças, as condições em que se dão como verdadeiras são as mesmas, então elas têm o mesmo significado. Assim, o significado de uma sentença é, em certo sentido, idêntico ao modo como determinamos sua verdade ou falsidade; e uma sentença tem significado somente se tal determinação for possível. (CARNAP, 1936, p. 420)

4 A New Horizon da NASA se aproximou de Plutão e enviou algumas imagens em 2015. Mas não é o suficiente para verificar se há organismos vivos. Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/02/150205_nasa_fotos_plutao_rm

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Um exemplo de como pretende operar a verificabilidade pode ser dado por meio da

sentença “A água entra em ebulição a 100°C”. Trata-se de uma sentença, em princípio,

verificável, pois sabemos o que precisamos fazer para aferir se esta sentença é verdadeira ou

falsa: aquecer a água até esta temperatura e observar se ela entra em ebulição. Se há então um

meio de verificar o valor de verdade de tal sentença, ela tem um significado e foi por nós

compreendido. Estando de acordo com o critério positivista lógico de significatividade e

cientificidade, sendo uma sentença passível de ser compreendida e de gerar conhecimento. A

sentença “A água ferve a 100°C”, tem as mesmas condições de verdade que a sentença

anterior, isto é, devemos verificá-la utilizando exatamente o mesmo método. Disso se conclui

que ambas as sentenças têm o mesmo significado. Nas palavras de Carnap (1936, p. 420): “o

significado de uma sentença é em certo sentido igual ao modo como verificamos sua verdade

ou falsidade”.

Ayer (1990, p. 18) parte de princípios fundamentais formulados pelo Círculo de Viena

para explanar que uma sentença pode ser verificável em dois sentidos distintos: um sentido

forte, com base no qual se busca a verificação conclusiva, e um fraco, por meio do qual se

busca estabelecer probabilidades. No sentido forte, ser verificável é ser conclusivamente

verificável. Este é um aspecto de crucial importância para a formulação de enunciados

relevantes para o discurso científico. É importante determinar se os universais categóricos são

passíveis de verificação cabal ou se a eles se aplica a noção fraca de Ayer, caso em que se

lograria estabelecer apenas probabilidades. Nada taxativo poderia ser definido pela falta de

observações suficientes para determinar a verdade ou falsidade de sentenças do tipo acima

apontado.

Além disso, temos também que considerar a aplicação da verificabilidade às teses da

metafísica. A verificabilidade é invocada contra a metafísica na medida em que as

proposições desta são desqualificadas como incapazes de se submeter a qualquer tipo de crivo

empírico. Com o objetivo de eliminar a metafísica, de atribuir ao discurso científico a

exclusividade da cognitividade; os positivistas lógicos erigem a verificabilidade como arma

epistemológica e linguística. O problema é que esse critério na versão forte tem poder para

“banir” a metafísica, mas não para evitar que a própria ciência tenha dificuldade para se

submeter a ele. O valor cognitivo dos universais categóricos presentes muitas teorias

científicas se revelam insuscetíveis de verificação cabal. E a versão fraca da verificabilidade é

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tão frouxa que deixa de poder barrar os enunciados universais categóricos da teses

metafísicas para salvaguardar os que se fazem presentes na ciência ..

A vingar a versão forte, as teses da metafísica são rejeitadas, pois não podem ser

conclusivamente estabelecidas como verdadeiras devido à impossibilidade de se verificar o

enunciado por completo, em todas as suas possíveis instâncias. Tomemos como exemplo a

famosa tese de Tales “A água é o princípio” (SIMPLÍCIO, 1996, p. 41). Deixemos de lado o

problema do significado da palavra “princípio” , que seria outro ponto a suscitar controvérsia.

Entendamos de modo amplo e generoso como aquilo que origina todas as coisas. Mesmo

assim, a tese de Tales não é verificável porque seria necessário observar a constituição de

absolutamente todas as coisas, que existem, que já existiram e que ainda virão a existir. O que

evidentemente não é possível.

O sentido forte da verificabilidade, quando se comprova cabalmente a verdade do

enunciado, só é possível em casos que consistam de objetos que façam parte de conjuntos

finitos. Como no caso de um clube que pretende verificar se é verdade que “A maior parte de

seus associados é do sexo masculino”. Neste exemplo, há um número finito de associados na

instituição a considerar, e verificar a verdade ou falsidade desta sentença é apenas uma

questão de ter devidamente acesso aos dados dos membros associados.

O problema é que esse tipo de enunciado, proposições sobre membros de conjuntos

finitos, não é interessante para o discurso científico. Repetindo Platão e Aristóteles, os que

falam em nome da ciência moderna, como Francis Bacon, defendem que só há conhecimento

do universal. Além disso, a ciência também tem por objetivo deter a capacidade de fazer

predições que ensejem controlar os modos de manifestação de alguns tipos de fenômeno .

Como bem destaca Nagel (1979, p.13-14), “talvez o traço mais saliente da Ciência – e, por

certo, o que mais comumente se realça – seja o de que permite controle prático da Natureza.”

Sendo assim, se levarmos em conta enunciados de generalização restrita como os do exemplo

acima, nada de relevante nos será revelado acerca da realidade.

Entretanto, a versão forte também não dá conta de avaliar as hipóteses científicas

enunciadas sob a forma de universais irrestritos. Vejamos a Primeira Lei de Newton,

conhecida também como Lei da Inércia: “Todo corpo continua em seu estado de repouso, ou

de movimento retilíneo uniforme, a menos que seja compelido a mudar de estado por forças

nele impressas” (NEWTON, 1846, p. 89,). Aqui se nota a forma universal indicada pela

palavra “Todo” que inicia a sentença. A verificação cabal desta sentença, da forma como o

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exige a verificação forte, só seria possível se pudéssemos verificar a ação da inércia em cada

corpo. O que é, de fato, impossível.

As sentenças verificáveis no sentido fraco acabam por ensejar apenas o

estabelecimento de probabilidades. Sendo a conclusiva verificação inatingível na própria

ciência, fica problematizado invocá-la para definir o que pode ter valor cognitivo. Vejamos

outra sentença como “Fumantes têm 20 vezes mais chance de desenvolver câncer de pulmão 5

.” Esta é uma sentença verificável no sentido fraco porque sabemos o que devemos observar

para saber se de fato fumar causa, nessa proporção, câncer de pulmão. O desafio consiste em

determinar os tipos de vínculo entre os hábitos de fumo e os casos de câncer de pulmão

partindo de uma determinada amostra de pessoas. E chegaremos a estatísticas e

probabilidades porque nunca conseguiremos observar todos os casos. Sempre poderemos

encontrar um contraexemplo (neste caso, bastaria uma nova pesquisa concluir que na verdade

o fumo aumenta em 30 vezes a chance de se ter câncer de pulmão, por exemplo.). Por isso

sempre nos expressaremos de forma probabilística, como em “Fumar aumenta as chances

de… em x vezes” ou em “Quem fuma tem x% mais chances de…”.

Os universais categóricos são os que mais suscitam o interesse da Ciência, uma vez

que tratam de objetos que fazem parte de conjuntos potencialmente infinitos, no nosso

exemplo “fumantes”. Desta forma, seremos pouco capazes de fazer predições confiáveis com

base no tratamento estatístico das informações. Esse tipo de dificuldade é principalmente

encontrado na atividade de pesquisa de ciências como a medicina e a meteorologia, mas

também em outros domínios.

A versão fraca da verificabilidade consegue eliminar apenas algumas teses metafísicas.

Não seria por exemplo, o caso de teses epistemológicas como a de que “os sentidos

eventualmente nos enganam” tal qual afirmada por Descartes nas Meditações. Teses

epistemológicas podem não ser metafísicas, mas possuem um substrato especulativo mesmo

quando se limitam a afirmar, como faz DESCARTES (1973, p. 94), que os sentidos nos

enganam e que por isso não devemos depositar confiança em nossas sensações e experiências

para gerar conhecimento. Neste caso nenhuma observação seria relevante para estabelecer a

verificação porque se poderia alegar que precisamos dos sentidos para constatatar que

eventualmente enganam.

5 Fonte: http://emais.estadao.com.br/noticias/bem-estar,fumantes-tem-20-vezes-mais-chances-de-desenvolver-cancer-de-pulmao,10000054252

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Por outro lado, há outras teses metafísicas que podem ser rejeitadas até pelo critério

em sua versão fraca. Por exemplo: “O não e o nada coincidem”. Trata-se de uma sentença de

pura metafísica, do tipo mais exemplificado pelos positivistas lógicos para desqualificar a

metafisica como pseudo-conhecimento, que se pretende com acesso a uma realidade

transcendente à empírica (CARNAP, 1960, p. 80) . A insuscetibilidade de verificação

decorreria em boa parte de as línguas naturais proporcionarem “jogos linguísticos” baseados

na livre associação de palavras.

Em certo sentido, é possível dizer que o que Ayer chamou de “verificabilidade no

sentido fraco” é similar ao que Carnap, em Testability and Meaning, chamou de

confirmabilidade. A confirmabilidade é uma tentativa de liberalizar o critério da

verificabilidade, uma reformulação, mas não uma rejeição completa (CARNAP, 1936, p.

421-422), que pode ser melhor definida em poucas palavras da seguinte maneira:

Se numa série contínua de tais experimentos teste nenhum caso negativo for encontrado e o número de casos positivos aumentar, então nossa confiança na lei crescerá pouco a pouco. Assim, em vez de verificação, nós podemos falar aqui de um gradual crescimento da confirmação da lei. (CARNAP, 1936, p. 425).

