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    Seo 6Da probabilidade . 91Seo 7Da idia de conexo necessria . 95Seo 8Da liberdade e necessidade . 119Seo 9Da razo dos animais . 147Seo 10Dos milagres . 153Seo 11De uma providncia particulare de um estado vindouro . 183Seo 12Da filosofia acadmica ou ctica . 203Uma investiga{o sobre os princpios da moralSeo zDos princp ios gerais da moral . 225Seo 2Da benevolncia : 233Seo 3Da justia . 241Seo 4Da sociedade poltica . 269

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    Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral

    Seo 5Por que a utilidade agrada . 277Seo 6Das qualidades teis a ns mesmos . 303SeO 7Das qualidades imediatamente agradveisa ns mesmos . 323SefO 8Das qualidades imediatamente agradveisaos outros . 337Seo 9Concluso . 347Apndice z.Sobre o sentimento moral . 367Apndice 2Do amor de si mesmo . 379Apndice 3Algumas consideraes adicionaiscom relao justia . 389Apndice 4Algumas disputas verbais . 40 1Um dilogo . 415

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    Nota a esta edio

    David Hume (I 7 I I- I 776) conta-sc ctltrc os csp(ritosmais luminosos de seu sculo c ocupa um lugar procmincnteentre os autores de lngua inglesa, niio aprnas pnr sua obrafilosfica, mas tambm como cnsa(sta r histndador. Cot1tinuador da tradio empirista inaugurada por nacon e desenvolvida po r Locke e Berkeley, levou-a ;\ su;\ mais extremaconcluso, culminando em um sistema tJUe trm sido injustamente acusado de ser excessivamente dt ico r dr pl'ivar a ci ncia e a moral de qualquer justificao racional.

    Os dois textos aqui apresentados uma origem comum,sendo ambos condensaes c nllaboraes de partes de umaobra mais vasta, o Tratado da ttaturr{a humana, que DavidHume redigiu em sua juvenrudc, trndo-a iniciado em 1734,enquanto residia na Frana, e conclu(do em I 73 7, aps seu

    * Para uma breve, mas til introdulo l obra de David Hume, consulte-se QUINTON, A. 1-lumt. So P;llllo: Editora UNESP, 1999. 63p.(Coleo "Grandes Filsofos").

    ** HUME, D. Tratado da naturt{.a humana. Trad. Dbora Danowsky. SoPaulo: Editora UNESP, 20 0 I. 712p.

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    retorno para a Inglaterra. Essa obra fora concebida po rHume em escala monumental, e suas trs partes, ou "livros"

    "D E d' " "D P . - " "D M 1"o nten tmento ; as atxoes e a ora - , pre-tendiam realizar uma verdadeira revoluo filosfica pelaintroduo, nos estudos humansticos, do "mtodo experimental" propugnado por Isaac Newton para as cincias danatureza.

    Sem pretender examinar os mritos e limitaes da aplicao de um "mtodo experimental" filosofia, basta notar,aqui, que Hume pretendia, com essa idia, apenas defender aprimazia, nessas investigaes, dos fatos experimentalmenteconstatados sobre a forma como os seres humanos pensam eso emocionalmente afetados em sua experincia do mundo eno convvio com seus semelhantes. O que se recusa a representao da natureza humana segundo modelos derivados dehipteses puramente conjeturais sobre, por exemplo, sua "racionalidade", e a conseqente tentativa de fundamentar na razo todas as atividades que so prprias do ser humano, entreas quais se incluem a aquisio do conhecimento de fatosempricos e o julgamento moral sobre as aes de outros ede si mesmo.

    Outra caracterstica distintiva do "mtodo experimental"de Hume a precisa concentrao em seu objeto de estudo,que o ser humano, ou antes, o fluxo de experincias queconstituem a vida mental dos seres humanos. Assim, ao tratardo problema do conhecimento, Hume procede de forma puramente imanente e no recorre a uma ordem exterior e necessria do mundo que pudesse servir como referncia e pedra de toque de nosso sistema de crenas: a aquisio deconhecimento se caracteriza pelo desenvolvimento de idiasou expectativas acerca do comportamento das coisas e sua

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    Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral

    corroborao pelas impresses l]Ue efetivamente recebemosdelas. Do mesmo modo, nossos julgamentos e avaliaes morais no so referidos a um padro transcendente do que intrinsecamente bom ou mau, mas derivam integralmente dossentimentos de aprovao ou drsaprovao l]UC experimentamos dia nte de certas aes, comportamentos c inclinaes, edas conseqncias prticas dessas avaliaes para o bom funcionamento da sociedade.

    Uma importante consclliincia da escolha de Hume de seumtodo de investigao , portanto, a Ulldadt que essa escolhapermite conferir a toda a obra. primrira vista, o Tratado aparece como um conjunto IHrerognw dr investigaes sobrecampos no relacionados, cobrindo drsde llUestes ligadas anosso conhecimento factual do mundo, da11 rrLtes causais edos objet os exteriores, at o l'Studo aprofundado do repertrio de noss os afetos e emoes, c de nou;u atitudes valorativas diante de nossas aes c de nutras pe:uons. Seu escopoabrange assim a epistemologia, a p s i c o l o ~ i a e a filosofia moral, reas que a sensibilidade contl'lll)Hlrnea acostumou-se aconsiderar estanques c i n c o m u n i d v r i : ~ . I >r fato, uma corretacompreenso da obra de Huml' wmra prlo reconhecimentoda profunda unidade que subjaz sua aburdngem de cada umdesses campos de estudo; uma unidnde lllle deriva de suaperspectiva metodolgica comum aplicnda ao exame de umobjeto igualmente unificado: o si11tema de capacidades do serhumano que lhe permitem desenvolver tanto suas crenasempricas acerca do comportamento dos objetos exteriorescomo seus julgamentos llllll'ais das prticas e caracteres deoutros homens.

    Sabemos qual foi o triste destino do Tratado, uma obraque, nas palavras do autor, "saiu natimorta do prelo". Embo-

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    ra a tenaz oposio dos crculos acadmicos e eclesisticosoficiais tenha tido um papel nesse fracasso, seu estilo pesado,complexo e emaranhado sem dvida dificultou sua recepo.Convencido de que o problema no estava em seu contedomas no estilo de sua exposio, Hume decidiu, alguns anosmais tarde, extrair dele duas obras mais curt as, nas quais procurou dar um tom acessvel ao texto, eliminar a prolixidadeargumentativa, suprimir os tpicos no-essenciais para aconduo de seu argumento central e cuidar ao mximo daclareza da expresso. So essas as duas Investigaes reunidasno presente volume: a InvestigaO sobre o entendimento humano e aInvestigaO sobre os princpios da moral, extradas do primeiro e doterceiro livros do Tratado e publicadas respectivamente emI748 e I75I.*

    Nessa nova verso, as propostas de Hume alcanaram imensa penetrao e influncia, e cons titu em hoje pontos de passagem obrigatrios no estudo da teoria do conhecimento e dafilosofia moral. Conforme a prpria recomendao do autor,s esses novos textos revisados representam a expresso finale definitiva de suas idias e princpios filosficos, e, aindaque no estejamos obrigados a aceitar esse julgamento e continuemos a nos fascinar com o texto mais denso, profundo edesafiador do Tratado, no h dvida de que so essas versesposteriores que constituem a melhor porta de entrada para opensamento do autor.

    * Uma terceira obra, a Dissertaro sobre as paixes, extrato do Livro l i doTratado e publicada em I 757, carece de maior relevncia. De fato, ostpicos de maior interesse filosfico do Livro li , como a discusso daliberdade e da necessidade, j haviam sido includos na primeira Inves-tigaco.

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    lnvestigares sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral

    Acrescento algumas palavras sobre as presentes tradues.As duas Investigaes j haviam sido anteriormente publicadasno Brasil- a primeira (em duas tradues distintas) na cole

    ~ o "Os Pensadores", c a segunda, traduzida por mim para aEditora da Unicamp, em I 99 5, tomando-se como base, emtodos esses casos, a clssica rdio de L. A. Selby-Biggc, poca a edio mais respeitada desses textos de Hume. Oaparecimento, em I 998 e I 999, dils novas edies preparadaspor Tom L. Beauchamp para a s ~ r i e Oxjord Philosophical Texts,da Oxford University Prcss, estabrlrceu um novo standardacadmico e abriu a oportunidade p;mt o prrp;tro de novastradues brasileiras, o que fui feito llUase imediatamente nocaso da Investigao sobre omtmditmttto h u m a t ~ o , publicada j emI 99 9 pela Editora UNESP.** H tempos esgotada, esta atraduo reimpressa neste volume, com illgumils poucas correes tipogrficas. Quanto presente lnvtstigarilo sobre os p r i n ~cpios da moral, trata-se de uma traduo inteiramente nova,que inclui o apndice final, "Um dilogo", omitido na traduo de I995.

    Nesta traduo, modifitJUl" o empargu dus sinais de pontuao e das letras maisculas r idlilas pill'il melhor refletir asmodernas convenes, que so signifinnivamente diferentesdaquelas usualmente praticadas nu dculo XVIII. Todas asnotas de rodap numeradas so de autoria do prprio Hume,* HUME, D. An Enquiry Conremlnz IJumlfll Understlfnding. Tom L. Bea-

    champ (Ed.) Oxford U n i v c r ~ i t y Prns, 1999; e HUME, O. An En-quiry Concerning the Principlrs Morais. Tnm L. Beauchamp (Ed.) Oxford University Press, 1998.

    ** HUME, O. Uma investigaco sobrr omtmdlmmto humano. Trad. Jos Oscrde Almeida Marques. So P ~ u l o : F.ditnril UNESP, 1999. 212p. (Biblioteca Clssica).

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    e sempre que acrescentei alguma informao (como dados bibliogrficos mais completos ou tradues para o portugusde citaes originalmente em lngua grega ou latina) esseacrscimo aparece entre colchetes. Notas adicionais so introduzidas po r meio de asteriscos, e destinam-se a prover informaes sobre vultos ou acontecimentos histricos queno so hoje to familiares como o eram na poca de Hume.

    Quando se considera a moderna diviso administrativauniversitria, que separa as matrias prticas das tericas etrata de forma compartimentalizada as questes referentes filosofia moral e teoria do conhecimento, pareceria maisvantajoso- quanto eficincia da distribuio a seus respectivos pblicos - que as duas obras contidas neste volume ti vessem sido publicadas em separado, j que cada uma delas,de fato, tem seu lugar estabelecido nos estudos cannicosque levam ao moderno tratamento dos problemas respectivamente ticos ou epistemolgicos. Mas, ao estud-las separadamente, perde-se de vista sua unidade de perspectiva e seusparalelos metodolgicos, e no se tira o devido proveito dailuminao recproca que so capazes de lanar uma sobre aoutra. Visando exatamente contemplar essa unidade e possibilitar ao leitor uma viso mais aprofundada do projeto filosfico humeano, optou-se aqui pela publicao conjunta, incentivando os estudiosos da epistemologia e os que se dedicam aos temas da filosofia moral e poltica a lanar um olharrecproco sobre seus campos de atuao, recuperando, assim,na medida do que hoje possvel, o carter unitrio da filosofia humeana.

