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Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP (Franca, São Paulo, Brasil). Docente dos Programas de Graduação e Pós-Graduação de História da Universidade Esta- dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil). Utopia e antiutopia no cinema brasileiro: Dilemas e perspectivas sobre a ditadura empresarial-militar em O Desafio (1965) e Nunca Fomos Tão Felizes (1984) RODRIGO RIBEIRO PAZIANI SAMUEL FERNANDO DA SILVA JUNIOR YURI ARAUJO CARVALHO PUBLICACIÓN SEMESTRAL DEL SEMINARIO UNIVERSITARIO DE ANÁLISIS CINEMATOGRÁFICO NÚMERO 006 ENERO-JUNIO DE 2018, P. 63-85 Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE). Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Esta- dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil). Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE). Bolsista CAPES. Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Esta- dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil). Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE). Bolsista CAPES. Resumo O artigo tem por objetivo principal analisar as visões de mundo acerca do golpe e da ditadu- ra no Brasil (1964-1985), a partir de duas obras cinematográficas produzidas em contextos extremos de inflexão histórica: O Desafio, de Paulo César Saraceni (1965) e Nunca Fomos Tão Felizes, de Murillo Salles (1984). Duas películas que revelam, por abordagens distintas, um conjunto de contradições e crises históricas no país marcado pela expansão e desenvol- vimento do capitalismo e de apogeu da repressão e censura do Estado. Neste texto, iremos abordar parte significativa destas questões através de dois personagens: Marcelo (O Desafio) e Gabriel (Nunca Fomos Tão Felizes). Por meio deles, e das relações que tecem com Ada (amante de Marcelo) e Beto (pai de Gabriel), pretendemos escrutinar duas visões distintas de sociedade: uma utópica e coletiva, a outra antiutópica e individual. Para a abordagem teórico-metodológica do tema faremos uso de autores como Lukács e Benjamin. Palavras-chave Cinema; golpe e ditadura; utopia e antiutopia; individual; coletivo.

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Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP (Franca, São Paulo, Brasil).

Docente dos Programas de Graduação e Pós-Graduação de História da Universidade Esta-

dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil).

Utopia e antiutopia no cinema brasileiro: Dilemas e perspectivas sobre a ditadura empresarial-militar em O Desafio (1965) e Nunca Fomos Tão Felizes (1984)

RodRigo RibeiRo Paziani

Samuel FeRnando da Silva JunioR

YuRi aRauJo CaRvalho

PUBLICACIÓN SEMESTRAL DEL SEMINARIO UNIVERSITARIO DE ANÁLISIS CINEMATOGRÁFICONÚMERO 006 ENERO-JUNIO DE 2018, P. 63-85

Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE).

Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Esta-

dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil).

Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE). Bolsista CAPES.

Mestrando em História do Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Esta-

dual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Candido Rondon (Paraná, Brasil).

Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa "História e Poder" (UNIOESTE). Bolsista CAPES.

Resumo

O artigo tem por objetivo principal analisar as visões de mundo acerca do golpe e da ditadu-

ra no Brasil (1964-1985), a partir de duas obras cinematográficas produzidas em contextos

extremos de inflexão histórica: O Desafio, de Paulo César Saraceni (1965) e Nunca Fomos

Tão Felizes, de Murillo Salles (1984). Duas películas que revelam, por abordagens distintas,

um conjunto de contradições e crises históricas no país marcado pela expansão e desenvol-

vimento do capitalismo e de apogeu da repressão e censura do Estado. Neste texto, iremos

abordar parte significativa destas questões através de dois personagens: Marcelo (O Desafio)

e Gabriel (Nunca Fomos Tão Felizes). Por meio deles, e das relações que tecem com Ada

(amante de Marcelo) e Beto (pai de Gabriel), pretendemos escrutinar duas visões distintas

de sociedade: uma utópica e coletiva, a outra antiutópica e individual. Para a abordagem

teórico-metodológica do tema faremos uso de autores como Lukács e Benjamin.

Palavras-chave

Cinema; golpe e ditadura; utopia e antiutopia; individual; coletivo.

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MONTAJES, REVISTA DE ANÁLISIS CINEMATOGRÁFICO

Abstract

The objective of this article is to analyze worldviews about the coup and dictatorship in Bra-

zil (1964-1985) from two films produced in extreme contexts of historical inflection: O De-

safio by Paulo César Saraceni (1965) and Nunca Fomos Tão Felizes, by Murillo Salles (1984).

It reveals, through different approaches, a set of contradictions and historical crises in

the country marked by the expansion and development of capitalism and the apogee of

repression and censorship by the State. In this text, we will address a significant part of these

issues through two characters: Marcelo (O Desafio) and Gabriel (Nunca Fomos Tão Felizes).

Through them, and their relationships with Ada (Marcelo's lover) and Beto (Gabriel's father),

we intend to scrutinize two distinct visions of society: one utopian and collective, the other

antiutopian and individual. For the theoretical-methodological approach of this theme we

will use authors such as Lukács and Benjamin.

Keywords

Movie; coup and dictatorship; utopia and antiutopia; collective; individual.

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Utopia e antiutopia no cinema brasileiro: Dilemas e perspectivas sobre a ditadura empresarial-militar em O Desafio (1965) e Nunca Fomos Tão Felizes (1984)Rodrigo Ribeiro Paziani, Samuel Fernando da Silva Junior, Yuri Araujo Carvalho

IntroduçãoO período compreendido pela ditadura empresarial-militar no Brasil1 (1964-1985) caracteri-

zou-se pela elaboração de um conjunto orquestrado de estratégias oficiais de coerção e con-

senso da sociedade com a clara intenção de redefinir e legitimar a hegemonia das burguesias

nacional e internacional sob o manto profano do capital-imperialismo (Fontes, 2010). Ao

mesmo tempo, era preciso combater e, no limite, eliminar indivíduos e grupos considerados

“subversivos” ao regime.

O objetivo principal deste artigo será analisar as visões de mundo acerca do processo his-

tórico do Golpe e da Ditadura no Brasil, a partir de duas obras cinematográficas produzidas

em contextos extremos de inflexão histórica: O Desafio, de Paulo César Saraceni (1965) e

Nunca Fomos Tão Felizes, de Murillo Salles (1984), filmes estrategicamente situados no prólo-

go e epílogo do próprio regime. Ambos revelam, por ângulos distintos, contradições e crises

no país marcadas pela expansão e desenvolvimento do capitalismo e o apogeu da repressão

e censura do Estado ditatorial.

