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LE MONDE diplo matique BRASIL

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CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta OXFAM

Estamos chegando a 9 bilhões de pessoas no planeta e, nos últimos anos, a fome no mundo aumentou em vez de diminuir. Não é uma questão de produtividade porque, apesar desta ter crescido muito, temos hoje quase 1 bi-

lhão de pessoas que passam fome. A Oxfam aborda a questão da alimentação a partir da ótica da

justiça alimentar, da ótica de direitos, levando em conta que o mun-do tem recursos limitados e que, portanto, não é só produzir mais, mas repartir melhor e considerar os fatores sociais e ambientais envolvidos na produção.

A campanha da Oxfam iniciada em junho de 2011 recebe o nome “CRESÇA” porque precisamos produzir mais alimentos, in-vestir na agricultura familiar, garantir que os agricultores, indígenas, extrativistas e camponeses – homens e mulheres - estejam pron-tos para o desafio de alimentar 9 bilhões de pessoas nas próximas décadas. É um desafio que requer enfrentar a desigualdade no controle e no acesso aos alimentos e aos recursos naturais, crescer de uma forma distinta, diminuir as emissões de carbono e contribuir para o enfrentamento da mudança climática. Significa construir ca-pacidades para que os agricultores familiares enfrentem as incer-

CRESÇApOR MuRiEl SARAgOuSSi*

tezas climáticas e do mercado de alimentos e atendam as necessi-dades dos mais pobres. para isto é preciso contar com um sistema de governança global para a questão alimentar, capaz de lidar com crises e volatilidade dos preços. por fim, temos de aumentar o de-bate sobre esses temas e promover o engajamento da sociedade na construção de um futuro onde todos tenham e exerçam seu di-reito a alimentação.

O avanço conseguido na luta contra a fome ao longo das últi-mas décadas vem sendo dizimado. O vai-e-vem dos preços de ali-mentos, a exploração dos recursos naturais e as mudanças climáti-cas, têm aumentado o número de pessoas famintas no mundo e as projeções para o futuro próximo são ainda mais graves. O relatório “Crescendo para um futuro melhor”, referencia de nossa cam-panha, mostra que se essas questões não forem enfrentadas rapi-damente, os preços internacionais dos principais alimentos irão mais do que dobrar até 2030. precisamos com urgência de um novo compromisso por parte de governos e empresas, de uma nova forma de engajamento da sociedade para enfrentar a desigualdade gerada pela falência do atual sistema de controle da produção, dis-tribuição e consumo de alimentos.

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A Campanha Cresça chega no momento certo. Estamos num mundo de múltiplas crises, é uma crise econômica, mas é também uma crise de valores éticos, uma crise de produção, uma crise cli-mática. Os modelos de produção de alimentos vão ter de mudar porque o clima já mudou, o mundo já mudou. Só se o modelo de produção mudar é que vamos ter capacidade de sair destas crises, criar um modelo de desenvolvimento justo, com equidade.

Agricultura familiarNossa opção prioritária é pela agricultura familiar. Ela tem a ca-

pacidade de inovar, de absorver técnicas e propostas de produção que constroem a justiça alimentar, a agroecologia e a produção sustentável a curto e a longo prazo.

São necessários maiores investimentos para a agricultura fami-liar. Segundo o iBgE, 70% dos produtos agrícolas consumidos no país vêm da agricultura familiar, mas somente 24% das terras boas para o plantio estão nas mãos dos pequenos agricultores.

Relação produção e consumoNão é só uma questão de direito de acesso aos alimentos, é tam-

bém uma questão de consciência sobre o que nos alimenta, quem produz, como e para quê produz. Buscar a relação mais direta possí-vel entre produtor e consumidor é coerente com nossos objetivos.

A produção tem que estar próxima do consumo. O objetivo da produção não deve ser o de exportar ou levá-la para onde pagarem mais, mas sim de alimentar as pessoas e de uma forma saudável. Ela só pode estar longe do consumo em situações extremas ou em situações de dificuldade. A questão central é garantir alimentos para todas as pessoas de uma forma sustentável.

O Brasil tem hoje mais de 85% da sua população vivendo nas cidades. São 160 milhões de pessoas que vivem uma vida urbana, com grandes variações, é verdade, mas os laços de convivência do mundo rural estão cada vez mais longínquos. A pobreza no mundo urbano tem novas características, tornando ainda mais difícil a so-brevivência, pobreza esta que demanda uma atenção especial aos muitos milhões de brasileiros que nela estão.

Os governosEssa é a primeira campanha da Oxfam que junta todas suas afi-

liadas. Ela está sendo realizada em mais de 40 países. O Brasil é um dos 10 países estratégicos da campanha, pela sua capacidade de influenciar a temática da alimentação no resto do mundo, pelo exemplo e pela vontade política de fazê-lo.

De acordo com o ipEA, o Brasil conseguiu tirar da miséria, entre 2004 e 2009, de 30 a 32 milhões de brasileiros. Mas a garantia de que eles permaneçam fora da miséria, fazendo três refeições por dia, não está dada. A sociedade brasileira deve estar consciente de que precisa garantir conquistas, não abrir brecha para retrocessos. O Estado tem um papel fundamental na garantia da soberania ali-mentar, da segurança alimentar e da justiça alimentar. São progra-

mas como o pAA, o programa de Alimentação Escolar, a garantia de preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade, as priori-dades nas compras públicas, que iniciam novas políticas. A partir de 2009, por exemplo, 30% dos alimentos para a merenda escolar devem ser comprados de pequenos produtores.

