19
Capítulo VIII - do livro: O Erro de Narciso - Louis Lavelle. A Vocação e o Destino I Diferença entre os espíritos. É difícil fazer concordar a extensão com a profundidade. Alguns só têm olhar para o espetáculo do mundo. Eles têm necessidade que ele se renove indefinidamente sob seus olhos. Eles o admiram sem se cansar da variedade e da novidade. Mas eles só têm com ele um contacto superficial: basta que ele mantenha sua curiosidade desperta e povoe de imagens o seu espírito que busca sempre escapar da solidão. Outros permanecem sempre no mesmo lugar. Eles retornam sem cessar aos mesmos pensamentos; cavam indefinidamente o solo sobre o qual nasceram e ao qual permanecem atados. Eles se desviam das planícies que o sol ilumina e que a chuva rega, e buscam, no lugar onde estão, uma fonte subterrânea na qual possam beber. Quão difícil e quão desejável seria poder unir a extensão e a profundidade, de seguir todos os caminhos onde a vida nos engaja sem nos afastar jamais do ponto de onde ela jorra!

Vocação III - Lavelle

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Vocação III - Lavelle

Capítulo VIII - do livro: O Erro de Narciso - Louis Lavelle.

A Vocação e o Destino

I

Diferença entre os espíritos.

É difícil fazer concordar a extensão com a profundidade. Alguns só têm olhar para o espetáculo do mundo. Eles têm necessidade que ele se renove indefinidamente sob seus olhos. Eles o admiram sem se cansar da variedade e da novidade. Mas eles só têm com ele um contacto superficial: basta que ele mantenha sua curiosidade desperta e povoe de imagens o seu espírito que busca sempre escapar da solidão.

Outros permanecem sempre no mesmo lugar. Eles retornam sem cessar aos mesmos pensamentos; cavam indefinidamente o solo sobre o qual nasceram e ao qual permanecem atados. Eles se desviam das planícies que o sol ilumina e que a chuva rega, e buscam, no lugar onde estão, uma fonte subterrânea na qual possam beber. Quão difícil e quão desejável seria poder unir a extensão e a profundidade, de seguir todos os caminhos onde a vida nos engaja sem nos afastar jamais do ponto de onde ela jorra!

Alguns homens são eles próprios como fontes de onde se escoam novas riquezas; mas a maior parte é como canais que levam de um lugar ao outro as riquezas que eles mesmos não produziram. E também se pode ver espíritos nômades e outros, ainda, que são cultivadores de seu próprio solo.Ora, “há uma diversidade de graças, mas é o mesmo Espírito, uma diversidade de ministérios, mas é o mesmo Senhor. Há também uma diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera em todos.”

Todos os seres recebem a mesma luz: mas todos a acolhem diferentemente. Uns são parecidos com superfícies brancas e a reenviam toda em torno deles: são aqueles que têm mais inocência. Outros se parecem com superfícies negras e mergulham em suas próprias trevas: sua alma é um cofre trancado. Há os que a dividem, que captam certos raios e refletem outros, como essas superfícies diversamente coloridas, mas que mudam de brilho e de nuances de acordo com a hora do dia: são as almas mais sensíveis. Há, ainda, aqueles que são semelhantes a superfícies transparentes e deixam passar através deles toda a luz sem nada reter dela: são os mais próximos de Deus. Alguns podem ser comparados a espelhos nos quais, a natureza inteira e o espectador que os contempla, não deixam de se refletir e de se ver: são os mais próximos de nós, e sua simples

Page 2: Vocação III - Lavelle

presença é suficiente para nos julgar. Outros, enfim, fazem pensar em prismas, nos quais a luz branca se irradia em um arco-íris miraculoso: e são aqueles que cantam a glória da natureza pela arte e pela poesia.

2

O gênio próprio.

Todos os homens têm gênio se eles forem capazes de descobrir seu gênio próprio. Mas é neste ponto que reside o mais difícil: porque não fazemos mais do que invejar outro, imitá-lo, buscando ultrapassá-lo ao invés de explorar nosso próprio fundo. E não se pode desconhecer que, cada vez que somos fiéis a nós mesmos, experimentamos um ardor lúcido que supera todos os outros prazeres, lhes substrai todo o sabor e os torna , doravante, inúteis. Mas como descobrir o gênio pessoal que nos escapa quando o buscamos, do qual a maioria dos seres não pode mais do que duvidar, quando eles vêem suas vidas escoar na miséria, no tédio ou nos divertimentos, que atravessa, às vezes, num lampejo de esperança, a consciência mais medíocre, mas que se evanesce a partir do instante em que ela busca se apoderar dele, quando as nossas ocupações mais constantes contradizem e rechaçam e que não é jamais nem uma idéia que se possa definir, nem um élan interior que se possa conduzir?