No amplo domínio da cultura, e das artes em particular, as produções e expressões ci-

nematográficas acerca do período do golpe e da ditadura no Brasil têm sido crescentes em

suas abordagens estético-narrativas. A lista é vasta e diversificada e não a citaremos aqui. Já

na literatura sobre o assunto, também as referências são extensas e múltiplas. Ramos (1987),

Ramos (2002/2014), Bernardet (2003), Stigger (2011), Leme (2013), Xavier (2001/2012) são

alguns nomes que compõem a enorme lista de autores e trabalhos na interface do cinema e

história do Brasil entre 1964 e 1985.

Neste texto, iremos promover uma abordagem peculiar, focalizando nossas análises a

partir de dois personagens: Marcelo (O Desafio) e Gabriel (Nunca Fomos Tão Felizes). Por

meio deles pretendemos escrutinar duas visões (ou projetos) de sociedade brasileira (embora

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1 Adotamos a concepção “empresarial-militar” por entendermos que a ditadura no Brasil, tanto em relação ao golpe quanto ao regime, não se caracterizou apenas pela presença efetiva do elemento militar, mas, sobretudo, pelo peso político-econômico e ideológico da classe empresarial nacional e estrangeira. Cf. Pedro Henrique Campos, Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, Rio de Janeiro, FAPERJ/EdUFF, 2015.

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saibamos que nenhuma película esgota tal abordagem): uma visão/projeto que incorpora, de

forma dramática e ambígua, a crença na dimensão utópica e coletiva (O Desafio), e outra,

mais próxima de um drama trágico, cuja narrativa é marcadamente distópica e individuali-

zante (Nunca Fomos Tão Felizes).

O Desafio traça os caminhos e descaminhos do país imediatamente após o golpe, através

da relação romanesca e classista entre os personagens Marcelo e Ada envolvendo, contudo,

outros personagens durante a narrativa fílmica. Mesmo diante de um momento objetivo des-

favorável (golpe/ditadura), Marcelo continua a vislumbrar de modo ambíguo um projeto utó-

pico/coletivo de transformação social. Nunca Fomos Tão Felizes2 narra a história de Gabriel,

jovem que vê sua vida mudar quando o pai, um militante da esquerda armada, reaparece

para buscá-lo no internato. Porém, a possibilidade do (re)encontro entre os dois se torna um

tabu e, em seu lugar, emerge fortemente o problema da perda.

A perspectiva teórica e metodológica a embasar este artigo está sustentada por algumas

considerações analíticas presentes em Lukács (2011) e Benjamin (2012). Do marxista húngaro

tomamos empréstimo sua concepção de estética, segundo a qual uma obra artística

necessita captar, em sua época de produção, a centralidade do ser social e um de seus

aspectos essenciais – a vivência. Relação intensa e qualitativa entre obra, autor e contexto, a

vivência presente numa produção artística caracteriza-se por refletir dialeticamente a realidade

empírica a qual se quer abordar. Benjamin, por sua vez, embasará as análises fílmicas pela for-

ça da ambiguidade em seu pensamento e obra: de um lado, a visão dramática e messiânica

da história – que recai na relação entre utopia e redenção e as possibilidades concretas de

sua negação (Lowy, 1989) – e, de outro, um conceito de narrativa baseado tanto na preocu-

pação radical com as questões da perda e do esquecimento (sob regimes autoritários), quanto

no seu potencial esteticamente crítico, ruptural e transformador (face à massificação cultural).

No primeiro tópico, vamos analisar o filme O Desafio, com particular interesse na persona-

gem Marcelo. O filme, dirigido por Paulo César Saraceni, possibilita deslindar as expressões

reais e objetivas da utopia revolucionária e do projeto antiburguês da esquerda intelectual

brasileira (encarnados em Marcelo) ainda que atravessados pelo drama da personagem, pelos

limites da produção e também do próprio golpe. No segundo, analisaremos Nunca Fomos...

com ênfase na personagem Gabriel, de maneira a descortinar a partir dele (e da relação com

o pai) uma representação da ausência de referenciais e a incorporação da antiutopia em sujei-

2 Adaptação do conto “Alguma coisa urgentemente”, do livro O cego e a dançarina, de João Gilberto Noll (1980).

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tos que, sem saber o que se passava à sua volta, nem como agir, acabam por cair num misto

de melancolia e solidão, de consumismo e satisfação efêmera.

Nas “Considerações (nada) Finais”, pretendemos elucidar aproximações e distanciamentos

que envolvem as duas obras, bem como as mediações histórico-ficcionais entre os persona-

gens, de modo a contrastar as trajetórias, as visões de mundo, os projetos (ou ausência deles)

e os objetivos relacionados às duas tramas narrativas e às ações de Marcelo e Gabriel - perso-

nagens socialmente atravessados por situações-limite ligadas à conjuntura ditatorial do país,

conjuntura esta ainda em aberto.

Marcelo em O Desafio: utopia e(m) crise O filme de Saraceni veio inaugurar o que podemos chamar de “segundo momento” ou “se-

gunda fase” na trajetória do Cinema Novo. O primeiro momento, compreendido no período

anterior à ditadura empresarial-militar, foi marcado por filmes que traziam uma suposta viabili-

dade do processo revolucionário e/ou pautados por uma utopia que, de alguma forma, poderia

ser alcançada. A arte se mostrava como um caminho possível para tal possibilidade “utópica”.

Dentre outros filmes que sintetizam essa acepção estão: Deus e o Diabo na Terra do Sol

(1963), de Glauber Rocha, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Esta primeira

fase caracterizou-se pela expectativa e euforia dos cinemanovistas e sua produção engajada.

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Esse foi o lema de um projeto de vanguarda

artística que marcou o Cinema Novo. Nesse sentido, o próprio Glauber Rocha se posicionou

a respeito do cinema de autor: “se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a

revolução” (Bernardet, 1994: 139). Monica Campo, traçando esse cenário criativo de vanguar-

da, mostra o panorama deste contexto de euforia, particularmente, da produção artística no

campo das esquerdas:

A produção cultural brasileira do início dos anos 1960 propunha-se a se engajar na reali-

dade nacional, assumindo uma atitude política. Cabe ressaltar, porém, que a atuação da

intelectualidade não era homogênea. Havia muita discussão quanto aos procedimentos

teóricos e práticas a serem adotados, gerando divisões. Assim, a esquerda intelectual

pode ser tratada como “as esquerdas”, no plural, pois a homogeneidade do singular não

exprime com propriedade sua complexidade (Campo, 2011: 241).