MulheresA grande maioria dos alimentos no mundo é produzida por mu-

lheres e esse dado é absolutamente invisível. Em muitos países, mulheres não têm acesso a terra ou aos recursos naturais neces-sários para sua sobrevivência. precisamos dar destaque à realidade das mulheres produtoras. precisamos de políticas públicas especí-ficas para elas.

Sociedade Civil A campanha no Brasil se propõe a contribuir para aumentar o

debate na sociedade brasileira em geral em relação à questão da jus-tiça alimentar. A participação cidadã é fundamental. Ela se dá através da pressão e do engajamento de cada pessoa nas chamadas da campanha para iniciativas conjuntas junto aos governantes; no papel de consumidor de cada cidadão; no seu papel de eleitor e eleitora, apoiando candidatos que defendam políticas de enfrentamento dos problemas apontados pela campanha; e apoiando iniciativas de or-ganizações e movimentos sociais que estão na mesma luta.

O papel da Oxfam é apoiar processos e movimentos da própria sociedade brasileira, sua sinergia, articulação, sua capacidade para dar o passo seguinte. Nosso papel é alimentar alianças dentro da sociedade e fortalecer parceiros para que eles possam fazer as mudanças necessárias no modelo de desenvolvimento brasileiro.

Jogos VorazesOs estoques públicos de alimentos quase desapareceram e

não há transparência sobre aqueles disponíveis no mundo, sejam públicos ou privados. O mundo financeiro passou a especular sobre o preço futuro dos alimentos, causando grande volatilidade em seus preços. Especular em cima da vida e da morte das pessoas sempre foi um grande negócio — antes era a guerra, agora também é a comida.

Regular os preços dos alimentos, dar transparência aos esto-ques públicos e privados, garantir acesso à informação e controle social sobre o setor é um dos objetivos da campanha.

A Campanha CRESÇA não trata de temas novos, mas da ne-cessidade de providências rápidas, imediatas e de mudanças im-prescindíveis para evitar que a situação ultrapasse limites críticos inimagináveis. É a urgência que nos move.

*Muriel Saragoussi é coordenadora de campanhas e incidência da Oxfam na

Brasil. Engenheira agrônoma de formação, ela tem mais de 30 anos de militân-

cia nas áreas de sustentabilidade e combate à fome.

A Oxfam tem respondido a crises de alimentos por quase 70 anos - desde a grécia em 1942, passando por Biafra (1969), Etiópia (1984), Níger (2005), Chifre da África no ano passado, e estamos nos preparando para enfrentar a crise anunciada do Sahel, este ano. Estamos presentes nos inúmeros desastres silenciosos que passam despercebidos da mídia e da opinião pública global - todos totalmente evitáveis, resultado de decisões desastrosas, do abuso de poder e de políticas econômicas perversas.

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O economista britânico John Maynard Keynes tinha opini-ões bem definidas sobre os mandarins financeiros de sua época: “sugerir à City de londres uma ação social em beneficio do bem público é como discutir A origem

das espécies com um bispo”. Quase um século depois, os merca-dos se tornaram mais complexos e sofisticados, mas o modo como os especuladores aproveitam em beneficio próprio das leis débeis ou inexistentes mudou muito pouco. Este é o caso do mer-cado de alimentos, onde as consequências do laissez-faire vão além do aceitável.

Durante os últimos 4 anos o preço dos alimentos básicos teve as oscilações mais agudas vistas em décadas. As causas dessa espiral incluem uma combinação conhecida de fatores que diminu-íram a oferta e dispararam a demanda, como a produção de bio-combustíveis ou o incremento do consumo de carne na Ásia. Mas também intervieram outras variáveis, como a desmedida especula-ção financeira. Quando setores tradicionalmente mais rentáveis perderam fôlego na bolsas da Europa e Estados unidos, os espe-culadores colocaram seus olhos na comercialização de matérias primas como o trigo, o milho ou a soja, que receberam o mesmo tratamento financeiro que um chip ou uma hipoteca.

Os produtos financeiros (como os mercados futuros ou as op-ções de compra, que garantem a entrega de uma mercadoria em um prazo e preço determinados com antecedência) são recursos habituais de vendedores e compradores para diminuir o risco ine-rente a qualquer mercado agrário. Mas isso dificilmente descreve o que ocorreu nos últimos anos. A escalada inicial dos preços atraiu os especuladores de grandes firmas, como goldman Sachs e J.p. Morgan, que desenvolveram instrumentos derivados e índices combinados de matérias primas que multiplicaram as piruetas fi-nanceiras e os riscos associados a elas, e converteram a agricultu-ra em outro de seus cassinos.

No primeiro trimestre de 2008, enquanto os preços dos prin-cipais alimentos disparava, os investidores estavam colocando

O Cassino AgráriopOR gONzAlO fANJul*

nesses mercados a irrisória quantia de um bilhão de dólares diá-rios, boa parte dos quais eram destinados a operações bilaterais alheias ao controle das principais bolsas (o que se conhece como operação OTC). Somente no mercado do trigo esses índices che-garam a controlar em junho desse mesmo ano 42% do mercado nos EuA. A crise precipitou a saída maciça de capitais desses e de outros mercados, e com ela a queda brusca de preços que co-nhecemos em 2009.

