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Pavilho dos Cancerosos

Alexandre Soljenitzine

Ttulo original: Cancer Ward

Traduzido por urea Weissenberg

Editora Expresso e Cultura, RJ

Ano: 1971

Digitalizao: Vtor Chaves

Correo: Marcilene Aparecida Alberton Ghisi Chaves

NDICE

Primeira PARTE

1. No cncer, de modo algum - 7

2. Educao no inteligncia - 19

3. Ursinho de brinquedo - 41

4. Os problemas dos pacientes - 59

5. Os problemas dos mdicos - 82

6. A histria de uma anlise - 98

7. Direito a tratamento - 120

8. Por que vive o homem? - 140

9. Tumor fcordis - 157

10. As crianas - 172

11. Cncer do vidoeiro - 189

12. As paixes retornam - 212

13. e os espectros tambm -- 237

14. Justia - 250

15. A cada um o seu - 264

16. Absurdos - 279

17. A raiz de Issyk-kul - 289

18. No limiar da morte - 308

19. Atingindo a velocidade da luz - 323

20. Belas reminiscncias - 343

21. As sombras seguem seu caminho - 362

Segunda PARTE

1. O rio que desagua na areia - 379

2. Viver bem, por que no? - 388

3. Transfuso de sangue - 416

4. Vega - 433

5. Uma soberba iniciativa - 449

6. Cada qual tem seus interesses - 469

7. Total falta de sorte - 486

8. Palavras speras, palavras macias - 504

9. O velho mdico - 524

10. dolos da praa pblica - 544

11. A outra face da moeda - 561

12. Final feliz - 582

13. e outro menos feliz - 598

14. O primeiro dia da criao - 611

15. e o ltimo 641

Primeira parte

1 -- NO CNCER, DE MODO ALGUM

Para comear, a enfermaria do cncer tinha o nmero "treze". Pavel Nicolayevich Rusanov nunca havia sido, nem poderia ser, pessoa supersticiosa, mas seu corao bateu acelerado quando viu anotarem "Enfermaria 13" na sua ficha de inscrio. Bem que poderiam ter tido o cuidado de dar o nmero treze a algum departamento de cirurgia plstica ou de obstetrcia.

E aquela clnica era o nico lugar, em toda a Repblica, onde ele poderia encontrar ajuda.

No ... no cncer, hem doutora? Eu no tenho cncer, no ?

Pavel Nicolayevich fez a pergunta ainda esperanoso, enquanto apalpava o tumor maligno que tinha no lado direito do pescoo. O volume parecia aumentar a cada dia e, no entanto, a pele clara que o cobria tinha aspecto inofensivo e normal.

Mas no!... Claro que no!... respondeu a Dra. Dontsova, encorajando-o pela dcima vez, enquanto preenchia, com sua caligrafia firme, as pginas do formulrio sobre o caso. Quando escrevia colocava os culos de aros retangulares de cantos arredondados, e retirava-os imediatamente quando parava de escrever. Ela j no era uma mulher jovem; seu rosto plido mostrava quanto estava fatigada.

Acontecera alguns dias atrs, na sala de recepo para pacientes externos. Os doentes designados para o Departamento de Cancerologia, mesmo os externos, lutavam

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sempre com a insnia. E a Dra. Dontsova ordenara que Pavel fosse imediatamente para a cama.

Incubado e sem sintomas externos, o mal viera sobre ele, um homem feliz e sem preocupaes, no curto espao de duas semanas. Pavel Nicolayevich estava atormentado pela doena e no menos pelo fato de ter de inscrever-se na clnica como um paciente comum, igual a um qualquer. No conseguia lembrar a ltima vez em que estivera internado num hospital pblico. Fora h muito tempo.

Vrios telefonemas haviam sido feitos, para Evgeny Semenovich, Shendyapin e Ulmasbaev, que por sua vez entraram em contato com outras personalidades a fim de descobrir se haveria na clnica alguma enfermaria de "gente importante" ou, ento, se seria possvel converter, por algum tempo, alguma sala em aposento confortvel. Porm a clnica estava superlotada, no havia espao disponvel e nada pde ser feito.

A nica vantagem que Pavel Nicolayevich conseguiu, por intermdio do mdico-chefe, foi com relao utilizao do banheiro coletivo e troca de roupa.

Yuri conduziu os pais, em seu pequeno Moskovich, at os degraus da entrada da Enfermaria 13.

Apesar do frio, duas mulheres vestindo pesados robes de algodo estavam do lado de fora do prtico de pedra. A atmosfera gelada as fazia tiritar, porm ambas continuaram agentando.

A comear pelos roupes, folgados e de aspecto sombrio, Pavel Nicolayevich achou tudo o que via desagradvel: o caminho de cimento, desgastado pelo pisar de milhares de ps, e que levava entrada do pavilho; as maanetas das portas, escuras de to pegadas pelos pacientes; a sala de espera com o assoalho encardido, as paredes cor de azeitona (que cor to sombria e suja), cuja pintura estava descascando... e os surrados bancos de madeira que no ofereciam espao suficiente para todos os pacientes. Muitos deles tinham vindo de longe

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e acabavam sentando mesmo no cho. Havia usfoe-ques trajando pesados casacos acolchoados e velhas mulheres usbeques com xales enormes e brancos, jovens da mesma origem com trajes coloridos, e todos calavam botas altas e impermeveis. Um jovem russo, magro como bambu, com o abdome inchado e trajando um casaco desabotoado que chegava at o cho, l estava tomando um banco s para ele. Gritava, incessantemente, de dor. Seus gritos ensurdeciam Pavel Nicolayevich e o incomodavam tanto como se fossem motivados pelos seus prprios sofrimentos..

Pavel Nicolayevich, com lbios muito brancos e muito angustiado, sussurrou para sua mulher:

Kapa, eu vou morrer aqui; no posso ficar. Vamos embora.

Kapitolina Matveyevna segurou-o pelo brao com firmeza e respondeu:

Pashenka! E para onde iramos? E o que poderamos fazer?

Bem... talvez pudssemos arranjar alguma coisa em Moscou...

Kapitolina Matveyevna voltou para o marido a grande cabea, que se tornava ainda mais volumosa pelo penteado em cachos.

Pashenka... Se formos para Moscou, teremos de esperar mais duas semanas. Ou talvez nem consigamos chegar l. Como podemos pensar em esperar?! O tumor cresce todo dia!

A mulher segurou firmemente o brao do marido, como se quisesse transmitir-lhe a sua coragem. Em suas funes civis e oficiais, Pavel Nicolayevich era imperturbvel e assim achava mais simples e cmodo poder confiar mulher os encargos e assuntos familiares. Ela tomava todas as decises importantes com rapidez e preciso.

O rapaz deitado no banco continuava com seus gritos lancinantes.

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- Talvez pudssemos chamar os mdicos em nossa casa. Ns lhes pagaramos bem... argumentou Pavel um tanto inseguro.

- Pasik! exclamou a mulher, sofrendo tanto quanto o marido. Voc sabe que eu seria a primeira a concordar. Chamar um mdico e pagar a consulta... Mas j passamos por isso antes: e estes mdicos no vo casa dos clientes e no cobram consultas. E h tambm a questo dos equipamentos necessrios... Seria impossvel.

Pavel Nicolayevich sabia perfeitamente que era impossvel. Apenas aventara a possibilidade porque sentia que precisava dizer alguma coisa.

Conforme fora combinado com o mdico responsvel pela Clnica Oncolgica, a enfermeira-chefe deveria esper-los s duas horas da tarde, ali, ao p da escada que um paciente, no momento, descia cautelosamente, equilibrando-se em suas muletas. Porm a enfermeira no aparecera, naturalmente, e sua pequena sala, sob a escada, tinha a porta trancada com um grande cadeado.

Esta gente to irreverente resmungou Kapitolina Matveyevna. Afinal para que que eles so pagos?!

. E assim mesmo como estava, vestindo seu abrigo de peles, ela caminhou pelo corredor, ignorando o aviso que dizia: Proibida a entrada de pessoas com trajes de rua".

Pavel Nicolayevich continuou de p na sala de espera. Timidamente virou a cabea um pouco para a direita e apalpou o tumor que formava uma protuberncia entre a sua clavcula e o queixo. Ele tinha a impresso de que naquela meia hora que se passara desde que se olhara ao espelho, enquanto enrolava uma charpe em volta do pescoo, a coisa tinha crescido. Pavel Nicolayevich se sentiu fraco e teve vontade de sentar. Mas... os bancos eram to sujos e alm disso teria de pedir a algumas daquelas camponesas de xale encardido, e segurando sacolas sebentas, para que se afastassem.

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De certo modo, chegava a sentir, mesmo a distncia, o odor desagradvel que se desprendia das sacolas.

Quando o povo aprenderia a viajar com maletas limpas e arrumadas?! (Enfim, agora que sofria com aquele tumor, o assunto j no interessava tanto.)

Sofrendo, angustiado pelos gritos de dor do rapazinho e por tudo que seus olhos viam e que seu olfato sentia, Rusanov continuou de p, apoiado parede. Um campons apareceu carregando um recipiente de meio litro, onde havia uma etiqueta presa, e quase cheio de um lquido amarelado. Ele no procurava esconder o seu fardo, pelo contrrio transportava-o quase triunfante, como se fosse um jarro de cerveja pelo qual houvesse entrado numa fila para disput-lo. Parou diante de Pavel Nicolayevich, quase como se quisesse entregar o jarro, fez meno de perguntar alguma coisa, mas, reparando no fino chapu de pele de foca que Pavel usava, continuou a andar. Olhou em volta e dirigiu a palavra a um paciente de muletas:

Para quem entrego isso?

O homem sem perna apontou para a porta do laboratrio.

Pavel Nicolayevich se sentiu nauseado.

A porta principal foi aberta e a enfermeira-chefe entrou, trajando apenas o avental branco. Seu rosto era muito comprido e nada tinha de bonita. Avistou Pavel Nicolayevich, identificou-o imediatamente, e se dirigiu para ele.

Desculpem falou quase sem flego e, na pressa, suas faces haviam adquirido quase a cor do batom que usava. Desculpem, por favor. Esto esperando h muito tempo? que chegaram alguns remdios e eu tive de assinar os tales.

Pavel Nicolayevich teve mpetos de responder com arrogncia, porm conseguiu conter-se. Afinal estava contente por no ter de continuar esperando. Yuri apareceu,

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carregando uma maleta e uma sacola de provises. Uma mecha de cabelos louros caa-lhe na testa e parecia muito calmo.

Venham comigo falou a enfermeira-chefe, mostrando o caminho para uma saleta que ficava sob a escada. Nizamutdin Bahramovich disse que o senhor traria suas roupas e pijamas. Esto novas, no foram usadas, no mesmo?

Esto como vieram da loja.

Isso essencial, porque de outro modo teriam de ser esterilizadas, compreende? Pronto. Pode troc-las aqui.

Ela ento destrancou a porta de madeira compensada e acendeu a luz. No pequeno compartimento de teto inclinado, sem janelas, havia apenas alguns grficos e diagramas pendentes das paredes.

Yuri trouxe a maleta sem fazer rudo e saiu do aposento. Pavel Nicolayevich entrou para trocar de roupa. A enfermeira-chefe se afastou rapidamente, porm Kapi-tolina Matveyevna conseguiu alcan-la.

Enfermeira, disse ela vejo que est com muita pressa.

Sim, realmente estou...

Como o seu nome?

Mita.

Um nome estranho... voc no russa, ?

No, sou alem.

Voc nos fez esperar...

Sim, sinto muito. Eu tive de assinar aqueles recibos.

