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    Verinotio revista on-linede educao e cincias humanas

    Espao de interlocuo em cincias humanasn.10, Ano V, out./2009 Publicao semestral ISSN 1981-061X

    Temposde Lukcs e nossos tempos: socialismo e liberdade*1

    Entrevista com Istvn Mszros**1

    Por J. Chasin, Ester Vaisman, Carlos Eduardo Berriel,Narciso Rodrigues, Ivo Tonet e Srgio Lessa

    Da esquerda para a direita: I. Mszros, Narciso Rodrigues Jr., Ester Vaisman, IvoTonet e J. Chasin. De costas: Srgio Lessa e Norma Casseb.

    1* Publicada originalmente na Revista Ensaion. 13. So Paulo: Ensaio, pp. 9-29, 1984. 1** Professor Emrito de Filosoa da Faculdade de Artes da University of Sussex.

    ENTREVISTA

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    fantstico, mas, na atualidade, a herana lukacsiana quase no reclamada.Poucos so, pelo mundo inteiro, aqueles que fazem de sua obra e de sua vida pontode apoio e inspirao. No to fantstico, se considerado for que a escassez con-

    tempornea tambm de marxistas tout court. No borradas as propores, h quecompreender que o destino de Lukcs depende e est atado estreitamente ao destinode Marx.

    Os romanos diziam que os livros tm seu destino. H que acrescentar: tambmos escritores. E que tais destinos, bvio, so muito mais impessoais do que, nacinza do cotidiano, somos levados a colorir. Em suma, como dizia o prprio Lukcsem Narrar ou descrever: A verdade do processo social tambm a verdade dosdestinos individuais.

    Eis que, no processo social de nossos tempos, o ostracismo de Lukcs a pedra

    angular na construo do ostracismo de Marx.Que outra coisa poderia advir da crueldade da vida social, do rebaixamentodo nvel de humanidade, enquanto fatos objetivos que acompanham o desenvolvi-mento do capitalismo [como diz Lukcs no texto citado], ainda acrescidos, desde aComuna de Paris, por mais de um sculo de derrotas do proletariado?

    Decerto, quando a histria dos homens puser abaixo esta muralha de esqueci-mento, o destino prprio a Marx e a Lukcs tornar devida luz. Supor meramenteo contrrio , no mnimo, ruminar o mau gosto das desatenes elementares. Quan-tas vezes j mataram Hegel? E Aristteles, quantas j foram as suas ressurreies?

    At l, com calma e coragem, ir saltando para alm da paliada, perturbar afaina dos pedreiros e ir abrindo brechas onde for possvel. Uma rstia, iluminando,sempre passar.

    Istvn Mszros (+1930) um destes valentes britadores atuais. O mais ati-vo e conhecido deles. O nico do reduzidssimo crculo que teve oportunidade detrabalhar diretamente com Lukcs a sustentar com convico e coerncia o peso deuma identidade e a fertilidade de uma perspectiva.

    A nosso convite, veio pela primeira vez ao Brasil, para participar do I Simpsiode Filosoa do Nordeste, centrado sobre o pensamento de Marx, que se realizou

    em Joo Pessoa, em outubro de 1983, sob patrocnio do mestrado e do Departa-mento de Filosoa da UFPb e da Seaf-Regional Nordeste, com apoio da Capes edo CNPq.

    Na ocasio, Istvn Mszros pde ir tambm a So Paulo, onde proferiu confe-rncia no Tuquinha, e travou contato com uma srie de integrantes e colaboradoresda [Revista] ENSAIO, da qual membro do Conselho Consultivo.

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    Horas antes de deixar J. Pessoa, em convvio de grande descontrao e afabili-dade com o grupo de professores da UFPb, Ufal e PUC-SP que formou a equipe deentrevistadores, gravou o depoimento ora publicado, cujo texto revisou posterior-

    mente, j na Inglaterra, onde vive desde 1959.I. Mszros um homenzarro de alma doce, maneiras delicadas e intelignciavibrante. Ama o desconhecido: homens e cenrios. E no resiste a uma comida bemapimentada. Escolhe mesmo o que vai comer quase que sob este nico critrio.Nessas horas, era uma delcia v-lo perguntar, em portugus, que foi aprendendocom rapidez fulminante, se tal ou qual prato era ou no era pimentza, com ar umpouco ansioso, preocupado em no fazer alguma escolha enganosa. Quase delirouao ver, pela primeira vez na vida, a tapioca natural, preparada comumente, entre ou-tros lugares, nas caladas de J. Pessoa e ruelas de Olinda, alimento que j conhecia,

    vejam s, na forma de biscoitos, facilmente encontrveis, segundo disse, nos super-mercados londrinos.Incansvel, vido de todas as realidades, sempre disposto a discorrer sobre os

    tempos de Lukcs e a enfrentar os dramas agudos de nossos tempos, nutre o grandeprazer de pr em tudo a mais humana das gentilezas. Em verdade, um modo deser, uma forma de encarar a vida.

    S uma coisa rompe com o encanto dessa dimenso ntima, e a rompe preci-samente para a conrmar: a averso, o dio permanente por tudo que derive dadominao do capital, em qualquer de suas formas, ou seja, a barbrie capitalista e a

    barbrie stalinista.Na esteira, pois, da na herana lukacsiana e da perspectiva socialista, que Msz-ros no entende to longnqua, dada a crise estrutural em que entalou o capital.

    Decerto aludindo a isso, numa dupla metfora ao mundo velho sem porteiratodo carecido de um bom remdio, e ao desejo que alimenta de que sua ajuda naalquimia da poo seja frtil , satisfaz a curiosidade de algum que indagava pelosignicado, em hngaro, de seu sobrenome, exclamando: Carniceiro! e completacom um gesto, voz tranqila e a ponta de um sorriso e bom que seja assim....

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    J. Chasin: Voc um nome razoavelmente conhecido junto intelectualidade brasileira,

    mas no o suciente. Sugiro, ento, que comece por falar de sua infncia e juventude, para que, aospoucos, cheguemos a um perl completo.

    I. Mszros:Minha infncia foi muito difcil. Foi antes da Guerra, no regimede Horthy2, em condies muito pobres. ramos quatro, minha me, minhas duasirms e eu. De incio minha me foi enfermeira, mas, no tempo da crise, no perodoentre [19]29 e [19]33, ela teve de deixar este trabalho e se tornou operria metalrgi-ca. E eu, em funo da pobreza, tive de trabalhar em uma fbrica aos 12 anos e meio,falsicando a carteira de trabalho, onde elevei minha idade para 16 anos, mnimapermitida por lei. Trabalhei, nesta ou naquela fbrica, praticamente at o momentode entrar para a universidade.

    Chasin:Que tipo de fbrica?

    Mszros:Fbricas de avies, txteis, tipograas etc. Ao mesmo tempo estuda-va. Aos 18 anos entrei para uma universidade. Naquela poca a vida se tornou maisfcil: no tinha que trabalhar ao mesmo tempo em que estudava. Podia, assim, mededicar integralmente aos estudos. Neste momento, conheci Lukcs, em circunstn-cias muito interessantes. Ele estava sendo atacado por Rvai3e outros elementos doPartido.

    E. Vaisman:Em que ano?Mszros:Em 1949, eu tinha 18 anos e meio.Chasin:Em razo do livro A responsabilidade dos intelectuais?4

    Mszros:Sim, sobre a democracia popular e outras coisas do tipo. Dois outrs meses depois que entrei para a universidade; tentaram me expulsar em funoda minha ligao com Lukcs. Todavia, isto no aconteceu, estudei com ele e doisanos depois eu me tornei seu assistente. Sempre trabalhamos em mtua colaboraoe nos tornamos grande amigos, incluindo sua mulher, Gertrud, que era uma pessoamaravilhosa.

    Chasin: Um dos propsitos desta entrevista alcanar, pelo seu depoimento, a conguraodesta relao de trabalho e amizade com Lukcs. E tambm, evidente, a prpria reconstruo da

    gura de Lukcs.

    2 Mikls Horthy (1869-1957), contra-almirante da marinha habsburguesa que, em 1919, apoiou a alianacontra a Repblica Hngara dos Conselhos. Em 1920 foi chefe do regime reacionrio da Hungria. Destitudoem 1944 por um golpe nazista, foi feito, depois, prisioneiro de guerra pelos aliados; foi, na seqncia, entregueao governo hngaro.3Jzsef Rvai(1886-1939), idelogo e publicista. Entre as duas Grandes Guerras, emigrou e viveu, por ltimo,na Unio Sovitica. Depois do retorno Hungria, em 1945, fez parte do vrtice do Partido Comunista at1956.4A responsabilidade dos intelectuaisfoi publicado no vero de 1944. Trata-se de um volume de ensaios sobrehistria e literatura hngaras; escrito entre 1939 e 1941, foi publicado pela primeira vez em Uj Hang com umaintroduo datada de maro de 1944. Este foi o primeiro volume escrito em hngaro por Lukcs depois de umintervalo de 20 anos. Em 1945, o livro se tornou o centro de discusses ideolgico-culturais na Hungria.