A especulação contribuiu para gerar um mercado com preços mais caros e menos previsíveis, cuja consequências são sentidas em boa parte pelos países mais pobres do planeta. Oxfam é teste-munha de como a volatilidade extrema dos preços golpeou consu-midores e produtores pobres, incapazes de aguentar o choque ou de aproveitar suas oportunidades. Desde o Camboja, até a Nigéria e a guatemala, A fAO calcula que o número dos que passam fome aumentou entre 2008 e 2009 em mais de 250 milhões, até supe-rar pela primeira vez na história o número de 1 bilhão de seres hu-manos. A alta dos preços de 2011 podem ter intensificado essa tendência.

O que se pode fazer? Muitas das medidas de reforma dos mercados financeiros que estão sendo aprovadas nos Estados unidos e em outros países – como a transparência, a regulação dos produtos derivados e o controle das operações OTC – ajudarão a colocar limites nos especuladores. Mas são necessárias garan-tias adicionais no caso de um mercado tão sensível para o bem--estar humano, do qual depende o direito à alimentação. Nesse âmbito a responsabilidade do g20 é iniludível e aí o governo do Brasil deve exercer a mesma liderança demonstrada em casa, com a implantação de políticas contra a fome que são admiradas em todo o mundo. No mais, é tratar um câncer com aspirinas.

*Gonzalo Fanjul, assessor estratégico da Oxfam internacional.

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A questão agrícola na RiO+20pOR JEAN MARC vON DER WEiD*

O documento base da Rio+20, produzido pelo programa das Nações unidas para o Meio Ambiente (uNEp), não dá à agricultura o lugar central que deveria ocupar no debate, além de abster-se de constatar os problemas

provocados pelo modelo de desenvolvimento agrícola dominante no mundo, conhecido como agricultura industrial.

A agricultura, entendida no sentido amplo adotado pela fAO, in-clui os cultivos temporários ou perenes, a pecuária, a pesca/aqüi-cultura e a exploração florestal. Ela é o maior fator de perda de bio-diversidade, de destruição florestal e de desertificação em todo o mundo. Ela também é o maior consumidor de água potável (70%),

além de ser o principal agente de contaminação de rios, lagos e aqüíferos. A contaminação química provocada pelo uso de adubos químicos e agrotóxicos também é um fator importante na destrui-ção do meio ambiente nas zonas costeiras, em particular na foz dos rios onde cria imensas áreas chamadas de desertos marinhos, afe-tando também a pesca.

A agricultura tem forte relação com a questão da produção de combustíveis (álcool e biodiesel em tempos mais recentes e carvão e lenha desde muito tempo). Do ponto de vista das mudanças cli-máticas a agricultura é responsável por 18% das emissões de ga-ses de efeito estufa (gEE), mais do que a queima de combustíveis

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nos transportes. Se combinarmos este efeito direto com as emis-sões provocadas pelo desflorestamento (em grande parte provo-cado pela expansão das áreas agrícolas) e outras emissões ocorri-das em outras etapas da cadeia alimentar, chegamos a cerca de 50% de emissões de gEE. finalmente, é preciso lembrar que a agricultura concentra a maior parte da população em extrema po-breza no mundo e que não existe modelo de desenvolvimento urba-no nos tempos modernos capaz de absorver este contingente.

A agricultura industrial tem outros efeitos negativos sobre os re-cursos naturais renováveis como os solos. Desde a segunda guerra mundial aproximadamente 2 bilhões de hectares de solos potencial-mente agricultáveis no mundo já foram degradados, mais de 22% de toda a área disponível para cultivos, pastagens e florestas.

A degradação química dos solos devido às praticas agríco-las é responsável por 40% das perdas nas áreas cultivadas. Este modelo agrícola tem outro calcanhar de Aquiles, a sua de-pendência de recursos naturais não renováveis como petróleo, gás, fosfatos e potássio. A exaustão das reservas mundiais de petróleo já se faz sentir nos custos crescentes deste combustí-vel. As reservas de gás têm previsão de alcançar seu pico de produção em 2025. As de fósforo já passaram por este pico e as de potássio devem alcançá-lo em mais 20 anos.

Na atualidade, o mundo produz comida suficiente para alimen-tar os mais de 7 bilhões de habitantes do planeta. A existência de mais de um bilhão de famintos se deve a problemas de pobreza e não de disponibilidade, mas no futuro próximo haverá carência ab-soluta de alimentos se o presente modelo produtivo não for radical-mente alterado. Os custos de produção no modelo da agricultura industrial, alem das perdas das áreas cultiváveis, deverão trazer de volta o fantasma da fome endêmica em escala não vista desde o início do século vinte.

frente a este quadro de crise profunda, que pode levar a terríveis problemas sociais e instabilidade política em muitos países, um gru-po de entidades da sociedade civil elaborou uma proposta para a Rio+20 intitulada “Tempo de Agir”. O documento (disponível no site www.aspta.org.br) aponta para um novo modelo de agricultura base-ado na produção familiar, empregando as práticas da agroecologia.

A agroecologia é definida como o manejo integrado dos recur-sos naturais (solo, água e biodiversidade) sem uso de insumos ex-ternos industriais. São policulturas integradas com criações ani-mais e com a vegetação natural.