Agora escute, Mita. Quero que voc saiba de uma coisa. Meu marido uma pessoa importante e o trabalho dele extremamente valioso. Seu nome Pavel Nicolayevich.

Pavel Nicolayevich. Eu lembrarei.

Ele est acostumado a ser muito bem tratado, sabe? E agora est seriamente enfermo. No seria possvel

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arranjar uma enfermeira para tratar permanentemente dele?

A fisionomia preocupada de Mita ficou ainda mais sombria e ela abanou a cabea.

Alm das enfermeiras do pavilho, temos trs enfermeiras de dia e duas noite.

Quer dizer que... um doente pode berrar at estourar e ningum vem atend-lo!

Por que a senhora diz isso? Todos aqui recebem a devida ateno!

(Todos aqui... Que mais se poderia dizer quela criatura, se ela se referia a todos aqui?)

As enfermeiras trabalham por turnos?

Exatamente. Elas so revezadas cada doze horas.

Esta maneira to impessoal de tratar... terrvel! Minha filha e eu ficaramos muito satisfeitas se pudssemos revezar no tratamento dele. Ou ento eu estaria disposta a pagar por uma enfermeira permanente, pagaria do meu prprio bolso. Mas disseram que no permitido...

Temo que no. Nunca se fez isso antes aqui. Alm disso, no h nem mesmo espao na enfermaria para colocar mais uma cadeira.

Cus! Nem posso imaginar o que esta tal enfermaria! Gostaria de dar uma espiada por l. Quantas camas h nela?

Nove. Seu marido est com sorte de poder ir diretamente para a enfermaria. Alguns pacientes tm de esperar deitados pelos corredores ou sentados nas escadas.

Mesmo assim, insisto para que voc procure arranjar uma enfermeira ou mesmo uma atendente para dar ateno especial a Pavel Nicolayevich. Voc, que conhece tudo aqui, teria facilidade em arrumar isso. Enquanto falava, Kapitolina Matveyevna comeou a abrir a bolsa e tirou da mesma trs notas de cinqenta rublos.

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O filho, que estava perto, virou a cabea para o outro lado.

Mita colocou ambas as mos atrs das costas.

No... no. No posso fazer isso.

No estou dando dinheiro a voc! disse Kapito-lina Matveyevna acenando com o leque de notas. Mas j que no pode ser feito legalmente e com o regulamento... Afinal eu quero apenas pagar por servios prestados! Estou pedindo a voc somente para ter a bondade de passar o dinheiro s mos da pessoa indicada!

No, no... a enfermeira-chefe tremia. No fazemos este tipo de arranjos aqui.

A porta rangeu e Pavel Nicolayevich apareceu vestindo seu novo pijama de listras marrons e verdes e calando cmodos e quentes chinelos guarnecidos de peles. Em sua cabea quase calva trazia um gorro usbeque cor de cereja. Agora que ele despira o sobretudo e retirara a charpe, o tumor no lado do seu pescoo, do tamanho de um punho cerrado, estava assustadoramente evidente. Ele j no conseguia manter a cabea ereta, tinha de inclin-la um pouco para o lado. Seu filho entrou para recolher a roupa trocada e lev-la numa valise.

Kapitolina Matveyevna havia guardado o dinheiro novamente na bolsa e olhava ansiosa para o marido.

Voc vai ficar gelado, assim! Deveria ter trazido um bom roupo de l! Trarei um quando vier. Aqui est uma charpe disse tirando do bolso o agasalho de l. Enrole-a em volta do pescoo, seno pegar um resfriado.

Com seu abrigo de peles e as duas raposas prateadas, a mulher parecia umas trs vezes maior do que o marido.

Agora entre na enfermaria e trate de se acomodar. Pode desembrulhar as provises e ver o que deseja mais. Vou ficar esperando. Volte depois e diga o que precisa e trarei tudo esta noite.

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Ela jamais perdia a cabea, sabia sempre o que fazer a seguir. Na sua vida de casados tinha sido para o marido uma verdadeira companheira e camarada. Pavel Nicolayevich a fitou com um misto de ternura, gratido e tristeza e depois olhou para o filho.

Ento, Yuri... vai partir?

Tomarei o trem noturno, pai respondeu o rapaz, dando um passo frente.

Yuri se comportava sempre muito respeitosamente diante do pai. Era por natureza pouco emotivo e sua despedida naquele momento foi to pouco emocionante como de hbito. Suas reaes em face dos acontecimentos da vida transcorriam sempre em baixa voltagem.

Muito bem, filho. Esta a sua primeira e importante viagem oficial. Procure assumir uma atitude firme e certa, desde o incio. E no seja brando demais, ateno! Brandura neste caso pode significar fracasso. Lembre-se sempre de que voc no apenas Yuri Rusanov, no um indivduo particular. Voc um representante da lei! Entendeu?

Que Yuri tivesse ou no entendido, para Pavel Nicolayevich seria muito penoso, naquele momento, encontrar palavras mais adequadas. Mita se movimentava por perto, ansiosa para sair dali.

Esperarei aqui com mame. No diga adeus, pai... v andando.

Pode ir sozinho? perguntou Mita.

Mas voc no est vendo que o coitado mal se agenta em p?

Podia ao menos carregar a valise para ele e lev-lo at a cama atalhou Kapitolina Matveyevna.

Com a expresso desolada de um pequeno rfo, Pavel Nicolayevich olhou mais uma vez para a famlia, recusou o brao que Mita ofereceu para ampar-lo e, segurando o corrimo com dedos nervosos, comeou a subir lentamente. Seu corao batia desordenado, no

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exatamente pelo esforo fsico da subida. Foi vencendo os degraus com o mesmo desnimo de uma pessoa condenada a... (como mesmo que chama?) uma espcie de plataforma onde as cabeas eram decepadas...

A enfermeira subiu ligeiro, na frente dele, carregando a maleta, gritou algo para algum de nome Maria e, antes que Pavel Nicolayevich acabasse de subir o primeiro lano, j estava de volta, descendo rpido e saindo pela porta principal. Desta forma, Kapitolina Matveyevna pde perceber claramente a espcie de solicitude que seu marido poderia esperar ali.

Pavel Nicolayevich subiu lentamente at o fim do primeiro lano um patamar largo como eram construdos nos prdios muito antigos. Ali, embora sem obstruir a passagem, havia dois leitos ocupados por pacientes, alm de duas mesas de cabeceira. Um dos enfermos estava em pssimas condies. Fisicamente esgotado, aspirava um balo de oxignio.

Tentando no olhar para a fisionomia desesperanada do doente, Rusanov continuou subindo a escada, sempre com os olhos voltados para cima. Mas, no fim do segundo lano tambm no encontrou muito estmulo. Maria, a outra enfermeira, estava de p, aguardando, e seu rosto no expressava nem um sorriso nem uma saudao. Alta, magra, peito chato, ela esperou por Pavel Nicolayevich como uma sentinela, e imediatamente comeou a caminhar indicando para onde ele deveria ir. No corredor, vrias portas e tambm leitos com enfermos. Num pequeno compartimento sem janelas, sob uma lmpada constantemente acesa, havia uma mesa, onde uma enfermeira tomava apontamentos e distribua medicamentos. Ao lado, um armrio com porta de vidro fosco, onde havia uma cruz vermelha pintada. Passaram pela mesa e por mais alguns leitos at que Maria apontou com a mo magra e disse:

Segundo depois da janela.

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E logo se afastou. Um dos aspectos desagradveis dos hospitais pblicos que ningum pode parar um segundo para trocar algumas palavras.

As portas da enfermaria estavam sempre abertas, mas, ao transpor o portal, Pavel Nicolayevich experimentou uma sensao de clausura, de umidade e odor de medicamentos. Para algum de olfato to sensvel quanto o dele, aquilo era uma tortura. As camas estavam dispostas em filas, as cabeceiras para a parede, com espaos estreitos entre elas apenas o suficiente para comportar uma mesinha de cabeceira. O corredor central, entre as duas fileiras de leitos, dava apenas para duas pessoas passarem.

Exatamente nesta passagem se encontrava um paciente, corpulento e de ombros largos, em seu pijama listrado. Tinha o pescoo totalmente envolto em ataduras espessas e justas, que iam at os lbulos das orelhas. Aquele colarinho branco e largo impedia a liberdade de movimentos da cabea pesada e grande, coroada por um tufo de cabelos cor de palha.

Ele estava falando com voz rouca para os seus companheiros, enfermos tambm, que o ouviam de seus leitos. Com a entrada de Rusanov, o homenzarro voltou todo o corpo para olh-lo. E sem o menor sinal de simpatia ou piedade falou:

Muito bem, o que que h? Outro lindo cancer-zinho!

Pavel Nicolayevich achou desnecessrio responder. Notou que todo o compartimento o observava, porm no sentiu o menor desejo de observar tambm aquelas pessoas que a fatalidade pusera no seu caminho. Nem mesmo sentiu vontade de cumpriment-las. Apenas acenou a mo para que o homem grande sasse do caminho e o deixasse passar. O outro atendeu e, quando Rusanov passou, teve novamente de virar todo o corpanzil para poder segui-lo com o olhar.

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- Eh, companheiro onde o seu cncer? perguntou com sua voz rouca.

Pavel Nicolayevich j tinha chegado at a sua cama. Teve a sensao de que a pergunta arranhava a sua pele. Levantou os olhos para o atrevido e procurou controlar a raiva. Mas seus ombros estremeceram quando respondeu com muita dignidade:

No tenho cncer em lugar nenhum. No tenho cncer.

O enfermo de cabelos de palha resmungou algo em voz baixa e depois sentenciou bem alto, para que todos escutassem:

Pobre-diabo!... Se no tem cncer, ento por que acha que o mandaram para aqui?

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2 -- EDUCAO NO INTELIGNCIA

Passadas algumas horas,, naquela primeira noite na enfermaria, Pavel Nicolayevich foi tomado de pavor. O volume intumescido em seu pescoo inesperado, ilgico e perfeitamente intil o havia apanhado como a um peixe no anzol e o atirara ali naquela cama de ferro, estreita, incmoda, com molas que rangiam o tempo todo e um arremedo de colcho. Depois de trocar de roupa l embaixo, despedir-se da famlia e subir para a enfermaria, parecia que haviam fechado uma porta atrs de si, isolando-o de toda a sua vida passada... A perspectiva de vida dali por diante era, na verdade, mais apavorante do que o prprio mal fsico que o atormentava. J no lhe era mais facultado o direito de escolher coisas belas para olhar; ao contrrio, s lhe restava contemplar os oitos seres repugnantes que eram agora seus "iguais". Oito homens enfermos, vestindo velhos e desbotados pijamas listrados, remendados e manchados aqui e ali e quase sempre dando a impresso de grandes demais. Tambm no poderia escolher o que convinha ouvir; era forado a escutar aquelas criaturas estpidas e incultas com suas conversas montonas e desagradveis, que nada tinham a ver com os assuntos de seu interesse. Como gostaria de poder ordenar que se calassem, especialmente aquele cansativo paciente de cabelos de palha, de pescoo enfaixado e cabea taurina.

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Todos o chamavam simplesmente de "Yefrem", embora ele j no fosse um homem jovem (*).

Mas era impossvel conter Yefrem. Ele se recusava a ficar deitado e nunca saa da enfermaria; caminhava incessantemente no pequeno corredor entre as fileiras de camas. De vez em quando, parava subitamente e segurava a cabea entre as mos, mas logo a seguir reiniciava a sua caminhada para cima e para baixo. Depois das passadas insistentes, invariavelmente se detinha aos ps da cama de Rusanov, debruava seu torso gigantesco na barra de ferro e, baixando o rosto sardento, enorme e intumescido, sentenciava perversamente:

Voc est com cncer, "professor"... jamais voltar para a sua casa, ouviu?