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    Mszros: Ocorria, na poca, uma mudana na orientao do Partido. Haviadescrena de que se poderia falar seriamente em democracia popular. Na verdade,era uma palavra vazia, sem signicado, pois todas as possibilidades de envolvimento

    popular estavam suprimidas: era propriamente um desdobramento do stalinismo.Neste contexto, havia uma presso de Moscou no sentido da autocrtica. Mascomo pode um chefe de partido fazer autocrtica? impossvel! Deve encontraralgum que faa isso por ele! Esse era o papel de Lukcs no debate com Rvai eoutros. (Tudo de que Lukcs era acusado pode ser encontrado nos prprios escritosde Jzsef Rvai.) Sobre isso, Lukcs gostava de contar uma anedota para caracterizarseu papel. Narrava que, em tempos passados, quando estivera na Universidade deBonn, os estudantes levavam uma vida bomia, divertindo-se e bebendo muito. De-pois de embriagados, andavam pelas ruas quebrando os lampies a gs. Os policiais

    no tinham como identicar exatamente os responsveis. Adotaram, assim, o mto-do de agarrar algum, que devia ento arcar com o prejuzo. E Lukcs dizia que a elecoubera pagar os lampies de Bonn. Ele era mesmo assim... No caso do debate comRvai, ele tinha sido atacadopara que casse demonstrada uma mudana ideolgicano seiodo Partido. Veja bem, no meu pas, no tempo do stalinismo, quando um homem im-portante, conhecido, atacado pelo Partido... Bem, no brincadeira. E, no ataquedesencadeado por Rvai, acabou havendo a interveno de Fadeiev.

    Quando Lukcs vivia na Unio Sovitica (1933-45), Fadeiev e ele participavamda Associao de Escritores. O grupo a que Lukcs pertencia fazia oposio ao

    zdanovismo, do qual Fadeiev era um dos expoentes. Fadeiev era expoente literriomais famoso do perodo stalinista na Rapp, no Proletkult e no zdanovismo. Osseus escritos do ps-Guerra, que eram terrveis e sem nenhum valor esttico, eramapresentados, naquele tempo, como modelo. Ele se tornou o expoente ocial dorealismo socialista. Naquele tempo, Lukcs chegou a ser preso.

    Chasin: Por quanto tempo?Mszros:Por alguns meses. Os hngaros no faziam nada para tir-lo da pri-

    so. At os amigos mais antigos do Partido recusavam-se a interferir. Por sorte, osintelectuais alemes, que o receberam em Moscou, intervieram. Bla Kun5no era

    mais o chefe da seo hngara, mas seus amigos estavam no controle do partidohngaro.Lukcs tinha, em relao a eles, posies conitantes a respeito de teoria da

    literatura, o que implicou a sua oposio Rapp e ao Proletkult. Quando foi preso,naturalmente, tudo isso pesou. Nos interrogatrios, a polcia secreta queria que con-fessasse que era trotskista. Mas refutava tudo com bom humor. Paralelamente, os

    5Bla Kun(1886-1939). Em 1919, dirigiu a Repblica Hngara dos Conselhos. Permaneceu no exlio em Vienae, depois, na Unio Sovitica, onde fez parte do grupo dirigente da Terceira Internacional sob Zinoiev. Foi

    vtima do expurgo stalinista.

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    intelectuais alemes e outros intervieram a seu favor junto a Dimitrov, que naqueletempo era o chefe do Comintern, referindo a existncia de anidades entre as Tesesde Blum e as de Dimitrov. Nas Teses de Blum, Lukcs anunciava uma estratgia de

    fronts populares, sete anos antes de Dimitrov. Por isso, nos anos de 29/30, Lukcsfoi posto em desgraa, o que acabou com sua carreira poltica. Lukcs pertencia ala de Eugnio Landler6, que era opositor frao de Bla Kun, um burocrata, umstalinista que trabalhava no Comintern. Os alemes puderam demonstrar a Dimitrova anidade poltica entre a estratgia da aliana popular, que Lukcs recomendara aoPartido Comunista na Hungria, e a sua prpria posio. Dimitrov, ento, interveiojunto a Stalin para relaxar a priso.

    Chasin:Algo mais a respeito das relaes entre Lukcs e Dimitrov?Mszros:No. Dimitrov somente ajudou nessa oportunidade. Que eu saiba,

    no havia entre eles nenhum relacionamento estreito.S. Lessa:Aproveitando que houve uma intercalao, gostaria de perguntar se Lukcs co-nheceu Bukhrin.

    Mszros:Conheceu-o, um pouco, durante os anos 20. No manteve com elenenhum relacionamento. Conheceu Radek,7que fazia parte do mesmo grupo po-ltico. Bukhrin no tinha muita simpatia por Lukcs, pelo fato de ele ter critica-do seu livro sobre o materialismo histrico, mostrando como seu materialismo eramecanicista. Bukhrin era um dos chefes do Comintern e o homem mais forte,politicamente, da Unio Sovitica. Em contrapartida, criticara Histria e conscincia de

    classe. Assim, o relacionamento entre os dois s poderia ser supercial, sem nenhumsignicado poltico ou intelectual.Chasin:No quero dar saltos, neste dilogo, mas sua referncia a Histria e conscincia de

    classe me induz a fazer a seguinte questo: quase sempre Histria e conscincia de classe tem sidocontraposta obra da maturidade. Gostaria de uma palavra sua sobre o que pensava Lukcs arespeito.

    Mszros:Sem dvida, se tornou moda usar Histria e conscincia de classecomouma arma de propaganda poltica. O fato de Lukcs ter se recusado a republic-la,por tantos anos, tem muito que ver com duas ordens de fatores: 1) inimigos do

    marxismo, que pretendiam aparecer como amigos do marxismo, usavamHistria e

    conscincia de classecomo uma arma contra o marxismo, e isto estava fora do controle

    6Eugnio (Jen) Landler(1879-1928). Primeiramente foi social-democrata de esquerda e, depois, em novembrode 1919, membro do Conselho Nacional; durante a Repblica Hngara dos Conselhos, foi comissrio doPovo para Assuntos Internos, em seguida, comandante-em-chefe do Exrcito Vermelho Hngaro. Em 1919emigrou para Viena, onde dirigiu a frao Landler, constituda no interior do Partido Comunista por opo-sio Frao Kun.7Karl Radek(1885-1939), dirigente bolchevique de origem polonesa que, de 1919 a 1923, foi especialista emassuntos agrrios da Terceira Internacional. Em 1927 foi expulso do Partido e deportado para a Sibria. Em1929 foi redator do Pravda. Preso em 1936, foi condenado em 1937 a 10 anos de trabalhos forados.

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    de Lukcs; 2) Lukcs era um crtico sincero de posies suas em Histria e conscinciade classe, fato que pode ser facilmente comprovado no Prlogo de 1967. Aindahoje isto apresentado como uma capitulao ao stalinismo. Isso um absurdo. Ao

    contrrio, reetia um desenvolvimento intelectual muito importante, uma passagemdo hegelianismo ao marxismo, como ele explica no [texto] Meu caminho para Marx,que vocs publicaram8.

    Lszlo Ruds,9que iniciou o ataque a Lukcs em 1924, era um velho lsofostalinista, que reavivou este ataque, na Hungria em 1949.

    A questo de Histria e conscincia de classe muito complicada, pois envolve fato-res de ordem poltica e pessoal. O prprio Rvai criticara Histria e conscincia declasse por no ser bastante hegeliana. possvel provar isto, pois, naquele tempo,foi publicado no arquivo Grnberg (1925).

    Deste modo, as pessoas que se viram envolvidas neste debate, nesse novo ata-que de 1949, achavam-se em uma situao psicolgica e intelectual extremamen-te confusa. Acusaram Lukcs, num primeiro momento, de no ser sucientementehegeliano, para depois o atacarem por ser hegeliano. Ruds, por exemplo, ia de umextremo a outro. No possvel entender o que est envolvido na questo sem co-nhecer as relaes extremamente complexas que esto por detrs dela.