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O papel das esquerdas no início dos anos 1960, principalmente do PCB, mostrou-se efe-

tivo no interior da política institucional, pois com “o crescimento do PTB (apoiado pelo

PCB ilegal, porém atuante) e a sobrevivência do ‘getulismo’, configurava-se para a UDN um

avanço do comunismo no país” (Mendonça & Fontes, 2004: 13). Este clima de tensiona-

mento político-partidário acabava se espraiando diretamente na produção artística em sua

totalidade, fosse ela literária, musical, cinematográfica, teatral etc. Com o golpe de 1964,

o período de euforia dentro do movimento cinemanovista “do tudo é possível” foi rapi-

damente abalado. Essa mudança abrupta inaugurou um período de reflexão, de autocrítica,

um período de revisão dos erros na militância da vanguarda política e artística do pré-1964.

O período pós-golpe ficou conhecido como o “segundo momento” do Cinema Novo –

período de inflexão na guinada cinemanovista, tendo como primeira produção a película

O Desafio (1965). Este momento voltava-se para o intimismo, a reflexão e a crise, embora

deixasse em aberto a possibilidade de transformação da realidade. Para Monica Campo, esse

período foi “consequência direta do regime militar. Substitui-se o chamado para a revolução

pela reflexão crítica sobre as novas condições existentes. A importância de O Desafio reside

em inaugurar essa reflexão” (Campo, 2011:241).

Em síntese, se na primeira fase cinemanovista a busca por uma cinematografia engajada

estética e politicamente, comprometida com a real transformação da sociedade, era influen-

ciada por circunstâncias de crescentes expectativas diante das Reformas de Base propostas

por João Goulart e, em sentido mais amplo, pelas possibilidades construtivas de um horizonte

no qual fosse possível superar as condições de subdesenvolvimento no país. Já a segunda

fase, ocorrida entre 1964 e 1968, assumiu novas tonalidades. Na conjuntura pós-1964, o oti-

mismo acerca das perspectivas de transformação social “foi abruptamente deixado de lado

com o golpe, na medida em que a rápida reação civil-militar, marcadamente conservadora,

frustrou aquele conjunto de expectativas tão acalentado pelos setores ‘progressistas’ da so-

ciedade brasileira” (Ramos, 2014: 7).

Um dos principais objetivos de O Desafio foi colocar em questão o projeto de uma deter-

minada esquerda, particularmente àquela intelectualizada, que não tinha necessariamente,

vínculo orgânico com as massas populares. Objetivava também evidenciar os limites e o

esgotamento do pacto entre as classes sociais representados pelo populismo. A tensa “con-

ciliação” entre as classes foi o símbolo do projeto populista, marcando um longo período da

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história brasileira (Ianni, 1968). Porém, em períodos de crise econômica (acentuada no início

da década de 1960), o antagonismo inerente entre as classes sociais se tornara inevitável,

inaugurando um processo de conflito social e ruptura institucional. O debate crítico acerca

da atuação da esquerda, bem como suas “deficiências” foram amplamente privilegiados na

película em questão:

O Desafio participou diretamente do debate que ocorreu após o golpe de Estado de

1964 e foi a primeira obra do Cinema Novo a questionar a postura das esquerdas,

inaugurando o filão da temática “autocrítica” no espaço político urbano (Campo,

2012: 242).

Após a derrota das esquerdas em 1964, entrou em cena um certo pessimismo para muitos

quadros políticos, o de “aceitar as coisas como são” representado pela inércia e o ostracismo

impregnados nos setores políticos, inclusive na esquerda, que optaram por se comportar a

reboque dos acontecimentos.

No filme em questão, o personagem Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho), que representa-

va uma fração dessa esquerda, é caracterizado como um refutador destes posicionamentos

pessimistas após a derrota de 1964, ainda que exclusivamente no campo das ideias. Mas, ao

mesmo tempo, não tinha uma perspectiva nítida de qual direção seguir de um ponto de

vista prático; seu personagem é marcado transversalmente pelas oscilações emocionais

(seu romance com Ada) e intelectuais (relação com os colegas de trabalho), o que o impede

de tomar uma iniciativa concreta.3

O Desafio expressa, no personagem de Marcelo, os caminhos e descaminhos das esquerdas

no país à época: suas incertezas acerca de um contexto completamente desfavorável para uma

ruptura de caráter popular e estrutural. Essa experiência pode ser entendida a partir da vivên-

cia em Lukács, uma vez que sintetiza as mazelas de determinado tempo e espaço, no caso a

primeira metade da década de 1960, nos personagens da narrativa, engendradas pela centrali-

dade do ser social. Esse cenário de incerteza, de vazio, de destruição, é retratado por Campo:

O Desafio foi a primeira obra cinematográfica a absorver e trabalhar esteticamente o

impacto de um mundo em ruínas. O filme é a análise de um momento e de sua dinâ-

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3 Wilson Vale destacar algumas contradições inerentes à produção deste filme. Em primeiro lugar, o fato de O Desafio ter sido censurado pela ditadura e ser liberado para exibição somente em abril de 1966 (CARVALHO, 2010). E, em segundo lugar, o entendimento de Saraceni, à época, de que a película – um “filme guerrilha” – cumpria a “missão” de denunciar o contexto do golpe de Estado (VIANY, 1999) contrapondo-se à posição de insatisfação declarada de Via-ninha em relação a seu personagem e ao resultado final do filme de Saraceni (MORAES apud CARVALHO, 2010: 02).

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mica interna, que deduz a historicidade do real. Expressa uma noção de história que

conduz a um tempo determinado – o momento imediatamente posterior ao golpe. Não

ofereceu respostas aos impasses criados pela ruptura política (Campo, 2012: 244).

A euforia do início dos anos 1960 logo se tornou perplexidade, palco privilegiado de incer-

tezas políticas do pós-1964. Nesta produção apreendemos as contradições que são próprias

deste período, como, por exemplo, a conciliação de classes antagônicas representada pelo

período populista (romance entre Marcelo e Ada) e a ruptura dessa frágil conciliação no perío-

do imediatamente posterior ao golpe (o rompimento entre os dois).

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Figura 1. Fotograma de O Desafio.

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O binômio conciliação-ruptura é explorado em toda a narrativa através do romance entre Mar-

celo, representante da esquerda, e Ada, esposa de um grande industrial e representante

da classe dominante. Neste sentido, o romance acaba se tornando um locus privilegiado para

a apreensão dos conflitos de classe existentes no período em questão. A partir de tal perspec-

tiva, o filme de Saraceni contribui para entendermos o momento imediatamente posterior ao

golpe.