Fazia calor na enfermaria. Pavel Nicolayevich deitado sobre o lenol, de pijama e gorro, ajustou melhor os culos de aro de ouro, olhou gravemente para Yefrem, com uma severidade que ele sabia muito bem impor, e respondeu:

Estou confuso, camarada. No sei o que voc quer de mim... nem por que tenta com tanta insistncia me intimidar. Eu no lhe fao perguntas, fao?

Yefrem resmungou uma imprecao, depois exclamou:

Suas perguntas no interessam a ningum! E voc no voltar nunca mais para casa. Pode ir devolvendo os culos e os pijamas novos.

Depois deste rude desabafo, Yefrem ergueu o corpanzil e voltou a caminhar, entre as camas, como um manaco.

Naturalmente, Pavel Nicolayevich poderia ter feito com que o impertinente se recolhesse sua insignificncia, mas por algum motivo estranho no conseguia encontrar a sua costumeira energia para agir. A sua vitalidade parecia estar declinando a cada instante e mais ainda depois das palavras cruis daquele demnio rouco de pescoo enfaixado.

Nota:

(*) um tratamento desrespeitoso na Rssia. Uma pessoa respeitvel deve normalmente ser tratada pelo primeiro nome e pelo patronmico: Pavel Nicolayevich (Pavel, filho de Nicolai). (Nota da edio inglesa.)

Fim da nota.

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O que Pavel Nicolayevich precisava naquele momento era de apoio, mas em vez disso estava sendo empurrado violentamente para baixo. Em apenas algumas horas, havia perdido toda a sua estabilidade individual, reputao, planos para o futuro... estava transformado num volume de pele e ossos, inconsciente do que aconteceria no dia seguinte. Sua fisionomia expressava bem esta condio melanclica, tanto que, numa de suas interminveis caminhadas, Yefrem parou diante dele e disse num tom de voz quase conciliatrio:

Mesmo que deixem voc voltar para casa... voc no tardar a retornar para aqui. O caranguejo se apega s pessoas... e uma vez que voc seja apanhado pelas suas garras... ele no o soltar vivo!

Pavel Nicolayevich no se sentiu com foras para protestar e Yefrem voltou sua peregrinao limitada ao estreito corredor entre os leitos. Na verdade, ali na enfermaria no havia quem conseguisse det-lo. Todos os outros pareciam nufragos apticos ou no eram russos. Na parede oposta havia apenas quatro camas, porque a lareira tomava o espao central. O leito que ficava exatamente em frente ao de Rusanov, ps com ps, era o de Yefrem. Os outros trs eram ocupados pelos mais jovens. Um rapaz simples e moreno, perto da lareira, um jovem usbeque que andava de muletas e, prximo janela, magricela como uma minhoca e todo encolhido sobre a cama, jazia um rapaz cuja epiderme se tornara amarela e que gemia ininterruptamente. Na fileira em que estava Pavel Nicolayevich, havia dois asiticos esquerda e, perto da porta de entrada, um jovem russo, alto e de cabelos cortados escovinha. Estava sentado lendo. Prximo a Pavel Nicolayevich, a ltima cama perto da janela era ocupada por um outro russo, porm a sua vizinhana no era das mais agradveis; tinha uma cicatriz feia na garganta e era talvez isso que lhe emprestava uma expresso facinorosa: comeava

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no canto da boca e seguia pela face at o pescoo. Pode ser tambm que os seus cabelos negros, em desalinho, com um redemoinho no alto, concorressem para endurecer-lhe ainda mais a fisionomia. No entanto, o doente da cicatriz tinha pretenses culturais; estava lendo um livro e quase o havia terminado.

As luzes foram acesas, duas lmpadas pendentes do teto. L fora, j estava escuro e os pacientes aguardavam a ltima refeio do dia.

H um camarada aqui comeou Yefrem. Est l embaixo e vai ser operado amanh. H alguns anos, extraram dele um pequeno cncer e disseram: "Muito bem! No foi nada. Pode ir!"... Esto entendendo? Yefrem queria aparentar indiferena, porm dava a impresso de ter sido ele o operado. Pois treze anos transcorreram em que ele esqueceu a clnica, bebeu vodca, possuiu mulheres... ele um rapaz e tanto... E agora est com um cncer deste tamanho! Yefrem parecia sentir prazer no que contava. Na minha opinio, ele vai direto da sala de operao para o mrmore do necrotrio.

Chega... j ouvi bastante das suas conversas deprimentes!

Pavel Nicolayevich interrompeu o homem e virou-se para o outro lado; mal reconhecia sua prpria voz... suas palavras lhe haviam soado to tmidas e sem autoridade.

Ningum falou mais. O jovem macilento, perto da janela, tambm incomodava bastante; agitava-se o tempo todo, revirando-se na cama. Tentava sentar, sem resultado, tentava deitar e no adiantava: dobrou-se ao meio encostando os joelhos ao peito. Incapaz de descobrir uma posio confortvel, ele encostou a cabea na barra da cama, desprezando o travesseiro. Gemia baixinho e fazia caretas espasmdicas, que expressavam bem a sua dor.

Pavel Nicolayevich virou o rosto para no v-lo, sentou-se na beira do leito, calou os chinelos e comeou a

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examinar a mesinha de cabeceira; abriu e fechou a porta do compartimento onde guardara suas provises em-pacotadas, abriu a pequena gaveta que continha seus objetos de toilette e seu barbeador eltrico.

Yefrem continuava andando, para baixo e para cima, com os braos fortemente cruzados sobre o peito. Algumas vezes, fazia uma careta por causa da dor que o atormentava e gemia como uma cantilena fnebre:

... estamos numa situao horrvel... estamos numa situao horrvel...

Ouvindo um estalo s suas costas, Pavel Nicolayevich se voltou lenta e cautelosamente o menor movimento do seu pescoo era profundamente doloroso e viu que o som fora feito pelo "cicatriz" fechando o livro que acabara de ler e que agora revirava entre as mos grosseiras. Na capa, em sentido diagonal, e na lombada estava o nome do autor em letras douradas. Pavel Nicolayevich no conseguiu decifrar o nome,, mas no cogitou sequer de perguntar a um tipo como aquele da cicatriz. J procurara um apelido para o seu vizinho de cama "Feixe-de-ossos" que, alis, parecia assentar bem!

"Feixe-de-ossos" contemplava o livro com seus olhos inchados e grandes, e finalmente falou para que todos ouvissem, numa voz alta e destemida:

Se Dyoma no tivesse trazido este livro l da estante, eu diria que o mesmo teria sido enviado especialmente para ns.

Que que Dyoma tem com isso? De que livro est falando? perguntou o rapaz perto da janela, levantando os olhos do livro que lia.

No descobriramos um livro assim nem se revirssemos toda a cidade de alto a baixo falou "Feixe-de-ossos", enquanto observava as largas costas de Yefrem, cujos cabelos cor de palha no eram cortados h meses a tesoura o incomodava e assim comeavam a cobrir parte do alto das ataduras junto ao pescoo. Olhou o rosto fatigado de Yefrem e disse:

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Yefrem! Chega de caminhadas. Olha! Aqui est, leia este livro.

Yefrem parou subitamente, como um touro em plena arena, e fitou o paciente da cicatriz.

Ler?! Por que devo ler? Ns todos vamos desta para melhor muito breve!

Exatamente falou "Feixe-de-ossos", e sua cicatriz se moveu. este precisamente o ponto. Se voc no comear j... embarcar desta para melhor sem ter lido. Aqui est, pegue, rpido e estendeu a mo com o livro.

Yefrem no se moveu, mas disse:

H leitura demais por aqui. No quero ler coisa nenhuma.

Voc analfabeto... ou algo assim? insistiu o outro, tentando convencer o companheiro.

Que que voc est pensando? Eu sou alfabetizado! E quando preciso sou at mesmo culto!

"Feixe-de-ossos" procurou o lpis no parapeito da janela, abriu o livro e comeou a assinalar aqui e ali.

No se assuste, falou so pequenas histrias. Aqui est, leia apenas esta... experimente. J estou farto de ver voc circulando por a, ouviu? Leia o livro!

No tenho medo de nada! replicou Yefrem, pegando o livro e atirando-o sobre a cama.

Ahmadjan, o jovem usbeque, veio (claudicando e apoiando-se na muleta) pela porta. Era o nico enfermo jovial ali.

Preparem o apetite! gritou.

A bia j vem anunciou o rapaz perto da lareira, parecendo ressuscitar.

E entrou a atendente com a bandeja; trajava uniforme branco e carregava os pratos bem no alto. Comeou a ronda de cama em cama. A no ser o jovem torturado, que no encontrava posio, todos se sentaram na beira dos leitos e foram pegando seus pratos. Os doentes tinham junto cama uma mesinha; s Dyoma,

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o rapazinho, no a possua e partilhava a do ossudo casaque, cujo lbio superior, inchado, apresentava horrvel deformao.

Alm do fato de Pavel Nicolayevich estar inteiramente inapetente, mesmo para as provises que havia trazido de casa, um s olhar para o jantar um pudim retangular, gorduroso, com aspecto de borracha, coberto de gelia amarela e a colher de alumnio encardido, de cabo torto, veio reavivar a amarga convico de que cometera um erro ao concordar em vir para a clnica.

Com exceo do jovem que gemia sem parar, todos comearam a comer disciplinadamente. Pavel Nicolayevich no pegou o seu prato, bateu na borda do mesmo e olhou em volta procurando algum a quem pass-lo. Alguns dos companheiros estavam de costas, cabeas curvadas sobre os pratos. O jovem perto da porta era o nico de frente a observ-lo.

Como o seu nome? perguntou Pavel Nicolayevich, sem alterar a voz; o outro que se esforasse por ouvi-lo.

Em meio ao rudo de talheres, o rapaz compreendeu que era com ele que estava falando e respondeu prontamente:

Proshka... ah, isto , Prokofiy Semyonich.

A est. Fique com o meu prato.

Ah... est bem aquiesceu Proshka, aproximando-se e pegando o prato, agradecido.

Pavel Nicolayevich apalpou o volume que aumentava sob seu queixo e percebeu que o seu caso no era dos mais simples ali. De todos os nove pacientes, apenas um tinha ataduras Yefrem exatamente no mesmo lugar onde ele seria operado tambm. E apenas um deles estava sofrendo dores insuportveis... e somente um, de mos ossudas, no leito ao lado, o simptico casaque, trazia um ferimento mostra. Quanto muleta do jovem usbeque, ele mal a utilizava. E no havia tumor nem deformidade aparente em nenhum dos outros. Todos pareciam pessoas sadias. Especialmente Proshka; seu

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rosto era radiante como se estivesse em pleno campo e no num hospital. Ele tinha grande apetite a julgar pelo modo como praticamente raspou o prato.

O "Feixe-de-ossos" tinha uma cor acinzentada, na verdade, porm seus movimentos eram leves, falava sem constrangimento e no momento atacava o seu pudim com tanto gosto, que Pavel Nicolayevich chegou a imaginar que aquele homem talvez fosse um falso enfermo que ali viera em busca de casa e comida de graa, j que neste pas os doentes tm direito a isso.

Com Pavel Nicolayevich j o caso era diferente. O volume inflado do seu tumor forava-o a inclinar a cabea para um lado; era muito difcil para ele virar-se e a cada instante a protuberncia parecia crescer. S que aqui os mdicos pareciam no levar o tempo em considerao. Desde que chegara at agora ningum viera examin-lo e no recebera tratamento algum. E fora justamente com aquela recomendao que a Dra. Dontso-va o havia enviado para ali tratamento imediato! Neste caso, ela deveria ser uma mulher negligente, total e criminosamente irresponsvel. Rusanov confiara nela e s estava perdendo tempo nesta enfermaria suja, desconfortvel e malcheirosa. O que ele deveria fazer era telefonar e tomar um avio para Moscou.