    Jos Oscar de Almeida Marques

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    Nota introdutria*

    Os princpios e raciocnios contidos neste volume foramem sua maior parte publicados em uma obra em trs volumesintitulada Um Tratado da Naturt

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    parcialidade, e um bom exemplo das artimanhas argumentati-vas que o zelo fantico se julga autorizado a empregar. O au-to r deseja, doravante, que os textos a seguir - e s eles -possam ser considerados como contendo suas opinies eprincpios filosficos.

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    Seo IDas diferentes espcies de filosofia

    1 A filosofia moral, ou cincia da natureza humana, pode sertratada de duas maneiras diferentes, cada uma delas possui-dora de um mrito peculiar e capaz de contribuir para o entretenimento, instruo e reforma da humanidade. A primeira considera o homem principalmente como nascido para aao e como influenciado em suas atitudes pelo gosto e pelosentimento, perseguindo um objeto e evitando outro, deacordo com o valor que esses objetos parecem possuir e segundo a perspectiva em que se apresentam. Como a virtude,dentre todos os objetos, o que se admite ser o mais valioso,os filsofos dessa primeira espcie a pintam com as coresmais agradveis, tomando de emprstimo toda a ajuda da poesia e da eloqncia, e tratando seu assunto de uma maneirasimples e acessvel, como mais adequado para agradar a imaginao e cativar os afetos. Esses filsofos selecionam as ob-servaes e exemplos mais marcantes da vida cotidiana, situam caracteres opostos em um contraste apropriado e,atraindo-nos para as trilhas da virtude com cenas de glria efelicidade, guiam nossos passos nessas trilhas po r meio dos

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    princpios mais confiveis e dos mais ilustres exemplos. Elesnos fazem sentir a diferena entre vcio e virtude, excitam e regulam nossos sentimentos e, assim, basta-lhes que sejam capazes de inclinar nossos coraes para o amor probidade e verdadeira honra para j considerarem como plenamenteatingido o fim de todos os seus esforos.

    z Filsofos da segunda espcie vem no homem antes um serdotado de razo do que um ser ativo, e dirigem seus esforosmais formao de seu entendimento do que ao cultivo deseus costumes. Tomam a natureza humana como um objetode especulao e submetem-na a um exame meticuloso a fimde discernir os princpios que regulam nosso entendimento,excitam nossos sentimentos e fazem-nos aprovar ou condenar algum objeto, ao ou conduta particulares. Parece-lhesvergonhoso para toda a literatura que a filosofia no tenhaat agora estabelecido, para alm de toda controvrsia, osfundamentos da moral, do raciocnio e da crtica, e que faleinterminavelmente sobre verdade e falsidade, vcio e virtude, beleza e deformidade, sem ser capaz de determinar a origem dessas distines. Ao empreender essa rdua tarefa, elesno se deixam dissuadir po r quaisquer dificuldades, mas,partindo de casos particulares em direo a princpios gerais,vo estendendo suas investigaes para princpios aindamais gerais, no se dando po r satisfeitos at que atinjamaqueles princpios originais que, em qualquer cincia, impem um limite a toda curiosidade humana. Suas especulaes parecem abstratas e at ininteligveis aos leitores comuns, mas a aprovao que almejam a dos instrudos e dossbios, e julgam-se suficientemente recompensados pelo esforo de toda uma vida se forem capazes de descobrir algu-

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    mas verdades ocultas que poss am contribuir para a instruoda posteridade.

    3 certo que, para o grosso da humanidade, a filosofia sim-ples e acessvel ter sempre preferncia sobre a filosofia exatae abstrusa, e ser louvada por muitos no apenas como maisagradvel, mas tambm como mais til que a outra. Ela participa mais da vida cotidiana, molda o corao e os afetos, e,manipulando os princpios que atuam sobre os homens, reforma sua conduta e os traz para mais perto do modelo deperfeio que ela descreve. A filosofia abstrusa, ao contrrio,estando baseada numa predisposio que no participa davida dos negcios e da ao, esvanece-se quando o filsofodeixa a sombra e sai luz do dia; e no fcil que os p rincpi osdessa filosofia retenham alguma influncia sobre nossa conduta comportamento. Os sentimentos de nosso corao, aagitao de nossas paixes, a veemncia de nossos afetos dissipam todas as suas concluses e reduzem o filsofo profundo a um mero plebeu.

    4 Tambm preciso confessar que a fama mais duradoura,bem como mais justa, foi conquistada pela filosofia simples,e que os raciocinadores abstratos parecem te r gozado atagora de uma reputao apenas momentnea, devida aos caprichos ou ignorncia caractersticos de sua prpria poca,sem serem capazes de preservar seu renome diante de umaposteridade mais imparcial. fcil para um filsofo profundo cometer um engano em seus sutis raciocnios, e um engano necessariamente o gerador de outro; ele, entretanto,segue todas as conseqncias e no hesita em endossar qualquer concluso a que chegue, por mais inusitada ou conflitante com a opinio popular. No caso, porm, de um filsofo

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    cuja pretenso apenas representar o senso comum da humanidade em cores mais belas e mais atraentes, se ele incorreacidentalmente em erro, no prossegue na mesma direo,mas, apelando mais uma vez ao senso comum e aos sentimentos naturais do esprito, retorna ao caminho correto ese previne contra quaisquer iluses perigosa s. A fama de Ccero floresce no presente, mas a de Aristteles est completamente arruinada. La Bruyere atravessa os mares e aindamantm sua reputao, mas a glria de Malebranche estconfinada sua prpria nao e sua prpria poca. E Addison, talvez, ainda ser lido com prazer quando Locke estiverinteiramente esquecido.

    5 O filsofo puro um personagem que em geral no mui-to bem-aceito pelo mundo, pois supe-se que ele em nadacontribui para o proveito ou deleite da sociedade, ao viverlonge do contato com os seres humanos e envolvido comprincpios e idias no menos distantes da compreenso destes. Por outro lado, o mero ignorante ainda mais desprezado; e, em uma poca e nao em que florescem as cincias, noh sinal mais seguro de estreiteza de esprito que o de no sesentir minimamente atrado por esses nobres afazeres. desupor que o carter mais perfeito est situado entre esses extremos, exibindo aptido e gosto tanto pelos livros como pelaconvivncia social e pelos negcios, revelando, na conversao, o discernimento e a delicadeza que brotam da familiaridade com as belas-letras, e, nos negcios, a integridade e exatido que so o resultado natural de uma correta filosofia.Para difundir e cultivar um carter assim excelente, nadapode ser mais adequado do que obras em gnero e estilo acessveis, que no se afastem demasiado da vida, que no exijamexcessiva conce ntrao ou retraimento para serem compreen-

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    didas e que devolvam o estudante ao convvio dos homens,cheio de sentimentos generosos e munido de sbios preceitosaplicveis a todas as exigncias da vida humana. Por meio dessas obras, a virtude e a cincia tornam-se agradveis, a companhia, instrutiva e a prpria solido, aprazvel.

    6 O homem um ser racional e, como tal, r e ~ e b e da cinciaseu adequado alimento e nutrio. To estreitos, porm, soos limites do entendimento humano que pouca satisfaopode ser esperada nesse particular, tanto no tocante extenso quanto confiabilidade de suas aquisies. Alm de umser racional, o homem tambm um ser socivel, mas tampouco pode desfrutar sempre de companhia agradvel e divertida, ou continuar a sentir po r ela a necessria atrao. Ohomem tambm um ser ativo, e forado, por essa inclinao e pelas variadas necessidades da vida humana, a dedicar-seaos negcios e ofcios; mas a mente exige algum descanso eno pode corresponder sempre sua tendncia ao trabalho e diligncia. Parece, ento, que a natureza estipulou uma espcie mista de vida como a mais adequada aos seres humanos, e secretamente os advertiu a no permitir que nenhumadessas inclinaes se imponha excessivamente, a ponto de in capacit-los para outras ocupaes e entretenimentos. "Satisfaz tua paixo pela cincia", diz ela, "mas cuida para queessa seja uma cincia humana, com direta relevncia para aprtica e a vida social. O pensamento abstruso e as investigaes recnditas so por mim proibidos e severamente castigados com a pensativa tristeza que ensejam, com a infindvelincerteza em que sers envolvido e com a fria recepo dedicada a tuas pretensas descobertas, quando comunicadas. Sum filsofo, mas, em meio a toda tua filosofia, no deixes deser um homem."

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    7 Se o grosso da humanidade se contentasse em dar prefe-rncia filosofia simples em oposio abstrata e profunda,sem expressar nenhuma condenao ou desprezo em relao aesta ltima, no seria talvez imprprio aquiescer a essa opinio geral e no se opor a que cada qual busque satisfazer seuprprio gosto e opinio. Mas, comoa questo muitas vezeslevada mais longe, chegando mesmo absoluta rejeio de to dos os raciocnios mais aprofundados, ou daquilo que comumente se chama metafsica, passaremos agora a considerar oque se pode razoavelmente dizer em favor destes ltimos.

    8 Podemos comear observando que uma vantagem conside-rvel que resulta da filosofia exata e abstrata o auxlio queoferece filosofia simples e humana, a qual, sem a primeira, jamais poderia atingir um grau suficiente de exatido em suasopinies, preceitos e raciocnios. Todas as belas-letras nadamais so que retratos da vida humana em vrias atitudes e situaes, e inspiram-nos diversos sentimentos, de louvor oucensura, admirao ou ridculo, de acordo com as qualidadesdo objeto que nos apresentam. Para ter sucesso nessa empreitada, estar mais bem qualificado o artista que, alm de umgosto refinado e uma rpida compreenso, possua um conhecimento exato da constituio interna, das operaes do entendimento, do funcionamento das paixes e das vrias espcies de sentimentos que discriminam entre vcio e virtude.Po r mais penosa que possa parecer essa busca ou investigaointerior, ela se torna, em certa medida, um requisito paraaqueles que pretendem ter xito na descrio da aparncia visvel e exterior da vida e dos costumes. O anatomista pe-nosdiante dos olhos os objetos mais horrendos e desagradveis,mas sua cincia til ao pintor para delinear at mesmo umaVnus ou uma Helena. Mesmo quando emprega as cores

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    mais exuberantes de sua arte e d a suas figuras os ares maisgraciosos e atraentes, o artista deve manter sua ateno dirigida para a estrutura interna do corpo humano, para a posio dos msculos, o arranjo dos ossos e a funo e forma decada parte ou rgo do corpo. Em todos os casos, a exatido proveitosa para a beleza, assim como o raciocnio correto o para a delicadeza do sentimento; seria vo pretendermos exaltar um deles depreciando o outro.