    No caso de Rvai, ao mesmo tempo em que criticava Lukcs, ele o salvou. Istopode parecer paradoxal. Quando Fadeiev entrou em cena, as coisas se tornarammuito perigosas: de fato, Lukcs temia ser preso. Enquanto os ataques vinham do

    partido hngaro, Lukcs podia defender-se, dizendo agora pago pelos vossos lam-pies a gs e, em certo sentido, tudo isso era feito para consumo externo.Imre Lakatos, que se tornou o sucessor de Karl Popper, o neopositivista anti-

    marxista, era quem selecionava os textos para os chefes do Partido utilizarem contraLukcs e se orgulhava disso. Rvai procurou levar o debate para um nvel maiselevado, de princpios, e, num determinado momento, queria mesmo acabar coma discusso, pois sabia muito bem que tudo isso levaria uma grande questo com aUnio Sovitica. Com a interveno de Fadeiev, foi o incio do m: o debate acabouem 1951.

    Chasin:Nesta poca, como era a vida de Lukcs na universidade?Mszros:As pessoas desapareciam, principalmente quando o debate se tor-

    nou srio. O instituto cava vazio, pois todos tinham medo. Lukcs tinha sua cte-dra, seu posto, mas no tinha o que fazer. No podia fazer conferncias, seminrios,pois as pessoas no compareciam.

    8 Cf. LUKCS, G. Meu caminho para Marx. Revista Nova Escrita Ensaio. So Paulo, Escrita, n 11-12, pp.85-99.9 Lszlo Ruds (1885-1950), poltico comunista hngaro que, depois da queda da Repblica dos Con-selhos, emigrou para a Unio Sovitica, onde residiu at 1944, quando retornou Hungria. Adversrio deLukcs, iniciou em 1949 o chamado debate Lukcs (que foi chamado por Lukcs como debate Ruds).

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    Chasin:Nestes seminrios, a sua participao...

    Mszros:Sim, era freqente.Chasin:Quais eram os temas destes seminrios?

    Mszros: Eram sobre esttica.Chasin: Lembra-se de algum autor examinado?Mszros: Eram examinados vrios autores. Livros clssicos, contemporneos,

    hngaros, alemes e alguns russos tambm.Chasin: Qual o papel que estes seminrios tiveram na sua prpria formao e evoluo

    pessoal?Mszros: Representaram muito. Era uma situao privilegiada, pois havia trs

    ou quatro pessoas que estavam discutindo esta questo com Lukcs, sem limite detempo. Mais tarde, o relacionamento pessoal tambm se tornou mais estreito e pro-

    fundo.Chasin:Quais eram as outras pessoas que participavam?Mszros: Os nomes no so conhecidos, havendo, inclusive, um estudioso

    de esttica musical, Dnes Zoltai. As duas nicas pessoas conhecidas que vinhamfreqentemente eram Agnes Heller e Jzsef Szigeti10.

    C. E. Berriel:Quando Lukcs foi preso e a polcia secreta interrogava se ele era trotskista,talvez isso tenha acontecido exatamente porque Trotsky era contra o Proletkult.

    Mszros: No creio que a polcia secreta tenha feito essas consideraes: eratotalmente ignorante a este respeito. Ao passo que ser trotskista era ser o represen-

    tante do diabo na Terra.N. Rodrigues: Havia, bvio, uma grande oposio s idias de Lukcs. Nessa situao,ele estava s ou existiam pessoas que o acompanhavam em suas posies?

    Mszros: Ele estava muito isolado naquele tempo. Somente duas ou trs pes-soas que mantinham relaes com ele. Nesse contexto, h um caso interessante,que o Jszef Szigeti, primeiro assistente de Lukcs. Era um homem cerca de dezanos mais velho do que eu. Em 1951 tambm atacou Lukcs, s que ningum haviasolicitado que ele zesse autocrtica. Mas ele tinha medo...

    Chasin:Medo e, de certo, oportunismo...

    Mszros:Sim, exatamente, as duas coisas. Veja s, no perodo 1945/50, Lukcso tinha ajudado de todas as formas e, em 51, Szigeti... Lukcs dizia, sem cerimnia,

    que Szigeti, tinha se borrado nas calas.Chasin: Como era Lukcs como professor?Mszros: Era formidvel. Agora, em 1951, o boicote foi to forte que todos

    os livros de Lukcs foram retirados da biblioteca. Para ilustrar seu bom humor, vounarrar um acontecimento de 1954/55, quando Lukcs teve uma enfermidade. Foi

    10Jozsf Szigeti(1921), lsofo hngaro e ex-aluno de Lukcs.

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    ao hospital, fez alguns exames e radiograas. Um famoso professor de medicina, aoexaminar a radiograa, exclamou: O Sr. tem uma doena muito rara, ligamento doestmago e intestino, que nem gura nos livros de medicina. Quando Lukcs foi

    operado, este mesmo professor avisou que a cirurgia seria assistida por seus alunos.Lukcs, com muita nura, comentou: Finalmente me tornei matria de ensino uni-versitrio!.

    Chasin:Essa anedota...

    Mszros: verdadeira.Chasin: Sim, claro, mostra muito a sinceridade com que Lukcs suportava todas essas

    presses. Ele tinha conscincia real, plena, da sua importncia intelectual, no marxismo, na polticaou, dadas essas presses, ele perdia um pouco a idia dessa grandeza?

    Mszros: Como lsofo, sempre. Inteiramente consciente. Ademais, em

    1949/51, no era a primeira vez que ele participava de conitos polticos. Os ata-ques a ele vinham desde os anos 20 e, assim, j estava habituado a eles. Ilustro isso deoutro modo: ao ter de fugir do territrio alemo, quando Hitler tomou o poder, e so fez quando havia se tornado perigosssimo permanecer l, na clandestinidade, foipara a Rssia. Bla Kun e outros, que eram poderosos no Comintern e estavam emoposio a ele, queriam elimin-lo, no sicamente, mas do crculo intelectual e po-ltico, negando-lhe toda a possibilidade de ajuda nanceira, sonegando-lhe possibili-dade de receber os cupons de racionamento. A ele disse a Kun, com atitude rme ecalma: Se voc zer isso, eu me ponho diante da entrada do Comintern, me sento

    na escadaria, fao um piquete individual e explico a todos os polticos e intelectuaisque vm do Oeste porque estou fazendo isso. Assim, ele ameaava expor, publica-mente, a hostilidade que Bla Kun desenvolvia contra ele. Kun percebeu que Lukcsestava falando srio, e naquele momento Lukcs j era um nome internacionalmenteconhecido. E, sim, ele passou a receber o necessrio para manter sua famlia, j quea nica atividade que conhecia era a de escritor.

    Chasin:A fase de [19]49/51 est bastante caracterizada. Sabemos que, poucos anos de-pois, nos episdios de [19]56, Lukcs viver novamente experincias muito srias e graves. Sem queeu faa nenhuma pergunta especca, gostaria que a sua narrativa se voltasse para o episdio de 56e para a maneira como se deu a sua prpria participao, que o levou a deixar a Hungria.

    Mszros: No incio de [19]51, j era seu assistente e o fui at 56, quando deixeia Hungria. Tinha um relacionamento muito estreito com ele e com sua famlia. Nes-te perodo, podia entrar na sua casa na hora em que quisesse e tnhamos uma rgidadisciplina de trabalho em comum. Participvamos de vrias atividades em conjunto,no somente na universidade, mas tambm na Associao de Escritores. Escrevi umlivro sobre este perodo, intituladoA revolta dos intelectuais na Hungria, publicado pela

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    Einaudi. O debate na universidade, entre os intelectuais, era muito limitado, prati-camente no existia. O contrrio ocorria na Associao de Escritores. Por exemplo,

    Tibor Dry11era um famoso escritor hngaro, muito meu amigo e de Lukcs, e era

    atacado, naturalmente, por Rvai e outros. Havia um grande debate entre eles, eLukcs se solidarizou com Dry. Escrevi um longo ensaio sobre isto. Por meses emeses meu ensaio foi censurado, proibiram a sua publicao. Quando indagava so-bre as razes que tinham levado a isto, a resposta era imediata: Temos que publicarprimeiro os artigos da linha justa!. Este debate durou dois anos e Lukcs participavaregularmente da Associao. Mais tarde, em 55/56, participou do Crculo Pt12.

    Vaisman:Qual era o papel dessa Associao na elaborao da poltica cultural do Parti-do?

    Mszros: Nenhum. Essa era uma responsabilidade da cpula do Partido o

    que era o caso de Rvai. Era um intelectual que respeitava Lukcs, mas que se dis-tanciou dele em funo de sua posio poltico-cultural e rompeu com ele em [19]56.Rvai se tornou, infelizmente, um fantico stalinista.

    Naquele perodo, de 24/10 a 4/11/56, passei o tempo todo na casa de Lukcs.Um dia Rvai telefonou, acusando-o por tudo o que havia ocorrido. Logicamente,depois disso, o relacionamento foi rompido. Em 59 Rvai morreu em decorrnciade um problema cardaco.