A angstia de ter conscincia de estar perdendo tempo e de ter cometido um erro, culminante com o mistrio do tumor era uma punhalada no corao de Pavel Nicolayevich e com isso ele no conseguia tolerncia para agentar mais nada nem o barulho dos pratos e talheres, o ranger das molas dos leitos, os lenis speros, as paredes... gente!

Ele se sentia preso numa ratoeira, j que, pelo menos, at a manh seguinte nenhuma providncia seria possvel.

Deprimido e desgraado, ficou deitado ali, cobrindo os olhos com a toalha que trouxera de casa, para evitar a luz e tambm a cena que o cercava. A fim de afastar tanto desapontamento, comeou a pensar na sua casa...

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na famlia... no que cada um deles estaria fazendo agora. Yuri j estaria no trem, a caminho. Tratava-se da sua primeira viagem de inspeo prtica e era muito importante que se sasse bem da misso. Porm sentia que Yuri no tinha energia, era um tanto dispersivo e poderia fazer alguma tolice. Aviette estava passando as frias em Moscou; estaria se divertindo bastante, indo a teatros, embora o seu objetivo fosse comercial, conhecer a cidade e fazer alguns contatos. Afinal estava no ltimo ano da Universidade e teria de cuidar da prpria vida muito breve. Aviette tinha tudo para ser uma boa jornalista; era muito prtica e possua senso comercial e, naturalmente, iria mudar-se para Moscou. Sua cidade natal era muito pequena para ela, to inteligente, com tanto talento que ningum na famlia poderia super-la. Pavel Nicolayevich sentia grande satisfao e nenhum ressentimento vendo a filha ter mais educao e cultura do que ele. verdade que ainda no tinha experincia, mas como era muito receptiva e aprendia com rapidez... J Lavrik era um boa-vida; indiferente aos estudos, mostrava seu talento destacando-se nos esportes. Participara at de um torneio em Riga, onde ficara hospedado em um hotel como gente importante; e j sabia dirigir o carro da famlia. Estava aprendendo a pilotar na Fora Area e esperava conseguir em breve a sua licena; teria de fazer muito esforo. E havia tambm Maika que certamente estaria em casa tocando piano (era a nica na famlia que sabia tocar). E Julebarse, o co, deitado no capacho do corredor. At o ano passado, era Pavel Nicolayevich quem o levava para passear na parte da manh, j que ainda tinha bastante sade para isso e achava que as caminhadas lhe faziam bem. Agora, caberia a Lavrik substitu-lo. O rapaz gostava de deixar que o co assustasse um pouco os transeuntes e ento os tranqilizava, dizendo: "No tenham medo, eu o controlo bem".

No entanto, agora aquela exemplar e harmoniosa famlia Rusanov, com sua vida equilibrada, bem ajustada,

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com seu apartamento impecvel... no espao de apenas alguns dias havia sido desligada dele. Tudo aquilo agora estava no "outro" lado do seu tumor. Todos estavam vivos e continuariam vivendo independente do que viesse a acontecer com o pai. Por mais que filhos e mulher chorassem e ficassem preocupados, o tumor continuava crescendo como uma parede a separ-los, e do lado onde se encontrava, ele estava sozinho.

Pensar na famlia no trouxe consolo a Pavel Nicolayevich, que procurou distrair-se pensando nos assuntos polticos,.negcios do Estado. Uma sesso do Soviete Supremo estava para ser aberta no prximo sbado. No se esperava nada de muito importante; o oramento seria aprovado. Houvera tiroteio no Estreito de Taiwan... Quando sara de casa, pela manh, em direo ao hospital, ouvira o comeo de um noticirio radiofnico sobre a indstria pesada. Mas ali, na enfermaria, nem sequer havia um receptor de rdio, nem no corredor tampouco, em parte alguma. Que bela situao. Iria pelo menos tentar receber o Pravda diariamente. Naquele dia, a indstria pesada havia subido e ontem houvera uma queda na produo de carne e derivados de leite. Sim, o campo econmico estava se expandindo rapidamente; e isto significava, naturalmente, alteraes relevantes nas organizaes econmicas governamentais.

Pavel Nicolayevich j comeara a imaginar a maneira pela qual as reorganizaes seriam realizadas nos nveis da Repblica e das provncias. Os processos destas reorganizaes eram sempre interessantes e serviam como distrao e pretexto para fugir um pouco ao servio de rotina. Os funcionrios trocariam telefonemas marcando reunies e debatendo as possibilidades. E independente da direo ou sentido tomado pelas reorganizaes de um jeito ou de outro ningum, inclusive Pavel Nicolayevich, jamais sofrer rebaixamento por isso. O resultado era sempre de promoo para todos.

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Entretanto, pensar nos assuntos governamentais no lhe deu resultado, pois no conseguiu distrair-se nem ficar mais animado. Havia uma dor insistente apunhalando o lado do seu pescoo o seu tumor, surdo e indiferente e que parecia isol-lo do resto do mundo. Tambm isso: o oramento, a indstria pesada, o gado, lacticnios e as reorganizaes... tudo isso estava do outro lado do tumor. Do seu lado do muro oncolgico, Pavel Nicolayevich Rusanov estava s.

Uma voz feminina, agradvel, soou pela enfermaria. Embora Pavel Nicolayevich no conseguisse ouvir coisa alguma com agrado naquele momento, aquela voz era realmente deliciosa.

Agora vamos tomar as temperaturas e parecia estar oferecendo doces a todos com aquelas palavras.

Rusanov retirou a toalha que lhe cobria os olhos, ergueu um pouco o tronco e ajeitou os culos. Oh, que ventura! No era a sisuda Maria quem estava ali, mas sim uma moa bem proporcionada, usando uma touquinha engomada sobre os louros cabelos.

Parando diante da cama prxima janela, ela falou com voz jovial para o jovem enfermo ali deitado:

Azovkin! h, Azovkin!

O rapaz estava agora numa posio ainda mais estranha do que as anteriores; em sentido diagonal na cama, o rosto virado para o travesseiro, uma almofada sob o estmago, o queixo apoiado, como um cachorro, olhando atravs das grades da cabeceira. Por sua fisionomia, passavam sem interrupo as sombras denunciadoras da dor que o torturava. Uma das mos pendia para o cho.

Vamos, vamos... que isso? falou a enfermeira, querendo encoraj-lo. Olhe, segure voc mesmo o termmetro.

Com esforo, ele conseguiu levantar a mo que pendia para o cho e segurou o termmetro. Dava a impresso de estar erguendo um pesado balde de dentro de um

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poo. Ele estava to cansado, exausto, e dominado pela dor... seria impossvel imagin-lo com mais do que dezessete anos de idade.

Zoya... gemeu o doente arranja um saco de gua quente para mim...

Voc mesmo o seu pior inimigo respondeu ela com severidade. J lhe demos um saco de gua quente e voc no o colocou no local da injeo e sim sobre o estmago.

Mas que assim alivia mais... insistiu Azovkin num gemido que traduzia bem o seu sofrimento.

Mas faz aumentar o seu tumor; j lhe explicamos isso. Sacos de gua quente nem so permitidos no Departamento de Oncologia. Conseguimos com dificuldade aquele para voc...

Pois ento no vou tomar a injeo!

Mas Zoya j no mais o escutava. Estava tambori-lando os delicados dedos na grade da cama do "Feixe-de-ossos" e perguntando:

Onde est Kostoglotov? (*)

(Ora, vejam s! Ento Pavel Nicolayevich havia acertado bem com o apelido do homem... Kostoglotov!)

Saiu para fumar respondeu Dyoma l perto da porta, onde continuava a ler.

Fumando, hem? Pois vou cuidar disso! resmungou Zoya.

Como so bonitas as moas! Pavel Nicolayevich contemplou com prazer a silhueta bem proporcionada e os olhos grandes, quase arregalados. Olhou para ela com admirao e se sentiu um pouco melhor. A moa entregou, sorrindo, o termmetro para ele. De p, diante do tumor, ela no demonstrou o menor sinal, nem mesmo num erguer de sobrancelhas, de que estivesse chocada, horrorizada ou que nunca tivesse visto uma deformao to hedionda.

Nota:

() Kostoglot em russo significa "roedor de ossos". (Nota da edio Inglesa.)

Fim da nota.

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No me foi recomendado nenhum tratamento? indagou Rusanov.

Ainda no respondeu Zoya, como se pedisse desculpas.

E por que no? Onde esto os mdicos?

Eles j encerraram o seu trabalho do dia de hoje. No conseguiu mostrar-se zangado com Zoya, mas algum devia ser culpado pelo fato de um paciente no estar recebendo tratamento! Ele teria de tomar uma atitude! Rusanov tinha profundo desprezo por inatividade e ineficincia.

Quando Zoya voltou para ler a sua temperatura ele perguntou:

Onde fica o telefone aqui? Como poderia utiliz-lo?

Afinal de contas, ele ainda poderia tomar uma deciso agora, telefonaria ao camarada Ostapenko! A simples possibilidade de um contato telefnico devolveu a Pavel Nicolayevich o seu mundo habitual e restaurou por momentos a sua coragem. Sentiu-se novamente um batalhador.

Trinta e sete leu Zoya sorrindo e, observando o termmetro, marcou na ficha que pendia ao p da cama, e s ento respondeu: H um telefone na sala de inscrio, mas no poder ir l agora. Fica no outro bloco.

Perdo, senhorita, retrucou Pavel Nicolayevich, erguendo-se e com voz enrgica como possvel funcionar uma clnica como esta, sem telefone? Suponhamos que ocorra uma emergncia... a mim, por exemplo?

Algum iria l e telefonaria, neste caso respondeu Zoya com firmeza.

E suponhamos que casse um temporal violento?!

Zoya j passara ao leito seguinte e estudava o grfico do velho usbeque.

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- Durante o dia, pode-se ir l diretamente, porm agora a porta est trancada falou sem se voltar.

Pois . Ela era uma bela moa, mas eratambm insolente; no lhe dera a devida ateno e j estava seguindo para tomar a temperatura do casaque.

Erguendo involuntariamente a voz, Pavel Nicolayevich insistiu:

Mas deve haver outro telefone! impossvel que no haja!

H, respondeu Zoya, sem interromper suas funes mas fica no gabinete do diretor.

E da, qual o problema?!

Dyoma... trinta e seis vrgula nove prosseguiu a enfermeira antes de responder. O gabinete est trancado. Nizamutdin Bahramovich no gosta...

E sem terminar foi saindo da enfermaria. Bem, de certo modo era lgico. Ningum gosta que entrem em seu gabinete quando no se est l. No entanto, em se tratando de um hospital, deveria haver um meio qualquer...

E por um instante aquele frgil fio, que parecia lig-lo novamente ao mundo exterior, se partira... Uma vez mais aquele tumor em seu pescoo, do tamanho de um punho cerrado, isolava-o completamente do. resto do mundo.

Pavel Nicolayevich estendeu o brao, pegou o pequeno espelho na gaveta e mirou-se nele. Como o tumor parecia expandir-se! Diante dos olhos de uma pessoa inteiramente estranha deveria ser apavorante, mas visto por seus prprios olhos ento! No, no era possvel que aquilo fosse real. Ningum ali em volta dele tinha algo igual! Em seus quarenta e cinco anos de vida, Pavel Nicolayevich jamais vira algo semelhante! Aquela deformao apavorava...