O simples pensamento de nosso gênio próprio abala sempre nosso amor- próprio, ele lhe causa um tipo de ansiedade e já a satisfação mais forte e a mais sutil. No entanto, nosso gênio está em oposição ao nosso amor-próprio, que é uma preocupação conosco mesmos, que coloca a opinião acima da realidade, que, ao invés de secundar nosso gênio, se mostra no momento em que, renunciando de repente a todos os movimentos do amor-próprio que não cessam de nos perturbar e de nos divertir, nós ganhamos acesso a um mundo espiritual cuja descoberta é o efeito do desinteresse puro, que nos dá o que nós não saberíamos dar a nós mesmos, e do qual nos tornamos os testemunhos e os intérpretes, ao invés de fazê-lo servir a nossos próprios fins.

É, então, o abandono de todo o amor-próprio que nos revela nosso verdadeiro gênio. Mas no instante em que ele se relaxa, o amor- próprio se dirige a ele e, assim como se atribui vitórias, o acusa dos defeitos mesmos que o gênio lhe faz suportar.Parece que a consciência nos foi dada menos para escolher o que queremos ser do que para descobrir o que somos. Só somos verdadeiramente livres quando nos é dada a revelação de nossa própria necessidade. Até esse

Page 3: Vocação III - Lavelle

momento, não nos sentimos livres : mas somos os marionetes de nossos caprichos: nada fazemos além de errar de aventura em aventura, de tentativa em tentativa, de fracasso em fracasso, sempre insatisfeitos e exteriores a nós mesmos.

Pode se dizer que não há pior escravidão do que nos encontrarmos assim encerrados em nossa própria essência? Mas o eu que se queixa dela prova suficientemente que ele não encontrou. Por mais admirável que seja essa essência, só depende de nós encontrá-la, aprofundá-la e lhe ser fiel; sem o quê, ela não é nada, assim como uma potência que permaneceria sem emprego.

Em um sentido, se pode dizer que o próprio da loucura é de querer escapar à sua própria lei, que é a de não projetar suficiente luz, nem suficiente amor sobre esse ser que trazemos em nós e que depende de nós, não conhecê-lo, mas realizá-lo.

3

Do caráter à vocação.

O indivíduo é o caráter, no sentido mais simples da palavra, mas também no sentido mais forte e mais nobre. A vontade está sempre em luta com ele: mas é sempre o caráter que se encontra, seja quando a vontade se curva seja quando ela triunfa.

No caráter, o eu é um só com sua própria manifestação. Ele exprime sua disposição interior mais constante e a mais profunda, aquela que escapa a todo artifício. É dele que depende minha felicidade mais íntima e a daqueles que me rodeiam. Mas se pode dizer, às vezes, que ele é eu e que não é eu; ele é eu mais radicalmente do que minha própria vontade, já que precede sua ação e que ele lhe segue, e ele não é eu já que eu não o quis e já que minha vontade se desvencilha dele, age sobre ele, busca reprimi-lo e se esforça para obrigá-lo a servi-la.

No entanto quando falamos de nós mesmos, não é em nosso caráter que pensamos, mas nesse ser puramente possível, nessa liberdade pura, ainda indeterminada, e que ainda não se engajou, e que é para nós a coisa mais preciosa que há no mundo, aquela cuja descoberta nos dá mais emoção. E, no momento de dispor dela, sentimos imediatamente que nenhum ser é nada a não ser pela verdade ou pelo erro, o bem e o mal do qual ele é, de alguma maneira, o portador. É isto que cada um, vê, busca ou foge em si mesmo e não sua natureza individual, que não é nada a não ser

Page 4: Vocação III - Lavelle

um obstáculo ou um veículo, que não tem sentido a não ser pelo valor que ela pode assumir e do qual ela é capaz de nos fazer participar.

Então somente é permitido falar de vocação; mas se vê que toda vocação é sempre espiritual: ela é a descoberta de nossa verdadeira essência que é uma só com o ato mesmo pelo qual ela se realiza. Com ela, se pode dizer de cada ser que ele obtém "um novo nome que ninguém conhece exceto aquele que o recebe". Cada ser ascende, assim, a uma grandeza que lhe é própria, e se compreende porque esta grandeza deve ser ao mesmo tempo dada e conquistada.