    A Associao de Escritores era muito dividida internamente: havia escritorescomo Dry, que mantinham uma linha muito diversa da ocial, e havia, de outro

    lado, os stalinistas, que eram terrveis. Um destes era o secretrio do Partido na As -sociao, Tibor Mrai. Inicialmente, foi correspondente de imprensa do Partido naGuerra da Coria escreveu artigos sobre a guerra bacteriolgica dos americanos.Em 1956 deixou a Hungria e passou a escrever artigos para demonstrar que nohavia guerra bacteriolgica na Coria. Trata-se de uma mudana ideolgico-poltica,em que se salta de um ponto a outro com grande facilidade. A funo de Mrai,como secretrio do Partido, era abafar, a qualquer custo, a onda de efervescnciana Associao. Lembro-me de que, uma vez, numa conversa com o amigo IstvnErsi muito conhecido na Hungria, que era um pouco de tudo, inclusive tradutor,

    mais tarde foi preso , [este] me contou que colocara, ao nvel da Associao, a11Tibor Dry(1984-1979), escritor hngaro que forneceu uma sntese original das tendncias realistas e mo -dernistas. Fez parte da insurreio popular de 1956 e foi condenado, em 1957, a seis anos de deteno. Foilibertado em 1960.12O Crculo Ptfoi criado em maro de 1956, por elementos da Liga dos Jovens Trabalhadores, como espaoinstitucional de inquietao intelectual e poltica. A partir de 15 de junho, sob a presidncia de Lukcs, ocorreuum debate losco em que foram abordados problemas concernentes formao losca universitria equestes referentes crtica literria. As conferncias de Lukcs neste debate constituem suas anlises ociaisdo stalinismo, e tambm uma primeira reexo em torno da situao hngara posterior ao XX Congresso doPCUS. O Crculo era fundamentalmente dirigido por Tibor Dry, Julius Hay e Lukcs.

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    necessidade de reetir de modo bastante tpico: No h necessidade nenhuma depensar, o Partido pensa por ns. Anos depois, encontrei Mrai em Londres e elenegou que tivesse dito isso a Ersi, que naquele perodo estava na priso. Respondi

    que, entre a palavra dele e a de Ersi, cava com a deste, sem hesitao nenhuma,na medida em que aquela era uma posio tpica de secretrio de partido stalinista.Por exemplo, Andrs Hegeds13, que foi conhecido como crtico do regime depoisde [19]56, era o primeiro-ministro de Rkosi14, o secretrio do partido stalinista daHungria. Rkosi apertava um boto e Hegeds saltava. Eu mesmo participei de dis-cusses com Hegeds, na Associao. Ele era absolutamente terrvel. Mais rgido edogmtico que ele, impossvel.

    Em [19]56 acreditvamos que poderia ocorrer um desenvolvimento positivodentro do quadro de desestalinizao, de liberao estabelecido depois do XX Con-

    gresso; promessas neste sentido existiam.Ao mesmo tempo, havia uma grande polarizao poltica entre Rkosi queera um homem muito poderoso, com muitos contatos na Unio Sovitica e ImreNagy15, que se tornou o primeiro-ministro, mas por pouco tempo. Exatamente nesteperodo Lukcs se tornou ministro da Cultura de 24 de outubro a 4 de novem-bro.

    Alguns meses depois da morte de Stalin, Nagy estava no poder, mas de modopuramente formal, pois o verdadeiro poder estava na cpula do Partido. Rkosi con-trolava tudo e depois de seis meses estava tudo acabado. Nagy foi substitudo pouco

    tempo depois, totalmente posto de lado, e o stalinismo, reconstitudo. Ou seja, umstalinista durssimo foi encarregado de fazer a desestalinizao e todos os velhos sta-linistas permaneceram nos postos. Que desestalinizao esta? Toda a efervescnciana Associao de Escritores tinha como objetivo a verdadeira desestalinizao.

    Vaisman: Alm da Associao de Escritores, havia outros setores que pressionavam nosentido da desestalinizao?

    Mszros: Dois eram os principais: a Associao de Escritores e o CirculoPt. Havia outros, como a Associao de Artistas, mas a mais articulada era a

    13Andrs Hegeds(1922), poltico comunista e socilogo. Em 1955 foi primeiro-ministro, como partidrio de

    Rkosi. Foi substitudo durante a insurreio popular de 1956. Anos mais tarde se tornaria gura destacadada dissidncia hngara.14Mtys Rkosi(1892-1971). Na Repblica dos Conselhos, foi vice-comissrio do Povo. Em 1925 foi presoe condenado, permanecendo no crcere at 1940, quando teve sua pena relaxada e foi enviado Unio So-

    vitica. Em 1945 voltou Hungria, como chefe do Partido Comunista, do qual foi secretrio at o nal de1956. Foi o principal representante do stalinismo na Hungria. Destitudo em 1956, foi connado na UnioSovitica.15Imre Nagy(1896-1958). Especialista em assuntos agrrios, ingressou no Partido Comunista na Unio Sovi-tica, onde era prisioneiro de guerra. De 1921 a 28 exerceu trabalho poltico clandestino na Hungria. De 1929a 44 cou exilado na Unio Sovitica. Depois de 1944 foi ministro de vrios governos e primeiro-ministro em1953. Em funo de sua tomada de posio contra Rkosi, em 1955, foi destitudo por desviacionismo de di-reita e expulso do Partido. Em 1956, durante a insurreio popular, tornou-se novamente primeiro-ministro,sendo depois deportado para a Romnia, onde foi executado em 1958.

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    Associao de Escritores. A literatura na Hungria, por tradio, sempre foi muitopolitizada, talvez, em funo da ausncia de um pensamento poltico enquanto tal.Os problemas polticos e as contradies da sociedade acabaram por car na mo

    dos escritores. Assim, a Associao de Escritores acabou tornando-se a porta-voz,na medida em que no havia nenhuma outra forma de crtica, inclusive no meiooperrio. Os escritores eram os articuladores da tenso, iam s fbricas, s pequenascidades, e assim por diante.

    Agora, Rkosi, em certo sentido, permitiu tudo isso, pois sem esta permissodo Partido essas coisas seriam inconcebveis. Rkosi, com o maior cinismo, dizia:Deixemo-los falar e, quando falarem, cortaremos suas cabeas!. A inteno erasempre procurar uma linha de acusao contra o intelectual.

    A ltima reunio do Crculo Pt teve a presena de 5 ou 6 mil pessoas, com

    alto-falantes instalados do lado de fora do prdio. Foi a ltima porque a que estavamarcada para o dia 24 de outubro no seria realizada. Do meu ponto de vista, pes-soal, este seria um acontecimento muito importante. Havia publicado um ensaio narevista j Hangsobre o problema nacional e a arte, onde ataquei a posio de Stalinno plano terico, denunciando o seu idealismo e seu voluntarismo. Naquela poca sse falava em culto personalidade quando se referia a Stalin. Lembro-me que ZoltnKodly16, um grande msico nacionalista, telefonou para congratular-me e assimse originou o debate sobre a questo nacional, que seria no dia 24. Os debatedoresseriam Kodly e eu. Lukcs deu uma entrevista sobre isso, comentou o meu ensaio e

    tambm se referiu ao debate que estava marcado (isto est registrado na Szbad Npde 14 de outubro de 1956 e na edio alem de Lichtheim G. Lukcs, Shriften zurIdeologie und Politik).

    No dia 23 de outubro houve uma manifestao enorme, com centenas de mi-lhares de pessoas nas ruas de Budapeste. Eu estava com um grupo de intelectuaisda universidade e comentvamos que ningum iria reunio marcada para o diaseguinte. De fato, na noite do dia 23, houve a interveno sovitica. E quem foiresponsvel pela interveno? Andrs Hegeds.

    I. Tonet:Voc foi membro do Partido hngaro?Mszros:

    Sim. Em 1951, com a recomendao de Lukcs, e por uma razobvia: os debates srios sobre poltica cultural no se davam apenas na Associaode Escritores. E, se algum quisesse contribuir para o desenvolvimento do debatedestes temas, no tinha alternativa naquele tempo. A nica possibilidade de debate einuncia era no seio do prprio Partido.

    Rodrigues:Qual foi o sentido da Associao de Escritores depois de 56?

    16Zoltn Kodly(1882-1967), compositor, cultor da msica popular e da pedagogia musical.

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    Mszros: Naturalmente, ela foi abolida. Anos mais tarde foi reconstruda,existe agora, mas algo bastante diferente.

    Berriel:A sua entrada no Partido foi alguma coisa muito pensada, muito meditada...