Nem procurou verificar se a coisa havia crescido ainda mais ou no. Afastou o espelho, tirou da gaveta um alimento e comeou a mastigar.

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Os dois tipos mais rudes ali, Yefrem e o Feixe-de-ossos", no estavam no momento. Tinham sado. L perto da janela, Azovkin conseguira contorcer-se numa posio nova e no estava gemendo. O resto estava tranqilo. Ouviu o rudo das pginas de um livro que eram viradas. Alguns haviam adormecido. E o que restava a Rusanov era tentar dormir tambm, para que a noite passasse, sem pensar, e ento no dia seguinte dirigiria um protesto aos mdicos.

Assim despiu o pijama e s com as roupas de baixo se meteu sob os lenis, cobriu a cabea com a toalha que trouxera de casa e tentou dormir.

Porm dentro do silncio que fazia, um som, especialmente irritante, de algum que murmurasse algo, se fez ouvir nitidamente. Parecia dirigido diretamente aos ouvidos de Pavel Nicolayevich. Ele no pde suportar aquilo; retirou a toalha dos olhos, ergueu-se com cuidado para no provocar dor no pescoo, e descobriu que o culpado era o seu vizinho usbeque. Era um velho magro e encarquilhado, de pele escurecida, de barba pontuda e usando um gorrinho surrado quase da mesma cor de sua pele.

O velho estava deitado com as mos embaixo da cabea, olhando para o teto e murmurando alguma coisa talvez preces; estaria rezando, o velho idiota!

h, voc, aksakal (*) falou Rusanov gesticulando. Pare com isso. Est me incomodando!

O aksakal silenciou. Rusanov deitou-se novamente e tornou a cobrir os olhos com a toalha. Mas no conseguiu dormir. Acabou descobrindo que a razo de no poder pegar no sono era a luz, que vinha das duas lmpadas pendentes do teto; o vidro que as protegia no era fosco e a luz brilhante incidia sobre os olhos de Pavel Nicolayevich, mesmo atravs da toalha, incomodando-o.

Nota:

() Aksakal em usbeque significa jocosamente "velho campons".. (nota da edio inglesa.)

Fim da nota.

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Resmungando uma queixa, ele se ergueu mais uma vez, sobre os cotovelos, cuidadosamente para evitar a punha-lada de dor no pescoo.

Proshka estava de p, trocando de roupa, junto ao interruptor.

h, jovem! ordenou Pavel Nicolayevich. Apague a luz!

Ah?!... Hum... A enfermeira ainda no veio com os remdios esta noite respondeu Proshka indeciso e estendendo a mo para o interruptor!

Ora... Apague esta luz!

Que que h?! protestou o Feixe-de-ossos" s costas de Rusanov. Quem que voc pensa que ? H outras pessoas aqui alm de voc! *

Pavel Nicolayevich sentou-se na cama e ajeitou os culos. Movendo-se lenta e cuidadosamente por causa do tumor, tomou uma posio altiva as molas da cama rangeram e falou:

Voc poderia ser um pouco mais educado!

O homem rstico assumiu uma expresso de impacincia dizendo:

Ora no mude de assunto! Voc no patro aqui!

Pavel Nicolayevich lanou-lhe um olhar de reprovao que no produziu o menor efeito no "Feixe-de-ossos", e resolveu conciliar:

Est certo... Mas para que voc precisa de luz a esta hora?

Com voz rouquenha, Kostoglotov respondeu com uma expresso obscena, explicando para que queria luz.

Pavel Nicolayevich sentiu dispnia e um certo mal-estar, embora j estivesse mais ou menos ciente da atmosfera na enfermaria. Aquele tipo indecoroso deveria ser expulso do hospital, em questo de minutos, e mandado de volta ao trabalho. No momento, porm, Rusanov no tinha meios para agir. (No entanto, procuraria dar parte dele administrao do hospital, na primeira oportunidade.)

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Se voc quer ler ou algo assim, por que no vai para o corredor? insistiu Pavel Nicolayevich, tentando ainda fazer um acordo. Por que acha que deve tomar a deciso pelos outros? H vrios pacientes aqui e preciso que se saiba distinguir...

Sim... haver distino replicou "Feixe-de-ossos" numa careta e ser anotada no atestado de bito: "Membro do Partido... etc. etc...", mas no fim todos seremos levados daqui de ps juntos!

Pavel Nicolayevich nunca vira tanto atrevimento, tanta insubordinao! No se lembrava de ter sido objeto de tanta insolncia. Sentia-se confuso; como lidar com situaes semelhantes? Nem cogitava de dar queixa bela enfermeira de olhos grandes. O melhor seria encurtar a conversa da maneira mais digna possvel. Pavel Nicolayevich tirou os culos, deitou cuidadosamente e cobriu, mais uma vez, os olhos com a toalha.

Estava fervendo de indignao e angstia s de pensar na maneira passiva e fcil como se deixara convencer a entrar para aquela clnica. Mas nunca seria tarde demais para conseguir abandonar aquilo tudo. Amanh tomaria uma atitude. Seu relgio marcava alguns minutos depois das oito e, por enquanto, o melhor seria deixar as coisas como estavam. Mais cedo ou mais tarde, todos teriam de se aquietar mesmo.

No entanto, as tbuas do cho comearam a vibrar com os passos de algum que caminhava entre as camas. Com certeza era Yefrem que voltava e que, com seus passos pesados, fazia estremecerem as velhas tbuas do assoalho; a vibrao atravessava as barras da cama e passava at os ouvidos de Rusanov, que, contudo, resolveu agentar e no externar o menor sinal de protesto.

Como o povo em geral mal-educado e irreverente! Ainda no foi possvel corrigir isso. E como ser para conduzi-lo a uma nova sociedade com tamanha carga de rudeza?

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A noite se arrastava penosamente. A enfermeira fazia a sua ronda. Uma vez, duas, trs e ainda uma quarta vez com uma poo para um, um pozinho para outro, injees para os dois ali... Azovkin soltou um gemido ao receber a picada da agulha e voltou a insistir para que lhe arranjassem um saco de gua quente dizia que era para que o lquido injetado se espalhasse mais depressa. Yefrem continuava a caminhar para l e para c, sem encontrar paz. Ahmadjan e Proshka conversavam, de suas camas, com naturalidade como se estivessem levando a vida normal, como se nada no mundo os perturbasse e no tivessem o terrvel mal para tratar. Mesmo Dyoma ainda no parecia disposto a dormir; ele veio at a cama de Kostoglotov e, sentando-se na borda, comeou a conversar com o companheiro e isso incomodava terrivelmente os ouvidos de Pavel Nicolayevich.

Vou ler mais um pouco, enquanto ainda h tempo dizia ele. Eu gostaria de ingressar numa universidade.

Seria uma boa coisa. Mas no esquea que educao no inteligncia!

(Mas como algum ousa falar assim a um adolescente!)

O que quer dizer?! perguntou Dyoma. No inteligncia?

Exatamente... assim so as coisas respondeu Kostoglotov.

Mas... e o que inteligncia?

A vida... As lies da vida desenvolvem a inteligncia, a esperteza!

Dyoma ficou calado por momentos e depois acrescentou:

No concordo.

Na nossa unidade havia um comissrio, Push-kin... ele costumava dizer: "Educao no inteligncia! No faz ningum mais esperto. Nem classe tampouco. Do pessoa mais prestgio, mais uma estrela e logo parece que se passou a saber mais... e no verdade.

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E que quer dizer com isso? Que no adianta estudar? No concordo com isso!

Naturalmente que voc deve estudar. Estude! Apenas procure no esquecer, para o seu prprio bem, que educao e inteligncia no so a mesma coisa.

E o que inteligncia ento?

Inteligncia?!... Bem, confiar apenas naquilo que v e no no que ouve algum dizer. Mas quais as matrias do seu interesse?

Ainda no resolvi... Mas estou interessado em histria e em literatura.

E engenharia?

No...

estranho... No meu tempo tambm era assim... Mas agora os jovens se interessam mais pela engenharia, voc no?

No... acho que porque me apaixono pelos problemas sociais.

Problemas sociais?... Ora, Dyoma... seria melhor que aprendesse a montar aparelhos de rdio. A vida ser mais fcil se voc for um tcnico de rdio.

E quem disse que estou atrs de facilidades? Se eu ficar aqui por mais um ms ou dois terei de alcanar a nona classe, na segunda metade do ano.

E quanto a livros...?

Tenho dois aqui comigo. Estereometria muito difcil!

Estereometria?! Mas traga aqui o livro! Rusanov ouviu os passos do rapaz que foi buscar o citado livro.

Deixe ver, sim, sim, meu velho amigo Kiselyov. Estereometria. Sim, a mesma coisa. Linhas retas e planos... paralelos... Se uma reta paralela a outra reta no mesmo plano, ento tambm paralela ao plano. Puxa, Dyoma, que livro! Como seria bom se todos escrevessem assim, hem? Nada massudo... e como tem contedo, substncia til!

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Eles do todo um curso de dezoito meses s com este livro.

Tambm estudei por ele... e j o soube de trs para diante.

Quando?

J vou dizer. Deixa ver, eu estava na nona classe tambm, no segundo semestre. Isto foi em 37 ou 38. interessante ter este livro nas mos outra vez. Geometria sempre foi a minha matria preferida.

E ento?

Ento o qu?

Depois da escola?

Depois da escola, li sobre um assunto esplndido: geofsica.

Onde foi isso?

No mesmo lugar, Leningrado.

E o que aconteceu?

Terminei meu primeiro ano e em setembro de 39... Veio uma ordem convocando todos os rapazes de dezenove anos para o Exrcito e eu fui na onda.

E depois?...

Entrei para a ativa.

Ento, e da...

Da... Voc no sabe o que aconteceu?! A guerra.

Voc foi oficial?

No, sargento.

Porqu?

Porque se todo o mundo fosse general, no restaria ningum para ganhar a guerra... Se um plano passa atravs de uma linha paralela a um segundo plano e corta o plano, ento a linha... Escute, Dyoma. Voc e eu vamos dar uns bons treinos de estereometria, diariamente. Vamos estudar pra valer. Voc quer?

Sim, claro que quero.

Eu lhe darei lies.

(No o cmulo? Tudo isso dentro dos ouvidos de Rusanov!)

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timo!

Porque de outro jeito voc estaria perdendo o seu tempo. Vamos comear imediatamente. Tomemos estes trs axiomas. Veja, os axiomas so simples na forma, mas aparecero em todos os teoremas e voc ter de identific-los. Aqui est o primeiro: Se dois pontos numa linha reta esto num determinado plano, ento todos os pontos ao longo desta reta tambm esto num plano. Qual a idia contida aqui? Veja bem, suponhamos que este livro um plano e o lpis uma reta, certo? Agora tente arrumar...

E, entusiasmados com o assunto, continuaram discutindo axiomas e tirando dedues. Pavel Nicolayevich resolveu resignar-se e agentar; apenas virou-lhes ostensivamente as costas at que numa certa hora os dois decidiram parar. Depois da dose dupla de sonfero, Azovkin finalmente se acomodou e adormeceu. Ento o aksakal comeou a tossir. Pavel Nicolayevich estava deitado de frente para ele. As luzes tinham sido apagadas, afinal, mas... l estava o velho enrugado tossindo de modo to desalentador maldio, portanto tossindo e apitando no final de cada crise e parecendo que ia rebentar de tanto tossir.

Pavel Nicolayevich virou-lhes as costas. Tirou a toalha dos olhos... mas no estava bastante escuro; do corredor vinha um pouco de claridade e barulho tambm... das pessoas que transitavam por toda a noite, atendentes que iam e vinham trazendo bacias e escarra-deiras.