4

Vocação de cada indivíduo e de cada povo.

Os povos, como os indivíduos, não podem ter outra vocação que não seja espiritual. E não se trata de conquistar os bens da terra nem de sujeitar os outros a si. Trata-se de libertá-los, de devolvê-los a si mesmos, de lhes permitir descobrir e preencher a vocação que lhes pertence. Aqui, como em todo lugar, se encontra este paradoxo admirável que nenhum ser pode se realizar a não ser cooperando com a realização de todos os outros.

É que só há um espírito do qual cada indivíduo, e mesmo cada povo, participa através de um ato pessoal segundo os dons que receberam. Depende de cada um tomar consciência destes dons e de realizá-los através de uma criação ininterrupta. Não há para um ser, idéia mais benfazeja do que aquela de um papel que ele tem que assumir na formação da consciência humana, que ninguém pode assumir em seu lugar e sem o qual todas as possibilidades que estão nele não conseguiriam ver a luz do dia.

No entanto, não se aceitará sem nuances esta visão demasiado simples que a consciência humana é como um ser imenso e anônimo no qual cada indivíduo ou cada povo exerceria uma função predestinada. Não há senão a consciência individual que é uma morada de luz própria, um centro original de responsabilidade. O gênio de cada povo porta em si, sem dúvida, o gênio de todos os seres que o formam, que padecem as mesmas forças e compõem nele, suas iniciativas particulares. Mas os maiores inventam, quando os outros só padecem: são sempre estrangeiros no meio de seu povo; eles se parecem com homens vindos de muito longe e que nos trazem alguma revelação extraordinária.

Page 5: Vocação III - Lavelle

5

Discernimento da vocação

Há em nós um fluxo que nos leva, mas que é tal, no entanto, que só temos a impressão segura de segui-lo se somos nós mesmos que o fazemos brotar. Assim a vocação é uma resposta a um apelo mais íntimo do meu ser, sem eu nada o substitui, venha de própria vontade ou das solicitações que recebo do exterior. Ela não inicialmente mais do que uma potência que me é oferecida; o caráter original de minha vida espiritual, é o de consentir fazê-la minha. Ela se torna, então, minha verdadeira essência.

Pode-se falhar em sua vocação por falta de atenção para descobri-la ou de coragem para realizá-la. Mas não se a descobre se se esquece que cada um tem a sua e que lhe cabe também encontrá-la. E não se a realiza se não se sacrifica a ela todos os objetos habituais do interesse ou do desejo. Acontece que só se sente a presença dela quando se lhe é infiel.

Há o perigo mais grave de imaginar que esta vocação é longínqua e excepcional, enquanto que ela é sempre próxima e familiar, e está envolta nas circunstâncias mais simples em que a vida nos colocou. Trata-se, para cada um de nós, de discerni-la nas tarefas mesmas que nos são propostas, em vez de lhes desdenhar e procurar um destino misterioso que não encontraremos jamais.

A vocação não se distingue por nenhuma marca extraordinária que seja o sinal de nossa eleição: e ela permanece invisível, se bem que ela transfigure os mais humildes miseráveis da vida cotidiana.

E porque ela é o sentimento de um acordo entre o que temos que fazer e os dons que recebemos, é que ela é para nós, uma luz e um suporte. Com ela, cada um nasce para a vida espiritual, cada um cessa de se sentir isolado e inútil. Assim, ela não nos dispensa, como se poderia pensá-lo, de querer e de agir: ao contrário, ela carrega nossos ombros com um imenso fardo; ela deve nos tornar sempre prontos para aceitar qualquer nova obrigação, sempre prontos em nos comprometer sem jamais esperar.

Page 6: Vocação III - Lavelle

6

A escolha inevitável.

Cada um de nós tem a ambição de abarcar pelo pensamento a totalidade do universo. Mas não podemos fazê-lo a não ser numa perspectiva que nos é própria. É um engano querer que busquemos abolir esta perspectiva para atingir as coisas tais como elas são. Porque então as coisas nos escapam e deixam de estar em relação com a nossa vida: elas próprias se tornam esvaziadas de vida. Não é nos desligando do real onde estamos colocados que podemos esperar melhor captá-lo. É penetrando nele com todas as potências e todos os recursos que nos pertencem. A presença do ser universal coincide para nós com a realização de nosso ser individual, em vez de ultrapassá-lo e excluí-lo.