Quanto às teorias científicas, estas se encaixam perfeitamente na versão fraca da

verificabilidade, uma vez que as teorias científicas precisam lidar com conhecimento do

universal, porém (e por isso) nunca poderíamos ter certeza da verificação cabal restando

apenas como alternativa o uso das probabilidades. O problema que se dá é encarar o dilema:

adotar um critério fraco que fundamenta a ciência ao preço de fazê-la coexistir com parte da

metafísica, ou adotar um critério forte que rejeita toda a metafísica, mas também toda a

ciência da forma que conhecemos?

Os metafísicos não podem evitar de tornar suas sentenças não verificáveis, porque, se as tornassem verificáveis, a decisão sobre a verdade ou falsidade de suas doutrinas dependeria da experiência e, portanto, pertenceria à região da ciência empírica. Eles desejam evitar essa consequência, porque pretendem ensinar conhecimentos de nível superior ao da ciência empírica. (CARNAP, 1935, p. 17)

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Assumida a verificabilidade como critério de cientificidade, realça-se o fato de a

filosofia especulativa não passar por seu crivo porque a maioria de suas proposições não tem

como ser empiricamente controlável. As diferentes modalidades de metafísica seriam

impermeáveis à evidência empírica disponível e a virtual. Já que os enunciados metafísicos

muitas vezes utilizam termos sem referentes – como absoluto, não-ser, ser, substância, todo

etc. – acabam desqualificados como carentes de significatividade.

Cometemos o erro de pensar que sabemos o significado de uma sentença (ou seja, entendemos como uma proposição) se estivermos familiarizados com todas as palavras que nela ocorrem. Mas isso não é suficiente. (…) Pois cada palavra tem um significado definido apenas dentro do contexto definido em que foi ajustada; em qualquer outro contexto, não terá significado, a menos que forneçamos novas regras para o uso da palavra no novo caso, e isso pode ser feito, pelo menos em princípio, de maneira um tanto arbitrária.

(SCHLICK, 1936, p. 340)

Notamos então que a questão da significatividade é a mais importante para nosso

estudo porque a possibilidade dos enunciados metafísicos veicularem significado é o

aspecto-chave para decidir se eles podem ou não veicular algum tipo de informação sobre a

realidade e se podem interagir com a ciência. Se teses da metafísica não veicularem

significado do tipo cognitivo não terão como contribuir para a construção do discurso

científico mesmo que, sob a forma de pressupostos, se façam presentes na pesquisa

qualificada de científica. Incapazes de informa e de conhecer a realidade, as metafísicas

devem identificadas e eliminadas da ciência na opinião dos positivistas lógicos.

É fácil perceber que tais sentenças [as da metafísica] não são verificáveis. A partir da proposição: “O princípio do mundo é a água”, não somos capazes de deduzir nenhuma sentença que afirme quaisquer percepções, sentimentos ou experiências, seja o que for que seja esperado para o futuro. Portanto, a sentença “O princípio do mundo é a água”, não afirma nada.

(CARNAP, 1935, p. 17)

Alguns desses problemas de significatividade são devidos à relação dos enunciados

com a realidade. Esses são os chamados problemas de semântica, que são casos a serem

resolvidos por meio do critério da verificabilidade. Entretanto, há outros casos de enunciados

que não expressam conteúdo cognitivo em razão de disfunções sintáticas. Estes são casos

muito frequentes também em enunciados metafísicos.

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1.3 LINGUAGEM E METAFÍSICA

Quando pretendemos distinguir ciência de metafísica, a língua natural também pode

causar problemas devido a como permite que as palavras sejam combinadas em termos

sintáticos. O mal uso da língua natural, facilitado por sua frouxidão sintática e sua opacidade

semântica causa confusões expressivas que afetam os sentidos das palavras empregadas não

só pelo senso comum, como também pelos filósofos. A sintaxe, como entendida pela

gramática, lida com a organização das palavras numa frase de modo a fazer sentido. Por

exemplo, numa frase como: “Em eu casa porta minha cheguei quase” nota-se um desarranjo

sintático, a combinação das palavras, compromete a compreensão da frase e o que possa

pretender informar.

Schlick também detalha seu entendimento do que seria compreender o significado de

uma sentença. Para Schlick o “entendimento lógico e verbal” de uma sentença reside em saber

se esta sentença é verificável. Compreender o conceito de “entendimento verbal” à maneira

do senso comum, como simplesmente saber como as palavras são usadas corriqueiramente

não resolve o problema do significado para fins filosóficos. Ainda que confira certo vago

sentimento de compreensão, este vago sentimento não é suficiente (SCHLICK, 1936, p. 344).

Da mesma forma, não devo aconselhar que falemos de uma frase como ‘logicamente inteligível’ quando nos sentimos convencidos de que sua forma exterior é a de uma proposição adequada (se, por exemplo, tem a forma, substantivo – cópula – adjetivo e, portanto, parece predicar uma propriedade de uma coisa). Pois me parece que, com essa frase, queremos dizer muito mais, ou seja, que estamos completamente conscientes de toda a gramática da sentença, isto é, que sabemos exatamente as circunstâncias nas quais ela se encaixa. Assim, o conhecimento de como uma proposição é verificada não é nada além do seu entendimento verbal e lógico, mas é idêntico a ela. Parece-me, portanto, que quando exigimos que uma proposição seja verificável, não adicionamos um novo requisito, mas estamos simplesmente formulando as condições que, na verdade, sempre foram reconhecidas como necessárias para o significado e a inteligibilidade. (SCHLICK, 1936, p. 344)

No exemplo do próprio autor, se alguém pedisse: “Leve-me a um país onde o céu é

três vezes mais azul que o da Inglaterra” (SCHLICK, 1936, p. 340). Este seria um pedido que

não saberíamos como satisfazer, por que a própria sentença não expressa nenhum significado.

Isto porque a palavra “azul” é usada de uma maneira que não permite definir de forma clara e

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inequívoca quando se chegou ao lugar desejado. Não é comum associar cores a números desta

forma tendo como referente um objeto como o céu. Portanto, não saberíamos identificar que

céu é “três vezes mais azul” que o da Inglaterra, tampouco conseguiríamos compreender o

que isso deveria significar.

Por isso, as regras gramaticais das línguas naturais não são suficientes para determinar

se uma sentença tem sentido ou não em todos os casos. Para resolver este problema, Carnap

se dedica à discussão do conceito de sintaxe lógica. A sintaxe lógica de Carnap é definida

como a teoria formal de uma linguagem. E “Chamamos de ‘formais’ considerações ou

afirmações relativas a uma expressão linguística que sejam sem qualquer referência ao sentido

ou significado” (CARNAP, 1935, p. 39). Como toda teoria formal, a sintaxe lógica não

trabalha com questões de cunho empírico, isto é, não faz nenhuma referência à realidade

sensível, apenas às construções abstratas que fazemos a seu respeito.

No exemplo de Carnap (1960, p. 68), a frase “César é um número primo” está

sintaticamente bem estruturada na língua portuguesa. Em termos de sintaxe lógica, o sujeito e

predicado – “César” e “número primo” – não deveriam ser logicamente associados caso

prevalecesse o imperativo de combinar adequadamente um tipo de predicado com um tipo de

sujeito. Sem respeito a uma sintaxe logicamente adequada, ficam franqueadas as construções

mais exóticas permitidas pelas línguas naturais. Já que o conceito de número primo só pode

ser atribuído a números e nunca a algo como imperadores romanos, pois fere os princípios da

sintaxe lógica atribuir um predicado “ser número” a “pessoas”. Trata-se então de

pseudossentenças. No exemplo citado, não há preocupação, por exemplo, com a existência de

“César” na realidade sensível ou o que a palavra César está significando, mas sim que “César”

faz parte de uma classe de palavras a qual não é adequado associar a palavras como “número

primo”.

Faz parte do trabalho da análise lógico-sintática em CARNAP (1960, p.62) o conceito

de “sentença elementar” para fixar o significado das palavras. Uma sentença elementar é a

forma mais simples em que uma palavra pode ocorrer em uma língua. A palavra “pedra”, que

é o exemplo do próprio autor, pode ser reduzida à sentença elementar “x é uma pedra”,

substituindo o x por outra palavra (isto, aquilo, este cristal…).

Por exemplo. "Artrópodes" são animais com corpos segmentados e pernas articuladas". Assim, a questão acima mencionada para a forma da sentença elementar da palavra "artrópode", isto é, para a sentença de forma "a coisa x

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é um artrópode", é respondida: foi estipulado que uma sentença desta forma é dedutível de premissas da forma "X é um animal", "x tem um corpo segmentado", "x tem pernas articuladas" e que, inversamente, cada uma dessas sentenças é dedutível da sentença anterior. Por meio destas estipulações sobre a dedutibilidade (em outras palavras: sobre condições de verdade, sobre o método de verificação, sobre o significado) da sentença elementar sobre "artrópode" o significado da palavra "artrópode" é fixado.

(CARNAP, 1960, p. 63)

A passagem citada acima nos mostra um exemplo de como funcionam as sentenças

elementares em enunciados do discurso científico, mais especificamente da biologia. Aqui

vemos um exemplo de como se determina o significado da palavra “artrópode”. Um x é

artrópode se “x é um animal”, e “x tem corpo segmentado”, e “x tem pernas articuladas”. Esta

é apenas uma forma logicizada de dizer o que em linguagem corrente seria: Artrópodes são

animais de corpo segmentado e pernas articuladas . Assim, todas as vezes que nos referirmos 6

a algo que detenha essas características sabemos que estamos falando de artrópodes.

