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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO “EU ESTAVA LÁ” NATAL/RN 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

DOUTORADO

JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO “EU ESTAVA LÁ”

NATAL/RN

2019

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JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO

“EU ESTAVA LÁ”

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de Doutor em Ciências

Sociais. Orientadora: Profª. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida

NATAL/RN

2019

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Costa, Juliana Rocha de Azevedo da.

A história como testemunho, "eu estava lá" / Juliana Rocha de Azevedo da

Costa. - 2019.

177f.: il.

Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro

de Ciências Humanas, Letras e Artes. Pós-graduação em Ciências Sociais.

Natal, RN, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Conceição Xavier de Almeida.

1. Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Tese. 2. Testemunho -

Tese. 3. Narrativa - Tese. 4. História - Tese. 5. Grupo de Estudos da

Complexidade - GRECOM/UFRN - Tese. I. Almeida, Maria da Conceição Xavier

de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 378.4(813.2)

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JULIANA ROCHA DE AZEVEDO DA COSTA

A HISTÓRIA COMO TESTEMUNHO “EU ESTAVA LÁ”

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de

Doutor em Ciências Sociais.

Aprovada em: ____/_____/______

BANCA EXAMINADORA

Maria da Conceição Xavier de Almeida Orientadora -Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Fagner Torres de França

Examinador Interno - Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Margarida Maria Dias de Oliveira

Examinadora Interna - Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Edgard de Assis Carvalho

Examinador Externo - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP

Iran Mendes Examinador Externo - Universidade Federal do Pará- UFPA

Margarida Maria Knobbe

Examinadora suplente externa - Faculdade Estácio de Natal

Alexsandro Galeno Araújo Dantas Examinador suplente interno - Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UFRN

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A Francisco Eduardo de Azevedo e Elda Rocha de Azevedo por me ensinarem que é preciso manter-se de coluna ereta, mesmo quando o mundo tenta provar o contrário. A Heitor e Fliper, minhas duas razões do porquê amar e lutar.

À minha irmã Diva, por ser minha segunda mãe em todos os aspectos, e ao meu sobrinho Heder, por ser como um irmão mais velho.

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AGRADECIMENTOS

Cícero (106-43 a.C.), filósofo romano, ensina que “a gratidão não é

somente a maior das virtudes, mas a origem de todas as outras”. Nesse

espírito de gratidão, eu espero estar atenta e ser justa para agradecer a

todos os que fizeram parte desta minha caminhada.

Deus de infinita misericórdia! Olhaste para mim, tão pequenina e

derramastes graças abundantes em toda minha vida. Aqui, te agradeço pelo pequeno intervalo de quatro anos, no qual cuidaste com o zelo de pai para

que cada cena vivida, cada aprendizado se tornasse amplamente reverberado

em minha vida. Colocaste em meu caminho amigos. Proporcionastes grandes mudanças na minha rotina e do meu clã familiar. Fizeste-me encontrar e

desencontrar pessoas... aprender com cada uma delas e acrescer as contas

das minhas experiências, para que um dia eu me recorde e dê o testemunho do que fizeste por mim. Por tudo, por tudo eu te dou Graças e

te Glorifico!

Agora, cuidando de agradecer às pessoas do mundo, lanço a mim mesma um desafio neste texto. Quero registrar, além dos agradecimentos,

também a virtude que me uniu a cada um de vocês. Começo, portanto, esta

jornada lembrando de Valéria Soares, amiga de trabalho que me dizia antes da seleção do doutorado: “Vai lá, se inscreve! Vai que dá”. A força e a luz de

Valéria, devota Hare Khrisna, estiveram sempre presentes. Valéria

representa para mim a Fé e a devoção naquilo que não se vê, mas que está presente.

Nesses quatro anos, minha família foi meu sustentáculo, meus pais, meu esposo Fliper, meu filho Heitor, minha irmã Diva, meu sobrinho Heder,

meu sogro Cecílio, minha sogra Raimundinha e todos os demais que de

forma direta ou indireta estiveram comigo. Todos eles me disseram que seria

possível e agiram como se não houvesse dificuldade ou prejuízo. Eles seguraram toda a barra.

Não poderia também deixar de agradecer aos meus “chefes” Josuá Neto e Tâmara Souza, pela compreensão nessa reta final. É muito bom

contar com pessoas do BEM como vocês.

Ao retornar ao GRECOM, que grata surpresa conhecer Mônica Karina

Santos Reis e me afinar com ela em tantas coisas. A vida nos uniu e nossa

amizade floresceu (como ela mesma diz). Mônica me faz pensar na sintonia da amizade.

Ali no GRECOM reencontrei a doce Louise Gabrielle, agora uma mulher de sucesso e amiga para todas as horas. Louise foi a pessoa de grande sensatez

que conheci naquele grupo. Nas crises, suas soluções e partilha traziam a

calmaria. Como ela foi e é importante para suportarmos aquela pressão. Ela

divide, compartilha sua força conosco.

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Na sequência, vieram os amigos de trabalho Adeilton, Alain, Lídia,

Gledson, Jair, Luan, Tatiana, Helry, Fagner. Agradeço a cada um pelo que aprendi de forma tão única. Agradeço pelas viagens, risadas, ombros amigos

multiplicados e pelas angústias divididas. Vocês para mim são os

aprendizados que a vida gotejou ao longo desses quatro anos.

Agradeço pelo empurrãozinho da minha bifurcação, durante a

qualificação de doutorado, a Margarida Knobbe. Competência te define,

Margô. Agradeço ainda a Paulinha Silveira, que na Itália, e Heder Azevedo aqui mesmo em Natal, gentilmente colaboraram com as traduções do

resumo desta tese para línguas estrangeiras.

Minha gratidão segue agora aportando naqueles que se

disponibilizaram a deixar neste trabalho sua contribuição mais preciosa, os

testemunhos: Margarida Knobbe, Alex Galeno, Eugênia Dantas, Samir Cristino, Josineide Silveira, Thiago Severo, Paula Vanina, Silmara Marton,

Renato Figueiredo, Carlos Alberto, João Bosco Filho, Henrique Fontes,

Teresa Vergani, Francisco Lucas, Ailton Siqueira e Wani Pereira. A doação

das lembranças e do tempo de vocês ao constituírem seus testemunhos não tem preço. As histórias são, como quer Clarissa Pínkola Estés presentes.

Estou grata por tantos e preciosos presentes!

Certa vez, ouvi um palestrante que dizia “somos todos devedores uns

dos outros”. E nos caminhos desta vida minha dívida e gratidão somente

crescem para com Josineide Silveira. Nossa amizade tem atravessado décadas. Mesmo nos anos que passei distante do GRECOM, nunca nos

distanciamos. Gosto muito de ti, Josi. Para mim, você sempre representou a

generosidade, que a amizade verdadeira promove.

E Ceiça?! Meu Deus, o que dizer desta mulher?! Ela foi a responsável

por tudo, pela criação deste grupo de complexidade com características

únicas, “o melhor”, como diz Edgar Morin. Ela me acolheu, mexeu comigo, me ensinou tudo o que eu precisava saber para ser uma profissional

múltipla, que sabe dar um jeito sempre, mesmo que o resultado não esteja

previsto. Ela me recebeu duas vezes, uma por ocasião do mestrado em 2003 e agora no doutorado a partir de 2015, e em todo esse tempo estive em sua

mira. Ela me provocou muito, me queria sempre por perto. Hoje entendo

como alguém se doa tanto e nos presenteia com seu bem querer. Eu confiei no seu afeto e perseverei, e isso foi a melhor coisa que poderia ter

acontecido. Venci muitas vezes suas implicâncias com afeto, e ela me

respondeu com seu cuidado.

A todos vocês dedico a letra desta canção:

AMIGO É CASA

Zélia Duncan

Amigo é feito casa que se faz aos poucos

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e com paciência pra durar pra sempre

Mas é preciso ter muito tijolo e terra preparar reboco, construir tramelas

Usar a sapiência de um joão-de-barro

que constrói com arte a sua residência

há que o alicerce seja muito resistente que às chuvas e aos ventos possa então proteger

E há que fincar muito jequitibá

e vigas de jatobá e adubar o jardim e plantar muita flor, toiceiras de resedás

não falte um caramanchão pros tempos idos lembrar

que os cabelos brancos vão surgindo Que nem mato na roceira

que mal dá pra capinar

e há que ver os pés de manacá cheínhos de sabiás

sabendo que os rouxinóis vão trazer arrebóis

choro de imaginar!

pra festa da cumeeira não faltem os violões! muito milho ardendo na fogueira

e quentão farto em gengibre

aquecendo os corações A casa é amizade construída aos poucos

e que a gente quer com beira e tribeira

Com gelosia feita de matéria rara e altas platibandas, com portão bem largo

que é pra se entrar sorrindo

nas horas incertas sem fazer alarde, sem causar transtorno

Amigo que é amigo quando quer estar presente

faz-se quase transparente sem deixar-se perceber

Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar, se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer

Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha

e oferece lugar pra dormir e comer Amigo que é amigo não puxa tapete

oferece pra gente o melhor que tem e o que nem tem

quando não tem, finge que tem, faz o que pode e o seu coração reparte que nem pão.

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RESUMO

O objetivo da pesquisa que originou esta tese foi escrever uma da história do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM/UFRN, a partir da

complementaridade entre as narrativas de várias testemunhas que fizeram

no grupo sua formação em pós-graduação. Com 25 anos de existência, esta

é uma base de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), vinculada ao Departamento de Fundamentos e Políticas da

Educação e ligada, formalmente, aos Programas de Pós-Graduação em

Educação e em Ciências Sociais. Trata-se de um grupo que transcende seu espaço físico onde se localiza e que experimenta e aprende com os mais

variados domínios dos saberes. As pesquisas desenvolvidas no GRECOM

estão sintonizadas com a construção de uma ciência não redutora que não nivela, mas permite que o sensível opere no lugar da técnica solitária e

linear. Trabalhando na perspectiva da religação dos saberes, o GRECOM

extrapola os limites físicos da UFRN ao longo de sua história, se tornando uma densa experiência de complexidade para a América Latina. No Brasil, é

o primeiro ponto da Cátedra Itinerante UNESCO Edgar Morin para o

Pensamento Complexo. É um espaço da religação, no qual se opera uma

regeneração do sujeito pesquisador, que passa a ter a oportunidade de fazer ciência com prazer, partilha e paixão. Como historiadora, defendo a tese de

que, para se construir uma história plural, é preciso abdicar do lugar de

metatestemunha para abraçar um conjunto de experiências que estão na base de formação do grupo e são o suporte para os documentos de várias

naturezas que se encontram em seu acervo. Para tanto, busquei nos autores

Jean-Philippe Pierron, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jacques Le Goff e Michel Serres os argumentos para falar sobre Testemunho, História, Narrativa e

Ciência, bem como nas obras produzidas no GRECOM as pistas para a

construção desta história. Para compor meu conjunto de testemunhos acerca do grupo, ouvi os parceiros intelectuais, pesquisadores e ex-

estudantes de pós-graduação que fizeram ali seu processo de formação. Fiz

isso por meio de entrevistas e de depoimentos escritos.

Palavras-chave: Testemunho. Narrativa. História. Grupo de Estudos da

Complexidade.

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ABSTRACT

The main goal of this thesis is to write a new snippet in the history of the

complexity study group – GRECOM/UFRN, based on the complementarity

between the narratives of several witnesses who did in the Group their postgraduate training. With 25 years of existence, this is a research from

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), linked to the

Fundamental and Education Policies Department and, formally linked to the Education and Social Sciences Post-graduation programs. It is a group that

transcends its physical space in order to experiment and learn with the

various fields of knowledge. The researches developed at GRECOM are aligned with the construction of a non-reducing and non-leveling science,

but a science that lets sensitive operate instead of a solitary and linear

technique. Working with the perspective of new links for knowledge, GRECOM goes beyond UFRN’s physical limits throughout its history,

becoming a solid experience for the Complexity in Latin America. In Brazil, it

is the first point for the itinerant chair UNESCO Edgar Morin for the

Complex Thinking. This reconnection space is where happens the regeneration of the researcher, that starts to have the opportunity to make

science with pleasure, passion and sharing. As a historian, I defend the

thesis that, for the building of a plural history, we need to give up the place of witness and open space for a set of experiences that are in the formation

base of the group, and that are the support for the countless types of

documents we can find on its collection. Therefore, I’ve searched in the writers Jean-Philippe Pieron, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Jacques Le Goff

and Michel Serres the elements to discuss about Testimony, Narrative,

History and Science, as well as in the study works produced at GRECOM, to find the clues to build this history. To compose the set of testimonies about

the group, I have tried to listen the intellectual partners, researchers and

post-graduation ex-students that had here their own formation process. To

get that, I used interviews and written testimonials. In addition to these materials, photographic images were used to complement the historical

records regarding the group.

Keywords: Testimony. Narrative. History. Complexity Study Group.

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RESUMÉN

El objetivo de esta tesis es escribir un nuevo fragmento de la historia del

Grupo de Estudios de la Complejidad - GRECOM / UFRN, a partir de la

complementariedad entre las narrativas de varios testigos que hicieron en el Grupo su formación en posgrado. Con 25 años de existencia esta es una

base de investigación de la Universidade Federal do Río Grande do Norte

(UFRN) vinculada al Departamento de Fundamentos y Políticas de la Educación y ligada formalmente a los Programas de Postgrado en Educación

y en Ciencias Sociales. Se trata de un grupo que trasciende su espacio físico

donde se ubica y que, experimenta y aprende con los más variados dominios de los saberes. Las investigaciones desarrolladas en el GRECOM están

sintonizadas con la construcción de una ciencia no reductora que no nivela,

pero permite que el sensible opere en lugar de la técnica solitaria y lineal. Trabajando en la perspectiva de la reconexión de los saberes el GRECOM

extrapola los límites físicos de la UFRN a lo largo de su historia,

convirtiéndose en una densa experiencia de complejidad para América

Latina. En Brasil es el primer punto de la Cátedra Itinerante UNESCO Edgar Morin para el Pensamiento Complejo. Este espacio de la religación, en el que

se opera una regeneración del sujeto investigador, que pasa a tener la

oportunidad de hacer ciencia con placer, compartir y pasión. Como historiadora, defiendo la tesis de que, para construir una historia plural, hay

que abdicar del lugar de meta testigo para dar lugar a un conjunto de

experiencias que están en la base de formación del Grupo y son el soporte para los documentos de varias naturalezas que se encuentran en su acervo.

Para tanto busqué en los autores Jean-Philippe Pieron, Edgar Morin, Ilya

Prigogine, Jacques Le Goff y Michel Serres los alimentos para hablar sobre Testimonio, Narrativa, Historia y Ciencia, así como en las obras producidas

en el GRECOM las pistas para la construcción de esa historia. Para

componer mi conjunto de testimonios acerca del grupo, busqué oír a los

socios intelectuales, investigadores y ex-estudiantes de postgrado que hicieron allí su proceso de formación. Lo hice por medio de entrevistas y de

testimonios escritos. Además de estos materiales, se utilizaron imágenes

fotográficas que complementan los registros históricos con respecto al grupo.

Palabras clave: Testimonio. Narrativa. Historia. Grupo de Estudios de la

Complejidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

NARRATIVA, TESTEMUNHO E HISTÓRIA 22

NARRATIVA QUE SE FAZ CIÊNCIA, QUE SE FAZ HISTÓRIA 25

DO TESTEMUNHO 37

ELES ESTAVAM LÁ! POLIFONIA DO TESTEMUNHO 50

EU TAMBÉM ESTAVA LÁ – MEU TESTEMUNHO 163

REFERÊNCIAS 175

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INTRODUÇÃO

Histórias revelam, repetidamente, a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem para obter êxito nas tarefas mais árduas. Elas fornecem todas as instruções essenciais que precisamos para ter uma vida útil, necessária e irrestrita, uma vida significativa, uma vida que vale a pena ser lembrada.

Clarissa Pinkola Estés

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O abismo causa vertigens até no alpinista mais habilidoso, que do

alto contempla o risco. Esta tese apresenta a experiência de um grupo de

pesquisa que vive uma proposta de reforma universitária que extrapola os

limites da ciência da fragmentação, de modo semelhante a quem está

disposto a gozar do prazer e do risco de fazer um piquenique num local

improvável, à beira de um abismo. Trata-se do Grupo de Estudos da

Complexidade (GRECOM/UFRN), reconhecido institucionalmente na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no ano de 1992, como uma

base de pesquisa ligada aos Programas de Pós-Graduação em Educação e

em Ciências Sociais, e internacionalmente como o primeiro ponto da Cátedra

Itinerante Unesco Edgar Morin para o Pensamento Complexo (CIUEM), com

sede na Universidade El Salvador - Argentina.

Participar desta reforma universitária representa para o GRECOM

estar comprometido com a produção de uma ciência da inteireza. O

GRECOM vai muito além de ser um espaço físico institucionalizado de

pesquisas onde se reúnem orientadores, intelectuais e alunos. O grupo

alcançou a maturidade dos seus 25 anos, neste ano de 2018, com uma vasta

produção científica no âmbito das ciências da complexidade, transformando

o “trabalho acadêmico numa estética do pensar com prazer, partilha e

paixão, mesmo consciente de que a crueldade, a competição e o desencanto

estão enraizados no mundo universitário” (ALMEIDA; KNOBBE, 2003, p.9).

A produção intelectual do GRECOM propõe a religação da poesia com

a prosa, da cultura científica com a cultura humanística e com os saberes

da tradição, promovendo a auto-organização do pesquisador por meio de sua

implicação no conhecimento. Os trabalhos desenvolvidos se movem pelo

método como estratégia, de acordo com a concepção de método complexo de

Edgar Morin (MORIN, MOTA e CIURANA, 2007). Para operar na lógica de

uma nova estética do pensamento, o rigor e a sensibilidade se tornam

princípios indissociáveis. O grupo tem construído um espaço no campo das

ideias que tem sido possível exercitar uma reforma do pensamento, com

vistas a uma reforma da universidade.

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Ao longo de sua história, tornou-se um lugar de resistência aos

velhos paradigmas da ciência, aos processos de “cretinização” e

“fragmentação do conhecimento” (MORIN), propondo uma politização do

pensamento. Apesar do pequeno espaço físico onde se localiza, ocupando

alguns poucos metros quadrados do Centro de Educação/UFRN, sala 14, a

convivência entre pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento

faz do GRECOM um espaço mestiço e polifônico, irradiador de ideias e

afetos. Ali, pedagogos, advogados, biólogos, enfermeiros, filósofos, geógrafos,

cientistas sociais, nutrólogos, físicos, historiadores, músicos, dentre outros

profissionais, sentam à mesma mesa para dialogar sobre a ciência numa

experiência de troca de saberes, numa ciência gestada sem fronteiras. Tudo

isso supõe risco, ousadia e construção coletiva. No GRECOM, acredita-se

que a pesquisa deve ultrapassar programas cognitivos pautados pelas

monoculturas da mente (Vandana Shiva), abrindo caminhos às estratégias

de pensar alimentadas pela dialógica e complementaridade entre

conhecimentos, com vistas a uma ecologia das ideias e da ação, conforme

sugere Edgar Morin.

Pioneiro no Brasil nas pesquisas acerca das ciências da

complexidade, o GRECOM promoveu o intercâmbio de ideias com vários

intelectuais brasileiros e estrangeiros, como: Edgar Morin, Edgard de Assis

Carvalho, Henri Atlan, Ubiratan D’Ambrósio, Teresa Vergani, Lia Diskin,

Norval Baitello Júnior, Leonardo Boff, Boris Cyrulnik, Dietmar Kamper,

Daniel Munduruku, Emílio Roger Ciurana, dentre outros.

Para se ter uma ideia da ousadia e do alcance das atividades do

grupo, em setembro de 2010 o GRECOM realizou na Cidade de Natal a II

Reunião da Cátedra Itinerante Unesco Edgar Morin para o Pensamento

Complexo (CIUEM) e promoveu a Conferência O Destino da Humanidade,

proferida por Edgar Morin, na Praça Cívica do Campus da UFRN, para mais

de 8 mil pessoas. Que outro grupo foi capaz de levar à Praça Cívica do

Campus da UFRN, em plena sexta-feira à noite, um quantitativo de milhares

de pessoas para uma conferência de um intelectual estrangeiro?

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A trajetória do GRECOM começou a ser construída bem antes.

Nascido em 1992 como bifurcação do Grupo de Estudos da Seca, o Grupo

Morin transformou-se em 1994 no Grupo de Estudos da Complexidade. Na

verdade, uma pesquisa anterior pode ser identificada como o casulo do

Grupo Morin e do GRECOM. Trata-se da pesquisa iniciada em 1986 na

região da Lagoa do Piató e que, até hoje, constitui-se num eixo temático

importante para o grupo. Ao longo de 32 anos foi se consolidando o eixo de

pesquisa “Conhecimento Científico e Saberes da Tradição”, o qual dá origem

a uma constelação de trabalhos acadêmicos, como monografias,

dissertações, teses, livros, artigos, eventos, textos jornalísticos. Na região de

Assú/RN, dois projetos de extensão merecem destaque: o Projeto Estaleiro

de Saberes, dedicado a formação de professores, e a edificação da Casa da

Memória do Piató Chico Lucas.

Merece destaque ainda um outro projeto de extensão, dessa vez no

Parque das Dunas de Natal, a Casa Mãe-Terra. Inaugurada no ano de 2003,

a Casa é uma homenagem à maternidade do planeta que nos gesta, pariu e

sustenta. A proposta de criação da Casa Mãe-Terra uniu os saberes da

tradição de um mestre taipeiro e os saberes científicos de um arquiteto.

Ambos trabalharam o esqueleto de varas e a carne de barro para dar forma a

uma mulher de pernas abertas, de cócoras a parir. Essa mulher está a

saudar a todos que passeiam pelo antigo Bosque dos Namorados, hoje

Parque das Dunas, e a nos relembrar da nossa ligação com o planeta, Casa e

Mãe de todos nós. A construção da Casa Mãe-Terra se mostra como uma

prática exitosa da religação da Cultura Científica, Cultura Humanística e

Saberes da Tradição. Os frutos desses trabalhos não existiriam hoje se não

houvesse quem acreditasse de forma tão inteira nesse diálogo entre a

Ciência e os Saberes da Tradição. Para Moura (1992, p. 24),

a ciência é apenas uma das formas de conhecimento do mundo e, de sua transformação, não decorrerá necessariamente a mudança profunda das formas de pensar, a não ser que assuma também ela a coordenação do inadiável intercâmbio entre saberes distintos.

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Michel Serres (2015) diz que todos nós precisamos de uma narrativa

para existir. Se é assim, o GRECOM passou a ter existência com mais

essência pelas páginas das publicações que trazem fragmentos de sua

história. No ano de 2003, em parceria com Margarida Maria Knobbe, a

coordenadora do grupo, Conceição Almeida, escreveu Ciclos e Metamorfoses:

uma experiência de reforma universitária, livro publicado pela Editora Sulina

e com edição esgotada. Anos mais tarde, em 2012, mais um fragmento

colaborou com o registro dessa história, o livro GRECOM – 20 anos:

incertezas, apostas, metamorfoses revela a trajetória dos sete anos seguintes,

quando então o GRECOM completava duas décadas de vida. Outras

iniciativas para colaborar com esse registro histórico foram feitas, a exemplo

do Catálogo de teses e dissertações, criado por Bruna Hetzel e

permanentemente atualizado. No ano de 2017, a então doutoranda de pós-

graduação em Educação Mônica Karina Santos Reis escreveu a tese

Reinventar a universidade: um ensaio sobre o Grupo de Estudos da

Complexidade (GRECOM/UFRN). Nela, Mônica trouxe mais uma colaboração

para o registro dessa história. Como bibliotecária de formação, Mônica criou

a catalogação de um vasto material que incluiu todo o acervo documental

disponível no GRECOM, composto por relatórios de pesquisa, projetos,

livros, catálogos, monografias, dissertações, teses, fotografias, cartazes,

banners, convites e demais registros das atividades desenvolvidas. A tese

defendida por Mônica é a de que o GRECOM é uma miniuniversidade, se

apoiando para isso no conceito de modelo reduzido de Claude Lévi-Strauss

(ALMEIDA; REIS, 2018).

Em mais de duas décadas de existência, o GRECOM tornou-se celeiro

de muitas histórias, obras, projetos, percepções de mundo, tornando-se um

lugar vivo, em cada parte do ambiente físico ou do espectro intelectual. Vi

nos argumentos de Morin, nos escritos de Para um Pensamento do Sul

(2011), a resistência na qual o GRECOM se empenhou por décadas. Vi que

Morin fala das “reservas antropológicas da condição humana; [das]

capacidades criativas de regeneração da diversidade cultural; [dos] estilos de

viver mais próximos da dinâmica da natureza estendida [...]”. Reis (2018, p.

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114) explicita esse papel de incubadora de devires com o conteúdo atitudinal

do grupo:

As dinâmicas vivenciadas pelos pesquisadores que aderem ao sobrenome GRECOM, conforme expressão criada por João Bosco Filho, o modo como a fundadora e coordenadora do grupo conduz as orientações e a realização das pesquisas, a responsabilidade em se constituir como uma incubadora e propiciar o nascimento de grupos na UFRN e em várias outras instituições públicas de ensino superior no país são sinais de vitalidade, da atualização, do engajamento, da ampliação e da superação do ideário humboltiano de universidade.

Clarissa Pinkola Estés, na obra O dom da história (1998, p. 7) me

confere a pista de que estou no caminho certo ao contribuir com mais um

fragmento dessa narrativa histórica: “considera-se que uma sequência de

histórias proporciona um insight mais profundo do que uma história”. Para

tal empreendimento, optei por voltar ao meu lugar de origem, afastada já há

alguns anos da pesquisa, e reviver o papel de historiadora. Meu desejo aqui

não foi realizar a história cronológica ou o arquivamento documental do

grupo. Sabendo que a história é muito mais do que transformar os

documentos em monumentos (Le Goff), acabei por mudar de rota, pois não

concebo mais a História como uma “coletora de vestígios”; não como resto,

mas como uma concepção. Não gostaria de repetir os grandes feitos, mas

gostaria de conferir lugar ao pitoresco, à história das necroses, das

inconstâncias, constâncias, a história das pequenas alegrias, dos encontros

e desencontros desse grupo por meio de experiências muito particulares de

quem esteve lá e pôde testemunhar isso.

A história aqui adere aos pressupostos de sua natureza descontínua,

conforme Gaston Bachelard. Longe da obsessão pela exatidão da origem, do

encadeamento lógico e cronológico das narrativas e dos encaixes de causa e

efeito entre os acontecimentos narrados, me aproximo mais da dinâmica dos

fenômenos em suas oposições, complementaridades, turbulências, tensões,

desvios, bifurcações e fluxos indeterminados. Valorizo a história descartada

em parte pelos historiadores, aquela que ganhou status de um gênero

literário, uma arte ao mesmo tempo em que uma ciência. Para a história do

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GRECOM não irei contribuir com mais do que um fragmento, por ter

consciência da incompletude dos fenômenos, por convicção de que este

fragmento é suficiente em si mesmo, ele se basta.

Novos fragmentos ainda virão, certamente escritos pelo mesmo desejo

que me moveu: saber e deixar como presente uma história. Dessa

perspectiva, o fragmento da história do grupo apresentado nesta tese

equivale a reconhecer na parte o todo em sua abertura e impoderabilidade.

Porém, é importante dizer que o GRECOM não se configura como uma

fábrica de bons intelectuais; não trabalha a partir de uma matriz de

pesquisador zerada; jamais aceita tais reducionismos, porque opera

permitindo o diálogo com as riquezas que cada um já traz consigo.

Para dar conta desse universo, utilizo como meu operador cognitivo o

TESTEMUNHO, ele que é narrativa, e, nas palavras do filósofo Jean-Philippe

Pierron (2010), a “carne do mundo vivo”. Sua obra Transmissão: uma

filosofia do testemunho foi um divisor de águas para minha pesquisa, que

vinha operando com o documento de forma repetitiva. Dessa forma,

testemunho se faz narrativa e narrativa se faz ciência histórica,

ultrapassando o velho paradigma que separava o objeto do meio e, portanto,

ciência de narrativa. Ora, é Prigogine quem assevera que a grande

característica de inovação nas ciências a partir das descobertas da Física

Quântica é a “aceitação do elemento narrativo como parte constituinte da

história”. Descobrimos hoje o elemento narrativo dentro do universo em

todos os níveis: na cosmologia e na biologia molecular, e também na cultura

humana” (PRIGOGINE, 2009, p.79).

Considerando que esta tese foi escrita no âmbito do Grupo de

Estudos da Complexidade, o elemento da narração na construção científica

não poderia se ausentar, uma vez que a narrativa é, como quer Prigogine,

um elemento importante nas ciências da complexidade. Pierron me fez

perceber, como historiadora, que eu jamais poderia ser uma

metatestemunha, ou seja, eu jamais poderia falar do conjunto das

experiências que estavam na base e eram suporte para os documentos de

várias naturezas que se encontram no acervo do GRECOM.

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Assim, esta tese traz um componente novo, no qual figura aquilo que

foge à descrição. Decidi, então, construir a história desse grupo a partir da

complementaridade entre as narrativas de várias testemunhas que fizeram

ali sua formação em pós-graduação. Conforme Pierron (2010, p. 142), a

história narrada, formada em grande parte pelo testemunho, opera um

trabalho de memória, daquilo que lembra e do que esquece, ambos de

extrema relevância no processo. “A dialética da cientificidade do relato

histórico e da oficialidade do que uma cultura leva a crer ou quer acreditar

elabora um movimento crítico contínuo”. Nesse sentido, “o espelho do

passado não devolve forçadamente a imagem que se esperava”.

Ao invés, pois, de anunciar uma pergunta norteadora, como é comum

numa certa forma de conceber a produção da ciência, afirmo aqui uma

questão ansiogênica que me tatua: o TESTEMUNHO na modelagem da

narrativa colabora com a escrita da história do Grupo de Estudos da

Complexidade (GRECOM/RN) por quem ali vivenciou a experiência de uma

forma singular de fazer ciência. O GRECOM é um acontecimento, tem

produzido uma mudança na ordem das coisas. Minha tese objetiva,

portanto, transformar em texto o que é a dinâmica de um acontecimento,

por meio do testemunho na concepção da ciência como narrativa, como

construção humana. Mesmo considerando, como Pierron, que a testemunha

não tem nada de novo a dizer, o que me interessa é o modo de dizer, o

sentido que ela confere à sua narrativa. É necessário pensar a estética do

testemunho e seu alcance, essa noção tão pouco discutida

epistemologicamente pela ciência, e por vezes ausente na formação do

historiador.

A maior parte das palavras acompanha nosso cotidiano sem que nos

preocupemos muito com o sentido que elas carregam. Porém, algumas

palavras são pronunciadas ou ouvidas numa situação-chave que nos marca.

Foi assim com a palavra testemunho para mim. Na ocasião da minha

qualificação de doutorado, a professora Margarida Maria Knobbe me

ofereceu uma possibilidade de sair da repetição e trazer um desafiante

elemento novo para a minha tese, o testemunho, pela obra de Jean-Phillipe

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Pierron. Ao iniciar a leitura da obra e vê-lo falar sobre testemunho e

testemunha, me reportei quase que automaticamente às minhas orações, em

especial ao terço da misericórdia. Para aprender a rezar aquele terço, eu

acompanhava por meio de um CD no qual o locutor narrava uma meditação

de Jesus, na passagem pelo Jardim das Oliveiras, o Getsêmani. Anos mais

tarde, descobri que o texto era de autoria de uma mística cristã – Vassula

Ryden:

Ó Getsêmani! Que revelaste tu senão medos, angústias, traições e abandonos! Getsêmani, tu tiraste aos homens toda a coragem. Tu albergaste, em teu ambiente, dominado pelo silêncio, as Minhas Angústias, por toda a Eternidade. Getsêmani, que tens tu para revelar que não tenhas já revelado? No silêncio da Santidade, tu foste testemunha da traição ao teu Deus; tu deste testemunho de Mim [...] Ó Getsêmani, testemunha do Atraiçoado, testemunha do Abandonado: levanta-te, testemunha e dá testemunho! (grifo meu)

O texto invoca a testemunha e seu testemunho com tamanha ênfase,

que naquele momento o jardim foi personificado. Naquele instante, a terra e

a vegetação eram chamadas a sair do seu estado inanimado para

testemunhar a agonia do Cristo. Revela Pierron (2010) que a própria acepção

do termo testemunho liga-se ao verbo dar e, nesse sentido, o significado

atribuído ao ato de dar remete a devolver aquilo que foi recebido, “restituir

aceitando uma desapropriação”. Nesta pesquisa, nossas testemunhas gozam

de outro estado mais propício à manifestação de seu testemunho, são eles

homens e mulheres, mais jovens ou mais maduros, que acompanharam a

história do grupo ou estiveram ali por um determinado tempo.

O testemunho e os acontecimentos estão imbricados. Juntos, eles

constroem a história. Considerando que a historicidade, conceito oriundo da

filosofia da história, apresenta a dinâmica humana de apreensão,

interpretação e transformação das coisas do mundo, é ela que permite ao

historiador a transposição da unicidade para a polifonia. Aqui novamente

vale o alerta de Bachelard (1977), ao criticar uma versão continuísta da

história, ele expõe o cuidado para que sejam relativizados os pormenores que

desfiguram a sequência dos acontecimentos. Considerando que a

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historicidade permite olhares, interpretações e posicionamentos dos mais

variados acerca do fato histórico, me pergunto: não seria o testemunho o

operador capaz de mostrar ao mundo as mais variadas interpretações para

um fenômeno? Não seria ele a chave possível para ter inúmeras “verdades”

sobre o mesmo fato? Nas palavras de Pierron (2010), o testemunho religa,

sutura informações do mundo e sua história (escrita e vida, texto e ação,

narratividades e exterioridade). Ele nos permite assistir o que já não se pode

ver. Sua relação com o passado poderá lhe conferir a força de um indício, e

esse se configura em matéria-prima do trabalho do historiador.

Para dar conta do desejo de escrever a história do GRECOM, iniciei

esta pesquisa me debruçando sobre o extenso acervo consolidado no grupo,

mas foi somente na Qualificação do Doutorado que meu método começou a

se desenhar com mais clareza. Em conjunto com minha orientadora, fizemos

uma listagem de narradores que contemplasse de certa forma a dispersão

geográfica, de áreas de conhecimento, e, por fim, que abrangesse uma escala

temporal, a mais ampliada possível, tendo em conta que o GRECOM

completaria 25 anos em 2017. A partir desses três critérios (espacial, de área

de conhecimento e temporal) chegamos até as testemunhas aqui presentes.

Elas se constituem, portanto, em 16 narradores selecionados para compor

esse caleidoscópio e expressaram a dinâmica viva da produção, da pesquisa

e da ciência nesse grupo. Convidei, então, as testemunhas para narrar,

problematizar, expor e avaliar o tempo em que estiveram imersas no

GRECOM. As críticas, os problemas, os entraves e as necroses foram

também, certamente, partes importantes expostas por elas. Cada um

escreveu sua narrativa a partir da sua própria organização do pensamento,

deixando de falar de alguns itens e recrutando outros inesperados.

Apresentar a história do Grupo de Estudos da Complexidade nada

mais é do que relacionar o fragmento e o contexto, o local e o global e utilizar

da metáfora da arte para falar de ciência no século XXI, como aponta Ilya

Prigogine. É trazer à tona o universo da complexidade representado por uma

base de pesquisa universitária. As pesquisas pontuais, alimentadas pela

perspectiva multidimensional e atentas à dialógica local-global e particular-

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universal têm um papel importante a desempenhar nessa direção. Mais do

que isso, por vezes são justamente as pesquisas pontuais a matriz à qual se

recorre, permanentemente, para dar sustentação a reflexões mais ampliadas

da realidade. Além do mais, recruto a citação de Almeida (2002, p. 42) para

advertir sobre o que esperamos de um trabalho como esse e o que

encontraremos, considerando que o resultado é diferente para cada um que

lê: “ao lado da procura do sentido, do porquê, do como funciona, do onde

começou, caminham respostas provisórias e prováveis, nunca respostas

inequívocas, absolutamente satisfatórias, completas e incontestáveis”.

A tese está estruturada em duas partes, sendo a primeira dedicada a

discutir a implicação do testemunho na narrativa e a narrativa na história.

Neste capítulo, avançamos nas noções de Narrativa, Testemunho e História

sob a luz de teóricos como Gaston Bachelard, Jacques Le Goff, Ilya

Prigogine, Michel Serres, Clarissa Pinkola Estés, Edgar Morin e, sobretudo,

Jean-Philippe Pierron. Na segunda parte, intitulada Eles estavam lá!

polifonia do testemunho, trago depoimentos de parceiros e ex-orientandos do

GRECOM. Assim como Almeida (2012, p. 11), neste trabalho, eu também

optei pela narrativa exotérica, aquela “capaz de ser compreendida por

leitores de várias áreas do conhecimento”.

Para finalizar, recruto uma imagem significativa para expressar a

dinâmica do GRECOM, o ouroboros, a cobra que engole a própria cauda

(imagem presente na capa desta tese). Quando retornei ao grupo em 2015,

percebi que a simbologia da borboleta descrita como metáfora para o

GRECOM, agora dividia espaço com a imagem da cobra. A alegoria nos

remete ao renascimento, uma vez que a cobra se renova, troca de pele, se faz

em novo ser. O GRECOM se refaz a cada ano, a cada nova década, seja nas

pessoas, seja nas propostas. Nesse sentido, a cobra que engole a própria

cauda, como ideograma da alquimia, representa o círculo que confere

continuidade, vida e morte, eterno retorno. “Serve assim à representação

mítica do tempo infinito, cíclico e universal” (CHEVALIER; GHEERBRANT,

1996, p. 922).

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NARRATIVA, TESTEMUNHO E HISTÓRIA

De todos os presentes que as pessoas dão umas às outras, os mais significativos e duradouros são o amor simples e a história.

Clarissa Pinkola Estés

A ciência não é adversa à onipresença do testemunho. A maioria das teorias que um cientista aceita, ele o faz devido ao que os outros dizem.

Peter Lipton

Minha alma e nossa história nascem ultrapassando os limiares do escoamento.

Michel Serres

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Me identifico com Clarissa Pínkola Estés, psicanalista junguiana que

faz uso de histórias da tradição de vários países como um artifício para

refletir sobre a condição humana. Como ela, concebo a história como um

presente. Nesse tom, a primeira parte da tese apresenta o panorama

discursivo e teórico da epistemologia do testemunho, mantendo a discussão

focada em seu papel na narrativa e na história. Assim como Clarissa, me

acompanha nesta jornada o medievalista francês Jacques Le Goff,

representante da Ecolle de Analles, que contemplou o espaço para uma

história dos homens e para uma história sem homens, com sua discussão

acerca do conceito de história e memória. Mesmo definindo “duas histórias”:

uma construída pela memória coletiva (falseada e mítica) e outra

historiadores (devendo corrigir as falhas da história coletiva), a tradição e o

falseamento podem ser identificados tanto em uma como em outra (NEVES,

2003). Edgar Morin, considerado um dos principais pensadores

contemporâneos e um dos principais teóricos da complexidade, dentre suas

várias formações ele também se fez historiador; os filósofos Michel Serres,

que nos apresenta o real e o imaginário, a ficção e a ciência na narrativa;

Jean-Philippe Pierron, com sua filosofia do testemunho, e Gaston Bachelard,

com sua crítica à continuidade da história; além do “poeta da

termodinâmica” Ilya Prigogine, discutindo a ciência como narrativa. Longe da

crença fragmentadora que só a historiografia tem “autorização” para falar de

História, optei por unir um físico-químico, três filósofos, dois historiadores e

uma psicanalista em torno da discussão de como o testemunho por meio da

narrativa se faz história.

Contrariamente aos usos e abusos da história como elemento de

poder e de verdade, me uno a Clarissa por acreditar que o dom da história

traz alguns aspectos essenciais:

[...] que no mínimo reste uma criatura que saiba contar a história e que, com esse relato, as forças maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança sejam continuamente invocadas a se fazerem presentes no mundo. (ESTÉS, 1998, p. 9).

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Nesse diapasão, encantada com as histórias recontadas por Clarissa,

me pergunto: por que me tornei historiadora? Percebo que gostaria de ser

uma “cantadora” como ela, que pudesse contar as histórias do meu povo e

que isso tivesse a serventia de apenas fazer pensar. E não seria esse o ofício

do historiador, fornecer ao mundo senhas, instruções que podem renovar e

curar? Sigo em busca, como quer Pierron (2010), da “sutura personalizada”

que o testemunho promove entre a informação do mundo e sua história

singular.

Nesta tese, em que a história do Grupo de Estudos da Complexidade

se dá pelo viés do testemunho, reitero que é só mais uma forma de contar

esta história. Assim, sigo no meu ofício de historiadora, ouvindo as várias

vozes vindas das pessoas que viveram essa experiência de complexidade,

vendo as imagens e documentos que complementam esse material e que não

fazem sentido algum se forem tratados pela unicidade de apenas um locutor.

Acredito na polifonia do testemunho para compor a história e transformo

suas palavras e gestos em documentos para meu ofício, afinal, o “fato

histórico, que não é um objeto dado e acabado”, resulta da construção do

historiador, assim como o documento “não é um material bruto, objetivo e

inocente” (LE GOFF, 1996, p. 9).

Após anos distante do ofício de professora de história, começo uma

viagem de retorno ao meu lugar de origem. Assim como acredita Serres

(2015, p. 28), “cada viagem em que cremos avançar de fato retorna, ou

retrocede o caminho”. E se “só existe o que é dito” (p. 33), volto ao GRECOM

para dizê-lo. É preciso narrá-lo para que ele ocorra. Tudo parte da narrativa.

A história é narrativa, o testemunho e a ciência também. É possível conceber

essas três noções pela lógica das bonecas Matrioskas. Assim, da narrativa

nasceu o testemunho e do testemunho nasceu a história. Ilya Prigogine

(2002, p. 26) constrói esse desmembramento por meio de uma alusão mais

ampliada que vai da história do universo até nossa história singular: “há

uma história cosmológica, no interior da qual há uma história da matéria,

no interior da qual há uma história da vida, na qual há a nossa própria

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história”. Finalmente, podemos dizer que existe uma infinidade de histórias

que se encaixam umas dentro das outras.

Porém, essas histórias precisam deitar no papel, e escrever é uma

arte que exige do solitário escriba um esforço voraz para transferir o que está

suspenso, nas ideias e no tempo, para um lugar de acesso aos sujeitos do

presente e os do futuro. A escrita mudou de tal forma o destino da

humanidade, que um dia a Ciência ousou dividir a história do mundo em

antes (pré-história) e depois (história) de sua invenção. As palavras

agarraram-se às pedras, aos papiros, aos papéis, aos pergaminhos, aos

logaritmos da informática na esperança de deixarem a história

materializada.