A agroecologia é econômica no uso de água e de energia e, além de não emitir gEEs, promove uma forte absorção de carbono. O sistema não tem efeitos contaminantes para águas, solos, produ-tores e consumidores e promove uma dieta saudável. Os críticos mal informados sobre estes sistemas dizem que suas produtivida-des são baixas e que adotar a agroecologia obrigaria a aumentar a área cultivada e, portanto, aumentar o desmatamento. pesquisas da fAO, da univesidade de Essex e da Academia de Ciências dos Estados unidos, para citar apenas alguns estudos, indicam que os

sistemas agroecológicos têm índices de produtividade compará-veis aos convencionais e que os preços superiores cobrados pelos produtos vendidos como orgânicos não se devem a custos de pro-dução superiores ou produtividades inferiores, mas à relação de oferta e demanda do mercado e aos custos de comercialização dos orgânicos. Ambas as questões podem ser resolvidas com o au-mento da produção agroecológica (orgânica), garantindo uma ofer-ta de produtos de qualidade a preços mais baixos.

A questão mais importante a ser notada na produção agroeco-lógica é a sua demanda de conhecimentos técnicos e de mão de obra. Diz-se que a agroecologia é “knowledge intensive” enquanto a agricultura industrial é “input intensive”. A questão do conheci-mento na agroecologia deriva da sua busca de grande diversifica-ção na estratégia de mimetizar os sistemas naturais. isto implica na necessidade de se procurar um desenho produtivo específico para cada propriedade, o que não se faz sem métodos de pesquisa que integrem o agricultor como experimentador. A questão da mão de obra não é apenas relativa às limitações de uma mecanização dos sistemas produtivos quando os mesmos são muito diversificados, mas à exigência de cuidados e informação que limita a eficiência do trabalho assalariado. Tudo isto resulta no fato de que a agroeco-logia opera, em condições ideais, em sistemas produtivos da agri-cultura familiar de pequena escala.

para países como os Estados unidos, onde o emprego agrícola é inferior a 4% do emprego total e que tem menos de dois milhões de agricultores familiares, adotar a agroecologia seria (será) dra-mático, pois necessitarão de gerar uma nova classe de campone-ses quando o conjunto das crises acima referidas vier a destruir a sua agricultura convencional. No Brasil, apesar dos descaminhos de uma reforma agrária sempre feita à “meia boca” ainda temos perto de 4,5 milhões de agricultores familiares e potencial para mais 10 milhões capazes de adotar a agroecologia como forma de produção. isto poderá acontecer de forma dramática pela mera for-ça das crises que assolam a humanidade ou de forma controlada e suave se as necessárias políticas públicas forem adotadas. Dado o gravíssimo problema de pobreza mundial e nacional, o fato de que os sistemas agroecológicos sejam demandadores de mão de obra não é um problema, mas uma solução. Eles vão permitir que um enorme contingente de excluídos venha a integrar-se na sociedade de forma produtiva e não assistencial.

Dada a total falta de compromisso dos governos da maior parte do mundo com as exigências de mudanças drásticas na forma como o mundo produz, consome e se relaciona com a natureza, não podemos esperar muito da Rio+20, mas o que os signatários do manifesto “Time to Act” pretendem é despertar a opinião pública e continuar um embate nos planos internacional e nacionais após a conferência.

*Jean Marc von der Weid é coordenador do programa de políticas públicas da

AS-pTA Agroecologia e Agricultura familiar.

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O Consea é resultado de uma manifesta vontade política por ouvir as demandas da sociedade. É fruto das refle-xões pioneiras sobre a fome, feitas por Josué de Castro - que é seu patrono; do ex-presidente lula, que o re-

criou, e foi recentemente indicado pelos conselheiros seu presi-dente de Honra; de Betinho, da Ação da Cidadania Contra a fome e a Miséria e pela vida. É a expressão dos ecos da cidadania, das vozes do campo, da floresta e da cidade.

Em sua composição está a fala dos sujeitos de direitos, repre-sentados pelas organizações dos povos indígenas, população ne-gra, quilombolas, pescadores, comunidades de terreiro, extrativis-tas como as quebradeiras de coco, organizações da agricultura familiar e camponesa. É a expressão de nossa sociobiodiversidade, com suas formas de vida e manejo dos bens da natureza nos vários biomas, e de uma sociedade pluriétnica.

Mas também estão presentes entidades do direito humano à alimentação; centrais sindicais; redes, fóruns e articulações da so-berania e segurança alimentar e nutricional, da agroecologia, da economia solidária, da educação cidadã; representações de orga-

Mais democracia para enfrentar a fomepOR MARiA EMÍliA liSBOA pACHECO*

nizações de matriz religiosa; das organizações que reúnem pesso-as com necessidades especiais, consumidores e profissionais do campo da saúde e nutrição; organizações ligadas à agricultura pa-tronal e indústria de alimentos.

O CONSEA abriga a expressão das várias dimensões da políti-ca de segurança alimentar e nutricional, sintetizadas no princípio da intersetorialidade, que nos é muito caro.