Nessa situação de aguda radicalidade, os personagens se posicionam conforme suas con-

dições e situações de classe. É neste momento de crise, consolidado pelo golpe, que os res-

pectivos personagens se situam e imprimem suas visões de mundo, exigindo determinada

radicalidade em seus posicionamentos dentro da situação limite do período.

Quando nos remetemos à palavra “crise”, automaticamente vem à mente a noção de “se-

paração” e desatamento. Em O Desafio, a “crise” se consolida com o golpe e, ao longo da

narrativa fílmica, vai se desenvolvendo paulatinamente com os sucessivos desatamentos

das relações sociais, inclusive a romanesca representada por Marcelo e Ada. Nesse sentido,

como o filme se desenrola imediatamente após a implantação do regime militar, a inflexão

dos personagens se faz sentir ao longo da narrativa, uma vez que antes do golpe a convivên-

cia entre eles se presume harmônica. É no período de crise que há as separações e mudanças

substantivas. Isto é visível em O Desafio.

Neste enredo, Ada em nenhum momento do filme consegue compreender a mudança

de atitude de Marcelo. No decorrer de toda a narrativa, acredita que o problema esteja com

ela, em sua relação extraconjugal, enquanto Marcelo, embebido da nova realidade posta à

sua frente, só consegue se preocupar com o momento político os problemas que envolvem

a sociedade como um todo. Se Ada permanece presa no momento privado e particular,

Marcelo se envolve num momento coletivo e universal.

O choque entre os dois não é só o antagonismo de classe próprio da manifestação fílmica.

Como já mencionado, há também um antagonismo dentro do romance protagonizado por eles.

Marcelo está muito mais vinculado aos problemas objetivos da realidade, enquanto Ada está

voltada para a resolução dos seus problemas subjetivos. Não há convergência nesse romance,

mas profundas divergências: o prosaísmo de Ada e seu subjetivismo privado tendem, a todo

o momento, a quebrar o posicionamento de Marcelo, voltado para a totalidade (ao menos,

enquanto desejo), característica própria da poesia.

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O espectador caminha junto com Marcelo em meio às suas desventuras na militância e de

um projeto político derrotado em 1964. Ambos partilham os anseios de um período histórico

(1964-1965), partilham a angústia de não haver uma perspectiva de futuro, muito embora

haja uma fagulha de esperança na possibilidade de transformação. O vazio do personagem

é compartilhado com o espectador, fazendo esse último interiorizar as próprias dificuldades

enfrentadas pelo primeiro.

O Desafio nos permite uma dupla analogia: intrínseca e extrínseca à obra. Por um lado,

como Saraceni considerava seu filme “expressão do grito sufocado na garganta dos muitos

que viram seus projetos artísticos e pessoais abalados por um repentino golpe de estado, a

ideia de ‘desafio’ seria assim, antes da obra, o próprio ato de realizá-la” (Carvalho, 2010:3).

Por outro, concretizado o filme, o sentido da palavra “desafio” não se esgotava, mas, ao con-

trário, expandia-se e tornava-se compartilhado pelo protagonista Marcelo, posto que novas

atitudes deveriam ser tomadas para romper a fase de marasmo, perplexidade, desesperança

e falta de rumos que tomou a intelectualidade da esquerda brasileira pós-golpe de 1964. Em

síntese, o real “desafio” seria elaborar um novo projeto diante de um futuro ainda incerto.

A combinação entre impotência e tumulto também aparece nas falas de Marcelo: “Es-

tou me sentindo sem perspectiva” (4m10s); “Não é medo. É a certeza de não poder fazer

nada para modificar” (10m19s); “Não consigo sair da fossa” (21m40s); “Ainda estou vendo

tudo escuro” (28m41s) versus “Eu não posso estar em paz quando preciso tanto de guerra”

(5m44s); “Nosso problema não pode ser sublimado, nem podemos nos enganar dizendo que

não existe, que não é tão grave assim, que nós estamos exagerando. É real!” (54m36s); “Não

basta criticar a sociedade, é preciso mudar tudo” (59m02s); “[Acredito] na transformação do

mundo” (1h20m43s).

O esvaziamento metafísico também permeia parte da narrativa de O Desafio, especial-

mente nos diálogos entre Marcelo e Nestor, sendo o último caracterizado por uma postura

niilista, uma “condição de homem trágico [que] não lhe permitia acreditar em ideais políti-

cos, mantendo assim uma visão cínica, sem esperança na experiência social ou em qualquer

tipo de engajamento, tanto na arte como na vida” (Carvalho, 2010: 4).

Ao contrário de Nestor, a militância de Marcelo é mais aberta e a estrutura dialógica é

retoricamente mais rica, embora não haja ações contestatórias diretas por parte deste prota-

gonista. Por sua vez, em relação aos personagens Ada e Nestor, Marcelo se mostra confiante

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na viabilidade de um processo revolucionário, principalmente quando entra em discussão

com o colega de trabalho. Todavia, ao longo da película, Marcelo desvela uma atuação pau-

tada por ambiguidades: ora marcada pela certeza, ora pela incerteza. Campo ressalta essa

situação, presente no filme:

Marcelo afirma, durante os diálogos que trava com sua amante e com o jornalista mais

velho, sua crença na “revolução” e reafirma seus ideais mesmo após o golpe. Entre-

tanto, quando está sozinho ou no diálogo com seus colegas de redação, não parece

tão certo de tais ideias ou da eficácia na conjuntura em que se encontram (Campo,

2011: 251).

A partir destas sucessivas aproximações com o contexto e o filme levadas a cabo por

nós, conseguimos visualizar a tônica da obra em questão: a ambiguidade. Contudo, apesar

de Marcelo ter um posicionamento marcado por condutas ambíguas e vacilantes ao longo

da narrativa, torna-se importante sublinhar que ele também não deixa de buscar, em seus

desafios e limites, modos de enfrentamento ao drama vivido por ele (e pelo país) naquele

ambiente pós-golpe. Se essa acepção se faz verdadeira, a utopia e o projeto coletivo ainda

continuam presentes em Marcelo, ainda que de formas distorcidas e marcadas por dubieda-

des. Dois momentos da película são sintomáticos.

No primeiro, Marcelo encontra-se na rua e caminha por uma feira popular (1h07m26s).