Minha formação em história revela minhas grandes paixões: narrar,

desvendar mistérios e escrever solitariamente. Como posso eu, historiadora

de formação, escrever uma tese que não seja uma boa narrativa? Toda

história começa com o desejo de lembrar e de fazer lembrar, de guardar, no

sentido de fazer-se guardiã. Quando uma história é contada, estranhamente

ela passa a habitar a mente do historiador, buscando o suporte que lhe dará

corpo. Sim, muito antes das palavras irem ao papel, elas povoam, dialogam

entre si, criam estratégias e compõem uma narrativa das coisas do mundo.

Todas as coisas têm ou podem ter história, apenas algumas delas ainda não

foram contadas.

NARRATIVA QUE SE FAZ CIÊNCIA, QUE SE FAZ HISTÓRIA

A narrativa acompanha o ser humano desde pelo menos o

desenvolvimento da linguagem – seja ela pictórica, falada ou escrita – e do

reconhecimento de sua noção de memória. Ela permitiu que a polifonia

tomasse o lugar do silêncio ensurdecedor e isolador. Esse silêncio era até

então rompido apenas pelos sons da natureza, numa época em que nos

diferenciávamos de outros seres por questões únicas de natureza adaptativa.

Não havia supremacia para nos distinguir dos outros animais. A linguagem

nos retirou do anonimato e da solidão, e nos fez existir. A partir dela,

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pudemos pensar no tempo e na sua relação com o espaço, gerando o

acontecimento. Por ela e com ela, desenvolvemos e disseminamos todos os

tipos de saberes. Depois, saímos da comunicação oral e a colocamos no

papel, uma vez que desenvolvemos uma complexa rede de sinais para isso.

Inventamos um tempo que passou e um tempo que virá. Para aquele que

passou chamamos de passado e sobre ele criamos uma ciência para cuidar

das coisas desse tempo: a História.

Morin (2003, p. 222) observa com propriedade que “a história é

fenômeno tardio, mas muito sintomático. Não é o fundamento, mas o

revelador da humanidade. É sobre isso que devemos meditar”, diz ele.

Agimos na tensão da relação passado e presente ao mesmo tempo em que

atuamos na concepção do futuro. A história tornou-se, portanto, elemento

essencial na formação de uma identidade individual e coletiva. Porém, ela

conserva sua inexatidão; afinal, ela não depende unicamente das forças da

natureza para existir, mas essencialmente da ação humana. Em si própria,

“a história não é mais significativa que a natureza” (SPIRE, 1999, p. 105).

Quando falamos em história, devemos sublinhar que ela se apresenta

tão magnânima que esquecemos do componente da narrativa como seu

elemento formador. Falamos da história pela história, como se ela, por si só,

desse conta de explicar o destino da humanidade. Porém, se pensarmos

bem, quem o faz é a narrativa, ou melhor, a polifonia das narrativas.

Dizendo isso, não desprestigio seu papel social, muito ao contrário, pois é

ela, segundo Morin (2003, p. 203), aquilo que “[...] libera as potencialidades

criadoras e as potencialidades destrutivas do sapiens-demens”. Por isso

mesmo ela comporta racionalidade e irracionalidade, ruídos e furores,

desordens e destruições.

Para desenvolver este trabalho, fujo das categorizações que os

cientistas usam para defini-la: história-realidade, história-estudo, história

das mentalidades, filosofia da história, história oral, história social, dentre

tantas outras, e considero as palavras de Claude Lévi-Strauss, Marc Augé e

Maurice Godelier (1975 apud LE GOFF 1996, p. 21) a respeito dessas

querelas: “não sei a que chamais ciência da história. Contentar-me-ei em

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dizer simplesmente a história, e a história é algo que não podemos

dispensar, precisamente porque esta história nos põe constantemente

perante fenômenos irredutíveis”. Além de irredutíveis, acrescento: fenômenos

irreversíveis e descontínuos, como em qualquer ciência. Para Bachelard

(1977, p. 26), também “a história quer seja a de um ser vivo ou de uma

sociedade, nunca mais poderá ser reduzida à simplicidade monótona de um

tempo único”. A história não é linear, ela é circular, por vezes descontínua.

Ela não deixa de ser, ou simplesmente “foi”, ela refaz o caminho, se repete,

traz os elementos do fim e do recomeço. Assim como a simbologia do

ouroboros, a serpente que devora a própria cauda, é possível perceber que

todo caminho é lacunar, regido por retornos e princípios opostos, a exemplo

da dialógica entre civilização e barbárie, dialógica essa referida por Morin

(2003) numa mesma humanidade. São ciclos que se entrelaçam.

Pela narrativa, o homem cria a história dos acontecimentos (do

espaço-tempo) contando com a participação de um elemento extremamente

seletivo, “a memória”. Para tanto, Le Goff (1996, p. 423) esclarece:

A memória como propriedade de conservar certas informações remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Para Henri Atlan (apud LE GOFF, 1996, p.425), biólogo que estuda os

sistemas auto-organizadores:

A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento de nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto quer dizer que,

antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória.

Sem, entretanto, me aprofundar nas questões que envolvem a

memória, meu real desejo é mergulhar na narrativa e discutir a história,

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fruto da memória como ciência da narrativa. Nesse sentido, Pierre Janet

(apud LE GOFF, 1996, p. 424) “considera que o ato mnemônico [referente à

memória] fundamental é o ‘comportamento narrativo’”, pois a necessidade de

comunicação na ausência do acontecimento remete à causa do fazer

lembrar. Le Goff, em sua obra História e Memória (1996), realiza uma

arqueologia dos fatos para buscar a fronteira onde a história se torna

memória e indica que isso ocorre nas sociedades da linguagem escrita onde

os grandes feitos de reis e governantes grafados sobre a pedra desafiam o

tempo. Assim, o homem criou suas estratégias para registrar seu nome às

gerações futuras e não parou por aí, criou a ciência da história para conferir-

lhe caráter de verdade.

No entanto, tão importante quanto lembrar, é esquecer. Para contar

uma história nós abreviamos, cortamos caminhos, filtramos, fazemos

escolhas. Para exemplificar tal situação, Michel Serres (2015) recruta o

romance modernista Ulisses, de James Joyce, cuja primeira versão foi

escrita em 1922. O romance conta um dia na vida de Leopold Bloom em

Dublin. E o autor diz que para recrutar tudo desse dia, uma vida seria

insuficiente. “Ei-lo preso na armadilha da multiplicidade, no infinito do

ruído. De onde vem o dever vital do esquecimento?”, questiona Joyce, e

continua: “a narrativa de minha vida corta caminho. Ela esquece para que

eu viva” (SERRES 2015, p. 144). Nesse sentido, trabalhando com materiais

cada vez mais múltiplos e numerosos, a história esquece muito mais. Os

historiadores abreviam a história real.

É preciso estar atento a algumas noções que nos transpassa quando

pensamos em memória, narrativa e história, como ‘evolução, continuidade,

linearidade’. Somos acostumados a conceber a história como linha de tempo,

e as sociedades como progressos da ação humana. Essas noções, por serem

deveras simplificadoras, não deram conta de explicar a complexa teia de

relações que a história pode dar conta. Bachelard (1977, p.171) adverte

sobre a "emergência" progressiva da ciência. Ele chama de “continuísta” uma

vertente de estudiosos da cultura que evocam sua continuidade da cultura e,

portanto, da história de forma linear e ‘evolutiva’, “com relato contínuo dos

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acontecimentos na continuidade do tempo e dá-se insensivelmente a toda

história a unidade e a continuidade de um livro”. Entender a história por

esse viés é castrar todas as possibilidades que não estão nessa linha, mas à

margem dela, em torno e convergente a ela. É retirar de cena muitas vozes,

muitas possibilidades de retorno, de reprogramação, de reinterpretação,

marcadas principalmente pelas descontinuidades.

Serres (2015, p.145) ainda observa: “recuamos diante do

descontínuo, da infinidade e do ruído”. Para ele, há um enorme ruído

deixado por tudo que ficou para trás. Esses ruídos também ecoam para o

historiador, os quais ele tenta também esboçar. Somados aos ruídos daquilo

que ficou para trás existem outros ruídos concorrentes implantados nos

fones de ouvido, e em toda sorte de artifício que nos desconcentra e nos

aliena. Serres (2015, p. 148) diz que não sabemos mais contar nossas vidas,

segundo nossas próprias queixas, mas somente aquelas, segundo nossos

modelos, acorrentados, escravizados...

Ora, se com todas as emergências na ciência tornou-se impossível

fazer seu inventário de descoberta, “como não ver que toda linha de

continuidade é sempre um traço demasiado rústico, um esquecimento da

especificidade dos pormenores?” (BACHELARD, 1977, p.171). É impossível

ter o controle, pois aquilo que emerge não avisa, e seu alcance e repercussão

são incalculáveis. De continuidade, fiquemos apenas com a continuidade do

saber. É preciso, portanto, que a história perceba a finalidade do presente e

com suas certezas olhe para o passado, verificando as formações

progressivas das verdades. Considerando a polifonia da narrativa, novas

possibilidades se abrem, sem previsões ou expectativas, mas tão só

complexas. Quando me refiro a essa polifonia, penso nas vozes que estão no

centro, que estão na margem, que são transversais ou que apenas calam. O

silêncio pode, sim, também ser uma forma de narrativa, de testemunho.

Nesse sentido, Morin (2003, p. 202) ensina que,

A história traz a primazia do tempo irreversível sobre o tempo cíclico, do tempo dos acontecimentos sobre o tempo repetitivo, do tempo agitado sobre o tempo circular. Embora construa

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ilhas ou arquipélagos de estabilidade, suscita a supremacia da mobilidade sobre a imobilidade.

Está nas origens do termo “história” o sentido de “procurar”,

investigar, como bem ensina Heródoto (LE GOFF, 1996). Considerado o Pai

da História, Heródoto, era um grande narrador de estilo bem particular: “ele

vai e volta na descrição dos eventos; introduz grandes reflexões filosóficas e,

mesmo sem saber, inaugura [...] a história” (SCHWARCS, 2013, p. 50). Sua

forma especial de driblar a memória e registrar os acontecimentos nos

estimulou e nos ofereceu um material rico para sairmos do presente, numa

aventura que somente o humano é capaz de criar, fazer da memória, por

meio da narrativa, história. Heródoto sofreu grandes críticas e acusações, de

parcialidade, inverdades e plágios. Contudo, pouco se sabe sobre sua vida e

seu fim. Portanto, falar sobre ele nos põe no terreno do devaneio e do mito

(SCHWARCS, 2013). Para mim, seu legado não se reduz à fórmula de se

fazer história, separada do exercício da ficção, mas sim num exercício

constante e necessário de viver o fato, seja no tempo, seja por meio das

fontes, e dele transformar em matéria-prima de sua própria narrativa. Nesse

ofício, acrescento a visão de Morin (2003, p. 223) na defesa da história:

como um revelador do espírito humano, com sua razão, sua

inteligência, suas artimanhas, sua criatividade, seus erros, suas mentiras, seus mitos, suas ilusões, seus sustos, seus deslumbramentos, seus fervores. Atualizaria, pelos seus excessos, tudo o que é potencial na loucura do sapiens-demens.

Prigogine afirma que a ciência caminha cada vez mais no sentido

histórico, pois ela é narrativa. Para efeito de demonstração, ele evoca o conto

das Mil e uma noites, no qual a jovem Sherazade a cada noite conta uma

nova história ao rei Shariar, durante mais de mil dias. Nesse mesmo

movimento, as ciências vão se criando como histórias de Sherazade, a

história do cosmos, a história da matéria, a história da vida e a nossa

própria história. A lógica das Matrioskas volta a fazer sentido. Se

concebemos o mundo através das histórias é porque somos sujeitos da

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narrativa. Pela ótica de Sherazade e da construção das ciências como suas

histórias, contadas noite adentro, me pergunto: é possível esse renascimento

diário? Fazer de uma outra forma? Entender com horizontes cada vez mais

amplos? Essas são indagações que me vêm ao pensar de uma outra forma o

fazer para a ciência. Fomos adestrados a enxergar a ciência enquadrada em

modelos previamente elaborados e rígidos o bastante para ofuscar o

imponderável. Nossos autores mostraram que foi a emergência das ciências

da complexidade que possibilitou um novo suspiro em busca de novos ares.

A cisão é a marca da história da ciência moderna ocidental, que se

viu dividida entre as culturas científica e humanista, culminando na

segregação dos conhecimentos científico, artístico, literário e filosófico na

produção de saberes (ALMEIDA, 2010). Contrariando tudo o que somos

adestrados a aprender sobre a ciência e seus fenômenos, Isabelle Stengers

(2002) diz que a aposta agora é numa ciência não redutora, nem ao menos

comprometida em nivelar diferenças, mas em permitir que o sensível opere

no lugar da frieza técnica e linear cartesiana. E o mais importante nesse

aspecto do discurso é pôr em prática a discussão intersubjetiva do fazer

científico.

A velha aliança, anunciada por Prigogine e Stengers (1984, p. 2),

“rompeu-se, e o homem sabe finalmente que está só na imensidão

indiferente do universo do qual emergiu por acaso”. A ciência moderna era

uma tentativa de nos comunicar com a natureza, descrição que deve ser

aprimorada. Nesse contexto, os estudos sobre física quântica e

termodinâmica ameaçavam a estabilidade da ciência clássica, porque

previam a reversibilidade, princípio não aceito pela linearidade e ideia de

progresso da ciência clássica. Já a ciência moderna passava a permitir o

diálogo experimental entre o compreender e o modificar. Almeida, por sua

vez (2012, p.13), argumenta:

A Ciência também gesta e alimenta mitos... mitos da neutralidade e da objetividade. Se libertar dos aspectos subjetivos durante a pesquisa; produzir análises que se restrinjam a enunciar os fenômenos como eles “realmente são” e construir interpretações desprovidas dos valores e visões de

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mundo do observador são alguns dos princípios referendados pelos ideais de uma ciência da assepsia, destituída de sujeito, purificada de afetos, iras, marcas inconscientes, ideologias e

valores éticos dos quais se nutrem – queiramos ou não – estudantes, professores e pesquisadores de todos os tempos e lugares.

Interessante perceber nesta mudança que a ciência clássica, com

toda sua perspectiva matemática e fragmentada, abre espaço para uma

ciência nova com sua perspectiva na física da religação, da dinâmica e da

mecânica, com aspectos voltados para a superação da compartimentalização

dos fenômenos.

A complexidade e o método complexo, no seu contexto mais global,

correspondem a uma nova percepção dos fenômenos, capazes de penetrar na

profunda rede de paradoxos, ambiguidades e conflitos que constituem as

organizações, e é na pesquisa que isso aflora. Interessante frisar que a

complexidade não se presta aqui para conceituar, mas sim para ampliar

horizontes de entendimento. Lembro das palavras de Edgar Morin sobre

complexidade, quando este não define a complexidade como um conceito,

mas oferece a noção de “complexus, [como] o tecido que junta o todo”

(MORIN, 2006, p. 15). Religar o que é marginal e o que é dito científico,

assumir o compromisso do que se diz em pesquisa e com o diálogo com a

natureza; ouvir os operadores cognitivos que nos levam a pensar, são

marcas muito próprias da produção científica nesse paradigma. Almeida

(2010, p. 72) nos auxilia a compreender melhor, quando discorre sobre o

conhecimento pertinente e a emergência dos saberes no século 21:

Um dos grandes desafios do nosso século é saber ler bem um mundo imerso na incerteza. É saber escolher e tratar informações; é transformar informações em conhecimento pertinente, aquele que está inserido num contexto, como ensina Edgar Morin; é exercitar, aprender e ensinar uma

ecologia das ideias e da ação; é compreender sabedorias antigas, que nem por isso estão mortas, porque ainda falam do essencial que permanece; é facilitar a emergência de novas sabedorias. Saber ler bem o mundo de hoje é fazer uso de nossa inteligência geral tão adormecida pelos conhecimentos especializados e pela fragmentação do conhecimento; é remodelar o nosso pensamento quadrado para fazer renascer um pensar redondo ainda tão vivo em algumas culturas, como

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fala o educador indígena Daniel Munduruku. Saber pensar bem no século 21 é fazer do pensamento uma teia tecida de muitos conhecimentos, compreender o que eles têm de

complementar entre si, de essencial. (ALMEIDA, 2010, p.72).

Já anunciavam Prigogine e Stengers (1984, p. 10) que “a física

retoma o que a ciência clássica negava em nome da reversibilidade dos

comportamentos elementares: as noções de estrutura, de função e de

história”. A necessidade de impor ordem ao caos se traduziu durante muito

tempo numa busca desenfreada pela verdade dos fatos e pela exatidão dos

fenômenos. Tudo mera ilusão. Assim, o homem busca, no nascimento das

ciências modernas, a ordem por meio do uso da razão. Em nome da verdade

e da ordem, ele esquece da sua própria limitação de não ser capaz de deter o

todo. Que seu discurso divaga no imaginário, que tudo que faz é impregnado

pelo seu próprio devaneio. Porém, hoje enfrentamos novos desafios, entender

as limitações como potencialidades, assumir o desvio, a ilusão e o devaneio

como partes integrantes da constituição desse sujeito. Ver a ciência como

obra de arte, como disse Prigogine. As ciências da complexidade ampliam o

entendimento dos fenômenos. Nesse sentido, Almeida (2012, p. 105) alerta:

[...] toda observação é datada e apenas permite expor o momento atual da dinâmica de um fenômeno sob certas circunstâncias e contextos. As coisas e os fenômenos têm uma história, evoluem, se transformam em parte, se auto-organizam, intrinsecamente ou auto-eco-organizam-se. Daí porque toda generalização é perigosa, uma vez que é, quase sempre, uma ampliação indevida das escalas de tempo e espaço em relação a uma situação fenomênica parcial, eventual.

Infelizmente, a história perdeu ao longo do tempo o encantamento

que carregava dos mitos que narrava, das fábulas, dos contos com os quais

conseguia dialogar. A História como ciência esqueceu-se da narrativa, sua

grande origem. É preciso voltar a narrar, contar histórias e reavivar a

História. Sabendo que em todas as suas raízes semânticas nas línguas

românicas, no inglês, no sânscrito, no grego, História refere-se à procura do

saber, a ver e a testemunhar, ela pode usar, da forma que desejar, a razão

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ou devaneio, tudo dependerá do movimento que os fatos geram e do olhar de

quem os vê e narra. “Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com

base na ‘realidade histórica’ ou puramente imaginária – pode ser uma

narração histórica ou uma fábula” (LE GOFF, 1996, p.18).

Voltando à história dos homens e, com eles, de suas narrativas,

reencontro Michel Serres (2015) para reafirmar que uma narrativa, mesmo

que incompleta e fragmentada, possui força maior, diz melhor das coisas do

mundo e de como agir diante delas que conceitos e noções. “A narrativa

vence o conceito” (SERRES, 2015, p. 51). Em seu livro Narrativas do

Humanismo (2015), Serres constrói uma história não linear nem tampouco

previsível sobre a aventura dos primeiros homens que deixaram para trás

seus grupos de pertencimento e partiram para povoar outras partes da

Terra. Com esse trabalho, Serres demonstra que parte das narrativas será

sempre imaginária, pois existe o lapso temporal dos esquecimentos. Além

disso, nossas narrativas e a história, por conseguinte, podem gozar do

mesmo poder criativo. Para ele, todos nós somos resultado daqueles que

decidiram bifurcar. Segundo o autor, a cultura clássica e todas as histórias

que conhecera ensinaram-lhe a pensar limitado e “somente a filosofia pode

demonstrar que a literatura diz coisas mais profundas que aquelas que a

filosofia procura demonstrar” (SERRES, 2015, p. 53). O que é a narrativa,

senão o elemento novo e emergente?

Prigogine e Stengers (1984, p. 3) esclarecem que

A história dos homens conheceu outros singulares, outros “concursos de circunstâncias” donde resultou uma revolução irreversível, aquilo a que Monod chamava de escolha: orientação não necessária, parece antes de ser tomada, mas que, no entanto, provoca uma transformação inexorável no mundo onde ela teve lugar. O que se chamou revolução neolítica parece de fato ter sido uma dessas escolhas.

Ao longo da história da humanidade, para construir a sua história no

mundo, bem como das coisas e acontecimentos, o ser humano operou por

duas frentes. Uma de caráter mais intuitivo pela narrativa, pela tradição

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oral, e outra no recolhimento dos vestígios que os representassem. Assim,

foram reunindo objetos e toda sorte de documentos escritos, fazendo deles

seus testemunhos. Porém, assim como o esquecimento, consideremos os

limites dados pelas fontes documentais, qualquer que seja sua natureza, na

reconstrução do passado. Os antigos historiadores, por sua vez, também

junto a tantos vestígios foram as testemunhas oculares e auriculares, como

nós hoje testemunhas do nosso tempo. Mas a história precisa voltar a

instruir, renovar e curar, proporcionando alimento vital à psique, que não

pode ser obtido de outra maneira. Segundo Pierron (2010, p. 143),

A lição ética da história, portanto, não consiste tanto em impedir que os dramas se repitam numa crença ingênua no progresso quanto em manifestar a pluralidade das soluções que a ação pôde propor. Ali onde se é tentado pela simplificação, ela é lição de liberdade.

Nesse sentido, o autor expressa que os testemunhos mantêm vivos o

agir e as potencialidades do passado. No caminho do historiador, ele se

depara com cenas de um mundo que ele viveu ou não, que foram

selecionadas pela memória de um tempo ou de seus pares e, nessa

conjuntura,

Arquivos, documentos, vestígios e testemunhos são várias formas de acesso a um mundo que não existe mais e do qual eles conservam, de maneira mais ou menos fiel, o indício. Nas ciências históricas, o testemunho é uma das fontes nas quais se apoiam os historiadores para construir seus relatos. Para o historiador, o testemunho é, portanto, um material, inscrito em um procedimento metódico, tendo em vista a verdade histórica. Para o historiador a questão posta pelo testemunho não é de início, a do “quem”, mas a do “o que é que” diz o “quem” da testemunha. (PIERRON, 2010, p. 125).

Ao refletir sobre tudo isso, me vem na recordação o filme brasileiro

Narradores de Javé (2004). Essa obra cinematográfica aborda, com muita

propriedade, questões discutidas neste texto: a memória, a história, a

tradição oral, o testemunho e os avanços científicos.

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A história se passa num povoado extremamente carente do sertão

brasileiro. Naquele povoado, domina apenas da linguagem oral na

comunicação e nos negócios. Javé possui apenas um cidadão “letrado”, o

carteiro, que havia sido expurgado da comunidade por ter levantado

calúnias contra os moradores da região em cartas fictícias, numa tentativa

de salvar o movimento do correio. Porém, uma notícia perturbadora chega ao

povoado. O progresso trará para a região uma grande barragem e aquela

cidade desaparecerá. A cidade em pânico percebe a importância do lugar

para a constituição da memória e dos afetos, tanto individuais, quanto

coletivos. Começa uma corrida contra o tempo para tornar Javé um

Patrimônio Histórico e, portanto, salva das águas inundantes.

Antônio Biá, o ardiloso carteiro, é incumbido da missão de colocar

todas as histórias heroicas no papel e assim fazer Javé existir para a

História. Ele então se aventura em visitar os habitantes da região para

colher suas narrativas, depoimentos e testemunhos. Porém, Biá, além de

muito descuidado com a escrita, começa a perceber que existem muitas

versões diferentes para a história do mesmo lugar. Existem inúmeras

narrativas e ele percebe que não é capaz de colocá-las no papel dando

sentido a tudo aquilo, da forma como fora contratado para fazer. Naquelas

narrativas brotam afetos, papéis sociais, contos, trotes e toda espécie de

relato oriundo do imaginário daquela gente.

Ao término do prazo de Biá, os engenheiros da barragem realizam

registros filmados e gravados das pessoas comuns da cidade. Esses registros

são matéria-prima preciosa para uma construção que Biá não teve expertise

de realizar. Não seriam os grandes feitos dos heróis da cidade que a

salvariam das águas da barragem, mas o reconhecimento da importância do

pertencimento ao lugar. Depois de perdida a chance de salvar a cidade, Biá

se muda dali junto com os moradores. Como testemunha visual e auricular

desse momento histórico, começa a registrar a nova história de Javé.

Como é possível perceber, o filme trata da importância da narrativa e

do testemunho na vida do ser humano. É preciso narrar para existir, como

disse Michel Serres, e é preciso saber “o que é suficiente”, como diz Clarissa

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Pínkola Estés. Mesmo que nós não vivamos para sempre, as histórias

conseguem.

DO TESTEMUNHO

Em quatros anos de Curso de História não tive em momento algum o

contato com o estudo epistemológico do Testemunho como elemento

presente e essencial na narrativa histórica. A sensação é que o testemunho

não merecia o status de um conceito ou algo semelhante que devesse estar

na pauta curricular do curso. O primeiro contato com essa noção me veio

pelas mãos de Margarida Maria Knobbe, presente na banca de Qualificação

Doutoral deste trabalho. Ela me apresentou a obra Transmissão: uma

filosofia do testemunho (2006), do filósofo francês Jean-Philippe Pierron,

professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Jean Moulin de Lyon –

França. Interessado pelas questões da ética e do meio ambiente, Pierron

também dedicou parte do seu tempo a compreender as questões que

envolvem filosofia e memória. Para isso, bebeu na fonte do filósofo da

História Paul Ricouer. Muito embora os termos testemunho e testemunha

sejam recorrentes na literatura em geral, e mais ainda para algumas áreas

como História, Direito e Ciências da Religião, poucos são os registros das

discussões epistemológicas sobre essa noção.

A partir daí me interessei muito sobre essa modalidade de discurso e

desde então vários questionamentos apareceram em minha mente. Por que

não se trabalha com o testemunho como uma das fontes privilegiadas da

história? Por que memória, conhecimento, fato histórico e documento são

matérias-primas do historiador e o testemunho integralmente não? Por que

somente a filosofia se interessa, mesmo que pouco, pelo tema? Quando me

refiro a essa escassez, ela é facilmente evidenciada pelo número pequeno de

obras que tratam do tema, e mais reduzido ainda o número daquelas

traduzidas para a língua portuguesa. Nessa busca, me deparei também com

uma tese de doutorado, defendida em 2016, intitulada: Epistemologia do

Testemunho – Uma análise crítica à tese do Reducionismo Local, de Ronaldo

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Miguel da Silva. O autor construiu um relato histórico da discussão

epistemológica do testemunho com a finalidade de reconhecer seu papel no

nosso sistema de crenças, buscando compreender como ocorre a justificação

testemunhal. Seu trabalho contribuiu com esta pesquisa, por fornecer o

caminho, na filosofia, para encontrar o tema em seu viés epistemológico.

Além de Silva (2016), Edgar Morin, na obra Para sair do século XX (1986),

forneceu elementos para a crítica, compreensão e análise do testemunho.

A escassez de uma discussão mais aprofundada acerca do

testemunho é explicada por Ronaldo Silva (2016) em decorrência da própria

história de desenvolvimento da ciência moderna e do pensamento de seus

precursores René Descartes (1596-1650), Jonh Locke (1632-1704), David

Hume (1711-1776) e Thomas Reid (1710-1796). Porém, tudo o que

conhecemos é resultado da ação testemunhal, daquilo que alguém fez, viveu

ou ouviu e nos transmitiu como ensinamento, como revelação ou

simplesmente disseminação. O autor aponta que a autonomia, o ceticismo e

o individualismo na busca da verdade excluíram qualquer elemento que

unisse meio e objeto num processo de purificação e neutralidade, o que

consequentemente relegou ao esquecimento o “suspeito” e “contaminado”

testemunho. Para se ter uma ideia, os problemas centrais de que se ocupa a

epistemologia do testemunho são sobre seu caráter como fonte básica de

conhecimento e se a crença baseada no testemunho goza de justificação

epistêmica. Dentre os intelectuais acima citados, David Hume e Thomas

Reid foram os filósofos que mais se dedicaram à temática que foi

posteriormente negligenciada. Até então, a epistemologia analítica estava

concentrada em “estudar o estatuto de crenças de agentes cognitivos

formadas por fontes individuais, tais como a percepção, a memória e o

raciocínio” (SILVA, 2016, p. 222).

O testemunho faz parte da vida, assim como a memória e o

conhecimento. Desde o instante em que o homem cria o código linguístico

para comunicar-se com seu semelhante, ele testemunha. O testemunho é a

versão de alguém para o fato. Dependemos necessariamente daquilo que nos

é dito para aprender e conhecer. Afinal, o que passa a ser testemunho um

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dia foi experiência. Se voltarmos ao primeiro ato de registro histórico feito

pelo grego Heródoto, podemos considerá-lo um ato testemunhal, haja vista

que ele tratou de deixar registrado aquilo que havia visto, presenciado e

também ouvido: os grandes feitos, as guerras e as disputas do mundo grego.

Heródoto era uma testemunha, ele tinha legitimidade para falar porque viu e

ouviu aquilo que ele se propõe a narrar, essa é a base de sua autoridade.

Mesmo sendo julgado por muitos no tribunal da verdade histórica, seu

testemunho prevalece e sua narrativa é o que temos desse tempo, do seu

povo, dos seus heróis.

A etimologia do termo testemunho apresenta duas significações: para

os gregos, seria a preocupação em falar a verdade, e para os romanos, ver

sem ser visto. Essa preocupação sobre a verdade e a ameaça do falso

testemunho relegou o testemunho ao ostracismo científico-intelectual.

Conforme cita Silva (2016, p. 23):

[...] desde os primórdios em que o tópico do testemunho começou a vislumbrar na literatura filosófica, ele tem sido obsoletizado, desautorizado, restringido e até designado como propriedade epistemicamente indesejável – essas são questões das quais a contemporânea epistemologia do testemunho não poderá se eximir, mas, ao invés, levar para o centro dos debates, em vista de uma compreensão cada vez mais clara e amistosa.

Ao refletir sobre a presença do testemunho, percebo que ele sempre

esteve em todos os lugares, em todo tempo. Pierron (2010, p. 14) aprofunda

esse debate ao sentenciar que “o testemunho reivindicaria uma verdade com

a qual podemos viver, ali onde a verdade tecnocientífica, por ser exigente,

permanece abstrata”. Ele recruta a atmosfera envolvida com o acontecimento

e vai além do relato, pois captura o sensível e envolve o sujeito que narra.

Como saber o que está por vir? O que esperar do testemunho? Assim

como um fenômeno complexo, o testemunho não é da ordem do previsível ou

do que é calculado, ele é da ordem da irrupção e da emergência. Para as

Ciências da Complexidade, as emergências surgem como imperativo para

compreender os fenômenos, suprir a carência, a insuficiência do método das

ciências modernas. E não seria bem isso o testemunho? É ele que me põe

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em contato com a sua verdade, não a minha verdade, mas a verdade

testemunhada, e que faz do outro a testemunha privilegiada para que

compreendamos o fenômeno que ele nos apresenta. Receberei a verdade que

você necessita testemunhar, não aquela que necessariamente se espera.

Anne Frank fez isso, deixando suas memórias e experiências

registradas em seu diário, no gueto de Amsterdã, durante a perseguição

nazista aos judeus. Como ela, também Olga Benário pôde transmitir ao seu

grande amor, Luís Carlos Prestes, os horrores e a sensações de viver os

últimos dias rumo à câmara de gás. Para termos um exemplo da testemunha

viva, que transforma vidas e cria esperanças por meio do seu testemunho,

podemos citar a ativista paquistanesa Malala Yousafzai. Ainda garota,

Malala foi baleada na cabeça por um miliciano do TTP em

Mingora/Paquistão por ter, junto a outras garotas, desobedecido a proibição

de estudar. O caso ganhou grande repercussão pelo protesto de centenas de

pessoas e pela cobertura da mídia paquistanesa. Tendo sobrevivido, Malala

tornou-se ícone pela defesa da educação das meninas onde o regime do

Talibã reina. A jovem passou a discursar internacionalmente, chegando com

seu testemunho à Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, Estados

Unidos, como mostra a mídia internacional. Lembremos ainda do caso da

costureira negra Rosa Parks, que se tornou um dos símbolos na luta contra

a segregação racial nos Estados Unidos. Rosa foi presa em 1955 e acusada

de violar o capítulo 6, seção 11 da lei de segregação do código da cidade de

Montgomery, ou simplesmente negar-se a ceder seu lugar a um homem

branco. O famoso ônibus 2857 de Montgomery tornou-se símbolo do boicote

à segregação sofrida por Rosa, e hoje é testemunha material do ocorrido. O

motorista perguntou-lhe: "Por que você não se levanta?" E ela respondeu:

"eu não deveria ter que me levantar". Sua insubordinação e resposta foram

suficientes para levá-la a prisão. Anos mais tarde, numa entrevista, Rosa

testemunhou como sentiu-se durante o ocorrido: "meu corpo foi tomado por

uma determinação, como uma colcha numa noite de frio" (WILLIAMS;

WAYNE, 2005). Anne e Malala eram apenas duas adolescentes; Olga um

corpo esquálido, como tantos outros à espera da morte, e Rosa apenas uma

costureira de volta para casa após um dia de trabalho. O que as imortalizou

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foram seus testemunhos. Quem não se comove e entra de fato em

discussões em prol dos Direitos Humanos ao conhecer histórias como essas?

Porém, vale lembrar que o testemunho está em qualquer um, naquele que se

tornou ícone até naquele que ainda é um invisível social. O testemunho não

elege, ele é democraticamente de todos. Conforme Pierron (2010, p.139):

[ele] pressupõe não apenas que tudo pode ser objeto da história, mas que todos os destinos se equivalem, todas as vidas merecem ser contadas, seja a do grande homem, seja a de um desconhecido. Disto o historiador também dá testemunho.

O material que o testemunho fornece, frequentemente transformado

em literatura, possui uma grande carga emocional. Para que imaginemos

como aconteceram os dias de vida de judeus sob a perseguição do regime

nazista na Alemanha, do regime do grupo talibã ou dos fatos degradantes da

segregação racial nos EUA, o testemunho não se reduz aos dados técnicos e

abstratos, muito mais do que isso, ele é a “carne do mundo vivo”, uma carne

passível de sentir, de provocar emoções e sensações, como aponta Pierron

(2010). Edgar Morin (1986), porém, adverte que é preciso “saber ver”! Somos

facilmente confundidos pela ilusão, pela alucinação. Nossa percepção é

“organizada em função de uma aparente racionalidade” (MORIN, 1986, p.

23).

Em Para sair do século XX (1986), Morin exemplifica como um

testemunho pode ser resultado de uma percepção equivocada. Tendo

presenciado uma colisão entre uma motocicleta e um carro, no trânsito

parisiense, percebeu claramente como a aparente racionalidade com a qual

definiu o acontecimento o levou a cometer equívocos. Após o ocorrido,

colocou-se a testemunhar a favor do motociclista, acreditando ser ele a

vítima, porém, o que de fato aconteceu foi o inverso. A colisão fora provocada

justamente pelo motociclista, quando ultrapassou o sinal vermelho. Nesse

episódio, Morin percebeu o componente alucinatório da ilusão criada por

uma racionalidade já cristalizada em si, de que o pequeno é a vítima.

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Morin (1986, p.28) explica que tudo é intermediado por processos

cerebrais bioquímicos–elétricos que determinam, por sua vez, nossa

representação. E não somente isso, somos corpo e espírito, química e

crenças e a complexidade dessas interposições são imprevisíveis. Assim

sendo, ele nos exorta a “desconfiar do testemunho dos olhos, pois quem vê

não são os olhos, mas o nosso espírito, por intermédio dos nossos olhos”.

Percebemos aqui a implicação de novos elementos sobre o estudo do

testemunho: a relação entre a percepção, a racionalidade, a alucinação, os

valores internalizados, as ideologias. Morin (1986, p.26) explica que nosso

“espírito/cérebro está fechado numa caixa preta, não vê as coisas

diretamente: representa-as por meio de um processo complexo de

codificação e tradução”, por isso não basta ver para acreditar no que foi

percebido.

É importante ainda considerar que os componentes que fazem parte

da nossa percepção podem deformar as lembranças transformadas em

testemunho. É possível ao espírito criar preenchimentos às lacunas deixadas

pelo tempo. Essas deformações podem se configurar em “embelezamentos” e

“valorizações”, recalcando-se a crítica e a contestação, ou o contrário: deter-

se em alguns aspectos críticos, deturpados, sem contextualização. Daí

porque Morin sugere a autoanálise para uma autocrítica. Deve-se investigar

sobre os próprios depoimentos e testemunhos com uma estratégia de

conhecimento, conforme expõe: “a estratégia de conhecimento desenvolve-se

estabelecendo concordâncias e coerências, mas a concordância não tem

sempre valor comprobatório e a coerência pode ser destruída pelo

aparecimento de dado que a contradiga” (MORIN, 1986, p. 29).

Dessa forma, o grande debate acerca do testemunho ainda foca

esforços em averiguar a incidência de verdade que ele pode apresentar.

Esforço vão, haja vista que tudo não passa de ilusão, como expressa Edgar

Morin. O autor alerta para a necessidade de saber ver nossa representação

das estruturas e estratégias mentais que determinam a “coerência e a

inteligência da percepção”. Sendo a percepção um processo circular,

dependente/autônomo, produzida pela relação espírito/cérebro, produz uma

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imagem do real, ou seja, uma tradução, que não é senão mero reflexo do

exterior (MORIN, 1986, p. 26).

Diante de tais questões cruciais a respeito do estudo do testemunho,

indago: como proceder? O testemunho deve, de fato, receber o status de

fonte histórica? Ele estaria no patamar de um fenômeno complexo? O

testemunho, embora seja forte, é paradoxalmente frágil. Todos os riscos o

envolvem, e ele acompanha a incompletude, a incerteza e a ambiguidade que

marcam a complexa existência humana. Afinal, ele é um produto do homem,

portanto uma narrativa nunca é uma verdade absoluta. Até que ponto

somos sinceros? Até que ponto influenciáveis? Nunca poderemos mensurar,

mas sua presença certamente irá nos emocionar, nos comover e nos abalar,

haja vista que o testemunho não é da ordem do cálculo nem do previsível.

Pierron (2010, p. 24-25) responde a respeito da dimensão histórica do

testemunho:

O testemunho se faz memória e memorial [...] O testemunho se inquieta no tempo, experimentando a fidelidade ao que ele transmite em uma longa temporalidade, agora lembrança viva. Na história [o testemunho], faz-se história. Por esse ângulo o testemunho não é somente individual. Envolve também uma dimensão coletiva ou comunitária, uma vez que, no tempo são convocadas as tradições e as instituições que constituem pontos de transmissão prolongando a recepção do testemunho.

Jean-Philippe Pierron, um dos intelectuais da epistemologia da

atualidade, traz uma crítica que permeia os campos da etimologia,

linguagem, literatura, Direito, História, religião, martírio e ética,

questionando-se: “seria essa a era do testemunho?” Contudo, ele é enfático

ao indicar que o testemunho é suspeito, mesmo assim ele é a “única maneira

de entrar realmente no assunto vivo, no coração da verdade”. O testemunho

vai muito além do previsto nos antigos livros de história, daquilo que é

relatado sobre os heróis, na história dos vencedores. É por ele que

conhecemos os detalhes nem sempre harmônicos para nossas falsas ou

verdadeiras certezas e generalizações. Todo alemão era nazista? Todo russo

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era comunista? Numa colisão, o aparentemente mais frágil é sempre a

vítima? A era das generalizações que a história dos vencedores criou tem

sido, em parte, abalada pela revalorização do testemunho. Embora grande

parte dos filósofos e intelectuais esteja preocupada com a memória, nossa

geração está produzindo o esquecimento. Tudo é rápido, intenso e fugaz;

porém, é no mundo das redes sociais e das interfaces que uma verdadeira

revolução abre espaço para o testemunho.

Assim, acompanho Pierron (2010, p. 12) em sua constatação: “hoje,

ser é testemunhar”. Também para Michel Serres (2015), “todos precisamos

de uma narrativa para existir”, narrar e testemunhar são ações que marcam

a presença do ser humano na Terra, lhe conferindo identidade. Todos são

sujeitos, o tempo inteiro, privilegiados pelo acesso à comunicação. Nunca

fomos tão comunicativos e tão presentes. Porém, paradoxalmente esquecidos

ou deformados da realidade. Cada época produz seu mal-estar, já disseram

Morin, Bauman e Freud. O testemunho deve, portanto, compor os roteiros

das pesquisas na História e contribuir para a memória dos fenômenos. Ele

“apresenta uma memória da ação para a ação” (PIERRON, 2010, p. 143).

Pierron, Reid e Morin se conectam quando se referem ao engano,

mentira ou falso testemunho, expressando que eles podem revelar o íntimo

da testemunha. Não há mentiras ou meias-verdades que permaneçam muito

tempo sem serem reveladas.

É uma propensão falar a verdade e fazer uso dos sinais da linguagem, de modo a transmitir os nossos reais sentimentos. Esse princípio tem uma orientação poderosa, mesmo nos maiores mentirosos; pois, onde eles mentem uma vez, eles falam a verdade uma centena de vezes. A verdade é sempre a mais elevada, e é a questão natural da mente. Não requer nenhuma arte ou treinamento, nenhum incentivo ou tentação,

mas somente que cedamos a um impulso natural. Mentir, ao contrário, é fazer violência à nossa natureza, e ela jamais é praticada, mesmo pelos piores homens, sem alguma tentação. Falar a verdade é como fazer uso da nossa comida natural, o que faríamos a partir do apetite, embora não respondesse a nenhum fim; mas, mentir é como tomar purgante, que é nauseante ao gosto, e que nenhum homem toma senão para

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algum fim que ele, de outra maneira, não pode obter. (REID apud SILVA, 2016, p. 69).

Cabe, entretanto, problematizar a seriedade ou fidedignidade dos

relatos testemunhais pelos suportes midiáticos. Sabemos bem das

montagens narrativas veiculadas a respeito dos fatos políticos e econômicos

em nossa sociedade. Além disso, se podemos considerar as imagens

igualmente como uma narração e, portanto, suporte testemunhal, vale

lembrar igualmente das montagens de imagens que em grande parte

deformam o cenário e os acontecimentos, o que resulta no que se conhece

como fake news.

Diz Pierron (2010) que testemunhar é mais do que comunicar, é

transmitir. O testemunho, assim como as verdades ou mentiras, é

transmitido e o processo de transmissão me lembra a ideia de contaminação.

Assim como ocorre no domínio biológico, onde existe um hospedeiro,

possuidor momentâneo daquela informação, este a transmite por

necessidade vital de se alimentar para sobreviver. No ato da transmissão, a

informação deixa de ser seu domínio, uma vez que contagiou outrem. Para o

autor, enquanto a comunicação/informação é da ordem da troca, a

transmissão é da ordem do temporal, ligando uma geração a outra.

O que torna o testemunho singular está em promover uma conexão

entre o que é dito, com uma maneira de ser e de existir do sujeito que

testemunha. A mobilização que o testemunho opera naquele que o profere é

complexa, pois exige dele muito de sua capacidade de como se expressar

para dizer, o que fazer e gesticular para dar complemento à cena, como se

preparar para contestar, atestar ou de agir. Afinal, testemunhar recruta

habilidades desse sujeito que deseja expor seu absoluto. A testemunha

apresenta uma realidade que a excede. Ela se instala nas “falhas do real que

ela detecta e cujo insuportável ataque às nossas capacidades humanas ela

atesta” (PIERRON, 2010, p. 17).