Reafirmamos que essa política, baseada no direito humano à ali-mentação adequada, deve se concretizar através das diretrizes con-tidas no plano Nacional de Segurança de Alimentar e Nutricional: acesso universal à alimentação adequada e saudável; promoção do abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis e descentra-lizados de base agroecológica de produção, extração e processa-mento; instituição de processos permanentes de educação alimen-tar e nutricional; fortalecimento das ações de alimentação e nutrição em todos os níveis da atenção à saúde; promoção do acesso univer-sal à água de qualidade e em quantidade suficiente; apoio às iniciati-vas de promoção da soberania alimentar, segurança alimentar e nu-tricional no âmbito internacional e nas negociações internacionais.

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O CONSEA tem, hoje, uma representação de 51% de mulhe-res. A expressão de seu papel na luta pela garantia da segurança alimentar e nutricional começa a refletir-se na consciência da so-ciedade de que são portadoras de direitos, embora haja muito a avançar no plano das políticas e seus instrumentos de operaciona-lização que ainda discriminam as mulheres.

A 4ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricio-nal ocorrida no final do ano passado em Salvador, na Bahia, foi o coroar de um movimento que envolveu mais de 75 mil pessoas, com a participação de 3.000 municípios, todas as regiões, todos os estados. Representou uma inequívoca mostra da força e do alcan-ce de nossa articulação e mobilização social.

Reconhecemos e valorizamos os significativos avanços conse-guidos no Brasil na mobilização social pela soberania e segurança alimentar e nutricional, para os quais contamos várias vezes com a atuante frente parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional.

Temos programas estruturantes que têm sido inspiradores para iniciativas análogas em outros países, como é o exemplo do pro-grama de Aquisição de Alimentos (pAA), o programa Nacional de Alimentação Escolar (pNAE), o programa um Milhão de Cisternas (p1MC) e mais recentemente a inovadora proposta do p1+2 – uma terra e duas águas no semiárido.

Esses são programas que contribuem para revigorar as econo-mias locais, estimular a diversificação da produção, valorizar as cul-turas alimentares e impulsionar a participação social, a organização popular, revitalizando o tecido associativo.

Mas vivemos tempos também de grandes desafios, contradi-ções e riscos de desconstrução de conquistas. por exemplo, o De-creto federal 4887/2003, assinado pelo ex-presidente lula, que regulamentou o processo de titulação das terras dos remanescen-tes das comunidades de quilombos, criando mecanismos que faci-litam o processo de identificação e posterior titulação de comuni-dades, encontrou ferrenha oposição.

precisamos compreender que para os territórios étnico-raciais a terra não é apenas um meio de produção da sua subsistência e reprodução física, mas, também um patrimônio sócio-cultural. A terra é a sua casa, o lugar onde nascem, crescem e desenvolvem suas diferentes formas de vida. É o lugar onde enterram seus mor-tos e celebram a vida. É o lugar onde produzem e reproduzem sua cultura, onde historicamente domesticam plantas e animais e nos deixam um enorme legado de espécies e variedades que enrique-cem a nossa biodiversidade.

A terra não é mercadoria, nem propriedade privada de pessoa física ou jurídica. É patrimônio coletivo, de todo um povo, de seus usos e costumes, e assim a apropriação dos seus frutos se dá, igualmente, de forma coletiva, de forma sustentável.

O reconhecimento e a efetivação do direito ao território para as comunidades quilombolas representa muito mais do que a necessá-ria reparação do erro histórico da escravidão: é a garantia para que a sociedade brasileira possa contar com a existência dos quilombos

na contínua construção econômica, social e cultural da sociedade. para reverter o quadro de riscos para essas populações, o

Consea defende o etnodesenvolvimento como uma diretriz a ser plenamente incorporada no conjunto das políticas públicas do Estado brasileiro, e em especial nas políticas de Segurança Ali-mentar e Nutricional.

Consideramos fundamental adotar o objetivo estratégico da soberania e segurança alimentar e nutricional como um dos ei-xos da estratégia de desenvolvimento do país para superar as desigualdades socioeconômicas, regionais, étnico-raciais, de gê-nero e geração e erradicar a pobreza extrema e a insegurança alimentar e nutricional.

O fortalecimento da capacidade reguladora do Estado se faz necessário, tanto na efetiva regulação da expansão das monocul-turas, como na adoção de medidas como o banimento imediato dos agrotóxicos que já foram proibidos em outros países, incluindo os que foram utilizados em guerras, como o glifosato; o fim de subsí-dios fiscais, acompanhado da implementação de mecanismos de regulação da comunicação mercadológica de alimentos.

É socialmente inaceitável que o mercado seja o único regulador das decisões tecnológicas. A consciência dos consumidores e a manifestação de suas incertezas devem ser consideradas. É indis-pensável revisar a lei de biossegurança e modificar a composição e funcionamento da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), para expressar as diferentes visões existentes na socie-dade e na comunidade acadêmica e ampliar a participação e o con-trole social.

investir na agricultura familiar e camponesa é gerar emprego e renda para milhões de pessoas, é estimular a produção de alimen-tos e a diversidade de culturas, é respeitar tradições alimentares e preservar a natureza, é fixar o homem no campo, é fortalecer as economias locais e regionais.

O aprofundamento da democracia participativa e redistributiva para assegurar o direito humano à alimentação adequada requer a concretização do direito à terra, reconhecendo sua função social nas dimensões socioambiental, econômica e trabalhista, conforme a Constituição federal, através de amplo programa de reforma agrária.