Ali, diante dele, estão reunidos (de forma um tanto desorganizada) um pequeno conjunto de

trabalhadores/as a vender sua força de trabalho. Sua vontade é a de conhecer estes homens

e mulheres comuns, estar e lutar com eles, relacionar-se de maneira radical e transformadora

com o “povo”. Ao fundo, a música “Arrastão” (Edu Lobo) parece evidenciar a possibilidade

da realização de alguma promessa apreendida, de um ângulo cinemanovista, como um misto

de utopia e redenção. A força e a intensidade da música (interpretada por Elis Regina) po-

tencializam uma espécie de súplica religiosa dirigida à potencialização de um ato ruptural.

Entretanto, o que vemos na tela contradiz o potencial da música, na medida em que a

câmera de Saraceni promove um corte, no processo de montagem e edição, entre teoria e

prática, entre potência e efetividade. Embora Marcelo aparente ser o portador de um projeto

coletivo e utópico, o jogo imagético entre ele e os demais personagens acaba por revelar seus

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posicionamentos dúbios e vacilantes, ao ponto de impregnar esteticamente a cena. Marcelo

encontra-se em meio ao “povo”, mas não consegue se comunicar com ele: aqueles sujeitos

lhe são concretos apenas no campo das idéias.

O segundo e derradeiro momento, síntese desta nossa análise, localiza-se na cena final

do filme. Após sair, constrangido, da casa de Nestor, Marcelo desce paulatinamente uma

escadaria (1h31m25s). Enquanto o vemos descer, ao som da música “Eu vivo num tempo de

guerra” (Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri), tem-se a impressão de que tomará uma deci-

são final. No entanto, a cena nos surpreende duplamente: a) quando um pedinte o aborda,

Marcelo se sente amedrontado, desconfortável, ameaçado e b) enquanto anda em direção

ao “amanhã”, pára na escadaria e Ada (o passado conciliador) reaparece-lhe em pensamento.

A ambigüidade é uma marca característica de Marcelo: o zelo da militância e a impotência

de transformação. Elementos estes que geram um impasse: a utopia e o projeto coletivo ainda

existem, mas são atingidos pela dificuldade de realização prática. Deste ângulo, o momento

final do filme – cena-síntese de todos os problemas que cercam o personagem – representa

a chave explicativa da “urgência da ação e o descrédito em sua eficácia” (Xavier, 2012: 23).

Contudo, tal ambiguidade não elimina a expressão coletiva e utópica que o personagem

busca encontrar na sociedade.

Gabriel em Nunca Fomos Tão Felizes: ausência e antiutopiaSe em O Desafio temos uma narrativa romanesca que, mesmo no “apagar” das luzes

representado pelo golpe de 1964, encontra no personagem Marcelo a busca esperançosa

de um horizonte ético anticapitalista e a utopia de um projeto político de sociedade na

perspectiva de esquerda (ancorado no vã otimismo das reformas de base de Jango), em

Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles, o que vemos é um ambiente marcado singular-

mente pela antiutopia, experiência própria de um contexto histórico de impasses e dramas

em torno do processo de “transição democrática” no Brasil.

Como a película explora esse ambiente anti-utópico em suas dimensões estética e nar-

rativa? Várias são as possibilidades de análise, mas uma em particular nos interessa neste

texto: o problema da ausência que perpassa a trajetória do jovem Gabriel, personagem

central da obra (LEME, 2013: 238), e como sua conduta nos revela algo da própria “alma”

de jovens oriundos de frações da pequena burguesia brasileira (e não de “toda” a sociedade)

que viveram o período da ditadura no Brasil.

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Ao longo do filme, duas ausências se apresentam de forma evidente aos olhos do especta-

dor: a ausência da mãe, falecida quando Gabriel ainda era uma criança, e a do pai, de quem

Gabriel nada guardara em sua lembrança desde os tempos de internato. Paradoxalmente, a

memória dos pais permanecerá através de registros fotográficos.

Muito embora a questão da ausência nos remeta a uma abordagem psicanalítica da obra

– que, de fato, seria de extrema relevância – vamos privilegiar uma outra, ancorada numa

análise dos termos da ausência enquanto antiutopia e melancolia, encarnada na figura de Ga-

briel. Em nosso entender, ele faz um contraponto com Marcelo, protagonista de O Desafio.

O que não significa abandonar a figura do pai (Beto) e o drama da “relação” (ou falta dela)

buscada por Gabriel.

Personagem central da obra, o jovem torna-se intrigante não tanto pela “busca” malograda

da identidade paterna ou mesmo por um (impossível) “retorno” ao seio familiar (elementos im-

portantes), e sim por encenar/encarnar em sua subjetividade (cindida) as marcas da ausência de

referenciais objetivos capazes de produzir esperança ou transformação (individual e coletiva).

Mesmo que a nós não seja explicitado o ano em que se passa a narrativa – nem era a

intenção de Murilo Salles explicitar –, alguns indícios levam o espectador atento a perceber

que se trata do período da ditadura no Brasil, durante o início da década de 1970. Mas, ao

contrário de O Desafio, em Nunca Fomos... o período é retratado pelo viés particular e inte-

rior da relação melancólica (e trágica) entre pai e filho.

Beto encarna a luta armada contra o regime ditatorial pela via dos assaltos a bancos e da

guerrilha urbana (caso dos pacotes de dinheiro entregues ao filho e da compra clandestina de

armas). Mas... e Gabriel, quem ele representa? O “povo”, pobre e alienado, que nada capta

do que ocorre à sua volta nos “anos de chumbo” da ditadura?

Se assim procedemos, estaríamos dizendo que o filme de Salles aproxima-se das produ-

ções cinematográficas “sociológicas” das décadas de 1950 e 60 (Bernardet, 2003), nas quais

o cineasta-intelectual acreditava portar em si e na sua obra (encarnado no protagonista) o

objetivo de “esclarecer” e até “conscientizar” o dito povo. Contudo, em Nunca Fomos... es-

tamos longe deste paradigma (mesmo O Desafio caracteriza-se por um momento de inflexão

histórica e de prefiguração do transe glauberiano).

Partimos de conhecida afirmação de Salles, segundo a qual suas produções não optam

pela generalização, ou como ele diz em entrevista: “... Eu prefiro muito mais ver o particular

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[...] não tenho a pretensão de conhecer o todo. Acho impossível...” (Salles, s/d.). O “particu-

lar” refere-se à relação entre Gabriel e seu pai.