Ao escrever esta tese e ao ouvir e receber tantos testemunhos sobre o

Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM, fui surpreendida por todos

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eles. Como prevê Pierron, cada uma delas promoveu sua própria sutura na

história singular da qual trato e as informações a respeito do grupo. Havia

sempre uma mensagem do tipo “eu era assim”, “eu tinha essa

característica”, eu pensava assim” e as atividades e vivências no grupo

“promoviam em mim isso ou aquilo”. Esses testemunhos me fizeram pensar

muito sobre mim, sobre minha passagem no GRECOM e como tudo aquilo

reverberou de fato em minha vida profissional. Houve momentos de catarse,

porque a carne do mundo vivo foi exposta. Passou, de fato, a ser a maneira

de viver aquele absoluto. A testemunha vive para contar o que foi sobreviver

ao acontecimento. Nesse diapasão, ela deseja falar de suas experiências,

daquilo que a memória seletiva não rejeitou, daquilo que está latente e que

vaza para outros domínios, por isso em via de regra não tem caráter

apologético, mas, ao contrário, é rico pela densidade da experiência singular

que ostenta.

Com propriedade, Pierron (2010, p. 63) diz que “a necessidade de

testemunhar não é fruto de um raciocínio, impõe-se como uma necessidade

que previne todos os cálculos e estratégias”. Me coloco também no lugar de

testemunha e afirmo o quanto o desejo de falar e ser ouvida é latente em

qualquer pessoa, no exercício de organizar, recrutar, mobilizar palavras,

gestos, emoções. Desejo que você acredite no que digo! Para isso, o corpo se

une num concerto de todos aparatos para que o testemunho seja proferido.

Quem nunca se emocionou ao testemunhar ou ao ouvir um testemunho?

Quem nunca se exaltou, esbravejou, saiu do senso para sensibilizar e retirar

o ouvinte do lugar de conforto? O testemunho traz todas essas capacidades.

Jamais lemos um testemunho como lemos um romance. A propensa verdade

estampada naquelas palavras reduz a ética e evidencia a forma, porque na

verdade ele apresenta o que representa.

O testemunho diz mais do sujeito que o profere que do fenômeno que

representa. Ele acontece em primeira pessoa, por isso é indissociável de

quem o profere, exaltando o pessoal/singular na perspectiva do universal.

Nas palavras de Pierron (2010, p. 61), “o testemunho seria assim uma forma

de escrita de si”. Além disso, “ao testemunhar, a testemunha apresenta o

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que ela representa. Seu dizer é um fazer” (PIERRON, 2010, p. 38). Estamos

muitas vezes certos em crer no que os outros nos dizem, mas de vez em

quando temos razão para rejeitar o que nos é dito (SILVA, 2016, p.33). Dito

de outra forma, o fato de o testemunho falar do âmago do sujeito que narra

um acontecimento explica porque diante de um mesmo fato testemunhas

com experiências de vida e psique diferentes narram, de forma igualmente

diferentes um mesmo fato.

O testemunho, no entanto, possui grande valor para a ciência da

história, pois duas questões são chave na sua transmissão: o que é dito e

quem o diz. Na dialética da proximidade e da distância, ele possui uma

“subjetividade capaz de bloquear a exigência crítica própria à verdade

histórica” (PIERRON, 2010, p. 126). Toda minha ansiedade em ver o

testemunho como grande indício da história é satisfeita quando o autor

explica que os trabalhos a respeito do testemunho se iniciam nos Estados

Unidos em 1948, com a criação Universidade de Colúmbia. As duas

devastadoras guerras mundiais deixaram milhões de trágicas testemunhas.

Esse foi o material mais rico a respeito dos horrores, principalmente da

Segunda Guerra Mundial. Nessa época, fora criado nessa universidade um

centro de estudos de história oral. Pierron conta que a historiadora Annette

Wieviorka desenvolveu uma exposição na época do lançamento do seu livro,

contando “a história do testemunho e de sua mudança de estatuto em

história contemporânea, especialmente no âmbito da história do extermínio

dos judeus da Europa” (PIERRON, 2010, p. 126).

Imediatamente, me veio a conexão com Clarissa Pinkola Estés, no

livro O dom da História (1998), no qual ela nos leva a refletir sobre o que é

suficiente, contando uma dessas histórias de sobreviventes do holocausto.

Uma das testemunhas inspirou o seu próprio testemunho:

Quando eu era criança, os poucos parentes húngaros que sobreviveram à devastação da guerra na Europa acabaram vindo para os Estados Unidos, com a ajuda dos que já se encontravam aqui. De repente, eu era a feliz herdeira de uma família adicional, que incluía algumas velhas notáveis. Uma

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em especial eu chamava de Tia Irena, que em húngaro é um nome carinhoso que se dá a quem conta histórias, como o nome mamãe Gansa na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Foi ela quem me ensinou uma história sobre o que suficiente realmente quer dizer.

Na época, ela era uma velha que se tornou um dos tesouros da minha vida, porque era cheia de um amor imenso pelos seres humanos e, mais especialmente, pelas criancinhas. Às vezes, ela me acordava de manhã salpicando água fria no meu rosto, e isso ela chamava de sua bênção especial para mim. No verão ela passava suco de cerejas pretas no meu rosto, como se fosse ruge. E uma vez no inverno, fora das limitações do bom comportamento vigente entre os adultos da época, ela deslizou comigo morro abaixo num trenó até chegarmos a um pasto,

dando risadas o tempo todo. O melhor de tudo era que ela conhecia uma infinidade de histórias. Quando eu subia no seu colo sentia que estava sentada num grande trenó aconchegante, e tudo parecia perfeito conosco e com o mundo. Isso era ainda mais extraordinário se considerarmos que ela e todo esse lado da família havia atravessado anos de medo e desumanidades indescritíveis durante a guerra. Eles eram lavradores simples, que moravam nos povoados minúsculos e aldeias remotas. E, como milhões e milhões de mulheres e homens semelhantes nos países de toda Europa, todos eles foram lançados numa guerra que não criaram e que, no entanto, eram forçados a suportar ou morrer. Titia, como todos os que sobreviveram costumava repetir o tempo todo:

- Não consigo tocar nesse assunto. Ninguém pode entender como foi terrível. Ninguém pode entender como foi, a menos que tivesse presenciado a guerra, sentindo seu cheiro, ouvindo seus ruídos, se agarrando à vida durante aquele período.

Quando eu lhe perguntava que lembrancinha ela gostaria de ganhar no aniversário ou no Natal, sua resposta era sempre a mesma: - Presente nenhum, por favor édes kis, minha queridinha. Os presentes que eu mais queria já estão aqui, agora: poder abraçar uma criança de novo, poder sentir o amor, poder rir às vezes e, finalmente, poder novamente chorar. Tudo que mais quis está aqui.

Reconhecendo o potencial da obra de Pierron e dessa discussão a

respeito do testemunho, trago algumas frases do autor capazes de suscitar

reflexões. Opto por registrar apenas alguns fragmentos que julgo pertinentes

aqui, sem seguir a ordem em que aparecem nas páginas do livro

Transmissão: uma filosofia do testemunho:

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O arquivo corrige e tempera o testemunho, mas este sublima o arquivo

(Op. Cit. p. 140)

O testemunho opera uma saída da indiferença, lembrando em sua

aparente modéstia que o comum não é insignificante. (Op. Cit. p. 141)

Nada menos do que umbilical, a literatura testemunhal escreve-se na

altura do homem, isto é, na singularidade das histórias e aventuras humanas.

(Op. Cit. p. 65)

É no eu e com o eu da testemunha que se dá a entender o jugo do

mundo. (Op. Cit. p. 65)

O testemunho não deixa ileso. Deixa vestígio. Toca. Marca. Esse conceito

de inscrição, comparado à metáfora da marca, faz do encontro da testemunha

um encontro marcante. (Op. Cit. p. 71)

Cada coisa que faz a testemunha tende a confirmar o próprio

testemunho. (Op. Cit. p. 15)

O testemunhar é uma metáfora viva! Inscreve o impulso da imaginação.

(Op. Cit. p. 45)

Ambíguo, o testemunho conjuga estranhamente a dialética da

proximidade e da distância. (Op. Cit. p. 126)

Não existe inocência na memória narrativa. (Op. Cit. p. 139)

[...] o testemunho encontra-se no ponto de transição entre a informação e

o ensinamento, entre o epistemológico e o ético. Semelhante junção celebraria

os encontros da história com a vida dos homens, o relato das ações dos

homens do passado interrogando o estatuto do agir dos homens atuais [...].

(Op. Cit. p. 127)

Os testemunhos servem assim de balizas, como postos avançados no

limite da humanidade, atestando menos o que deve ser feito do que aquilo que

pode ser feito [...]. (Op. Cit. p. 82)

[a testemunha] está assim na vanguarda de nossa humanidade,

fazendo com que nos espantemos com o que ela viu, ouviu , com o que ela

atesta a ponto de despertar do nosso sono pragmático [...]. (Op. Cit. p. 18)

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ELES ESTAVAM LÁ! POLIFONIA DO TESTEMUNHO

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Aos poucos, o GRECOM foi nascendo... não foi tudo de uma só vez,

não foi tudo num só lugar... Essa história pode ter vários começos, vários

clímax e muitos encontros e desencontros. Aprendi isso com as Narrativas

do Humanismo de Michel Serres e, como ele, declaro que pelo menos quatro

quintos de minha narrativa e testemunhas também nadam no imaginário

ingênuo (SERRES, 2015). Para alguém que se aventura, como eu, a escrever

uma história, faço minhas também as palavras de Burguière (2002), para

sublinhar que renuncio à pretensão de reconstituir o passado em si mesmo,

jamais se pode fazer isso, e completo: a história tem um muito de cada um

que a escreve.

Neste capítulo trago o que está fora de controle, o que é habitado por

uma tensão cruel, “a urgência de carregar palavras cujo alcance não se

domina” (PIERRON, 2010, p. 62). São 16 testemunhos compondo o

caleidoscópio, os quais se complementam, que se avizinham e por vezes se

opõem. O mapa apresentado na abertura deste capítulo confere a ideia da

dispersão geográfica dessas pessoas que fizeram sua formação ou tornaram-

se parceiras no campo das ideias, para testemunhar a respeito do GRECOM.

Muito mais que o artifício retórico de trazer falas a respeito do

GRECOM, os exercícios de testemunhar e ouvir esses testemunhos

oportunizaram aos envolvidos nessa história um recrutamento na memória

daquilo que excedeu, que vazou para a vida. Não se trata, porém, de uma

catarse, pois o testemunho a ultrapassa “num projeto de dar a ouvir o outro

em si mesmo” (PIERRON, 2010, p. 61).

O argumento central desta tese faz eco às propostas de Jean-Philippe

Pierron, para quem a reconstrução histórica é sempre produto parcial,

lacunar e incompleto da narrativa de quem esteve ou está imerso na

experiência da qual fala. Como ao longo dos 25 anos do GRECOM foram

muitos os que estiveram imersos em cenários que variaram de acordo com

as circunstâncias institucionais, e também pela composição de seus

participantes, era importante uma polifonia de vozes para construir uma

imagem aberta e mesmo imperfeita do grupo.

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A seguir, 16 textos autorais (alguns enviados por escrito, outros

frutos de transcrição de gravação), expressam situações diversas

reconstruídas à posteriori por seus autores para avaliar, criticar, expressar

reconhecimento e expor registros imaginais do que é o GRECOM. Exceto o

primeiro e o último dos testemunhos, todos os outros são de egressos que

fizeram seus mestrados e doutorados no grupo. Para circunscrever o círculo

mítico da serpente ouroboros, o primeiro e o último dos depoimentos são de

dois interlocutores do GRECOM que se complementam, por oposição, no que

diz respeito à formação. No círculo, a matemática e teóloga portuguesa

Teresa Vergani (Testemunho 1) se interconecta com o pescador e intelectual

da tradição Francisco Lucas (Testemunho 16) para explicitar a relação entre

conhecimento científico e saberes da tradição – relação tão cara ao

GRECOM.

O perfil sintético de cada autor aparece no início dos textos e mostra

a diversidade de pertencimentos formativos, o que de certa forma favorece a

pluralidade de perspectivas de ver e testemunhar a história. Nem por isso o

plural se torna senha de segurança, completude e totalidade na

reconstrução da história do GRECOM. Mais uma vez podemos citar Pieron

(2010, p. 49) e sua advertência sobre a força da imaginação e a fragilidade

da narrativa histórica: “Haverá portanto rostos diferentes do testemunho,

dados pela pluralidade de suas testemunhas. Esta é uma das razões da

fragilidade do testemunho, frágil porque plural”.

Curiosa a esse respeito é a diversidade das metáforas às quais fazem

alusão os depoentes para falar do GRECOM: tapeçaria, copo d’água a

transbordar, a aranha e sua teia, chave-mestra, matrioska, centopeia,

brasas sob cinzas, roda que não pára, e assim por diante. Por que metáforas

tão díspares, e às vezes mesmo opostas, para um mesmo fenômeno, um

mesmo acontecimento? São muitos Grecons em muitos olhares e em

diversos tempos e contextos. O pessoal refletido no coletivo.

Que falem as testemunhas....

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Testemunho 1: TERESA VERGANI

Nascida em Portugal, mora na cidade de Estoril. É matemática, teóloga e artista plástica. Fez seu semestre sabático no GRECOM no ano de 2001. Suas principais obras: Excrementos do sol (1995) e O zero e os infinitos (1991). Este depoimento foi publicado pela primeira vez no livro Ciclos e Metamorfoses (ALMEIDA e KNOBBE, 2003)

Era uma vez um lugar.

Um lugar que só por acaso pousava num sítio físico, tal como um

nascimento humano pode ocorrer em qualquer ponto da superfície curva do

nosso planeta, sem que esse ponto se revista de importância maior face ao

evento inconcebível de um parto deflagrado de repente sobre a terra.

Era não só um Lugar nascente, mas um Lugar onde se nascia.

Era uma espécie nova de Natal, oferecido à teia ondulante do tempo

que molda as nossas esperanças mais íntimas e chama os mais vastos

itinerários do por-vir.

Lugar, pois, de muitos espaços. Lugar feito de Rostos, onde cada

Rosto acendia um fogo e onde cada Fogo se deixava habitar por uma Fonte.

Portanto Lugar de olhos, de incêndios e de espumas.

Ali se entrelaçavam escutas, silêncios, ventos, sussurros e o

movimento incessante das maresias.

Lugar de ler, ouvir, interrogar. Lugar de imaginar, unir, desenvolver

(sem mordaças nem amarras).

Ali se experienciava o Querer e se colhia a inédita surpresa do Fazer:

sabedoria não só de Anunciar, mas de tornar o sonho Acontecível.

Lugar de Abraço tão poderosamente universal quanto as

imponderáveis trans-mutações do Ser.

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Fluxo generoso da expansão fecundado pelo refluxo centrípeto da

reflexão. Por momentos tudo vertiginosamente se esboroa, na impetuosidade

do relâmpago que destrói a velha segurança das certezas. Depois, tudo

lentamente começa a convergir e amadurece a permanente

combustão/aurora que gera o casulo, o ninho, a casa.

Mil rumos e uma só morada – serena, firme, incandescente.

Lembra um imenso laboratório alquímico onde se concebem asas e

punhais, isto é, onde se forjam simbioticamente Fadas e Guerreiros.

O seu olhar atento desce aos bairros mais enlameados, aos ofícios

mais humildes, às artes mais secretas, à Terra dos Sem-Terra, à Água dos

Sem-Água.

Levanta-se igualmente para fitar a sanidade das loucuras, a ciência

mais prenha de seiva indomável, a tradição abandonada, mas devorada pela

fé mais nua.

Lugar onde se acertam relógios solidários segundo uma Hora já

trans-temporal.

As palavras não dizem que este espaço/coração feito de nudez, paz e

desmedida. Não alcançam este coágulo de ardente sobressalto que nos

chama com a sedução in-aprendida de um canto incessante por estrear.

Este Lugar, encontrei-o. Reconheci-o, com a naturalidade imediata do

que sabemos obscuramente ter que haver, ter que pulsar, ter que existir.

Aberto como cisterna vulnerável à honestidade de todos os apelos,

vitalmente generoso à maneira das florestas, dos fermentos e dos vinhos.

E foi como se eu tivesse beijado mil bocas, pronunciasse mil palavras

desabrochadas em mil lábios, circulasse no sangue de incontáveis artérias,

me erguesse sobre uma infinidade de pés ou viajasse em inumeráveis barcos

fazedores de outros tantos portos e moradas.

Lugar/Respiração azul-laranja, mutante e centrado. Onde de repente

sabemos quem somos e quem os outros, conosco, vão sendo.

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Não será nunca para mim um fulcro em torno do qual se constroem

memórias. Mas o ponto imponderável de uma Respiração úmida, densa,

transparente, intraduzível. Não há pois, para mim, nem pedir nem despedir.

Não há chegar nem voltar. Não há prender nem soltar.

Há o risco e há a lágrima de uma linguagem que prescinde de

gramática, capaz de plantar chuva em todos os desertos.

Isso me basta, me enche, me silencia.

Que o GRECOM já sendo, seja!

Indo e ficando, testemunho.

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Testemunho 2: RENATO PEREIRA DE FIGUEIREDO

Formado em Educação Física, professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (campus Vitória da Conquista). Fez doutorado em Educação no GRECOM. Título da tese publicada Frankstein, o prometeu moderno (2010)

Teorias são os meteoros do mundo

O tempo da Luz é mensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço.

Novalis, Hymmen an die Nacht

Novembro de 2006. Era noite, por volta das dezenove horas e trinta

minutos. Entrei na pequena sala da Base de Pesquisa acompanhado de

outros dois colegas, um físico e um historiador, professores da UESB -

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Estávamos ali para uma

reunião de orientação coletiva antes do primeiro seminário doutoral. Sentada

em sua mesa, Ceiça, nossa orientadora, já nos aguardava. Conhecia bem

aquele espaço demarcado por divisórias. Estive ali por diversas vezes desde

que ingressei no GRECOM - Grupo de Estudos de Complexidade, no início

daquele ano. Antes disso, já havia visitado aquela sala algumas vezes

utilizando o pensamento e a imaginação, levado pela leitura da obra Ciclo e

Metamorfoses: uma experiência de reforma universitária (2003) - um dos

muitos presentes dados por Ceiça toda vez que ela viajava a Vitória da

Conquista para ministrar disciplinas sobre Edgar Morin e o Pensamento

Complexo na UESB. Para mim, aquele era um lugar especial no âmbito do

NEPECT – Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação, Ciência e Tecnologia.

Quando entrava na sala de Ceiça, olhava ao redor, procurando algum objeto

novo, uma obra desconhecida sobre a mesa, um detalhe que não havia

observado antes. Mesmo porque, de tempos em tempos, dava-se uma nova

arrumação ao pequeno espaço. Sempre havia uma novidade e seria preciso

muito mais tempo para decifrar tudo que ali existia, eu pensava.

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Uma divisória branca que não alcançava o teto separava a pequena

sala de nossa orientadora de uma outra um pouco maior, reservada para os

demais pesquisadores do GRECOM. Ali, computador, mesas, cadeiras e

armários guardavam as teses e dissertações já concluídas. Quando a porta

atrás de nós se fechou, ainda se podia ouvir conversas vindas daquela outra

sala maior. Eram Wyllys, Samir, Rodrigo, Silmara, Josineide e Wani,

discutindo a possível volta de Edgar Morin a Natal. O vão livre existente

entre o teto e a divisória branca era como um grande buraco de fechadura

por onde, sem ser notado, se podia ouvir quase tudo que se falava do outro

lado. De forma que, se não era difícil para nós perceber o que estava sendo

dito, para eles também não seria difícil acompanhar o que iria acontecer a

seguir. Esse detalhe não me contrariava. Ao contrário, para mim, a sessão

de orientação jamais foi um espaço confessional.

A pequena sala de nossa orientadora era um lugar multicolorido, vivo

e agitado. Podia-se mesmo dizer que ela era uma extensão da própria Ceiça,

de seus cabelos avermelhados e do cheiro do seu perfume francês. Ali,

nenhum objeto estava por acaso. Quase tudo era representação e um convite

para pensar. Quatro longas tábuas de madeira decoradas com faixas

coloridas em suas bordas, fixadas na parede por cantoneiras brancas,

serviam de estante para dezenas de revistas, livros, fitas de vídeo K-7,

lembranças de viagem e outros pequenos objetos. Não eram quaisquer livros

e revistas que ocupavam aquela rústica estante de madeira que, meses

antes, Ronaldo, Samir e eu havíamos montado. Quase todos os textos

produzidos pelos pesquisadores do GRECOM, coleções de revistas de

Antropologia e livros dos principais autores estudados pelo grupo, estavam

minuciosamente organizados, embora alguma coisa sempre teimasse em

ficar fora da ordem. Além de boa parte da obra de Edgar Morin, era possível

consultar exemplares de pensadores como Bruno Latour, Ilya Prigogine,

Henri Atlan, Jöel de Rosnay, Lévi-Strauss, Michel Serres, Boris Cyrulnik,

David Bohm, entre outros. Seria preciso muito mais tempo para ler todos

aqueles livros, eu pensava.

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As janelas de vidro da pequena sala, protegidas pelo lado interno por

enormes grades de ferro com desenhos retangulares, eram grandes e claras.

Para abrir essas janelas era necessário ultrapassar com as mãos a grade de

ferro e destravar um ferrolho, empurrando-as com força para fora e para

cima. Essa operação permitia uma abertura apenas parcial das janelas,

como se fosse basculantes de banheiro e era preciso tomar cuidado para não

deixar cair os bibelôs colocados no parapeito. Um velho aparelho de ar-

condicionado disposto na parte superior esquerda da janela, na maioria das

vezes, permanecia ligado. Exceto quando Ceiça acendia um cigarro para

fumar. As laterais da sala eram ricamente enfeitadas com folders, recortes de

jornais, de revistas e fotografias coladas com fita adesiva. Havia também

diversos objetos coloridos, como por exemplo: borboletas pequenas, médias e

grandes, dados azuis, e muitas gravuras, com destaque para uma enorme

figura de cor laranja, do deus Apolo. Enigmática e imponente, a figura nua

do deus das artes, da beleza, da razão e do equilíbrio não parecia me dizer,

sempre que para ela eu dirigia o olhar, nada além de a vida deve ser vivida

com música e poesia. Seria preciso mais tempo para compreender as

mitologias dos deuses, eu pensava.

Preso apenas por um pedaço de barbante grosso ao teto da sala, um

móbile pendia suavemente quase que exatamente no meio daquele pequeno

espaço. Balançando e girando livremente a, aproximadamente, dois metros

do chão, de forma que as pessoas mais altas como eu precisavam abaixar

para não bater com a cabeça, esse móbile de formato circular (seria uma

mandala?) continha fotos, fitas coloridas e pequenas peças de metal

penduradas. Algumas vezes, essas pequenas peças de metal batiam umas

contra as outras, produzindo sons parecidos com os de sinos tocando. Era o

móbile girando e tocando suave e livremente, convidando a quem quisesse

ouvi-lo a viajar nos pensamentos. Mas eu precisava escrever. Ler e escrever.

Não tinha tempo para viajar nos pensamentos, eu pensava.

Duas mesas ocupavam aquele ambiente. A de Ceiça, maior, com duas

cadeiras à sua frente, e outra menor, com apenas uma cadeira. Ao lado da

mesa maior, havia um pequeno móvel para o computador e a impressora.

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Assim, bastava girar a cadeira para que nossa orientadora pudesse ter

acesso ao computador. O computador era utilizado para ler e enviar

mensagens via e-mail. Não me recordo de ter visto a dona daquele velho

computador utilizá-lo para escrever seus textos, consultar redes sociais ou

pesquisar determinado assunto pela internet, embora esta estivesse

disponível para todos. Acho que a informática (principalmente a sua

linguagem) aborrecia Ceiça. Quanto à impressora a jato de tinta, acredito

que sempre esteve quebrada ou fora de uso por não ter cartuchos de tinta.

Sobre a mesa menor, disposta diagonalmente em relação à mesa maior, além

de livros e revistas, havia um pequeno dispositivo de madeira escura para

auxiliar a queima de incensos. Quase todo início de tarde, Silmara, além de

preparar o café, fazia queimar um incenso nesse dispositivo, perfumando o

ambiente. Como era bom aquele ambiente perfumado!

A mesa maior, encostada no canto da sala era o centro daquele

pequeno mundo. Dali, sentada entre um porta lápis, calendário, porta-

retratos, cinzeiro, copo plástico com café, uma pequena garrafa de água

mineral, muitos documentos e mais livros, Ceiça parecia comandar um

exército de homens, mulheres e ideias. Era ela quem sempre batia o martelo

e dava a última palavra.

Entre sua mesa e as duas cadeiras, uma grande rosa vermelha

brotava do chão de cimento liso e escuro. Seu tronco de metal era comprido

e fino. Aquela flor vermelha sempre me despertou admiração e curiosidade.

Nem tudo são espinhos, dizia Ceiça. Seria aquela flor, crescida em chão

calcinado, uma metáfora indicativa da possibilidade de abrir espaços

criativos, desejantes e libertários no terreno mais desértico da ciência, como

queria nossa orientadora? Eu não sabia. Como o Apolo exposto na parede,

aquela flor vermelha também falava aos meus ouvidos frases misteriosas,

sem um sentido prático para a vida acadêmica, como por exemplo: seja

gentil. Aproxime-se com cuidado ou podemos nos ferir! Quem sabe com o

tempo iria dominar a linguagem metafórica daquela flor, eu pensava.

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No chão liso daquela sala, encostada próximo à janela, havia ainda

uma pequena escada branca. Quando não estava em uso, esse objeto servia

de mesa para um telefone vermelho que raras vezes vi funcionar.

Habitada por um cem número de objetos, histórias e mistérios,

definitivamente, naquela sala não havia muito espaço para pessoas, no

máximo duas ou três. Era mesmo para ser um ambiente mais íntimo, mais

acolhedor. Reservado para conversas regadas pelo afeto, pela compreensão e

pelo prazer de estar ali. Porém, naquela noite, éramos quatro humanos e eu

iria perceber que quase nunca a estratégia de construção de um texto

acadêmico pode abrir mão da dor. Pelo menos não naquele pequeno lugar.

Antes de iniciar a sessão de orientação propriamente dita, Ceiça

levantou-se de sua mesa. Enquanto acendia um cigarro com seu isqueiro

Zippo, ela desligou o ar-condicionado e abriu as janelas. Aqueles

movimentos feitos em sequência, de forma coordenada e rítmica, eram uma

senha para mim familiar: estávamos ali para trabalhar até que todas as

dúvidas fossem esclarecidas uma vez que o pensamento nunca descansa,

conforme expressão da própria Ceiça.

Ao contrário das raras orientações individuais, a dinâmica da

orientação coletiva era mais ou menos igual para todos. Enquanto líamos em

voz alta o texto impresso em folhas de papel, Ceiça acompanhava a leitura e,

ao mesmo tempo, fazia anotações em sua cópia que lhe era entregue no

início ou um pouco antes da sessão. Dependendo do que ouvia, a

orientadora interrompia a leitura e iniciava um diálogo com o orientando,

buscando reorganizar suas ideias e tornar o texto mais claro para o leitor.

Essa operação podia ser repetida quantas vezes fossem necessárias, até

parágrafos inteiros serem reconstruídos. Os demais orientandos presentes

não podiam interferir, a menos que lhes fosse solicitado. Mas isso raramente

acontecia. Munidos de caderno, lápis ou caneta, fazíamos, em silêncio,

tantas anotações quanto nossas habilidades nos permitiam. Autorizava-se o

uso de gravador, uma vez que era impossível registrar no caderno tudo que

se dizia naquelas reuniões.

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Fui o primeiro a sentar-se de frente para a orientadora. Era dali que

todo o processo deveria iniciar. Uma a uma, as páginas do meu texto iam

sendo lidas vagarosamente. Do outro lado da mesa, Ceiça fazia anotações.

Às vezes, rabiscava por inteiro toda uma frase deixando claro que nada ali

prestava. Outras vezes, deixava marcas ao lado de parágrafos. Eram setas,

semicírculos, pontos de interrogação, exclamações e outros sinais que, com

o tempo, aprendi a decifrar. Não havia pedaço de texto no papel que não

fosse tatuado pelas marcas da sua orientação. A cada três ou quatro

movimentos do lápis na folha de papel, o cigarro era tragado ao mesmo

tempo em que ela fazia um gesto com a cabeça para o lado e para cima, a

fim de soltar parte da fumaça não consumida para longe de seu interlocutor.

Esse gesto ainda seria repetido uma dezena de vezes durante a sessão.

Estava incomodado e tenso. Minha voz tremia. Sabia que precisava ter

cuidado para não cair em armadilhas e confundir, por exemplo, o somatório

de informações com o conhecimento sobre determinado fenômeno. Além

disso, o trabalho precisava ter significado dentro da história da produção

científica do GRECOM. O que eu não sabia era como fazer vazar a narrativa

da fabricação de um atleta moderno, para outros pesquisadores do grupo.

Como articular aquela história, com problemas próprios do grupo? Afinal,

qual era a questão mais relevante para o campo da pesquisa? Onde estava a

matriz que permitiria desdobrar para sempre meus estudos? Uma a uma, as

perguntas de Ceiça me caiam como rochas na cabeça e, à medida que o

tempo avançava, o chão ia se abrindo debaixo dos meus pés. Era preciso sair

das generalizações. Qual a aposta da tese afinal? Eu tentava seguir os sinais

deixados no papel pela orientadora, mas como transformar as letras daquele

texto em narrativas da complexidade? Menos por me sentir exposto diante

dos colegas da universidade e mais por reconhecer que não havia respostas

a serem dadas, afundei-me de vez na frustração.

Cerca de duas horas e meia se passaram até que aquela obstinada

mulher se desse por satisfeita. Não que o texto estivesse bom, disse ela

(prefiro não reproduzir aqui a exata expressão utilizada), erguendo levemente

uma das sobrancelhas. Era apenas o suficiente para enfrentar a

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qualificação, finalizou sem mais detalhes. Estava desolado. Seria preciso

muito mais tempo para escrever aquela tese, eu pensei.

Levantei-me da cadeira sentindo vertigens. Era preciso reorganizar as

ideias e eu ainda não havia jantado. Percebendo meu estado, o colega físico

cedeu-me seu lugar na pequena mesa do canto da sala. Ceiça levantou-se

em direção à janela para acender outro cigarro. Não era mais necessário

desligar o ar-condicionado. Nem abrir a janela. Uma pequena pausa para se

conversar alguma coisa e beber um café. Em seguida, foi a vez de Carlos

Alberto apresentar seu texto. Historiador, Cacá argumentava na tese algo

sobre a capacidade dos artistas de enxergarem antecipadamente, de

construírem argumentos antecipadores. Durante a orientação do meu

colega, eu tentava fazer anotações. Ouvi dizer que não há acordo de

dominação sem consentimento, que o desenvolvimento não é um conceito,

mas uma fórmula que o ocidente impôs. De repente, duas rápidas batidas na

porta e uma voz feminina do outro lado se despedindo com um boa noite,

interromperam a sessão. Era Josineide, a primeira pessoa a quem

recorríamos nos momentos de dificuldade. Como a Síbila de Cumas, que

escrevia em sua caverna, em folhas apanhadas das árvores, os nomes e os

destinos dos indivíduos, Josineide nos apaziguava com palavras de quem

conhecia o futuro de cada um. Talvez ela quisesse entrar para nos dar uma

ajudinha. Não! Acredito que ninguém, àquela altura, ousaria entrar naquela

pequena sala, concluí com desalento. Aos poucos, uma a uma, outras vozes

anunciaram a partida. Já eram mais de onze horas da noite. Ficamos sós

diante de Ceiça. Cúmplices e solidários quanto à ausência de ideias, na fria

solidão de não encontrar a forma certa de dizer.

Por volta de quinze para meia noite, Valmir sentou-se de frente para

a orientadora a fim de submeter o seu texto àquela longa, rigorosa e

minuciosa dissecação. Dessa vez não houve pausa nem para uma conversa

descontraída e nem para um café. Permaneci no lugar em que estava.

Contava os minutos, batendo levemente a caneta no caderno. O ritual da

orientação iria se repetir. À medida que as páginas do texto eram lidas pelo

físico, o gás carbônico, substrato da fumaça do cigarro mais pesado que o ar,

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espalhava-se naquele pequeno espaço sem ter como escapar completamente

seja pela abertura estreita da parte inferior da janela aberta, seja pelo vão

superior da divisória. A cabeça doía. Sentia os olhos lacrimejar. Ao fundo,

ouvia a voz rouca e ao mesmo tempo firme de Ceiça questionar: o que

diferencia o prototexto de qualquer texto literário? Como a literatura, como

produção artística poderia discutir o ensino da física?

Duas horas da manhã. Faz sete horas que entramos naquela sala.

Àquela altura, minha capacidade de discernir o que exatamente estava se

passando ali já havia sido consumida pelo tempo. Apenas o orientando e a

orientadora falavam. Eu ouvia, quase ouvia, mentalmente, palavras que já

haviam perdido o sentido para mim. Rabiscava no papel, fingindo anotações.

Quando erguia a cabeça, olhava para o único lugar de possível acesso fora

dali. A janela. Eu riscava a folha do caderno durante um tempo para, em

seguida, olhar a noite através da janela. Sem que me desse conta, nesse

movimento de ir e vir com a cabeça, meus pensamentos escaparam por

aquela pequena fresta aberta na parte inferior da janela e entraram na noite.

Na definição do dicionário, a noite está ligada à obscuridade,

escuridão e a tristeza. Para os Antigos gregos, a noite era a filha do Caos.

Entrar na noite era voltar ao indeterminado, onde se misturavam pesadelos

e monstros, as ideias negras. Mas, se houve um tempo em que a noite era

tratada com temor, naquela noite, ela, como no poema de Novalis publicado

na obra Hinos da Noite (1998), fez-me ir mais longe, libertando meu

inconsciente, dando vida a ideias.

Foi quando edifícios, construções, engenheiros e arquitetos,

invadiram preguiçosamente as folhas brancas do meu caderno de anotações.

Já havia lido, em um grupo de estudos organizado por Silmara, O Método 4

(2002) de Edgar Morin. De forma que eu já conhecia um pouco sobre a

ecologia e a dinâmica de vida/morte das ideias. Por isso, enquanto

orientando e orientadora debatiam obstinadamente a construção teórica de

uma tese, eu anotava no caderno pensamentos, antes que eles escapassem

de mim. Transcrevo, a seguir, as anotações exatamente como foram feitas

naquela noite:

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Um trabalho monográfico de dissertação ou tese é como um

projeto de edificação, uma obra de construção onde entram as

partes de engenharia (cálculo, alicerces e fundações) e de

arquitetura (planejamento espacial, estético, etc..). As leituras dos

autores da complexidade entram como se fossem as estruturas e

fundações de projeto de edificação. Quer dizer, eles não devem

aparecer, ficam enterrados ou escondidos. São as bases

estruturais da edificação, para dentro do terreno, evitando que a

construção desmorone.

As leituras pessoais, dos afetos, são como um acabamento

da construção, a parte que diz respeito ao embelezamento que dá

prazer ao morador, e que permite que ele se sinta bem e feliz na

sua casa, na sua construção.

[…] As fundações e os cálculos são comuns a toda obra

produzida neste espaço chamado GRECOM. Eles são gerais, mas

a arquitetura é sempre individual, cada um tem a sua.

É possível morar em uma casa feita apenas de alicerces e

fundações - é um espaço habitável. Porém, o prazer vem quando

você consegue fazer daquele espaço o seu lugar, um lugar como a

sua cara, do seu jeito. Para isso, é preciso que você encontre os

seus afetos, as suas leituras, seus autores, seus personagens. Os

personagens. Afetos e personagens.

Mais uma vez ergui a cabeça. Novamente olhei para o relógio.

Faltavam trinta minutos para três da manhã. O físico continuava em um

diálogo intenso com Ceiça. Falavam agora de emergências discretas e o novo

espírito científico em Gaston Bachelard. Sem dar muita importância ao que

estava sendo debatido, continuei a escrever:

Quanto ao orientador, deve ser como um bom engenheiro e

dizer se a sua obra vai ou não cair, se sustentar, se está de

acordo com as normas técnicas, etc. Pode ajudar nos cálculos das

fundações e dos alicerces para que a obra fique mais sólida e

funcional. Pode dizer, use esse ou aquele autor. Leia um pouco

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mais fulano ou sicrano. Ele pode até conferir se você tem ou não

bom gosto para ornamentar a sua construção. Opinar sobre o que

lhe dá prazer. Mas o arquiteto precisa ser você!

[…] É preciso ter cuidado! O equilíbrio entre uma obra

acadêmica bem-feita só se alcança com treino (de arquitetura) e

com a ajuda de um bom orientador (de engenheiro).

Não havia causa aparente para aquelas poucas anotações escritas

com riscos mal traçados. O acaso marcado pelo desequilíbrio do

pensamento, pela dor e cansaço do corpo, talvez tenha fornecido a centelha

necessária para aquele ato neuro-imaginário.

Presença constante no GRECOM, Edgard de Assis Carvalho, em um

curso que ministrou, acredito que sobre Claude Lévi-Strauss, havia ensinado

algo sobre a diferença entre engenheiros e oleiros quando se trata de fazer

uma metáfora com a fabricação da ciência. Enquanto os engenheiros

seguiriam as etapas de um rígido protocolo, os artesãos/oleiros seguiriam a

intuição para, com as mãos, fazerem do barro uma peça única, criativa e

imperfeita. Teriam aquelas palavras do professor Edgard contribuído de

alguma forma com o que eu acabara de escrever? Precisaria de muito mais

tempo para decifrar aquelas questões, eu pensei.

Eram engenheiros e arquitetos, e não oleiros e artesãos, que haviam

contaminado as ideias da minha mente. Talvez por isso, imediatamente após

serem transformadas em um pequeno texto, aquelas ideias não fizeram

muito sentido para mim. Apesar de falar em edificações, nada nelas parecia

poder contribuir para a construção do meu trabalho acadêmico. Ainda

assim, senti satisfação por tê-las capturado e achei por bem manter aqueles

rabiscos no caderno.

Faltavam quinze minutos para as três horas da manhã quando o

físico se levantou da cadeira. Simultaneamente dependentes e autônomos,

mestre e discípulos haviam finalmente terminado a sessão de orientação

coletiva. Preocupados em responder bem alguma coisa para além do nosso

trabalho de pesquisa, deixamos a Base de Pesquisa com mais inquietações

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do que quando entramos. Quanto a mim, pensava ainda naquelas anotações

que havia feito em uma viagem imagética, no interior da pequena sala de

Ceiça.

No mundo real, aquela sala não pertence mais ao GRECOM.

Atualmente, ele mudou-se para um prédio mais novo, com instalações

maiores e mais modernas. Não obstante, guardarei para sempre as

lembranças daquele minúsculo e mágico espaço repleto de objetos, cores e

aromas, que mudou minha maneira de enxergar a construção conhecimento

científico. Afinal, em que outro lugar no mundo, borboletas de papel, deuses

gregos e flores falantes servem de palco e testemunho para a improvável

gênese de um pensamento criativo? Ditas ao mesmo tempo de forma rígida e

gentil, as palavras de Ceiça, durante as sessões de orientação, eram pérolas.

Sinais de uma modalidade de compromisso com o rigor acadêmico, que hoje

tento copiar. Mas as palavras nunca foram o mais importante para ela. Eram

necessárias, mas não suficientes. Mais importante eram suas ações, como

ela mesma já havia escrito: “a palavra sem ato é uma mentira rebuscada e

todo ato diz mais que uma constelação de palavras. As palavras, portanto,

são meios e nunca fins, por isso elas não bastam”, conforme Almeida no livro

Ciclos e Metamorfoses (2003, p.63).

Aliás, enquanto estive em Natal, em nenhum momento li algo escrito

por Ceiça que não pudesse constatar no seu jeito de viver. Ela, de fato,

escrevia aquilo que vivia. E vivia aquilo que escrevia. Uma intelectual

acessível, verdadeira (omitia, mas jamais mentia), muito intensa e corajosa,

Ceiça deixou impresso em minha alma um sentimento de gratidão e

reconhecimento. Com ela, naquela sala e com o GRECOM, compreendi que

acreditar é melhor que ter certeza. Que o método científico não deve ser visto

como a única forma de conhecimento válido e verdadeiro. Que comunicação,

explicação e informação não garantem a compreensão. Diferente do que nos

prometia a ciência no século XVII, nunca teremos acesso à realidade do

mundo. Sempre haverá o inacessível e o inalcançável. Por isso, a flor

vermelha e o deus Apolo, por exemplo, permanecerão sempre com seus

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mistérios. Aprendi que sempre escolhemos os dados das nossas pesquisas e,

sobretudo, aprendi que ninguém aprende no lugar do outro.

Anos depois, relendo minhas anotações, tive clareza que naquela

reunião de orientação coletiva, o interesse de nossa orientadora não era

apenas sobre o estado de consolidação em que estavam nossas pesquisas,

mas provocar uma reflexão que nos levasse a entender o quê e para quem,

de fato, estávamos escrevendo. Os desequilíbrios provocados pelos

questionamentos de Ceiça foram fundamentais para que eu mais tarde,

encontrasse o operador cognitivo e o autor principal (ela chamava de carro-

chefe) que iria utilizar no meu trabalho. Em 2009 concluí a tese que, ao

final, guardou pouca coisa daquilo que foi escrito no seu início. Minha

formação doutoral incluiu ainda uma série de atividades que poderiam, em

outros espaços, ser consideradas extra-acadêmicas. Não foram. Compreendi

que a formação no GRECOM é para a vida dentro e fora da academia. Saí do

GRECOM melhor do que entrei. Devo isso a TODOS (assim mesmo, com

letras maiúsculas, para simbolizar o tamanho da minha gratidão) com quem

lá estive. Mas, principalmente, devo à minha orientadora a inspiração para

tentar fazer do ato de escrever um texto acadêmico um ato sobretudo

rigoroso, mas também artístico, portador de alegria e novidade.