Rusanov no conseguia dormir, seu tumor pesava... Sua vida, to bem constituda, harmoniosa e objetiva... estava desmoronando. Sentiu piedade de si mesmo; um pequeno motivo a mais e cairia em pranto.

Foi Yefrem, naturalmente, quem forneceu o pequeno motivo. Irrequieto, agitado, mesmo no escuro contava para Ahmadjan, que era o mais prximo dele, uma fbula tola:

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- Por que deveria o homem viver cento e tantos anos? Pois vou contar como foi que aconteceu. Al concedeu a todos os animais uma vida de cinqenta anos e era o bastante. Mas a chegou a vez do homem e s restavam vinte e cinco disponveis...

Vinte e cinco? (*) gracejou Ahmadjan.

... E o homem comeou a reclamar, que no era suficiente e ento Al disse: "Est bem, suficiente". E o homem protestava: "No . ... no ". Finalmente, Al falou: "Ento... v l fora e indague". Pode ser que um deles concorde em ceder alguns anos a voc. Ento o homem saiu e encontrou o cavalo e disse: A vida que me deram muito curta. Voc no quer me dar um pouco da sua?" O cavalo concordou em ceder vinte e cinco anos ao homem, que adiante encontrou o co e disse: "Escute, cachorro, poderia ceder-me um pouco da sua vida?" O co cedeu imediatamente vinte e cinco anos ao homem, que ainda assim, no satisfeito, continuou at encontrar o macaco, que tambm lhe deu vinte e cinco anos de vida. Voltando o homem at Al, este lhe disse: "Ser como voc pediu: os primeiros vinte e cinco anos voc viver como um homem; os seguintes vinte e cinco trabalhar como um cavalo; os que vierem ento sero vividos latindo como um co e, nos ltimos vinte e cinco anos, todos riro de voc como riem do macaco..."

Nota:

() Ahmadjan se referiu brincando a uma nota de 25 rublos para mostrar como dominava bem o idioma russo. (Nota da edio inglesa.)

Fim da nota.

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3 -- URSINHO DE BRINQUEDO

Embora Zoya fosse ligeira e eficiente, movendo-se rapidamente de um leito para o outro e voltando mesa, ela mesma sabia que no conseguiria dar conta de todas as prescries at o anoitecer. Por isso, se apressou em apagar as luzes da enfermaria dos homens e da pequena enfermaria das mulheres. Na enfermaria grande para mulheres imensa, com mais de trinta leitos , as pacientes nunca se acomodavam na hora regulamentar, quer as luzes fossem apagadas ou no. Muitas se achavam internadas h muito tempo e estavam saturadas do ambiente hospitalar. Elas dormiam mal, havia superlotao e sempre surgiam discusses sobre a porta da varanda, se deveria ficar aberta ou fechada. E havia tambm algumas doentes agitadas que ficavam conversando de um leito para outro distante, discutindo sobre todos os assuntos, desde o preo dos mantimentos, moblias, crianas, homens, vizinhos, at mesmo o assunto mais indecoroso imaginvel... e isso ia at a meia-noite ou pela manh.

Para culminar havia Nellya, a servente, lavando o cho naquela noite. Era uma rapariga de propores avantajadas, boca larga e lbios grossos. Nellya comeara a tarefa h muito tempo, mas nunca terminava porque tinha de tomar parte de todas as conversas que surgissem. Enquanto isso, Sibgatov esperava por seu banho semicpio; sua cama ficava no hall prximo porta de entrada da enfermaria dos homens. Por causa daqueles

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banhos todas as noites e porque tinha vergonha do odor desagradvel que exalava de sua ferida, Sibgatov preferira ficar ali no hall, embora j estivesse no hospital h mais tempo do que qualquer outro doente internado. Na verdade, ele j era quase mais um componente da equipe do que um paciente.

Fiscalizando a enfermaria das mulheres, Zoya procurava instigar Nellya a trabalhar mais ativamente, mas a servente ignorava as admoestaes e prosseguia em sua lentido exasperante; ela era menos jovem do que Zoya e considerava um insulto sua dignidade a autoridade da outra.

Zoya viera trabalhar naquele dia com disposio festiva, porm aquele desafio por parte da servente j a estava irritando. De modo geral, a enfermeira achava que todos tm o direito sua cota de liberdade e que ningum tem a obrigao de se matar no trabalho, mas para tudo h um limite razovel, especialmente quando se lida com enfermos.

Finalmente, quando Zoya terminou a ronda e Nellya acabou de lavar o cho, as luzes foram apagadas na enfermaria das mulheres, bem como a lmpada principal do corredor. J passavam alguns minutos das onze, quando Nellya acabou de preparar a soluo morna numa bacia, no andar trreo, e a trouxe para Sibgatov.

Oh!... Hum... Ui... queixava-se ela gemendo e bocejando estou morta de cansao. Oua, paciente, sei que vai ficar sentado neste banho por uma longa hora e no vou ficar esperando que termine. Que tal se voc mesmo carregar depois a bacia l para baixo a fim de despej-la?

(O slido edifcio, com todos os seus compartimentos, no tinha encanamentos e ralos no andar de cima.)

O que Sharaf Sibgatov havia sido antes seria difcil de imaginar; nada restava para dar uma idia. Seus sofrimentos vinham sendo to prolongados que de seu aspecto original, do que ele havia sido, praticamente nada mais restava. E, no entanto, depois de trs anos de enfermidade

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contnua, deprimente e cruel, aquele jovem trtaro era o paciente mais amvel, disciplinado e corts de toda clnica. No raro, esboava um leve sorriso como a pedir desculpas pelo trabalho que vinha dando h tanto tempo. Depois do perodo de quatro a seis meses que passara deitado no hall, ele conhecia todos os mdicos e mdicas, enfermeiras, atendentes e serventes como se fossem pessoas da sua famlia, e assim tambm todos o consideravam. Nellya porm era novata, estava ali apenas h algumas semanas.

Acho que um pouco pesado para mim, respondeu Sibgatov timidamente , mas se houvesse uma vasilha menor para dividir, talvez eu pudesse ir levando aos poucos...

A mesa de Zoya, porm, ficava perto e ela, ouvindo o dilogo, saltou indignada:

Atendente, voc devia ficar envergonhada. No v que ele no pode se fatigar, nem fazer esforo algum? E queria faz-lo carregar a bacia cheia, no?

Tudo isso foi dito com energia, mas era voz baixa e que foi ouvida apenas pelos trs ali perto. Nellya ento respondeu com sua voz spera que poderia ser ouvida por todo o andar:

Ficar envergonhada de qu? Estou exausta.

Voc est em servio. Para isso paga falou Zoya ainda mais irritada e em voz mais baixa.

Bolas... Sou paga. Chama quilo de ordenado? Muito mais eu ganharia numa fbrica.

Psiu... No sabe falar mais baixo?

Oh... exclamou Nellya, sua cabeleira em desalinho em todas as direes, e gemeu bem alto: Ah! O meu querido travesseiro... Estou morrendo de sono; passei a noite me divertindo com os motoristas de caminho e no dormi... Est bem, paciente, ao terminar ponha a bacia debaixo da cama e amanh eu carrego l para baixo.

E sem cobrir a boca bocejou ruidosamente dizendo por fim, para Zoya:

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Olha, estarei disposio ali no sof...

E sem esperar pela permisso foi caminhando para a sala onde havia um grupo estofado, a sala dos mdicos, onde eram realizadas conferncias ligeiras e reunies de emergncia.

Nellya deixou muito trabalho por terminar; as cuspideiras no tinham sido limpas e o cho do ptio bem precisava ser lavado, porm Zoya resolveu no insistir e observou as largas costas oscilantes que se afastavam... e compreendeu (embora no estivesse ali h tanto tempo assim) que quem no carrega o seu fardo no obrigado a faz-lo, enquanto aquele que cumpridor de suas obrigaes acaba trabalhando por dois, verdade incomodativa! Bem cedinho, pela manh, chegaria Eliza-veta Anatolyevna e esta ento iria cumprir a sua tarefa e o resto da de Nellya.

Sibgatov, agora que ficara s, descobriu a sua regio sacrococcgea e, meio desajeitadamente, sentou com cautela na bacia de soluo morna que estava no cho junto ao seu leito. Ficou sentado, imvel, porque o menor movimento o incomodava. Qualquer contato, qualquer tecido, mesmo a roupa de baixo que usava, tocando a rea inflamada o punha em agonia. Naturalmente, ele evitava deitar de costas. O que havia exatamente ali, naquele ponto de suas costas, ele nunca pudera ver, apenas tatear com a ponta dos dedos. Dois anos atrs, ele fora trazido para a clnica, numa maca, impossibilitado de mover as pernas, ou de ficar de p. Vrios mdicos o haviam examinado, porm fora sempre tratado por Lud-mila Afanasyevna. E em quatro meses a dor havia desaparecido inteiramente! Ele voltou a poder caminhar e abaixar-se livremente sem nenhuma razo de queixa. Quando teve alta, Ludmila Afanasyevna recomendou, enquanto ele lhe beijava as mos:

Tenha cuidado, Sharaf. No faa extravagncias; nada de pular e levar pancadas.

Porm Sibgatov no conseguira arranjar um trabalho mais leve e voltou a fazer entregas. E como entregador

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no podia evitar os solavancos do caminho, nem os saltos da carreta para o solo... nem ficar parado sem ajudar os companheiros com os fardos. E tudo corria bem at que um dia um pesado tambor rolou da carreta e atingiu Sharaf exatamente no seu ponto vulnervel. O ferimento reabriu e no quis mais cicatrizar. Desde ento ele estava acorrentado clnica de cncer.

Foi ainda com um resto de irritao que Zoya sentou sua mesa para verificar mais uma vez se todos haviam recebido o devido tratamento, e tambm para terminar as suas anotaes com rpidos movimentos da caneta e que ficavam sempre borradas por causa da pssima qualidade do papel em que eram feitas. Seria intil dar parte de Nellya e tambm seria contra a natureza de Zoya; aquele assunto teria de ser resolvido somente entre as duas, mas era algo que ela no pretendia fazer. No havia inconveniente em tirar um cochilo; quando contava com boas atendentes, Zoya conseguia dormir metade da noite, mas agora teria de manter-se alerta.

Ela estava assim atenta examinando as suas notas, quando sentiu que um homem se aproximava e ficava de p junto sua mesa. Levantou a cabea, e viu que era Kostoglotov com sua aparncia ossuda e desengonada, seu cabelo preto desalinhado, suas grandes mos firmemente metidas nos bolsos do roupo hospitalar.

Voc devia estar dormindo h sculos repreendeu-o Zoya. O que que est fazendo, andando por a?

Boa noite, Zoyenka respondeu Kostoglotov to amavelmente quanto possvel, quase cantando as palavras.

Boa noite respondeu Zoya com um sorriso expressivo. Foi o que eu disse quando terminei a ronda l na enfermaria...

Isso foi quando voc estava de servio, a culpa no minha, mas agora estou aqui de visita.

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Ah! verdade? (Ela no abriu os olhos, nem bateu os clios assim, propositalmente; aconteceu.) E onde arranjou a idia de que estou para receber visitas?

Bem... todas as noites tenho notado que voc mete o nariz nos livros... Mas hoje no vejo nenhum livro de estudos... J passou nos exames?

Voc muito observador... Sim, passei.

E que nota tirou?... No que isso faa diferena...

Tirei quatro em cada cinco. Mas por que no faz diferena?

Pensei que tivesse tirado apenas trs e talvez no quisesse falar no assunto. Ento agora est de frias...