O homem sempre teme se comprometer muito rápido. Vemos o mais prudente assim como o mais ambicioso, reservarem-se e esperarem. Eles então deixam passar o momento porque cobiçam um destino mais elevado, ou porque toda escolha que os solicita lhe fecha o horizonte e os separa deste Todo que eles estão ávidos por estreitar. Mas o ser particular que eu sou, a ocasião que me é oferecida, e uma certa proporção que sempre se estabelece entre minha liberdade e o acontecimento, me obrigam sem cessar a escolher; e a escolha mesma que faço, longe de me limitar, me fortifica, me obrigando a introduzir uma ordem entre minhas tendências. Ela as unifica em vez de dividi-las. Ela me dá uma via de acesso e um progresso no Todo que valem infinitamente mais do que essa posse ideal que eu imaginava, mas que eu me recusava a realizar, sob pretexto de guardá-la inteiramente pura.

Ninguém pode esperar ter descoberto sua vocação antes de começar a agir: há um momento onde o indivíduo deve apostar nela e correr o risco desta aposta. E talvez mesmo seja preciso que esta expectativa, esta descoberta e esta aposta, em vez de se suceder no tempo, se produzem em conjunto a cada instante. Está aí o drama mesmo do instante.

Page 7: Vocação III - Lavelle

7

Fidelidade.

É mais difícil do que se crê permanecer fiel a si mesmo. A preguiça nos desvia desta fidelidade, nos deixando entregues às causas exteriores, e também o amor-próprio pelo qual, para nos elevar acima do que somos, nos tornar estranhos a nós mesmos. A verdadeira coragem consiste em reconhecer nossa vocação, que é única no mundo, e permanecer-lhe fiel em meio a todos os obstáculos que encontramos, sem nos permitir jamais ceder diante deles. Porque são estes obstáculos que a fazem se revelar e que nos obrigam a cumpri-la. E as próprias tentações não são senão provas que, no entanto, nos julgam.

A fidelidade não pode estar separada do tempo. Ela me obriga a guardar a memória do passado, enquanto que minha vida recomeça a cada instante. Mas se é preciso que ela recomece a cada instante, é para romper com o passado e perseguir sempre um novo objeto negando todos aqueles em contato com os quais ela se formou? Ou bem, para ultrapassar e promover tudo o que ela já fez, remontando sem cessar até a fonte intemporal de todos os atos possíveis e, em vez de se conformar muito rigorosamente com a pura letra das promessas, deve reformá-las, fazer um melhor uso delas, aumentar-lhes o fruto, mesmo se para isso for preciso, às vezes, perder a lembrança ou transformar esta lembrança em uma vontade que não cessa de renascer e de ratificar?

A fidelidade me obriga a perseguir na ação, o cumprimento da intenção, sem me deixar esquecer, no entanto, que a ação aparece em um outro tempo e que ela possui muita espessura para que alguma intenção possa, de antemão, contê-la. A fidelidade não é esta retidão aparente plena de austeridade e de amor-próprio que não permite que a ação jamais se curve à intenção; mas todo o problema está em saber como é preciso que ela se curve, ou seja, se é esquivando-se do objeto que ela havia visado ou se é abarcando-o num círculo cada vez mais vasto.

Esta fidelidade a si nos dá uma espécie de nobreza natural e espiritual, ao mesmo tempo em que constitui a verdadeira consciência de si. Mas Narciso não a conheceu. Não é a fidelidade a um objeto ou mesmo ao meu passado, mas além de todo objeto e de todo passado, a um certo desígnio que nenhum objeto e nenhum passado jamais pôde preencher e que abre sempre diante de mim um novo porvir. Ora, está aí uma espécie de desígnio que Deus tem para mim e que posso não realizar jamais. Então, minha vida falhou: ela aconteceu, por assim dizer, fora de mim e sem mim,

Page 8: Vocação III - Lavelle

ela permaneceu num mundo de aparências e não deixou de passar como elas e com elas.

8

Destino e vocação.