Naquela noite de novembro de 2006, após os dois cadeados da porta

de ferro do NEPECT se fecharem, me despedi de Ceiça com um afetuoso

abraço, um beijo e um até logo mais. Esgotado, entrei no meu Fiat Uno,

modelo 2002, com receio de não conseguir chegar até o apartamento alugado

em Capim Macio, próximo à UFRN. No caminho, sigo pela Avenida

Engenheiro Roberto Freire lentamente (acho que estava a menos de quarenta

quilômetros por hora). De repente, avisto no céu, próximo das Três Marias,

um rápido meteoro. Penso então nos rumos que a minha vida tomou mais

ou menos um ano antes. Eu havia decidido viajar com aquele carro cerca de

1.500 quilômetros, de Vitória da Conquista a Natal, levando toda família

(esposa e duas filhas pequenas), para viver intensamente o meu tempo

doutoral. A casa na Bahia, ainda sem aluguel, e os amigos e os parentes,

haviam ficado para trás. Mudei para Natal. Mudei para o GRECOM. Queria

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arder no calor cultural daquele grupo, que eu só conhecia através da leitura

em livros. Sabia que não teria muito tempo para isso. No máximo, quatro

anos. Como aquela pequena bola de fogo riscando o céu negro de poucas

nuvens, minha incandescência logo terminaria. Por isso, eu precisava

aproveitar cada minuto e aprender o máximo que eu pudesse com aqueles

pesquisadores. Deveria seguir Ceiça por todo lugar. Onde quer que ela

estivesse, como um discípulo que segue insistentemente o seu mestre, eu

também haveria de estar. Em toda aula, seminário, bancas, onde minha

orientadora estivesse presente, eu também haveria de estar. Para ouvir dela

as melhores teorias. As melhores lições. Os melhores ensinamentos. Naquela

noite, eu estava exausto. Os olhos ardiam e a cabeça doía. Mas eu estava

feliz. Por alguma razão que eu ainda não sabia explicar, acreditei que havia

conseguido!

O vento entrava pelas janelas entreabertas do meu velho automóvel

fazendo um zunido irritante. Zuuuuuu, zuuuu… Girei com força, em sentido

anti-horário, a manivela do lado do motorista, deixando completamente

aberta a janela. Coloquei parte do meu rosto para fora do carro. Agora, podia

sentir a fresca brisa das noites de verão, do mar da praia de Capim Macio.

Olhei mais uma vez para o céu, acompanhando a trilha luminosa deixada

por aquele meteoro. Por um instante, na eternidade daquele momento e sem

que nenhum segundo a mais fosse necessário, tive a certeza de estar no

melhor lugar do mundo.

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Testemunho 3: PAULA VANINA

Paulista. Atualmente mora em Natal. Atriz e produtora teatral. Fez o metrado no Programa de Pós-Graduação em Educação pela UFRN. Ligada ao GRECOM, defendeu uma dissertação sobre Manoel de Barros, intitulada O menino é o pai do homem: raízes crianceiras do conhecimento (2008).

Cara Juliana,

Deixei passar um tempo relativamente grande entre o momento do

convite e este momento no qual “respondo” a este seu desafio. Por um lado e

principalmente de fato, o pedido para minha escrita chegou em um momento

completamente conturbado da minha agenda, em que estava muito

envolvida em trabalhos que praticamente não me deixavam brechas para

sentar, ler com calma o roteiro e muito menos escrever.

Por outro lado, talvez tenha passado tanto tempo por uma

característica muito minha (que acho péssima) de encerrar etapas e não

conseguir lidar com o seu pedido de maneira tranquila. Esse encerrar tem

um perfil bem específico, qual seja, não pensar a respeito. Entretanto,

evidentemente muitas coisas das experiências vividas nas etapas encerradas

perpassam todo o ciclo de vida posterior.

Não há como passar alguns anos em um grupo de pesquisa como o

GRECOM (e acredito que, como muitos outros, mas este é nosso caso

particular), sem levar marcas indeléveis consigo. De fato, não sei se saberia

responder nenhuma das perguntas que você coloca, Juliana. Li e reli

algumas vezes e não consigo encontrar nada palpável com cara de resposta.

Tentarei vaguear por alguns pensamentos assim como acredito que vagueei

durante minha experiência no GRECOM.

Mudei para Natal após um processo muito intenso de experiência de

trabalho. E apesar de não estar precisamente pensando em apostar na

academia, acabei encontrando um desejo de pensar sobre o vivido ao ser

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aluna especial em uma disciplina de Ceiça Almeida (agora não recordo o

nome da disciplina).

Em um primeiro momento o que me instigou ali é que tudo aquilo

que ainda me era visceral, encontrava respaldo para ser pensado sem deixar

de ser sentido. E fui percebendo que isso era um sentimento compartilhado.

E essa foi a sensação mais forte durante todo o processo do mestrado.

Acredito que esse sentimento era comum tanto nas sessões de reuniões

coletivas como nas orientações individuais (individual?) e a retroalimentação

entre ambas. Sempre tive uma sensação de fluidez e leveza de pensamento

bem como a possibilidade de ver e compartilhar as paixões individuais

alimentando a paixão coletiva por um caminho específico do pensamento

científico. Não vejo (aí não como testemunho, mas como opinião) como as

reuniões coletivas de pesquisa poderiam atrapalhar os processos individuais.

Acredito que isso seria contrário ao próprio pensamento do grupo.

Bom, deixa eu ver.... que mais... Bem, eu sou sempre um pouco mais

tendenciosa ou tendente (se é que isso existe) aos espaços não acadêmicos.

Acredito que minha passagem acadêmica foi MUITO positivamente

tensionada por essa característica. Não acredito na separação possível entre

esses espaços e sinto que até o modo como durmo ou acordo em meu espaço

privado/casa afeta meu fazer acadêmico e com isso acredito que respondo, a

meu modo, sobre como as atividades do GRECOM nos espaços não

acadêmicos respondem por algum princípio que diz respeito à complexidade

e sua função vital para o funcionamento da formação acadêmica dos

habitantes do GRECOM.

Vivências... vivências e ações mais importantes.... não consigo

lembrar de nenhuma que não tenha sido. Os cafezinhos, as conversas

regadas a biscoito, os devaneios em sala de aula, os devaneios na sala de

reunião. Uma coisa que talvez pudesse ocorrer mais frequentemente é

termos mais convivência fora do espaço acadêmico (não sei como isso está

hoje em dia, falo da minha época). Mais jantares, mais almoços, mais

passeios, mais ida a eventos culturais, juntos.

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Não acredito ter sido uma pesquisadora muito assídua, entretanto,

acredito ter vivido a complexidade, exercido no meu cotidiano e acredito que

já a vivia. Ter consciência dela, das reflexões que ela traz para o campo de

pesquisa, talvez potencializaram meu viver em um estilo pautado pela

complexidade. Talvez isso carrego de maneira indelével, tatuada, como diria

Ceiça. Não lembro de traumas. Inclusive antes de minha experiência no

GRECOM, tinha passado por uma experiência traumática de mestrado em

outra instituição, e talvez pela grande diferença entre as duas formas de

pesquisar, não consigo enxergar peso no processo que vivi no GRECOM. Não

o vejo como algo que tenha causado desconforto nem estranhamento. Por

outro lado, meus canais já abertos para a vida fora da academia, talvez

tenham sido escancarados, optando até por sair e por um bom tempo não

voltar. Apesar de considerar que gosto do processo de reflexão, de pensar, de

pesquisar, de ler, de estabelecer paralelos e perpendiculares, não me

identifico com a quantidade de cobranças inerentes ao sistema acadêmico

que mesmo o GRECOM, apostando em uma ciência com consciência, acaba

tendo que acolher.

Para encerrar, o que acho que nem comecei, o bom e velho e agora

finado Manoel de Barros, que tanto me acompanhou no meu passeio pelo

GRECOM: “Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que

não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir”.

Beijos com afeto e afetada, Paula Vanina!

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Testemunho 4: SILMARA MARTON

Professora Associada do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense. É filósofa e fez mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN. Ligada ao GRECOM, defendeu a dissertação de mestrado intitulada Música, filosofia, formação: por uma escuta sensível do mundo (2005) e a tese de doutorado Paisagens sonoras, tempos e autoformação (2008). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação do Instituto de Educação de Angra dos

Reis da UFF - DEVIR.

Grecomigo

Antes de avaliar as reuniões coletivas de pesquisa do GRECOM,

assim como as orientações individuais, quero dar a conhecer um pouco o

contexto no qual entrei no GRECOM, quando de minha chegada de São

Paulo a Natal, no ano de 2005. Eu havia concluído poucos meses antes a

licenciatura em Filosofia na USP, em São Paulo, cidade onde nasci e, por

ocasião de minha ida a Natal, estava totalmente disposta a entregar todo o

meu tempo aos estudos, algo que não conseguira fazer até então, como a

uma vida cotidiana mais calma numa cidade desconhecida para mim que,

pela sua paisagem, gente e musicalidade, se mostrava prenhe dessas

possibilidades. Minha entrada no GRECOM se deu nesse tempo e em virtude

de minha aprovação no processo de seleção para o mestrado, no primeiro

semestre do mesmo ano de minha chegada.

Nesse tempo, eu escrevi um projeto de pesquisa que já considerava

modesto, mas compatível com a área de minha graduação, e vinculado com

outro grande prazer de minha vida, a música. Eu pretendia discutir alguns

conceitos da Filosofia tomando por referência temáticas de canções de MPB.

Daí, foi nesse sentido de conciliação entre o que me era oferecido pelo

GRECOM e minha exposição com enorme abertura àquela nova condição de

vida, algo muito bonito aconteceu. Ao mesmo tempo, tenho certo sentimento

de que, mesmo aberta ao que estava por vir, se não encontrasse um espaço

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tão fecundo como o GRECOM, teria seguido uma trajetória mais previsível e

menos complexa.

A experiência vivida por mim desde os primeiros dias de mestrado até

a defesa do doutorado, em agosto de 2008, se traduziu concretamente na

direção de mim mesma (o melhor em mim, acredito), nas minhas

possibilidades e lacunas, incluindo muitas dúvidas, questões e embates com

minha formação filosófica e no exercício difícil e empolgante de compreensão

de outras interpretações do mundo. Nas reuniões coletivas de pesquisa,

entre as quais, lembro nitidamente dos grupos de estudos realizados

quinzenalmente e sempre cheios de gente (orientandos, não orientandos,

professores colaboradores do grupo, outros professores,

professores/orientadores, e muitos outros estudantes), com temáticas

abrangentes e não menos profundas, eu entrava em contato com grandes

textos, capítulos de livros para os quais era preciso ter um bom

apresentador (bem escolhidos, por sinal) pois os conteúdos eram mais

difíceis, densos e/ou pouco estudados com profundidade. Esses dias de

sextas eram muito esperados por mim, pois lotavam o GRECOM. Nas

orientações individuais com Ceiça e nas disciplinas cursadas com ela ou

com outros professores do Programa de Pós-Graduação, em especial,

Terezinha Petrúcia Nóbrega e Marta Pernambuco, tive acesso a autores

desconhecidos (no campo da epistemologia da educação) e, principalmente, a

experiências didáticas muito boas. Aprendi muito nesses momentos.

Recordo, em particular, os seminários coletivos de apresentação dos

textos de dissertação de vários alunos do programa, com perspectivas bem

distintas entre si. Foram essenciais para que eu alterasse ou aprofundasse,

em determinado momento, aspectos da pesquisa. Compreendo, no entanto,

que, de maneira muito decisiva, o que deu potência à minha formação

acadêmica e me transformou, instigando em mim novas percepções do

mundo e de mim mesma foi a minha presença cotidiana na sala do

GRECOM. Ao ocupar a cadeira/mesa na sala ao lado da sala onde ficava

Ceiça (muitas vezes, somente nós duas no GRECOM), a ler, a conversar com

outros pesquisadores de outras áreas do conhecimento (alguns mais ou

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menos próximos do GRECOM) e a observar suas diferentes formas de ocupar

aquele espaço (alguns grandes colaboradores, como Carlos Aldemir), ao

secretariar e/ou ajudar a organizar eventos, ao colaborar no dia a dia com

Ceiça na digitação de textos, preparando materiais para reuniões ou para o

envio de correspondências e livros ao correio, entre outras atividades, tudo

isso conjugado, logo nos primeiros meses de minha entrada no grupo e no

mestrado, foi extremamente intenso e fez com que eu mudasse não somente

o rumo do projeto inicial, como a me alimentar de outras referências

teóricas, a me empolgar com o estudo mais e mais, a encontrar mais sentido

e muito mais alegria no mundo acadêmico. Fui percebendo logo no início que

a complexidade me permitia estar mais livre entre os domínios distintos de

conhecimento e de campos disciplinares e a assumir minhas contradições,

assim como a aceitar o meu lado mais hermético, sem me culpar tanto por

isso.

Lembro-me que Ceiça, certa vez, disse que eu era hermética e que

esse era o meu estilo. Com o tempo, passei a aceitar como uma qualidade, e

não um defeito. Lembro-me também de certo momento quando Ceiça me

emprestou um de seus textos de Lévi-Strauss (o fez com um sorriso de

quem, como eu, estava a descobrir encantada algumas palavras de

sabedoria!). Disse-me que essa leitura talvez viesse a mudar os rumos do

meu projeto de mestrado. Mudou mesmo. E, como digo depois na tese, “eu

havia descoberto que, para além do conteúdo das canções, a própria

estrutura musical sugeria um novo estilo de pensar o mundo. Assim, a

construção da dissertação seguiu o caminho das minhas afinidades

intelectuais, afetos e desejos. Exercitando uma dialogia entre Filosofia,

Música e Educação, eu pretendia contribuir para a proliferação de discursos

filosóficos mais melodiosos e harmônicos...”. Considero, a partir desse

testemunho ainda com muitas marcas de inacabamento, que as experiências

coletivas, em parceria e vividas cotidianamente, é que desencadearam um

processo individual fecundo.

É necessário lembrar, pois, que, já muito próxima da defesa da

dissertação, tendo em mãos um texto que eu considerava ainda muito

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incipiente, precisei me afastar por duas semanas do GRECOM, a fim de

finalizar a produção. Nesse momento, num misto de receio e

constrangimento, comentei com Ceiça que precisava me afastar para

escrever. Ela compreendeu. Retornei com o texto pronto para a sua revisão.

Porém, hoje me pergunto mesmo é sobre a razão do meu constrangimento e

o motivo do meu medo, que me fez chorar. Sinto que eu nutria muito, muito

respeito e admiração por Ceiça e aquele espaço, e a minha responsabilidade

aumentava proporcionalmente ao meu apego. Esse apego ganhava contornos

muito rígidos para mim, às vezes, que eram tensos. Mas nunca se modificou

essa imagem para mim do GRECOM: não de um lugar de passagem

simplesmente, mas de espaço-tempo de acontecimento, dentro do qual

houve uma captura de mim e que aceitei abraçar. A experiência do mestrado

foi bem fecunda para mim, o que me garantiu possibilidades para entrar no

doutorado do mesmo programa e ainda sob a orientação de Ceiça. Foi nesse

período que tive mais acesso e proximidade com outros projetos do GRECOM

e, entre os quais, os relacionados aos saberes tradicionais e Chico Lucas.

Nem todos de nós, orientandos de Ceiça, tivemos o privilégio de ir até a

Lagoa do Piató, conhecer de perto Chico Lucas e sua família, assim como

ouvir dele e da própria Ceiça certos assuntos e/ou participar de

determinadas conversas. Ainda assim, sei que eu era uma ouvinte a quem

nem tudo podia também ser dito. Porém, foi nesse período que experimentei

aspectos mais sensíveis e silenciosos da pesquisa e do próprio grupo.

Nesse período, nas idas à Lagoa, eu me sentia muito mais eu mesma,

porque me reconhecia naquelas pessoas mais simples. Às vezes, não sabia

nem o que dizer. Fui ficando menos apressada, mais lenta. Às vezes, até

demais. Rs! Nesse tempo, também tivemos encontros na Mãe-Terra,

palestras e vivências com Daniel Munduruku, aulas com Ceiça sobre os

Saberes da Tradição, oficina sobre “Ecologia dos Saberes” em que participei

como professora. Essas atividades resultaram numa ampliação

epistemológica necessária na minha formação e penso que para muitos de

outros orientandos. Significou para mim a extrapolação dos limites do saber

acadêmico, dito mais científico e mais importante me levando, por meio da

escuta da paisagem sonora do Piató, a escutar os meus barulhos interiores,

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minha agitação, a minha razão nem sempre lógica. Ainda bem! Foi mais uma

descoberta da complexidade que não se reduzia a ampliar as conversas

teóricas com outros pesquisadores de outras áreas, mas a uma experiência

complexa de deslocamento de referências mais implícitas, no sentido do que

diz Bohm. Assim, deslocou-se o(s) sentido(s) da escuta, do que é ou não é

filosófico, do(s) saber(es)… Eu precisei me narrar, fazer um percurso

autobiográfico, que foi a estratégia metodológica escolhida para escrever a

tese.

Essas atividades e projetos extra-acadêmicos foram parte de um

processo de maior amadurecimento para mim. Nesse período vivi também

situações solitárias de escritura de tese, por razões que também eu mesma

procurei. Em algumas dessas vezes, contei com a ajuda de amigos do

doutorado, como Renato e Josineide. Já se passaram quase dez anos desde

minha defesa de doutorado. Sinto-me uma professora que, sob muitos

aspectos, pensa e sente com muito mais liberdade e sentido quando assume

a sua complexidade. Sou grata eternamente pelo que aprendi no GRECOM.

E acho que também eu me dei ao GRECOM, ensinei algo. Sempre fui muito

colaborativa, mas sinto solidão na academia e não consegui estabelecer as

redes com o GRECOM como desejava. Percebo que os meus escritos, projetos

e aulas que desenvolvo estão circulando em torno do que sempre me

apaixonou: a arte (música), a filosofia e a educação e que meu modo de

operar nessa articulação é muito orientado pela complexidade. E isso tudo é

que me faz prosseguir e ainda com esperança.

Sempre me lembro como foi, após a aprovação no mestrado, a

recepção de Ceiça quando entrei, pela primeira vez, na sala do GRECOM. No

centro da sala de piso concreto, estava espetada uma rosa vermelha de

plástico. Tive que desviar para chegar até a mesa onde se encontrava Ceiça.

Ela me olhou de forma penetrante e me disse que aquilo representava a

poesia que emerge do chão árido da academia. Muitas vezes operei desvios

quando presente no cotidiano do GRECOM. Disso eu sinto falta. Para isso,

precisa do coletivo. Acho que é isso que o GRECOM deixou dentro de mim:

esses desvios. E eu nutro também esperança, além daquela aposta, porque

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preciso muito dela. Para cuidar da esperança, eu me nutro de poesia nas

aulas de Filosofia, nos projetos na escola, nas orientações… Senão, eu

morro, fico árida, como aquele chão. Por isso, ainda sinto aquele perfume da

rosa de plástico. Muito obrigada pela oportunidade e confiança, querida

Juliana.

Meu abraço bem apertado.

Silmara

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Testemunho 5: EUGÊNIA DANTAS

Geógrafa e professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Fez mestrado, doutorado e atualmente o pós-doutorado no GRECOM. No mestrado, defendeu a dissertação Retalhos da cidade: revisitando Caicó (1996), e no doutorado a tese Fotografia & complexidade: a educação pelo olhar (2003).

Testemunhar não é fácil. Quando eu escrevi minha tese de doutorado,

eu trabalhei com fotografia e um dos argumentos era tratar a fotografia como

testemunho. Eu defendia que todo testemunho é parcial. Também aqui, por

mais que eu tente ser fiel àquilo que me chega nesse momento, tenho

consciência de que coisas foram deixadas de lado, não por escolha minha,

mas porque nossa memória não é um bloco que acessa tudo na hora que

você quer, da forma que você quer e para atender aquilo que o outro quer. A

memória para mim é esse campo, que mais recentemente eu tenho

entendido como um espaço de esquecimento, por vezes intencional e por

vezes involuntário, além de ser um espaço de lembrança. A memória opera

nessa condição de esquecer e lembrar, condição ao mesmo tempo incompleta

e parcial. Eu estou num campo, num espaço, num contexto temporal, mas

tudo que está acontecendo ali não impregna, não chega para mim em sua

totalidade devido à forma como eu decodifico e experimento. Essa memória

vai dar um tom de singularidade, é realmente aquilo que está em

combustão, em compartilhamento, e com isso o espaço do GRECOM ocupa

uma parte da minha memória. Nessa perspectiva de esquecer e lembrar, não

necessariamente para falar da história do GRECOM ou para falar da minha

experiência nele, escolho aquilo que vazou para minha vida profissional,

para as diversas esferas em que eu me faço um ser no mundo.

Quando eu falo do GRECOM eu o considero internalizado e que,

portanto, pode ser objetivado. Quando eu falo do GRECOM hoje, não tenho a

necessidade de voltar, porque o que falo hoje é aquilo que foi internalizado

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durante a minha trajetória. Esses cortes temporais e espaciais servem para

me situar na narrativa, torná-la mais compreensível, mas eles não são

necessariamente fundamentais para que essa condição possa acontecer.

Essa condição testemunhal não acontece nessa narrativa agora, ela se dá

num percurso, numa vida que não foi interrompida. Eu não interrompi

minha vida no dia que entrei no GRECOM, eu não interrompi minha vida no

dia em que terminei minha tese de doutorado. Essa experiência integrou,

ampliou, foi internalizada. Como diz Ceiça “isso serve para você se alimentar

e para regurgitar”. Portanto, isso não serve para ser aplicado na minha tese,

isso transborda. Então, essa condição testemunhal me remete às minhas

passagens, a exemplo da minha dissertação de mestrado quando eu tive um

contato mais direto com o GRECOM, nos idos de 1993.

Depois desses 25 anos, eu vejo esse grupo como um corpo, com força e

vitalidade. Naquela época em que eu entrei, estávamos na juventude do

GRECOM, aliás uma adolescência. Aquilo que era muita combustão, muita

força, vitalidade e efervescência acontecia porque Ceiça trazia para nós a

inovação, a provocação teórica que precisávamos e que favorecia

deslocamentos, a busca de novas passagens, a busca de novas interações, e

isso mantinha o grupo em combustão. Nós, nesse estado “adolescente”,

tínhamos aquele ímpeto de conseguir, de vencer tudo, mesmo que não

tivéssemos a real dimensão teórica e epistemológica que já levávamos à

efeito.

O GRECOM se insere para mim nesse contexto de produção de uma

dissertação de mestrado que, já naquela época, era desafiadora pois eu

trabalhava com uma cidade do interior do estado e com alguns conceitos que

só pareciam dar conta de outros espaços. Era como se eu só pudesse falar

daqueles conceitos como eu queria se eu estivesse em outro espaço e isso

era um desafio. Eu precisava fazer um deslocamento, uma religação, de

forma que fosse compreensível. Trabalhar com o conceito de polifonia e de

flaneur numa cidade como Caicó, em que o espelho eram coisas que estavam

sendo ditas para Paris. Como seria isso? Soava absurdo. Esse desafio, ao

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invés de nos fazer congelar, refletia no contrário, no maior desejo de fazer.

Essa condição estava posta, não no nível apenas individual, mas no coletivo.

O GRECOM tinha a condição de ser da aproximação entre as pessoas

que estavam naquele momento desenvolvendo seus trabalhos de dissertação

e tese. Então, naquela época havia uma ligação muito forte entre mim,

Josineide e Alex. Nos reuníamos para falar das nossas dúvidas,

inquietações, inseguranças e, ao fazer isso, um contaminava o outro. Cada

um estava num canto a desenvolver suas pesquisas, mas desse canto o que

era feito fluía para o outro, e isso voltava para nossos trabalhos porque

reverberava. Essa condição do GRECOM é muito forte em mim. Tudo o que

as pessoas vão me dizendo, eu tenho a necessidade de buscar uma religação

entre uma coisa e outra. Talvez essa tenha sido a marca mais forte que o

GRECOM deixou em mim. Eu sempre tento fazer uma constelação com esses

pontos que se ligam uns aos outros, e isso pode ser na perspectiva teórica ou

em outras situações.

O GRECOM favorece essa mestiçagem, essa contaminação, essa

aproximação. E eu acho que Conceição tem essa força. Depois de 25 anos a

vejo com o mesmo vigor para mergulhar em coisas que ela acredita. Eu fui

sua orientanda no mestrado e no doutorado e agora estou no pós-doc. Em

todo esse tempo, eu nunca recebi um retorno de Ceiça em que o trabalho

não tivesse a mão dela. Eu recebia textos riscados, páginas e parágrafos

reescritos, e isso eu achava extraordinário. Hoje é muito difícil eu pegar um

texto de um orientando meu e não ter a necessidade de mexer, e me parece

que isso veio do aprendizado com ela. É claro que eu não tenho sua

destreza, mas eu tento imitá-la. Ela é capaz de colocar um texto nas alturas,

basta estar seduzida por ele. Hoje nossos orientandos não entendem que

isso nos faz aprender. Eu queria imitá-la, mas não me refiro a imitar no

sentido de copiar e nem ao sentido perverso da vaidade e da inveja, mas no

bom sentido de fazer o que admiro, eu queria imitar aquilo que eu achava

lindo. Para mim, a pessoa que sabe escrever bem tem um diferencial e Ceiça

trazia isso pra mim. A escrita para ela é algo fundamental. Hoje, lendo

Michel Serres eu entendo que a imitação é fazer para depois compreender.

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Nem sempre o que eu faço eu compreendo, mas eu não posso abandonar o

que tenho que fazer. A compreensão é muito mais e nem sempre ela ocorre

naquele momento. Eu percebia que era aquilo que deveria ser feito. O

GRECOM facilita a condição de compartilhamento, de contaminação, um

poder de dialogar um com o outro. Nosso erro é sempre querer compreender

primeiro para depois fazer. Eu aconselho meus alunos que não façam assim,

que procurem imitar, ouvir, ampliar o olhar.

Esse grupo de pesquisa é diferente de outros porque ele aproxima

tudo. Ele tem uma base teórica epistemológica clara e definida, e então você

já vai se contaminando com isso e ampliando seus horizontes. Nem sempre a

gente precisa compreender tudo para poder agir, aliás nós não fazemos isso.

Não quer dizer que eu vou fazer do jeito que eu quero e aí a coisa da

responsabilidade do que você vai fazer é muito maior. As pessoas entendem

que a imitação é fazer de qualquer jeito, mas não, é o contrário disso. Eu não

estou copiando eu estou olhando e tentando me aproximar daquilo. É uma

combinação possível. Para mim, as coisas acontecem no campo dos

possíveis, o impossível é meu horizonte, é um devir. A minha tese é o

possível, que diz das minhas condições, do meu investimento, do que eu abri

mão. O GRECOM tem essa exigência, ele não é uma experiência fácil, é uma

experiencia desafiadora.

Quando observamos o que se produz no GRECOM nos damos conta

das muitas exigências. O GRECOM se alimenta do transbordamento. Vemos

o que foi feito e precisamos fazer no mínimo próximo ou melhor, mas isso

não acontece no sentido da competição, porque o GRECOM se alimenta da

criatividade, daquilo que é mais consistente e ousado. Comumente, essa

criatividade era confundida como modo alternativo, mas o GRECOM não tem

nada de alternativo. Ele trabalha com uma ciência original porque está no

seu tempo. Sobre nós pesa uma exigência de estarmos no limite entre a

criação e a repetição, entre o padrão e o desvio. É muito fácil viver no padrão

e ou no desvio, mas o desafio é viver no limite entre um e outro. Esse espaço

é o espaço que precisa ser criado, habitado, gestado por essas duas

condições ou por algo que já existe. O GRECOM exige deslocamento.

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Veja meu exemplo, eu sou geógrafa e não saí da geografia, mas eu me

desloquei com ela para construir o “entre geográfico”, que não é só o que eu

carrego, mas aquilo que vem de outros campos. O GRECOM está nessa

condição entre o padrão e o desvio. Isso tenciona, provoca aflição, riso e

choro. Como se chega a produzir algo teoricamente consistente e

esteticamente belo? A mistura da imagem com a palavra, com o gesto, essa é

a condição da ciência. Quando eu fiz minha dissertação produzi um vídeo na

cidade de Caicó com seus personagens e apresentei para a banca. Nesse

vídeo eu me tornei a locutora da minha tese. Eu não reproduzi o

convencional, fui para um estúdio e gravei. Parece que a gente vive no limite

do que vamos criar no momento. Essa condição é importante e isso

contamina. A gente não passa pelo GRECOM fazendo sempre a mesma

coisa. Você repete imitando, sem ser a mesma coisa, sendo o que

transborda, o que ultrapassa.

Para mim, o GRECOM é esse espaço de montagem de experiências que

são teóricas, epistemológicas e afetivas. Eu não entendo a minha afetividade

longe dessas coisas. Quando eu escrevo um texto, eu quero me emocionar

com ele e essa é minha expectativa. Ali é o transbordamento das minhas

emoções e o GRECOM permite isso, permite que você construa, elabore e

transborde. Esse transbordamento não é o distanciamento de um rigor

científico, é o contrário. Eu só posso transbordar se eu tiver rigor. O que me

faz transbordar? O meu transbordamento acontece quando eu pego as

noções que me guiam e dialogam com o mundo da escrita, por isso não pode

ser qualquer coisa. Michel Serres nos ensina que esse deve ser um encontro

muito fino, raro. Daí a condição das teses que aqui são apresentadas

trazerem um pouco dessa raridade.

Eu não sou boa na construção de metáforas, mas acredito que o

GRECOM é um espaço em que está sempre faltando uma gota de água, de

vida que o faça transbordar. É essa coisa sempre aberta e fechada, sempre

no limite. É como se eu tivesse um copo com água no limite e quando você

coloca uma gota o copo transborda. O líquido se espalha e de novo precisa

de outra gota. A água volta e realimenta o que ficou, por isso que ele não

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pode ser parado, deve ter essa dinâmica de chegadas e partidas. No

GRECOM as coisas fluem, mas deixando seus rastros. Pense numa estrada

de barro, passamos, deixamos rastro, vem o vento e cobre nossos rastros de

novo e você até imagina que nada por ali passou. Mas, sim, por baixo do pó

há os rastros. porque quem por ali passou deixou rastro. Eu vejo assim. Por

isso há uma vitalidade, uma vida, uma alimentação permanente. Por isso é

preciso ter essa condição de espiral contínua e dinâmica, onde você tem um

hoje, um presente que se altera. Eu sai e me afastei duas vezes e quando

voltei percebi as mesmas inquietações e forças, porém, nas vozes de outras

pessoas. Precisamos manter em certa medida o oxigênio do GRECOM, para

que cada um possa vazar para o outro as suas ideias, seus enredos, suas

narrativas, seus desejos.

Quando eu estive no GRECOM há alguns anos, ainda naquela sala

grande do Setor I, havia uma organização da sala do GRECOM que já

apresentava o desejo de surpreender, buscando mostrar que o espaço

acadêmico pode se estabelecer de uma forma diferente, e as pessoas que por

ali passavam, os objetos, os projetos vão se constituindo nessa memória

física, espacial e documental. Essa é uma forma de testemunhar. A própria

forma de organizar a sala é uma forma de testemunhar, são banners,

documentos, fotos, objetos. A minha experiência com o GRECOM foi no

mundo das ideias e isso me satisfaz. Eu adoro pensar. Para mim, pensar é

um exercício pragmático. Conceição é uma pessoa que tem um pensamento

muito ativo, criativo... ela tem uma capacidade grande de transitar e isso

para mim é uma característica brilhante em alguém. É isso que faz um

intelectual. Para mim, o intelectual ocupa outro patamar. Ele tem que ser

aquele que interfere no pensamento do outro, e eu acho que poucos hoje

fazem isso. Fazer com que você queira imitar. Conceição é uma intelectual. A

gente não passa pela orientação de Ceiça sem ser tatuado. Há uma forma de

tatuar mais difícil de ser, quando ela incomoda. Ela forma e interfere, e se

você estiver aberto a essa interferência, você cresce e evolui muito. Ela é

muito provocativa. Ela tem um refinamento teórico que muitas vezes nos

assusta, porque nos leva a pensar que não conseguimos acompanhar,

enquanto que para ela é tão simples! Ceiça chega sempre trazendo um

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conjunto de ideias que é possível transgredir em relação aos padrões

estabelecidos.

Sabemos bem que temos sempre que colocar algo na mesa para ser

avaliado, mas nunca conseguiremos colocar tudo isso que vaza. Porque a

vida é isso, é o que fica e o que vaza. O GRECOM para mim, então, é a

experiência com a vida do conhecimento. E inclusive diria que a minha vida

é conhecimento, porque esse conhecimento aqui não é o conhecimento

apenas, é o conhecimento que me faz no mundo. Quando eu estudo eu

quero viver aquilo que estou entendendo. A vida é um conhecido

desconhecido. Eu não tenho controle desse conhecimento. A minha

experiência com o GRECOM é uma experiencia com o conhecimento

científico, com o poético e com o prosaico da vida, com a ordem, as

desordens, a estética do transbordamento e com o recolhimento, com o

silencio e o arauto. Eu mergulhei com intensidade nesse grupo. Essas coisas

entraram em mim na zona de reserva e a memória pode ser essa zona. Eu

quero esquecer isso para que essa outra coisa seja exaltada. Estar no

GRECOM é um exercício com esse magma que transborda, incendeia e que

também é rochoso, poroso e cheio de formações. E o não existe clareza sobre

seu processo de acomodação. Mas com certeza eu terei formações que

resfriam no interior da terra e outras no exterior. É esse movimento entre

exterior e o interior, que estar no GRECOM representa, é se deparar com

esse conteúdo que às vezes é poroso, às vezes é denso e eu não tenho ainda

o código para decifrar, embora ele já esteja lá. Isso é o contato com o texto,

com a leitura, com os desvios que são colocados. Isso é muito desafiador

para todos nós.

Talvez a coisa que seja mais marcante em mim ainda sejam os estudos

que fazíamos juntos eu, Alex e Josi. Estudávamos coisas diferentes, mas

estranhamente elas se uniam de alguma forma e vazavam para os trabalhos.

Registro ainda a vinda de Edgard Carvalho para as atividades, bancas e

qualificações. Ele vinha com um olhar muito aquilino, forte e às vezes era

muito duro. Fazia arguições muito boas. Aquilo era um combustível para

nós. As vindas de Edgard estimulavam a construção de ideias.

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Naquela época, quando éramos identificados como os “alunos da

complexidade” recaia sobre nós uma grande carga, parece que tínhamos que

provar mais do que os colegas de outras bases de pesquisa aquilo que nós

defendíamos e os nossos professores nos colocavam em verdadeiras

sabatinas. Ora, a complexidade faz trânsito com ciências consideradas

duras, ela dialoga com os ares fechados da física, com a química, biologia

permitindo esse diálogo, sem que esse diálogo provoque fusões. Como então,

o sujeito fechado, que compreende a ciência da limpeza, do recorte e da

análise poderia compreender as coisas dentro de um contexto? Hoje é tudo

muito simples, mas naquela época nós precisávamos estudar muito para dar

conta daquilo que não era compreensível. Quando a gente falava de

religação, flutuação, ordem e desordem, as pessoas nos questionavam de

onde vinham todas essas “novidades”. Tínhamos que fazer um esforço muito

grande para nos manter com a coluna ereta.

Ceiça gosta de recordar a época em que eu estava para defender minha

tese. Chegaram provocações de alguns professores que diziam que aquela

ideia de trabalhar com conceitos de cidades grandes não se aplicava e não

tinha sentido numa cidade como Caicó. Então, Ceiça chegou para mim e me

disse essas palavras: “arranje a solução”. E aí a gente enxerga e vai

encontrando os caminhos. O GRECOM hoje com toda essa produção não

precisa se justificar. Ele construiu uma vida. Hoje é possível uma ciência

feita nas brechas e aberturas. O GRECOM não precisa da validação, porque

tudo acontece pela adesão aos requisitos que o validam. As ciências ditas

como mais duras já entenderam tudo isso muito mais do que as ciências

sociais.

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Testemunho 6: CARLOS ALBERTO PEREIRA SILVA

Professor Titular do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação ligado ao GRECOM. A tese defendida é intitulada: Compor e educar para descontextualizar (2009).

Testemunho

Eu fui aluno do curso de doutorado em Educação na UFRN entre os

anos de 2006 e 2009. A minha orientadora foi a professora Ceiça Almeida e

minha co-orientadora foi a professora Wani Fernandes Pereira.

No que diz respeito ao processo de orientação, sem dúvidas, a

existência das orientações coletivas é um grande diferencial do GRECOM.

Várias vezes, durante o meu doutoramento, eu tive o prazer de participar

das orientações coletivas que eram realizadas por Ceiça Almeida. Nessas

orientações coletivas, cuja duração era quase sempre longa, nós refletíamos

e buscávamos acolher os ensinamentos propostos por nossa orientadora

que, ao referir-se a um dos trabalhos em foco, sempre deixava explícito algo

comum relativo ao método advindo do pensamento complexo, cuja introjeção

seria importante para o trabalho de todos. Lembro muito bem que, através

das orientações coletivas, nós íamos progressivamente incorporando os

princípios basilares da complexidade que eram fundamentais ao nosso

trabalho de pesquisa, tais como a indissociabilidade entre o sujeito e o objeto

e o método como estratégia. Eu diria que, ao partilhar dos momentos de

orientação coletiva, nós todos potencializávamos o nosso trabalho individual.

Cabe também sublinhar que as orientações coletivas traziam consigo

uma dimensão ética fundamental explicitada no compromisso com a

solidariedade e a cooperação. Assim, ainda que saibamos que a construção

de uma monografia, dissertação ou tese exija muito esforço individual,

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através do processo de orientação coletiva constatávamos que as posturas

individualistas e a lógica competitiva poderiam ser dissipadas.

Entre as ações vivenciadas no GRECOM, eu destaco, além das

orientações coletivas, as Tardes de Estudos. Nas Tardes de Estudos, ao

refletirmos acerca de obras importantes de autores diversos, nós

partilhávamos conhecimentos que contribuíram para o nosso

enriquecimento intelectual e existencial. Naquelas tardes, além da

socialização de conhecimentos, nos alimentávamos dos afetos da

comunidade greconiana que era formada por pessoas portadoras de

experiências muito diversas. Naquelas tardes, ao nos encontrarmos

reunidos, nos alegrávamos ao ver o entusiasmo e a dedicação dos colegas e

professores que apresentaram as obras e sentíamos o nosso progressivo

crescimento intelectual quando as ideias expostas por cada um tornavam-se

foco de reflexão.

No que diz respeito à atuação do GRECOM para além dos muros da

UFRN, os projetos que possuem vinculação com espaços não-acadêmicos

desenvolvidos pela professora Ceiça, junto com outros pesquisadores e

pesquisadoras, explicitam a aposta dos defensores do pensamento complexo

no acolhimento e na propagação de saberes visceralmente comprometidos

com a vida em suas múltiplas dimensões. Na minha convivência, senti que

as ações implementadas pela equipe do GRECOM fora das fronteiras do

campus universitário são testemunhas concretas da imperiosa necessidade

de disseminação de valores e atitudes complexas. Dentre essas ações,

merece destaque a vivência, que envolve aprendizados, ensinamentos e

partilhas de afetos, entre o “povo do GRECOM” e a comunidade que vive no

entorno da Lagoa de Piató no município de Assú. Indubitavelmente, essa

relação, que possui como guias o pescador Chico Lucas e a professora Ceiça

Almeida, tem demonstrado que é plenamente possível colocar em movimento

a aposta na religação dos saberes anunciada pelo pensamento complexo. Ali,

ao ser tecida a dialógica união entre conhecimentos distintos, efetiva-se

plenamente a religação do conhecimento científico com os saberes da

tradição. Ainda que eu não tenha conhecido Chico Lucas e nem a lagoa do

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Piató, posso dizer que fui afetado para sempre pelos sábios ensinamentos

anunciados por ele. Desde o momento em que me deparei com a sabedoria

contida nas cosmovisões enraizadas nos saberes da tradição, potencializei a

minha convicção de que o conhecimento científico é apenas uma forma de

conhecimento que possui algumas virtudes e muitas limitações.

Inegavelmente, uma vivência no interior do GRECOM deixa marcas

profundas e permanentes em nossas vidas. Ainda que não tenha vivenciado

traumas insuperáveis, também experimentei alguns desconfortos. Na

condição de aluno, ao deparar-me com os prazos, as avaliações e os

seminários doutorais, eu sentia o peso da responsabilidade e ficava

constantemente preocupado em cumprir com os deveres assumidos com o

curso. Além disso, mesmo desfrutando do permanente cuidado e

generosidade de minha orientadora, a escrita da tese foi algo desafiador

porque o ato de escrever é muito sofrido por ser, essencialmente, solitário.

Naquele contexto, eventuais insônias e alguma ansiedade tornaram-se

minhas companheiras de percurso. Também, em virtude de não ter fixado

residência em Natal durante o doutoramento, vivenciei o desconforto de

sentir a cobrança oculta, subliminar e, até mesmo, explícita de colegas. E

isso, ainda que eu expressasse cotidianamente o compromisso com o curso,

buscando responder satisfatoriamente as demandas assumidas, gerou

constrangimentos e atritos. Entretanto, vejo que, por ser multifacetada, a

nossa vida é sempre nutrida por conflitos, incompreensões e acolhimentos.

Felizmente, com alegria e orgulho, eu posso dizer que o acolhimento

constituiu-se numa das principais marcas do GRECOM.

Ao lembrar daquele contexto, constato que as experiências vivenciadas

por mim no GRECOM foram muito impactantes na minha trajetória. Tivemos

muitos momentos importantes: Aulas das disciplinas ministradas por Ceiça,

Tardes de Estudos, Presenças de Edgard Carvalho, Orientações Coletivas,

Seminários de Pesquisa e Defesas de Dissertações e Teses.

Nesse mosaico preenchido por significativos acontecimentos, eu

destaco dois momentos muitos impactantes para mim. Um momento foi o

encontro oportunizado por Ceiça entre a “turma do GRECOM” com Edgar

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Morin durante o 3º Congresso Internacional Transdisciplinaridade,

Complexidade e Ecoformação, ocorrido em Brasília no ano de 2008. Para

mim, aquele encontro foi muito marcante porque, ao ter assumido Edgar

Morin como o pensador mais influente na minha trajetória intelectual e

existencial, poder partilhar de uma prosa com ele num saguão de um hotel

na capital federal foi um dos acontecimentos mais felizes da minha vida. Um

outro momento emblemático foi ter participado da antológica conferência

proferida por Edgar Morin, para aproximadamente oito mil pessoas, na

Praça Cívica da UFRN no ano de 2010. Naquele momento, ao deparar com a

vibrante força mobilizadora de Ceiça Almeida e de Josineide Silveira, ao

ouvir Morin falar para milhares de pessoas sobre o futuro da humanidade,

reafirmei o meu sentimento de que a propagação do pensamento complexo é

uma exigência inadiável para que possamos construir um mundo melhor.

Enfim, a experiência intelectual e existencial que tive no GRECOM

durante o doutoramento insere-se entre as melhores experiências

vivenciadas por mim até o presente momento. Naquele espaço, ampliei os

meus conhecimentos sobre o pensamento complexo e a

transdisciplinaridade, tive contato com a leitura de autores e obras seminais

insurgentes contra os desmandos da civilização, conquistei novos amigos e

amigas e consolidei o meu compromisso com a propagação de uma “ciência

que sonha”, conforme os ensinamentos que tive com Ceiça Almeida e os seus

parceiros e parceiras de jornada intelectual.

Por ter acolhido aquela experiência como algo que nunca termina, hoje

eu continuo inteiramente comprometido com a propagação dos

ensinamentos ali aprendidos. Dessa forma, por meio das disciplinas que

ministro, das orientações de discentes e das atividades de extensão e

pesquisa em que estou envolvido, eu sigo apostando na religação dos

saberes e no cultivo de valores, atitudes e ações consoantes com a ética da

complexidade.