Na seção anterior deixamos em aberto a questão da falta de significado unívoco de

termos metafísicos, como ‘princípio’ tal usado pelos pré-socráticos, porque estávamos

envolvidos em entender o que pretende a verificabilidade como criteério de significatividade e

cientificidade. Mas voltemos agora a esta questão: como definir o que é um princípio, no

sentido empregado pelos gregos quando dizem ἀρχή? Poderíamos entender algo como “x é

um princípio de y se y surge de x” ou “se o ser de y está em x” ou ainda “se y existe em

virtude de x”, mas teremos que concordar com CARNAP (1960, p. 65) quando diz que todos

esses exemplos são vagos e não nos fazem entender o significado das palavras às quais se

referem.. Assim se dá também com diversas outras palavras utilizadas pela metafísica.

No caso das sentenças próprias do discurso metafísico, é comum que elas utilizem

palavras que nós conhecemos o significado, mas atribuindo-lhes um novo uso. Como, por

exemplo, a tese heideggereana “O Nada nadifica”. Além de a palavra “Nada” não ter nenhum

referente extralinguístico (um problema semântico), ela também é usada em um contexto

sintaticamente frouxo para gerar riqueza sugestiva e nenhuma informação objetiva sobre o

que quer que seja. O próprio emprego do neologismo “nadificar” indica a possibilidade de se

combinar quase que indefinidamente um série de palavras livremente geram do um problema

de sintaxe lógica. Por que não o deserto desertifica? O mar mareja e assim por diante.

6 Certamente a biologia deve ter uma definição mais elaborada de “artrópode”, mas esta é a definição estipulada no exemplo de Carnap, então optei por utilizá-la por fins de praticidade.

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1.4 METAFÍSICA E SEU SENTIDO EMOTIVO

Há apenas um sentido em que o verificacionismo atribui uma função à metafísica, mas

não cognitiva: expressão de emoções e sentimentos. Carnap (1960, p. 80) afirma que os

metafísicos são músicos sem habilidade musical que por falta de domínio técnico dos meios

corretos de expressão (no caso o dom artístico), preferem utilizar as habilidades teoréticas

para trabalhar com conceitos e pensamentos e no fim acabam não produzindo nada de útil

nem para a ciência nem para a arte.

O metafísico acredita que ele viaja num território em que a verdade e a falsidade estão em jogo. Na verdade, contudo, ele não afirmou nada, mas apenas expressou algo, como um artista. Não podemos inferir a partir do fato que ele seleciona a linguagem como meio de expressão e sentenças declarativas como o meio de expressão, que ele está iludindo-se; poetas líricos fazem o mesmo sem se iludir (CARNAP, 1960, p. 79).

Um empirista lógico que também se devotou a esta questão foi Ayer, o qual

desenvolveu a teoria posteriormente conhecida como a teoria do boo-horray (HANFLING,

1999, p. 51), trata-se da afirmação de que todas as sentenças de valor são meramente

expressões de sentimento, uma vez que não podem ser verdadeiras nem falsas. O nome da

teoria vem das interjeições inglesas “boo!” para espanto e desaprovação e “horray!” que

funcionaria como a nossa interjeição “Viva!”. Ayer aponta consequências para as áreas da

Ética e para a Estética.

No caso da Estética, enunciados como “O pôr do Sol é belo”, “A lua é linda”, “Esta

música é horrível”, etc. São inverificáveis como os enunciados metafísicos. Entretanto, duas

pessoas podem discordar de uma dessas afirmações. Alguém pode não achar o pôr do Sol

belo, por exemplo. É estranho que uma proposição sem valor de verdade possa gerar

discordâncias. Então, a teoria do boo-horray explica que ambos estão apenas a expressar seus

sentimentos sobre o pôr do Sol. Funciona como se um dissesse “Boo pôr do Sol!”, enquanto

outro diz “Horray pôr do Sol!”. No caso da Ética, enunciados como “Roubar é errado”,

“Mentir é feio”, “Não matarás”, “Caridade é bom”, “Igualdade é justa”, etc. São também

inverificáveis. E aqui também se aplica a teoria do boo-horray, no enunciado “Roubar é

errado” um caso de “Boo roubar!” e no enunciado “Igualdade é justa” um caso de “Horray

igualdade!”.

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Os trabalhos filosóficos em Ética costumam envolver questões ontológicas e

metafísicas e de análise de conceitos, muitos deles formulados em outros domínios. Podemos

dividir, com Ayer (1990, p. 105), em quatro tipos os empreendimentos dos filósofos da Ética

em suas obras. São eles: as proposições que expressam definições de termos éticos ou

reflexões acerca da legitimidade e possibilidade destas definições, proposições que descrevem

os fenômenos da experiência moral e suas causas, exortações de virtudes morais e

julgamentos morais.

Desses quatro tipos de empreendimento só o primeiro mencionado é legítimo aos

olhos do positivismo lógico. Este ficaria a cargo da Psicologia ou da Sociologia. Os outros

três são mera expressão de sentimentos. O mesmo também se aplica às questões da Estética,

uma vez que um estudo psicológico ou sociológico poderia tentar elucidar o porquê de em

diversas e distintas sociedades o gosto e os padrões estéticos serem como se apresentam

(AYER, 1990, p. 118). Assim como se poderia lidar com os padrões de moralidade das

diversas sociedades.

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2 AS CRÍTICAS DE POPPER AO POSITIVISMO LÓGICO

Popper criticará as bases do positivismo lógico em duas frentes. Primeiramente,

divergirá do indutivismo e adotará o método hipotético-dedutivo; priorizará a identificação de

contraexemplos com o objetivo de submeter as hipóteses a um tipo de avaliação metodológica

que pode decretar a refutação. Em vez de se dedicar a encontrar evidências positivas para

acumulá-las e apresentá-las como verificadas ou confirmadas em algum grau. As velhas leis

gerais passam a ser vistas como hipóteses universais suscetíveis de entrar em conflito com a

experiência e ser falsificadas. Propondo um critério de demarcação, e não mais de

cientificidade ou de significatividade, Popper rejeitará a pretensão de invocar a confiabilidade

do conhecimento científico para propor o banimento da metafísica por razões sintáticas e

semânticas. A metafísica passa a ser vista como capaz de produzir discursos com sentido por

mais que seus conteúdos careçam de significado cognitivo. Ademais, a metafísica pode se

revelar útil à construção de teorias científicas na medida em que pode ser fonte de inspiração.

Sendo assim, o abismo criado pelos positivistas lógicos entre metafísica e ciência se torna

apenas uma separação de territórios. Os positivistas lógicos sustentavam a falta de significado

cognitivo nos enunciados da metafísica e a capacidade de veicular apenas significados

emotivos. O critério de demarcação deixa simplesmente de lado a problemática da

significatividade. O método crítico, vinculado ao critério da falsificabilidade, é um

procedimento de avaliação de teorias e hipóteses para o qual a questão do significado é

irrelevante. Por isso a metafísica constroem teorias que produzem sentido e que podem, em

casos específicos, participar do processo de produção de teorias científicas.

Popper diverge dos positivistas lógicos com relação a metafísica em três pontos.

Primeiro, Popper não pensa que a metafísica é sem sentido por mais que condene algumas

modalidades de pensamento especulativo pela obscuridade. Além disso, não acredita ser

possível eliminar todos os elementos metafísicos da ciência; e por fim, aponta que ainda que

fosse possível eliminar elementos metafísicos da ciência, isso poderia deixar de trazer

vantagem (POPPER, 1992, p. 179) ao progresso da ciência.

2.1 METAFÍSICA E RACIONALISMO CRÍTICO

A proposta de construção das teorias científicas feita por Popper é por ele chamada de

racionalismo crítico. Isto porque se caracteriza pelo movimento de cima para baixo.

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Primeiramente, são formuladas livremente hipóteses para depois submetê-las a crivos

empíricos. Não se trata de acumulação de dados observacionais para gradualmente ascender

até chegar a uma teoria geral. Representa em última instância uma teoria do conhecimento

caracterizável como empirista negativo por continuar destacando o crivo da experiência, a

busca de contraexemplos, no que tange à avaliação. Contudo, no que respeita a formação de

teorias, o processo se caracteriza como de livre criação intelectual. Completa liberdade de

elaborar teorias e compromisso de submetê-las a testes entendidos como tentativas de

refutação. Popper está, no que se refere ao processo de criação, mais próximo da visão

racionalista de que a intuição cumpre papel fundamental no processo de elaboração de

hipóteses. Popper chega a comparar a criação em ciência com a poética. Também está mais

próximo do racionalismo quando defende o abandono do método indutivo em prol de um

puramente baseado na dedução. Livre criação de hipóteses seguida de críticas implacáveis.

Essa combinação de empirismo negativo com intuição criadora de hipóteses levou Popper a

batizar sua filosofia de racionalismo crítico.

O método racionalista, como proposto por Descartes, se baseia na modalidade

dedutiva de inferência. Considerando a experiência a única fonte possível do conhecimento

das matters of fact, os empiristas recorrem à indução para passar dos casos observados para

teorias gerais. Em vez de se fiar na observação, como fazem os empiristas, racionalistas

destacam a intuição racional, que justificam com a suposta existência das ideias inatas e a

usarão como ponto de partida para dedução. Na dedução, se as premissas forem verdadeiras, a

conclusão terá de ser necessariamente verdadeira, e todo o conteúdo presente na conclusão já

deverá estar, ao menos implicitamente, presente nas premissas. Sendo assim, conserva-se a

verdade das premissas passando para a conclusão, mas sem ampliação de conteúdo. É clara a

inspiração de Descartes nas ciências formais, como a matemática. Há exemplos de

racionalistas modernos, que também tiveram grande representatividade na matemática e na

lógica, além de obras filosóficas importantes, como Leibniz, Pascal e o próprio Descartes. A

importância dada à metafísica e à sua relação com a ciência é assim apresentada pelo

racionalismo cartesiano:

Assim, toda a Filosofia é como uma árvore, da qual a metafísica é a raiz, a física é o tronco, e todas as outras ciências os ramos que crescem fora deste tronco (…). Mas como não é das raízes ou dos troncos das árvores que nós coletamos a fruta, mas somente das extremidades de seus ramos, então a principal utilidade da filosofia

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depende nos usos separados de suas partes, que só podemos aprender em último lugar. (DESCARTES, 1850, p. 22)

Desse modo, a metafísica está vinculada às ciências e opera como base e fundamento.