    9 Podemos, alm disso, observar que, em todos os ofcios eocupaes, mesmo naqueles que mais de perto se relacionamcom a vida e a ao, um esprito de exatido, no importacomo adquirido, leva-os todos para mais perto de sua perfeio e torna-os mais teis aos interesses da sociedade. E embora um filsofo possa viver afastado dos assuntos prticos,o esprito caracterstico da filosofia, se muitos o cultivaremcuidadosamente, no poder deixar de se difundir gradualmente po r toda a sociedade e conferir uma similar exatido atodo ofcio e vocao. O poltico adquirir maior previdnciae sutileza na subdiviso e balano do poder, o causdico empregar princpios mais metdicos e refinados em seus arrazoados, e o general, mais regularidade em seus exerccios emais cautela em seus planos e operaes. A estabilidade dosgovernos modernos, em comparao aos antigos, e a precisoda moderna filosofia tm-se aperfeioado e provavelmenteiro ainda se aperfeioar por gradaes similares.

    10 Ainda que desses estudos no se viesse a colher outra van-tagem que no a satisfao de uma inocente curiosidade, mesmo isso no deveria ser desprezado, pois oferece um acessoaos poucos prazeres seguros c inofensivos conferidos raahumana. O caminho mais agradvel c pacfico na vida o que

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    lugar a esperanas e expectativas demasiado otimistas . O raciocnio exato e justo o nico remdio universal, apropriadopara todas as pessoas e todas as inclinaes, e s ele capaz desubverter a filosofia abstrusa e o jargo metafsico que, mistu-rados superstio popular, tornam-na de certo modo inexpugnvel aos argidores negligentes, e emprestam-lhe ares decincia e sabedoria.

    13 Alm dessa vantagem de rejeitar, aps uma investigaoponderada, a parte mais incerta e desagradvel do aprendizado, h muitas vantagens positivas que resultam de um exameminucioso dos poderes e faculdades da natureza humana.Com relao s operaes da mente, notvel que, embora sejam as que se apresentam a ns de maneira mais ntima, parecem envolver-se em obscuridade sempre que se tornam objeto de reflexo, e no visualizamos prontamente as linhas econtornos que as demarcam e distinguem. Os objetos so demasiado tnues para permanecerem po r muito tempo com omesmo aspecto e na mesma situao, e devem ser apreendidosinstantaneamente por uma perspiccia superior, derivada danatureza e aperfeioada pelo hbito e pela reflexo. Consti-tui, assim, uma parte nada desprezvel da cincia a mera tarefade reconhecer as diferentes operaes da mente, distingui-lasumas das outras, classific-las sob os ttulos adequados ecorrigir toda aquela aparente desordem na qual mergulhamquando tomadas como objetos de pesquisa e reflexo. Essatarefa de ordenar e distinguir, que no tem mrito quandoexercida sobre objetos externos, os objetos de nossos senti-dos, cresce em valor quando dirigida para as operaes do en-tendimento, proporcionalmente ao esforo e dificuldadeque exige de ns para sua realizao. E se no pudermos irmais alm dessa geografia mental, ou delineamento das dife-

    rentes partes e poderes da mente, chegar at l j ter sidouma satisfao; e quanto mais bvia essa cincia vier a parecer(e ela no de modo algum bvia), mais censurvel ainda sedever julgar seu desco nhecimento por parte daqueles que aspiram ao saber e filosofia.

    14 Tampouco pode restar alguma suspeita de que essa cinciaseja incerta ou quimrica, a menos que alimentemos um ceticismo to completo que subverta inteiramente toda especulao e, mais ainda, toda a ao. N o se pode pr em dvida quea mente est dotada de vrios poderes e faculdades, que essespoderes so distintos uns dos outros, que aquilo que se apresenta como realmente distinto percepo imediata pode serdistinguido pela reflexo, e, conseqentemente, que existeverdade e falsidade em todas as proposies acerca deste assunto, e uma verdade e uma falsidade que no esto fora dombio do entendimento humano. H muitas distines b-vias dessa espcie que esto ao alcance da compreenso detoda criatura humana, tais como aquelas entre a vontade e oentendimento, entre a imaginao e as paixes; e as distinesmais sutis e filosficas no so menos reais c certas, emboramais difceis de compreender. Alguns exemplos, especialmente os mais recentes, de sucesso nessas investigaes po-dem dar-nos uma idia mais precisa da certeza e solidez dessecampo de estudos. E deverfamos porventura considerar digno do trabalho de um filsofo fornecer-nos o verdadeiro sistema dos planetas e conciliar a posio e a ordem desses corposlongnquos, ao mesmo tempo que simulamos desconheceraqueles que com tanto sucesso delineiam as partes da menteque de to perto nos dizem respeito?

    15 Mas no nos se d lfcito esperar que a filosofia, cultivadacom esmero e encorajada pela ateno do pblico, possa avan-

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    ar ainda mais em suas pesquisas e revelar, pelo menos atcerto ponto, os mveis e princpios ocultos que impulsionama mente humana em suas aes? Os astrnomos por muitotempo se contentaram em deduzir dos fen menos visveis osverdadeiros movimentos, ordem e magnitude dos corpos celestes, at surgir finalmente um filsofo que, pelos mais afortunados raciocnios, parece ter determinado tambm as leis eforas que governam e dirigem as revolues dos planetas.Resultados semelhantes tm sido alcanados em outros domnios da natureza, e no h razo para no esperarmos umigual sucesso em nossas investigaes acerca dos poderes eorganizao da mente, se levadas a cabo com a mesma competncia e precauo. provvel que uma dada operao ouprincpio da mente dependa de um outro, o qual, por sua vez,possa reduzir-se a um princpio ainda mais geral e universal, eno fcil determinar exatamente, antes ou at mesmo depoisde uma cuidadosa experimentao, at onde essas investigaes podem ser levadas. certo que todos os dias tentativasdesse tipo so feitas, mesmo por aqueles que filosofam daforma mais negligente, mas o que acima de tudo se requer que o empreendimento seja conduzido com total cuidado eateno, para que, se estiver ao alcance do entendimento humano, possa po r fim alcanar um resultado favorvel, e se noestiver, possa, por outro lado, ser rejeitado com alguma certeza e segurana. Essa ltima concluso certamente no desejvel, nem deve ser aceita de maneira precipit ada, pois grande a perda que ela traz para o valor e o enc anto dessa espciede filosofia. Os tericos da moral, ao considerarem a vastamultido e diversidade das aes capazes de excitar nossaaprovao ou antipatia, acostumaram-se at agora a procuraralgum princpio comum do qual esta variedade de sentimen-

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    tos pudesse depender. E, embora algumas vezes tenham idolonge demais em sua paixo por um princpio geral nico, deve-se reconhecer que desculpvel essa sua expectativa dedescobrir alguns princpios gerais aos quais todos os vcios evirtudes pudessem ser adequadamente reduzidos. Esforossemelhantes tm sido realizados po r tericos nos campos dasartes, da lgica e mesmo da poltica, e suas tentativas no resultaram totalmente malsucedidas, embora talvez um tempomais longo, uma maior exatido e uma dedicao mais intensa possam trazer essas cincias para ainda mais perto de suaperfeio. Renunciar imediatamente a todas as expectativasdessa espcie pode ser com razo classificado como maisbrusco, precipitado e dogmtico que a mais ousada e afirmativa filosofia que j tenha tentado impor suas rudes doutrinase princpios humanidade.

    16 N o h nada de mais no fato de que estes raciocnios acer-ca da natureza humana paream abstratos e de difcil compreenso. Isso no sinal de que sejam falsos, antes o contrrio:parece impossvel que aquilo que at agora tem escapado atantos filsofos sbios e profundos possa ser algo muitosimples e evidente. E po r mais penosas que nos sejam essasinvestigaes, poderemos nos considerar suficientemente recompensados, no apenas quanto ao proveito, mas tambmqu.mto ao prazer, se por meio delas formos capazes de trazerlJUlii.Jllt'r acrscimo ao nosso inventrio de conhecimentos,em auuntus de to extraordinria importncia.

    17 Como, p n r ~ m , o carter abstrato de tais especulaes noconstitui, afinal, uma recomendao, mas antes uma desvantagem, c como rssa dificuldade talvez possa ser superada peladedicao c habilidadr, l' prL1 rxcluso de todo detalhe ines-

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    sencial, procuramos na investigao que se segue lanar algu-ma luz sobre assuntos dos quais a incerteza at agora afugento u os sbios e a obscuridade, os ignorantes. Dar-nos-emospo r felizes se pudermos unir as fronteiras das diferentes es-pcies de filosofia, reconciliando a investigao aprofundadacom a clareza, e a verdade com a inovao. E po r mais felizesainda se, ao raciocinar dessa maneira descomplicada, formoscapazes de minar as fundaes de uma filosofia abstrusa queparece ter servido at agora apenas como abrigo para a superstio e como anteparo para o erro e a absurdidade.

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    Seo 2Da origem das idias

    To dos admitiro prontamente que h uma considerveldiferena entre as percepes da mente quando um homemsente a dor de um calor excessivo ou o prazer de uma tepidezmoderada, e quando traz mais tarde essa sensao sua memria, ou a antecipa pela sua imaginao. Essas faculdadespodem imitar ou copiar as percepes dos sentidos, mas ja-mais podem atingir toda a fora e vivacidade da experinciaoriginal. Tudo o que podemos dizer delas, mesmo quandooperam com o mximo vigor, que representam seu objetode uma maneira to vvida que quase podemos dizer que o ve-mos ou sentimos. Excetuando-se, porm, os casos em que amente est perturbada pela doena ou loucura, nunca se atinge um grau de vivacidade capaz de tornar completamente indistinguveis essas percepes. To das as cores da poesia, po resplndidas que sejam, no sero jamais capazes de retratar osobjetos de tal maneira que se tome a descrio po r um a paisagem real, e o mais vvido pensamento ser sempre inferior mais obtusa das sensaes.

    Podemos observar que uma distino semelhante percorretodas as demais percepes da mente. Um homem tomado de

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    um acesso de fria afetado de maneira muito -diferente de umoutro que apenas pensa nessa emoo. Se voc me diz queuma certa pessoa est enamorada, eu entendo facilmente oque voc quer dizer e formo uma idia adequada da situaodessa pessoa, mas jamais confundiria essa idia com os tu multos e agitaes reais da paixo. Quando refletimos sobrenossas experincias e afeces passadas, nosso pensamentoatua como um espelho fiel e copia corretamente os objetos,mas as cores que emprega so plidas e sem brilho em comparao com as que revestiram nossas percepes originais. Nose requer um refinado discernimento nem grande aptidometafsica para perceber a diferena entre elas.