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Testemunho 7: ALEXSANDRO GALENO ARAÚJO DANTAS

Geógrafo, professor do Departamento de Ciências Sociais e Coordenador da Pós-Graduação em Ciências Sociais, ambos da UFRN. Fez seu mestrado em Ciências Sociais no GRECOM, cuja dissertação é intitulada Imagens da terra: por uma poética da luta política (1998). Fez doutorado na PUC São Paulo sob a orientação de Edgard de Assis Carvalho, defendendo a tese publicada sob o título Antonin Artaud: a revolta de um anjo terrível (2005).

No momento de conferir esse testemunho, coincidentemente estou

com esse livro de Edgar Morin em mãos (Para sair do século XX) e numa

parte do seu texto, ele fala sobre o que é o testemunho, para a pesquisa e

como experiência do conhecimento. Ele chama atenção para desconfiarmos

do testemunho dos nossos olhos, porque não são os olhos que veem, é o

espírito através dos nossos olhos. Assim, todo e qualquer testemunho é

produzido de uma ilusão. Todo testemunho é provisório, podendo ser falso e

marcado pela racionalização, ou verdadeiro e ainda assim estar carregado de

dimensões afetivas, perturbações psíquicas, etc. Portanto, todo testemunho

é provisório, parcial e não uma tradução do real. Ele é resultado do que

tenho na memória.

O que eu vou relatar para você, como testemunho aqui é uma ilusão,

uma tradução de uma fantasia que eu vivenciei por 18 anos no GRECOM e

que eu espero que continue com você.

Começarei pelo final, do momento em que eu deixei o grupo. Depois

de quase 18 anos no GRECOM, por razões que não considero afetivas, pois

nunca tive problemas nesse campo ali, mas pela necessidade de fazer uma

carreira solo profissional e pela forma como o GRECOM se organizava,

percebi que não dava mais para mim. Não havia espaço, havia uma

centralização de poder muito forte. Não concordo com a forma que Ceiça

conduzia e conduz o GRECOM, porém respeito. Eu era vice-coordenador

nessa época e para não ter problemas procurei outro caminho. Mesmo não

concordando com o jeito dela, esse não seria motivo para brigas. É o jeito

dela. Na época, então eu estabeleci uma ruptura. Saí e fundei um outro

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grupo chamado Marginália. É óbvio que a filiação epistemológica, o lastro

teórico sobre as ciências da complexidade, especialmente sobre Morin, quem

me ofereceu foi o GRECOM, por meio de um belo encontro de vida e

profissional por ocasião do mestrado e posteriormente com Edgard de Assis

Carvalho na PUC/SP, que é uma grande referência para o GRECOM.

Exatamente por ter essa formação eu não podia ficar preso numa concepção

burocrática e autoritária,

Para não brigar com Ceiça, que é uma pessoa que eu amo de paixão e

tenho um respeito profundo no campo pessoal e intelectual e por me

conhecer politicamente, pois não me submeto a certas coisas, eu decidi sair

para fundar outra coisa.

Tudo que estou relatando foi dito em reunião no GRECOM, por

ocasião da minha saída. Lembro que no dia da nossa conversa estavam na

sala Ceiça, Josineide, Wani, Carlos Aldemir e Bosco da UERN, e nós

conversamos sobre essas questões. Eu não falo mal do GRECOM, mas

críticas eu faço, são críticas públicas. Não estou dizendo que eu estava certo

ou estava errado, apenas não dava mais pra mim. Não que o afeto e a

relação tivessem chegado ao fim, apenas aquela forma de conduzir não era

minha praia, para não brigar eu caí fora. então esse é o primeiro registro

importante.

Digo que se não fosse o GRECOM eu não estaria no grau de

organização e inserção acadêmica, num campo de criação teórica e nesse

sentido eu não sou de cuspir no prato que comi. Mesmo saindo, mantive

parcerias com o GRECOM, em bancas, nos debates, parcerias com a Ceiça.

Há pouco fiz uma capacitação, na qual Ceiça foi minha supervisora, então

essa ligação recursiva de formação e de vida tem interface com o GRECOM.

É uma coisa que se encarnou muito fortemente na minha vida. Eu não

cuspo no prato que como. Eu contribuo melhor nessas parcerias, dentro e

fora operando nessas passagens.

O GRECOM foi fundamental na minha formação e continua sendo,

nas referências intelectuais, no jeito de orientar de Ceiça e de Edgard, as

sugestões sobre as bibliografias sempre atualizadas, um olhar sempre muito

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aberto sobre os fenômenos da pesquisa, é um aprendizado que em outro

lugar eu não teria.

Conheci Ceiça durante uma disciplina do Mestrado que paguei com

ela e com Hermano Machado. Nessa época, a escolha do orientador se dava

pelo menos seis meses depois da entrada do aluno no programa. Eu já tinha

lido um texto de Edgar Morin da obra Para sair do século XX, através de um

deputado do PT do Rio Grande do Sul, Marcos Rolim, que discutia Hannah

Arendt e Edgar Morin, dois autores dos quais sempre gostei muito. Na

disciplina de Ceiça e Hermano, encontrei Morin e ali eu tive certeza que era o

meu lugar. Cheguei para Ceiça sem nem saber quem ela era e quis ser seu

orientando. Embora eu tenha formação em geografia, eu sentia uma grande

afinidade pelas ciências sociais. Minha intuição estava correta. Esse

encontro foi fundamental. Naquela época, faziam parte do grupo Ceiça,

Vania Gicco, Dalci Cruz e Wani.

As primeiras atividades de que participei no grupo foram os

seminários temáticos, eventos muito interessantes os quais acredito que

devessem voltar a acontecer. O primeiro seminário foi sobre Bachelard, com

a saudosa Marta Pernambuco; outro foi sobre Wittgenstein com Jaime

Biella; outro sobre Gödel sobre a discussão da lógica, com o professor

Eduardo Moura. Para mim, tudo era muito interessante. O que eles

discutiam eu ainda não sabia nada. Eu vinha de uma militância política de

vários anos, então minha leitura era muito pragmática. Mas aquilo foi muito

importante porque me deu um impulso.

O GRECOM é um lugar de amizade. Durante esse tempo do mestrado

eu consolidei uma amizade afetiva e intelectual com Josineide e Eugênia.

Nós éramos o triunvirato do GRECOM. Líamos e estudávamos muito juntos.

O grupo foi então crescendo e eu fui ficando. Quando eu sai para o

doutorado obviamente gerou um certo distanciamento, mas mesmo assim

continuei no Complexus da PUC São Paulo. Para mim, o GRECOM é o lugar

que eu encontrei com mais liberdade para problematizar as coisas que

estavam me inquietando.

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A metáfora que tenho para o grupo é a de uma centopeia que precisa

se organizar; porém, talvez essa metáfora não seja mais adequada porque o

GRECOM é um espaço de voo, de liberdade. Ele não é terráqueo, ele é aéreo,

pois você encontra projetos abertos e ousados, com gente de todas as

filiações e trajetórias, com pontos de vistas muito diferentes.

Por mais que eu tenha essa crítica de início a Ceiça, quem estrutura

essa caminhada é ela, do jeito dela. Percebo que uma próxima pessoa que

venha a substitui-la terá muita dificuldade, porque se você se abre para

vários pontos de vista tem que ter muita segurança, deve ser muito firme na

condução, que se dá pela distinção. Não adianta ficar com raivinha, porque

ela está no lugar dela, no lugar do reconhecimento, o lugar pelo qual ela

lutou. O GRECOM está completando 25 anos e tem um patrimônio

acumulado, que você não pode, de uma hora para outra, abrir mão.

Eu não gostaria de destacar as idiossincrasias. Eu gostaria de

destacar que o GRECOM é um espaço de respiração, aberto a várias

possibilidades. Porém, vendo de fora, tenho a impressão que tudo começa e

termina no GRECOM. Isso é um equívoco, isso é anticomplexidade. Eu vejo

pouca participação dos membros do GRECOM, e de Ceiça em particular, em

outras parcerias e projetos de outros colegas da universidade. É preciso que

se dialogue, pois é isso que a ciência da complexidade deveria fazer, se

conectando com parceiros de pontos de vista diferentes. Até concordo que

aquilo é uma experiência de miniuniversidade, como consta no livro Ciclos e

Metamorfoses escrito pela Ceiça e Margarida. O GRECOM foi em alguns

momentos, não sei se ainda é hoje, essa experiência de miniuniversidade,

pois tem conexão nacional e internacional consolidada, mas as coisas não

começam e terminam no GRECOM, nem começam ou terminam nas ciências

da complexidade, isso é algo que o GRECOM tem que discutir. O GRECOM

tem que se abrir para a universidade. A crítica que se faz ao fechamento das

ciências duras, das ciências cartesianas e dos seus pesquisadores deve ser

feita como autocrítica. O meu grupo de pesquisa também não é tão aberto

assim, porque você precisa ter um núcleo duro para estruturar uma teoria,

conforme cita Thomas Khun. É preciso ter o cânone do seu grupo, mas há

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várias outras pessoas com quem se pode dialogar no campo das ciências da

complexidade das religações com outros referenciais. O GRECOM não se

propõe a fazer essa busca fora do espaço cognitivo e ver que experiências se

tem fora do grupo, como experiências de miniuniversidade onde a dimensão

transdisciplinar do conhecimento poderia ser interessante numa proposta

bem maior.

O campo moriniano ao qual nos filiamos diz que a reforma do

pensamento é uma reforma da universidade, que pode ser uma reforma da

educação, então pergunto: quem são os atores e as atrizes nessa reforma da

educação? Na universidade eu encontro outros, não somos só nós. Não

temos essa prerrogativa de trabalhar sozinhos as ciências da complexidade.

Então, nesse sentido o grupo vive uma contradição de um fechamento e de

uma tentativa discursiva de que é aberto. Isso na prática não acontece. Isso

para mim significa eventos dos quais não vejo participação do GRECOM.

Ceiça em especial participa pouco das atividades dos outros, inclusive dos

parceiros. No fundo é porque falta essa cultura. Falta uma troca e uma

postura de acreditar que há outros intelectuais e que há outros projetos na

universidade tão importantes quanto os seus. Não estou falando no sentido

de uma desqualificação, mas estou falando de isolamento. A sensação que

tenho é que a borboleta voltou para o casulo. Então, vejo a necessidade de

uma ruptura novamente. Como estabelecer essa ruptura desse casulo? Com

quem está lá é possível pensar isso? Qual é a disposição dessas pessoas

para se abrirem? E aí vai acabar, não vai acabar? O grupo tem uma história

consolidada, e dessa história o que necrosou? O que tem vida e poderia fazer

um novo sobrevoo imenso? Acho que existe potencial para isso. Se tomarmos

o exemplo do campo que tem inspirado Ceiça por 30 anos, o Piató, pergunto:

quais são os outros piatós da complexidade para abrir esse casulo? Quais

são as outras comunidades e experiências das quais podemos participar?

Não sei. É preciso abrir porque você tem uma boa teoria, uma boa

experiência histórica e precisa fazer novas investigações.

Essa é uma história que não cabe mais no casulo porque é grande

demais. Quando eu pergunto quem vai dar continuidade, não estou

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personificando a questão. Antes tínhamos Morin como o animador e depois

se amplia com outros pensadores e hoje o que anima, o que movimenta?

Que planejamento nós temos em termos de estudos? Que formação de novas

trajetórias intelectuais nós queremos consolidar?

Há certamente muito potencial. Uma coisa que cito como grande

sacada do GRECOM e de Ceiça, pois é mérito dela, foi ambiguidade com

relação à institucionalidade. Está lá como um grupo de pesquisa, mas ao

mesmo tempo não está nos moldes tradicionais dos grupos de pesquisa que

a universidade e a Capes querem da forma burocrática, dos relatórios. Tem

isso também, mas é muito mais que isso. O GRECOM tem espaços de

transgressões muito interessantes e você vê isso até no formato de uma tese.

Elas são metapontos de vista problematizados, até no formato. O GRECOM

não é ABNT, embora isso esteja lá também, porém nunca vai tomar conta da

representação, e por isso o grupo paga um preço. Esse é o lado rico,

transgressor que várias pessoas praticaram. Isso chega aos tribunais

cognitivos que cobram a metodologia, por exemplo. Nesse momento, você vai

no fio da navalha, com projetos abertos dizendo que as questões são de

método e não de metodologia, conforme nos diz Morin. Você tem programa,

tem estratégia, e isso simplesmente não pode ser previsto, acontece no

processo. A forma como Ceiça organizou o grupo permite dizer e reconhecer

que temos um espaço da diferença para o tribunal cognitivo que nos

condena, mas tem que nos aceitar.

Nenhum grupo de pesquisa da universidade fez o que o GRECOM fez,

colocar 8 mil pessoas à noite para uma conferência de Edgar Morin, aliás,

nem a reitoria fez isso. Essa experiência você não pode desqualificar e Ceiça

e Josineide fizeram isso sem dinheiro algum, além de viabilizar grandes

eventos aqui. Outro exemplo foi a vinda do Henri Atlan, um grande nome

respeitadíssimo internacionalmente. Por que outras áreas não trouxeram? O

que vejo é que hoje precisamos dessa nova animação, e a impressão que eu

tenho é que o grupo está ensimesmado. Isso não é só característica do

GRECOM, vejo isso também nos outros grupos, que não saem do rame

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rame, a tese, a dissertação e etc. O que podemos encontrar para alçar novos

voos?

A universidade perdeu muito em capacidade cognitiva, hoje temos a

geração da meritocracia, de uma racionalidade sem sentido, dos

especialistas sem espírito, como diz Weber. O que anima aqui não é mais a

experiência de vida, mas apenas o diploma de mestre ou doutor. O desafio é:

por que não se volta, depois de uma experiência de mestrado ou doutorado?

É claro que temos bons exemplos de retorno como você, Eugênia, Josineide,

Wani. Não é que eu seja nostálgico, mas sinto que as pessoas têm entrado

na universidade para fazer negócios, não negócios escusos, mas

profissionais. Como diz Antonin Artoud, é fazer um teatro de palavras, uma

mera figuração de um texto que tem um código. O teatro de experimentação

envolve o corpo, envolve a alma, é um teatro de sangue onde eu dou o

melhor de mim, não uma mera figuração. E acho que em outros grupos pode

ser até pior.

Sensibilizar hoje a camaradagem do cotidiano da universidade é muito

difícil, se aquilo não estiver voltado para seu tema, para seus interesses. A

perspectiva dos últimos três anos no Brasil agravou esse cenário, então vem

essa perda na dimensão ética do que é fazer universidade hoje. A outra

perda está no campo intelectual, as pessoas não estão preocupadas com a

formação intelectual, mas com a mera informação. Os intelectuais colocam

questões da ciência na arte, na filosofia e também na política. Eles devem

falar dos problemas da sociedade, os problemas contemporâneos, e as

pessoas não querem mais isso, elas se contentam com a ditadura da rapidez.

Sinto isso numa banca de TCC, numa qualificação de mestrado e doutorado,

quando um colega tenta minimamente estabelecer um espaço de reflexão,

aquilo causa um incômodo. Como diz Morin, não existe mais espaço para o

pensamento. Então, se a política expulsou o pensamento eu diria que

também a ciência se esvaziou do pensamento. O GRECOM vive também essa

crise. Porém, isso também se configura num desafio para o grupo que

sempre mexeu com as questões epistemológicas. Isso deve ser uma atitude

política do grupo.

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As questões epistemológicas nunca foram bem a minha praia. Eu

gosto dos autores que me mobilizam. Por outro lado, fazer uma leitura de

Prigogine e Stengers (a não ser os ensaios dela, que adoro) foram minhas

limitações, porque eu achava chato. Ceiça nos oferecia isso muito bem. Na

minha concepção, o isolamento epistemológico não faz conjuntura com os

fenômenos contemporâneos, com os problemas da cidade, no sentido amplo

da palavra, com os temas que tem a ver com a vida. É preciso pensar a

política, a vida, o próprio sujeito e, para mim, essa é uma questão que

possibilita um novo alento.

Para mim, Morin sempre será essa grande referência do desvio para

falar de questões do mundo acadêmico, da filosofia e da vida social. Ele

sempre teve um estilo animador, jovem demais. Ele escreve como um jovem,

não como aqueles sociólogos que só escrevem para os iguais. Por mais que a

palavra complexidade seja “antimarketeira”, ela tem uma radicalidade que

não permite ao sujeito pensar os fenômenos de maneira simplificada. Morin

é fundamental para isso. Ele te leva para uma reflexão profunda. Eu acho

que Ceiça e Edgard tem isso também e o GRECOM tem esse mérito. Quando

ele vai falar sobre método, ele tem uma visão ensaística da ciência e, para

mim, Ceiça e Edgard têm essa sensibilidade também.

Não faço aqui o discurso das Cassandras tristes e mal-humoradas.

Mas penso que é um momento de novas borboletas. Penso que é preciso

continuar com o compromisso de politizar o pensamento. Como, eu não sei

exatamente.

Das lembranças, posso citar as muitas cachaças e festas na casa de

Ceiça, que eram ótimas, por sinal. Uma outra boa lembrança foi minha

parceira com Hermano Machado. Inclusive lembro de uma das cenas mais

loucas que eu vi, ver Hermano dormindo com os sapatos na mão. Nosso

ponto de encontro fora da universidade era o Bar do Mário no CCAB Sul.

Tínhamos uma vida social bem ativa. Lembro de uma das maiores

transgressões, voltar para casa somente no outro dia às 15h, eu, Ceiça e

Josineide, foi uma verdadeira virada. Isso ajudava, nos tornava mais

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próximos, mas às vezes também atrapalhava no campo intelectual, pois

havia tensões pela questão dos afetos.

Do espaço físico anterior do grupo, éramos vizinhos da base de Marta

Pernambuco, e era muito engraçado, porque ela tinha um mau humor

histórico e não dava bom dia a ninguém.

Outra recordação se refere ao I Congresso Mundial de Complexidade,

realizado em 1998, no Rio de Janeiro. Ceiça levou uma enorme trupe. Fomos

eu, Gustavo de Castro, Adrian da PUC São Paulo, Rosa, Josineide,

Margarida Knobbe, Maurício Panela, Aldo, entre outros. Alguns de nós

resolvemos fazer um manifesto anticomplexidade no hotel lá em Botafogo,

porque considerávamos que o evento não tinha nada de complexidade. O

manifesto num estilo surrealista era um texto com palavras a serem

recitadas. No outro dia, panfletamos e Ceiça ficou bravíssima. O modelo do

evento era muito tradicional. Eu lembro que fui apresentar meu trabalho no

GT e quem coordenava era Raul Motta e havia uma professora francesa,

cartesiana até a medula, a me cortar. Eu então finquei o pé e disse que ia

apresentar meu trabalho até o fim. Essas eram boas tensões. Edgard

Carvalho a acalmava dizendo: “deixa os meninos”. Lembro que à noite,

durante o encerramento do evento, estava presente Maitê Proença, pois

Morin era seu fã. Maitê declamou vários poemas para ele, e esse foi um

momento muito interessante. Cabe destacar que a maior participação dos

grupos de complexidade nesse congresso foi do GRECOM.

O GRECOM tinha uma ousadia interessante: trazer grandes

intelectuais para Natal. Nesse sentido, vieram Edgar Morin várias vezes,

Henri Atlan, Dietmar Kamper, dentre outros. Este último me impressionou

pela postura educada, humilde, simples.

É bom destacar que uma das grandes experiências, de maior

visibilidade para o grupo, foi o projeto de extensão Polifônicas Ideias, no qual

os textos de autores locais ou não eram publicados no Jornal A Tribuna do

Norte. É claro que as cassandras más falaram muito mal da gente. Mas

falavam porque não faziam nada. O GRECOM fez muita coisa e tem esse

patrimônio para contar.

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Testemunho 8: JOÃO BOSCO FILHO

Enfermeiro de formação. É professor e Coordenador do Curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - Campus Natal. Docente do Quadro Permanente do Mestrado Profissional em Saúde da Família - MPSF/RENASF/UFRN. Fez seu doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação pela UFRN, ligado ao GRECOM, onde defendeu a tese já publicada: Lições do vivo, complexidade e ciências da vida (2015).

GRECOM, meu espaço de metamorfose

Cara Juliana, saudações complexas!

Foi com uma alegria imensa que recebi o seu convite para narrar

minha experiência de vida no Grupo de Estudos da Complexidade –

GRECOM/UFRN. Alguns lugares deixam marcas profundas em nosso ser, e

o GRECOM tem em mim a condição de funcionar como enzima catalizadora

de reflexões que me levam a transformações constantes e intensas. Quando

imaginamos construir narrativas, pensamos imediatamente em lembranças,

memórias, passado, entretanto, hoje, ao falar do GRECOM, o faço no

presente, porque esse lugar continua aceso em mim como no primeiro

encontro e desejo mantê-lo assim por toda minha vida.

Foi no encontro com o GRECOM, e aqui não falo do espaço físico

inserido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mas do espírito

ético, estético e político que o constitui, que consegui ressignificar valores

essenciais e, consequentemente, reacender o sentido da vida acadêmica

que, dadas as minhas experiências anteriores de formação, estava marcada

por muitas frustações.

O meu ingresso no grupo aconteceu oficialmente via seleção de

doutorado no ano de 2007. Entretanto, o meu encontro com ele aconteceu

muito antes. Ouso dizer que encontrei o GRECOM, inicialmente, no

universo das ideias, das inquietações, das dúvidas, frente ao meu processo

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de formação em saúde, e é partir desse lugar que gostaria de trazer um

pouco dessa história que transformou totalmente a minha vida pessoal e

profissional.

Sou enfermeiro, graduado pela Faculdade de Enfermagem da

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – FAEN/UERN. Foi nesse

lugar que, no ano de 1993, iniciei minha vida acadêmica, cheio de sonhos e

desejos de mudar o mundo. Carregava em mim a ideia de que o espaço da

saúde era um universo diferenciado, pautado no cuidado ao próximo, na

contribuição para a superação da dor não só do corpo, mas também da

recuperação do sujeito em sua inteireza. No entanto, o percurso acadêmico

me mostrou que, assim como outras profissões do campo das ciências

exatas, a enfermagem se constituía determinada por conhecimentos

fragmentados/fragmentadores, nos quais os sujeitos humanos não passam

de meros objetos, decompostos em partes, estudados em seus órgãos e

sistemas e reconhecidos a partir de números, códigos de leitos ou

patologias. Longe de se perceber o sujeito em sua integralidade, as práticas

em enfermagem apontavam para um mundo altamente competitivo, no qual

a lógica da produção capitalista também se fazia presente no número de

atendimentos a serem realizados pelos trabalhadores da enfermagem.

Essa forma dura de ver a enfermagem passou por mudanças quando

tive a oportunidade de ingressar no Programa Especial de Treinamento em

Enfermagem – PETEM, um espaço no qual sou apresentado ao mundo da

pesquisa, da produção do conhecimento no espaço da academia. Com as

inserções nesse espaço de produção e não de mera reprodução do

conhecimento, fui apresentado a novas formas de ver a enfermagem,

conseguindo assim extrapolar o universo técnico, fragmentado e repetitivo

que a construía.

A inserção no PETEM nos remeteu aos estudos da filosofia, da

política, da sociologia, da antropologia. Enfim, me possibilitou encontros

com as ciências sociais e nelas descubro a perspectiva da Saúde Coletiva,

uma nova forma de olhar a saúde. A partir daí tenho possibilidades de

encontrar um sujeito mais humano, que é visto inserido no seu

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espaço/lugar de vivência, tendo o seu modo de andar a vida levado em

consideração no momento de pensar a saúde e a doença, que deixam de ser

vistas como fenômenos isolados e passam a ser compreendidas como

processo. É no contexto da Saúde Coletiva que conheço uma nova

enfermagem, pensada como prática social, portanto, trabalho que se

percebe construído a partir do contexto histórico e social que lhe determina

os modos configurativos de suas ações.

Ao término do curso de graduação, tive a impressão de ter realizado

duas faculdades paralelas, o Curso de Graduação em Enfermagem, no qual

eu aprendi as bases técnicas para a assistência, e o PETEM, no qual me foi

possível pensar uma enfermagem mais integral, pautada na perspectiva da

saúde coletiva. Nesse lugar de dicotomias, aparentemente inconciliáveis, fui

gestando dúvidas e questionamentos que me levaram ao desejo de

encontrar novos caminhos para pensar e fazer saúde. Desde esse momento,

desejava encontrar um lugar onde pudesse fazer dialogar a clínica com a

saúde coletiva; entretanto, não conseguia localizá-lo no mundo acadêmico,

carregado de fragmentações.

Com a conclusão do curso, era preciso iniciar minha vida

profissional e, mais uma vez, a academia aparece como o caminho mais

viável para a realização profissional. A academia se tornava o lócus

privilegiado para a efetivação do meu desejo de construir respostas a tantas

dúvidas, afinal, a produção do conhecimento tornava-se meu grande

desafio, ao mesmo tempo em que representava a minha grande

possibilidade de respostas ao contraditório mundo da enfermagem.

Em 1997, a escolha tornava-se realidade, ingressava via concurso

público para professor substituto da FAEN/UERN, sendo aprovado para o

quadro efetivo em concurso realizado no ano seguinte. As novas leituras

realizadas no âmbito da docência me apontavam algumas reflexões para

que fossem construídas respostas às minhas dúvidas. Os saberes

encontravam-se atrelados à saúde coletiva, sendo tomado o aspecto das

políticas públicas de saúde, com ênfase para a questão do Sistema Único de

Saúde - SUS. A partir desse olhar, ingressei, em 1999, no mestrado em

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enfermagem, com área de concentração em saúde pública da Universidade

Federal da Paraíba – UFPB, começando a refletir sobre o processo de

conformação do SUS no município de Mossoró/RN, observando os

elementos que repercutiam diretamente na formação dos profissionais de

saúde.

No mestrado, aproximei-me de outros saberes, novas leituras que

me permitiram retornar à FAEN e discutir junto aos docentes e discentes o

processo de reforma curricular que estava em curso. Durante as nossas

avaliações, percebemos a necessidade de construir formas para efetivar o

processo de formação ancorado na proposta construída pela reforma

sanitária, vislumbrada a partir da efetivação do SUS. Nossas pesquisas

começavam a ganhar novos contornos, percebíamos que as receitas

estabelecidas pelo modelo cartesiano de produzir conhecimento, bem como

o modelo tradicional de formação educacional, no qual o aluno representa

um mero depósito para as ideias alheias eram insuficientes para vencermos

o desafio proposto.

Reconhecidas essas questões, percebíamos a necessidade de se

buscar urgentemente novos espaços de oxigenação para a continuidade do

processo de mudança curricular estabelecido na FAEN/UERN. A ruptura da

compreensão de saúde como ausência de doença ou como o bem-estar

físico, mental e espiritual do sujeito estabelecido pelas teorias uni e

multicausal, respectivamente, assumindo em seu lugar a perspectiva de

teoria da determinação social do processo saúde/doença, para a qual

saúde/doença são reconhecidas como processo que representa o resultado

das condições de vida da população, tornou-se insuficiente para sustentar

mudanças capazes de responder às necessidades de saúde da população.

Precisávamos fazer comungar novos saberes, tornava-se urgente o

entrelaçar dos saberes epidemiológicos e os saberes clínicos no universo da

formação em saúde. A antiga guerra estabelecida entre epidemiologia e

clínica precisava ser superada. Para tanto, precisávamos encontrar novos

paradigmas capazes de romper com o padrão cartesiano, bem como com o

padrão materialista de produzir saúde.

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Foi em busca de novas alianças para efetivar essa perspectiva que

encontramos o pensamento complexo, inicialmente nas discussões com o

professor Ailton Siqueira, passando pelas leituras solitárias dos livros

Ciência com Consciência e o Método de Edgar Morin e, finalmente,

encontrando-me com as ideias desenvolvidas pelo Grupo de Estudos da

Complexidade - GRECOM/UFRN, através das leituras de suas produções

acadêmicas. Diante do que lia, pesquisava e descobria a cada novo texto,

percebi que tinha encontrado um lugar que me fez acreditar ser possível

fazer ciência com prazer, paixão e acima de tudo muita responsabilidade.

No meu exercício de leitura sobre a complexidade, encontro-me com

as ideias de Ceiça, com as quais vivencio um processo de identificação

imediata. No seu desejo de caminhar “Por uma ciência que sonha”, Almeida,

no livro Ciclos e metamorfoses – uma experiência de reforma universitária

(2003, p. 35), afirma que precisamos “Em primeiro lugar, arquitetar espaços

de fuga pra frente: projetar uma sociedade mais justa e mais desejante, e

fazê-la acontecer. Em segundo lugar, investir na fuga pra dentro: exercitar a

reflexividade, a autocrítica, a humildade, o desejo primeiro de ser útil à

sociedade”. Essas palavras ainda ecoam em mim com muita intensidade, e

foi com elas que fui construindo uma nova forma de pensar a vida e o

trabalho.

As várias sessões de estudo que, antes de qualquer coisa,

representavam um encontro com parceiros que acreditavam na pluralidade

e diversidade do conhecimento, possibilitou-me novas leituras do mundo e

consequentemente a construção de novos instrumentos para pensar a

formação em saúde/enfermagem. Com as novas lentes, comecei a pensar a

construção de uma enfermagem complexa, na qual pudéssemos comungar

os saberes da epidemiologia e os saberes clínicos não como opositores, mas

como parceiros na busca por um serviço de saúde universal, equânime e,

acima de tudo, com vistas à integralidade.

Ao compreendermos a possibilidade de construir uma ciência capaz

de gerar o sonho, conseguimos perceber que seria também possível

construir um trabalhador da saúde/enfermagem capaz de sonhar, de se

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envolver, de sentir, de romper com um padrão cartesiano de compreender o

ser humano como máquina, e no seu lugar passar a compartilhar o seu

processo de trabalho com um sujeito humano que ama, que sonha, que tem

projetos de vida e que muitas vezes busca o serviço de saúde não só para a

cura de desgastes físicos, mas sim de desgastes decorrentes da sua forma

de andar a vida e este não é mente e corpo separados, eles se fazem mente e

corpo intrinsecamente.

Em meio às reflexões possibilitadas no GRECOM, em especial as

viabilizadas pelo atelier de pesquisa Conhecimento Científico e Saberes da

Tradição, realizado sob coordenação de Ceiça e contando com a presença de

Daniel Munduruku, realizei novas incursões pelo mundo do conhecimento e

encontrei na relação ciência e saberes da tradição um lugar privilegiado

para compor as minhas novas cartografias cognitivas frente ao processo de

produção do conhecimento, com consequente repercussão no espaço da

formação em saúde/enfermagem.

Com os conhecimentos produzidos a partir dos Saberes da Tradição,

ampliamos nosso olhar para a possibilidade de se refletir o processo

ensino/aprendizagem em saúde/enfermagem, tomando como base as ideias

de Claude Lévi-Strauss (2005), que nos convida a pensar o conhecimento

mais próximo da lógica do sensível. Ao se romper com a lógica assumida

pelo pensamento domesticado, um encontro com estratégias de pensamento

mais sensíveis permitiria aos trabalhadores da saúde um encontro com

sujeitos mais humanos e menos fragmentados pelo processo de construção

maquinal estabelecido pela ciência cartesiana.

Minhas leituras e encantos com a possibilidade de diálogo entre as

Ciências da Saúde e os Saberes da Tradição foram fortalecidos a partir do

meu encontro com o Piató, um lugar muito especial ao GRECOM, espaço de

muitas aprendizagens e inúmeras produções do grupo. No Piató, tive a

grata alegria de conhecer o intelectual da tradição Francisco Lucas da Silva,

um mestre que com muita sabedoria foi capaz de nutrir reencontros e

reencantos que mudaram meu modo de ver a vida e consequentemente o

processo de formação que questionava durante os meus estudos doutorais.

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Tornou-se impossível não repensar minha vida pessoal e,

consequentemente, minha prática profissional, depois das minhas

constantes idas ao Piató.

Com Chico Lucas aprendi lições que a natureza colocava à minha

frente e eu não sabia identificar. Com ele, as lições do vivo tornaram-se

mais claras e isso me ajudou a perceber que, como profissionais da saúde,

devemos pensar modelos que inspirem um verdadeiro compromisso com a

vida das pessoas que estão à nossa volta. Com os saberes da tradição

complementei o conhecimento presente nos livros técnicos das ciências da

vida, passando a entender detalhes que não me foram explicados durante a

minha graduação. Com a minha imersão no Piató, tive a oportunidade de

construir um imenso arsenal de informações e conhecimentos que me são

essenciais para o meu constante processo de mudança pessoal. São

conhecimentos sobre biologia, economia, política, farmacologia, anatomia

das plantas e animais, genética, ecologia, agronomia, veterinária, entre

tantos outros, que me ajudaram a pensar não só a minha formação

doutoral, mas principalmente o meu modo de ver o mundo.

O GRECOM, como espaço privilegiado da minha formação doutoral,

funcionou como um grande laboratório para as minhas metamorfoses.

Nesse lugar, aprendi que os saberes acadêmicos precisam alimentar, com

esperança, a vida daqueles que se dispõem a viver a academia. Não cabe

mais à universidade o distanciamento entre sujeito e objeto, entre razão e

emoção, afinal, como humanos, somos sujeitos multidimensionais,

carregados de sonhos, desejos, paixões que nos mobilizam e nos põem em

movimento.

Esse movimento vivido no GRECOM, por ocasião do doutorado,

possibilitou-me repensar os meus conceitos e a minha prática como

profissional de saúde e educador. As ideias que me habitavam foram sendo

refletidas, discutidas e, acima de tudo, repensadas. Importante destacar

que, nesse processo, o meu desejo de religação entre as diversas formas de

conhecimento foi sendo alimentado cotidianamente, e a cada possibilidade

de leitura e discussão com o grupo, o exercício de uma atitude complexa me

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fez perceber a importância de se ouvir, de se abrir as ideias diferentes.

Aprendi que não é preciso diabolizar um saber e sacralizar o outro e, sim, é

importante possibilitar um diálogo entre os saberes, de modo ético e

respeitoso.

A conclusão do doutorado me possibilitou ser inserido como

pesquisador permanente do grupo, o que me provoca profundo orgulho,

afinal, para aqueles que assumem o GRECOM em toda sua complexidade e

dinamicidade, ser membro desse grupo é carregar um sobrenome

acadêmico profundamente respeitado, pelo trabalho ético e político que vem

sendo produzido desde os anos de 1990. Estar no GRECOM é ter a

oportunidade de estar em constante contato com o calor de ideias

mobilizadoras de transformações, de movimentos que nos põem em

constante fluxo de vida.

Viver o GRECOM é encontrar palavras transformadas em atos, é

viver o significado das palavras amizade, solidariedade, cumplicidade, amor,

ética, política, transformadas em atitudes, pois ser GRECOM é assumir um

compromisso com um mundo mais justo, humano, diverso, plural e ético,

através do exercício cotidiano de politização do pensamento.

Nesse sentido, finalizo esta minha narrativa com profunda gratidão

ao GRECOM e a todos aqueles com os quais convivi e ainda convivo

atualmente, pois, nesse lugar compreendi que a vida e, consequentemente,

o meu trabalho, podem ser nutridos pela alegria, pelo amor e pela amizade.

Porque aprendi que as diferenças são essenciais para que possamos

avançar rumo a novos caminhos os quais, carregados de incertezas, podem

nos possibilitar grandes aprendizagens.

Algumas pessoas podem ler essa narrativa e dizer: “o GRECOM é um

lugar encantado, sem problemas...”. Não é bem assim. O grande encanto do

grupo consiste em reconhecer os potenciais de cada um e estimulá-los ao

crescimento; é identificar limites e buscar superá-los, é lidar com

tranquilidade frente as diferenças e a diversidade de ideias e sujeitos, e

diante dos problemas, assumi-los e transformá-los em oxigênio essencial

para a combustão da vida.

Ao GRECOM, minha eterna gratidão!

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Testemunho 9: AILTON SIQUEIRA DE SOUSA FONSECA

Professor titular da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, campus Mossoró. Fez mestrado no GRECOM pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN e apresentou a dissertação intitulada Labirintos, errâncias, vidas: um estudo sobre os nômades urbanos em Mossoró-RN (1998).

Minha estadia no GRECOM

Entrei no GRECOM em 1996, quando comecei a cursar o mestrado

em Ciências Sociais na UFRN e estava desenvolvendo uma pesquisa sobre os

nômades urbanos em Mossoró-RN.

Passei, anteriormente, por outros grupos de pesquisas na UFRN, mas

não sentia as ideias se enraizarem em mim. Foi quando comecei a frequentar

o GRECOM, sob a orientação da professora Ceiça Almeida.

Os autores discutidos, as estratégias de diálogos e discussões de

saberes, as orientações coletivas e as diversas experiências nesse grupo

começavam a fazer sentido para mim. Sentia rejuntar em mim o que eu

pensava com aquilo que eu lia, o que eu lia com aquilo que eu sentia e,

assim, em mim, vida e ideias começavam a dar as mãos numa caminhada

que vem até hoje.

O GRECOM se tornava, dessa forma, uma experiência de rejuntar

vida e ideias, razão e emoção, vida prática e reflexividade. Sentia o

enraizamento das coisas e a abertura necessária às novas emergências. Foi

assim que tive a primeira noção de uma ciência complexa e de um sujeito da

inteireza.

A complexidade dava a mim aquilo que tanto me faltava: uma

compreensão e uma sensação de largueza das coisas, de profundidade e de

abertura necessárias para a emergência do novo.

O GRECOM funcionava todos os dias, o dia todo.

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Tínhamos dias específicos para as reuniões coletivas que eram

orientadas pela coordenadora do grupo, mas as reuniões aconteciam

constantemente, de forma informal, com a orientadora e, na ausência dela,

com outros integrantes, colegas do grupo: esses encontros, as trocas de

informações, os estudos coletivos de orientandos ou pesquisadores, tudo

isso dava ao grupo uma vivência múltipla e enraizamento das experiências

de estar-junto, de saber ser com o outro, de compartilhar e escutar, algo

indispensável à aprendizagem e à (con)vivência.

As reuniões coletivas se organizavam em torno de discussões gerais,

dos fundamentos da ciência e da complexidade, questões de métodos (no

sentido moriniano), de referencialidades que cada um de nós poderia fazer

dialogar com suas questões reitoras pessoais ou de pesquisa.

As reuniões individuais eram mais singulares, porque eram

diretamente entre o orientando e a orientadora, geralmente a partir daquilo

que o orientando mostrava, escrevia ou já havia pesquisado. Mesmo assim,

as orientações eram construídas de indeterminações, de discussões que iam

além daquelas previamente imaginadas.

As duas reuniões (individuais e coletivas), em meu ponto de vista, se

complementavam e faziam exercitar a dialogia entre teoria e experiência,

entre sujeito e conhecimento, vida e ideias.

Claro que nos dois tipos de reuniões e orientações havia discórdias,

divergências, tensões – quando não tínhamos muita clareza do seu papel

formativo.

Hoje percebo que aqueles momentos foram fundamentais para me

reconstruir com-o-outro. Gosto do poeta Roberto Juarroz que dizia: “para

escutar bem o que diz uma voz é necessário escutar todas as outras”. Às

vezes, a verdadeira orientação só começa quando termina. Por que? Porque

muitas das vozes que ouvi durante as reuniões, orientações continuam

ecoando em mim, fazendo-me repensar meu pensamento e rever minhas

visões. Porque a grande aprendizagem de uma orientação só começa a fazer

sentido muito tempo depois.

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As orientações podem ser específicas (direcionadas somente para a

pesquisa), ou mais amplas. Nesse segundo caso, inclui as especificidades da

pesquisa, mas elas vão além: incluem orientações mais profundas voltadas

para a percepção, para a vida, para a reconstrução de pensamentos e

saberes que estão fora das monoculturas mentais. São essas orientações que

nos acompanham para o resto da vida. Em alguns casos, de uma orientação

não ficam somente ideias, conhecimentos, saberes, técnicas, ficam também

palavras, gestos, contextos, clímax, descobertas e silêncios geradores de

inquietações cognitivas. Ou seja: numa orientação há construção do

conhecimento, mas sobretudo a reconstrução do ser cognocente. O sujeito se

torna objeto de si mesmo. E é assim que, no GRECOM, se constrói uma

ciência mais viva e uma vida mais científica. Penso que esse é um outro

grande aprendizado que tive no GRECOM e que está presente no ser

humano que sou.

Isso faz do grupo um lugar fértil para diálogos polifônicos, indo,

portanto, de encontro a uma cultura científica da fragmentação disciplinar e

dos monólogos acadêmicos redutores.

Outra metáfora: o GRECOM é um canteiro de ideias que são cultivadas

fora das monoculturas mentais. É isso que alimenta as pessoas que o

procuram; é isso que retroalimenta suas atividades e dinâmicas; é isso que

tem feito florescer o conhecimento necessário a um novo sujeito cognoscente

e uma nova ciência. A complexidade vem me ensinando a fazer uma ciência

que sabe “voar fora da asa” (Manoel de Barros).

A complexidade tem na imagem da borboleta o símbolo do

pensamento complexo. Imagem da metamorfose que demonstra que a

construção de um novo ser requer descobertas, crescimentos,

transformações profundas e uma nova forma de estar-no-mundo.

Hoje, repenso um pouco sobre essa imagem da borboleta e me vem

um devaneio que me faz voar fora da asa: o tapete.

O tapete é feito de fios finos, sensíveis que, quando tecidos-juntos,

formam um todo consistente. O tapete é mais e menos do que seus fios.

Cada fio, separadamente, é menos que o tapete, mas todos os fios juntos

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formam algo mais que esses fios em si mesmos. O tapete não existe sem os

fios que o teceram, mas os fios soltos, isolados ou amontoados jamais

formariam um tapete.

É a arte de fiar que faz o tapete: é construção, invenção humana, algo

que, ao fazer, o homem também se faz.

Considero essa imagem mais pertinente do que a borboleta para

simbolizar metaforicamente o pensamento complexo, porque a lagarta

obedece às metamorfoses naturais, algo que já faz parte do seu ciclo vital (se

for completo). Já o tapete também comporta metamorfoses que são operadas

pelo operador: o tapete pode ser refeito, re-engendrado, fios trocados,

renovados e novos podem ser construídos de acordo com os contextos,

situações, sentimentos, imaginação criativa.

Pensar além das fronteiras é arriscado. Voar fora da asa é perigoso,

mas se quisermos construir novos saberes e se quisermos ser fiéis à

metamorfose como condição do ser e do pensamento, não podemos ficar

presos a uma única imagem, a uma única metáfora. Não podemos ficar

presos àquilo que a gente pensa que nos liberta.

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Testemunho 10: THIAGO EMMANUEL ARAÚJO SEVERO

Biólogo, professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do Centro de Educação da UFRN. Fez mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação ligado ao GRECOM. Defendeu a dissertação e a tese, intituladas respectivamente: Compreensão da natureza e formação do biólogo (2013) e A experiência como ordenação da realidade: uma estratégica orgânica para a educação (2015). É organizador, junto com Conceição Almeida, do livro Francisco Lucas da Silva: um sábio na natureza (2016).