O Já o empirismo se fundamenta em dois pilares principais: a observação e a indução. Os

filósofos empiristas têm diferentes compreensões de como a experiência e as percepções

operam no entendimento, embora convirjam em muitos pontos como, por exemplo, todos

concordam com a inexistência de ideias inatas. Há inclusive uma extensa discussão entre

racionalista e empiristas acerca do tema. Os racionalistas tendem a defender a existência de

ideias inatas no intelecto como forma de justificar o conhecimento a priori.

Ainda sobre a separação entre empiristas e racionalistas, Bacon (1973, p. 69), elenca

três modalidades de busca de conhecimento por meio de analogias a animais que servem bem

para ilustrar esta distinção: os empíricos fazem como formigas, porque coletam os dados do

meio externo por meio da observação assim como as formigas coletam suas provisões para o

formigueiro; os racionalistas a maneira das aranhas, que produzem sua filosofia a partir de um

exercício de introspecção (a intuição e a dedução) que se assemelha a aranha produzindo sua

teia com uma substância produzida em seu interior; e os filósofos como as abelhas, o que de

forma metafórica se refere à abelha que produz o mel a partir do néctar das flores. É claro que

Bacon compara as abelhas à filosofia por ter ele uma concepção bastante própria do que

significa buscar conhecimento. Devido a sua intensa relação com a investigação empírica, o

empirismo nutriu certa aversão a metafísica.

A tradição empirista forjou a concepção indutivista de ciência, que só começou a ser

efetivamente criticada no século XX. Durante muito tempo, Bacon foi visto como pai do

método da ciência moderna. Suas teses a metodológicas foram encaradas por muitos como

indispensáveis para que grandes nomes da ciência como Newton chegassem aos resultados

extraordinários alcançados. Esta tradição se manteve forte nos séculos seguintes apesar da

pouca importância que atribuía à matemática no processo de produção do conhecimento

empírico. O empirismo lógico no século XX passa a se chamar de lógico para corrigir essa

desatenção com a lógica e com a matemática no seio do empirismo clássico britânico.

Bacon é pioneiro na defesa de uma atitude científica instrumentalista baseada na ideia,

bem apontada por Chalmers (1993, p. 24), de que para entendermos a natureza precisamos

consultá-la, ficar observacionalmente presos às suas manifestações sem incorrer na tentação

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de especular sobre ela. Como se pode notar no aforismo: “O homem, ministro e intérprete da

natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da

mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” (BACON, 1973, p. 19). Assim

Bacon mostra a importância da observação para o discurso científico que à época estava

iniciando sua grande caminhada. Apenas a observação da natureza serve de base para o

genuíno conhecimento. Essa passa a ser a marca distintiva da gnosiologia empirista.

Com o objetivo de assegurar a observação fidedigna e fazer o uso confiável da

indução, Bacon elenca os quatro tipos de prenoção que podem impedir a genuína explicação

da natureza. Como podem interferir negativamente nas observações, maculando-as, os idola

devem ser neutralizados por aquele que se propõe a conhecer os fenômenos como realmente

são. Sem identificar e expurgar os ídola, a observação será contaminada e deixará de servir

de base para a construção de teorias gerais. Os Idola tribus, os ídolos da tribo, se referem às

prenoções relativas à natureza humana; os Idola specus, os ídolos da caverna, se referem às

preconcepções ligadas à individualidade, à história de vida e à educação recebida; os Idola

theatri, ídolos do teatro, o vício de se reportar à tradição intelectual herdada, aos grandes

nomes do pensamento, como autoridades inquestionáveis. Os que mais afetam a metafísica

são os Idola fori, ídolos do foro, gerados pelo mau uso das palavras. O emprego de palavras

sem referentes gera intermináveis polêmicas vazias e o uso conceitualmente confuso de

palavras com referentes provocam querelas que acabam por afastar o pesquisador dos fatos.

Uma vez assegurada a fidedignidade das observações feitas, o próximo passo a ser

dado segundo o método empirista proposto por Bacon é a indução – a modalidade de

raciocínio para o qual se todas as premissas forem verdadeiras, a conclusão provavelmente

também o será. Este é o tipo de raciocínio condizente com as posições empiristas de Bacon,

pois a indução parte de fatos particulares observáveis em direção a teorias gerais. A indução é

a que combina com a visão empirista de que só se pode adquirir conhecimento a partir do que

na experiência se mostra generalizável. Bacon defende a indução como melhor caminho para

se chegar a algum conhecimento sobre os fatos também por ser uma inferência do tipo

ampliativo, isto é, em raciocínios indutivos o conteúdo presente na conclusão sempre

excederá o conteúdo presente nas premissas. Nas palavras de BLACK (1979, p. 219): “um

argumento indutivo é aquele em que a conclusão se refere a pelo menos uma coisa a que as

premissas não se referem.” (BLACK, 1979, p. 219). Um exemplo de indução:

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O cisne 1 é branco

O cisne 2 é branco

O cisne 3 é branco

O cisne n é branco

Provavelmente todos os cisnes são brancos

Assim sendo, temos dois tipos de indução a considerar: a indução completa, quando é

possível observar todos os casos particulares no caso de conjuntos finitos, como em “Todos os

homens nascidos no século XVIII estão mortos hoje”, e incompleta, quando não é possível

observar todos os casos particulares (no caso de conjuntos potencialmente infinitos, como em

“Todos os corvos, provavelmente, são negros.”).

O outro tipo de raciocínio, o dedutivo, foi encarado por Bacon como inútil para o

conhecimento da natureza tendo em vista que é incapaz de embasar conclusões que

promovam aumento de conteúdo em relação ao veiculado nas premissas. Os raciocínios

dedutivos, que garantem que se as premissas forem verdadeiras a conclusão obrigatoriamente

o será, não têm como ser aplicados aos fenômenos naturais sempre sujeitos a variações e a

novidades. A inferência de tipo ampliativo é a requerida quando se pretende passar de casos

conhecidos para desconhecidos pro meio de generalizações. Estando todo o conteúdo da

conclusão ao menos implícito nas premissas não se presta ao estudo dos fatos, como o

exemplifica o seguinte exemplo:

Se a Terra gira em torno do sol, então se move

a Terra gira em torno do sol

Logo, a Terra se move.

Bacon descura completamente da dedução do Novum Organum por entender que a

experiência está na origem e serve de embasamento para o conhecimento da natureza. Não

pensa que a matemática possa ser usada como linguagem na representação dos fenômenos

naturais. Com isso, ficam completamente separados o tipo empírico e o formal de

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conhecimento. Como ressalta Black (1979, p. 220): “o chamado ‘salto indutivo’ (de ‘alguns’

para ‘qualquer’, ou para ‘todos’) parece indispensável, tanto na Ciência, como na vida

cotidiana”. O uso da indução é recomendado por Bacon como o único caminho para o

conhecimento científico porque é a única forma de se transitar dos fatos observados para

teorias que também abrangem inobservados:

De modo algum se pode admitir que os axiomas constituídos pela argumentação valham para a descoberta de novas verdades, pois a profundidade da natureza supera de muito o alcance do argumento. Mas os axiomas reta e ordenadamente abstraídos dos fatos particulares, estes sim, facilmente indicam e designam novos fatos particulares e, por essa via, tornam ativas as ciências.

(BACON, 1973, p. 23)

Assim sendo, a indução foi durante muito tempo considerada uma fundamental peça

do pensamento científico moderno em virtude da preocupação em distinguir as diversas áreas

do saber como, por exemplo, metafísica e ciência (OLIVA, 1990, p. 12). A metafísica não

poderia fazer uso da indução por causa da natureza de suas proposições, que não se referem a

fatos particulares observáveis. A distinção que a indução ajuda a fazer, neste caso, é o

chamado critério demarcação (ou de cientificidade, algumas vezes) que tem por objetivo

separar os discursos metafísico e científico.

Entretanto, o ponto fraco da indução é a possibilidade de uma confirmação crescente

de uma teoria estar sempre sujeita a se deparar com um contraexemplo. Nas palavras de

Bacon: “na constituição de todo axioma verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas”

(BACON, 1973, p. 30). Isto significa que um único caso contrário põe abaixo a candidata ao

posto de lei universal. Há uma anedota muito ilustrativa de Russell para exemplificar o

problema, conta sobre um peru que era alimentado toda manhã pelo seu dono e então conclui

por indução que toda manhã seria alimentado. Até que certa vez, na manhã de Natal, o peru

foi degolado e preparado para a mesa da ceia (RUSSELL apud CHALMERS, 1993, p. 38).

2.2 O PROBLEMA DA CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE CIÊNCIA EMPÍRICA

Popper (2016, p. 105) chama a visão de empiristas clássicos como Locke, para a qual

o conhecimento advém principalmente, se não unicamente de nossas experiências

passivamente registradas, de “teoria do balde mental”. Uma forma diferente de dizer algo

parecido com a visão de Locke do sujeito como um receptáculo passivo ou folha de papel em

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branco (OLIVA, 2011, p.35) pronto para receber o conhecimento através dos sentidos.