    3 Em conseqncia, podemos aqui dividir todas as percep-es da mente em duas classes ou espcies que se distinguempor seus diferentes graus de fora e vivacidade. As que somenos fortes e vivazes so comumente denominadas pensa-mentos ou idias. A outra espcie carece de nome em nossa lngua, assim como na maioria das outras, e suponho que isto sed porque nunca foi necessrio para qualquer propsito, exceto os de ordem filosfica, agrup-las sob algum termo oudenominao geral. Vamos ento tomar uma pequena liberdade e cham-las impresses, empregando a palavra num sentido um pouco diferente do usual. Entendo pelo termo impres-so, portanto, todas as nossas percep es mais vvidas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ouodiamos, ou desejamos ou exercemos nossa vontade. E impresses so distintas das idias, que so as percepes me nos vvidas, das quais estamos conscientes quando refletimos sobre quaisquer umas das sensaes ou atividades jmencionadas.

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    4 Nada, primeira vista, pode parecer mais ilimitado que opensamento humano, que no apenas escapa a todo poder eautoridade dos homens, mas est livre at mesmo dos limitesda natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as maisincongruentes formas e aparncias no custa imaginaomais esforo do que conceber os objetos mais naturais e familiares. E enquanto o corpo est confinado a um nico planeta, sobre o qual rasteja com dor e dificuldade, o pensamento pode instantaneamente transportar-nos s mais distantesregies do universo, ou mesmo para alm do universo, at ocaos desmedido onde. se supe que a natureza jaz em totalconfuso. Aquilo que nunca foi visto, ou de que nunca se ouviu falar, pode ainda assim ser concebido; e nada h que estejafora do alcance do pensamento, exceto aquilo que implicauma absoluta contradio.

    5 ~ a s , embora nos.so pensamento parea possuir essa liber-dade ilimitada, um exame mais cuidadoso nos mostrar queele est, na verdade, confinad o a limites bastante estreitos, eque todo esse poder criador da mente consiste meramente nacapacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experincia nos fornecem. Quandopensamos em uma montanha de ouro, l'Stamos apenas juntando duas idias consistentes, ouro e ltlontanba, com as quaisestvamos anteriormente familiarizados. Podemos conceberum cavalo virtuoso, pois podemos conceber a virtude a partirde nossos prprios sentimentos, e podemos uni-la forma efigura de um cavalo, animall]UC nos familiar. Em suma, todos os materiais do pensamento so derivados da sensaoexterna ou interna, c mente c ;\ vontade compete apenasmisturar e compor esses llliltctiais. Ou , para expressar-me emlinguagem filosfica, todas as nossas idias, ou percepes

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    mais tnues, so cpias de nossas impresses, ou percepesmais vvidas.

    6 Para prov-lo, bastaro, espero, os dois argumentos se-guintes. Em primeiro lugar, quando analisamos nossos pensamentos ou idias, por mais complexos ou grandiosos quesejam, sempre verificamos que eles se decompem em idiassimples copiadas de alguma sensao ou sentimento precedente. Mesmo aquelas idias que, primeira vista, parecem asmais afastadas dessa origem revelam-se, aps um exame maisdetido, dela derivadas. A idia de Deus, no sentido de um Serinfinitamente inteligente, sbio e bondoso, surge da reflexo sobre asoperaes de nossa prpria mente e do aumento ilimitadodessas qualidades de bo ndade e sabedoria. Podemos prosseguir o quanto quisermos nessa investigao, e para cada idiaque examinarmos sempre descobriremos que ela copiada deuma impresso semelhante. Aqueles que desejarem declararque essa proposio no universalmente verdadeira, ou queadmite excees, s dispem de um mtodo para refut-la,que de resto simples: apresentar alguma idia que, em suaopinio, no derive dessa fonte. Caber ento a ns, se quisermos sustentar nossa doutrina, exibir a impresso, isto , apercepo vvida, que a ela corresponde.

    7 Em segundo lugar, quando um homem no pode, po r al-gum defeito orgnico, experimentar sensaes de uma certaespcie, sempre verificamos que ele igualmente incapaz deformar as idias correspondentes. Um cego no pode ter noo das cores, nem um surdo dos sons. Restitua-se a qualquerum deles o sentido em que deficiente, e, ao se abrir essenovo canal de entrada para suas sensaes, tambm se estarabrindo um canal para as idias, e ele no ter dificuldades

    para conceber esses objetos. O mesmo ocorre quando o objeto apropriado para provocar uma certa sensao nunca foiposto em contato com o rgo: um lapo ou um negro notm idia do sabor do vinho. E embora haja poucos ou nenhum exemplo de uma semelhante deficincia no domniomental, em funo da qual uma pessoa nunca tivesse experimentado ou fosse inteiramente incapaz de experimentar umapaixo ou sentimento prprio de sua espcie, vemos que amesma observao continua vlida em menor grau: um homem de ndole serena no pode formar idia de uma crueldade ou esprito de vingana arraigados, e tampouco fcil par aum corao egosta conceber os cumes da amizade e generosidade. Admite-se prontamente que outros seres podem disporde muitos sentidos que no podemos conceber, porque asidias deles nunca nos foram apresentadas da nica forma .pela.qual uma idia pode ter acesso mente, a saber, por umefetivo sentimento ou sensao.

    8 H, porm, um fenmeno contraditrio que pode provarque no absolutamente impossvel o aparecimento de idiasindependentemente de suas correspondentes impresses.Acredito que se admitir facilmente que as diversas idiasdistintas de cor que entram pelos olhos, ou as idias de somcomunicadas pelo ouvido, so realmente distintas umas dasoutras, embora ao mesmo tempo assemelhadas. Ora, se issoocorre no caso de cores diferentes, tambm ocorrer no casode tonalidades diferentes da mtsma cor, cada tonalidade produzindo uma idia distinta, independente das demais. Pois seisso fosse negado, seria possvel, pela gradao contnua detons, transformar insensivelmente uma cor naquela que lhe mais remota; e, se no se admitir que alguns dos tons inter-

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    medirios seJam diferentes, no se poder consistentementenegar que os extremos sejam iguais. Suponhamos, ento, queuma pessoa usufruiu sua viso durante trinta anos e se familiarizou perfeitamente com cores de todos os tipos, com exceo, digamos, de uma particular tonalidade de azul, com aqual nunca teve a ventura de deparar. Suponhamos que todasas diferentes tonalidades dessa cor, com exceo daquela nica, sejam dispostas diante dessa pessoa, descendendo gradualmente da mais escura para a mais clara; claro que ela perceber um espao vazio onde falta aquele tom, e perceber quenaquele lugar h, entre as cores contguas, uma distncia maiorque em qualquer outro lugar. Pergunto agora se lhe seria possvel suprir essa falta a partir de sua prpria imaginao e traze r sua mente a dia daquela tonalidade particular, emboraesta jamais lhe tenha sido transmitida pelos sentidos. Acredito que poucos negaro que isso seja possvel, o que pode servir como prova de que as idias simples nem sempre so, emtodos os casos, derivadas das impresses correspondentes,embora esse exemplo seja to singular que quase no vale apena examin-lo, e tampouco merece que, apenas po r sua causa, venhamos a alterar nossa tese geral.

    9 Eis aqui, portanto, uma proposio que no apenas parecesimples e inteligvel em si mesma, mas tambm capaz, seapropriadamente empregada, de esclarecer igualmente todas asdisputas e banir todo aquele jargo que por tanto tempo temdominado os arrazoados metafsicos e lhes trazido desgraa.Todas as idias, especialmente as abstratas, so naturalmentefracas e obscuras: o intelecto as apreende apenas precariamente, elas tendem a se confundir com outras idias assemelhadas, e mesmo quando algum termo est desprovido de umsignificado preciso, somos levados a imaginar, quando o em-

    pregamos com freqncia, que a ele corresponde uma idia determinada. Ao contrrio, todas as impresses, isto , todas assensaes, tant o as provenientes do exterior como as do interior,so fortes e vvidas; os limites entre elas esto mais precisament e definidos, e no fcil, alm disso, incorrer em qualquererro ou engano relativamente a elas. Portanto, sempre que alimentarmos alguma suspeita de que um termo filosfico estejasendo empregado sem nenhum significado ou idia associada(como freqentemente ocorre), precisaremos apenas indagar:de que impresso deriva esta suposta idia? E se for impossvel atribuir-lhe qualquer impresso, isso servir para confirmar nossasuspeita. Ao expor as idias a uma luz to clara, podemos alimentar uma razovel esperana de eliminar todas as controvrsias que podem surgir acerca de sua natureza e realidade.

    1 E provvel que aqueles que negaram a existncia de idias inatasestivessem apenas querendo dizer que todas as idias so cpias denossas impresses, embora se deva confessar que os termos que empregaram no foram es colhidos com a cautela necessria nem definidos to precisamente de forma a evitar todo engano acerca de suadoutrina. Pois o que se quer dizer com inato? Se inato equivalente anatural, ento todas as percepes e idias da mente devem ser admitidas como inatas ou naturais, qualquer Llue seja o sent ido que se d aessa ltima palavra, em oposio ta nto ao que incomum quanto aoque artificial ou ao que milagroso. Se por inato se entender contt.m-porneo ao nosso nascimento, a disputa p;m:ce serfrfvola, e no vale multoa pena investigar em que poca c o m r ~ a o pensamento, se antes, durante ou depois de nosso nascimento. Alm disso, a palavra idia parece ter sido tomada usualmente num sentido muito amplo por Locke eoutros, como significando qualquer uma de nossas percepes, nossas sensaes e paixes, bem como pensamentos. Ora, nesse sentido:eu desejaria saber o que: pode significar a assero de que o am or de SImesmo, o ressentimento pdas injrias ou a paixo entre os sexos no inata.

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    Mas admitindo-se esses termos, impresses e idias, no sentido j explicado, e entendendo por inato aquilo que original, ou que no copiado de nenhuma impresso precedente, ento podemos asseverarque todas as nossas impresses so inatas e nossas idias no o so.

    Para falar francamente, devo confessar minha opinio de que, nessaquesto, Locke caiu na armadilha dos escolsticos, os quais, ao fazerem uso de termos no-definidos, alongam tediosamente suas disputas sem jamais tocar no ponto em questo. Semelhantes ambigidades e circunlquios parecem percorrer os raciocnios daquele filsofoneste como na maioria dos outros assuntos.