Experiências de metamorfose:

pegadas do tempo de vida no grupo de estudos da complexidade

Cara Juliana,

Ser convidado para falar sobre a experiência viva no GRECOM me fez

exercitar movimentos de reconhecimentos e estranhamentos. Para fazer esse

exercício, percebi que não só se recruta da memória, mas se criam novas

histórias, interpretações, sentidos e significados. Obrigado por me facultar

essa possibilidade e me ajudar a contar e a pensar melhor sobre a minha

experiência.

Sou bastante afeito a uma ideia de Jorge Larrosa sobre esse falar de si.

Para ele, “a experiência não se faz, mas se padece”, isso porque o sujeito que

narra “é como um território de passagem, como uma superfície de

sensibilidade em que algo passa”. Quando falo da minha experiência não falo

daquilo que passa, mas daquilo que me passa. Falo daquilo que “ao passar

por mim ou em mim, deixa um vestígio, uma marca, um rastro, uma ferida”,

diz Larrosa no texto Experiência e alteridade em educação, publicado na

Revista Reflexão e Ação (2011).

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Nesse sentido, tomo o seu roteiro como trilha (que enumerei em

pontos) para falar sobre minhas percepções parciais, incompletas e pontuais

– assim como as marcas, vestígios, rastros e feridas dessa trajetória.

Certamente, para falar sobre o que me passa durante minha

experiência no GRECOM, precisarei fazer movimentos de ‘ir e vir’, para

pensar também sobre como cheguei nesse espaço, porque cheguei nesse

espaço, o que fiz nesse espaço e o que ele fez em/de/por/para mim.

Ainda na graduação em biologia, antes de começar a trabalhar com

educação em ciências (que foi no ano de 2008), tive passagens por alguns

projetos em áreas distintas. Minha percepção até esse tempo era que o

professor orientador era uma figura enigmática, arauto do conhecimento,

que se respeita de maneira religiosa. Ele corrigia, delegava, constatava,

prescrevia e sumia. Quem for da minha época vai lembrar – parecia o Mestre

dos Magos, da animação caverna do dragão. Essa percepção perdurou até

entrar em um projeto sobre ecologia do semiárido. Lá, entrei em contato com

uma dinâmica que não conhecia – a reunião de orientação coletiva.

Basicamente, cada bolsista tinha um recorte da pesquisa – alguns

cuidavam de analisar qualidade da água; outros, zooplancton; outros,

macrófitas; outros, sedimento. Na orientação coletiva cada um iria dizer ao

professor o andamento do trabalho e esperar a sentença – se estava fazendo

errado e iria refazer, ou se já poderia passar para a próxima leitura.

Nunca soube o objetivo do projeto. Nunca soube qual eram e como se

comunicavam as dinâmicas ecológicas que cada uma daquelas partes

testemunhava. Essa informação privilegiada – esse superconhecimento,

como fala Morin, era algo que só dizia respeito ao orientador. Não havia

parceria e diálogo, no sentido de colaboração na produção do conhecimento.

Um tempo depois, comecei a trabalhar diretamente com educação e

com ideias da complexidade, em parceria com a professora Márcia Adelino.

Naquele tempo, nascia o GRECOMVIDA (UEPB), semeado por Ceiça e Bosco

e contaminado com as ideias da complexidade. Ali tive minha segunda

experiência de orientação coletiva, diferente. Existiam dias de estudo, onde

um texto era lido e debatido por todas as pessoas – não apenas pelo

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orientador. Havia possibilidade de falar as ideias e de ter um feedback dos

colegas. O ranking do mérito estava dissolvido nos espaços de troca.

Avançando no futuro, em Natal, tive minha terceira experiência com

orientações coletivas, no GRECOM, durante o mestrado e o doutorado (nos

quais fui orientado por Ceiça).

Aqui foi necessário abrir diálogo com colegas de outras áreas de

formação, uma vez que o grupo é heterogêneo. As reuniões de estudo para

mim também eram como orientações coletivas. Ali cada fala era diferente

demais do que eu estava acostumado a escutar e essa estranheza esgarçou

meu vocabulário e testou ao máximo a minha flexibilidade, a minha

resiliência para ideias. Naquele espaço, exercitei bastante a Onivoria das

Ideias - noção que construí para pensar sobre essa adaptabilidade

necessária para exercitar o diálogo dos saberes e o pensamento em redes.

Digamos que os dias de estudo para mim eram orientações coletivas

que não estavam assinadas para você. Elas eram para qualquer um,

dependendo da sua capacidade de captar e atribuir sentido à leitura.

As reuniões de orientação coletivas onde se levavam os textos era o

trabalho de refinamento, todos poderiam parar para pensar sobre aquela

ideia, aquela hipótese, aquele trabalho. Eram bons termômetros para saber

a pertinência e sustentabilidade das ideias da sua tese ou dissertação.

As orientações individuais eram como o trabalho em imersão nas

ideias, de desconstrução, de rearranjo, de destilação. Não era raro completar

um ciclo de orientação coletiva para a individual sem ter seu trabalho

amadurecido ou completamente transformado. Se você se faz permeável,

esses espaços podem causar mutilações criadoras importantes.

Sobre a orientação individual, uma das experiências mais raras e que

me fizeram crescer muito como pensador foram as escritas a quatro mãos

que pratiquei e aprendi com Ceiça. Quando escrevíamos trabalhos em

parceria, escrevíamos em parceria. Do debate de ideias à contagem de

caracteres, fazíamos tudo a quatro mãos. Para mim, essa é uma

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demonstração muito forte de que a humildade deve ser característica

primeira de qualquer intelectual.

Aponto também as oficinas do pensamento como parte desse ciclo de

trabalho intelectual a várias mãos – ele está entre o dia de estudos e a

orientação coletiva – tem foco na discussão de um conceito ou uma noção,

mas está direcionado a algum trabalho. São espaços privilegiados, que eu

ainda não conhecia, do trabalho colaborativo de conhecimento.

A Contaminação; A vida nas Ideias e as Ideias na Vida; os

hologramas; o Diálogo de Saberes; a Implicação do Sujeito no Conhecimento,

esses são só alguns dos princípios, eixos, noções caras às ciências da

complexidade que consigo perceber e vivi nos projetos fora da academia.

Mais especificamente na Lagoa Piató. Conversar com Chico Lucas como

interlocutor, como intelectual é sinônimo do compromisso com a não

tradução dos saberes tradicionais pela ciência. Esses diálogos abriram

possibilidade para perceber as ciências como fenômeno da cultura mais

alargado, as ideias de Chico Lucas vão para o currículo formal de ciências

biológicas e pedagogia nas minhas aulas, do lado de Freire, Morin ou

Prigogine.

Os estaleiros de saberes foram expressões de compromisso com o

conhecimento implicado no contexto, e não da reflexão isolada – nem o

moinho que gira sem grãos para moer da filosofia que nega o real nem o

discurso factual desprovido de crítica das ciências que negam a reflexão

filosófica, parafraseando Morin no livro Ciência com consciência (2005).

Os princípios transdisciplinares, a ideia de que não é possível fazer

ciências sozinho e de que não existe apenas uma experiência (acadêmica,

científica, burocrática, pessoal) são centrais e marcas muito fortes da minha

experiência no GRECOM - esses princípios, para mim, são muito caros.

Creio que fui contaminado ao longo da minha trajetória no GRECOM e hoje

sou vetor. Coordeno um grupo com alunos da graduação, para trabalhar na

interface culturas, educação em ciência e complexidade. Para mim, é um dos

trabalhos mais prazerosos na universidade. É importante manter esse

sentimento de troca, de construir reflexões, de provocar, de acompanhar a

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evolução do pensamento (em trajetórias de ida e vinda) – tento fazer de mim

esse professor doador de tensões, conforme Larrosa coloca em seu livro

Pedagogia profana (2013).

Os seminários de qualificação são, também, momentos seminais para

construção e modelagem das ideias. Em um desses seminários, levei uma

ideia de capítulo para minha tese que tinha a ver com o universo de J. R. R.

Tolkien, criador de Senhor dos Anéis. Nesse capítulo, propunha metáforas

para pensar a noção de Natureza (no tempo, tema do meu projeto). Para falar

sobre a noção de Natureza complexa, a imagem que recrutei foi o ENT –

seres que possuem características comuns entre homens e árvores – apesar

de possuírem raízes, caminham – são nômades, vivem e operam pela lógica

do sensível. Acredito que os Ent são uma forte metáfora para o GRECOM,

tendo em vista que quebram a ideia de certeza, retidão, dureza e rigidez

atribuída à noção de verdade – ao contrário, são caminhantes, questionam,

mesmo sabendo das suas determinações.

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Testemunho 11: MARGARIDA MARIA KNOBBE

Graduada em Serviço Social, é professora Titular da Faculdade Estácio de Natal e da Uninassau Natal. Fez mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela UFRN, concluindo suas pesquisas, respectivamente, em 1999 e 2007. Publicou a tese de doutorado sob o título O que é compreender? (2014) e a dissertação de mestrado, em parceria com Conceição Almeida, no livro O intelectual e a cultura: múltiplas ressonâncias (2016).

Eis-me aqui

Minha primeira memória do GRECOM é o brilho do olhar de Ceiça

Almeida. Posso, agora, considerar que foi essa ‘estranheza cativante’ a

responsável por uma enorme alteração no meu mundo, tanto cognitivo

quanto afetivo. O “Eis-me aqui” no título deste testemunho significa que o

implícito é mais vivido e sentido do que formulado em palavras. Significa

igualmente uma incerteza, inspirando-me na obra Reagregando o social –

uma introdução à teoria do ator-rede, de Bruno Latour (2012, p. 180), porque

é um relato de risco que não foi escrito “olhando através da vidraça de

alguma janela”.

Instigada por alguns colegas professores com quem trabalhei na UnP

(Universidade Potiguar) ente 1997e 1998 (Josineide Silveira, Alex Galeno e

Gustavo de Castro), me inscrevi para participar do seminário “Vícios da

paixão”, promovido pelo GRECOM. E foi lá que o olhar vibrante de Ceiça me

hipnotizou, enquanto o filósofo alemão Dietmar Kamper, paradoxalmente,

apresentava suas reflexões sobre o padecimento do olhar e as imagens que

nos devoram.

Embora eu nunca tenha parado de ler e estudar, autodidaticamente,

já faziam duas décadas do fim da minha graduação em Serviço Social. Nesse

período, dediquei-me a outra área profissional: o jornalismo, além de me

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interessar pelas questões teóricas da comunicação. Também havia me

mudado recentemente de São Paulo para Natal e, entre as atividades que

passei a desenvolver, escrevia textos de divulgação científica ou jornalismo

científico para alguns veículos da imprensa local.

Completamente fora dos padrões lineares e da chamada ‘aderência’

acadêmica, naquele dia do seminário nutri o sonho de ingressar no

GRECOM e na Pós-Graduação em Ciências Sociais. O sonho se realizou.

Ingressei no mestrado e, depois, no doutorado, sob a orientação de Ceiça.

Descobri no GRECOM que a literatura, uma das minhas paixões, pode

religar-se à ciência. Nem por isso, a pesquisa científica perde em rigor; ao

contrário, ganha vida, vigor. Edgar Morin foi e é ainda o magma para todas

as minhas aventuras cognitivas a partir do GRECOM. Aprendi, e continuo

aprendendo, mais do que ciência e a exercitar a ‘aeróbica dos neurônios’,

como diz Ceiça, mas principalmente generosidade e uma certa altivez com

humildade somada a aceitação e amizade, e como tudo isso pode ser dito

apenas com um olhar, com brilho sorridente ou em lágrimas. E abraços,

complementaridades, às vezes tensas, noutras vezes, encaixes.

Escolho, a partir desses vestígios, testemunhar a celebração dos

abraços e da amizade os quais são alguns dos mais importantes

condimentos de toda a minha experiência de ciência e de vida no GRECOM.

“A amizade concebe a vida ética como uma persistência do bem no itinerário

singular de uma existência”, revela Jean-Philippe Pierron (2010, p. 262).

Reconheço, no entanto, que a persistência do tempo partilhado em comum

produz tensões, em alguns momentos.

Desde o início, fui desafiada a superar meus limites. Ao mesmo tempo

em que estudava Morin e outros autores da complexidade, Ceiça me

convidou para ser co-orientadora de alguns alunos de graduação das áreas

da Educação, das Ciências Sociais e do Jornalismo, ainda durante o período

do meu mestrado. Também me convidou para ser uma das editoras do

Projeto Polifônicas Ideias, que semanalmente publicava um texto de ciência

ou de arte no jornal Tribuna do Norte. Depois, em mais um gesto de

generosidade e de integração com a discussão crítica sobre o conteúdo do

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trabalho do GRECOM, me convidou para escrevermos juntas a história do

grupo, que completava seus primeiros dez anos, resultando no livro Ciclos e

metamorfoses: uma experiência de reforma universitária (Editora Sulina,

2003).

No período do meu doutorado, voltei a São Paulo por motivos

familiares. Mesmo não concordando com minha partida, Ceiça não me

abandonou. Conseguiu com Edgard de Assis Carvalho que eu frequentasse

uma disciplina dele na PUC-SP para terminar meus créditos. Além disso,

quando ela ia a São Paulo, dedicava um ou dois dias para me orientar.

Em uma relação educativa, tanto a amizade quanto a questão da

autoridade se impõem. E é difícil o equilíbrio entre essas duas dimensões.

Dentro do GRECOM, tenho aprendido com Ceiça e outros colegas também

essa arte que tenho buscado levar para minhas próprias experiências com

meus alunos. Especialmente no que diz respeito à forma de atuar como

professora. Fundamentalmente, na maneira de administrar o gesto educativo

com autoridade e não fazendo uso do poder que exerce coerção e dominação.

Ceiça e o GRECOM me ensinaram que o mestre é aquele que autoriza,

aquele que nos aumenta existencialmente, operando um aprofundamento de

si, um crescimento pessoal.

É por tudo isso, e por muito mais, que meu testemunho aqui

participa de um pensamento do engajamento e reivindica, portanto, o lugar

de um encontro sensível com o mundo, a partir do GRECOM.

De lá para cá, a história é longa. Outros sonhos vieram e ainda

outros virão, mesmo que ultimamente eu não tenha podido estar tão

presente no grupo quanto gostaria, por conta das atividades de sobre-

vivência. Sinto falta dos desafiantes Dias de Estudos; das trocas de

experiências entre pesquisadores de áreas tão diversas; ou de simplesmente

‘estar lá’. O ‘lá’, porém, não é um lugar físico, mas as pessoas. O GRECOM é

minha Pasárgada, “lá a existência é uma aventura” (Manuel Bandeira),

porém, nada tem de inconsequente.

Resumida e metaforicamente, eu descrevo parte dessa história (com

muitos saltos e lacunas) em minha tese de doutorado, publicada no livro O

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que é compreender? Viajando com Gulliver por velhos e novos mundos, em

companhia de Edgar Morin, Hans-Georg Gadamer, Maria da Conceição de

Almeida e outros pensadores de diversas áreas do conhecimento (São Paulo:

Editora Livraria da Física, 2014). Eis um trecho (p. 19-24):

Viagem sem fim

Raro é o sonho que começa e acaba na mesma noite. A verdade não está num só, mas em muitos sonhos.

Provérbio africano

Não há um cenário específico. Há, apenas, impressões de caminhos

perpassados por vultos indefinidos que provocam sensações: alegria,

tristeza, amor, raiva, medo, determinação. De repente, me vejo junto às

últimas páginas de minha dissertação de mestrado Além do finito e do

definido – os intelectuais sob os ecos da fábula A cigarra e a formiga, na qual

busquei negar às minhas ideias do desconhecido a cor das noções do

conhecido. Na conclusão do texto, me identifico com os personagens da Peça

ininterrupta de Michael Ende.

Depois dessa viagem – da qual a narrativa capta poucas paisagens e

solavancos – alguma coisa ficou diferente. A fenda no espaço do formigueiro

não volta a se fechar. Não posso e não quero defender-me quanto a isso.

Nada será como antes. Sinto-me parte do espelho daquela Peça ininterrupta

descrita por Michael Ende. E entre os seus personagens – trajando roupas

de saltimbancos de um desbotado multicolorido e aventureiro – que

percorrem o mundo composto somente por fragmentos, buscando a palavra

perdida, através da qual tudo se relacionava com tudo:

– De onde viemos? Da montanha do céu.

– O que fazíamos lá? Cada um de nós situava-se em um cume e gritava as palavras uns para os outros. Era uma peça para o Sol, a Lua e as estrelas, encenada sem cessar porque conservava o mundo unido. Um dia houve uma desgraça: notamos que faltava uma palavra. Ninguém a havia roubado; nós tampouco a esquecêramos. Ela simplesmente não estava

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mais lá... Desde então, estamos viajando para tentar reencontrá-la.

– E quem ou o quê nos conduz? A palavra.

Repasso, de memória, o que fiz nesses anos em busca da palavra

perdida, enquanto a vida criava situações desconexas, ora mais

fragmentárias, ora em direções mais totalizadoras, íntegras. Fragmentos de

relacionamentos, pessoais e profissionais, se perderam, para sempre, ou se

metamorfosearam. Porém, a busca da palavra perdida manteve-se no

caminho do conhecimento, embora também metamorfoseada. Avanços e

retrocessos marcaram esse caminho, mas o balanço é positivo, considerando

a minha permanência, mesmo após o mestrado, como pesquisadora do

GRECOM – Grupo de Estudos da Complexidade.

O GRECOM, para mim, é o espelho da Peça ininterrupta. Seus

componentes, verdadeiros saltimbancos aventureiros, percorrem o mundo

composto por fragmentos, buscando os saberes que se inter-relacionam com

tudo. Isso ficou mais claro depois que pesquisei todas as monografias,

dissertações e teses gestadas naquela miniatura de universidade dentro da

UFRN. Inicialmente, eu havia me proposto a fazer dessa experiência

acadêmica a referência para pensar uma outra ciência, uma nova

universidade em meu doutorado. A investigação tomou outro formato, a

partir do convite de Ceiça Almeida para contarmos, juntas, a experiência de

ciência e de vida mesclada no grupo, em comemoração aos seus 10 anos de

existência. Daí nasceu o livro Ciclos e Metamorfoses – uma experiência de

reforma universitária, editado pela Sulina, em 2003. A produção do texto

para o livro me trouxe outros questionamentos sobre a palavra perdida.

Aprofundando-me nas noções expressas por Edgar Morin em Os sete

saberes necessários à educação do futuro, que usei como referência para

analisar os trabalhos, a assertiva a comunicação não garante a compreensão

passou a me incomodar mais do que antes.

Aprender e ensinar a compreensão, como propõe Morin, inclui todas

as formas de comunicação, não apenas aquela que se vale da fala e da

escrita. Principalmente para compreender a condição humana não bastam a

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palavra perdida, da história de Michael Ende, nem a despalavra, do poeta

Manoel de Barros:

a palavra nascida para o canto – desde os pássaros. A palavra sem pronúncia, ágrafa (...) o som que ainda não deu liga (...) A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: a despalavra mesmo5. É necessário ir aquém e além da palavra. Antes da despalavra e depois da palavra, simultaneamente.

Uma experiência semelhante à empreendida pela norte-americana

Marlo Morgan junto a um grupo de aborígenes australianos, contada em seu

livro Mensagem do outro lado do mundo. Convidada de honra pela

autodenominada Tribo das Pessoas Reais, Marlo se lança, sem esperar,

numa expedição de quatro meses pelo deserto da Austrália, vivendo todas as

duras penas e simples alegrias daquela outra cultura, sem conhecer a língua

nativa.

Como não há perspectiva de que eu participe de uma aventura tão

radical quanto a de Marlo Morgan, aceito o conselho do equilibrista que

acompanha os saltimbancos da Peça ininterrupta:

–– Pode-se sair ou chegar a qualquer lugar quando se consegue mudar o

sonho.

Pergunto o que significa mudar o sonho, e ele responde:

–– Mudar o sonho significa inventar uma nova história e depois entrar nela.

Afinal de contas, o que você aprende na academia, se nem ao menos sabe

disso?

As palavras do equilibrista me lembram o que escrevemos na

introdução de Ciclos e Metamorfoses:

Esse pequeno grupo de sonhadores escolheu como estilo apostar na produção de um conhecimento capaz de transformar sementes de morte em sementes de vida; preferiu olhar para o mundo com lentes polifônicas como condição de entender os

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fenômenos do mundo em sua complexidade; decidiu politizar a ciência através do compromisso diário de suas práticas de vida; acreditou na boa utopia de um mundo onde homens, mulheres e crianças possam, com maior frequência, rir, sorrir e gargalhar.

O sonho do qual fala o equilibrista se assemelha, por um lado, à

tarefa do intelectual como criador de fatos portadores de sentido de futuro,

conforme sugere Jöel de Rosnay. Na afirmação de Ceiça Almeida, espera-se

do intelectual uma adesão sem limites aos ideários de uma política de

civilização e humanidade (...). Comprometido com o seu tempo, seu lugar e

com tarefas pontuais e inadiáveis, sim, mas também construtor de futuros.

Sendo sempre um nômade, na vida e nas ideias, deve visualizar horizontes

mais amplos, contextuais, trans-históricos, meta-locais.

Por outro lado, assemelha-se também aos sonhos que obsedam

alguns cientistas. Einstein, por exemplo, imagina que se desloca no espaço

cavalgando num raio de luz e tenta conceber como, dessa montada, se pode

aperceber o mundo. E o químico alemão August Kekulé Von Stradonitz,

conta Paul Caro, descobriu em sonhos no ano de 1865 a estrutura do

benzeno, formada por um anel de seis átomos de carbono sob a forma de

pares dançantes.

Esses sonhos podem ser entendidos como precursores do

pensamento, como revela Boris Cyrulnik: “De facto, o pensamento arranca-

se ao organismo, graças ao onirismo. Depois, é preciso que um outro

compreenda esta emergência para dela fazer um trabalho de palavra, a fim

de criar um novo mundo”. Vou, então, em busca do novo sonho. Como

costuma acontecer antes de toda viagem, sinto um misto de medo,

ansiedade e espanto. Estou à beira de um cais incerto.

Percebo que a pesquisa, na realidade, já havia começado antes

mesmo que eu tivesse transposto para as palavras as minhas intenções. Isso

acontece quase sempre: antes de verbalizar nossas escolhas e trazê-las para

a consciência, elas já estão lá, num cantinho do inconsciente. Essa

constatação me faz pensar que o método complexo, proposto por Edgar

Morin, não se inicia com a escolha das estratégias de pesquisa. Os fluxos

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cognitivos que alimentam o pleno emprego das qualidades do pesquisador

podem estar longe no tempo cronológico, presentes muito antes da abertura

de um itinerário. Assim como o sonho é precursor do pensamento, ele é

também um precursor da estratégia, do método.

As interrogações que alimentam a minha reflexão ora se manifestam

quase visíveis, ora escondem-se na sombra do pressentimento. Como

expressa Ernildo Stein, cada pensador tem o seu anjo com quem luta no

invisível e a quem resiste até extrair o segredo que progressivamente

pressente.

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Testemunho 12: CARLOS HENRIQUE LISBOA FONTES

Ator, Diretor da Casa da Ribeira. Fez Mestrado em Ciências Sociais, ligado ao GRECOM. A dissertação intitulada Ciência como montagem, montagem como ciência (2006) foi escrita ao mesmo tempo que a

peça de teatro O tempo da chuva.

Eu encontrei o GRECOM num período bem peculiar da minha

trajetória, quando a Casa da Ribeira fechou de 2002 para 2003, e aquilo me

deu muita inquietação, devido ao contexto da época, por várias questões

políticas, mas também de cunho sociológico. Eu pensei que deveria estudar

sobre isso. Fui buscar primeiro o curso de Comunicação Social, que foi o

curso que eu tinha feito, para ver se tinha entrada para mestrado ou

especialização, e não tinha. Daí eu saí andando por ali e alguém me disse

que nas Ciências Sociais seria capaz de encontrar o que eu estava

procurando. Completamente por acaso entrei numa sala no CCHLA e

encontrei o nome de Ceiça e vi as áreas que ela atuava na complexidade.

Eu nem sabia o que era complexidade. Me interessei e fiz um

anteprojeto, conversei com ela rapidamente e ela ficou super empolgada

porque talvez eu tenha sido o primeiro das artes a ser orientado por ela. O

anteprojeto questionava o lugar do artista em relação ao público e porque

não conseguimos fazer a ligação para criar uma rede sólida e talvez

sobreviver. Claro que o projeto mudou muito e acabamos seguindo pela

epistemologia. Foi incrível, porque Ceiça me apresentou a física quântica, me

apresentou Werner Heisenberg, A parte e o todo, livro que foi central da

minha dissertação. Ali eu vi muitos paralelos mesmo entre a teoria científica

e a montagem de uma peça de teatro e foi amor à primeira vista, por que

realmente não me imaginava na vida acadêmica, pelo que eu vejo. Hoje eu

vejo um embate político muito forte, uma briga de egos muito forte. Um

compromisso muito mais com a defesa de sua base em detrimento da

pesquisa em si.

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No GRECOM eu não via isso, eu via um encontro de várias mentes,

de vários corpos, várias pessoas incríveis que estavam ali realmente

inquietas, querendo questionar os vários aspectos da sociedade e isso eu

achei muito motivador. Os dois anos que passei lá realmente impactaram em

tudo que eu faço hoje, porque eu consigo ter um pensamento um pouco

mais integrador. Hoje eu não vejo as coisas separadas, mas integradas. Eu

vejo a possibilidade de áreas muito diferentes estarem dialogando pela arte.

O lugar da arte precisar de outras áreas do conhecimento para se explicar,

isso é fantástico. Tem realmente um divisor de águas aí. Ceiça disse que

inaugurou a orientação debaixo das árvores comigo, porque, como ela fuma

muito e eu não aguentava, então sugeri a orientação lá fora, embaixo das

árvores, e ela topou. É isso, eu acho que Ceiça tem essa abertura e essa

grande sagacidade em relação ao meio em que vive, em relação a várias

coisas.

Sobre as atividades do grupo, eu acho primeiramente tudo muito

ousado, uma vez que a estrutura do GRECOM, para quem está de fora,

imagina que é algo gigantesco, e na verdade é mínima, para tudo o que eles

se propõem a fazer. É uma estrutura precária. Tem até aquela história de

dois professores portugueses que chegaram na UFRN procurando o prédio

do GRECOM e encontraram apenas uma sala, e se perguntavam: mas como?

Como toda aquela produção, todas aquelas publicações podem sair

dali? Eu acho isso tudo uma loucura, uma insanidade, porque a equipe é

muito pequena, todo mundo que entra acaba se desdobrando muito,

trabalhando muito. Ceiça envolve todo mundo, não só ela, mas todo mundo

que está lá, compondo e resistindo com o GRECOM, [ela] convida quem

entra a colocar a mão na massa. Não tem isso de você ser só um estudante

visitante, fazer seu trabalho e ir embora, não, você tem que colocar a mão na

massa, tem que atuar, tem que fazer as coisas. e isso eu acho incrível, eu

acho que é um dos maiores méritos do grupo. É isso, é pensar a academia de

novo como o lugar da produção do conhecimento integrado e do

envolvimento numa relação com a comunidade.

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Eu lembro que uma das coisas que era inquietante para Ceiça era que

nós extrapolássemos, as portas, as barreiras, os muros da universidade, e

hoje já é uma coisa natural, hoje já acontece, a exemplo do último evento

ocorrido agora em setembro, coordenado pelo GRUPECOM, em Ceará Mirim.

Se formou um grupo lá e fizemos uma performance lá. Quer dizer, é muito

livre mesmo.

Eu gosto de pensar o grupo como uma coisa etérea ou gasosa, que

penetra e que está como o ar em vários lugares, essa deve ser a vontade e a

vocação do GRECOM. Há duas coisas que eu lembro para registrar, uma

delas é, tendo aula de Ceiça, a qual era muito aberta e debatida por todos.

Lembro que Ronaldo, diretor da Escola de Música, na época, participou

comigo intensivamente das discussões para desmistificar a ideia da arte

como adorno, como cereja do bolo, como festa ou retoque pitoresco. A arte é

discussão, é produção do conhecimento. É muito diferente você citar uma

obra e viver a produção da arte. E Ronaldo entendia isso comigo e levávamos

o debate ao longo dessa disciplina.

Mas um fato interessante para relatar foi que, bem pertinho do final e

da minha defesa, numa das últimas orientações, Ceiça leu o texto e me disse

“Henrique tá ótimo, com tudo no lugar, mas tá chato. Você é um artista,

ator, um dramaturgo, como você vai fazer um texto desses, tão acadêmico?!”

Então, eu lhe disse: “mas Ceiça, não é isso que eles esperam?!” e ela me

disse: “mas não precisamos fazer o que eles esperam”. Isso foi muito louco

porque eu voltei para casa perturbado e tive que reescrever a dissertação do

ponto zero, num modelo novo em 15 dias. Ela foi escrita num formato

romanceado, pelo menos os dois primeiros capítulos. Enfim, isso é outro

diferencial do GRECOM, a transgressão à norma. Paula Vanina, anos depois

fez um trabalho no formato de uma caixa de brinquedos, puxando para

Manoel de Barros. Isso é a transgressão.

Essa experiência transformou minha prática artística. Cada vez que

estou fazendo uma peça, me sinto escrevendo uma nova dissertação ou uma

tese. Um o exemplo disso é a Peça “A invenção do Nordeste”, foram dois anos

de pesquisa intensiva, o processo é muito parecido.

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Sobre a metáfora para o GRECOM, para mim, pensando rapidamente,

ele é uma chave múltipla, uma chave-mestra que abre várias portas. Ela

abre as portas de formação, de conhecimento, de pensamento. Essa chave é

cada vez mais cara e rara e é usada principalmente para abrir a caixa do

pensar. Esse lugar onde a gente acessa para produzir pensamento reflexivo,

integrador, que não exclui, que está preocupado com o hoje. Mas é uma

chave para fazer nascer a antropoética do pensamento, que nos permite

entender o quanto somos múltiplos, diversos, complexos e só podemos dar o

próximo passo se tivermos uma chave como essa.

O GRECOM é uma dessas chaves que facilitam o caminho. É difícil

você facilitar caminhos para o pensamento, porque todos nós estamos em

nossas caixinhas fragmentadas, caixas da formatação. Ainda hoje eu uso

essa chave-mestra, na minha prática profissional e na vida. Uma outra

metáfora possível é a matrioska, aquelas bonequinhas que guardam outras

bonequinhas. Quem sabe a chave não abre a caixa das matrioskas?

No seu roteiro você também pergunta sobre as dificuldades e

necroses. Eu acho que todo agrupamento de pessoas sempre vai haver uma

briga de egos e eu acho que o GRECOM tem evitado isso. É preciso estar

vigilante. Mas eles são inevitáveis. Vejo que ainda acabamos esbarrando

numa política institucional, ainda vejo uma dificuldade de a universidade se

abrir e abraçar o GRECOM. Não sei hoje, mas no passado havia esse ranço

que não sei se era uma inveja, um ranço de outros professores e grupos de

resistir em reconhecer aquilo como pesquisa, como ciência.

É necessário combater esses egos, mas eles são inevitáveis. Daí vêm

novas possibilidades.

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Testemunho 13: SAMIR CRISTINO DE SOUZA

Possui Graduação em Filosofia pela UFRN e Mestrado em Filosofia pela UFPB. É Professor e Diretor de Pesquisa e Inovação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) - Campus Natal Central. Coordenador do Grupo de Estudos da Transdisciplinaridade e da Complexidade (GETC) do IFRN. Fez seu doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Educação, ligado ao GRECOM, tendo defendido a tese: Pedagogia da fraternidade ecológica e formação transdisciplinar para um ensino educativo.

Minha experiência no GRECOM foi muito interessante. Cheguei ao

grupo quando havia terminado o mestrado em Filosofia e pouco tempo

depois, em 2003 entrei no IFRN. Porém, eu já conhecia o GRECOM desde

pelo menos 1997, quando fazia graduação na UFRN. Alguma coisa me

chamava atenção naquele lugar e eu me sentia atraído para participar, fazer

o mestrado e posteriormente o doutorado.

Eu conheci o GRECOM e Ceiça por ocasião de uma das visitas de

Edgar Morin. O GRECOM estava em total ebulição. Nessa época, procurei

Ceiça para ver como eu poderia fazer parte do grupo. Na época só havia

disponibilidade de mestrado nas Ciências Sociais. Para tanto, eu tive que

fazer um preparatório para a prova, pois não sendo da área, eu precisaria

me apropriar das leituras. Na verdade, eu queria fazer a seleção em

Educação, mas não havia essa possibilidade. Ceiça me deu umas dicas do

que ler para conhecer melhor o viés epistemológico do grupo, daí me

debrucei sobre o Método 1. Esse foi o primeiro contato com as obras de

Edgar Morin. Como eu já vinha da Filosofia, aquela leitura era prazerosa. Eu

já havia lido outros autores que mantinham confluência com o pensamento

de Morin.

A partir daí me veio então o desejo de fazer uma arqueologia na

filosofia buscando os pontos de confluência com o pensamento complexo. Eu

construí um texto e mostrei a Ceiça, posteriormente ela me retornou dizendo

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que meu escrito estava muito bom. Fiquei empolgado e mais interessado

ainda em realizar pesquisas no grupo. Minha única alternativa era encarar o

mestrado em Ciências Sociais. Fiz então a seleção e não passei. Fiquei triste

e voltei para a Filosofia, onde tentei a seleção na Paraíba e conclui por lá.

Retornei em 2002, nessa época eu era professor do Estado do RN e

ministrava aulas na Escola Estadual Winston Churchill. Ali criei um grupo

de estudos na área de complexidade e meio ambiente chamado Terra Pátria.

Nesse grupo eu comecei a trabalhar com alunos do ensino médio. Não

chegamos a ler nenhum texto de Edgar Morin na época, porque a leitura era

muito pesada para trabalhar com eles. Trabalhamos com outros autores

como Fritjof Capra e Leonardo Boff. Nessa época ocorria o evento dos 10

anos do GRECOM com a presença de Edgar Morin. Na ocasião o Terra Pátria

estava em pleno funcionamento e tivemos uma oportunidade, junto a outros

grupos de complexidade, para mostrar o que estávamos discutindo e

produzindo. Na ocasião criamos uma camisa e a colocamos à venda para

arrecadar dinheiro para a compra de livros para o grupo. Estávamos muito

estimulados. Naquele mesmo ano fui aprovado no concurso do IFRN e ali

criei o Grupo de Estudos da Transdisciplinaridade e Complexidade.

Reuníamos alunos e professores da licenciatura para discutir o pensamento

complexo no IFRN. Daí em diante eu fui me preparando para a inserção no

GRECOM.

Participei no IFRN do processo de reforma dos currículos das

licenciaturas e revisão do projeto político pedagógico do instituto. Já comecei

a introduzir nesse projeto as ideias de complexidade tanto discutidas no

GETC como no GRECOM. As ideias que circulavam no GRECOM eram

referência para mim. Aquele foi o momento da empolgação máxima. Daí eu

pensei no meu projeto de doutoramento e, de 2003 a 2006, até entrar no

doutorado passei por um processo de incubação. Foi um momento de

inserção total

Eu vivi uma fase fantástica no GRECOM, com pessoas incríveis. Foi a

época do convênio com a UESB/BA, quando vieram os colegas Carlos

Alberto, Renato Figueiredo e Walmir. Tudo era novo, empolgante,

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emocionante. Muitos projetos começaram a acontecer. E começamos a fumar

muito (risos) Ceiça fumava e eu fumava junto, embora eu detestasse cigarro.

Eu tinha até medo que acontecesse alguma coisa com ela devido ao cigarro.

Porém, junto dela eu superava minha aversão ao cigarro e dali foi surgindo

meu grande amor por Ceiça. Me lembro agora do que escrevi no

agradecimento da minha tese sobre Ceiça: ela foi a incendiária da minha

alma. Isso fazia com que a gente suportasse até os momentos de mal humor

e os estados emocionais a cada dia daquela mulher forte e contagiante. Para

mim ela é a energia do GRECOM. Eu não cheguei a estar muito próximo nas

atividades do dia a dia com Ceiça, outros assumiram esse papel. O GRECOM

era um caldeirão onde todo mundo é consumido da melhor forma possível.

Ceiça estava sempre cobrando nossa presença e, no início, eu não entendia

bem o porquê. Mas ela tinha que fazer isso, pois aquilo só pulsava se

houvesse gente. Eu tinha dificuldades para estar mais presente pois o IFRN

não havia me liberado para cursar o doutorado, então eu tinha que me

revezar. Eu sinto muita falta daquilo tudo. Sei que, se hoje eu voltasse, não

seria a mesma coisa, pois agora são outras pessoas, novas realidades, novos

projetos. Ali vemos a dinâmica da complexidade, diferentemente de outros

grupos que ficam dentro da caixa a fazer a mesma coisa. No GRECOM isso

não ocorre.

Os Dias de Estudos eram momentos fantásticos, a serem registrados

aqui. Eles eram como alimento para alma. Saíamos cheios de coisas para ler.

Chegava até a dar angústia pelo pouco tempo e pela grande demanda. Cada

Dia de Estudos era uma pulsão de vida e morte, que fazia construir e

reconstruir várias coisas. Essa é uma experiência que o GRECOM não pode

deixar nunca. Uma outra fundamental a se registrar foram as orientações de

Ceiça em que não vejo em lugar nenhum. Nas Oficinas do Pensamento

colocávamos na mesa o que estávamos produzindo e discutíamos as

temáticas das nossas teses. Era muito conceitual e ali tínhamos a dimensão

da compreensão daquele conceito em toda sua dinamicidade. Nas

orientações coletivas, a conversa era entre Ceiça e o orientando, mas os

outros assistiam sem interferir e o que ela dizia para o orientando vazava

para nós que assistíamos... era um recado para todo mundo. Posso registrar

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ainda a leitura compartilhada como prática relevante na produção

acadêmica do grupo. Líamos os trabalhos uns dos outros, quando estávamos

nos preparando para nossas defesas de qualificação ou antes mesmo das

bancas. Ali surgiam insights relevantes e podíamos colaborar uns com os

outros.

Durante minha trajetória, a experiência do meu projeto de pesquisa

na Lagoa do Piató foi incrível. Conviver com Chico Lucas e com o pessoal da

lagoa era um privilégio. Ali foram produzidos muitos trabalhos. Não era todo

mundo que ia ao Piató, havia uma certa senha para se chegar lá. Às vezes eu

me perguntava o porquê, depois fui compreendendo. Ceiça sabia que alguém

errado no Piató poderia destruir ou atrapalhar todo um trabalho que vinha

sendo feito. A maturidade dela era providencial nesse sentido.

Eu me lembro que já perto do fechamento da minha tese, no último

ano, eu fui convocado no IFRN para ministrar uns cursos em outras cidades.

Aquilo era tudo que Ceiça não queria naquele momento. Eu entrei numa

crise existencial, num sofrimento terrível e o pior é que não tinha noção

ainda com firmeza da tese que deveria defender. Eu levava a cada viagem

uma mala cheia de livros. Foi numa dessas viagens que consegui dar um

rumo a minha tese, foi quando eu dei o gás para escrever. No final do ano fiz

outra viagem e ela estava muito chateada comigo devido as minhas

ausências. Ela já não era mais a mesma pessoa comigo. Certa noite,

trancado no quarto do hotel falei com ela por telefone. Eu não havia dito a

ela que estava em Fortaleza, naquele momento, pois tinha medo de ser

desligado de sua orientação. Comecei a falar com ela aos prantos e depois

passei a noite toda em claro. No outro dia fui dar aula semelhante a um

zumbi. Eu sofria porque não sabia como ela iria reagir, pelas minhas faltas e

ausências.

Depois disso acabaram as viagens, voltei a frequentar o GRECOM e a

tese saiu. O GRECOM tinha tudo isso, toda essa adrenalina. Depois da

defesa tentei continuar, mas não consegui devido aos compromissos

profissionais. Eu precisava voltar também ao GETC para manter a chama

acesa. No IFRN fui convidado para ocupar um cargo de direção, o qual que

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eu já havia rejeitado em outra oportunidade devido a tese, que era a

prioridade. Faz quase dez anos que ocupo essa função. Já vejo que preciso

respirar novos ares e fazer outras coisas, assim como alguém que viveu a

experiência da complexidade.

A metáfora que eu uso para descrever o GRECOM é a aranha que vai

tecendo vários fios da vida, da profissão, das áreas de conhecimento, criando

uma teia que se amplia e que une a todos. Assim como Heráclito que

associou o princípio originador de todas as coisas, o “vir a ser”, usando o

fogo como elemento anunciador de todas as constantes mudanças. O

GRECOM é também o grande fogo que queima tudo e reconstrói a partir do

que já existiu.

Ceiça continua sendo a incendiária da minha alma. Ainda tenho

muita coisa inacabada com ela que desejo retomar, a exemplo da minha tese

que guardo o desejo de publicar com ela. Sinto saudades daquele imenso

caldeirão no qual somos consumidos.

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Testemunho 14: WANI FERNANDES PEREIRA

Licenciada em História. Mestre em Ciências Sociais e Doutora em Educação pela UFRN. Faz parte do GRECOM desde sua criação, tendo participado inclusive do Grupo Morin, anteriormente. Fez sua tese de doutorado no GRECOM, intitulada: Por uma pedagogia da complexidade: cartografia das idéias de Clarival Prado Valladares É professora aposentada da UFRN e membro do Conselho Administrativo da Cooperativa Cultural Universitária do RN

Fragmentos de um discurso amoroso

Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou, senão para sair do inferno.

Antonin Artaud

Querida Juliana!

Agradeço com o coração aos pulos de tanta aflição, o convite - que

acredito ser uma deferência, além de uma incumbência que traz também o

significado de ‘pertença’ - para contribuir com a proposta ousada e corajosa

de sua tese, contar uma outra versão da história do Grupo de Estudos da

Complexidade - GRECOM. Discordo de você quando argumenta que seu

testemunho não seria suficiente para dar conta dessa empreitada. Muito

pelo contrário. Você transformou-se num sujeito privilegiado, ausentando-se

do grupo por dez anos, tempo mais do que suficiente para se ter uma ’justa

medida’ do antes e depois de seu retorno ao GRECOM. Essa observação não

destaquei no texto que não li, naquela tarde fatídica de sua qualificação. Mas

compreendo sua generosidade e a da sua orientadora Ceiça Almeida, por

quererem reconstruir, complementar e ampliar um outro fragmento de

experiências de formação e de vida no GRECOM, na ordem do parcial, do

fragmento, a partir do registro de alguns testemunhos-testemunhas.

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Quero logo de início confessar minhas inquietações, aflições mesmo,

do que significa esse ato de ‘testemunhar’. Afinal toda essa estratégia

adotada pelas testemunhas, me remete ao cenário histórico dramático e

doloroso dos crimes e de toda forma de violência e destruição de nossas

parcas humanidades, cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Assim

como as estratégias de resistência para superação e transformação.