Segundo essa teoria, acumularíamos experiências através dos sentidos como quem enche um

balde e tudo o que conhecemos se resume ao que conseguimos acumular, nada mais.

Todas estas concepções de origem moderna – o “balde mental” e a indução como

critério de demarcação – serão alvo de crítica de Popper. Começando por sua argumentação

contra a indução que, curiosamente, tomará como ponto de partida a crítica de um filósofo

moderno empirista – Hume. Primeiro, a crítica popperiana divide o problema da indução em

duas partes: uma que Popper chama de Problema Lógico da Indução, trata da então nomeada

Hipótese Lógica (HL), o fato de o raciocínio indutivo ser injustificado epistemicamente; e a

outra nomeada de Problema Psicológico da Indução, trata do que Popper chamou Hipótese

Psicológica (HPs), que é sobre a questão do hábito da indução.

O Problema Lógico de Hume é:

HL – Somos justificados em raciocinar partindo de exemplos (repetidos), dos quais temos experiência, para outros exemplos (conclusões), dos quais não temos experiência?

(…)

O Problema Psicológico de Hume é:

HPs – Por que, não obstante, todas as pessoas sensatas esperam, e crêem que exemplos de que não têm experiência conformar-se-ão com aqueles de que têm experiência? Isto é: Por que temos expectativas em que depositamos grande confiança?

(POPPER, 1975, p. 15)

Popper concorda com a análise epistemológica de Hume, afirmando que a indução é

epistemicamente injustificável. Contemporaneamente, as críticas humeanas deram origem ao

que chamamos de “problema da indução”, que pode ser enunciado como o problema de “que

do fato de futuros passados se terem assemelhado a passados passados não deflui que todos os

futuros futuros venham a assemelhar-se aos passados futuros” (MAGEE, 1974, p. 26-27), ou

de maneira mais simples, que não é possível inferir conclusivamente uma lei geral a partir do

acúmulo de experiências passadas.

Hume, apesar de suas duras críticas à indução , segue a tradição empirista em que se 7

situava e defende ser impossível ao ser humano agir sem partir de raciocínios indutivos. Isto é

assim feito apenas por hábito ou costume. Nas palavras de Hume (2003, p. 74) o hábito se

7 Nem Hume, nem Bacon, nunca usaram o termo “indução” em suas obras. Entretanto é evidente que ambos os autores trataram do tema, mesmo sem se utilizar desta palavra.

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manifesta nas ações humanas “…sempre que a repetição de algum ato ou operação

particulares produz uma propensão a realizar novamente esse mesmo ato ou operação, sem

que se esteja impelido por nenhum raciocínio ou processo do entendimento (…)”.

Popper, ao contrário de Hume e da tradição empirista, repudia a indução tanto a nível

epistemológico quanto psicológico, afirmando que, em verdade, nunca fazemos raciocínios

indutivos, discordando da análise psicológica, ou seja, quando Hume diz que fazemos

induções por hábito. Popper (2016, p. 103) sustenta que “nem os animais nem os seres

humanos usam qualquer procedimento como a indução ou qualquer argumento baseado na

repetição de casos. Acreditar que usamos a indução é um erro, uma espécie de ilusão de

óptica”.

O principal motivo pelo qual Popper levanta tais críticas à indução é o fato de que

“(…) ela não provê uma marca de distinção adequada do caráter empírico e não-metafísico de

um sistema teórico; ou em outras palavras, que ela não provê um ‘critério de demarcação’

adequado” (POPPER, 2005, p. 11). Até porque, como dissemos no capítulo anterior, aceitar a

indução com probabilidades (como na versão fraca da verificabilidade) permite que algumas

teses metafísicas participem do discurso científico.

Então, para explicitar o que seria a sua própria “hipótese psicológica” por meio da

teoria do holofote. Em oposição à teoria do balde mental, Popper propõe a teoria do holofote

para a qual as hipóteses são mais importantes por serem anteriores às observações, mesmo

quando uma hipótese nasce de uma refutação de outra hipótese causada por observações. Isto

porque são as hipóteses que guiam nossas observações para os fatos relevantes (POPPER,

1975, p. 318), como um holofote que ilumina um ponto específico no qual se deve focar a

atenção.

(…) O número de fatos que se poderia reunir é enorme e seria impossível examiná-los todos; e o que se tem como fato pode não passar de uma ilusão. Faz-se claro, portanto, que os fatos devem ser selecionados segundo pressupostos que indiquem os relevantes para a solução de um dado problema (…). Assim, qualquer significativa coleta de fatos para fins de pesquisa é controlada por pressupostos de vários tipos, dependentes do cientista e não do assunto investigado. Como os fatos não são relevantes ou irrelevantes por si mesmos, o cientista é obrigado a adotar algumas hipóteses preliminares acerca de quais os fatos de interesse para o problema que enfrenta e até que essas hipóteses sejam alteradas são elas que orientam a investigação. (NAGEL, 1979, p.20-21)

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A crítica ao método indutivo, que antes costumava ser visto como o critério de

demarcação capaz de distinguir a ciência de metafísica, agora nos faz ver que nem a ciência

pode ter suas proposições justificáveis partindo da observação de casos particulares. Mas

então como fazer a importante distinção entre ciência e metafísica? Que critério seria

adequado?

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3 O FALSIFICACIONISMO E O APROVEITAMENTO DA METAFÍSICA

3.1 A PROPOSTA POPPERIANA: FALSIFICACIONISMO

As duras críticas de Popper à indução chamam a atenção para o quanto o problema da

indução é intrinsecamente ligado ao problema da demarcação, já que essa alegada

dependência da ciência para com a indução se dá exatamente porque a indução tem

funcionado como critério de demarcação dentro desta tradição advinda dos modernos,

distinguindo ciência de outras atividades como a pseudociência ou a metafísica. Popper

(2016, p. 104), inspirado nas críticas humeanas à indução, conclui que “todo o aparato da

indução torna-se desnecessário quando admitimos a falibilidade geral do conhecimento

humano (…)”, com base nessas ideias nos traz sua própria proposta de critério de

demarcação.

(…) como Hume deixou implícito, não é justificável raciocinarmos a partir de um exemplo para chegar à verdade da lei correspondente. Mas a esse resultado negativo pode-se acrescentar um segundo resultado, igualmente negativo: é justificável raciocinarmos a partir de um contraexemplo para chegar à falsidade da lei universal correspondente.

(POPPER, 2016, p. 109)

Sabemos que não há justificativa racional para uma lei geral obtida pela

experimentação aliada à indução. Contudo, a ciência faz uso desse método, o que poderia ser

visto como um descolamento da filosofia da ciência da ciência tal qual produzida. Mas Popper

(2016, p. 101) defende que as teorias científicas não são definitivas, uma vez que “a aceitação

de uma lei ou uma teoria pela ciência é apenas provisória, o que equivale a dizer que todas as

leis e teorias são conjecturas ou hipóteses temporárias”. Embora Popper (2016, p. 102)

descorde do método indutivo, o princípio de experimentação ao menos pode ser conservado

uma vez que “os dados empíricos só nos permitem inferir a falsidade de uma teoria, e essa

inferência é totalmente dedutiva”. Se tomarmos como exemplo a hipótese “Sempre que

alguém consumir chá de limão com mel, será curado de gripe”. A observação de um caso no

qual alguém não é curado de gripe após consumir o chá funcionará para refutar a teoria geral.

Nesse caso, o contraexemplo provoca a falsificação, mas a inferência pode ser feita de modo

estritamente dedutivo: “Se P então Q. Não-Q, então não-P” (modus tollens). Nesse caso, a

observação e a experimentação seriam usadas para testar a teoria e se ela resistisse aos severos

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testes seria corroborada na proporção da intensidade dos testes a que foi submetida; caso

contrário, seria refutada e substituída por outra que despontasse melhor.

O falsificacionista [como Popper, por exemplo] vê a ciência como um conjunto de hipóteses que são experimentalmente propostas com a finalidade de descrever ou explicar acuradamente o comportamento de algum aspecto do mundo ou do universo. Todavia, nem toda hipótese fará isto. Há uma condição fundamental que toda hipótese ou sistema de hipóteses deve satisfazer para ter garantido o status de lei ou teoria científica. Para fazer parte da ciência, uma hipótese deve ser falsificável. (CHALMERS, 1993, p. 65)

Desse modo, uma teoria só é considerada científica na medida em que for refutável, ou

seja, se houver alguma situação que apresente a existência de um contraexemplo. O critério de

demarcação popperiano é assimétrico ao da verificabilidade do empirismo lógico inicial em

virtude de enfatizar a busca do que pode contrariar a teoria. Em contraposição, a

verificabilidade se dedica à coleta de evidência empírica capaz de dar sustentação à teoria.

Uma vez rejeitada a indução, não se trata mais de buscar verificações, probabilidades e

confirmações, pois não se tem como garantir a segurança de um resultado positivo definitivo,

não se imuniza qualquer teoria contra um possível contraexemplo. Lidando com conjecturas

falsificáveis, podemos perseguir a evidência desfavorável, retendo provisoriamente as que

despontarem corroboradas.

Um exemplo do que poderia ser considerado uma conjectura irrefutável e que,

portanto, não satisfaz o critério de demarcação popperiano é o seguinte a: “existe uma fórmula

em latim que, se pronunciada de maneira ritualmente correta, cura todas as doenças”

(POPPER, 2016, p. 210). Existem inúmeras possíveis fórmulas em latim, bem como inúmeras

maneiras ritualmente corretas de se pronunciar cada uma delas. O que torna tal conjectura

impossível de se confrontar com a experiência a ponto de se poder dizer que é irrefutável.