Os movimentos sociais e entidades da sociedade civil defen-dem princípios e valores que nos são muito caros: soberania ali-mentar, sustentabilidade socioambiental, justiça social e climática, participação, controle social, intersetorialidade, igualdade nas rela-ções de gênero, entre outros. São estes valores que devem pautar as ações do CONSEA.

*Maria Emília Lisboa Pacheco é antropóloga, mestre em Antropologia Social

(universidade federal do Rio de Janeiro- ufRJ), integrante da fASE (federa-

ção de Órgãos para Assistência Social e Educacional), da Articulação Nacional

de Agroecologia (ANA) e do fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Ali-

mentar e Nutricional (fBSSAN), atual presidente do CONSEA.

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Aproximando a produção e o consumoSilviO CACCiA BAvA*

território; o financiamento em condições acessíveis aos micro e pequenos empreendedores com novos mecanismos de interme-diação financeira; a maior participação dos atores sociais nos processos de decisão política, o maior cuidado com o meio am-biente do lugar em que vivem.

Os circuitos curtos buscam que a produção e o consumo, sem-pre que possível, se dêem no mesmo território, beneficiando sua cidade ou região. Não se trata apenas de encurtamento de distân-cias, mas de estruturar uma economia de empresas locais, peque-nas e grandes, que estimulem a circulação de riqueza no local, arti-culem cadeias produtivas, absorvam a mão de obra local, necessitem pouco capital, e utilizem baixa tecnologia, abrindo es-paço para que estas iniciativas sejam também empreendimentos populares.

Esta abordagem é resultante dos ensinamentos de uma longa trajetória de experiências nascidas na sociedade civil, que são fruto das práticas de resistência e das iniciativas de movimentos sociais e redes de cidadania na busca por soluções para se enfrentar os problemas da pobreza no Brasil. Os circuitos curtos são inspirados em experiências de desenvolvimento local, com todas suas varian-tes, economia solidária, comércio justo, e agrega um novo compo-nente, a preocupação com a sustentabilidade ambiental.

Ao fortalecer os circuitos curtos de produção e consumo, o pro-jeto de desenvolvimento busca a criação de oportunidades para os atores locais, maiores possibilidades de promover a sustentabilida-de ambiental, a equidade social e a qualidade de vida no território.

Do ponto de vista da segurança alimentar, por exemplo, o fo-mento à agricultura familiar, a redução das distâncias a ser percor-rida pelos alimentos, a recuperação do cultivo de subespécies lo-cais, a comercialização em menor escala de alimentos, são agendas diretamente relacionadas aos circuitos curtos, e se contrapõem à grande produção baseada na grande propriedade, bem como aos sistemas de comercialização hiper centralizados. programas como a exigência de que 30% da alimentação escolar seja comprada

A disputa pelas alternativas de desenvolvimento expressa a contraposição de dois modelos. O dos circuitos longos de produção e consumo, domínio das transnacionais; e o dos circuitos curtos de produção e consumo, que são o cam-

po de atuação dos atores e da economia local. por circuitos longos entendemos, por exemplo, a exportação de

commodities. A soja que é plantada na região central do país e que é exportada para a China. Tomemos este exemplo. A plantação ex-tensiva de soja requer grandes áreas e acaba por concentrar ainda mais a terra no Brasil, expulsando a agricultura familiar. As técnicas de produção são todas mecanizadas, requerendo grande maquina-ria e técnicos especializados para operá-las. Tudo isso requer muito capital. É preciso investir em silos, estradas de ferro, portos, navios, sem considerar o enorme gasto de energia.

Os circuitos longos, ao contrário do que prega a ideologia do mercado, pauperizam o território em que operam, retiram dele re-cursos naturais e a riqueza gerada pela produção, que é transferida para os centros financeiros internacionais. Como seu objetivo não é o desenvolvimento do território, também não se preocupam com a degradação ambiental que geram. Com a adoção de novas tecno-logias, dos avanços na mecanização e na automação, estes gran-des empreendimentos passaram também a absorver muito pouca mão de obra local. O saldo para os atores locais e o desenvolvimen-to do território não é favorável.

um olhar crítico sobre os circuitos longos, sobre as grandes es-calas e os grandes percursos que favorecem a concentração do ca-pital e prejudicam o meio ambiente, a qualidade de vida e a estrutu-ra social, é o ponto de partida para questionarmos este paradigma de produção e consumo.

por circuitos curtos entendemos a busca pela aproximação entre os locais de produção e consumo de bens e serviços; a re-dução da escala das distancias percorridas pelos produtos a se-rem transportados; a diminuição da necessidade de uso de redes de transporte, energia e logística; a utilização de mão de obra do

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dos produtores locais são um bom exemplo de iniciativas que visam o encurtamento dos circuitos de produção e consumo.

A agenda local se identifica com a agenda global. O desafio é participar deste movimento mundial: o da disputa por um novo mo-delo de desenvolvimento. E toda atenção deve ser dada a proces-sos que atuem no sentido de atenuar ou neutralizar as tendências concentracionistas que existem.

Sabemos que nenhuma sociedade se viabiliza exclusivamente baseada em circuitos curtos. A questão central é que a convivência com os circuitos longos deve buscar o desenvolvimento do territó-rio e o fortalecimento dos atores locais.