Dos quatro pressupostos apresentados por Pierron e destacados por

você para compreendermos o que seria nos converter num testemunho e o

que esperar de suas testemunhas, escolhi a de número quatro para me

inserir e me reconhecer na história desse microcosmo chamado GRECOM: “o

testemunho é uma relação, ao mesmo tempo em que é uma realização.

Apresenta o que ele representa. Não se contenta em recordar, relatar o

passado, ele o concebe: ‘eu estava lá’”. Para mim, esta citação conteria as

três anteriores, por me apontar o sentido ambíguo da sentença “Eu estava

lá!”. Estar lá, significa também acrescentar ao testemunho o ato de

‘suspeitar’, de questionar como diz Ítalo Calvino: “Quem somos nós, quem é

cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações,

de leituras, de imaginações?”

As inquietações e aflições emergem com maior intensidade quando me

dou conta de estabelecer limites entre emoção e a racionalidade da

dificuldade de lembrar. Afinal, trata-se de uma anamnese do registro de

quase metade de minha existência, portanto não vejo como me eximir como

um sujeito implicado (noção recorrente no GRECOM), mesmo quando ainda

não havia sido enunciada e problematizada com tanta recorrência, e que se

tornou uma exigência cotidiana ‘de um outro estado de ser no e do

GRECOM’!

Boris Cyrulnik, rebate o meu apelo, dizendo: “narrar não é retornar ao

passado. O itinerário mais saudável e penoso é constituído pela ação de

narrar. A competência para narrar a si mesmo é necessária para compor

uma imagem da própria personalidade. Esse trabalho provoca um prazer

estranho. As narrativas ‘podem ser reais ou imaginárias’, sem que se perca

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nada da sua força como histórias... Toda narrativa é uma fermenta para

construir nosso mundo” (2005).

Devo acrescentar também que ao ser convidada a dar este

testemunho, preferi recorrer à uma narrativa escrita, ao invés de uma

gravação. Freud explicaria!?... Sim e não...

Ao optar por um registro aos moldes de uma carta, acredito que este

será um texto mais aberto, o que torna minha narrativa e testemunho mais

leves. Ao escolher a escrita, ao invés de um testemunho gravado, esta opção

a mim pareceu, em princípio, uma forma de minimizar o temor de ser traída

pela memória. Assim, poderia recorrer à algumas anotações, reler textos,

escolher citações, epígrafes. Para minimizar os esquecimentos fiz um apelo e

ofereci um ex-voto à deusa Mnemosine, e não aos ‘Meus Demônios’. Titânide

da memória e da lembrança, inventora da linguagem e das palavras,

Mnemosine representou a memorização necessária para preservar as

histórias e os mitos antes da introdução da escrita. Ato falho? Sim e não.

Recorro aqui a Edgar Morin para afirmar que não há garantias de revelar

tudo o que está sendo solicitado como contribuição. Morin afirma em Meus

Demônios (2013): “Sei não apenas que a percepção de um acontecimento

pode incluir seleção do que parece principal, ocultação ou esquecimento do

que incomoda, mas também que a lembrança pode alterar seriamente o que

se rememora”.

Sobre o porquê de uma carta, busquei nas palavras de André Comte-

Sponville um conforto parcial, quando ele descreve como compreende a

correspondência, num texto escrito para o catálogo oficial da exposição “Plis

d’excellence” (Museu do Correio, Paris, 1994): “Por que se escreve uma

carta? Porque não se pode falar nem calar. A correspondência nasce dessa

dupla impossibilidade, que ela supera e da qual se nutre. Entre fala e

silêncio. Entre comunicação e solidão. É como que uma literatura íntima,

privada, secreta — e talvez o segredo da literatura” [...] Escrevemos nossas

cartas, não para vencer a morte, não para vencer o tempo, mas para

habitarmos juntos, tanto quanto pudermos, apesar da separação, apesar do

espaço, o pouco tempo que nos é dado em comum”.

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Dias eleitos. A Festa.

A Festa é aquilo que se espera. O que espero da presença prometida é um enorme somatório de prazeres, um festim...

Roland Barthes.

O meu ‘eu estava lá!’, pode parecer nostálgico para alguns leitores.

Sou de um tempo antigo, que me reporta a um ‘presente do passado’, a um

começo. Tempo de experimentações mais abertas, de complementaridades e

intercâmbio de saberes. Minha história transversaliza minha experiencia de

vida na UFRN, inicialmente no Museu Câmara Cascudo, onde me filio a

partir de 1978, recomeça após o mestrado na pós-graduação em Ciências

Socias, complementada e ampliada a partir da década de 90, inicialmente no

Grupo Morin, e em seguida, no Grupo de Estudos da Complexidade –

GRECOM. A conta chega perto dos vinte anos de atividades acadêmicas e

afetivas, uma verdadeira imersão passional, incondicional, ‘como manda o

figurino!’.

Sou do tempo em que a sala parecia de fato uma pequena cela de

convento. A sala que foi disponibilizada para o semestre sabático da

matemática portuguesa Teresa Vergani. Quem a cedeu foi o grupo de

pesquisa “Corpo e cultura do movimento”, coordenado pela Profa. Petrúcia,

quando já passamos a ocupar parcialmente o espaço após a aposentadoria

da Profa. Cristina Dalpian. Foi naquele salão, vizinho a cela, transformado

no nosso salão de festa da ciência, que nasceu o GRECOM, pela insistência e

colaboração determinante da Profa. Ana Laudelina. Mas toda essa história

pode ser conhecida e revisitada de forma mais precisa no livro Ciclos e

Metamorfoses, (Conceição Almeida e Margarida Knobbe, 2003), já referido

por você a nos convocar e provocar releituras desse processo de relação

tensional e ansiogênica até perder de vista. De outra forma não seria o

GRECOM!

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Na verdade, ‘eu já estava lá’ bem antes. Participei do Núcleo de

Pesquisa Sobre a Problemática da Seca, quando me integrei ao grupo de

pesquisadores da área das ciências sociais coordenados por Conceição

Almeida no projeto “Potencialidades pesqueiras da Lagoa do Piató”. No

Museu Câmara Cascudo, lugar de minha iniciação e longa experiência

acadêmica antes dessa empreitada no Grupo da Seca, já colaborava com a

equipe de pesquisadores da área da antropologia nos projetos de pesquisa

sobre cultura, e também nas primeiras imersões no setor de museologia,

tornando-me autodidata nestes assuntos.

Os princípios da capilaridade e da complementaridade estiveram em

alta por um longo período. Núcleo de Arte e Cultura, Pró-Reitoria de

Extensão, Museu Câmara Cascudo, PUC/SP, além de outros lugares de criar

e pensar, festejar. “Era de lei” debandar para um happy hour (termo que não

encontra traduções em outras línguas!) após as reuniões ou outra atividade

nas sextas feiras. Alguém precisa fazer o inventário desses lugares e horas

infinitas de boas conversas, muitas gargalhadas, revelações insólitas,

partilha de sonhos exóticos...

Anos depois, um outro ciclo tem início. Uma mutação no cotidiano do

GRECOM se instaura. É o tempo dos excessos de demandas, o princípio de

Método da Expansão amplia o grupo. Uma transformação da práxis

acadêmica fez a Rosa dos Ventos alterar aquela rota: a de alimentarmos

também ‘'um pensamento e um coração vagabundos!”. Certamente fazemos

parte dela, insurgindo contra a cretinização intelectual, numa luta sísifa

contra essa cegueira do conhecimento. A epígrafe de Clarice Lispector pode

muito bem representar esse estado de ser: “sou composta por urgências:

Minhas alegrias são intensas; minhas tristezas, absolutas. Me entupo de

ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos

extremos”.

Complementaridade seria um princípio/estratégia de método

instaurado por Ceiça Almeida no GRECOM, replicando o que Edgard

Carvalho inaugurou na pós-graduação em São Paulo. Na verdade, as

atividades coletivas, orientações, dias de estudo, oficina do pensamento

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dentre outras, contribuíam de fato desde que se estivesse atento e aberto aos

sinais, para ampliar o repertório das pesquisas e trabalhos. Não recordo de

nenhum incidente nesses contextos mais coletivos. Posso estar equivocada.

Talvez essa estratégia ‘mais coletiva’ tenha contribuído até um certo período

justamente para diluir campos de tensão. Ou camuflar pelos silêncios esse

regime. De certa forma todo esse repertório passional e o permanente

regime de urgência no processo de construir conhecimentos, deixaram

marcas indeléveis em todos nós, com profundidade a depender do grau de

imersão do sujeito nesse contexto. Sejam elas positivas ou negativas, fica “a

gosto do freguês”.

Nesse sentido percebo que tudo isso ampliou, e muito, minha

experiencia como formadora também, nas pesquisas desenvolvidas por mim

e pelos bolsistas que atenderam esse chamado. Lembro aqui que você e

Wagner Nascimento (in memoriam), foram os iniciadores de todo o processo

de cumplicidade intelectual e que juntos, provocamos uma avalanche de

estudos sobre cultura a partir do acervo do Museu Câmara Cascudo, nos

comprometendo em disseminar esses conhecimentos em eventos nacionais,

estaduais e locais. Para isto iniciamos experimentações de discussões em

grupo para contextualizar e problematizar nossas pesquisas,

transversalizando áreas de conhecimento: antropologia, sociologia da

cultura, história, dentre outras, tomando como foco pensadores da

complexidade.

Voltando à complementaridade, no tocante às orientações coletivas e

individuais, ganha destaque o micro por tratar de forma mais verticalizada o

desenvolvimento do trabalho, o que garante nesse sentido, a singularidade

de cada projeto.

Bem lembrado por Ceiça Almeida nos ‘Ciclos e metamorfoses’, o

grupo Morin emergiu de uma bifurcação do Grupo da Seca. Transformado

em base de pesquisa. Tem início então uma jornada e partilha das angústias

cognitivas, transformadas em porções afetivas (Boris Cyrulnik, apud

Almeida), um tempo no qual éramos exotéricos, sem que fosse tão imperativo

‘dizê-lo’. É o tempo de uma longa duração de parcerias internas à

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universidade e fora dela. Dos eventos emblemáticos, sempre no plural,

destaco: Nas sombras da política, o projeto Polifônicas ideias, Simposyum Pão

e Circo, os seminários Os Vícios da Paixão. Cito ainda a Casa Mãe Terra

construída no Parque das Dunas, os depoimentos em vídeo gravados, tendo

também por cenário o parque, o vídeo que retrata a importância da pesquisa

no Piató, por ocasião da comemoração dos 20 criação do GRECOM editado

para ser apresentado na abertura do evento, a presença de Edgar Morin, no

“Colóquio Internacional Tributo a um Pensamento do Sul” que contou com a

participação de grupos de complexidade do Brasil e interlocutores da

América Latina, também na celebração dos 20 anos de existência e

consolidação do GRECOM em 2012, as instalações artísticas, quando da

primeira vinda de Edgar Morin à Natal. Mesmo eu não estando lá! os relatos

e as imagens fotográficas apresentam e representam bem esse outro estado

de ser no processo de construção de conhecimento. O GRECOM se constitui

lugar de respiração cognitiva, afetiva, de fato operando de forma

complementar e de religação, entre natureza e cultura, uma estética entre

arte e ciência. Não cabe aqui repetir o que certamente a tese defendida por

Mônica Karina S. Reis "Reinventar a universidade: um ensaio sobre o Grupo

de Estudos da Complexidade/GRECOM - UFRN", cumprindo-se assim uma

missão quase impossível: dar conta dos acontecimentos do GRECOM, que

são sempre da ordem do superlativo.

Somos nossos próprios demônios...!?

Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou uma pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo!

Clarice Lispector

Superlativos são também os repertórios de sentimentos e emoções, um

privilégio e ao mesmo tempo um risco permanente de viver perigosamente,

participando de um piquenique à beira do abismo – expressão tão ao gosto

de Alex Galeno. Ora, há muito aprendemos a partir das leituras e reflexões

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orientadas pelo pensamento paradigmático de Edgar Morin, a nos alertar

sobre o ingrediente psicanalítico do processo de construção do

conhecimento, na auto-eco-organização do sujeito, na vida e nas ideias.

O destaque para os excessos, a Hybris (ou hubris) nome que designa

em grego toda espécie de desmedida, de exagero ou de excesso no

comportamento de uma pessoa como, orgulho, insolência, arrebatamento,

loucura, desrazão, contidas em nós sapiens-demens, e tão bem postas pelo

poeta Fernando Pessoa, construindo-se em torno de 70 heterônimos, como

desdobramentos do ‘eu’...

O trecho que se segue pode muito bem ilustrar metaforicamente um

certo grau de estranhamentos, desconfortos, tensões, contradições

experimentadas por alguns de nós no percurso de nossa autoformação no

GRECOM. Um aprendizado deve ser de fato positivado no cotidiano de cada

um de nós. Porém, não cabe aqui transformar esse cotidiano num ‘divã

psicanalítico’. O que somos, o que desejamos, o que apostamos resultam de

experiências anteriores que podem num momento inicial entrar em conflito

com o repertório do contexto e ritmo em que estamos imersos. Podemos

lembrar que noções como o erro, a compreensão, as cegueiras estão

problematizadas em dissertações e teses disponíveis para se promover uma

releitura e outras reflexões. Deixemos aqui nossa vã filosofia e vejamos o

texto:

“Não somos nossos próprios demônios? Nós nos expulsamos do

paraíso” (Goethe, apud Barthes).

“O demônio é plural (“Meu nome é Legião”, Lucas 7-30). Quando o

demônio é repelido, quando finalmente lhe impus silêncio (por acaso ou

lutando), um outro levanta a cabeça ao lado e começa a falar.... bolhas

enormes (quentes e pastosas) estouram uma atrás da outra; quando uma se

desfaz e se acalma, retorna à massa, uma outra mais longe, se forma cresce.

As bolhas ‘Desespero’, ‘Ciúme’, “Exclusão’, ‘Desejo’, ‘Conduta indecisa’, Medo

de perder o rosto, as bolhas, explodem uma atrás da outra, numa ordem

indeterminada, a própria desordem da Natureza (idem Goethe, apud Roland

Barthes, 1986).

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As metáforas

Meditei sobre as borboletas. (...) Vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras, sem magoar as próprias asas.

Manoel de Barros

A metáfora do GRECOM representada pela borboleta, é uma metáfora

ancestral. O processo de metamorfose porque passa o animal - ovo, inseto

que rasteja até se transformar num inseto alado - nos alerta a reconhecer a

natureza das minhas, suas, nossas fragilidades, bem como a observar a

velocidade da flecha do tempo. Essas transformações se inserem no campo

das incertezas, dos acasos, das probabilidades: será que todos os insetos

alcançam o seu desenvolvimento e metamorfose completos? Todas chegarão

ao seu destino como a Borboleta Monarca que pode viver até 9 meses,

quando a expectativa média de vida varia entre duas semanas a um mês, ou

durarão apenas 24 horas como as mariposas?! Sabe-se que as Borboletas

Monarca são conhecidas como borboletas viajantes. No período do outono

migram da América do Norte e Canadá para o México, guiadas por uma

espécie de bússola solar. A próxima geração das Monarcas fará o caminho de

volta.

Além da metáfora ancestral recordo que, ao longo do percurso

intelectual, Ceiça Almeida chegou a criar outras metáforas como as

Tanagras, esculturas gregas de terracota, Castelos de Terracota, a flor de

cactos e o castelo de areia (Por uma ciência que sonha, 2003).

Afeita às mitologias, a imagem de Sísifo, rolando permanentemente

sua pedra filosofal, poderia ilustrar bem parte da jornada do Grupo de

Estudos da Complexidade. Mas bem que se poderia imprimir a Estrela Solar

naquela pedra filosofal. Eis então a minha metáfora para o GRECOM, não “a

estrela dissecada pela ciência deslumbrada pelo reino da quantidade” como

nos alerta Teresa Vergani (1997), mas aquela outra, “a que integra emoção

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ou a estética nos processos racionais, aquela que não separa radicalmente

em categorias os ‘intelectuais’ e os ‘artistas’. Para Teresa, o Sol-Inspiração

respira ainda na poesia, pintura, literatura, reservas antropológicas que são

imprescindíveis para uma regeneração de nossos corações e mentes. O Sol

para Michel Cassé (2008), “torna-se uma referência de reorganização do

cosmos. Foi a insistência da luz, que modelou nosso olho, e foi o Sol quem

nos educou. Ambos são feitos da mesma substância: os átomos do Sol

dialogam com os átomos dos olhos por meio da linguagem da luz”. Ela pode

representar os excessos e os limites para nossas cegueiras, intransigências,

ciúmes, sentimentos de posse, arrogâncias, perversidades, paixões,

incompreensões. Em excesso tornam-se todas letais, afinal “nem o sol nem a

verdade ou a morte podem ser olhados de frente” (La Rochefoucauld). Na

justa medida, luz e calor são necessários para as reorganizações,

regenerações. “Esse coração da luz’, que aparece em Tereza Vergani (1997),

como uma oferenda, ao olhar renovado de quem o vê, o interpreta e lhe

confere inesgotáveis atualizações do seu significado humano”.

Uma Pedra-carta!1

Da alma sobriamente louca Tirei poesia e ciência. A vida sabe-me a tabaco louro. Nunca fiz mais do que fumar a vida. Desejo-lhes sol e chuva, quando a chuva é precisa.

Fernando Pessoa

1 O filme “A Partida”, de Yojiro Takita, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2009, aborda o tema da

morte, das lembranças de infância, das contradições entre tradição e modernidade no Japão do século

XX. O personagem o violoncelista Daigo Kobayashi, desempregado, responde a um anúncio de emprego

julgando se tratar de uma agência de viagens. Ele é surpreendido ao descobrir que o trabalho é numa

funerária e envolve preparar o corpo dos mortos para a próxima vida.ao retornar à cidade de origem,

Daigo compartilha coma mulher algumas lembranças de infância ao dar-lhe uma “pedra-carta”, da mesma forma que seu pai havia lhe dado quando criança. Ele explica: “os antigos, antes da invenção da escrita,

procuravam uma pedra que expressasse seus sentimentos e a dávamos aos seus entes queridos. Quem

recebia a pedra podia ler os sentimentos do outro pelo peso e textura. Uma pedra lisa era sinal de um

coração sereno. Uma pedra áspera, que a pessoa estava em dificuldades.” Assim, descobre que seu pai

nunca o esquecera e consegue se lembrar, nitidamente, de sua feição. Isso faz com que reconheça a

figura de seu pai.

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Lembrei desde que recebi essa convocação provocadora a favor do

princípio da complementaridade e seus anéis, círculos espiralados, nos

desdobramentos das nossas reorganizações de vida, do Manual do Lobinho,

criado justamente num tempo que inspirava mais uma reorganização do

GRECOM. A sentença “Bem-vindos ao inferno”, ainda não se tornara a

saudação aos orientandos recém-chegados. Você lembra Juliana? Numa

noite ao final das atividades, decidiu-se por apresentar aos recém-chegados

um manual cujos ‘mandamentos’ ali sugeridos deveriam ser avaliados e

complementados. Infelizmente não encontrei o texto impresso, nem o arquivo

digital. Fica aqui a sugestão da localização, leitura e quiçá atualização do

manual.

Para além do manual, as ações e vivências que devem ser mantidas,

seriam: os Dias de Estudo com sessões mensais, cujos temas devem

retroalimentar pela estética, arte, literatura, pela pulsão epistemológica do

GRECOM. Já as Oficinas do Pensamento teriam uma agenda trimestral ou

semestral, tal como tem ocorrido nos últimos semestres, contemplando e

reunindo temas das pesquisas por afinidade temática. Poderia se

acrescentar aos pesquisadores a participação de um convidado externo ao

grupo.

Tenho acompanhado os convites e a divulgação, com ‘brilho nos

olhos’, do projeto “Quinta Filosófica” promovido pelo GRUPECOM e Grupo de

Humanidades do IFRN de Ceará Mirim/RN em parceria com o GRECOM,

programação que me remeteu ao Simposyum Pão e Circo, com seus dois

eventos: O Banquete de Platão e Frida Kahlo. Vida longa ao projeto Quinta

Filosófica e “aos novos insufladores, o perigo”.

O projeto de extensão “Estaleiro de Saberes”, poderia se transformar

a médio prazo num programa de extensão pela consolidação de sua

proposta, inserindo em seus conteúdos questões relacionadas ao contexto no

qual será desenvolvido. Uma revitalização da Casa Mãe Terra também se faz

necessária.

Me reporto mais uma vez para pintar o GRECOM ao aforismo do poeta

Manoel de Barros: Repetir, repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do

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estilo. É possível reconhecer assim que o tratamento de informações e a

produção de conhecimento, mantêm sempre sua natureza de inacabamento

e incompletude.

Este texto testemunho pode ser como uma pedra-carta oferecida a

você Juliana e à sua orientadora e minha amiga de copo e de cruz, Ceiça

Almeida.

Retorno a pergunta e reposta de André Sponville, “por que se escreve

uma carta? Para habitarmos juntos a essencial solidão, a essencial

separação, a essencial e comum fragilidade. Para descrever o tempo que está

fazendo, o tempo que está passando. Para contar o que nos tornamos, o que

somos, o que esperamos. Para exprimir a distância, sem a suprimir. O

silêncio, sem o corromper. O eu, sem se fechar nele. Isso não substitui a

fala. Isso não substitui nada. E nada, tampouco, o substitui: as verdadeiras

cartas, aquelas que gostamos de receber, são gratuitas e insubstituíveis,

como a vida, como o amor, como um presente e são um presente. “Não é

nada, sou eu”, escreve-me um amigo, “venho dizer-te que te amo muito,

muito…” Não é nada, ou quase nada, contudo um pedaço do mundo e da

alma, transmitido como que por milagre, tão leve na mão, tão profundo no

coração, tão próximo da grande distância”.

Ao encerrar peço que colem seus ouvidos, sintam e ouçam a poesia

musical Chuva no Mar, solfejadas pelas cantoras Carminho e Marisa Monte.

Abrindo no sítio eletrônico abaixo será possível ver as ilustrações

<https://www.youtube.com/watch?v=hIiRXFz7C24&list=RDhIiRXFz7C24&index=1>

Coisas transformam-se em mim,

É como chuva no mar, Se desmancha assim em Ondas a me atravessar, Um corpo sopro no ar

Com um nome p’ra chamar, É só alguém batizar, Nome p’ra chamar de Nuvem, vidraça, varal, Asa, desejo, quintal, O horizonte lá longe, Tudo o que o olho alcançar E o que ninguém escutar, Te invade sem parar, Te transforma sem ninguém notar,

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Frases, vozes, cores, Ondas, frequências, sinais, O mundo é grande demais. Coisas transformam-se em mim,

Por todo o mundo é assim.

Isso nunca vai ter fim.2

“Por todo o mundo é assim. Isso nunca vai ter fim...” Eis aqui o anel

espiralado da complexidade e o prefixo RE transformando-se em estratégia

de método. É como no Eclesiastes (3, 2), o recomeçar de um outro ciclo:

Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar

o que se plantou. Uma nova colheita está em processo, nas teses, nas novas

provocações para reflexões, instalado nas e pelas teses que se anunciam.

Talvez seja também um tempo que necessite de Paciência, como na

poesia de Lenine:

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma Até quando o corpo pede um pouco mais de alma A vida não para Enquanto o tempo acelera e pede pressa

Eu me recuso, faço hora, vou na valsa A vida é tão rara...

Muito, muito obrigada a você, a Ceiça Almeida, aos que foram

contemporâneos, aos que se interessarem por conhecer e experimentar viver

pe-ri-go-sa-men-te, a todos que permanecem de corpo e alma, quando se

fala a palavra GRECOM!

Que tal ‘falar de amor (no piquenique) à beira do abismo’ como quer

Boris Cyrulnik? Eu por aqui já vou me despindo, desejando ‘amor e sorte’ e

tudo de melhor que puder juntar na sua bagagem de vida! Vou de mãos

dadas com Manoel de Barros: Agora não quero saber de mais nada, só quero

aperfeiçoar o que não sei.

Testemunho 15: JOSINEIDE SILVEIRA DE OLIVEIRA

2 Carminho. Álbum "Canto" (2014.) Música: Marisa Monte. Letra: Arnaldo Antunes. Animação:

Nicolau.pt. Disponível em <https://youtu.be/hIiRXFz7C24>

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Pedagoga. Fez seu mestrado e doutorado no

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. Tem também mestrado em Ciências da Religião pela UNICAP – PE. É vice-coordenadora do GRECOM e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN. É Professora do Curso de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

GRECOM: nutriente das ideias e da vida

As primeiras lembranças que eu tenho do GRECOM remetem ao

tempo da minha chegada ao mestrado em 1993. Eu não era orientanda de

Ceiça, mas já frequentava o grupo, porque estudávamos juntos eu, Alex

Galeno e Eugênia Dantas, colegas do mestrado em Ciências Sociais e

orientandos de Ceiça. Havia uma parceria acadêmica entre as Bases de

Pesquisa GRECOM, coordenada por Ceiça, e Educação e Sociedade,

coordenada por José Willington Germano que era o meu orientador no

mestrado, e isso facilitava nossa aproximação com estudantes.

Foi então que o GRECOM apareceu para mim como um lugar de

reflexão, de estudo; um lugar para fazer e refazer ideias. Até hoje, todas as

vezes que estou precisando pensar, me reencontrar é para o GRECOM que

eu vou. E isso começou lá atrás, na angústia de fazer uma dissertação de

mestrado nas Ciências Sociais. Minha área de formação era a Pedagogia e

Ciências Sociais era um terreno completamente estranho para mim e, nesse

contexto, Alex e Eugênia, ambos geógrafos e, portanto, mais familiarizados

com as discussões da área, me ajudaram. Isso prova que o GRECOM sempre

foi um lugar onde circulam pessoas de diferentes formações como a Física, a

Biologia, a Comunicação, a Psicologia, a Filosofia, as Ciências da Saúde,

dentre outras.

Nessa época já se tinha uma aproximação muito grande com a

professora Marta Pernambuco que era da Física e com o pessoal da Filosofia,

a exemplo de Jaime Biella. Sempre tive dificuldade de pertencer a um só

lugar, ler os mesmos autores, e o GRECOM se apresentava como um espaço

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de circularidade pelo qual passavam pesquisadores de vários pertencimentos

e traziam discussões novas. Lembro das frequentes vindas do prof. Edgard

de Assis Carvalho trazendo leituras de autores novos. Gostava de ouvi-lo

contar das Mitológicas de Claude Levi-Strauss e de outras reservas de

complexidade. Edgard era o modelo de intelectual que me parecia perfeito.

As aulas e orientações proferidas por Edgard eram momentos de deleite.

Ainda hoje a relação de Ceiça e Edgard testemunha o valor da amizade na

vida acadêmica. Eles são cúmplices na vida e nas ideias. Como eu os

admiro!

Logo que me aproximei do GRECOM, o que mais chamou a minha

atenção foram os Seminários Temáticos, nos quais se estudava autores que

ajudassem à compreensão da complexidade. O primeiro que me recordo foi

ministrado por Marta Pernambuco, que me falou pela primeira vez de

Gastón Bachelard. Naquele momento fecundo ficava claro que era possível

fazer dialogar Bachelard, um filósofo, matemático e epistemólogo, com Karl

Marx, Max Weber e Durkheim, autores das Ciências Sociais. Nesse primeiro

seminário sobre Bachelard, pude contemplar o lado do cientista duro que

falava do novo espírito científico. Ao mesmo tempo, com ele conheci o valor

da imaginação para a construção da ciência. Essa descoberta era a coisa

mais especial que podia me acontecer. Você pensar na imaginação material e

na imaginação imaginada era desafiador e ao mesmo tempo prazeroso

demais. Nessa época, me apressei em ler as obras de Bachelard, como A

psicanalise do fogo, A água e os sonhos, O ar e os sonhos, A Terra e os

devaneios da vontade e A poética do espaço. O GRECOM era o lugar de ler

essas coisas; onde encontrávamos pessoas para dialogar sobre essas

questões. Foi tanto que Bachelard fez parte do referencial teórico da minha

dissertação, mesmo sem ser indicado pelo meu orientador, que era José

Willington Germano.

Já o seminário sobre Ludwig Wittgenstein, ministrado por Jaime

Biella, mexeu comigo porque falava de uma linguagem dupla da Filosofia que

poderia vazar para a ciência, no instante em que as vozes que estavam na

periferia dos paradigmas poderiam fazer sentido dentro da ciência, como é o

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caso da ligação Filosofia-Ciência-Teologia. Isso me fez enxergar caminhos

para a religação de saberes. Um último seminário que eu gostaria de

relembrar foi sobre o Teorema de Goethe e a incompletude. Nele aprendi que

sentenças e axiomas não se demonstram de todo completo e essa

incompletude dos axiomas permite sempre um resto a reorganizar o

contexto. Isso tudo chega num momento em que eu ainda não entendia

nada de complexidade, mesmo assim me encantava pelas ideias. Foi nesse

desarranjo do pensar que eu fui parar no GRECOM.

Finalmente, não posso deixar de citar a aproximação que vivenciei

nos primeiros anos do GRECOM com a literatura. Hermano Machado, que

era doutorando em Educação e orientando de Ceiça falava muito bem da

narrativa literária e daí surgia mais uma chave: fazer dialogar a literatura

com as teorias que eu estava conhecendo e com a vida. A leitura de Vidas

Secas de Graciliano Ramos me fez lembrar homens, mulheres, crianças e

outros animais que sofriam o flagelo da seca, fenômeno climático que eu

conhecia tão bem! Outras obras como Menino de Engenho, Iracema, Morte e

Vida Severina, A Pedra do Reino fortaleciam a aproximação entre as paixões

humanas e a ciência. Tudo isso ia fervilhando lá no GRECOM. Saíamos

muito à noite, conversávamos com artistas, fazíamos amizade com pessoas

de “tribos” completamente diferentes.

Nessa época, eu cursava três disciplinas desafiantes: Teoria Geral do

Estado, com Willington Germano; Fundamentos das Ciências Sociais, com

Darcier Barros; e Cultura, com a própria Ceiça. Essas três disciplinas me

desafiavam e o lugar que eu ganhava segurança para enfrentar esse desafio

era o GRECOM.

Participava ativamente dos Dias de Estudo que era uma experiência

rica, porém assustadora. Era um momento que você tinha leituras novas e

deveria compartilhar com quem estava ali, mas nem sempre você tinha

domínio do conteúdo, mesmo assim era obrigado a se expor. Essa exposição

era traumática porque tinha um pouco do atiçar a fogueira das vaidades,

onde todos queriam fazer o seu melhor discurso sobre aquela leitura e isso é

uma tortura. Ninguém se atrevia ir para o encontro se ter lido o texto que

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seria discutido. Aquela era uma vitrine. Porém, esse era um lugar onde você

aprendia a organizar sua fala; era como um treinamento para a vida; era um

lugar para você se fortalecer. É tanto que, no decorrer dos anos, esse Dia de

Estudos teve que se refazer várias vezes e acabou por definhar.

Os Dias de Estudos tinham uma coisa muito importante: os autores

escolhidos para o estudo em cada ano precisavam ter relação com a

problemática dos trabalhos de quem estava fazendo suas monografias,

dissertações e teses na época. Lembro que num dos dias tive que apresentar

Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, obra e autor que até então eu

nunca havia tido contato, porque eu estava interessada em compreender o

texto de René Descartes Paixões da Alma. Essa foi uma prova de fogo. Fazer

conexões entre Descartes e Fernando Pessoa foi desafiante, mas também foi

um dos Dias de Estudos mais rico de ideias que já vivenciei no GRECOM. Ali

você se fortalecia como expositor, capaz de apresentar com clareza as ideias

extraídas do texto e narrador, quando o leitor se apropria dessas ideias e

constrói a interpretação.

Com a entrada do pessoal da área da Comunicação, quando

chegaram Margarida Knobbe, Ângela Almeida e Josimey Costa, inaugurou-se

uma fase nova com uma outra perspectiva de leitura. Passei a gostar dos

textos do Morin que davam conta da cultura de massa e com eles vieram o

interesse por Martin Heidegger e os pensadores da Escola de Frankfurt.

Nesse momento, estávamos mais afiados na postura de narrador, de

expositor. Estávamos mais afeitos à autoformação como uma exigência do

bem pensar.

Uma coisa é certa, essa cobrança de se preparar para a exposição

não era só de Ceiça. Na verdade, era uma cobrança da condição de ser do

GRECOM e às vezes as pessoas não suportavam. Ser GRECOM é assumir a

complexidade como jeito de viver, que não é simplesmente estar naquela sala

ou estar fora; é um jeito de pensar. Isso eu adquiri nos Dias de Estudos. A

exigência dessa atividade nos formava como sujeitos para a vida inteira. Para

mim aconteceu assim. Eu considero que o Dia de Estudos foi a espinha

dorsal do grupo.

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Entrar no GRECOM e fazer uma dissertação ou uma tese não se

resume a um tempo rápido, em que você cumpre a pesquisa e vai embora,

essa não é a proposta do grupo. A proposta é formar pesquisadores que

permaneçam com essa vontade e com a “responsabilidade” de que fala Henri

Atlan quando trata da formação do sujeito responsável. Fazer da ciência

alimento para vida é difícil, porque exige de você coisas que às vezes você

não está a fim de fazer porque a vida lhe oferece outras possibilidades, mais

fáceis, mas nem sempre tão éticas. As leituras voltam para nós, para nos

reconstituir. Não é, portanto, o texto pelo texto; é fomento de reflexão. Há

dois anos estamos sem os Dias de Estudos. Eu não sei ainda que

metamorfose vai acontecer sem o Dia de Estudos.

Em paralelo a isso, existia uma outra atividade que nunca funcionou

bem, as Oficinas do Pensamento, na qual um colega apresentava seu tema

de pesquisa e todos discutiam o tema e davam a sua colaboração. Ela não

funcionou bem porque as pessoas não assumiram o trabalho do colega como

sendo responsabilidade sua. Então, tornou-se uma orientação coletiva. Era

mais de responsabilidade apenas do orientador. Era uma ideia brilhante,

mas que não teve muito corpo.

Aproveitando para falar das orientações, posso dizer que as minhas

nunca foram muito tranquilas. Talvez porque seja uma marca minha gostar

de trazer para a cena autores fora do script, como foi o caso de Gastón

Bachelard no mestrado e, mais tarde, de Baruch Spinoza no doutorado.

Embora eu não tivesse cacife para trabalhar autonomamente com aquelas

ideias, eu queria muito, e tanto Willington no mestrado quanto Ceiça no

doutorado, me permitiram estudar autores desconhecidos para que eu

crescesse no conhecimento e na discussão.

Quando fui fazer o doutorado, foi uma relação bem difícil, mas uma

história bem interessante. Tanto Ceiça quanto Edgard de Assis Carvalho

queriam que Alex, Eugênia, eu e Gustavo de Castro fossemos para a PUC-

São Paulo fazer essa etapa lá. Eugênia logo disse que não queria ir; queria

ficar em Caicó, pois estava dando aulas. Nesse momento, eu era uma das

predestinadas a ir para São Paulo para ser orientanda de Edgard ou de

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Edson Passetti. Nessas alturas, eu já havia me tornado muito amiga de

Ceiça; saía com ela para as festas e para os eventos, mas tinha grande

admiração por suas ideias e postura intelectual. Eu também não queria ir

para São Paulo. Até li alguns dos trabalhos de Edson Passetti para conhecer

o que ele fazia e me aproximei dele e da família nas várias vindas dele a

Natal. Porém, quando eu conversava com ele não o via como um orientador.

Eu era uma carola libertária, com princípios cristãos muito presentes e ao

mesmo tempo princípios trotskistas muito visíveis. Isso era conflitante. Por

outro lado, havia um problema, só havia uma vaga para orientação de

doutorado com Ceiça na UFRN e Eugênia ia concorrer, então conversamos,

ela e eu num entendimento de que não estávamos numa disputa, nós

apenas queríamos fazer doutorado com a mesma orientadora. Seguimos

para a seleção dessa única vaga. Na época, uma das pessoas que concorriam

para a linha foi reprovada sobrando uma vaga a mais para Ceiça, Eugênia e

eu fomos aprovadas. Alex e Gustavo de Castro seguiram para São Paulo para

serem orientandos de Edgard Carvalho.

Iniciado o doutorado, começamos as orientações individuais. Eu

queria trabalhar com os amores proibidos pela Igreja, como Abelardo e

Heloisa, Francisco e Clara de Assis. Depois de muitos recortes, ficaram

somente Abelardo e Heloísa, duas figuras do século XII, por conta da

Filosofia e da Literatura. Nessa mesma época, Ceiça começou a ter uma

aproximação grande com profissionais da Psicanálise. Houve alguns

Seminários realizados em parceria entre o GRECOM e o grupo da

Psicanálise. Foi quando conheci Zeferino Rocha, grande leitor de Abelardo

pela via da psicanálise. Ele enxergava Abelardo como um narcisista confesso

e Heloísa como uma vítima desse narcisismo, e com isso eu não concordava.

Neguei imediatamente essa tese. A partir daí, defini com Ceiça o papel de

Aberlardo como formador e Heloísa como sua discípula. O corpus da

pesquisa foi a correspondência entre esses amantes, que para mim não eram

apenas cartas de amor. Eram cartas de formação. Havia 8 séculos de

interpretações dessa história por várias áreas do conhecimento como a

Lógica, a Arte, a Filosofia, o Direito e, nesse meio, o meu desafio era

encontrar o que dizer de novo num contexto tão farto. Definimos então a

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relação mestre e discípulo. O ponto chave era o formador. Como amante da

Psicanálise, Ceiça defendia que o mestre poderia ser o narcisista e Heloisa

uma brilhante discípula. Eu não percebia dessa maneira, compreendia que

havia uma complexidade maior, mas não tinha ainda argumentos para

refutar. Essa turbulência coincidiu com a vinda do médico e biólogo franco-

argelino Henri Atlan a Natal. Na ocasião, Ceiça incumbiu a mim e a Eugênia

da tarefa de ler alguns livros desse autor para compartilhar a leitura com os

demais colegas e, assim, o recebermos no GRECOM. Foi ao ler Atlan que

descobri o filósofo Baruch Spinoza e isso fez toda diferença. Mas a

fragilidade das minhas primeiras leituras de Spinoza me levava a grandes

conflitos.

Nessa confusão, eu não fiz o seminário doutoral II no tempo previsto

e pedi para adiar porque não me sentia preparada. Ceiça ficou muito irritada

porque não estava acostumada com prorrogações. Então, teve uma hora que

não era mais possível prorrogar o Seminário para não comprometer a defesa

da tese em tempo hábil. Esse seminário foi devastador para mim. Na banca

estavam José Eduardo Moura, Marta Maria Pernambuco e Edgard de Assis

Carvalho. O primeiro, Eduardo Moura, afeito ao estudo da lógica, e como eu

ia encarar isso se eu não conhecia de fato a Lógica, e nem queria ir por esse

caminho? A segunda, Marta Pernambuco com sua discussão freiriana de

libertação, mas eu não queria falar de libertação, pois não se tratava de uma

relação entre oprimido e opressor. O caminho era contrário, eu estava

falando sobre dois apaixonados que não queriam se libertar um do outro. E

o terceiro membro, o antropólogo Edgard Carvalho que me dizia, com toda

razão, que eu não daria conta de Spinoza a tempo de colocar na tese. Eu saí

de lá devastada porque eu não queria abandonar o projeto, uma vez que a

história de Abelardo e Heloisa já era parte da minha vida, e conservar

Spinoza como principal referência requeria uma entrega total. Eu tinha que

estudar Ética de Spinoza para entender a relação entre determinismo e

liberdade; defender com propriedade a racionalidade de Abelardo para

confrontar com a interpretação narcisista feita por Zeferino Rocha, a quem li

exaustivamente por ser ele um dos principais comentaristas de Abelardo no

Brasil.

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Contei essa história para ilustrar como acontecia o processo de

orientação. Um tempo de fortalecimento do sujeito, de descoberta de si, de se

deixar testar. Penso que é preciso viver essa etapa para sair bem fortalecido.

Quem se nega esse aprendizado pode até fazer um bom texto no trabalho

final, mas não sairá com maturidade.

Ao encontrar Spinoza eu também encontrei o meu lugar no

GRECOM. Compreendi que podia contribuir mais com o grupo e

experimentei a condição de sujeito responsável, por perceber a ideia de

intuição, que significa responsabilidade de ação. Ele diz que existem 3

gêneros do conhecimento: o primeiro, o conhecimento acessível a todas as

pessoas. O segundo, o conhecimento racional obtido através da leitura da

Ciência e da razão e um terceiro que é aquele que o sujeito adquire para agir

eticamente. É a intuição que faz do sujeito agente da vida e provedor de uma

estética responsável no mundo. Foi isso! Engraçado, muito tempo depois,

lendo as cartas de Nise da Silveira a Spinoza, quando ela cita Antonin

Artaud “eu vi a abelha e isso mesmo me basta”, você percebe que esse é o

momento onde nos descobrimos. Foi nesse momento que eu me descobri que

não estava no GRECOM de passagem. Para mim, o GRECOM é o lugar de

reencontro comigo mesma. Do imperativo “Conhece-te-a-ti mesmo” e assume

tua responsabilidade. Eu me descubro na conjugação ciência e vida! As

pessoas nos questionam sobre a metodologia de como escrevemos e não

existe essa fórmula. O GRECOM faz com que os autores nos provoquem para

que a gente se reconheça e possa se inscrever no mundo.

Para falar desse grupo não existe uma metáfora única. Existe a

metáfora da borboleta que representa a metamorfose. Isso é verdade. Quem

vive intensamente a atmosfera do GRECOM experimenta a metamorfose nas

ideias e na vida. Mas, para mim, existe também o frenesi da roda que eu

sempre cito como uma alegoria para dizer da efervescência de como as

coisas acontecem no GRECOM. É como se existisse uma roda girando no

teto e as pessoas que estão indo todos os dias ao GRECOM estivessem

penduradas pelas duas mãos e daí se movem com a mesma velocidade. Se

uma delas deixar de ir um dia, é como se soltasse umas das mãos. Se passar

uma semana, as duas mãos soltam-se por completo e a pessoa não consegue

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mais acompanhar o ritmo. Vive um longo tempo de desatino até conseguir se

reposicionar.

Além disso, mais recentemente tenho visto uma outra metáfora:

"brasas sob cinzas". Quando abrimos hoje a porta da sala do GRECOM e

vemos a disposição dos móveis e dos painéis, temos a impressão de que

adentramos a um museu. Como se as recordações fossem mais fortes que os

acontecimentos do presente. Mas as imagens do passado escondem o

potencial do presente. Existe um potencial ali; as brasas estão embaixo das

cinzas, e um exemplo disso foi a participação de Eugênia, Patrícia Limaverde

e Fagner no seminário de formação pós-doutoral em 2017 que serviu de

casulo para o Seminário Fronteiras Borradas realizado em outubro de 2018.