O conhecimento científico em Popper se desenvolve a partir de situações-problema e

suas tentativas de resolução. As hipóteses propostas sempre se originam de alguma

situação-problema que almejam explicar ou resolver; a medida que são testadas

empiricamente, isto é, postas a prova, podemos corroborá-las ou refutá-las (dependendo da

evidência com que se confrontam). Uma vez refutadas, podem dar origem a versões mais

refinadas da hipótese original com a eliminação de erros ou ser totalmente substituídas por

alternativas.

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Assim, o critério da falsificabilidade configura mecanismo de eliminação de erros.

Com base nele, uma hipótese é considerada aspirante a ter valor cognitivo quando puder ser

refutada por alguma evidência que a contrarie. Uma diferença patente que se observa entre a

epistemologia da tradição científica anterior (todos que prezam os raciocínios indutivos) e a

epistemologia Popperiana, é a própria noção de conhecimento. A tradição anterior, advinda

dos modernos, acompanha Platão e mantém a concepção de conhecimento imutável, geral e

seguro (Episteme), enquanto Popper adota uma concepção de conhecimento como sendo

sempre de natureza provisória (MAGEE, 1974, p. 32).

Se esperamos que as teorias se revelem falsas, dificilmente poderia ser considerado racional fazer que o fim da ciência consistisse na descoberta de teorias verdadeiras. Popper, desse modo, como já assinalado, propõe um objetivo aparentemente mais modesto: obter teorias de verossimilhança cada vez maior, ou seja, teorias que contêm mais verdade e não mais falsidade do que suas antecessoras, ou teorias que, sem diminuir a verdade que contêm, diminuem seu conteúdo de falsidade (O'HEAR, 1997, p. 27).

Podemos dizer com O'Hear que a ciência possui um objetivo manifesto e um objetivo

latente. Por objetivo manifesto se entende a capacidade preditiva e o poder de manipular a

natureza como almejam Bacon e os atuais instrumentalistas. Características que,

razoavelmente, já foram alcançadas com sucesso pela ciência e exatamente por isso realistas

defendem a possibilidade de também se buscar alcançar o objetivo latente que seria alcançar a

Verdade ou, para Popper, a verossimilhança (O'HEAR, 1997, p. 24).

Um questionamento que pode ser feito é o seguinte: “Como a ciência progride sem o

ideal de Verdade?” Uma possível resposta é a de que as teorias podem aumentar seu poder de

predição e quanto mais uma teoria é capaz de prever maior potencial de verdade ela possui.

Uma possível tréplica é que este tipo de processo é baseado em indução (O'HEAR, 1997, p.

27). Se uma teoria “A” passa por mais tentativas de refutação que a “B” e resiste, dizer que a

teoria “A” é melhor a nível preditivo é raciocinar indutivamente (O'HEAR, 1997, p. 28). Isso

é o que Max Black (1979, p. 222, grifo nosso) jocosamente chamou de a indução “(…)

esgueirar-se pela porta dos fundos, através da teoria popperiana da ‘corroboração’, isto é, dos

critérios que nos permitem avaliar a força relativa das hipóteses não tornadas falsas pelos

fatos observados.”

No entanto, à luz da concepção tradicional de ciência, não deveríamos aprovar a

proposta de Popper de rejeitar a indução. Isto porque é a indução quem nos garantiria a

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demarcação entre ciência e não-ciência. No entanto Popper argumenta que mesmo sem a

indução ainda podemos decidir entre teorias identificando seus méritos relativos como “teor

de verdade” e “conteúdo informativo”. Em suas palavras: “As teorias do louco e do cientista

tem algo em comum: ambas são conhecimento conjectural. Mas algumas conjecturas são

muito melhores que outras” (POPPER, 2016, p. 111). Como, por exemplo, se compararmos a

teoria de Darwin da evolução e a tese teológica cristã descrita em Gênese, ambas explicariam

a origem das espécies, mas a alternativa darwinista tem bem mais conteúdo informativo (a

teoria evolucionista explica mais fatos) e teor de verdade (a teoria evolucionista é mais

corroborada, isto é, resistiu melhor aos testes).

Para demonstrar a aplicação do critério de demarcação popperiano recorremos a

alguns de seus exemplos. Popper lançou duras críticas à psicanálise e ao marxismo. Embora

sejam dois casos ligeiramente diferentes visto que no caso da psicanálise Popper a classifica

como metafísica por não respeitar o critério de demarcação, uma vez que sustenta teorias

irrefutáveis. O que à primeira vista pode parecer um ponto positivo na verdade é um

comportamento bastante anticientífico popperianamente falando. Já o marxismo teria

elaborado teorias que foram refutadas, mas os contraexemplos ignorados para que a ciência

sobrevivesse em uma nova versão.

Na psicanálise temos o caso da interpretação de sonhos. Em Freud (apud POPPER,

1992, p. 165) “um sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)”. Assim, um

sonho onde alguém ganha milhões na loteria pode ser interpretado como um desejo reprimido,

tanto quanto o sonho (pesadelo, neste caso) em que se é atacado e devorado por um animal

selvagem, por mais que este segundo caso não pareça ser algo comumente desejado. Desta

forma, nenhum sonho serviria de contraexemplo para a teoria de que sonhos são realizações

de desejos (wish fulfilments); ao contrário, qualquer sonho a confirma.

Já no caso do marxismo, num primeiro momento Popper (2016, p. 126) o considera

em acordo com o método científico por sua teoria fazer uma previsão, a de que: o capitalismo

geraria miséria crescente e por meio de uma revolução o socialismo chegaria primeiro nos

países com as forças produtivas mais desenvolvidas. No entanto, sabemos que essa previsão

falhou, o socialismo foi implantado, até hoje, apenas em países com forças produtivas pouco

desenvolvidas, quase sempre predominantemente agrários. Isso faz com que o marxismo seja

uma teoria capaz de originariamente reivindicar o status de científica, porém agora refutada.

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Em situações como a do marxismo, em que teorias são refutadas, é comum que se

tente salvá-las por meio de hipóteses ad hoc, também chamadas de hipóteses auxiliares.

Newton-Smith (2003, p. 72) argumenta que Popper tem duas estratégias para lidar com as

hipóteses ad hoc: uma que o autor propôs chamar de “anti-ad hoc” e outra de “cartas na

mesa”. Na primeira estratégia, Newton-Smith defende que Popper se opõe às hipóteses ad

hoc. Uma vez refutada, a teoria deve ser dispensada, reformulada e então passar por novos

testes. Nas palavras do autor: “Se só pudermos preservar uma teoria postulando uma hipótese

ad hoc, dispensemo-la” (NEWTON-SMITH, 2003, p. 73). Podemos notar nessa fase do

pensamento de Popper uma quase paráfrase, presente no Lógica da Pesquisa Científica, de

uma tese de Bacon: “Deve-se notar que uma decisão positiva só pode apoiar temporariamente

a teoria, pois decisões negativas subsequentes sempre podem derrubá-la” (Popper, 2005, p.

10). Bacon no Novum Organum sustenta a tese que antecipa a filosofia da ciência de Popper:

“maior é a força do caso negativo”

Popper posteriormente reconhece que, em algumas situações, hipóteses ad hoc podem

representar avanços para a ciência. Isso pode ser percebido mesmo em casos históricos das

práticas e descobertas científicas. Um exemplo é a descoberta do planeta Netuno. No século

XIX, observações do movimento do planeta Urano destoavam da órbita anteriormente

prevista baseando-se na teoria Newtoniana. O que, pelos ditames estabelecidos por Popper,

deveria levar à refutação dela. Os cientistas Leverrier e Adams sugeriram a existência de um

planeta até então não observado que influenciaria a órbita de Urano. Esta é claramente uma

hipótese ad hoc. Porém, através desta hipótese e das indicações fornecidas por Leverrier e

Adams, Galle pôde avistar Netuno no céu pela primeira vez confirmando a teoria antes

considerada ad hoc (CHALMERS, 1993, p. 82).

Por outro lado, também percebi que não devemos excluir imunizações, nem mesmo as que introduzem hipóteses ad hoc auxiliares. Por exemplo, o movimento observado de Urano poderia ter sido considerado como uma falsificação da teoria de Newton. Em vez disso, a hipótese auxiliar de um planeta exterior foi introduzida ad hoc, imunizando assim a teoria. Isso acabou sendo positivo; porque a hipótese auxiliar era testável, mesmo se difícil de testar, e resistiu aos testes com sucesso. (POPPER, 2005b, p. 43)

Isso nos leva a segunda estratégia apontada por Newton-Smith, que certamente foi

adotada por Popper após esta reflexão sobre a utilidade das hipóteses ad hoc. A estratégia

“cartas na mesa”, pode ser resumida da seguinte forma: “O critério de refutação tem de ser

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posto de antemão; tem de ser acordado quais situações observáveis, se de fato observadas,

significam que a teoria está refutada” (POPPER apud NEWTON-SMITH, 2003, p. 74). Esta

estratégia aceita uma hipótese auxiliar desde que esta também seja uma hipótese refutável. No

caso da descoberta de Netuno, temos um claro exemplo do funcionamento desta estratégia.

Levando em conta que havia indicações precisas dadas por Leverrier e Adams sobre como

avistar o suposto planeta através do telescópio.

Além da refutabilidade, que é o que define a cientificidade, outra característica que

Popper julga importante numa hipótese é que seja ousada. Há dois tipos de ousadia a

considerar. O primeiro é a de tentar propor uma conjectura que contenha novas ideias e que,

de preferência, se confrontem com as teorias vigentes. O que significa que ela “assume grande

risco de ser falsa — quando as coisas podem ser diferentes e, na sua época, parecem ser

diferentes” (POPPER, 2016, p. 118). O segundo tipo de ousadia é o de tentar “prever aspectos

do mundo das aparências que passaram despercebidos até então, mas que esse mundo deve

possuir se a realidade conjecturada estiver (mais ou menos) correta (…) (POPPER, 2016, p.