Recentemente, com a crise do atual modelo de desenvolvimen-to, a questão do desenvolvimento do território passou a estar rela-cionada com a do próprio modelo de desenvolvimento. E incorpora a questão ambiental pela urgência e dramaticidade que ela carre-ga. Trata-se, na verdade, de uma situação mais complexa, trata-se de uma crise civilizatória onde a grande tarefa é construir uma nova sociedade e, para atender esta sociedade, um novo modelo de pro-dução e consumo.

Em toda sociedade existe um novo modelo de produção e con-sumo em gestação. Ele é fruto das lutas pela sobrevivência, das lu-tas sociais, de conflitos pela democratização da sociedade e da ri-queza. Mas este novo modelo nem tem visibilidade, nem é visto no seu conjunto, ou reconhecido como uma alternativa ao modelo vi-gente. Ele acaba por se apresentar na forma de inúmeras experiên-cias que conseguem sobreviver, mas que não se apresentam como algo articulado, como uma proposta de organização social. por for-ça dos controles impostos pelos atores hegemônicos, o campo de experimentação de novos padrões de produção e consumo não ga-nha o espaço público, não se torna objeto de debate, não traz apor-tes para o debate sobre o modelo de desenvolvimento.

Os circuitos curtos de produção e consumo trazem consigo uma nova proposta de organização da sociedade e da economia. podem ser parte de um quebra-cabeça que aponte novos cami-nhos. De toda maneira, para fins imediatos, é uma proposta que favorece os agentes daquele lugar, os trabalhadores e moradores daquele território.

O desafio maior não é o desenvolvimento de novas técnicas ou processos de produção, já existe um acumulo importante de co-nhecimentos a partir das milhares de experiências que se desen-volvem no campo da economia solidária e outras formas cooperati-vas de produção e consumo. A questão é política, isto é, de que se constituam articulações, redes, atores coletivos na sociedade civil que defendam políticas públicas de apoio e fortalecimento dos cir-cuitos curtos.

*Silvio Caccia Bava é sociólogo, técnico do instituto pólis, diretor do jornal “le

Monde Diplomatique Brasil”.

OXFAM

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CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta OXFAM

Os sistemas atuais de produção e consumo de alimentos são marcados pela produção em larga escala e o consu-mo de massa. Eles geram a exclusão de pequenos agri-cultores, a exploração de trabalhadores no campo, ex-

cluem os consumidores sem poder aquisitivo. Suas atividades degradam o meio ambiente tanto pelo lado da produção (monocul-turas, desmatamento, contaminação, etc.) como pela comercializa-ção (emissão de gases do efeito estufa pelo transporte de longas distâncias, sobrepreço pelo excesso de intermediários). E trazem ainda impactos negativos sobre a saúde humana (resíduos de agro-tóxicos, uso indiscriminado de aditivos, alimentos nutricionalmente pobres e ricos em gordura, sal e açúcar, etc.).

Repensar este modelo de produção e consumo de alimentos passa necessariamente pelo debate sobre o papel da mulher. No caso de alimentos, as decisões de compra são das mulheres. infe-lizmente, este “poder de compra” esbarra na falta de informação so-bre os impactos socioambientais dos sistemas de produção de ali-

Consumo responsável e saudável de alimentos: desafio para as mulherespOR liSA guNN E ADRiANA CHAROux*

mentos e sobre a qualidade nutricional dos alimentos industrializados, distanciando as mulheres de alternativas mais responsáveis e sau-dáveis de consumo.

A piora na qualidade da alimentação da população brasileira

O padrão alimentar da população brasileira, sobretudo de crian-ças e adolescentes, está comprometendo a saúde pública. Segun-do a pesquisa de Orçamento familiar (pOf) 2008-2009, realizada pelo iBgE, 48% da população está com sobrepeso e 15% já se classifica em estado de obesidade. “A parcela dos meninos e rapa-zes de 10 a 19 anos de idade com excesso de peso passou de 3,7% (1974-75) para 21,7% (2008-09), já entre as meninas e moças o crescimento do excesso de peso foi de 7,6% para 19,4%”.1

86% da população consome mais gorduras saturadas do que o necessário e 61% se excede no consumo de açúcar. A falta de vita-minas e nutrientes atinge 68% da população. Mais de 90% dos bra-

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CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta OXFAM

sileiros não ingere as 400 gramas diárias recomendadas pelo Minis-tério da Saúde de frutas, legumes e verduras e prefere consumir outros tipos de alimentos pouco nutritivos. Aumenta o risco de doen-ças cardiovasculares, diabetes e outras graves doenças crônicas.

Mãe, compra! Sabe-se que os hábitos de alimentação se desenvolvem na in-

fância, e que a probabilidade de uma criança obesa se tornar um adulto obeso é muito grande. A publicidade, especialmente voltada para crianças, enaltece estilos de vida muitas vezes totalmente in-sustentáveis.

No entanto, existe amplo respaldo na legislação brasileira para que essa situação seja revertida, especialmente no Código de Defe-sa do Consumidor (lei 8.078/90). A proteção contra publicidades abusivas está elencada entre os direitos básicos do consumidor (art. 6º, iv), especialmente aquelas que se aproveitam da deficiência de julgamento e experiência da criança e que induzem o consumidor a se comportar de forma prejudicial a sua saúde (art. 37, § 2º).