Ela sorriu e piscou alegremente e s ento subitamente percebeu: para que se preocupar? Tinha duas semanas de frias... que felicidade! No precisava fazer mais nada alm de vir clnica. Quanto tempo livre! Mesmo em servio poderia ler algo leve e conversar.

. Ento... no acertei vindo visit-la?

Est bem, sente-se.

Mas, Zoya... ao que eu me lembro, as minhas frias comeavam em um perodo mais cedo, janeiro, dia 25.

No outono, estvamos colhendo algodo. Fazemos isso todos os anos. (*)

Quanto tempo ainda ter de estudar?

Dezoito meses.

E ento como ser adaptada? Ela deu de ombros dizendo:

O nosso pas grande... seus olhos enormes estavam sempre muito abertos, mesmo quando ela sorria e estava de fisionomia tranqila; parecia que no havia bastante espao para os mesmos sob as plpebras e pediam para sair o tempo todo.

No vo deixar que continue aqui...

Nota:

() Na Asla Central, h falta de colhedores de algodo e no outono os estudantes so mandados para ajudar, sendo as aulas reiniciadas mais tarde do que em Leningrado. (Nota da edio Inglesa.)

Fim da nota.

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N-no... claro que no.

E como que voc vai deixar a sua famlia?

Que famlia?... S tenho a minha av e a levarei comigo para onde for.

E seu pai... e sua me?...

Minha me morreu... respondeu Zoya num suspiro.

Kostoglotov olhou para ela e no perguntou pelo pai. Indagou apenas:

Mas voc daqui mesmo, no ?

No. Sou de Smolensk.

Verdade?... E quando saiu de l?

Quando a cidade foi evacuada... quando seria?!

Voc deveria ter... uns nove anos...

Sim, estava no colgio. E ento vov e ns firmamos aqui.

Zoya curvou-se e pegou a grande sacola cor de laranja, que estava no cho junto dela, tirando da mesma um espelho; retirou a touca de enfermeira e ajeitou os cabelos, primeiro com a mo e depois com o pente, arrumando cuidadosamente a franja dourada sobre a testa.

Os reflexos dos cabelos dourados de Zoya como que iluminaram a fisionomia dura de Kostoglotov. Ele assumiu uma expresso descontrada e acompanhou com prazer os gestos da moa.

E... a "sua" av... onde est? gracejou Zoya guardando o espelho.

Minha av respondeu Kostoglotov muito srio e mame (a expresso contrastava com a fisionomia carregada) morreram durante o cerco.

O cerco de Leningrado?

Hum... hum. E minha irm foi morta por uma bomba. Ela era enfermeira como voc... e era quase uma criana.

Sim... suspirou Zoya quanta gente morreu durante o cerco... Maldito Hitler!

Kostoglotov sorriu, e parecia estar fazendo uma careta concordando:

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... temos provas de sobra de que Hitler era maldito... mas eu no culparia apenas ele pelo bloqueio de Leningrado...

Que quer dizer? E por que no?

Escute. Hitler veio para nos destruir... E voc acha que os sitiados poderiam esperar que ele abrisse os portes e pedisse delicadamente: saiam com calma, um a um, sem tumulto... Ora, ele estava fazendo a guerra e era o inimigo. Havia porm mais algum responsvel pelo bloqueio...

Quem? perguntou Zoya muito espantada; jamais pensara naquele prisma da questo.

Kostoglotov juntou as sobrancelhas numa expresso meditativa e respondeu devagar:

Bem... digamos... aqueles que deviam estar preparados para lutar em defesa, ainda que a Inglaterra, a Frana e a Amrica se tivessem aliado Alemanha de Hitler contra ns. Aqueles que receberam salrios durante tanto tempo, por dcadas, e no perceberam que Leningrado era geograficamente isolada e que isto afetaria suas possibilidades de defesa; aqueles que falharam no prevendo como seria pesado o bombardeio e que nunca pensaram em armazenar provises nos subsolos. Tambm eles mataram minha me... eles e Hitler.

Sim, era to simples... e to terrvel! L atrs de onde eles conversavam, Sibgatov, muito quietinho, continuava sentado em sua bacia de soluo medicinal.

Mas... neste caso, estes responsveis deveriam ser processados, levados a julgamento murmurou Zoya ainda chocada.

No sei... sorriu Kostoglotov, com outra careta e seus lbios pareciam, mais do que nunca, um simples trao no rosto duro e ossudo. No sei...

Zoya no recolocou a touca na cabea. Seu avental estava desabotoado perto do pescoo e a gola do seu vestido aparecia um pouquinho.

Zoyenka... eu vim tambm para v-la... parcialmente a negcio.

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Ah!... tambm... os olhos dela se abriram mais. Muito bem, mas isto ter de esperar at o horrio diurno do expediente. Agora hora de dormir. E voc disse que estava aqui como visita.

Bem... estou como visita, sim. Mas que... antes que voc fique contaminada pela importncia, como os outros mdicos, antes que se torne tambm uma doutora diplomada... poderia me dar... talvez "uma mozinha" como ser humano... no poderia?

E os doutores no fazem isso?!

Bem... diferente... e eles no nos estendem a mo, na verdade... Zoya, durante toda a minha vida detestei passar por "foca". Esto tratando de mim aqui, mas ningum me explica coisa alguma. No suporto isso. Um dia destes, vi voc com um livro "Anatomia Patolgica certo?

Sim...

E acerca de tumores, certo?

Sim...

Faa-me um favor... traga-o para mim! Preciso passar os olhos por aquele livro e ento compreender as coisas... a meu modo.

Zoya ficou sria e abanou a cabea:

rigorosamente proibido, contra o regulamento que os pacientes leiam livros de medicina. Mesmo quando ns, estudantes, lemos a respeito de determinadas doenas, imaginamos que...

Pode ser contra o regulamento para os outros, mas no para mim! exclamou Kostoglotov batendo a grande mo sobre a mesa. J tentaram me intimidar um sem-nmero de vezes... eu no me apavoro mais. No Hospital Regional, fui examinado por um mdico coreano; era vspera de Ano Novo... e ele no me queria dizer de que se tratava e eu pedi: "Fale, homem! Pode dizer!"... E.ele protestou: "No temos permisso", mas eu insisti dizendo: "Preciso deixar os meus assuntos de famlia em ordem", e afinal ele revelou: "Voc viver

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talvez mais umas trs semanas... no posso prever mais do que isso".

Mas... ele no tinha o direito...

Ele era um bom homem, um ser humano. Agradeci num sincero aperto de mo. Entenda: eu precisava saber! Teriam sido mais seis meses de tormento se eu no soubesse. No ltimo ms, eu no conseguia ficar sentado, nem de p, nem deitado, sem que sentisse dores atrozes e s conseguia dormir alguns minutos por dia. Acho que por isso tive rnuito tempo para pensar, meditar. Neste outono, aprendi que um homem pode atravessar a fronteira da morte, mesmo quando seu corpo j est morto, aprendi por experincia prpria; o sangue ainda circula, o estmago ainda digere os alimentos, enquanto todo o ser j passou pela preparao psicolgica para a morte, e vive-se dentro da prpria morte. Tudo em volta parece ser contemplado l de dentro do tmulo. E ainda que a gente no se considere um cristo, at pelo contrrio, de repente, descobre que perdoou todos os que nos ofenderam e no h rancor contra os que nos perseguiram. O que resta uma total indiferena por tudo e por todos. Nada consegue estimular a vontade de agir, nada mais existe... nem remorsos... nada. Eu diria at que isto o verdadeiro equilbrio... igual ao das rvores e das pedras. Mas fui tirado desta condio e no sei bem se devo estar contente ou no. Sair daquela apatia significa a volta de minhas paixes... boas e ms!

Ora, que dvida! Voc tem motivos de sobra para se alegrar. Quando se inscreveu aqui? H quantos dias?

Doze.

A est. Pois , l estava voc, na maca, em contores e dor no hall mesmo. Voc era um espetculo apavorante! Seu rosto parecia o de um cadver; no queria comer e a sua temperatura era altssima dia e noite. E agora? J est fazendo visitas sociais. um milagre. Um homem voltar vida assim, em apenas doze dias. No acontece com muita freqncia aqui na clnica. Na

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realidade, ao ingressar na clnica, Kostoglotov tinha o rosto coberto de sulcos profundos que pareciam feitos por um perverso cinzel, provas evidentes da tenso em que estava. E agora, havia muito menos sulcos e bem mais suaves.

... tive sorte em tolerar bem os raios X.

O que bem raro; uma sorte afinal disse Zoya cordialmente.

Kostoglotov sorriu, sempre numa careta:

Nem sempre na vida contei com a mesma sorte, portanto, neste caso dos raios X at que foi justo, no mesmo? Voltei a sonhar belos e vagos sonhos. Acho que isto sinal de que estou melhorando.

Possivelmente.

Pois , mais uma razo para que queira saber, compreender, investigar. Quero entender exatamente de que maneira esto me tratando, quanto tempo devo agentar, quais as complicaes provveis. Estou me sentindo to melhor, talvez o tratamento j possa ser interrompido. De qualquer modo, quero saber, quero compreender o que se passa. Ludmila Afanasyevna e Vera Kornilyevna no me explicam coisa alguma, apenas me do o tratamento como se eu fosse um macaco amestrado. Por favor, Zoya... empreste-me o livro! Eu no a deixarei mal, ningum saber, no deixarei que me vejam lendo. Prometo!

Ele insistia com tanto entusiasmo que Zoya comeou a hesitar, levou a mo em direo a uma das gavetas.

O livro est a na gaveta? perguntou Kostoglotov ansioso. Oh, Zoyenka, entregue-me.,.

E sua mo estendida era uma splica. Perguntou entusiasmado:

Quando voc estar de servio novamente?

Domingo tarde.

Pois o devolverei nessa ocasio, est bem? Combinado?

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Como Zoya estava simptica e acessvel, com sua franjinha dourada e seus grandes olhos espantados...

Se ao menos Kostoglotov pudesse se ver! Os cabelos negros, desarrumados, insistiam em arrepiar num determinado sentido por causa da posio constante no travesseiro e havia um redemoinho no alto da cabea; uma ponta da gola da rstica camisa aparecia pela abertura do roupo (de tpica deselegncia hospitalar) mal abotoado.

Sim... sim... murmurou ele j com o livro nas mos e percorrendo avidamente as pginas para tomar conhecimento da matria contida no mesmo. timo, timo, est tudo aqui. Obrigado! Muito obrigado. De outro modo, eles poderiam at exceder no tratamento. Cus! Afinal esto interessados apenas em ter com que preencher os seus relatrios e boletins. Talvez eu deva cair fora daqui... afinal at mesmo um bom mdico pode cometer erros e encurtar a vida da gente.

Pronto! Est vendo? Zoya estendeu a mo para tomar o livro. Por que fui ceder em seu pedido? Devolva o livro!

E ela segurou com ambas as mos o livro que ele insistia em no entregar. Avisou energicamente:

Assim vai estragar; e no meu! Tirei da biblioteca. Devolva!

Seus braos rolios, os ombros bem feitos ajustavam-se ao avental branco com perfeio. O pescoo no era nem fino nem longo demais, tudo era equilbrio em sua silhueta.

Na luta pela posse do livro, os dois se aproximaram e fitaram-se olhos nos olhos. O rosto dele, rude e anguloso, de repente se iluminou com um sorriso; a cicatriz que o marcava no apareceu ento to sinistra, lembrava um ferimento esmaecido. Com a mo livre, Kostoglotov afastou os dedos dela facilmente do objeto da disputa e disse numa voz sussurrante:

Zoyenka, voc no gosta de ignorantes nem de ignorncia, mas de cultura. Como quer evitar que uma

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pessoa se instrua? Eu estava brincando. No vou fugir...