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    Seo 3Da associao de idias

    evidente que h um princpio de conexo entre os diversos pensamentos ou idias da mente, e que, ao surgirem memria ou imaginao, eles se introduzem uns aos outroscom, um certo grau de mtodo e regularidade. Isso to marcante em nossos raciocnios e conversaes mais srios quequalquer pensamento particular que interrompa o fluxo ouencadeamento regular de idias imediatamente notado e rejeitado. Mesmo em nossos devaneios mais desenfreados e errantes - e no somente neles, mas at em noss os prprios sonhos-, descobriremos, se refletirmos, que a imaginao nocorreu inteiramente solta, mas houve uma ligao entre asdiferentes idias que se sucederam umas s outras. Se a maisnegligente e indisciplinada das conversas fosse transcrita, observar-se-ia imediatamente algo que a manteve coesa em cadauma de suas transies. Ou, se isso estiver ausente, a pessoaque quebrou o fio da discusso poderia ainda informar-nosque uma sucesso de pensamentos percorrera secretamentesua mente, levando-a gradualmente a afastar-se do assunto daconversao. Entre.- difcrrntrs linguagens, mesmo quando

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    6 Como essa regra no admite nenhuma exceo, segue -seque, em composies narrativas, os acontecimentos ou aesque o escritor relata devem estar conectados po r algum vnculo ou liame. Eles devem relacionar-se uns aos outros naimaginao e formar uma espcie de unidade, que permite subsumi-los a um nico plano ou perspectiva, e que pode ser oobjetivo ou fim visado pelo escritor em seu esforo inicial.

    7 Esse princpio de conexo dos diversos acontecimentosque formam o assunto de um poema ou histria pode variarem muito, conforme os diferentes objetivos do poeta ou historiador. Ovdio baseou seu plano no princpio de conexopo r semelhana. Todas as fabulosas transformaes produzidas pelo poder milagroso dos deuses caem sob o escopo deseu trabalho. Basta esta nica circunstncia, em qualqueracontecimento, para subsumi-lo ao plano ou intenooriginal do escritor.

    8 Um analista ou historiador que se propuses se a escrever ahistria da Europa em um determinado sculo seria influenciado pela conexo de contigida de em tempo e lugar. Todosos eventos ocorridos naquela poro de espao e naquele perodo de tempo faro parte de seu projeto, mesmo que sob outros aspectos sejam distintos e desconectados. Em meio a todasua diversidade, h um tipo de unidade que eles preservam.

    9 Mas a espcie mais usual de conexo entre os diferentesacontecimentos que figuram em qualquer composio narrativa a de causa e efeito, pela qual o histo riado r traa a seqncia de aes de acordo com sua ordem natural, remonta a suasmolas e princpios secretos, e delineia suas mais remotas conseqncias. Ele escolhe como seu assunto uma certa porodessa grande cadeia de eventos que compem a histria da

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    humanidade e, em sua narrativa, esfora-se po r abordar cadaelo dessa cadeia. Algumas vezes, uma inevitvel ignornciatorna infrutferos todos os seus esforos; outras vezes, elesupre conjeturalmente o que falta em conhecimento, e estsempre consciente de que quanto mais coesa a cadeia queapresenta a seu leitor, mais perfeito o trabalho que produziu. Ele v que o conhecimento das causas no apenas omais satisfatrio, j que essa relao ou conexo a mais forte de todas, mas tambm o mais instrutivo, pois esse o nico conhecimento que nos capacita a controlar eventos e governar o futuro.

    10 Aqui, portanto, podemos formar uma certa idia dessadade de a{o, da qual todos os crticos, seguindo Aristteles,tanto tm falado, e talvez com pouco proveito, ao no guiarem seu gosto ou sentimento pela exatido da filosofia. Parece 'que, em todas as produes, assim como nos gnerospico e trgico, uma certa unidade requerida, e que em nenhum momento se pode permitir que nossos pensamentoscorram solta, se quisermos produzir um trabalho capaz deproporcionar um entretenimento duradouro para a humanidade. Parece tambm que mesmo um bigrafo que fosse escrever a vida de Aquiles iria conectar os acontecimentos,mostrando suas relaes e dependncia mtuas, tanto quanto um poeta que fosse fazer da ira desse heri o assunto desua narrativa. 4 As aes de um homem mantm entre si uma

    4 Contrariamente a Aristteles: u 9 o ~ 3'ecrnv de;, oux CCJ1tEp nvec;o\ov'tat, e v 1tEpt eva fi. 1tO..a yap x:at .1tEtpa 'tql yVEt( J ' \ ) ~ ~ a VEl., e!; rov EVCOV ouav E

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    gem do pen;amento ou imaginao de um para outro, tambm facilita a transio das paixes e mantm as afeces nomesmo canal e direo. Nossa simpatia e preocupao po rEva prepara o caminho para uma simpatia semelhante porAdo: a afeco se preserva quase intei rament e na transio ea mente apreende imediatamente o novo objeto como fortemente relacionado ao que anteriormente atraa sua ateno.Mas, se o poeta fizesse uma completa digresso de seu assunto e introduzisse um novo ator sem nenhuma ligao com ospersonagens, a imaginao, percebendo uma lacuna na transi o, adentraria com frieza a riova cena, s se estimulando mui,..to lentamente, e, quando retornasse ao assunto central do poema, estaria por assim dizer em solo estranho, necessitando te rsua ateno novamente estimulada para poder acompanhar osatores principais. O mesmo inconveniente segue-se em graumenor quando o poeta remonta seus acontecimentos a umperodo muito distante e emparelha aes que, embora nointeiramente disjuntas, no apresentam uma conexo forte obastante para favorecer a transio das paixes. Surge da oartifcio da narrativa oblqua, empregada na Odissia e na n e i ~da, em que o heri inicialmente apresentado prximo consecuo de seus desgnios e posteriormente nos revela, comoque em perspectiva, as causas e eventos mais distantes. Comesse mtodo excita-se de imediato a curiosidade do leitor: oseventos seguem-se com rapidez e em estrei ta conexo, a ateno mantm- se viva e, por meio da relao prxima dos objetos, cresce continuamente do comeo ao fim da narrativa.

    13 A mesma regra vale para a poesia dramtica, no se permi-tindo, em uma composio regular, a introduo de um atorque tenha pouca ou nenhuma relao com os personagens

    principais do enredo. A ateno do espectador no deve serdesviada po r cenas disjuntas e sep;tradas das demais; isso interrompe o curso das paixes c impede aquela comunicaode diferentes emoes l]UC faz que uma cena reforce outra etransmita a piedade e o terror por ela excitados para cada umadas cenas subseqentes, at que o todo exiba aquele rpidofluxo de emoes to caractedstico do teatro. Esse ardor dosafetos seria extinto se depadsscmos subitamente com umanova ao e novos personagens de nenhum modo relacionados aos anteriores; se encontr;bscmos Utlll brecha ou vazioto perceptveis no curso das paixes, acsultante d;tquela brecha na conexo de idias; c se, em vez de conduzir a simpatiade uma cena seguinte, fssemos ubl'ig;tdos, a c;tdn instante,a convocar um novo intenssl e a particip;tr de uma nova situa,o dramtica.

    14 Para voltar comparao da histri a cnm a poesia pica, osraciocnios precedentes pcrmitrm-nos cnnduir lllll', comouma certa unidade requerida l'lll todas l!'i Jll'nducs, da nopode, menos ainda que em l]Ulllparr uutm c;um, estar ausenteda histria; que a conexo entre.- ns divri'!Hlll 1\contccimcntosque os une em um s corpo a r c l a ~ n de Cl\usa c efeito, amesma conexo que tem lugaa na pur11iil fpicA; e que, nesta ltima espcie de composio, rssa cnnedo deve ser mais es treita e mais perccptfvcl aprna11 rm f'tmo da imaginao vvidae das fortes paixrs l]UC' drvrm sr r estimuladas pelo poeta emsua narrao. A gurrra du Prlnponcso um assunto adequadopara a histria, o Cl'rcn de Atenils, p ~ t m um poema pico, e amorte de Alcebfadrs, para uma tragdia.

    15 Como a diferena, portanto, entre histria e poesia picaconsiste apenas nos graus dr conexo que aglutinam os diver-

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    sos acontecitiJ.entos que compem seu assunto, ser difcil, seno mesmo impossvel, determinar verbalmente de maneiraexata as fronteiras que separam esses dois gneros. Esta urna questo de gosto, mais que de raciocnio, e talvez essaunidade possa muitas vezes revelar-se em urna temtica naqual, primeira vista, e por urna considerao abstrata, me-nos esperaramos encontr-la.

    16 evidente que Homero, no curso de sua narrativa, foialm do terna que tinha inicialmente proposto, e que a ira deAquiles que causou a morte de Heitor no a mesma quetrouxe tantos males aos gregos. Mas a forte ligao entre essas duas emoes, a rpida transio de urna a outra, o con-traste5 entre os efeitos da concrdia e da discrdia entre osprncipes, e a curiosidade natural que ternos de ver Aquilesem ao depois de um repouso to prolongado, todas essascausas atuam no leitor e criam urna suficiente unidade noassunto.

    17 Pode-se objetar a Milton que ele foi muito longe no traa-do de suas causas, e que a rebelio dos anjos produz a quedado homem por urna sucesso de eventos que ao mesmo tem-po muito longa e muito fortuita, para no mencionar que acriao do mundo, da qual ele d um extenso relato, no acausa dessa catstrofe mais do que da batalha de Farslia oude qualquer outro evento j ocorrido. Mas se considerarmos,por outro lado, que esses eventos todos: a rebelio dos anjos,5 Contraste, ou oposio, uma conexo entre idias que pode talvezser considerada c omo uma mi stura de causao e semelhana. Quandodois objetos so contrrios, um destri o outro; isto , a causa de suaaniquilao, e a idia da aniquilao de um objeto implica a idia desua existncia anterior.

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    a criao do mundo e a queda do homem s s e m e l h a m ~ se uns aosoutros por serem miraculosos e estarem fora do curso ordi-nrio da natureza; que eles so considerados contguos no tem-po; e que, estando desconectados de todos os outros eventose sendo os nicos fatos originais dados a conhecer pela revelao, chamam de imediato a ateno e evocam-se natural-mente uns aos outros no pensamento ou na imaginao; seconsiderarmos todas essas circunstncias, eu dizia, descobriremos que essas partes da ao exibem urna unidade suficiente para que se possa subsurni-las a um nico enredo ou narrativa. Ao que se poderia acrescentar que a rebelio dos anjos ea queda do homem tm urna semelhana peculiar, po r serem acontrapartida urna da outra e por apresentarem ao leitor amesma moral de obedincia a nosso Criador.