    Mszros: Sim. Houve uma discusso sobre isso com Lukcs e foi ele que, emparte, persuadiu-me. Esta era justamente sua posio: o nico meio de intervir demodo ecaz e positivo era atravs da mediao do Partido.

    Berriel:E tambm tinha muito claras as limitaes...Mszros: Sim. As limitaes existiam, mas eram exveis tambm. Por exem-

    plo, na organizao do Partido, dentro da Associao de Escritores, havia uma dis-cusso feroz. Ento, por vezes, compareciam membros do Politburo para controlara discusso. No tempo de Rkosi, recordo-me de que Bla Szalai, um homem muitoignorante, veio reunio. Todas as palavras que dizamos eram estenografadas, pois

    no existiam gravadores. Para tanto, duas ou trs estengrafas do parlamento esta-vam presentes. Tudo era anotado, inclusive todos os apartes que eram feitos. Notive dvidas, ataquei Bla Szalai de cara. Eu lhe disse o que pensava e imediatamentelhe ofereci meu resumo por escrito do que havia dito. Lukcs tambm lhe dirigiupalavras duras e outros presentes tambm. Isso demonstra que os limites eram ex-

    veis. Outro exemplo: uma vez encontrei, numa reunio pblica, o secretrio do Par-tido do Grande Budapeste, que era um homem muito poderoso. Eu no o conhecia,pois nunca o havia visto em toda a vida. Ele chegou junto de mim, ameaou-medizendo que tinha ouvido minha interveno com muita ateno e que, se eu no

    tomasse cuidado com o que dizia, poderia ser preso. Diante disso, virei-me e disse:Este o seu privilgio, voc pode prender-me quando quiser, mas o meu dever e omeu privilgio dizer o que devo dizer, e eu direi sempre. Isso foi em 1956.

    Para concluir, quais eram as possibilidades de atuao? No, no como a pro-paganda hostil refere, como se todos que estavam dentro fossem escravos. No

    verdade.Chasin:Apesar destas possibilidades, no entanto, este tipo de ao tem se demonstrado, his-

    toricamente, muito pouco produtivo para modicar as estruturas do partido de tipo stalinista. Estaconcepo de trabalho e modicao por dentro...

    Mszros:A nossa concepo era determinada pelo modo como as coisasaconteciam na poca e era determinada tambm por uma aspirao genuinamente

    socialista. Ns no dissemos em nenhum momento a Bla Szalai que queramos res-taurar o capitalismo, e sim que poderamos at nos tornar bons amigos e construiro socialismo. Isto, naturalmente, depois de [19]56 acabou. Este tipo de estratgiatornou-se impossvel depois.

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    Chasin: Sim, mas o que estou questionando no o fao somente para a Hungria, mas paratodos os partidos stalinistas. O trabalho de modicar por meio do trabalho interno no ilusrio?

    Mszros: O problema era bastante diferente no Leste, em comparao a pa-

    ses como a Itlia, Frana, onde no h o exerccio do poder de estado por parte doPartido, e, em princpio, seria possvel uma democratizao das estruturas. Togliattio queria sinceramente. No plano terico isto era possvel, mas praticamente haviauma srie de complicaes...

    Chasin:Mas, hoje, essas possibilidades...

    Mszros: No se realizaram...Chasin:Neste sentido, no que tange s questes relativas ao Partido, li em algum lugar que

    Lukcs pertenceu a uma comisso do Partido hngaro, do Comit Central, em [19]56, que teria oobjetivo de estudar as transformaes do Partido. Isso verdade?

    Mszros: No, no verdade. uma lenda completamente ctcia.Chasin: O que li foi que Lukcs fora nomeado para a referida comisso cerca de dois ou trsdias antes da interveno sovitica.

    Mszros: Qual delas? Houve duas intervenes. A primeira, quando ImreNagy foi reconduzido ao poder. Quando Rkosi foi deposto por Mikoian em outu-bro, Ern Gero17era o secretrio do Partido; e a elevao de Nagy como primeiro-ministro, em lugar de Hegeds. Mikoian chegou novamente a Budapeste e, ordenou,ento, a mudana, e Nagy formou um novo governo, onde Lukcs aceitou o papelde ministro da Cultura, deixando claro que s aceitava em funo da situao de

    emergncia. Depois que tudo terminasse pretendia voltar a escrever, pois estavamuito ansioso para elaborar a suaEsttica, aOntologiae assim por diante. Mas houveoutra interveno, no dia 4 de novembro, que acabou com tudo.

    verdade, no perodo de 23/24 de outubro at 4 de novembro, houve umadiscusso entre um pequeno grupo, no sentido de estabelecer quais seriam as mu-danas necessrias. Alm de Lukcs, fazia parte deste grupo Zoltn Sznt18, um

    velho amigo dele. No tempo da ruptura com a Iugoslvia, era o embaixador emBelgrado. Na poca foi considerado comprometido com o titosmo. Sua sorte foique era marido da irm de Rvai e por isso no foi preso, mas simplesmente posto

    de lado. Bem, naquele perodo, Szntm, Lukcs, o prprio Nagy e Kdar

    19

    estavampensando sobre as possibilidades quanto a mudanas no Partido, bem como sobre

    17Ern Guer(1898-1980). Pertenceu ao grupo dirigente durante o perodo de Rkosi e foi secretrio do Par-tido de julho a outubro de 1956.18Zoltn Sznt(1893-1977), fundador do Partido Comunista Hngaro. Emigrou para Viena em 1920, ondecou at 1926. De 1926 a 1935 esteve preso na Hungria e depois emigrou novamente, desta vez para Tchecos-lovquia e Unio Sovitica. Em 1945 retornou Hungria e em 1956 possuiu um alto cargo no Partido.19Jnos Kdr(1912[-1989]) em 1949 pertenceu ao grupo dirigente do Partido Comunista. Foi, ainda, ministrodo Interior. Em 1951 foi preso, e em 1954, reabilitado. No perodo da insurreio se tornou secretrio doPartido Operrio Socialista Hngaro (Posh) e, ao m da insurreio, tambm chefe do governo.

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    outras questes, como o Pacto de Varsvia. Szntm e Lukcs se opunham posi-o de romper com o Pacto, ao passo que Nagy, Kdar e outros eram a favor. Depoisda deportao, quando foi permitido a Lukcs regressar a Budapeste, ao se renovar

    a presso do Partido, Lukcs, ainda desta vez, pde dizer a Kdar: voc votou pelorompimento com o Pacto de Varsvia, e eu contra. A posio de Lukcs semprefoi mais apropriada, nos momentos agudos, do que a reao passional de outraspessoas. Em certo sentido, isso explica como pde manter a notoriedade poltica eintelectual ao mesmo tempo em que agia e combatia.

    Chasin:A opinio de Lukcs sobre Nagy no era nada favorvel...Mszros: Nagy, teoricamente, no tinha uma boa formao. No era desco-

    nhecida a posio que Lukcs tinha em relao a ele. Tanto assim que, deportadopara a Romnia, no interrogatrio polcia poltica, queriam que ele zesse uma

    declarao contra Nagy, e Lukcs respondeu rmemente: a minha opinio sobreNagy muito clara, contudo, contra um companheiro de priso no posso declararnada. Deixem Imre Nagy e todos os outros voltarem para Budapeste e direi, publi-camente, o que penso dele.

    Chasin: Gostaria, agora, que iniciasse uma avaliao a respeito da obra de Lukcs. Pode-ramos comear pela Esttica. Na sua opinio, qual o signicado desta obra? H alguma objeoque deva ser feita a ela?

    Mszros: Penso que uma obra muito importante. Mas lamentavelmente ne-gligenciada pelo pblico, em parte pelo fato de ser um trabalho enorme e para ser

    lido... Foi traduzida para o portugus?Chasin:No.Mszros: Em alemo, quantas pessoas podem ter acesso a ela?Chasin: H uma traduo espanhola.

    Mszros: H muitos intelectuais que a lem?Chasin: Bem, o livro circulou bastante no Brasil. Era possvel adquiri-lo com facilidade.

    Atualmente, no h outra restrio do que o seu preo elevado... Porm, a sua leitura efetiva, noBrasil, bastante restrita. Tal limitao tem outro carter.