Bastou o calor dessas discussões trazidas por eles e orquestradas por Ceiça

para vermos a potência do GRECOM. Percebemos quanta força existe

submersa ali. São como brasas sob cinzas. A própria resistência do Estaleiro

de Saberes, um projeto de extensão que se mantém durante 10 anos e é

capaz de congregar professores da região do Vale do Assú sob a direção do

GRECOM é uma demonstração da força e da importância desse grupo.

Para mim, essa metáfora das brasas sob cinzas diz muito da

atualidade do GRECOM, porque as pessoas, por não compreenderem muito

da potência do grupo, centralizam tudo na pessoa de Ceiça. É claro que tudo

ali só foi, só é e só será possível devido a ela. Ela é alguém que demonstra

como viver a complexidade, mas subsumir o GRECOM à figura de Ceiça é

reduzir tanto o GRECOM quanto a própria Ceiça. Ela é uma ideia, é um jeito

de ser acolhedor que encarna a complexidade. Ceiça nunca fechou a porta

para ninguém, mesmo que ela abra essa porta para brigar. Mas também

quando ela está brigando, está abrindo espaço. Acho fantástico ela discordar

da pessoa, achar insuportável conviver com essa pessoa, mas querer

cegamente conviver com essa diferença. Isso é de uma grandeza

imensurável. Isso não faz de Ceiça uma deusa, como se costuma dizer de

maneira apressada. Ela na verdade é uma grande mestra. Sabe como fazer

desabrochar potencialidades que as pessoas não conhecem de si mesmas.

Um grande mérito de Ceiça é a capacidade de abertura; é a sedução que ela

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tem pela polifonia, pelo diverso. Quando ela abre o GRECOM para o diálogo

com pessoas e instituições, faz com que ali seja um espaço de muitas vozes.

Todas as pessoas que chegam são novas possibilidades de reorganização;

geram uma dinâmica nova e Ceiça é a guardiã vigilante dessa dinâmica.

Porque ela permite todas essas entradas e reorganizações, muitos a

confundem com o GRECOM. Mas ela soube fazer o GRECOM maior do que si

mesma. Eu tenho admiração e carinho pela pessoa que ela é; pela potência

teórica que tem; pela mestra que sabe ser. É exatamente nos próprios

defeitos que ela se expressa com maior grandeza.

A chegada e a saída de pessoas no GRECOM permitem a auto-

organização permanente do grupo. Eu entendo essa auto-organização, nos

termos do que defende Henri Atlan. Contém ruídos, desequilíbrios, ciclos de

morte-vida, por isso que é fundamental a chegada de novas pessoas para

manter a temperatura de auto-eco-organização. Um exemplo: por que os

Dias de Estudos foram interrompidos? Porque grande parte das pessoas que

estavam lá como pesquisadores ou estudantes não se percebeu como

sujeitos nessa dinâmica. Elas não passaram em revista as coisas que estão

lá para encontrar as brasas. Muitas não estudaram a história do GRECOM e

isso enfraqueceu sua capacidade de se incluir como responsável pela vida do

grupo.

É importante observar que existem duas estratégias recorrentes

utilizadas por algumas pessoas que chegam ao GRECOM: na primeira,

temos aquele sujeito que leu alguma coisa sobre o grupo e, principalmente,

alguns textos de Edgar Morin e de Ceiça. Essas pessoas chegam com aquela

fantasia de que vão escrever poeticamente o trabalho dos sonhos; que na

teoria da complexidade cabe tudo. Na segunda estratégia, vemos aquele

sujeito que imagina que todas as bases de pesquisa são iguais com reuniões

frias, orientações confessionais. Logo nos primeiros contatos o sujeito se dá

conta de que no GRECOM não se faz nada sozinho e que nas orientações

não vai receber pronta uma chave especial de leitura que transformará seu

trabalho no mais belo do mundo. Esse tipo de relação não corresponde ao

estilo de Ceiça e, muito menos, do GRECOM. Quanto mais presente no

coletivo, mais aberto às leituras, melhor será a compreensão da

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complexidade e, por conseguinte, melhor sairá o trabalho. Ceiça tem uma

disponibilidade de orientação impressionante. Ela sempre demonstra isso e

nunca se nega a orientar ninguém, inclusive é ela quem procura o

orientando e fica à disposição todos os dias da semana. Ela atende a cada

um em sua singularidade e o inclui na totalidade do grupo. Isso é muito

especial e é isso que faz o texto final ser diferenciado. Não vejo em ninguém

que eu conheça esse modo tão especial de se aproximar do orientando.

Há ainda o aluno que já está dentro do GRECOM, mas não

compreende sua dinâmica. Nesse caso, ele pode se comportar de três jeitos:

no primeiro jeito, o aluno no contato com os primeiros desafios se fecha e

some. Isso dificulta a construção do trabalho e as relações de parceria,

amizade e intercâmbio de leituras que são próprias do estado de ser do

GRECOM. No segundo jeito, o aluno fica arredio e começa a fazer grupos

internos paralelos às coisas do GRECOM. Isso também dificulta, porque

acirra a competição em detrimento da cooperação. No terceiro jeito, o aluno

tenta resolver suas questões tornando-se subserviente e altruísta além da

medida. Isso é perigoso, porque esse orientando faz tudo, menos o trabalho

dele. Para além de todos esses “jeitos”, existem, claro, os alunos e

pesquisadores que se impregnam do espírito do grupo. São cooperativos,

obsessivos pelo bem pensar, sedentos do bem viver, não têm medo de

assumir as paixões, reconhecer e enfrentar os determinismos. Não separam

os seus textos dos apelos do próprio viver. Essa diferença se percebe no

trabalho final desse aluno.

E como é a relação de acompanhamento desses trabalhos? Embora

no grupo tenha outros professores orientadores, as orientações feitas por

Ceiça caracterizam melhor o estilo de orientação em nossa base de pesquisa.

Ela foi orientadora de todos nós. Antes, Ceiça lia e riscava todo o texto do

aluno; mexia em tudo e isso fazia muita diferença na redação final. O aluno,

ao ler as anotações, passava a ter uma relação diferente com o próprio texto.

Depois da leitura e orientação parece que tudo ficava mais fácil. Alex,

Eugênia e eu aprendemos muito isso com ela e com Edgard Carvalho. Hoje

Ceiça tem uma outra maneira de orientar com a qual eu ainda não me

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acostumei. Ela pede para os alunos lerem em voz alta e ali ela faz a

orientação. Lendo os textos refeitos pelos alunos, percebo que ao término

não fica da mesma forma que ela sugeriu. Mas, por ouro lado, deixa o

orientando mais atento. E para nós que ouvimos a orientação, nos faz

pensar em outras possibilidades, quando percebemos que aquilo “vaza” para

nossos trabalhos, ou mesmo para a vida. As qualificações e os seminários

são momentos de muita reflexão, porque o que vem para um aluno pode

estender-se para outro. São rituais de passagem, divisores de águas que

despertam reflexões em quem ouve.

Sobre a produção do GRECOM, registro toda efervescência do grupo

nesse sentido. Olhando o passado, merece destaque a ajuda de Gustavo de

Castro nos primeiros anos, ele como um homem da comunicação,

rapidamente percebeu o potencial do GRECOM em termos de produção.

Inaugurando essa fase, veio o primeiro livro Ensaios de complexidade (2002),

quando Gustavo, Ceiça e Edgard Carvalho conseguiram pesquisadores de

ponta no mundo inteiro, como Edgar Morin, Leonardo Boff, Dietmar Kamper,

dentre outros, para publicar uma obra sob a chancela do grupo. Todos esses

textos demostram com quem o GRECOM tinha relação, por isso esse é um

livro fundamental ainda hoje. Depois disso, posso registrar o livro Polifônicas

Ideias (2003), resultante do projeto de extensão de mesmo nome que levava

textos gestados na academia a público semanalmente, por meio do Caderno

Viver do jornal Tribuna do Norte. Como já me referi anteriormente, o

GRECOM vai se construindo no fluxo de quem chega. Nesse tempo,

recebemos uma grande leva de pessoas ligadas à Comunicação: professores,

bolsistas de iniciação e orientandos do mestrado e do doutorado. Cabe

lembrar aqui a colaboração dos estudantes de graduação como Ana Cecília

Aragão, Bruna Hetzel, Júlio Cezar Gurgel e Eliza Paiva como bolsistas de

Iniciação Científica. Numa semana era publicado no jornal um texto de um

autor nacional e na outra de um autor internacional.

Depois dessa experiência, chegaram as coleções de outros livros.

Primeiro, conseguimos criar a Coleção Metamorfose que foi um de Ceiça,

Iran Mendes e Carlos Aldemir. A coleção teve a publicação de mais de uma

dezena de livros escritos por pessoas internas ou externas ao grupo. Essa

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coleção teve que ser interrompida em 2013 com a ida de Carlos Aldemir e

Iran para Belém do Pará. Mas continuamos com intensa produção de bons

textos. Certo dia, saímos Ceiça e eu para jantar no restaurante Bella Napolli,

na Av. Hermes da Fonseca em Natal, e nessa saída tomamos uns vinhos e

conversamos sobre as produções do grupo. Ali decidimos sobre várias coisas.

Eu achava ótimo "despachar", ou seja, pensar sobre a vida do grupo, em um

lugar agradável como aquele, regado a um bom vinho. Ali tivemos a ideia de

criar uma nova coleção que se chamaria Coleção Baobá e rabiscamos o

conselho editorial num guardanapo. E a Baobá está aí, e me parece que terá

vida longa. Essa coleção é ligada à editora da UFRN. Pensávamos em criar

uma coleção que sistematizasse títulos atinentes aos domínios das ciências

humanas, filosofia, epistemologia e humanidades em geral. Entre suas

publicações, registramos aquela que abre a coleção: Palavras Úmidas (2014),

de autoria de Ceiça.

Depois do lançamento da Baobá, percebemos que havia ainda muitos

trabalhos que tinham a ver com os saberes da tradição e, foi ai que criamos

a Coleção Saberes da Tradição, que tem por propósito disseminar

conhecimentos ligados às raízes da tradição nos domínios das ciências

sociais e da educação; e articular conhecimentos científicos e saberes da

tradição com vistas a facilitar uma ecologia das ideias. Durante sua

concepção, Ceiça foi conversar com o pessoal do Centro de Educação e

recebeu uma negativa. Na sequência, ela procurou o então coordenador da

Pós-Graduação em Ciências Sociais, João Bosco Araújo, que manifestou

todo interesse em fazer a parceria, que foi posteriormente alargada com o

apoio da Secretaria de Educação a Distância (SEDIS/UFRN) com alunos da

comunicação que trabalhavam na editoração. O primeiro volume da coleção

foi Ilhas de resistência: conversas entre mestres e aprendiz, de autoria de

Juliano Cézar Petrovich Bezerra (2015).

Ainda há tanta coisa no GRECOM, tanto potencial de publicação! Se

focarmos só nas extensões, cada uma possui um potencial enorme, a citar:

os Estaleiros de Saberes, Casa da Memória Piató Chico Lucas, Casa Mãe-

Terra. Cada um desses projetos de extensão universitária tem nossa marca,

de imaginar a via de mão dupla que o trabalho extensionista favorece. Nele

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aprendemos e ensinamos. A extensão talvez seja o que mais denote e

anuncie o espírito do GRECOM, quando nós nos abrimos para que a vida

que está fora da universidade entre nela. Sobre isso não há nenhum

controle. É a coisa que eu cuido com mais carinho. Nós abrimos a

universidade para outras instituições, para pessoas, para receber o que vem

como conhecimento, e isso alimenta a gente. No GRECOM, a minha menina

dos olhos é a Extensão. O que estamos fazendo é reunir, religar os saberes

na prática. Certamente o projeto Guardião do patrimônio de saberes a ser

iniciado em parceria com o GRUPECOM é mais um desafio, é um êxito a

acontecer. Os projetos de extensão alimentam a curiosidade.

Os eventos realizados pelo GRECOM também me instigam. Não são

meros momentos de festividades. São acontecimentos porque provocam

mudanças, operam bifurcação. Quando você imagina o evento dos 10 anos

do GRECOM – Complexidade e Reforma da Universidade; os 20 anos com o

Tributo a um Pensamento do Sul, digo que depois deles não somos mais os

mesmos, nem o grupo para si mesmo, para a universidade e para a

sociedade. Eu acredito no acontecimento como fenômeno que muda o curso

da história. Lembrando do evento na Praça Cívica do Campus, quando Edgar

Morin proferiu a palestra “O destino da humanidade”, passamos a entender

o potencial que tínhamos. Ora, abrir uma conferência a céu aberto e ter um

quantitativo de milhares de pessoas a ouvir um pensador francês, é realizar

o desejo do próprio Morin de “levar a ciência às praças”, é operar longe do

equilíbrio. O que aconteceu naquela noite precisa acontecer mais vezes na

universidade. A comunidade precisa ter acesso à universidade e saber o que

os pesquisadores estão pensando e pesquisando. Você não sai dos eventos

do mesmo jeito.

Para mim, o GRECOM é fonte de vida das ideias. É como se ele fosse

meu vinho. Todas as vezes que preciso pensar sobre algo eu vou ao

GRECOM e geralmente nem falo sobre aquilo que preciso escrever, sobre o

que preciso pensar. Eu vou ali e olho as coisas, converso com quem está lá,

me alimento e dali tiro nutrientes para pensar, escrever e viver.

Testemunho 16: FRANCISCO LUCAS DA SILVA

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Nascido em 17 de julho de 1942, em Assu, Chico

Lucas, como é conhecido, é morador da Comunidade Areia Branca. É autor dos livros Francisco Lucas da Silva, um sábio na natureza (2016) e A natureza me disse (2007). É construtor de barcos e pescador. Tem participado ativamente das pesquisas de doutorado desenvolvidas no GRECOM sobre a região do Piató. Este testemunho foi concedido a Thiago Severo no livro Francisco Lucas da Silva: um sábio na natureza (2016).

Com muito orgulho eu me sinto privilegiado e devo tudo isso a um

trabalho feito por uma pessoa que é parte da minha família. Eu a guardo

sempre dentro do meu coração: é a Dra. Ceiça. Eu tive o prazer de no dia 13

de junho de1986 a gente se encontrar nas margens da Lagoa do Piató. Eu

tinha aportado lá no barraco onde eu vendia o peixe e tive o prazer de

conhecer a professora Ceiça. Ela vinha em uma caravana. Parecia Pedro

Álvares Cabral à procura de uma pessoa para fazer um trabalho na Lagoa.

Eu tinha um barco e ela me convidou para fazer esse trabalho. Foi a partir

daí que ela se interessou em trazer os orientandos dela para fazer pesquisas

aqui na Lagoa do Piató, pesquisas de campo. Então, comecei a conversar. A

gente fez várias palestras aqui e ela, muito curiosa, sempre trabalhando a

minha mente. Eu aprendi muito com ela e tive o prazer de repassar os

saberes e conhecimentos que eu tinha aprendido com a natureza. Ela

transformou tudo isso em um livro para levar meus conhecimentos lá para o

GRECOM. Me sinto muito feliz com isso.

Agradeço tudo isso à professora Ceiça que, para mim, chegou ao

topo. Dra. Ceiça, mas eu sempre a chamo de professora Ceiça, ela sabe que

eu não estou menosprezando ela nem um pouco, porque para mim ela é a

maior de todas as professoras. Ela sempre mora dentro do meu coração. Eu

prezo tanto por ela que a gente tem discórdia. Em vários pontos eu discordo

dela. Mas só para provocar, porque eu provoco as pessoas que eu gosto. É

uma pessoa altamente capacitada e eu aprendi muito com ela. Muito

mesmo. É bom quando você tem um conhecimento e repassa para alguém.

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Eu me sentia com todo aquele armazenamento dos saberes da natureza e

não iria passar para ninguém, se não tivesse conhecido essa pesquisa da

equipe do GRECOM, da Universidade Federal.

Tive o prazer de ter na pessoa de Ceiça alguém que se interessava por

esses saberes, que queria compreender esses conhecimentos. Fiquei muito

gratificado com isso. Por ela achar que a ciência não estava só, que não se

aprendia só lá nos livros da universidade, com os professores. Por ela achar

que a ciência estava incompleta. E que Samir, Willys e todos os orientandos

dela precisavam saber algo diferente: as coisas da natureza, uma página que

eles não tinham lido, um livro que eles não tinham encontrado lá na

universidade. Isso para mim é muito gratificante. Me sinto muito honrado

por ela me elogiar tanto. Ter a mim, uma pessoa leiga, para fazer parte da

leitura dos saberes do GRECOM. O Francisco Lucas da Silva, vulgo Chico

Lucas, “o homem que não frequentou o banco escolar, por não ter tido

oportunidade, mas que, com a ajuda da professora Ceiça chegou até a

universidade”. Para mim ela está aqui presente. Não foi à toa que eu coloquei

essa cadeira aqui encostada em mim. Talvez você não tenha nem percebido

que eu coloquei essa cadeira aqui. Para mim, Ceiça está sentada aqui, por

que ela está aqui no meu coração. Muito embora você não esteja vendo a

imagem dela sentada, mas para mim ela está aqui comigo, nesse tamborete.

Por isso, a importância do GRECOM é todo o contexto desse trabalho,

das pesquisas aqui da Lagoa do Piató, da leitura do meio ambiente, da

natureza. E eu estou lá presente, compartilhando com esses saberes da

natureza. Me sinto com muito orgulho em fazer parte como o GRECOM.

Quer dizer, se para chegar ao acerto precisa dos erros, então eu faço parte

de lá. Eu sou um ponto negativo para se encontrar. O ponto positivo lá, que

é a professora Ceiça, e eu o ponto negativo, mas estou lá presente. Porque

não existe o positivo sem o negativo. Me sinto muito gratificado com isso.

Sobre as pesquisas que são desenvolvidas no GRECOM, acho muito

importantes, porque todo trabalho para se encontrar o ponto fundamental é

a pesquisa. Como é que você vai encontrar um ponto positivo, se não tem

uma pesquisa sobre aquele trabalho? É como o seu trabalho, a sua

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pesquisa, que você fez aqui no Piató. E a de Willys, aquele diagnóstico, que é

um diagnóstico leigo, mas positivo. São por essas coisas que eu acho que o

GRECOM é uma instituição válida, valiosa. E que todos vocês que passarem

pela universidade precisam passar pelo GRECOM, porque é de lá que vocês

vão sair com mais conhecimentos.

Me sinto muito gratificado. A professora Ceiça diz que eu sou e faço

parte hoje do GRECOM. Com muito orgulho digo: nunca pensei sendo uma

pessoa leiga, não ter estudado e ter tido o prazer de lançar um livro com as

leituras leigas da natureza, com os saberes da natureza. Inclusive o título do

livro é: “A natureza me disse”. Por que “a natureza me disse”? A natureza me

disse as leituras que eu pude observar dia-a-dia, com o passar dos tempos.

Saber que o GRECOM lançou um livro com os saberes da natureza, de

minha autoria e oferecido à minha pessoa; saber que em várias partes do

Brasil e do mundo ele anda de mão em mão mostrando o que é a sabedoria

da natureza me deixa muito honrado, e devo tudo isso à professora Ceiça.

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EU TAMBÉM ESTAVA LÁ - MEU TESTEMUNHO

Nós, seres humanos, somos animais dependentes do amor.

Humberto Maturana

Somos do tecido com o qual se fazem os sonhos.

William Shakespeare

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Minha chegada ao GRECOM aconteceu de forma atípica. Nos idos de

2003, eu havia terminado o curso de história na UFRN. No tempo de

graduação, vivi uma experiência incrível no Museu Câmara Cascudo, no

qual Wani Pereira (pesquisadora do GRECOM) era vice-diretora. Eu era

bolsista de Wani e trabalhava com o estudo de coleções. Não tinha a mínima

ideia da existência do GRECOM e menos ainda da complexidade, só tinha

contato com um sujeito que me surpreendia a cada momento de escrita dos

relatórios da CAPES, Edgar Morin e sua teoria sobre o paradigma da morte e

o surgimento da arte. Na época, eu não entendia como aquilo fazia sentido

no meu pragmatismo de catalogar e acondicionar peças museográficas.

Nessa época, fui aluna de Josineide Silveira na disciplina de Antropologia e

nas aulas comecei a perceber outras formas mais prazerosas de fazer

ciência. Josi falava com paixão que estava no doutorado e que desejava

estudar os amores proibidos pela Igreja Católica, aquilo me encantava. Eu,

tão pragmática, presa à história tradicional, aos fatos e acontecimentos,

ainda não tinha ideia do que seria um fenômeno de estudo e sua

complexidade no mundo.

Ao término do meu curso, na época da monografia, enquanto todas

as expectativas me levavam a fazer um trabalho sobre o estudo de coleções e

sobre a arte popular, recebi um banho frio do meu futuro orientador, que

não via muitas possibilidades nem ganhos significativos para a História no

meu projeto. Foi então que aconteceu uma das bifurcações da minha vida, a

primeira na UFRN. Descobri-me no estudo sobre a loucura e me realizei

entre os textos históricos construindo o percurso de sua institucionalização

no Rio Grande do Norte. Ao término do curso, e ainda em contato com Wani,

ela me explicava da necessidade de dar continuidade à minha formação

acadêmica, mas eu não tinha ideia de como fazer isso, e foi aí que ela me

falou a respeito do GRECOM e do mestrado. Me inscrevi então na seleção do

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e encaminhei meu projeto

baseado na monografia recém-apresentada (nessa época não tínhamos a

etapa da prova escrita).

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No dia da entrevista, esqueci completamente e, de repente, em casa

recebi uma ligação do PPGCS me alertando sobre o horário da entrevista. O

tempo que eu tinha para chegar à UFRN era muito curto e sem um tostão no

bolso me aventurei num táxi, que fez aquela corrida fiado. Cheguei

esbaforida e encontrei Ceiça na sala pela primeira vez. Com cabelos curtos,

extremamente vermelhos e uma saia longa e rodada, ela me recebeu

calorosamente, de forma tão generosa, que não acreditei que merecia aquele

tratamento. Deu tudo certo na entrevista e fui aprovada. Iniciei o mestrado,

fazendo as disciplinas e ainda muito distante do GRECOM, eu não entendia

que era preciso estar lá, até o dia que Ceiça me disse isso de forma clara e

dura. Envolvida em ganhar a vida dando aulas, me perdi nos primeiros

meses, até o dia em que encontrei Ceiça a caminho de um dos eventos do

grupo. Quando percebeu meu ar desatento com as coisas do GRECOM, ela

me fitou, me fulminou e deu de ombros dizendo que assim não se fazia

pesquisa no grupo. O chão se abriu e eu entrei no buraco. Uma noite de

crise existencial foi suficiente para decidir meu caminho.

Dali para a frente, reorganizei minha vida para estar no GRECOM

todos os dias à tarde. Eu tive que dar um jeito. Confesso, não foi fácil,

porém, foi o tempo de maior crescimento acadêmico e profissional para mim.

Entrei de cabeça no grupo, totalmente disponível para participar de tudo.

Minhas companheiras de sala eram Silmara Marton, Rita Ribeiro e

Margarida Knobbe, embora houvesse muitos outros colegas circulando por

ali nessa época, como Samir Cristino, Carlos Alberto, Renato Figueiredo,

Walmir, Lenice Raymundo, Paula Vanina, Henrique Fontes, Wyllys Farkat,

Gerlúzia Alves, Ednalda Alves, João Neves e tantos outros. Todos eles, cada

um do seu jeito, me ensinaram algo e deixaram suas marcas. Lembro-me

com carinho da primeira vez que mostrei algumas páginas do meu texto de

dissertação a Rita, quando ela me ensinou como escrever sem repetir tantos

"ques". Lá reencontrei com muita alegria Josineide e aqueles amores

proibidos pela Igreja Católica que ela tanto desejava estudar tinham se

transformado numa bela tese sobre a relação mestre e discípulo de Abelardo

e Heloísa. Era assim no GRECOM, uns cuidavam dos outros. E nesse

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espírito eu também queria cuidar. Me responsabilizava pelo café, pelas

compras, e pela organização de materiais e textos, junto com Silmara.

A parceria com todos foi maravilhosa. Ceiça todos os dias me trazia

desafios novos em meio às produções, aos eventos e às atividades do grupo.

Eu, muito ‘verde’, não sabia como essas coisas funcionavam, mas não abria

mão de dizer que faria e, mesmo sem saber como, eu "daria um jeito". Para

situações difíceis eu também dava um jeito. Esse era meu mantra.

Um dos maiores desafios que vivi foi participar do Dia de Estudos

como expositora do Método 1 de Edgar Morin. Os Dias de Estudos

aconteciam quinzenalmente e eram momentos de imersão teórica. Eu não

tinha tido oportunidade até então de participar de imersões e estudos em

grupo como aqueles ali. Logo da primeira vez como expositora me

responsabilizei por uma obra que não possuía nenhuma intimidade e de

uma grande densidade teórica. Soava como impossível, naquelas alturas,

fazer uma boa exposição, afinal, Morin ainda era para mim um enigma, mas

naquele instante o céu deu um jeito! Naquele dia, Ceiça não participou e eu

pude me dar o direito de falar talvez insanidades sem ser mal avaliada por

ela. Eu tinha e tenho muita admiração por Ceiça e não desejava decepcioná-

la.

O GRECOM me trouxe muitas surpresas agradáveis, ele era e ainda é

um lugar incrível de conexões. Certa vez, Ceiça me levou ao Piató. Era uma

honra receber o convite para entrar naquele lugar que ela dizia tão especial.

Na época, meus colegas Wyllys, Silmara e Paula iam com grande frequência,

mas eu não, pois os Saberes da Tradição, temática desenvolvida por Ceiça e

uma das linhas do grupo, não estava no contexto da minha pesquisa.

Chegou então o dia de conhecer o tão falado Piató e Chico Lucas, e pasmem!

mais uma conexão de vida se fez ali. Descobri que, no passado a propriedade

do pai de Chico Lucas era vizinha à propriedade do meu avô Amarante,

ambas foram submersas pela Barragem Antônio Ribeiro Gonçalves. Mas a

história ficou. Chico conhecera meu avô em sua juventude e tinha muita

coisa para me contar daquele homem incrível que eu conheci pouco. Fui

privilegiada em ver a lagoa cheia e navegar com Chico como nosso timoneiro

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por aquelas águas. Naquele lugar foi erguida a Casa da Memória do Piató

Chico Lucas e tive o prazer de participar de sua inauguração ainda no barro.

O almoço daquele dia preparado com carinho na casa de Chico e de D. Maria

jamais se fará no campo dos esquecimentos. Ah que bela galinha torrada!

O GRECOM unia pessoas de pertencimentos tão diferentes e isso era

enriquecedor. Nessa época, a efervescência era total, tínhamos a cada Dia de

Estudos a participação de umas 20 pessoas. O lugar era cuidado por todos.

Eu produzia os folders, enviava as comunicações para os e-mails, organizava

os materiais e assim me apropriava de tudo. O mais interessante é que,

embora eu estivesse absorvida até o pescoço com as coisas do grupo, minha

dissertação não sofreu atrasos. A produzi em tempo de apresentá-la antes do

prazo limite. Que orgulho!

Trabalhei com a história de vida de pacientes crônicos residentes do

Hospital João Machado. Normalmente, o tema da loucura é visto com

repugnância, distanciamento e prepotência, um estigma em nossa

sociedade. No GRECOM, aprendi que a loucura é mais um estado de nosso

espírito, muito típico do sapiens-demens, e fiz questão de trabalhar cada vez

mais na vertente do acolhimento, da diversidade e da sensibilidade como ali

havia aprendido. Para se ter uma ideia, a dissertação intitulada Diálogos da

Alma: uma outra história da loucura foi desenvolvida dentro do referido

hospital, entre amigos loucos. Mergulhei fundo de corpo e, principalmente de

alma, numa história antes não contada e que me atrevi a colocá-la no devido

lugar das lembranças, a história daqueles considerados loucos, dos

esquecidos. Foi nesse diapasão que conheci e me encantei pela trajetória e

obra da Dra. Nise da Silveira, de Bóris Cyrulnik e Jung. A permissão que

obtive para cumprir tão grande tarefa foi-me concedida num lugar diferente,

onde se pensa, se sente e se pratica ciência de uma outra forma.

O tempo para a produção do trabalho parecia que se multiplicava,

porque eu sempre dava um jeito. Em meio às atividades do grupo, e dando

aulas à noite, eu ainda arranjava tempo para fazer minhas pesquisas nas

enfermarias do hospital, onde fiz muitos amigos. Ceiça acompanhava minha

pesquisa de forma muito próxima, chegou inclusive a participar comigo da

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confraternização natalina do hospital. Ela entrava de cabeça junto conosco e

isso dava um tom de parceria, difícil de imaginarmos em outros espaços

acadêmicos canônicos.

A cada dia os desafios que Ceiça me oferecia eram provas de fogo.

Para se ter uma ideia, dois dias antes da chegada de uma das participantes

da minha banca, Cremilda Medina, Ceiça me disse que ela desejava muito

em sua estadia em Natal reencontrar uma velha amiga que residia na cidade

e me deu apenas como pista o nome "bem comum" dessa pessoa "Fátima

Araújo". Ora, como eu encontraria uma Fátima Araújo na Cidade do Natal,

sem outras pistas, numa época em que não existia Facebook ou outras redes

sociais? Parece incrível, mas eu disse que daria um jeito, e sofri para

conseguir. Peguei em casa a antiga lista de telefones "Listel" e me aventurei a

ligar para mais de duzentas “Fátimas” e dizer: Olá, sou Juliana Rocha

estudante da UFRN e estou em busca de Fátima Araújo amiga de Cremilda

Medina, você a conhece? Era muito improvável que eu encontrasse alguém

assim, mas eu arrisquei. O céu novamente deu um jeito, eu encontrei a

amiga de Cremilda. Não acreditei em ouvir tal reconhecimento e alegria do

outro lado da linha telefônica. Fátima, muito satisfeita em reencontrar a

amiga, esteve presente no dia da minha apresentação. Pois é, coisas assim

aconteciam no GRECOM e com quem estava lá.

E por falar no dia da defesa, a apresentação da minha dissertação

trouxe à academia todos os amigos pacientes cronificados que contribuíram

de alguma forma com os meus "Diálogos da Alma". O auditório do CCHILA

se encheu de pessoas queridas e, pela vida, estigmatizadas. O GRECOM

continuava a conectar pessoas, vidas e ideias. Cremilda Medina saiu daquela

sala com a dissertação embaixo do braço a dizer, “levarei esse texto para que

meus alunos entendam como se faz uma dissertação ousada, comunicativa

no viés histórico.”

Ao término desse tempo, outros desafios se apresentaram para mim,

a docência no Ensino Superior, estimulada pela minha colega de grupo

Gerlúzia Alves e a aprovação no concurso como professora da Prefeitura do

Natal. Passei minha faixa do GRECOM para a jovem Louise Gabrielle,

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estudante de Pedagogia e nova bolsista de Ceiça. Voei por novos ares; porém,

sem esquecer do lugar que eu havia conhecido e que me transformara. Sabia

das coisas que aconteciam no grupo à distância e uma boa nostalgia tomava

conta de mim. Até que, num fim de semestre, conversando na calçada de

uma das faculdades particulares que eu trabalhava com a amiga e também

professora Valéria Soares, pensávamos juntas nos planos profissionais para

o futuro. Ela me disse sobre a seleção aberta para o doutorado no Programa

de Ciências Sociais da UFRN. A aura de Valéria é aquele tipo de aura

iluminada, de uma devota Hare Khrisna, que me disse em alto e bom som

“vai que dá”, e eu fui. O prazo para o encerramento das inscrições ocorreria

em dois dias, mesmo assim deu tempo. Passei na prova escrita e, no dia da

minha entrevista, reencontrei Ceiça, Josineide e Ana Laudelina, depois de

tantos anos. Meu projeto era bem claro e direto, eu queria escrever a

História do GRECOM e me foi dada essa chance. Voltei ao grupo numa nova

circunstância, numa nova fase. Mudei literalmente minha vida e a dos meus

familiares para encarar esse desafio, e eles fizeram a aposta junto comigo. Só

eu sei o que não dá para revelar neste texto.

Sei também que, neste novo momento, algumas teclas de um piano

antigo voltaram a tocar. Um exemplo dessa melodia que se repete foi a

possibilidade que me foi dada de rever Edgard Carvalho. Com a mesma

vivacidade e energia intelectual ele continuava lá, ligado por sentimentos de

afeto e amizade. Edgard sempre estava conosco. Ele participava e ainda

participa das atividades do grupo como eventos, seminários, Oficinas do

Pensamento e bancas. Pelo menos uma ou duas vezes ao ano ele vem a

Natal. Sem sombra de dúvidas, um grande parceiro. Sempre muito generoso,

me tratava com muita cordialidade e fineza. Tive a alegria de participar de

dois lançamentos de seus livros em Natal, um há alguns anos Virado do

Avesso (2005) e o outro recentemente, Conexões da vida: uma antropologia

da experiência (2017). Para mim, Edgard é um intelectual que tem leveza e

visão. Assim como todos os colegas que testemunharam, eu reforço, Edgard

sempre nos traz novas leituras, e abre nossa visão para novas

possibilidades. Acredito que sua amizade com Ceiça é como um caminho de

mão dupla, quando na leveza do encontro se oxigenizam um ao outro.

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Após o intervalo de uma década distante do grupo, no meu retorno

encontrei muita gente nova no GRECOM, e um ambiente um pouco diferente

daquele que havia conhecido. Fiz muitos amigos que levarei para a vida,

certamente. Reencontrei Louise, aquela menina que eu havia deixado lá

atrás e hoje se tornou uma profissional de sucesso, professora do IFRN.

Como ela cresceu. Conheci Mônica e logo me afinei com ela. Como pensar

num grupo em que duas pessoas trabalham com o mesmo tema, como eu e

Mônica, e se tornam amigas? Não havia divisão entre nós, havia na verdade

uma oferecendo o ombro para a outra nas inúmeras quedas e adversidades.

Sei bem que esse testemunho não é romântico, nem quero fazer dele assim,

pois existem crueldades, mas aposto no que há de bom e guardo as necroses

para autofagia, me alimentando dos nutrientes que sobram das intempéries.

Nessa nova fase minha no GRECOM, a história agora passou a ser

outra. Eu não era mais a mesma, agora professora de instituições

particulares, estava muito absorvida pelas demandas profissionais e não

consegui, embora tentasse abrir mão de tudo como há dez anos. Mesmo

assim, o GRECOM me recebeu. Desenvolvemos, eu e Ceiça, uma nova fase

da nossa relação, primeiramente desafiante, pois ela me cobrava uma

resposta intelectual e cognitiva mais a altura do grupo. Desconfiei que eu

estava esclerosando pois quanto mais eu era forçada, mais esquecia de tudo.

Depois, um segundo momento foi marcado pela compreensão uma com a

outra. Não sei precisar em que momento isso aconteceu, mas houve sim

uma bifurcação comportamental... talvez mais minha do que dela.

Compreendemos uma à outra. Eu, por entender o porquê das suas

exigências e implicâncias com minhas ausências e ela entendia a

contingência da minha vida naquele momento, impedindo-me de estar por

perto full time.

Esses quatro anos do doutorado foram intensos. Viajei com o grupo

para Vitória da Conquista – BA em 2015 e vi in loco como o GRECOM

espalhou seus “neurotransmissores” por outros lugares, criando novas

conexões e outros grupos de complexidade, a exemplo do Laboratório de

Estudo e Pesquisa em Educação e Conhecimento Científico – LABECET

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(Conquista/BA). Lá na UESB apresentei pela primeira vez para um público

externo a proposta de trabalhar com a História do Grupo de Estudos da

Complexidade. Foi um momento de extrema tensão para mim, por dois

motivos: porque a proposta para mim é muito cara e porque Ceiça, meu

balizador de qualidade, estava ali. Até então a tensa relação mestre e

discípula não tinha sido resolvida. Me sentia dando os primeiros passos de

novo, como há dez anos. Mas esse frio na barriga deve ser sinal de vida, de

cuidado. No ano seguinte, participamos eu e meus colegas do grupo da

Conferência Internacional “Saberes para uma Cidadania Planetária”, em

Fortaleza - CE. Foi muito rico e ao mesmo tempo divertido aquele tempo.

Fazíamos piadas das adversidades encontradas. Ali, eu e mais seis colegas

saímos de Natal para reencontrarmos e/ou conhecermos grandes nomes que

mantêm relação de ideias com o GRECOM, como Maria Cândida Moraes

(UCB), Ana Cecilia Espinosa Martinez (México), António Nóvoa (Un. de

Lisboa), Alfredo Pena-Vega (EHESS/CNRS-França), Izabel Petraglia

(FMU/SP), Lia Diskin (APA/SP), Raul Domingo Motta (Cátedra Edgar

Morin/UNESCO), Roberto Sidnei Macedo (UFBA), Ubiratan D'Ambrósio

(UNICAMP), e muitos outros.

Vieram então as fases de qualificação no doutorado. A primeira, numa

disciplina ministrada por Ana Laudelina, saí destroçada. Ceiça e Josi

estavam lá e não gostaram nenhum pouco daquele meu primeiro texto. Foi

horrível a minha primeira tentativa de escrever a história de um grupo que

não aceitava uma história convencional. Mas eu sabia que tinha que dar um

jeito nisso. Na segunda tentativa, já na banca de qualificação constituída por

Wani, Margarida Knobbe e Alex Galeno, tive a minha chance de bifurcar. Em

meio ao “canteiro de obras” descrito por Alex sobre minha tese, Margarida

Knobbe me presenteou com a possibilidade de trabalhar com os

testemunhos. Ela foi precisa. Um dia depois da banca, eu já estava com o

livro de Pierron em mãos, Transmissão: uma filosofia do testemunho (2010).

A partir de então, entendi o que deveria fazer, e como todo o potencial dessa

história não poderia sair apenas de um “transmissor”, mas de todos os que

eu pudesse trazer.

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O mais interessante disso tudo foi o que eu aprendi durante a chegada

dos testemunhos para esta tese. Cada um me impactou de uma forma;

porém, consegui olhar para mim por meio dos testemunhos de Josineide e

de Eugênia. Foi quase uma catarse. Eu passei a entender como o GRECOM

tinha me contaminado todo esse tempo e as repostas profissionais que eu

dei diante do que aprendi com o modo de ser que opera pela complexidade.

As aulas que eu ministro, os projetos de conexão comunidade e academia

que eu desenvolvo (a exemplo do Projeto de Extensão Rede Parceira Estácio-

Alecrim), a disponibilidade que tenho de assumir funções diferentes a cada

ano nos lugares em que trabalho, a habilidade de conviver com meios

profissionais diferentes sem priorizar um em detrimento do outro,

certamente foram em mim despertados pelas conexões às quais me permiti

no GRECOM. Considero que saí da teoria bonita da complexidade para

torná-la prática na minha vida.

Sou só mais uma testemunha que viveu seu período de formação no

Grupo de Estudos da Complexidade, não sou a metatestemunha, sou

apenas mais uma no meio de tantas que estiveram no GRECOM. Sou uma

transmissora apenas, de uma rede neural sobre a qual não temos controle.

Mais uma vez, encerro um ciclo de formação no grupo, com amizades

fortalecidas e muito aprendizado para fazer meus novos caminhos.

Mesmo sendo de um campo de pertencimento diferente - a História -

vou me arriscar pela neurociência para representar o GRECOM por meio da

metáfora das sinapses cerebrais, ou como quer Lídia Borba, da dança dos

neurônios. Para mim, o GRECOM é isso, uma intrincada rede de conexões

como as cerebrais, a gerar sinapses imprevistas e às vezes previstas no

espaço-tempo. Como aprendemos lá no Ensino Médio, os neurônios formam

uma complexa rede nervosa, comunicativa e provocativa, respondendo ao

nosso estar no mundo. Para realizar essa transmissão, temos os

neurotransmissores, os famosos mensageiros químicos. Sim, isso para dizer

que, assim como nós, as células conversam, por isso há o emissor e o

receptor. Mergulhados num caldeirão de mensagens, às vezes “endorfinicas”,

“acetilcolínicas”, “serotonínicas”, “noradrenalínicas” e outras “dopamínicas”

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estamos fazendo e refazendo caminhos e bifurcando a cada momento. Cada

uma dessas substâncias em ação no cérebro produz e comanda nossas

ações. Bem assim acontece com o GRECOM. Somos resultado de toda essa

química retirando o grupo da zona de conforto e colocando-o no imenso

caldeirão de emoções neurais. Fazer pós-graduação no GRECOM é fazer com

emoção. Somos atingidos por todas essas descargas e nunca mais seremos

os mesmos. Exemplifico bem isso com o dia em que apresentei o livro

Transmissão: filosofia do testemunho (2010) para Ceiça. Me preparei

exaustivamente para aquele momento. Tinha muito medo de ser traída pelos

lapsos de minha memória. Depois da apresentação, me veio um desaguar

aliviado, um choro emocionado, que nem Ceiça entendeu, e até se assustou.

É tudo muito intenso ali.

Eu também poderia representar o GRECOM, na perspectiva de sua

história, como uma imensa tela que está sendo pintada ao longo dos anos.

Sua arte não foi finalizada, nem tão cedo será, pois ainda que sobre uma

pessoa que lembre do grupo, espaço nessa tela existirá. Muito branco está

disponível para ser preenchido com as histórias de quem viveu ali sua

formação acadêmica. É uma tela que se permite pintar a várias mãos.

Alguns colegas, certamente utilizarão tons vivos, outros tons de leveza,

outros tons carregados de sentimentos os quais nunca alcançaremos,

porque tudo parte do sujeito. Tudo começa numa história muito anterior ao

GRECOM, com aquilo que trazemos conosco, com o que somos e com o que

esperamos. Essa tela aceita, na forma de arte, testemunhos de vida, dramas,

alegrias. O artista é o dono da arte. Cada um representará aquilo que

equivale ao instante e também as suas projeções interiores. A tela nunca

estará completa, ela é frágil assim como o testemunho, porque é impossível

abarcar todas as experiências, todas as causas e efeitos.

Minha formação em História me levou ao registro, à investigação, à

arqueologia dos fatos, mas foi a passagem pelo GRECOM e a experiência da

complexidade que me permitiram a religação com os saberes dispersos e

aparentemente desconectados.

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Reconheço o papel transformador do GRECOM que contribuiu com

uma produção cientifica nova, sem adestramentos e muletas conceituais,

que opera na proposta da complexidade, porque compreende a finitude

humana e a infinitude das ideias, a certeza da incerteza e de que o

pensamento é sistêmico como o mundo, os fenômenos e todas coisas, e não

linear como fomos levados a acreditar. É assim que se faz ciência no

GRECOM, transformando-se, morrendo e renascendo a cada dia.

Ao escrever este testemunho, percebo de forma cada vez mais clara a

nossa essência despejada no texto. Para mim, experiências e pessoas se

misturam, diferentemente entre os textos dos colegas. Será que eu mesma

saberia responder àquelas provocações que fiz para seus testemunhos?

Neste testemunho eu me doei, assim como quer Agamben (apud PIERRON

2010), esse foi um ato autoral que fez valer toda a minha, embora

insuficiente, capacidade de dizer, frente à urgência de carregar palavras cujo

alcance ninguém domina.

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