121)”. Quanto mais uma hipótese pretende informar, mais ela tende a ser ousada neste sentido

popperiano. Em suma, poderíamos dizer que uma teoria ou hipótese é ousada quando

apresenta amplo conteúdo informativo.

Porque, em realidade, o aumento de conhecimento se deve aos problemas e às nossas tentativas de resolvê-los. Essas tentativas requerem que — almejando resolver a dificuldade — precisam ir para além do conhecimento existente e, portanto, exigem esforço de imaginação. Quanto mais ousada a teoria, tanto mais ela nos diz — e mais atrevido o ato imaginativo. (Simultaneamente, contudo, torna-se maior a probabilidade de ser falso o que a teoria afirma e é preciso submetê-la a testes rigorosos para verificá-lo.) A maior parte das grandes revoluções científicas deveu-se a teorias temerárias, que exigiram imaginação criativa, profundidade de visão, independência de espírito e um pensamento desejoso de aventurar-se em regiões inseguras.

(MAGEE, 1974, p. 32) O exemplo utilizado por Popper (2016, p. 118) de teoria ousada foi o do caso da teoria

Heliocêntrica de Copérnico. O Heliocentrismo foi ousado por confrontar a então vigente

teoria Geocêntrica colocando o Sol no centro do universo e os demais astros girando ao seu

redor. Sabemos hoje que é parcialmente falsa. O Sol não está em repouso e nem no centro do

universo, por exemplo. Mas outras hipóteses desta teoria ainda são amplamente aceitas.

Entretanto, Popper pontua que mesmo se confrontando teorias vigentes, uma teoria precisa ser

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testável. É preciso que haja um experimento possível ou que seja feita alguma previsão

bem-sucedida. Caso isso não ocorra, a teoria não é científica e sim metafísica.

A característica da “ousadia” nos mostra um aspecto importante da filosofia

popperiana: “não é a veracidade que decide sobre o caráter científico de uma teoria”

(POPPER, 2016, p. 120). É claro que a noção de verdade é um fator importante, mas desde

que Popper (2016, p. 105) assume o caráter conjectural do conhecimento humano, isto é,

quando admite a falibilidade geral do conhecimento humano, a noção de verdade passa a ser a

norteadora das teorias, sabendo porém que nunca teremos certeza de se nossas teorias

alcançaram a verdade. Contudo, a cientificidade é um caráter que demanda, entre outras

coisas, certamente, ousadia.

A Ciência precisa de enunciados de amplo conteúdo informativo (ousados) e

verdadeiros. Porém, quanto mais conteúdo tem um enunciado mais chances ele tem de ser

refutado, “pois quanto mais informação um enunciado contenha, maior o número de maneiras

segundo as quais ele poderá mostrar-se falso” (MAGEE, 1974, p. 42), caso, por exemplo, de

“Todos os metais se dilatam quando aquecidos”. Aqui temos uma gama de informações

implícitas neste enunciado para se tentar provar que são verdadeiras. Ao mesmo tempo, é bem

fácil que enunciados com alta probabilidade de serem verdadeiros pouco informem – como

dizer “O cachorro do meu vizinho late”. Um enunciado com menos informações, muito mais

fácil de se provar verdadeiro e muito menos interessante para ciência.

3.2 METAFÍSICA E CIÊNCIA

Ao contrário da verificabilidade defendida pelos positivistas lógicos, a refutabilidade

como critério de demarcação advoga que as proposições metafísicas são portadoras de

significado. Como sustenta Carvalho (1990, p. 64): “Em princípio, o que está situado para

além das fronteiras traçadas pela falsificabilidade não é carente de significado. A metafísica

permanece um discurso significante, porém não falsificável, não empírico”. Percebemos então

que o falsificacionismo popperiano, também exige respaldo empírico, mas sem ser um critério

que se aplique à problemática da significatividade. Seu raio de aplicação fica limitado ao

campo da cognitividade. Bem diferente da posição do positivismo lógico anteriormente

tratada: Positivistas normalmente interpretam o problema da demarcação de uma maneira naturalista; eles interpretam como se esse fosse um problema da ciência natural. Ao invés de tomar esse problema como sua tarefa de propor uma convenção apropriada,

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eles acreditam que têm de descobrir uma diferença, existente na natureza das coisas, como se esse problema estivesse, entre a ciência empírica de um lado e metafísica do outro. (POPPER, 2005, p. 12)

A visão do positivismo lógico notadamente difere da proposta popperiana para a qual

impõe-se reconhecer o ponto fundamental de que “a falsificabilidade separa dois tipos de

enunciados perfeitamente significativos: o falsificável e o não falsificável. sendo assim, se

desenha uma linha dentro da linguagem significativa, não ao redor dela” (POPPER, 2005, p.

18). Em outras palavras, trata-se de um critério de demarcação, que pretende substituir a

verificabilidade como critério de cientificidade, mas não de um critério de significatividade

que decreta o banimento das proposições metafísicas por uma suposta carência de sentido.

Eu sei, claro, que muitas pessoas falam absurdos; e é concebível que deva se tornar a (desagradável) tarefade alguém desmascarar o absurdo dos outros, pois pode ser um absurdo perigoso. Mas acredito que algumas pessoas disseram coisas que não eram muito bom senso, e certamente não muito boa gramática, mas que eram todas as mesmas muito interessantes eempolgantes, e talvez valesse mais a pena ouvi-las do que o bom senso de outros. (POPPER, 1962, p. 70)

Sendo assim, se as proposições metafísicas, segundo Popper, são portadoras de

significado, então elas também passam a poder ser entendidas e, em alguns casos, se prestam

a inspirar hipóteses científicas. Podem, nesses casos, como observa Carvalho (1990, p. 65) vir

a receber o status de científicas quando assumem contornos testáveis que nos permitam

decidir entre estas e suas concorrentes. Popper afirma em alguns momentos de suas obras que

o fato de a metafísica poder originar teorias científicas é necessário também pelo fator

psicológico: “E olhando para a questão a partir do ângulo psicológico, estou inclinado a

pensar que a pesquisa científica é impossível sem fé em ideias as quais são do tipo puramente

especulativo.” (POPPER, 2005, p. 16)– quanto também pode ser comprovado historicamente

que diversas teorias científicas têm sua origem em ideias originalmente metafísicas (POPPER,

2005, p. 315-316).

Exemplos dessas ideias são o atomismo; A ideia de um único “Princípio” ou elemento último (do qual derivam os outros); A teoria do movimento terrestre (oposta por Bacon como fictícia) (…) Todos Esses conceitos e ideias metafísicas podem ter ajudado, mesmo em suas formas iniciais, a trazer ordem à imagem do homem sobre o mundo, e em alguns casos podem até ter levado a predições bem-sucedidas. Assim, uma ideia deste tipo adquire estatuto científico apenas

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quando é apresentado de forma falseável; isto é, apenas quando se torna possível decidir empiricamente entre ele e alguma teoria rival.

(POPPER, 2005, p. 277-278)

Na passagem acima, Popper cita o atomismo. Trata-se de excelente exemplo de como

ideias metafísicas podem a princípio gerar hipóteses científicas. A ideia metafísica de átomo

remete à ideia grega de arché, de um princípio de todas as coisas. No atomismo de

Demócrito, os átomos e o vazio compõem tudo o que existe na natureza. Enquanto no modelo

atômico atual temos mais especificidades (elétrons, prótons, etc.) que se mostraram mais

consistentes com a realidade. Todavia é inegável a forte influência da teoria metafísica de

Demócrito na teoria atomista vigente na ciência.

Além do atomismo, que adaptou um conceito advindo da metafísica pré-socrática para

o discurso científico, outro, exemplo ainda melhor de teoria científica inspirada em ideias

metafísicas é o do heliocentrismo de Copérnico. O grande astrônomo estudou com um

platonista chamado Novara na cidade de Bolonha. Sua teoria de que o Sol deve estar no

centro do universo foi influenciada pelo platonismo, mais especificamente pela ideia de que

“o sol desempenha o mesmo papel no reino das coisas visíveis assim como a ideia do bem no

reino das ideias. E a ideia do bem é a mais alta na hierarquia das ideias platônicas” (POPPER,

1962, p. 187). Logo, se o Sol recebe tamanho destaque, é então inconcebível (para o

platonista) que tal estrela ocupe outro lugar que não o centro do universo e menos ainda

aceitável que gire em torno da Terra ao invés do contrário.

A partir da conclusão de que a metafísica, mesmo incapaz de veicular significado

cognitivo, tem essa possível função heurística, Popper se dedica ao problema de como lidar

com ideias metafísicas, sendo essas irrefutáveis. Embora seu critério falsificacionista aceite a

metafísica como portadora de significado, não admite que hipóteses irrefutáveis possam

integrar o discurso científico. A solução veio com a elaboração do conceito de criticabilidade;

entendendo como criticável a teoria que ao menos se presta a tentar resolver, explicar ou de

alguma maneira tratar de uma situação problemática. Cumprindo este requisito, mesmo uma

teoria irrefutável pode participar do debate crítico necessário para o desenvolvimento da

ciência (POPPER, 2016, p. 214). Afinal, “se alguém nos presenteasse com as equações de

Newton, ou mesmo suas teses, sem primeiro nos explicar quais eram os problemas que essa

teoria pretende resolver, não seríamos capazes de debater racionalmente a sua veracidade

(…)” (POPPER, 2016, p. 213).