Quase sempre se explica o desenvolvimento da planta pela natureza do grão e da ação do meio. Se tal se desse assim conosco, estaríamos presos na rede da fatalidade. Nós teríamos um destino sem ter uma vocação. A vocação supõe um consentimento da liberdade, um uso dos dons que recebemos e das condições que a vida nos impõe. É precisamente no intervalo que sempre separa o que somos por natureza, das circunstâncias nas quais estamos colocados, que a liberdade se insinua; ou seja, é entre esses dois determinismos, aquele do interior e aquele do exterior, é graças ao encontro desses dois, que a liberdade exerce o seu papel. Porque é ela que os coloca em relação, que pede a cada um deles armas contra o outro. É pela ação dessas potências que ela toma posse dos eventos ou que ela os suscita. O próprio do destino é, parece, nos trazer as situações às quais a liberdade nos obriga a responder. No entanto, essa resposta não é, como se crê às vezes, puramente interior e espiritual: ela age sobre nosso próprio destino. Mais ainda: ela não é uma simples prova que nos é proposta de fora sem que tenhamos sido consultados, ela é chamada pela nossa própria liberdade a fim de lhe permitir se exercer. Os eventos são ocasiões que lhe são fornecidas e que estão sempre em relação com suas aspirações, seu poder, sua coragem e seu mérito.

A sabedoria reside totalmente numa proporção que somos capazes de estabelecer entre o que queremos e o que nos acontece, sem que possamos dizer se é o que nos acontece que toma a forma do que queremos ou se é o que queremos que toma a forma do que nos acontece.

Page 9: Vocação III - Lavelle

9

Os eventos e o acaso.

O destino não é constituído, como freqüentemente acredita-se, pela seqüência de eventos que preenchem nossa duração. Os eventos mais consideráveis podem produzir em nossa alma uma emoção que a perturba: essa perturbação que ela sofre nada é além de um eco do corpo. Nosso espírito pode ser ofuscado nesses eventos sem que se possa dizer que ele desempenha aí algum papel.

Mais ainda: acontece que nos é preciso aumentar ainda o evento que mais nos perturbou e forçar nossa imaginação para fazer um outro sentir ou para sentir novamente a mesma perturbação que ele provocou em nós num outro momento. Mas jamais conseguimos isso. Nada mais decisivo a este respeito do que o exemplo da mais terrível das aventuras da guerra para aqueles mesmos que a venceram: cada um mede então o intervalo que separa a chama de incêndio que os atravessava, das cinzas que ele deixou e que nenhum esforço de memória consegue reanimar.

Um evento pode ter, no momento em que ele se produz, um extraordinário relevo. Ele pode nos espantar e nos ultrapassar: até este momento ele ainda não é mais do que um objeto de espetáculo. Ele não pertence a nossa vida senão pelo julgamento que fazemos dele, pela interpretação que lhe damos, pelo seu vínculo secreto que só nós podemos conhecer com o drama interior de nossa consciência. E ele não penetra em nosso destino a não ser quando ele se torna pra nós, um apelo ou uma resposta que o mundo nos dirige, um milagre pessoal que só tem sentido para nós e em relação a nós.

É nos jogos de azar que se sente melhor esta espécie de presença do destino que submete o jogador aos eventos sobre os quais parece que ele não tem controle, e onde cada um o atinge como se ele o tivesse visado. O que se vê bem quando estes eventos parecem se obstinar sobre aquele que ganha ou que perde. Mas convém espiritualizar mesmo o acaso. Não se pode tratar levianamente este sentimento tão profundo de ter sabido agarrar a sorte ou de tê-la deixado passar, de atraí-la ou de desviá-la, de ter sido levado por ela numa espécie de desespero. Não há, de um lado, leis do acaso que não podemos senão padecer e, de outro, estados de alma que não fazem senão segui-las. Estes estados também agem na marcha de todos os eventos; e as palavras: espera, desejo e esperança dissimulam sua eficácia em vez de traduzi-la.

Page 10: Vocação III - Lavelle

10

O destino único.

Pode se espantar de que haja destinos frustrados. Mas nosso destino só aparece quando ele é cumprido; e dizemos que ele é frustrado quando nos parece que ele não coincidiu com nossa vocação. Não há sentimento mais belo, mais profundo nem mais forte do aquele sentimento que experimenta cada ser, quando ele desce até a raiz da consciência que ele tem de si mesmo, de que ele é único no mundo, que seu destino é único e incomparável, que ele não está exposto a nenhum dos males que sucedem aos outros, que na guerra será ele que será poupado e que a própria morte não virá jamais sobre ele. Ora, todos sabemos com certeza que as coisas não se passarão assim, que nossa sorte será aquela de todos os homens, que todos os males podem sobrevir a nós, que nós também poderemos não regressar da guerra e que morreremos seguramente um dia.

Mas esta consciência só vale para nosso corpo; ela deixa intacta a própria consciência que tomamos de nossa intimidade espiritual, ou seja, de um mundo sobre o qual nenhum evento exterior tem controle, no qual penetramos por um ato pessoal e livre e do qual nunca seremos banidos , ou seja, que é eterno.