    18 Reuni estas vagas indicaes para estimular a curiosidadedos filsofos e produzir, se no um pleno convencimento,pelo menos a suspeita de que este um assunto muito vasto,e que muitas operaes da mente humana dependem da conexo ou associao de idias at]Ui txplicada. Em tspccial, a afinidade entre as paixes c a imaginao pudr aparecer comoalgo notvel, ao observarmos tluc as afeces excitadas porum objeto passam facilmente para uuuo objeto conectado aoprimeiro, mas no se transferem, ou s6 com dificuldade, en::-tre objetos distintos que no estrjam conrctados de nenhummodo. Ao introduzir em t]ualt]lll"l' composi o p erson agens eaes estranhos uns aos outros, um autor pouco judiciosope a perder aquela comunicao de emoes que seu nicomeio de cativar o corao r de elrv;tr as paixes a seu nvel eculminao apropriados. A rxplicao completa deste prin-cpio e de todas as suas cunset]encias levar-nos-ia a racioc-

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    nios demasiado vastos e profundos para esta investigao. suficiente, por ora, ter estabelecido a concluso de que os trsprincpios que conectam todas as idias so as relaes de se-melhana, contigidade e causao. Seo 4Dvidas cticas sobre as operaes

    do entendimento

    Parte I1 Todos os objetos da razo ou investigao humanas po-dem ser naturalmente divididos em dois tipos, a saber, relaes

    de idias e questes de jato. Do primeiro tipo so as cincias da geometria, lgebra e aritmtica, c, em suma, toda afirmao que intuitiva ou demonstrativamente certa. Qut oquadrado da hipo-tenusa igual ao quadrado dos dois lados uma proposio que expressa uma relao entre essas grandezas. Qut tris vtzts cinco igual metade de trinta expressa uma rdao entre esses nmeros. Proposies desse tipo podem sea descobertas pela simples operao do pensamento, independentemente do quepossa existir em qualquer parte.- do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um drculo ou tri5ngulo na natureza,as verdades demonstradas por Euclides conservariam parasempre sua certeza e evidncia.

    2 Questes de fato, que so o segundo tipo de objetos da ra-zo humana, no so apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidncia de sua verdade, por grande que seja, da

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    mem dotado das mais poderosas capacidades naturais de raciocnio e percepo - se esse objeto for algo de inteiramentenovo para ele, mesmo o exame mais minucioso de suas qualidades sensveis no lhe permitir descobrir quaisque r de suascausas ou efeitos. Ado, ainda que supuss semos que suas faculdades racionais fossem inteiramente perfeitas desde o in-cio, no poderia ter inferido da fluidez e transparncia dagua que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogoque este poderia consumi-lo. Nenhum objeto jamais revela,pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causasque o produziram, nem os efeitos que dele proviro; e tam-pouco nossa razo capaz de extrair, sem auxlio da experincia, qualquer concluso referente existncia efetiva de coisas ou questes de fato.

    7 Essa proposio de que causas eefeitos so descobertos no pela ra-zo, mas pela experincia ser facilmente aceita com relao a ob-jetos de que temos a lembrana de nos terem sido outroracompletamente desconhecidos, dado que estamos com certeza conscientes de nossa total inabilidade, na ocasio, de pre-ver o que deles resultaria. Apresente a um homem no versado em filosofia natural duas peas lisas de mrmore: elejamais descob rir que elas iro aderir uma outra de tal maneira que uma grande fora requerida para separ-las aolongo de uma linha perpendicular s superfcies em contato,embora seja mnima a resistncia que oferecem a uma pressolateral. Tambm se admite prontamente, no caso de fenmenos que mostram pouca analogia com o curso ordinrio danatureza, que eles s podem ser conhecidos por meio da experincia, e ningum imaginaria que a exploso da plvora oua atrao do magneto pudessem jamais ter sido descobertaspor argumentos a priori. De maneira semelhante, quando se

    supe que um efeito depende de um complicado mecanismoou estrutura secreta de partes, no temos dificuldade em atri-buir experincia todo o conhecimento que temos dele.Quem se apresentar como capaz de fornecer a razo ltimapela qual po e leite so alimentos apropriados para um serhumano, mas no para um leo ou tigre?

    8 Mas essa mesma verdade pode no parecer, primeira vis-ta, dotada da mesma evidncia no caso de-acontecimentos quenos so familiares desde que viemos ao mundo, que apresentam uma ntima analogia com o curso geral da natureza, e quesupomos dependerem das qualidades simples de objetos semnenhuma estrutura secreta de partes. No caso desses efeitos,tendemos a pensar que poderamos descobri-los pela meraaplicao de nossa razo, sem recurso experincia. Imaginamos que, se tivssemos sido trazidos de sbito a este mundopoderamos ter inferido desde o incio que uma bola de bilha:iria comunicar movimento a uma outra por meio do impulso,e que no precisaramos ter aguardado o resultado para nospronunciarmos com certeza acerca dele. Tal(: a influncia dohbito: quando ele mais forte, no apenas tncobrc nossa ignorncia, mas chega a ocultar a si prprio, r parece no estarpresente simplesmente porque existt no mais alto grau.

    9 Para convencer-nos, entretanto, de llliC rodas as leis da na-tureza e todas as operaes dos corpos, sem exceo, so conhecidas apenas por meio da cxprriencia, bastaro talvez asseguintes reflexes. Se um objeto nos fosse :tpresentado e fssemos solicitados a nos pronunciar, sc:m consulta observaopassada, sobre o efeito

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    como seu efeito, e bvio que essa inveno ter de ser inteiramente arbitrria. O mais atento exame e escrutnio no permite mente encontrar o efeito na suposta causa, pois o efeito totalmente diferente da causa e no pode, conseqentemente, revelar-se nela. O movimento da segunda bola de bilhar um acontecimento completamente distinto do movimentoda primeira, e no h nada em um deles que possa fornecer amenor pista acerca do outro. Uma pedra ou uma pea de metal, erguidas no ar e deixadas sem apoio, caem imediatamente;mas, considerando-se o assunto a priori, haveria porventuraalgo nessa situao que pudssemos identificar como produzindo a idia de um movimento para baixo e no para cima,ou outro movimento qualquer dessa pedra ou pea de metal?

    10 E como em todas as operaes naturais a primeira imagi-nao ou inveno de um efeito particular arbitrria quandono se consulta a experincia, devemos avaliar do mesmomodo o suposto elo ou conexo entre causa e efeito que osliga entre si e torna impossvel que algum outro efeito possaresultar da operao daquela causa. Quando vejo, por exemplo, uma bola de bilhar movendo-se em linha reta em direoa outra, mesmo supondo-se que o movimento da segundabola seja acidentalmente sugerido minha imaginao comoresultado de seu contato ou impulso, no me seria porventura possvel c,onceber uma centena de outros diferentes resultados que se seguem igualmente bem daquela causa? No poderiam ambas as bolas permanecer em absoluto repouso?No poderia a primeira bola recuar em linha reta ou saltarpara longe da segunda em qualquer curso ou direo? Todasessas supo sies so consistentes e concebveis. Por que, ento, deveramos dar preferncia a uma suposio que no mais consistente ou concebvel que as demais? Todos os nos-

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    sos raciocnios a priori sero para sempre incapazes de nosmostrar qualquer fundamento para essa preferncia.

    11 Em uma palavra, portanto: todo efeito um acontecimen-to distinto de sua causa. Ele no poderia, por isso mesmo, serdescoberto na causa, e sua primeira inveno ou concepo apriori deve ser inteiramente arbitrria. E mesmo aps ter sidosugerido, sua conjuno com a causa deve parecer igualmentearbitrria, pois h sempre muitos outros efeitos que, para arazo, surgem como to perfeitamente consistentes e naturaisquanto o primeiro. Em vo, portanto, pretenderamos determinar qualquer ocorrncia individual, ou inferir qualquer causa ou efeito, sem a assistncia da observao e experincia.

    12 Podemos, a partir disso, identificar a razo pela qual ne-nhum filsofo razovel e comedido jamais pretendeu indicara causa ltima de qualquer operao natural, ou exibir precisamente a ao do poder que produz qualquer um dos efeitosparticulares no universo. Reconhece-se que a suprema conquista da razo humana reduzir os princpios produtivosdos fenmenos naturais a uma maior simplicidade, c subordinar os mltiplos efeitos particulares a algumas poucas causas

    g . ~ r a i ~ , por meio de raciocnios b a s l ~ a d o s na analogia, expenencta e observao. Quanto s causas dessas causas gerais,entretanto, ser em vo que proctuarcmos descobri-las; e nenhuma explicao particular delas ser jamais capaz de nossatisfazer. Esses mveis prindpios fundamentais esto totalmente vedados curiosidade c ;\ investigaffo humanas. Elasticidade, gravidade, coeso de partl'S, comunicao de movimento por impulso - l'Ssas so provavelmente as ltimascausas e princpios que nos ser dado descobrir na natureza, edevemos nos dar por satisfeitos se, por meio de um cuidado-

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    so raciocnio e investigao, pudermos reportar os fenmenos particuares a esses princpios gerais, ou aproxim-losdeles. A mais perfeita filosofia da espcie natural apenas detm por algum tempo nossa ignorncia, assim como a maisperfeita filosofia da espcie moral ou metafsica serve talvezapenas para descortinar pores mais vastas dessa mesmaignorncia. Assim, o resultado de toda filosofia a consta-tao da cegueira e debilidade humanas, com a qual deparamos por toda parte apesar de nossos esforos para evit-la oudela nos esquivarmos.

    13 Mesmo a geometria, quando chamada a auxiliar a filosofianatural, incapaz de corrigir esse defeito ou de nos levar aoconhecimento das causas ltimas, apesar de toda preciso deraciocnio pela qual to justamente celebrada. Cada ramo damatemtica aplicada procede a partir da suposio de que certas leis so estabelecidas pela natureza em suas operaes, e oraciocnio abstrato empregado ou para auxiliar a experinciana descoberta dessas leis, ou para determinar sua influnciaem casos particulares, nos quais essa influncia depende, emalgum grau preciso, da distncia e da quantidade. Assim, umalei do movimento, descoberta pela experincia, que o mo -mento ou fora de qualquer corpo em movimento a razocomposta, ou proporo, de seu contedo slido e sua velocidade; e, conseqentemente, que uma pequena fora pode remover o maior obstculo ou erguer o maior peso se, por meiode algum dispositivo ou maquinrio, pudermos aumentar avelocidade dessa fora de modo a faz-la sobrep ujar o antago-nista. A geometria nos ajuda a aplicar essa lei, fornecendo-nosas dimenses corretas de todas as partes e grandezas que po-dem entrar em qualquer espcie de mquina; mas a descobertada prpria lei continua devendo-se simplesmente cxperin-

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    cia, e todos os raciocnios abstratos do mundo nunca poderiamnos levar a um passo adiante na direo de sua descoberta.Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto oucausa apenas tal como aparece mente, independente de todaobservao, ele jamais pode r sugeri r-nos a idia de algum ob-jeto distinto, como seu efeito, e muito menos exibir-nos a conexo inseparvel e inviolvel entre eles. Seria muito sagaz ohomem capaz de descobrir pelo simples raciocnio que o cristal o efeito do calor e o gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com as operaes dessas qualidades.