Ela respondeu em voz baixa, mas num tom agressivo e acusador:

No. Voc no merece o direito de ler isso. Voc negligente. Por que no veio clnica mais cedo? Por que s pediu ajuda depois de estar praticamente um cadver?

Hum... respondeu ele num suspiro. No havia meios de transporte...

No havia meios de transporte?! Que espcie de lugar era este ento?! Por que, assim mesmo, deixou para o ltimo momento? Por que no procurou mudar antes para um local mais civilizado? Ser que no havia um mdico ou um feldsher (*) ou algo assim neste ermo onde morava?

E Zoya soltou afinal o livro.

Sim respondeu ele. Havia um ginecologista; alis dois.

Dois ginecologistas?! exclamou Zoya espantada. Ser que a populao era s de mulheres?!

Ao contrrio, nem h bastante mulheres l! Alm dos dois ginecologistas no existe qualquer outro mdico. No h laboratoristas tambm. Impossvel conseguir um exame de sangue l; precisei de uma contagem de glbulos. Resultado: sessenta, e ningum sabia de que se tratava.

Cus! Mas que pesadelo! Da, voc teve de decidir por si mesmo se deveria ser tratado ou no... Se voc no tinha considerao por sua prpria pessoa... pelo menos deveria ter por sua famlia... por seus filhos...

Filhos?! Kostoglotov de repente caiu em si, como se o debate por causa do livro tivesse sido um sonho, algo irreal, e s agora estivesse despertando e voltando ao normal, sua dura fisionomia e ao seu falar pausado. Mas eu no tenho filhos!

Nota:

(*) Assistente de mdico, no diplomado, que na zona rural russa aplica tratamento aos doentes. (Nota da edio inglesa.)

Fim da nota.

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E sua mulher? No um ser humano? Ele falou ainda mais devagar:

Tambm no tenho esposa.

Os homens tm a mania de negar que tenham esposa. E ento como que queria deixar em ordem os negcios da famlia? No foi o que disse ao mdico coreano?

, preguei uma mentira nele...

E como que vou saber que no est pregando outra mentira para mim agora?

No, no estou mentindo; juro respondeu Kostoglotov com expresso muito grave. que... eu sou um tanto complicado... difcil de entender...

Ento, ela no soube compreender a sua personalidade falou Zoya com simpatia.

Mas Kostoglotov sacudiu a cabea lentamente e insistiu:

Ela quem? Nunca houve uma esposa na minha vida. Nunca!

Zoya o observou, tentando calcular a idade dele, porm sentiu que era muito difcil. Chegou a mover os lbios, mas acabou resolvendo no dizer nada, repetiu a tentativa e ainda uma vez acabou calando.

Sentada de costas para Sibgatov, Zoya estava frente a frente com Kostoglotov, que, de onde se encontrava, pde ver o enfermo levantar-se cuidadosamente de seu banho medicinal, sacudir as mos e ficar de p, pacientemente, esperando secar. O seu rosto mostrava que vinha sofrendo toda a dor que um homem pode agentar: misria e angstia no passado e nenhuma esperana de felicidade no futuro.

Kostoglotov respirou profundamente, como se nisso se resumisse a sua existncia inteira.

Estou ansioso por um cigarro. Ser que poderia...

Est claro que no. Fumar para voc significa morte! respondeu a moa, com um sorriso, entretanto.

Ser que... talvez... um cigarrinho s?

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Tirando do bolso uma piteira, trabalhada com incrus-taes, Kostoglotov comeou a sug-la dizendo:

Sabe como ... todo o mundo tem a mania de dizer que um adolescente jovem demais para casar e um homem maduro velho demais para a mesma coisa... encostou os cotovelos na mesa e passou as mos pelos cabelos eriados. Eu quase casei logo que a guerra acabou, mas... era apenas um estudante e ela tambm, no que eu me importasse com isso, mas parece que tudo deu errado...

Zoya observava atentamente o rosto de Kostoglotov, que, embora no muito simptico, era vigoroso. J os braos e ombros eram ossudos e angulosos, por causa da doena.

Quer dizer que a coisa no deu certo...

Ela... como se diz? Ela faleceu... e numa careta, ele fechou um dos olhos e mirou a moa fixamente com o outro. Ela faleceu, mas na verdade est viva. No ano passado trocamos algumas cartas.

Kostoglotov calou, abriu o olho, fitou a piteira vazia que segurava entre os dedos e resolveu guard-la no bolso outra vez, antes de prosseguir:

Sabe de uma coisa? Naquelas cartas, havia algumas frases que me fizeram pensar: ser que ela era realmente to perfeita como eu achava? Talvez no fosse. Afinal o que que ns sabemos quando temos apenas vinte anos de idade? Os olhos castanhos e penetrantes olharam significativamente para Zoya. Voc por exemplo... que que voc sabe sobre os homens? Nada, nada.

Zoya deu uma gargalhada, respondeu:

Talvez eu os compreenda muito bem...

Isto seria de todo impossvel sentenciou Kostoglotov. O que voc chama de compreenso no compreenso coisa alguma. Amanh voc casa e faz um grande erro!

Isola... disse Zoya sacudindo a cabea. Ento, mais uma vez estendeu a mo para a sacola cor de

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laranja que estava a seu lado e dela tirou um pedao de tecido bordado, que desdobrou com cuidado. Era um trabalho de agulha j riscado, trechos em linha verde j estavam prontos e havia algumas figuras apenas esboadas.

Kostoglotov olhou com espanto como se fosse algo extraordinrio e miraculoso.

Voc faz bordados?!

Por que toda esta surpresa?

Bem, que nunca imaginei que uma moa moderna, estudante de medicina, fizesse este tipo de trabalhos manuais...

Voc nunca viu moas fazendo bordados?

Acho que s quando era criana... faz muito tempo. E mesmo naquela poca era uma atividade para a burguesia. Voc levaria cada gozao nas reunies de Jovens Comunistas...

Pois um passatempo muito popular ainda hoje. Voc no tem reparado?

Ele respondeu com um movimento de cabea.

E... desaprova? insistiu Zoya.

No! Por que desaprovaria? to bonito, empresta um ar to domstico. Eu at admiro muito.

Zoya continuou, enquanto Kostoglotov contemplava encantado. Sob a luz amarelada da lmpada que pendia do teto, os clios dela, dourados e longos, projetavam compridas e finas sombras em sua face. O primeiro boto do avental, aberto, deixava ver um pouco do decote do vestido e que tambm tinha reflexos de um amarelo-dourado.

Kostoglotov, como se pensasse em voz alta, sussurrou:

Ursinho de brinquedo... de lindo plo dourado...

O que foi? perguntou Zoya sem erguer os olhos do trabalho. Ele repetiu com voz suave.

Ah! ?! exclamou Zoya; talvez tivesse esperado um cumprimento mais srio que aquele. Se ningum

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faz bordados l onde voc vivia... ento as lojas devem estar com excesso de molinet.

E o que molinete?

uma qualidade de linha para bordar; estas linhas aqui, veja, verde, amarela, azul, encarnada. Aqui so difceis de encontrar.

Molinet! No esquecerei de perguntar e se houver bastante, no deixarei de mandar para voc; sem falta. Ou... se o estoque for limitado... quem sabe seria melhor voc mudar para l?

Onde? L onde voc mora?

Acho que poderamos dizer... l nas terras virgens.

Ento voc das terras virgens!

Bem, quando cheguei l, ningum pensava que fossem terras virgens, mas agora acho que sim. E quando voc tirar o seu diploma por que no vai para l? Aposto que no a recusariam; no recusamos ningum que queira se unir a ns.

to ruim assim?!

Nada disso. S que, em geral, as pessoas tm idias erradas sobre o que bom e o que ruim. Viver num prdio coletivo com gente batendo portas, fazendo barulho, ouvindo rdio alto, andando para baixo e para cima bem na sua cabea... isto considerado bom. J viver de trabalho pesado, cavando o solo, vivendo numa cabana perto de uma estepe... isto considerado o cmulo do ruim... da desgraa.

Kostoglotov no estava brincando agora, suas palavras tinham a convico amarga das pessoas que no precisam reforar seus argumentos nem alteando a voz.

Mas estepe... ou deserto?

Estepe. Nada de dunas de areia. H vegetao verde; l cresce zhantak... aquela planta, voc conhece, tem espinhos, mas em julho produz lindas flores cor-de-rosa, de aroma muito delicado. Os casaques extraem vrios medicamentos daquela planta.

Ento do Casaquisto?

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Hum...

E como se chama?

Ush-Terek.

um aul? (*)

Sim, se quiser, pode chamar de aul ou de centro administrativo regional. H um hospital l... mas no h mdicos. Venha!

Os olhos de Kostoglotov se estreitaram.

E no d nenhuma outra planta l?

Oh! Sim, h agricultura com irrigao. Beterrabas, trigo. Nas pequenas hortas h de tudo que se queira, s que preciso trabalhar muito, dar duro mesmo. Nos mercados, os gregos sempre tm leite fresco, os cur-dos tm carneiro e os alemes tm leito. (**) So to pitorescos os mercados ou bazares, voc deveria ver. Todo mundo usando trajes regionais e chegando em camelos.

Voc agrnomo?

No. Sou agrimensor, cuido da medio das terras.

E... basicamente... por que vive l?

Gosto do clima respondeu ele coando a ponta do nariz.

E no h transporte, meios de transporte?

Claro que h. Automveis, tudo o que quiser.

Mas por que devo ir para l? inquiriu Zoya, olhando disfaradamente para Kostoglotov.

Pouco a pouco, medida em que iam conversando, a fisionomia dele se foi abrandando.

Por que voc deve ir? Kostoglotov franziu as sobrancelhas como a procurar as palavras certas na hora de fazer uma saudao ou um brinde. Zoyenka, como pode algum predizer em que parte do mundo vai ser feliz, ou infeliz? Quem pode fazer uma previso destas?

Notas:

(*) Aul Lugarejo em certa parte da Rssia onde se fala o idioma turco.

(Nota da edio inglesa.)

() Gregos, curdos e alemes estavam entre os deportados para as estepes do Casaquisto, logo depois da guerra. (Nota da edio inglesa.)

Fim das notas.

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4 -- OS PROBLEMAS DOS PACIENTES

Para os casos de cirurgia, aqueles cujos tumores seriam extirpados por meio de operaes, no havia espao suficiente nas enfermarias do andar de baixo. Os doentes foram ento enviados para cima junto com os pacientes de raios X, aos quais fora prescrito tratamento radioterpico ou qumico. Por este motivo, havia dois tipos de ronda naquele pavimento todas as manhs uma dos radioterapistas e outra dos cirurgies.

O dia 4 de fevereiro caiu numa sexta-feira, dia de operaes, quando os cirurgies ento no faziam as suas rondas. Assim, Vera Kornilyevna Gangart, a radioterapista de planto, no comeou a percorrer o seu territrio logo aps os cinco minutos convencionados. Apenas deu uma vista para dentro da enfermaria dos homens.

A Dra. Gangart era bem feita de corpo, o que mais se evidenciava em virtude de sua cintura muito delgada e dos contornos do seu corpo muito bem proporcionados; os seus cabelos, presos num coque displicente sobre a nuca, tinham uma tonalidade que ficava entre o cas-tanho-escuro e o preto. Ahmadjan percebeu que ela estava olhando e acenou amistosamente numa saudao. Kostoglotov tambm a viu na porta, levantou os olhos do livro que estava lendo e a cump