Aquele que consentisse a dar a esse sentimento toda a sua eficácia e toda a sua presença, a cavar até o seu fundamento, encontraria nele, sem dúvida, o apaziguamento de uma angústia que é sempre inseparável do pensamento de seu destino: ele encontraria aí, inicialmente, um tipo de experiência da eternidade, ou seja, de uma intimidade propriamente única e nossa, que é a única que conhecemos, mas que não pode estar dissociada da intimidade mesma do Todo, e veria que ela é propriamente imperecível. Ele teria, como contra prova, esta evidência de que os outros conhecem somente de mim esta aparência que é meu corpo, como eu só conheço deles nada mais do que esta aparência que é a sua, e que os corpos estão submetidos à lei comum das aparências, que é aquela de mudar e de se corromper, ao passo que a própria intimidade escapa a estas leis ao nos revelar, por um ato de conversão espiritual, esta significação de nossa própria existência que dá sua luz a tudo aquilo que nos acontece.

É um grande erro pensar que cada um de nós avança segundo uma linha reta em direção a um final longínquo e inacessível. Cada um de nós gira em torno de seu próprio centro, aumentando sem cessar o círculo que é descrito na totalidade mesma do Ser. Assim, o papel do tempo é diferente daquele que quase sempre se lhe atribui. Ele não é uma corrida para a frente em que perdemos o que deixamos para trás sem estarmos jamais

Page 11: Vocação III - Lavelle

seguros daquilo que adquirimos como se nada tivéssemos adquirido. Ele nos permite englobar numa curva que traçamos ao redor de nós mesmos, uma região do mundo que é cada vez mais vasta, como no crescimento de uma rosa. Ele nos permite unir à perfeição do repouso, - nesse coração de nós mesmos de onde todas as nossas demarches procedem - a perfeição do movimento que não cessa de renová-las e de enriquecê-las. É bem diferente do movimento circular dos antigos, que não deixa subsistir nenhum progresso. Mas o progresso para cada ser, reside na realização gradual de sua própria essência. É uma aliança entre o finito e o infinito que o obriga a tender em direção a um estado de perfeita maturidade, onde ele só morre para poder frutificar.

11

Eleição de cada ser.

É preciso que cada ser aja no mundo como se ele tivesse consciência de ter sido escolhido para uma tarefa que só ele pode cumprir. Desde que ele a descobre e começa a se consagrar a ela, lhe parece que Deus está com ele e vela sobre ele. Ele está pleno de confiança e de alegria. Ele perde o sentimento de estar abandonado. Ele está livre da dúvida e da angústia. Eis aí ele associado à obra criativa. Ele foi lavado de suas impurezas. Ele não tem mais passado. Ele renasce a cada manhã. Ele vive no maravilhamento, fraco e pecador como é, de ter sido chamado a uma ação que lhe ultrapassa e para a qual ele recebe sempre novas forças e experimenta sempre um novo zelo. Tal é o mistério da vocação que produz no indivíduo desde que ele a percebe, uma emoção incomparável: aquela de não estar perdido no universo, mas de ocupar nele um lugar de eleição, de ser sustentado por ele e de sustentá-lo, e de descobrir sempre um acordo entre suas próprias necessidades e os recursos que ele não cessa de receber, entre o que ele deseja, ou o que ele espera, e a revelação que lhe é trazida.

Quase sempre se reduz a vocação a um tipo de conveniência entre nossa natureza e nossa atividade. Mas ela vem de mais longe do que da natureza e se estende muito além da profissão ou da atividade. Ela é a graça que as atravessa, que lhes une e que lhes ultrapassa. A vocação aparece no momento em que o indivíduo reconhece que ele não pode ser para si mesmo sua própria finalidade, que ele não pode ser outra coisa que o mensageiro, o instrumento e o agente de uma obra na qual ele coopera e na

Page 12: Vocação III - Lavelle

qual o destino do universo se encontra interessado. A vocação é propriamente o que há de irresistível no exercício de nossa liberdade. Mas ela cria ao mesmo tempo essa relação pessoal e nominativa de Deus com cada indivíduo, que é o objeto próprio da fé, e sem a qual nossa vida é desprovida de sentido e privada de todo o vínculo com o absoluto. É a gota de sangue que o coração dilacerado de Pascal afirmava que Cristo tinha vertido por ele na cruz.