Em pesquisa feita no site do diretor, Roberta Souza extraiu e analisou trechos nos quais

Salles reconhece na relação entre os dois personagens o “reflexo” de uma cisão histórica en-

tre os anseios revolucionários de parte da esquerda que migrou para a luta armada e o sujeito

que eles (supostamente) defendiam, o “povo”. Aceitando o discurso de Salles, Souza associa

o filho com o povo, ambos vistos como “ingênuos” e “incapazes” de se defender, ou ainda

uma sociedade à espera de um “guia” (o pai) para esclarecê-la dos fatos (Souza, 2016: 35).

Em outra passagem, a autora ancora-se na argumentação de Salles para reforçar uma polari-

zação: de um lado, a esquerda armada, de outro, parte da população alienada – representada

pela impossibilidade de comunicação e reenlace entre pai e filho.

Não concordamos com essa análise. Em nosso entender, Gabriel não representa o “povo”

ou “parte da população alienada”, nem mesmo o “trabalhador”: é preciso “escovar a con-

trapelo” (parafraseando Benjamin) os argumentos acima, inclusive os do diretor, e refinar a

abordagem. Em nosso entender, Gabriel revela comportamentos e práticas sociais identifica-

das à pequena burguesia (também conhecida pela alcunha de “classe média urbana”), seja a

que manteve contatos com a luta armada (pai), seja aquela fração que se manteve distanciada

dos conflitos (Leonor). Talvez o que melhor defina Gabriel (e mesmo o ambiente do filme)

seja o conceito benjaminiano de “acedia”: “é o sentimento melancólico da todo-poderosa

fatalidade, que priva as atividades humanas de qualquer valor. Consequentemente, ela leva a

uma submissão total à ordem das coisas que existem” (Löwy, 2005: 71).

Neste sentido, algumas evidências presentes no filme apontam para o tema da ausência,

baseada menos em questões psicologizantes, e mais num horizonte pautado pela análise da

antiutopia e da falta de projetos da pequena burguesia numa fase, ao mesmo tempo, eufórica

e endurecida da década de 1970. Por exemplo, numa cena do restaurante, no início do filme,

pai e filho tentam entabular um diálogo:

Gabriel: Sabe que eu nem sei por que você foi preso? [...] Por que você foi preso?

Pai: Eu gostaria de poder lhe responder todas as perguntas... Mas no momento, eu não

posso... Eu sei que é difícil pra você compreender isso agora, mas para o seu próprio

bem sou obrigado a lhe esconder tudo... Filho, quanto menos você souber de mim,

mais seguro você estará!

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Gabriel: Então porque você foi me buscar no colégio? (09m15s a 09m50s – grifo

nosso).

Depois de oito anos vivendo em colégio interno católico (se tomarmos como baliza tem-

poral o golpe de 1964, isto teria ocorrido em 1972), o filho reencontra o pai, que o retira de

lá. Sem termos (Gabriel e nós) a clara noção de quem ele é ou o que faz, vamos sabendo

(de modo fragmentado) que o pai é um militante de esquerda armada – talvez da Vanguarda

Popular Revolucionária (VPR), talvez da Aliança Libertadora Nacional (ALN) – pois, quase

ao final da película, o “Jornal Nacional” noticiava o sequestro do embaixador suíço (1970)

assumido pela VPR e ALN.

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Figura 2. Fotograma de Nunca Fomos Tão Felizes,

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O fato de se ver obrigado a esconder tudo do jovem (“... quanto menos você souber de

mim, mais seguro você estará!”) – tônica de quase toda a película – demarca o problema da

ausência face à forte censura e silenciamento da oposição (armada ou não) neste período.

Numa cena, Beto e Gabriel vão a uma sessão de cinema. Filme em cartaz: Os inconfidentes,

de Joaquim Pedro de Andrade, de 1972. Trata-se de um contexto histórico de acirramento da

luta cruenta do regime contra a “subversão” e o “terrorismo” e o ápice do desmonte das or-

ganizações da esquerda armada (Gorender, 1987). De acordo com Roberta Lemos de Souza:

O episódio é usado pelo diretor de forma indireta para tecer críticas ao regime militar

a partir do contexto do século XVIII que trata da luta de parte dos colonos contra a

metrópole portuguesa [...] a película traz uma visão distinta daquela que tradicio-

nalmente constavam dos livros didáticos, deixando de lado o suposto heroísmo dos

revolucionários e ressaltando seu distanciamento dos anseios populares, como os mo-

vimentos de esquerda durante a ditadura militar. Ambos dizem lutar pelo povo, mas

sem saber exatamente o que o povo quer (Souza, 2016: 58).

Gabriel e seu pai assistem ao referido filme: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes

(José Wilker), e José Álvares Maciel (Carlos Gregório), jovem engenheiro que retornara da

Inglaterra, conversavam sobre a condição colonial do Brasil e as possibilidades de um “le-

vante” em Vila Rica. Momentos antes, vemos Gabriel entrar no quarto do pai e ver, além de

um revólver, duas notícias no jornal, referentes aos assassinatos de um “terrorista”, de uma

dançarina e de um desconhecido que freqüentavam a boate “Twist”. Que relação haveria

com a cena do cinema?

Em meio à aludida cena de Os Inconfidentes, uma triste notícia: morrera um amigo do pai,

de nome “Xavier”. Gabriel associa a figura de Xavier ao assassinato noticiado no jornal (“Seu

amigo se chamava Xavier?”). O pai responde: “Você andou mesmo mexendo nas minhas

coisas... Pra quê? Filho, eu te peço, não faça isso... não tente saber de nada, será pior, quan-

do chegar a hora eu te explico tudo”. Numa cena magistral – entre pai e filho, as câmeras

(a de Andrade e a de Salles) captam a tela do cinema através de zoom – emerge a figura de

Tiradentes dizendo: “foi então que me ocorreu a independência que esse país poderia ter,

e eu comecei a desejá-la primeiro e depois a cuidar de como se poderia chegar até ela”. O

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que Tiradentes pronunciou (para nós) pode ser visto como uma “senha” daquilo que o pai

silenciou a Gabriel.

Este silêncio moverá a trama. Ao deixar o internato, Gabriel é lançado no mundo descon-

tínuo da grande cidade – tal qual o fluxo temporal da narrativa apresentado ao espectador:

embora datado (20 de novembro a 08 de dezembro), não temos a informação exata de que

ano se trata. Contrastando com a mudança brusca em sua vida, o diretor explora a cor azul-

-acinzentada – na paisagem (praia), nos interiores (apartamento) e mesmo nas roupas de

Gabriel (camisa) – e de uma música instrumental de tom melancólico para expressar o clima

de ausência: do pai (desamor, insegurança), mas também de perspectivas e projetos.