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Popper (2005b, p. 173) explica que optou por substituir a justificação de teorias pela

criticabilidade porque “nós nunca podemos justificar uma teoria, mas podemos às vezes

‘justificar’ (num sentido diferente) nossa preferência por uma teoria, considerando o estado

do debate crítico; por a teoria ter se mantido perante o criticismo melhor do que suas

competidoras”. O próprio Popper (2005b, p. 173), por exemplo, já insistiu que sua primeira

obra relevante, a Lógica da Pesquisa Científica, é um livro de um realista, mas que à época

entendia isso como uma mera confissão de fé num mundo de regularidades, porque ainda não

entendia como ideias metafísicas (como o realismo) poderiam ser racionalmente criticáveis,

mesmo sendo não-testáveis (irrefutáveis). Levando em conta que o realismo se propõe a

explicar uma situação-problema (se há ou não regularidades), então é uma teoria digna de

pertencer ao debate crítico (apesar de não ser científica). A opção pelo realismo às alternativas

idealistas, como faz Popper, pode resultar do confronto crítico das posições. Mas há exemplos

também de cientistas defendendo o instrumentalismo, por exemplo, fazendo oposição ao

realismo como base metafísica para ciência. Isso indica a possibilidade de o debate crítico

entre teorias não-científicas ocorrer dentro da ciência de um modo que a beneficie.

Esta transição de pensamento transcorrida do Lógica da Pesquisa Científica para obras

posteriores como Realism and the Aim of Science e Quantum Theory and the Schism of

Physics denota um movimento que amplia a serventia da metafísica, antes circunscrita ao

processo capaz de inspirar e originar teorias científicas. Nesse caso, a metafísica se faz

presente no seio da ciência em virtude de suas questões e formas de abordá-las se revelarem

importantes para as próprias práticas científicas de pesquisa. Se primeiro a metafísica tinha

apenas um papel heurístico, limitado a inspirar a criação de hipóteses e teorias científicas,

agora a metafísica passa a ser participante do discurso científico, por mais que na maioria das

vezes sua presença permaneça implícita nas discussões travadas pelos cientistas.

Por meio do critério da criticabilidade, ideias metafísicas podem passar a figurar como

parte do discurso científico sob a forma do que Popper chamou de Programas Metafísicos de

Pesquisa. Popper (1982, p. 161) esclarece que os chama de “Programas de Pesquisa” porque

“incorporam, junto a uma visão de quais são os problemas mais urgentes, uma ideia geral de

como seria uma solução satisfatória desses problemas” e “Metafísicos” porque “resultam de

uma visão geral da estrutura do mundo e, ao mesmo tempo, de uma visão geral das situações

problemáticas em física cosmológica”.

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Outra razão para Popper (1982, p. 161) escolher esse termo é chamar a atenção para o

fato de que, com frequência, durante os processos de processo de produção do conhecimento

científico a metafísica se faz presente, ainda que suas questões sejam tacitamente acolhidas

pelo endosso a determinados pressupostos. E são as ideias metafísicas que determinam os

problemas de explicação a serem atacados, as respostas apropriadas e também quais respostas

representam melhorias em comparação às anteriores. Em outras palavras, as ideias metafísicas

funcionam como um programa de pesquisa, o que ajuda a entender melhor o emprego da

expressão Programa Metafísico de Pesquisa).

Popper elenca dez exemplos de Programas Metafísicos de Pesquisa. Um deles é o

citado atomismo. O modelo atômico de Demócrito não apenas inspirou cientistas

contemporâneos. A partir da tese atomista grega que defendia que as mudanças na natureza

ocorrem devido ao rearranjo dos átomos no vazio, levantou-se toda a discussão de como a

matéria poderia de fato ser inteiramente constituída de átomos e que tipos de átomos existem

(Hidrogênio, Carbono, etc.). Uma importante inovação tanto para Física quanto para a

Química. Popper também diz:

Tais programas de pesquisa são, em geral, indispensáveis para a ciência, embora seu caráter seja o da metafísica ou física especulativa, em vez de física científica. Originalmente eles eram todos metafísicos, em quase todos os sentidos da palavra (embora alguns deles se tornaram científicos a tempo); eram vastas generalizações com base em várias ideias intuitivas, a maioria das quais agora nos parecem erradas. Eles eram imagens unificadoras do mundo – o mundo real. Eles eram altamente especulativos; e eles eram, originalmente, não-testáveis. Na verdade, todos eles, poderia se dizer, que têm sido mais da natureza dos mitos, ou dos sonhos, do que da ciência. Mas eles ajudaram a dar à ciência seus problemas, seus propósitos e sua inspiração.

(POPPER, 1982, p. 165)

Outro exemplo de Programa Metafisico de Pesquisa é o Darwinismo. Popper conclui

que a Teoria da evolução darwinista é um Programa Metafísico de Pesquisa porque não é

testável. Apesar de ser capaz de explicar a origem das espécies de maneira satisfatória, não é

capaz de fazer predições. Popper argumenta (2005b, p. 199) que se acaso encontrássemos em

Marte três bactérias com características genéticas similares às de bactérias terrestres isso não

refutaria o darwinismo. Temos primeiramente a impressão de se tratar de um claro

contraexemplo, pois não deveria haver num ambiente tão diferente da Terra espécies tão

similares. Além disso, o darwinismo poderia explicar, analisando fósseis e traços genéticos, a

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origem de certa espécie, mas não pode determinar em quanto tempo, se e como esta mesma

espécie se modificará ou dará origem a uma nova.

Outra crítica de Popper (2005b, p. 199) é que os conceitos de “seleção natural” e

“adaptação” funcionam de maneira quase tautológica: “se a espécie não se adaptou, deve ter

sido eliminada pela seleção natural. Similarmente, se uma espécie foi eliminada ele deve ter

se adaptado mal às condições”. Como um Programa Metafísico de Pesquisa, a Teoria da

Evolução deve então indicar os problemas a serem explicados e ao menos sugerir as possíveis

respostas adequadas. O darwinismo sugere como problema a questão da origem das espécies,

e sugere como possível resposta que se houver evolução em alguma espécie, ela será gradual.

Esta, segundo Popper (2005b, p. 200) é sua única predição real.

Apesar de deixar de atribuir o estatuto de científico a essas teorias e rebatizá-las como

Programas Metafísicos de Pesquisa, Popper (2005b, p. 200) ressalta que, ainda assim, muitos

avanços podem ser alcançados nas pesquisas graças a esses Programas. Cita o exemplo da

teoria da evolução darwinista: “Embora seja metafísica, [a teoria da evolução] lançou bastante

luz sobre pesquisas muito concretas e muito práticas”. Popper refere-se neste momento a

contribuição da teoria darwinista para o desenvolvimento da penicilina. Seguindo o mesmo

raciocínio, poderíamos dizer o mesmo do atomismo ou da psicanálise freudiana: ainda que

metafísicos trouxeram progresso em questões práticas.

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CONCLUSÃO

As duras críticas do positivismo lógico à metafísica se dedicaram a demostrar que suas

proposições são destituídas pura e simplesmente de significado. Mais que desprovidas de

potencial cognitivo, as proposições metafísicas são sem sentido. Mesmo sem conceder a elas a

capacidade de veicular ou expressar significado cognitivo, Popper sustenta que são

compreensíveis, inteligíveis, portadores de sentido. E mais ainda: podem servir de inspiração

para a construção de teorias empíricas ou testáveis desde que passem por reformulações. Os

positivistas lógicos não vislumbram qualquer relevância na metafísica porque sua falta de

significatividade torna imprestável em si mesma e, ipso facto, para a ciência. Como

consequência inevitável recomendam sua eliminação. A metafísica é relegada à função de

expressão de sentimentos e colocada próxima das construções artísticas.

Popper se opõe às críticas do positivismo lógico por razões metodológicas, uma vez

que o positivismo lógico recorre à verificabilidade, associada ao método indutivo, e à

exigência de evidência positiva a uma teoria para desqualificar a metafísica como discurso

significativo e portador de potencial cognitivo. Popper confere à metafísica papel heurístico

importante por mais que epistemologicamente não tenha como salvá-la de algumas das mais

incisivas críticas do positivismo lógico. Popper concorda em distinguir metafísica de ciência,

mas discorda que a metafísica em razão de carecer de valor epistêmico intrínseco não tenha a

capacidade de comunicar conteúdos e seja incapaz de produzir intuições que possam estar na

origem de conceitos e teorias científicos.

Popper defende a capacidade da metafísica de expressar conteúdos comunicáveis e

compreensíveis com potencial de inspirar teorias com valor cognitivo recorrendo a exemplos

históricos de teorias científicas que se formaram a partir de sistemas metafísicos de

pensamento. A ideia é a de que se foi possível inspirar a ciência, então conteúdos, ainda que

puramente sugestivos, foram comunicados. Dessa maneira Popper acredita que atribuir à

metafísica uma função heurística de inspirar hipóteses científicas é suficiente para derrubar a

tese de que as proposições metafísicas são carentes de sentido. Posteriormente, Popper

desenvolve o conceito de criticabilidade, isto é, a capacidade que uma teoria tem de tentar

explicar ou resolver algum problema submetendo-se a crivos críticos. Todos os Programas

metafísicos de pesquisa, como os concebe Popper, são baseados em ideias metafísicas

criticáveis que, não mais inspiram hipóteses científicas, mas as norteiam. Como no caso do

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Darwinismo, onde a ideia de “seleção natural” e “adaptação” norteiam a pesquisa, isto é,

indicam que tipo de perguntas fazer que tipo de respostas são esperadas.

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