    Mszros: Bem, antes de tudo, preciso fazer uma considerao que, do meu

    ponto de vista, muito importante. Devido s circunstncias desfavorveis em queviveu, Lukcs no pde, na maioria das vezes, empreender o tipo de trabalho quedesejava fazer. Sobre este assunto tive vrias discusses com ele em ns de [19]51.Sempre cercado por adversidades para escrever semelhante tipo de obra, ele rea-giu dando respostas que eu no achava plenamente satisfatrias. Constituam umaespcie de teorizao de uma circunstncia poltica e intelectual, uma espcie deracionalizao ideolgica. Ele dizia que era muito impaciente, que naquele momento

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    histrico no era possvel fazer uma obra de sntese. Em certo sentido, essa a tra-gdia de Lukcs, na medida em que ele o pensador mais global, mais sintetizantedo sculo. Isso pode ser constatado, em termos potenciais, claramente em Histria

    e conscincia de classe. Assim, teorizava a impossibilidade de se escrever uma tica,pois no se pode escrever uma tica sem se referir agudamente poltica. Como sepode elaborar uma tica, tratar do problema dos valores, de conitos e contradieshumanas sem colocar o dedo na poltica? impossvel. Agora, isso se transformounuma espcie de autolimitao, ou, se vocs quiserem, numa racionalizao das cir-cunstncias, estabelecendo que as condies no haviam amadurecido e a nica coi-sa possvel eram trabalhos monogrcos, voltados a aspectos mais restritos. Dessemodo, para ele, a sntese deixara de ser uma necessidade fundamental. Ele comearacom uma promessa de sntese monumental, que a anlise sobre a reicao. Apesar

    disso, a sntese permanece, mas como captulo, como parte de uma obra monogr-ca mediadora. Cito, por exemplo, elementos dessa sntese no Jovem Hegel, e depois,naturalmente, nas duas ltimas obras: na Esttica enaOntologia. Mas nessa sntesecertas dimenses da totalidade so cortadas.

    Em Marx, todo microcosmo macrocosmo, da a extraordinria abertura de suaobra. O fato de ser uma obra inacabada no importa, tanto melhor, pois os cami-nhos abertos so tantos, mas com todas as direes claramente indicadas. Sempreas dimenses das universalidades entram em qualquer coisa que escreve. Lukcssempre dizia, com modstia, que Marx era uma coisa muito diferente dele. Sim, isso

    verdade, Marx foi um gnio extraordinrio, no possvel negar esta dimenso.Mas, em certo sentido, este era um argumento de defesa, para no ter de fazer certascoisas. Ele me dizia: Marx e Hegel so outra coisa, talvez eu possa ser um Lessing.Mas no verdade, h qualquer coisa de Hegel e Marx em Lukcs. Lessing vivia emoutras circunstncias, pois realmente a as condies para a sntese eram problemti-cas, mas mesmo assim estavam presentes. Mais tarde, Lukcs, ele mesmo, se desdis-se com aEsttica, aOntologia, quando as circunstncias comearam a se alterar.

    Neste sentido, rejeitototalmente a acusao de que Lukcs foi um stalinista. Mui-tos assim o acusam, mas isto um ato de profunda hostilidade e ignorncia.

    Lukcs tinha a convico de que havia a necessidade de se encontrarem media-es para certos tipos de problemas que no podiam ser encarados diretamente. Asmediaes seriam, justamente, as formas encontradas para encarar estas questes.

    Assim, Lukcs tinha de mediar tudo, todos os problemas da vida social e as circuns-tncias de mbito poltico-intelectual. Ele adorava dizer que tinha de escrever numalinguagem espica.

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    Para mim h, em Lukcs, uma combinao de razes exteriores e interiores queexplicam essa posio. Exteriores, no sentido das presses exercidas pelas circuns-tncias polticas, que depois se interiorizam e so racionalizadas. Ou seja, deve-se

    encarar Lukcs por aquilo que ele julgava que eram seus limites e as circunstnciasda poca. De maneira que a crtica seja interna, simptica, no uma crtica hostil,apriorstica, do tipo daquela feita por Merleau-Ponty, ou ainda a de outros frente obra lukacsiana. Porque s uma questo de talento, que Lukcs tinha de sobra.

    preciso entender as circunstncias em que ele trabalhou. E, mamma mia! Quan-do li o ataque de Adorno... Foi publicado na Alemanha Ocidental, no Der Monat.Que era o peridico da CIA [Agncia Central de Inteligncia dos Estados Unidos],e foi rapidamente reproduzido em rgos da CIA de outros pases, como na Frana(Preuves), Inglaterra (Encounter) etc. Tratava-se de um ataque feito de uma situao ab-

    solutamente segura, sem correr nenhum risco, contra um homem que se encontravaem perigo, na priso, submetido a um ataque macio. Falta a Adorno um enfrenta-mento mais crtico com a realidade. Em seus escritos transparece, claramente, a au-sncia de dimenses fundamentais da realidade, por isso aforstico e extremamentelimitado. No quero, dessa forma, negar-lhe mritos, mas a verdade que Lukcs

    vivia em condies objetivas bastante diferentes. E no escrevia seus artigos em r-gos ociais da GPU, da KGB, ou quaisquer outros equivalentes aos da CIA.

    A posio de Merleau-Ponty, por outro lado, uma violentao que aparece emAs aventuras da dialtica, em que constri um mito sobre Histria e conscincia de

    classe, para da poder rejeitar toda a obra da maturidade de Lukcs.Tentei, anos mais tarde, discutir com Merleau-Ponty o que ele havia escrito,interrogando o porqu daquele juzo acerca da obra madura de Lukcs. Tentei umadiscusso positiva e informada sobre o assunto. S constatei a sua total ignornciasobre a obra lukacsiana. No sabia nada e nem queria saber. Na verdade, sua posiono nada mais do que um desses preconceitos pr-fabricados, que servem paraconstruir uma mitologia a partir de uma posio abandonada por Lukcs e que eraimpossvel de ser mantida. No m, Merleau-Ponty desembocou num tal misticismo,que se revela em sua ltima obra.

    Voltando problemtica sobre Lukcs. Ele interiorizava sinceramente a pres-so das contradies do ambiente intelectual, cultural e poltico. No entanto, essainteriorizao era problemtica, e se exprimia da seguinte forma: no vivemos noperodo da sntese, as condies necessrias de preparao no existem. Dizia, porexemplo, que no existia uma psicologia que servisse de base para uma esttica sin-tetizada. A nica disponvel era a de Pavlov que, vocs sabem, foi incorporada na

    Esttica com modicaes...

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    Chasin: O que um grande problema...Mszros: Um problema gravssimo! Mas o que fazer? Em relao questo

    da psicologia como preparao da esttica como eu escrevi a propsito de Engels

    : muito obrigado! Eu no quero que a psicologia prepare a minha posio sobre aesttica. Esta uma tarefa para o lsofo, no para Pavlov ou qualquer outro.Diante daquela frmula, nada em substncia poderia ser feito. Ora, isso redun-

    daria na racionalizao de uma posio de imobilidade. Da a seqncia de inter-rupes dos projetos, que foram abandonados. A Ontologia, por exemplo, no eraentendida como uma ontologia, ela comeou a ser escrita como uma tica. A, denovo, emergiram problemas bastante abstratos. A problemtica da tica em suarelao orgnica com a poltica no podia ser explorada, e isso teve conseqnciasmuito srias em relao Esttica. O problemtico nela que no s uma esttica,

    ela tudo. , no mnimo, [mais] uma tica inconclusa do que uma esttica. Nestecontexto, o da esttica, a tica pode ser tratada legtima e intelectualmente, mas sedeixa de fora a sua conexo direta com a poltica, coisa que o tratamento sistemticoda tica requer.

    A Ontologia, eu a considero uma obra da mxima importncia. preciso estud-la, inclusive porque uma obra ignorada e negligenciada, em parte em funo dapreguia mental dos intelectuais. Hoje, os intelectuais, no lem tanto quanto ne-cessrio. Recordo-me de que, ao chegar Inglaterra, meus colegas manifestavamuma estranha hostilidade para com Hegel. Referiam-se a ele como a um metafsico

    absurdo, um louco. Leram, na verdade, no Hegel para concluir isso, mas as tolicesda histria da losoa de Bertrand Russell e outros do mesmo gnero. No caso deLukcs, a resistncia contra a obra posterior a Histria e conscincia de classe tambmintelectual.

    Lucien Goldmann, por exemplo, que era um grande amigo meu, fez muito pelaobra de Lukcs, pela sua divulgao na Frana. Desempenhou um papel notvelna difuso do marxismo, e isso em circunstncias extremamente difceis. Mas, aomesmo tempo, o seu conhecimento sobre a obra lukacsiana posterior a Histria econscincia de classeera praticamente nulo.

    Para voltar a Merleau-Ponty, a posio dele era diferente, odiava Lukcs do co-meo ao m, e essa era uma posio claramente assumida. Nutria, ao mesmo tempo,como Raymond Aron, grande simpatia por Max Weber, exatamente para se pr naordem do dia do debate na Frana, porque na poca o mito era Weber. O valor in -telectual deAventuras da dialticade Merleau-Ponty, na minha opinio, nulo, e issoprincipalmente pela sua total ignorncia da obra de Lukcs.