    Parte 214 Mas ainda no chegamos a nenhuma concluso satisfatria

    com relao questo inicialmente proposta. Cada soluod continuamente lugar a uma nova questo to difcil quan-to a anterior, e leva-nos cada vez mais longe em nossas investigaes. Quando se pergunta Qual a natureza de todos os nossosraciocnios acerca de questes de jato?, a resposta apropriada pareceser que eles se fundam na relao de causa c efeito. Quandoem seguida se pergunta Qual o undammto dt todos os nossos racioc-nios e concluses acerca dessa relao?, pode-se dar a resposta emuma palavra: a experincia. Mas, se ainda perseverarmos emnosso esprito esmiuador e perguntarmos Qual I o undamentode todas as nossas concluses a partir da txptrli11cia?, isso introduzuma questo nova que pode Sl'r ainda mais dif(cil de solucionar e esclarecer. Filsofos que se do ares de superior sabedoria e confiana passam por maus bocados quando se defron-tam com pessoas de ndole inyuisitiva que os expulsam detodos os cantos onde se refugiam c terminam inevitavelmentepor faz-los cair em algum dilema perigoso. O melhor meio de

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    evitar essa confuso sermos modestos em nossas pretenses, inclusive apontando ns mesmos a dificuldade antesque ela seja levantada contra ns. Dessa forma, podemos converter nossa prpria ignorncia em urna espcie de mrito.

    15 Contentar-rne-ei, nesta seo, com urna tarefa fcil, bus-cando dar apenas urna resposta negativa questo aqui proposta. Afirmo, portanto, que, mesmo aps termos experinciadas operaes de causa e efeito, as concluses que retiramosdessa experincia no esto baseadas no raciocnio ou emqualquer processo do entendimento. Devemos agora esforar-nos para explicar e defender essa resposta.

    16 Deve-se certamente reconhecer que a natureza tem-nosmantido a urna boa distncia de todos os seus segredos, snos concedendo o conhecimento de urnas poucas qualidadessuperficiais dos objetos, enqu anto mantm ocultos os poderes e princpios dos quais a influncia desses objetos dependeinteiramente. Nossos sentidos informam-nos da cor, peso econsistncia do po, mas nem os sentidos nem a razo podemjamais nos informar quanto s qualidades que o tornam apropriado nutrio e sustento do corpo humano. A viso, ousensao, transmite-nos urna idia do movimento real doscorpos, mas quanto admirvel fora ou poder que faz queum corpo em movimento pers ista para sempre em sua contnua mudana de lugar, e que os corpos nunca perdem a noser quando a comunicam a outros, desta no somos capazesde formar a mais remota concepo. Mas, no obstante essaignorncia dos poderes 1 e princpios naturais, sempre supo-I A palavra poder est sendo usada aqui em seu sentido vago c popular.

    Uma explicao mais acurada de seu sentido traria ainda uma evidncia adicional para este argumento. Veja-se a Seo 7.

    mos, quando vemos qualidades sensveis semelhantes, queelas tm poderes secretos semelhantes, e esperamos que delasse sigam efeitos semelhantes aos de que tivemos experincia.Se nos for apresentado um corpo de cor e consistncia semelhantes s do po que anteriormente comemos, no hesitamos em repetir o experimento e antevernos com certeza amesma nutrio e sustento. Ora, eis aqui um processo mentalou intelectual do qual muito me agradaria saber o fundamento. Admite-se unanimemente que no h conexo conhecidaentre qualidades sensveis e poderes secretos, e, conseqentemente, que a mente, ao chegar a urna tal concluso sobre suaconjuno constante e regular, no conduzida po r nada queela saiba acerca de suas naturezas . Quanto experincia passada, pode-se admitir que ela prov informao imediata e segu-ra apenas acerca dos precisos objetos que lhe foram dados, eapenas durante aquele preciso perodo de tempo; mas por quese deveria est ender essa experincia ao tempo futuro ou a outros objetos que, por tudo que sabemos, podem ser semelhantes apenas em aparncia? Essa a questo fundamentalsobre a qual desejaria insistir. O po que comi anteriormentealimentou-me, isto , um corpo de tais c tais qualidades sensveis esteve, naquela ocasio, dotado de tais c tais poderes secretos, mas segue-se porventura disso llliC outro po devaigualmente alimentar-me em outra ocasio, e que qualidadessensveis semelhantes devam e!ltlr sempre acompanhadas depoderes secreto!! semelhantes? Essa conseqncia no parecede nenhum modo nrcessria. preciso no mnimo reconhecer que a ment e cxuaiu al]Ui uma conseqncia, que um certopasso foi dado: um prrcurso do pensamento e urna infernciapara o que se exige uma explicao. As duas proposies seguintes esto longe de serem a mesma: Constatei que tal objeto

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    sempre esteve acompanhado de tal efeito e Prevejo que outros objetos, deaparncia semelhante, estaro acompanhados de efeitos semelhantes. Admitirei, se lhes agradar, que correto inferir uma proposio daoutra; e sei, de fato, que essa inferncia sempre feita. Mas,se algum insistir em que ela se faz por meio de uma cadeia deraciocnio, eu gostaria que esse raciocnio me fosse apresentado. A conexo entre essas proposies no intuitiva. Requer-se aqui um termo mdio que possibilite mente realizaruma tal inferncia, se que ela de fato realizada por meio dealgum raciocnio ou argumento. Qual seria esse termo mdio,devo confessar que ultrapassa minha compreenso, e quemdeve apresent-lo so os que afirmam que ele realmente existee que a fonte de todas as nossas concluses referentes aquestes de fato.

    17 Esse argumento negativo dever com certeza tornar-seplenamente convincente com o passar do tempo, se muitosfilsofos hbeis e perspicazes voltarem-se para ele em suasinvestigaes e nenhum deles for jamais capaz de descobrirqualquer proposio ou passo intermedirio que estabelea aligao e apie o entendimento nessa concluso. Mas, como aquesto ainda recente, pode ser que nem todos os leitoresconfiem tanto em sua prpria perspiccia a ponto de, pelosimples fato de um argumento escapar sua indagao, concluir que ele realmente no existe. Por essa razo, pode sernecessrio embrenharmo-nos em uma tarefa mais difcil, e,enumerando todos os ramos do conhecimento humano, esforarmo-nos para mostrar que nenhum deles pode dar apoioa um tal argumento.

    18 Todos os raciocnios podem ser divididos em dois tipos, asaber, o raciocnio demonstrativo, que diz respeito a relaes

    de idias, e o raciocnio moral, referente a questes de fato eexistncia. Parece evidente que argumentos demonstrativosno esto envolvidos neste caso, dado que no contraditrioque o curso da natureza possa mudar, e que um objeto aparentemente semelhante aos de que tivemos experincia possavir acompanhado de efeitos diferentes ou contrrios. N o posso, porventura, conceber de forma clara e distinta que caia dasnuvens um corpo, em todos os outros aspectos assemelhado neve, e que, contudo, apresente ao paladar o gosto de sal e aotato a sensao do fogo? H alguma afirmao mais inteligveldo que dizer que todas as rvores vo florescer em dezembro ejaneiro e perder as folhas em maio e junho? Ora, tudo o que inteligvel e pode ser distintamente concebido est isento decontradio, e no pode ser provado como falso por nenhumargumento demonstrativo ou raciocnio abstrato a priori.

    19 Assim, se formos levados, por meio de argumentos, a de-positar confiana na experincia passada e torn-la o modelode nossos julgamentos futuros, esses argumentos tero de serapenas provveis, ou seja, relacionados a questes de fato e deexistncia efetiva, conforme a diviso j mencionada. Mas, sefor aceita nossa explicao dessa espcie raciocnio, o fatode que no h nenhum argumento desse tipo aparecer comouma constatao slida e satisfatria. Dissemos que todos osargumentos relativos e x i s t ~ n c i a fundam-se na relao decausa e efeito, que nosso conhecimento dessa relao deriva-se inteiramente da experi2ncia, e que todas as nossas concluses experimentlis procedem da suposio de que o futuro estar em conformidade com o passado. Em vista disso,esforar-se para provar esta ltima suposio por meio de argumentos provveis, ou argumentos que dizem respeito

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    existncia, evidentemente andar em crculo e tomar comodado exatamente o ponto que est sendo debatido.

    20 Na realidade, todos os argumentos que partem da expe-rincia fundam-se na semelhana que observamos entre osobjetos naturais, pela qual somos induzidos a esperar efeitossemelhantes aos que descobrimos seguirem-se de tais objetos. E embora ningum seno um insensato ou louco jamaispretendesse pr em questo a autoridade da experincia ou rejeitar essa grande condutora da vida humana, pode-se certamente permitir a um filsofo que s ua curiosidade seja ampla obastante para pelo menos lev-lo a examinar o princpio da natureza humana que outorga experincia essa enorme autoridade e nos faz tirar proveito dessa semelhana que a naturezaestabeleceu entre os diversos objetos. De causas que aparecemcomo semelhantes, esperamos efeitos semelhantes; essa a smula de todas as nossas concluses experimentais. Ora, pareceevidente que, se essa fosse uma concluso alcanada pela razo,ela j seria to perfeita desde o incio, e com base em umnico exemplo, quanto depois de um transcurso da experincia to longo quanto se queira; mas, de fato, as coisascorrem de modo bem diferente. Ovos assemelham-se entresi como nenhum outro objeto, e ningum, no entanto, combase nessa aparente similaridade, espera encontrar em todoseles o mesmo gosto e sabor. apenas aps um longo decurso de experincias uniformes que obtemos, em objetos dequalquer espcie, uma firme confiana e certeza com relaoa um resultado particular. Mas onde est esse processo deraciocnio que, de um caso nico, extrai uma concluso todiferente da que infere de uma centena de novos casos quede nenhum modo diferem daquele caso inicial? Proponho

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    essa questo no tanto para levantar dificuldades, mas paraobter alguma informao. No consigo encontrar, sequerposso imaginar, nenhum raciocnio desse tipo. Minha mente,porm, est sempre aberta a ensinamentos, se algum se dignar a oferec-los.