Beto decide levar Gabriel a um apartamento quase vazio, pouca mobília, em Copacaba-

na, de propriedade de Leonor (Suzana Vieira) – ex-amante do pai. Este diz que somente ele

e o filho podem saber daquele lugar. Gabriel pergunta se eles vão morar juntos, mas o pai

rapidamente frustra o filho ao dizer que “Até os nossos encontros terão que ser feitos fora

daqui (do apartamento)” – quase sempre lançando essa possibilidade para um futuro incerto

e não concretizado, portanto, não-utópico.

A partir do momento em que Gabriel descobre certos indícios (nem sempre factíveis) da

“misteriosa” vida do pai – as mortes da Boate “Twist”, o assassinato do “terrorista” que voltara

de Cuba, a perseguição da polícia nas imediações do edifício – ele passa a procurar saber

quem é “verdadeiramente” seu pai: ao final, uma busca vã.

Porém, é justamente nesse caráter de não-correspondência (entre pai e filho, perguntas

e respostas, verdade e ilusão) que percebemos uma singularidade se descortinar aos nossos

olhos. As cenas de solidão no apartamento vividas por Gabriel remetem a um alheamento

da realidade exterior, ou de “alienação”, como querem Roberta Souza ou o próprio diretor.

Existe algo de subjetivismo no rapaz em sua tentativa de reatar os laços de amor com o pai,

que se assemelha aos ambientes onde vive e transita – o apartamento (ou a praia) simboliza

um vazio que toma conta de Gabriel (e de nós) – ou os objetos que toca – os jornais, as

fotografias dos pais e de Leonor, a caixa de fósforos da boate como fragmentos do mundo.

Como reage Gabriel diante de tudo o que não sabe? Além de questionar o porquê de ter

sido retirado do colégio, o jovem, em outra cena, chega a afirmar a vontade de retornar à sua

antiga condição (mesmo que, aos nossos olhos, isto se torne impossível). Mas existem outras

cenas mais pertinentes. Após cansar-se de tédio e solidão e de sentir-se “traído” por não ter

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encontrado o pai no Restaurante “Alvorada” (para levar uma mala) – cenas entremeadas pela

conversa com Leonor e pela transa com a prostituta da boate “Twist” – Gabriel decide não

mais atender os telefonemas de Beto. Numa manhã, este reaparece, nervoso:

Pai: Hein? Por que desligou o telefone sem sequer saber quem estava falando? Me dei-

xa feito um maluco, sem saber o que está acontecendo [...] O que você estava fazendo?

Filho: Eu nunca te fiz essa pergunta?!

Pai: Eu, aflito, querendo saber notícias tuas e você some... E quando atende o telefone

me desliga na cara? O que você está querendo?

Filho: E você... por que não foi me encontrar no restaurante? Eu quase fui preso por

causa da tua mala [...] Você vive tendo problemas [...] Desde que eu cheguei aqui não

faço outra coisa a não ser te esperar!

Pai: Você faz outra coisa, sim senhor! Está gastando todo o dinheiro que eu te deixei

pra estas porcarias... guitarra... televisão! Eu não te disse que era pra respeitar esse

dinheiro? Esse dinheiro não era meu!

Filho: Eu não tenho nada com isso! Você quer que eu fique aqui dentro que nem um

maluco? (51m30s a 52m44s. Grifos nossos).

O silêncio (necessário) do pai perturba o filho. Gabriel apropria-se do dinheiro oferecido

pelo pai (talvez fruto de assaltos a bancos) para gastá-lo com objetos característicos

do consumo de massa no país durante a década de 1970, justamente no contexto histó-

rico do “milagre brasileiro”: rádio, televisão, guitarra, caixa de som, máquina fotográfica. Em

todos eles –incluindo a luz neon do “Hotel Califórnia” e o cachorro quente do “Jonn’s”–

notamos a forte presença da hegemonia cultural norte-americana a circundar o “mundo” do

rapaz.

Paradoxalmente, num contexto no qual a fabricação de consensos midiáticos pelo alto da

ditadura (visando escamotear a repressão e a tortura) mesclava-se com o processo de massifi-

cação cultural promovido pelo capitalismo durante o “milagre” (Napolitano, 2014) tornava-se

(quase) incompreensível à pequena burguesia urbana (tomada de euforia e legítima consumi-

dora) entender o que se passava no Brasil.

No apartamento, após uma cena em que escapa de perseguição policial, Beto tenta expli-

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car indiretamente a Gabriel o que está acontecendo com ele (“Filho... não estou escondendo

nada para te enganar/ É por que eu tenho um motivo muito forte pra isso! [...]”). A resposta

do jovem – amparada em notícia publicada no jornal citado anteriormente – é sintomática:

“Pai... você é um terrorista?”. Em cena subseqüente, Gabriel está no Hotel “Estrela”, em São

Cristovão (local em que o pai pediu a ele para se esconder). No quarto, solitário e sentado à

cama, está lendo alguma notícia no jornal “O Globo”, de 01 de abril de 1970. Não sabemos

o conteúdo da notícia, mas a câmera faz um movimento de aproximação em zoom e focaliza

a matéria de capa: “Governo promete reduzir a inflação a 10% e usar rigor no combate ao

terrorismo”.4

Quase ao final da cena em que o pai comemora o aniversário de Gabriel, os dois estão na

sala assistindo programas de TV. De repente, após um corte para o aparelho vemos o filho

a dormir, enquanto Beto o observa. Na sequência, uma famosa vinheta de encerramento de

transmissão da Rede Globo a dizer (trecho): “Fique agora na tranqüilidade do seu lar [...] Até

amanhã, na certeza de um novo tempo, tempo de comunicação, fazendo o homem livre...”

e o pai desliga a TV. Ou em seqüência final da película, quando vemos Gabriel soli-

tário e desolado (como nas cenas em que está tocando guitarra) encostado à parede da sala,

à espera da tão sonhada viagem com o pai. Pela TV, uma propaganda oficial do regime: “A

verdadeira democracia se constrói com o esforço de cada um para a segurança de todos. Esta-

mos forjando o nosso destino com ordem e progresso. Brasileiros... Nunca fomos tão felizes!”.

“Nunca fomos tão felizes / Tão felizes nunca fomos”: eis o título e a ironia propostos por

Murilo Salles. Nos idos de 1983, 1984, em plena campanha das “Diretas Já”, este jogo de

linguagem à luz do comportamento e atitudes de Gabriel (caso das cenas em que dorme,

encontra-se apático ou lê com pouco interesse) e a ausência de relação com seu pai soava

quase melancólico – e até conservador.