    Rodrigues: H certa incorporao de concepes trotskistas em Merleau-Ponty, no mes-mo?

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    Mszros: Sim, verdade. Quando o livro de Merleau-Ponty se tornou a sensa-o do momento, em 1955, houve toda uma polmica em torno, e o prprio PartidoComunista Francs tomou a iniciativa de uma defesa de Lukcs. Agora, pergun-

    to: com amigos como estes, quem precisa de inimigos? Mas as motivaes ltimasde Merleau-Ponty eram polticas mas de cunho trotskizantes e no exatamentetrotskistas e no tinham cunho intelectual srio. No fazia uma discusso interes-sada na verdade, e sim uma problematizao revestida de aspectos intelectuais, queprocuravam apoiar, fortalecer pontos de vista polticos. Para mim, uma discusso

    verdadeiramente intelectual deve buscar a verdade intensamente, e Merleau-Pontyno fazia isto. A condio mnima para chegar verdade ter a conscincia totalsobre o argumento utilizado.

    Chasin: Gostaria, agora, que voc falasse um pouco do seu prprio itinerrio intelectual.

    Mszros:Acho que os livros que escrevi so conhecidos por vocs. O pri-meiro foi escrito na Hungria, Stira e realidade: contribuio para a teoria da stira,publicado em 1955, e foi minha tese de doutorado. Depois disso, publiquei, na Itlia,dois livros. Um deles aquele que j mencionei,A revolta dos intelectuais na Hungria, e ooutroAtilla Jzsefe a arte moderna. Jzsef foi um dos maiores poetas do nosso tempoe bastante conhecido na Europa, sobretudo na Frana, Itlia e Inglaterra. No seise aqui ele conhecido. Alm de poeta, era um grande intelectual e suicidou-se em1936 em total isolamento, perseguido tambm pelo Partido, foi vtima do sectarismodaquele tempo. Depois disso publiqueiA teoria da alienao em Marx, em seguidaA

    necessidade do controle social, O conceito de dialtica em LukcseA obra de Sartre. Editei e z aintroduo para o volume de um pensador lipino muito importante, Renato Cons-tantino, um dos principais lderes intelectuais da oposio nas Filipinas, que prova-

    velmente no conhecido aqui. O ttulo Identidade neocolonial e contra-conscincia.Trs livros ainda esto em fase de preparao e devero ser publicados nos pr-

    ximos anos. O primeiro, Ideologia e cincia social, o segundo Dialtica da base e da superes-trutura, e o terceiro, para o qual tenho dirigido mais o meu empenho, um conjuntodos estudos reunidos sob o ttulo de Para alm do capital. Dele h uma parte publicadana Itlia em Problemi del socialismo(1982) e a conferncia que proferi ontem20tambm

    far parte da coletnea. O primeiro volume ser publicado aproximadamente noincio de 1986, o titulo Contribuio para uma teoria da transioe a temtica aofensi-va socialista. O segundo volume ter o ttulo de O estado na sociedade ps-capitalistae jest bem avanado, ser publicado no nal de [19]86. O terceiro volume tratar de

    20A conferncia, que ocorreu no I Seminrio de Filosoa do Nordeste, realizado em Joo Pessoa entre 13 e16 de outubro de 1983, intitulou-se Poltica radical e transio para o socialismo: reexes sobre o centenriode Marx. Traduzida por Ester Vaisman e J. Chasin, foi publicada na Revista Nova Escrita Ensaio n. 11/12,edio especial em homenagem ao centenrio de Marx, e republicada no livro Marx Hoje. 2. ed. So Paulo:Ed. Ensaio, 1998.

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    problemas gerais, mais teorticos, e ter o ttulo de Condies da transformao socialista;implicar um trabalho de muitos anos ainda.

    Chasin:Na obra sobre a transio, suponho que haja toda uma crtica s transies limita-

    das ocorridas. Neste sentido, poderamos ter uma sntese das idias crticas a respeito?Mszros: H a necessidade de uma formulao geral para os problemas datransio, pois h muitos estudos particulares, mas nenhum approachgeral. Por issoacho importantssimo apontar para problemas conceituais fundamentais, por exem-plo, a distino entre capitale capitalismo. Esta distino est no esprito original deMarx e miraculosamente desapareceu. As teorizaes sobre o socialismo baseiam-se em Engels apenas, e preciso restabelecer o esprito original da orientao deMarx, pois h vrios problemas que precisam ser levados em considerao, porexemplo, as sociedades ps-capitalistas.

    H por a uma teoria bastante difundida, que pretende identicar os pases doLeste, a Unio Sovitica, ao capitalismo, e para mim isto um erro terrvel, porque,com a base nesta identicao, deixa-se de perceber aquilo que eles so na verdade.Prossegue-se na fantasia e, por falta de diferenciao, a realidade no aparece. Dessemodo, no se percebem as tendncias para a mudana, perde-se a dinmica globale se cai na inrcia, na impotncia, pois, se tudo dominado pelo capitalismo, noh nada que possa ser feito. Veja, eu sei que existem muitas tendncias dentro destaperspectiva, aqui estou retendo apenas os aspectos fundamentais.

    Um dos captulos do primeiro volume do Paraalm do capital chama-seFormas

    variveis do domnio do capital. E assim que se devem diferenciar as caractersti-cas do capital e as formas capitalistas em suas variantes, bem como a sobrevivnciados aspectos do poder do capital nas sociedades do Leste.

    No projeto original de Marx, o socialismo s poderia ser realizado se se tivesseem vista ir para alm do capital. Por isso, preciso identicar, nas sociedades atual-mente existentes, onde o poder do capital permanece. Nos pases do Leste isso se

    verica, em parte em funo das relaes que eles mantm com o mundo capitalista,em parte pela prpria dinmica interna destes pases.

    mais do que necessria uma crtica s teorias que existem neste campo, que

    vo desde um tipo de trotskismo (a noo, por exemplo, de capitalismo de estado)quilo que constitui a posio de [Immanuel] Wallerstein e assim por diante. Dequalquer forma, h uma posio impossvel de ser sustentada teoricamente, qualseja, a de que o capitalismo domina tudo, gerando toda uma perspectiva pessimista.

    Lessa: Haveria, ento, um terceiro tipo de sociedade, na medida em que no nem socialista,nem capitalista?

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    Mszros: No socialismo o que existe. So sociedades ps-capitalistas, poispermaneceram sob o domnio do capital, poder que no desaparece de um dia parao outro. A concepo que formula o socialismo unicamente como uma tomada de

    poder do estado no enfrenta este problema devidamente, na medida em que, de-pois da tomada de poder, a diviso do trabalho permanece como antes, as fbricaspermanecem as mesmas, a posio dos operrios tambm e assim por diante. Dadoque essas coisas permanecem, surge toda uma srie de desvios, perpetrados por umaburocracia. Assim, torna-se necessrio distinguir uma posio poltica que coloca aderrubada do capitalismo e outra que coloca a necessidade da superao do capital.

    Abolir a propriedade privada, por meio de uma revoluo poltica socialista, noabate opoder do capital, mas quebra o capitalismo.

    Li na ENSAIO, na coletneaMarx, hoje, um artigo de F. Fernandes, no qual o

    meu livro sobre Marx referido e h um engano, exatamente na p. 145. No estouem desacordo com ele, mas nota-se que, talvez, a traduo do meu livro no estejaprecisa. Porque o que eu digo, no meu texto, que o problema no pode ser formu-lado simplesmente como a conquista do poder. A conquista do poder s o incio doprocesso de superao do capital. No vou dizer, obviamente, que no necessrio, mais do que necessrio! o primeiro passo! O primeiro passo encarando os gran-des problemas do domnio do capital, que permanece na sociedade como estruturaobjetiva, que no diretamente modicvel por decretos polticos, leis, mas umcomplexo processo de reestruturao. Neste sentido, estou provavelmente de acor-

    do com F. Fernandes.Hoje, o que se coloca a necessidade de enfrentar tais impasses. O que mate-rialmente possvel, pela modicao das formas de controle do capital, transferindo-as para o corpo social, ora, se isto for possvel, ele se torna coletivo, pois conduzidopelo corpo social.

    Chasin:No meu artigo, na mesma coletnea, para determinar a forma do capital que rege associedades ps-capitalistas do Leste, empreguei a expresso capital coletivo/no social...

    Mszros: ... uma tima forma...o capital se torna coletivo, mas se ope,pela sua prpria natureza, a se tornar social.

    Chasin: Compus a expresso a partir do que Marx diz no Manifesto, na Parte II.Mszros: Sim, no sentido metafrico. A absoro do capital pela sociedade

    inteira, mas a ele no ser mais capital...S. Lessa: Se ns assumimos que o resultado da Revoluo Russa no a construo socialis-

    ta, como voc v a evoluo do movimento comunista internacional neste sculo [XX], especialmentea Segunda Internacional?