    21 Se for dito que, de um certo nmero de experimentos uni-formes, ns inferimos uma conexo entre as qualidades sensveis e os poderes secretos, serei obrigado a confessar que issome parece ser a mesma dificuldade expressa em termos diferentes. A questo permanece: em que passos argumentativosfunda-se essa inferncia? Onde est o termo mdio, as idiasinterpostas que ligam proposies to distantes umas da outras? Reconhece-se que a cor, a consistncia e outras qualidades sensveis do po no aparecem como possuindo por simesmas qualquer conexo com os poderes secretos da nutrio e sustento, pois, de outro modo, poderamos inferir essespoderes secretos t o logo essas qualidades sensveis fizessemseu aparecimento, sem auxlio da experincia, o que contdrio opinio de todos os filsofos e simples realidade dosfatos. Eis aqui, portanto, nosso estado natural de ignor:\nciaquanto aos poderes e a influncia de todos os objetos. Comoremedi-lo pela experincia? Esta simplesnunte nos exibeuma multiplicidade de efeitos uniformes resultantes de certos objetos, c nos ensina l]lle ll]Udes particulares objetos, naquela ocasio particular, estivel'i\m dotados de tais e tais foras c poderes. Quando um novo objeto se apresenta, dotadode qualidades sensveis semelhantes, esperamos encontrarpoderes e foras semdhantes, e procuramos por um efeito semelhante. De um corpo de cor e consistncia parecidas s dopo, esperamos nutrio e sustento semelhantes. Mas isso

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    com c e r t e z < ~ o um passo ou progresso da mente que pedeuma explicao. Quando um homem diz: Constatei, em todos oscasos passados, tais e tais qualidades sensveis associadas a tais e tais o d e ~res secretos, e quando diz: Qualidades sensveis semelhantes estarosempre associadas a poderes secretos semelhantes, ele no incorre emtautologia, e essas proposies no coincidem sob nenhumaspecto. Se algum disser que uma proposio foi inferida daoutra, dever confessar que a inferncia no intuitiva, etampouco demonstrativa. De que natureza ela, ento? Dizer que experimental supor resolvida a prpria questoque se investiga, pois todas as inferncias a partir da experincia supem, como seu fundamento, que o futuro ir assemelhar-se ao passado, e que poderes semelhantes estaro assaciados a qualidades sensveis semelhantes. Se houver qualquer suspeita de que o curso da natureza possa vir a modificar-se, e que o passado possa no ser uma regra para o futuro,toda a experincia se tornar intil e incapaz de dar origem aqualquer inferncia ou concluso. , portanto, impossvelque algum argumento a partir da experincia possa provaressa semelhana do passado com o futuro, dado que todos esses argumentos esto fundados na pressuposio dessa mesma semelhana. Por mais regular que se admita ter sido atagora o curso das coisas, isso, isoladamente, sem algum novoargumento ou inferncia, no prova que, no futuro, ele continuar a s-lo. ftil alegar que conhecemos a natureza doscorpos com base na experincia passada; sua natureza secretae, conseqentemente, todos seus efeitos e influncias podemmodificar-se sem que suas qualidades sensveis alterem-seminimamente. Isso ocorre algumas vezes, e com relao a aliUIU objetos; por que no poderia ocorrer sempre e com relal o a todos? Qual lgica, qual seqncia de argumentos nos

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    garante contra essa suposio? Poder-se-ia dizer que nossaprtica refuta nossas dvidas, mas isso interpretar mal osignificado de minha questo. Como agente, estou plenamente convencido sobre esse ponto, mas, como filsofo quetem sua parcela de curiosidade, no direi de ceticismo, querocompreender o fundamento dessa inferncia. Todas as leituras e investigaes no foram at agora capazes de p r fim minha dificuldade, ou de prover algum esclarecimento em umassunto de tamanha importncia. Haveria algo melhor a fazerdo que trazer a pblico essa dificuldade, mesmo que talvez setenham poucas esperanas de obter uma soluo? Desse mo do, pelo me nos, ficaremos cientes de nossa ignorncia, aindaque no aumentemos nosso conhecimento.

    22 Devo confessar que se torna culpado de imperdovel arro-gncia aquele que conclui que um argumento realmente noexiste s porque escapou sua prpria investigao. Devotambm confessar que, ainda que todos os eruditos se tenham empenhado durante muitas eras em pesquisas infrutferas sobre um assunto qualquer, pode mesmo assim ser precipitado concluir confiantemente que o assunto deve, porisso, ultrapassar toda compreenso humana. Ainda que tenhamos examinado todas as fontes de nosso conhecimento,concluindo po r julg-las inade

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    ras e riqueza-s, talvez estejamos todo esse tempo apenas satisfazendo no ssa indolncia natural, a qual, po r odiar o alvoroodo mundo e a fatigante servido aos negcios, busca um simulacro de razo para ceder de forma completa e descontrolada a suas inclinaes. H, no entanto, uma espcie de filosofia que parece pouco sujeita a esse inconveniente, pois nose harmoniza com nenhuma paixo desordenada da mentehumana, nem se mistura, ela prpria, a nenhuma afeco ouinclinao naturais; e essa a filosofia acadmica ou ctica. Osacadmicos esto constantemen te falando sobre dvida e suspenso do juzo, sobre o perigo das decises apressadas, sobre confinar as indagaes do entendimento a limites bem estreitos e renunciar a todas as especulaes que caem fora doslimites da vida e da prtica cotidianas. Conseqentemente,uma filosofia como essa o que h de mais contrrio indolncia acomodada da mente, sua arrogncia irrefletida, suasgrandiosas pretense s e sua credulidade supersticiosa. To dasas paixes so refreadas por ela, exceto o amor verdade, eessa uma paixo que jamais , ou pode ser, levada a um grauexcessivo. Surpreende, portanto, que essa filosofia - que emquase todas as ocasies deve mostrar -se inofensiva e inocente- seja objeto de tantas censuras e reprovaes infundadas.Mas, talvez, a prpria circunstncia que a torna to inocenteseja o que principalmente a expe ao dio e ao resse ntimentopblicos. Ao no adular paixes desordenadas, ela conquistapoucos adeptos; e ao opor-se a tantos vcios e loucuras, levanta contra si uma multido de inimigos, que a estigmatizamcomo libertina, profana e irreligiosa.

    :& Tampouco precisamos temer que essa filosofia, ao esfor-ar-se para limitar nossas investigaes somente vida ardi-

    nria, venha a subverter os raciocnios prprios dessa vida elevar suas dvidas to longe a ponto de aniquilar no s todaa especulao, mas tambm toda a ao. A natureza sempreafirmar seus direitos e prevalecer, ao final, so bre qualq uerespcie de raciocnio abstrato. Embora, por exemplo, sejapreciso concluir, como na seo precedente, que em todos osraciocnios baseados na experincia a mente d um passo queno encontra apoio em nenhum argumento ou processo doentendimento, no h perigo de que estes raciocnios, dosquais quase todo conhecimento depende, cheguem a ser afetados por tal descoberta. Se no um argumento que obriga amente a dar este passo, ela deve estar sendo condu zida por algum outro princpio de igual peso e autoridade, e esse princpi preservar sua influncia por todo o tempo em que a natureza humana permanecer a mesma. Descobrir qual esse

    p r i n ~ p i o pode muito bem recompensar todas as dificuldadesda investigao.

    3 Suponha-se que seja trazida de sbito a este mundo umapessoa dotada, no obstante, das mais poderosas faculdadesda razo e reflexo. verdade que ela observaria imediatamente uma contnua sucesso de objetos, c um acontecimento seguindo-se a outro, mas no conseguida descobrir maisnada alm disso. Ela no seria, no in(cio, capaz de apreender,po r meio de nenhum raciodnio, a idia de causa e efeito, jque os poderes espedficos pelos quais se realizam todas asoperaes naturais jamais se manifestam aos sentidos, e no razovel concluir, meramente porque em uma certa ocasioum acontecimento precede outro, que o primeiro ento acausa, e o outro o efeito. Sua conjuno pode ser arbitrria ecasual; pode no haver razo para inferir a existncia de um

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    do aparecimento do outro; e, em uma palavra, tal pessoa, semexperincia adicional, jamais poderia conjeturar ou raciocinaracerca de qualquer questo de fato, ou estar segura de qualquer coisa alm do que estivesse imediatamente presente sua memria e sensao.

    4 Suponhamos agora que ela tenha adquirido mais experin-cia e vivido no mundo o bastante para observar que objetosou acontecimentos semelhantes esto constantemente unidos uns aos outros. Qual o resultado dessa experincia? Oresultado que essa pessoa passa a inferir imediatamente aexistncia de um objeto a partir do aparecimento do outro. E,no entanto, com toda sua experincia, ela no ter adquiridonenhuma idia ou conhecimento do poder secreto pelo qual oprimeiro objeto produz o segundo, e no nenhum processode raciocnio que a leva a realizar essa infer ncia. Ainda assim,ela se v determinada a realiz-la; e, mesmo que viesse a seconvencer de que o entendimento no toma parte na operao,se u pensamento continuaria a fazer o mesmo percurso. Haqui algum outro princpio que a faz chegar a essa concluso.

    5 Esse princpio o hbito ou costume. Pois sempre que a repe-tio de algum ato ou operao particulares produz uma propenso a realizar novamente esse mesmo ato ou operao,sem que se esteja sendo impelido po r nenhum raciodnio ouprocesso do entendimento, dizemos invariavelmente que essapropenso o efeito do hbito. N o pretendemos ter fornecido, com o emprego dessa palavra, a razo ltima de uma talpropenso; apenas apontamos um princpio universalmentereconhecido da natureza humana, e que bem conhecido pelos seus efeitos. Talvez no possamos levar nossas investigaes mais longe do que isso, nem pretender oferecer a causa

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    dessa causa, mas tenhamos de nos satisfazer com esse princpio como o mais fundamental que nos possvel identificarem todas as concluses que tiramos da experincia. J umasatisfao suficiente termos chegado at a, para que nos queixemos da estreiteza de nossas faculdades po r no nos levaremmais adiante. E certo que estamos aventando aqui uma proposio que, se no verdadeira, pelo menos muito inteligvel, ao afirmarmos que, aps a conjuno constante de doisobjetos - calor e chama, po r exemplo, ou peso e solidez - , exclusivamente o hbito que nos faz esperar um deles a partirdo aparecimento do outro. Essa hiptese parece mesmo ser anica que explica a seguinte dificuldade: por que extramosde mil casos uma inferncia que no somos capazes de extrairde um nico caso, que deles no difere em nenhum aspecto?A razo incapaz de variar dessa forma; as concluses que elaretira da considerao de um nico crculo so as mesmas queformaria aps inspecionar todos os crculos do universo. Masnenhum homem, tendo visto apenas um nico corpo mover-se aps te r sido impelido por outro, poderia inferir tllll 'todos os outros corpos mover-se-iam aps um impulso semelhante. To das as inferncias da experincia so, pois, efeitos do hbito, no do raciocnio.'

    Nada mais usual entre a u t o r r ~ . lJUrr ocupem de questes morais,polticas ou fsicas, do ljUe d i ~ t i n g u i r entre ra(_llo r txptrintia, e supor queessas espcies de a r g u m r n t a ~ o intt'iramente diferentes uma daoutra. As prinuiras so tomadas como o simples resultado de nossasfaculdades int electuais ljlll', an comidrrarrm a priori a natureza das coisas e examinarem os rfritm ljlll' drvcm seguir-se de suas operaes,estabelecem princpios part


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