Para Silva (2014), Nunca Fomos... é um filme paradoxalmente “antedatado”, ou seja, o

tempo de sua produção fundamenta-se não tanto nos anos 1980, mas na década anterior.

Em tese, constituiria aquilo que Benjamin denomina de “rememoração”, e em parte o é (do

ângulo da produção). No entanto, se mergulharmos na trama o que emerge é um pas-

sado frustrado (relação pai-filho) que, ao contrário de Benjamin, está destituído de utopia

e de tentativa de rompimento do continuum histórico.

E a que conclusões podemos chegar, tomando por base a personagem Gabriel? Ao con-

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4 Não podemos ver claramente a data no filme, mas em pesquisa feita na internet descobrimos um número do jornal do Brasil, de 01 de abril de 1970, contendo o seguinte dizer: “Médici promete reduzir a inflação a 10% e usar rigor no com-bate ao terrorismo”.

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trário de Marcelo, o horizonte do jovem não está apontado para o futuro, e sim encravado indelevelmente

num tempo presente no qual nada parece concretizar-se, quase tudo o que se apresenta a ele chega de

modo fragmentado e desconexo. Por este ângulo, Gabriel simboliza o triunfo da antiutopia, do enfoque

individualista e da (indiferente) ruptura com os dramas e projetos coletivos. Ironia, de certo modo, se pen-

sarmos no contexto de sua produção.

Considerações (nada) Finais...As duas películas, sem dúvida, merecem uma articulação e um balanço... nada finais. Por quê? Em

nosso entender, ambas constituem parte significativa do processo histórico de consolidação da dita-

dura no Brasil e da transição (melancólica?) ao regime democrático nos anos 1980, que continua em

aberto! Os filmes nos possibilitam estabelecer mediações e peculiaridades com o período em ques-

tão, a partir dos personagens Marcelo e Gabriel. Alguns pontos merecem destaque.

Em O Desafio, preocupações quanto à “invasão” (econômica, ideológica, política) norte-americana

no país contrastam com as manifestações concretas de absorção da cultura de massa estadunidense

em Nunca fomos...; no primeiro, a narrativa é permeada por lampejos e possibilidades de transfor-

mação da realidade objetiva (mesmo que não se efetive); no segundo, a “fagulha” de possibilidade

transformadora se encerra com a morte de Beto; a militância de Marcelo possui, como afirmamos,

uma estrutura dialógica (retoricamente) mais rica, ao passo que a militância de Beto é quase ofuscada

menos por seus silêncios, e mais pela figura solitária e melancólica de Gabriel.

As relações entre a militância de resistência à ditadura e a sociedade brasileira constituem um nexo

congruente entre os dois filmes. Em O Desafio, embora Marcelo esteja atravessado pelas incertezas

e perplexidades diante do golpe de 1964, ainda consegue sustentar (ao menos retoricamente) lap-

sos esperançosos quanto à transformação do mundo. Todavia, o protagonista não apresentava vínculos

orgânicos com as massas, o que ocasionava uma contraditória relação entre intelectuais e proletariado

(como na cena final do filme, quando Marcelo, descendo uma grande escadaria, decide afastar-se de uma

criança pobre).

Em Nunca Fomos Tão Felizes, o distanciamento entre Beto e Gabriel, resultado das atividades

clandestinas do pai, também carrega consigo a simbologia do afastamento entre a esquerda e a socieda-

de – mas não como querem Roberta Souza ou o próprio diretor: não se trata de uma mera cisão entre

“intelectuais”/”esquerda armada” e “povo”/“nação”, e sim de uma relação de crise (e não superação)

dentro de uma mesma fração da classe burguesa (a pequena burguesia ou “classe média urbana”).

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Contudo, as situações representadas nos filmes constituem um elemento claramente di-

vergente: as perspectivas e projetos de seus protagonistas. Enquanto Marcelo coloca-se ao

lado da contestação e da resistência (mesmo que com traços de resignação), Gabriel está

inserido na sociedade de massas, na passividade, ou seja, em uma posição (de classe?)

diametralmente oposta a de Marcelo. As interações de Gabriel, apesar de possibilitadas pela

instrumentalização da sociedade de massas em que está imerso, contêm certos traços

de intimidade e individualismo. Já Marcelo, ao incorporar em si a dimensão coletiva, trava

embates contra o individualismo de Ada (reflexos de seu modo de vida burguês, majori-

tariamente direcionado aos dilemas subjetivos e privados), o conformismo do fotógrafo

Carlos e o niilismo de Nestor, chefe da redação.

Apesar da narrativa vacilante quanto ao futuro do país (representada pela atitude de

Marcelo ao final da película), O Desafio parecia portar, desde o título, uma tentativa

dramática de desafiar no campo político as contradições e os limites de uma produção

cinematográfica pós-golpe (um clima de marasmo, perplexidade, desesperança que to-

mara conta de boa parte da esquerda brasileira) e os potenciais estético-narrativos da

obra em construir um novo (e malogrado) projeto diante de um futuro sinistro e incerto (à

época). Em Nunca fomos..., a narrativa não se desdobra num porvir, mas para a crítica de

um passado frustrado. O título da película remetia ao slogan oficial do regime, difundido

pela televisão nos anos 1970, durante o “milagre econômico”. A peça propagandística,

entretanto, carregava consigo ambiguidades: “como exclamação, traduz uma sensação

de felicidade coletiva inédita. Por outro lado, se dita em tom irônico, coloca em dúvida

o próprio sentido propagandístico da frase” (Napolitano, 2014: 118).

Ambiguidades por certo ligadas às condições históricas do país, marcadas pela depen-

dência estrutural ao capital internacional e um cenário de abissal exploração, expropria-

ção e concentração de renda que atingia (e continua a atingir) especialmente o conjunto

da classe trabalhadora. Se, por este prisma, Marcelo e Gabriel encontraram-se (cada um a

seu modo) distantes da “realidade” concreta vivida pela maior parcela da sociedade bra-

sileira, por outro é preciso reconhecer a sutil diferença entre uma crença vacilante na di-

mensão utópico-coletiva (Marcelo) e a angústia de uma vida deslocada para a dimensão

distópico-individual (Gabriel). Talvez a junção dialética dos dois ajude-nos, atualmente, a

entender a crise histórico-institucional dos movimentos e partidos de esquerda no Brasil.

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Entrevista:

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Artículo recibido 11 de noviembre de 2017 y aprobado 20 de enero de 2018

NÚMERO 006 ENERO-JUNIO DE 2018, P. 63-85

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