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    Mszros: No vejo nada de positivo na Segunda Internacional. Era um mo-vimento essencialmente oportunista e no h nele nenhuma relevncia poltica paraa atualidade.

    Em relao ao futuro, os desenvolvimentos necessrios devem ser concebidosem termos de dinmica objetiva global. As expectativas no podem ser simplesmen-te formuladas no aqui e agora, isto , um voluntarismo e um subjetivismo tericos queesperam por mudanas que no podem ser objetivamente realizveis. Em relaoa isso, de um lado, pem-se as solues de tipo stalinista, que refere o socialismocomo j atingido e o problema, agora, s seria o de quando se tornar plenamentecomunista. A, ento, no haver mais dinheiro, todas as pessoas tero suas neces -sidades satisfeitas e um quarto para dormir. uma iluso pensar que, vencendoa revoluo socialistapoltica, os resultados aparecero instantaneamente. Isso um

    absurdo paralisante!De outro lado, observa-se a mesma paralisia, ao no serem reconhecidas as de-terminaes recprocas, globais, que tornam muito difcil a produo de resultadospositivos em campos isolados: a questo do socialismo num s pas (que tratadanum captulo do primeiro volume do conjunto que estou elaborando), que precisaser tratada num sentido amplo, sem o preconceito, essencialmente poltico, da auto-justicao.

    Chasin:Qual o propsito de seu livro sobre Sartre?Mszros: Para mim, Sartre uma das guras intelectuais mais importantes do

    sculo XX. No entanto, est na moda dizer que Sartre est morto. O tempo de Sartrevoltar ainda, porque nele h uma mensagem muito importante: a liberdade, que, noentanto, colocada em termos individuais um mito. A liberdade uma problemticaessencial da realidade e, portanto, ela a razo de ser do socialismo. O socialismosem liberdade uma contradio nos termos. Mas a a liberdade assume o sentidomais real e total da palavra. E no o sentido negativo de se poderfazer qualquer coisa

    formalmente, de protestar para se fazer ouvir, e assim por diante. No livroAnecessidadedo controle social, cito o caso de um alemo que, em [19]56, deixou a Alemanha Orien-tal, onde, enquanto isso foi possvel, ele fazia stiras polticas sobre as contradies

    da sociedade. Foi para a Alemanha Ocidental e acabou no mesmo tipo de atividade.Um jornalista do Der Spiegel o entrevistou, pedindo para ele apontar a diferenafundamental entre o mundo do ocidente e o do Leste, no que dizia respeito ao seutrabalho. O jornalista esperava que ele dissesse que o mundo ocidental era maravi-lhoso e, em vez disso, ele respondeu de forma espirituosa, revelando, no entanto,uma verdade profunda: no Leste, suposto que voc pode mudar o mundo, masno se pode dizer nada; no ocidente, voc pode dizer tudo, mas no pode mudar emnada o mundo.

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    No meu livro sobre Sartre quero, pois, falar da liberdade no sentido real da pa-lavra, e no no sentido formal ou de autocomplacncia. bvio, essencial a defesada liberdade civil, mas isso, por si s, no responde ao esprito da liberdade proposta

    pelo socialismo, que autorrealizao plena da personalidade humana.Neste sentido, h qualquer coisa de fantico em Sartre ao sustentar tal coisa,num perodo em que as foras sociais procuram diminuir este objetivo e a realidadeda liberdade.

    No meu livro sobre Sartre h, obviamente, uma crtica a ele, pois foi escrito noesprito da relao entre Sartre e o marxismo. Mas, pelo fato de este homem propor,com um fanatismo inoprimvel, este tema to importante para a humanidade queestou convicto de que o tempo de Sartre retornar, no obstante os modismos dosintelectuais.

    Chasin:A luta pela liberdade repe a questo das lutas operrias, do socialismo e do resgatedo marxismo, no mesmo?Mszros:A atualidade histrica da ofensiva socialista parte integrante funda-

    mental do processo de renovao do marxismo. Notemos, por exemplo, que o casoda organizao da classe operria italiana, tanto nos sindicatos quanto no Partido, essencialmente defensiva. A ligao deste movimento com a sociedade civil e com omundo da poltica propriamente dita, a poltica formal, parlamentar, reete necessa-riamente esse seu processo de constituio.

    A nova fase histrica, que corresponde crise estrutural do capital, pe na ordem

    do dia uma mudana radical neste sentido. Isto , a reestruturao da organizaoda classe operria, at agora posta enquanto rgo defensivo. Este processo muitodifcil, porque a primeira reao, diante de um momento de crise no andar naqueladireo; ao contrrio, permanecer na defensiva, interferindo de modo defensivo noprocesso poltico. Estou convencido de que as possibilidades defensivas esto ultra-passadas. A classe operria no ps-guerra pde conquistar resultados notveis, noquadro defensivo, porque coincidiu com um perodo de expanso capitalista. Esteperodo chegou ao trmino, e as possibilidades de obter resultados positivos, signi-cativos para a classe operria no existem mais. O objetivo do ataque do capital,

    em todos os pases, constranger a classe operria; exemplo disto a crise dowelfare

    state e assim por diante.A estratgia do eurocomunismo, de prosseguir nesse caminho defensivo, uma

    posio paralisante. No momento atual, quando se pensa no fato de que um partidogrande como o PCF se reduziu ao papel de esconderijo das traies de Mitterand,no se pode deixar de entender que se trata de uma falta grave. O poder do capitalna Frana to grande que pode gerar, taticamente, uma crise monetria e coisas do

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    tipo e, a, as possibilidades socialistas se anulam; e, infelizmente, o PCF se presta aopapel de encobrir o descumprimento das promessas socialistas de Mitterand.

    Chasin:Momentos atrs voc tocou na questo do espontanesmo, do voluntarismo etc. Gos-

    taria, ainda que de forma sumria, que voc retomasse a reexo.Mszros: Sim, isso se relaciona com a questo precedente. verdade que nosencontramos num perodo de crise estrutural do capital, e verdade tambm queas organizaes da classe operria no so adequadas para enfrentar este desao. necessrio encontrar novas formas de articulao para a ao socialista. Para isto no

    vejo uma possibilidade a no ser a interao dialtica entre as foras parlamentarese as extraparlamentares. E esta articulao requer, ao mesmo tempo, no o mitodaespontaneidade, mas sua prpria constituio sob forma consciente e autoconsciente,requer uma conscincia que se gera a partir desta mesma possibilidade objetiva. Uma

    mxima conscincia possvel, que encontre em seus problemas as mediaes necessriaspara realizar a ofensiva socialista. Neste sentido, fao uma citao de Marx: Nobasta que o pensamento se dirija realidade, necessrio tambm que a realidadetenda ao pensamento. E o que temos hoje que a realidade vai em direo aopensamento, mas o pensamento no vai em direo realidade. O pensamento estpreso ao passado e se recusa a este encontro, pois no tem condies de assumir estaresponsabilidade.

    Vaisman:Em [19]78/79, o movimento operrio brasileiro enfrentou este problema.Chasin: Isso signica que a exigncia de uma prtica tem que estar acompanhada pela exi-

    gncia de uma conscincia cienticamente formulada?Mszros: De forma mxima! Sem ela andaremos em crculos, a maravilha daespontaneidade que no se realiza. A espontaneidade fundamental, mas ela deveestar articulada pelo pensamento, sem que este seja impositivo. Se essa relao feitade maneira correta, permite prpria espontaneidade encontrar o prprio pensa-mento, sem o qual no pode ir adiante. um caminho difcil, mas ao mesmo tempopossvel, em funo da atualidade da ofensiva socialista.

    Chasin: a retomada da centralidade operria, na direo da emancipao humana?Mszros: Sim, a centralidade que abraa a totalidade do trabalho.Lessa:Qual o papel do partido revolucionrio?Mszros: Nesta dinmica, as foras parlamentares da poltica devem se articu-

    lar, no de forma autnoma e autossuciente, mas com as foras extraparlamentares.Essa extraparlamentariedade no signica opor-se ao partido, superao da prpriapoltica. A reestruturao da poltica, no sentido social, deve se manifestar dessaforma, ou seja, as foras extraparlamentares devem agir em conjunto com as forcaspolticas, isto , os partidos.

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    Chasin: Uma ltima palavra, que seja, sobre a Amrica Latina.Mszros: Para mim o futuro do socialismo e o desenvolvimento da Amrica

    Latina so inseparveis. Pases como Brasil, Mxico e Argentina tm um peso deci-

    sivo neste processo.