Cabe à Agência Nacional de vigilância Sanitária (ANviSA) es-tabelecer regulamentos específicos para controle da publicidade de alimentos. A regulamentação governamental em defesa das crianças não é novidade. Diversos países já o fizeram, como Suécia, inglaterra, Noruega e Canadá .

Apesar de buscar coibir “práticas excessivas...”, a ANviSA ain-da não disciplina de forma apropriada o tema. A resolução está sus-pensa devido a diversas ações judiciais, de diferentes associações empresariais, que são contra a regulação deste tipo de publicidade porque tem seus interesses comerciais afetados.

Agrotóxicoslíder mundial no consumo de agrotóxicos, o Brasil leva para a

mesa alimentos de qualidade incerta, muitas vezes contaminados. Alguns agrotóxicos causam problemas neurológicos, reprodutivos, de desregulação hormonal, e até câncer. E apesar de serem proibi-dos em vários locais do mundo, como união Européia e Estados unidos, há pressões do setor agrícola para manter esses produtos no Brasil.

grande parte dos avanços obtidos com a lei dos Agrotóxicos (lei nº 7.802, de julho de 1989), não tem se tornado efetivos na prevenção, fiscalização e controle dos efeitos nocivos destes pro-dutos. Outro ponto falho apontado é a falta de sanções e punições aos que descumprem a lei.

Aproximando consumidoras urbanas da agricultura familiar agroecológica

A crítica ao sistema atual vem promovendo o fortalecimento da agricultura familiar de base ecológica, a comercialização solidária, os grupos de consumo responsável, ações de promoção da segu-rança alimentar e nutricional, etc.

Os grupos de consumo responsável e as feiras de produtos or-

gânicos são exemplos de alternativas mais “sustentáveis”, que não se restringem a nichos de mercado para os consumidores que po-dem pagar mais por eles.

foram identificadas 140 feiras de produtos orgânicos em 22 das 27 capitais avaliadas. Estas feiras aproximam os consumido-res dos pequenos produtores agroecológicos. porém temos que ir muito além, fazendo com que espaços como estes se espalhem por todas as cidades do país.

pesquisa do idec2 levantou os preços de sete alimentos orgâni-cos (repolho verde, berinjela, pimentão verde, chuchu, tomate, cebo-la e alface americana) em quatro capitais do país. A diferença de preço de um mesmo produto pode chegar a 463%, dependendo do canal de venda (grandes supermercados, feiras de orgânicos e en-tregas em domicílio). Em 100% dos casos, os preços mais baixos foram os praticados nas feiras de produtos orgânicos.

É importante incentivar a aproximação das consumidoras urba-nas com as pequenas produtoras rurais por meio de políticas públi-cas locais de abastecimento. Queremos um maior número de feiras de produtos agroecológicos, assim como a formação de grupos de consumidores de produtos agroecológicos da agricultura familiar.

O poder do consumidor As consumidoras podem ser atoras relevantes na luta para que

as empresas reduzam os impactos socioambientais em suas ca-deias produtivas e para exigir dos governos políticas públicas que estimulem o desenvolvimento de novos padrões sustentáveis de produção e consumo. Além disso, os consumidores devem ser esti-mulados a rever os seus hábitos de consumo e buscar alternativas para mudança.

É preciso evitar o risco de cair em uma interpretação ingênua da realidade, como se o problema se resumisse às empresas tornarem sua produção mais limpa, ou de baixo carbono, e os consumidores se tornarem conscientes dos impactos socioambientais negativos.

Novos paradigmas de produção e consumo implicam um novo mo-delo de desenvolvimento. A produção sustentável exigirá a revisão dos modelos de negócio, e não apenas o “esverdeamento” da produção.

*Lisa Gunn, socióloga graduada pelo instituto de filosofia e Ciências Huma-

nas da unicamp e mestre em ciência ambiental (procam - programa de pós

graduação em Ciência Ambiental da uSp), é coordenadora executiva do idec.

*Adriana Charoux é formada em Comunicação Social pela fAAp (fundação

Armando Alvares penteado) e História na uSp (universidade de São paulo) e

autora do livro “A ação social das empresas: quem ganha com isso?”, Editora

peirópolis, 2007.

1 Dados da pOf 2008/2009 http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noti-

cias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1699&id_pagina=1

2 Revista do idec, edição 142, abril de 2010.

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A reflexão sobre o envolvimento das mulheres nos siste-mas de produção e consumo de alimentos exige olhar para um terceiro aspecto: a reprodução é considerada uma esfera sob a responsabilidade das mulheres, através

da realização cotidiana do trabalho doméstico e de cuidados. Trata--se de uma visão naturalizada do feminino, vinculada à maternidade, e que define o que é ser mulher no mundo. Ao mesmo tempo, a he-gemonia capitalista na definição do atual modelo de produção, re-produção e consumo de alimentos impõe um sistema agroindus-trial, dominado pelas grandes empresas do agronegócio e pelas grandes redes de supermercados. As mulheres são expulsas de regiões que produzem determinados produtos, como é o caso da soja e eucalipto, ou incorporadas como mão de obra intensiva em outros, como na produção de frutas, flores e legumes.

A estrutura patriarcal da família e a divisão sexual do trabalho

As mulheres e a produção de alimentos uma perspectiva feminista para o debatepOR NAlu fARiA*

organizam a inserção das mulheres no trabalho agrícola. Suas ati-vidades são vistas como parte do seu papel de mães, vinculadas ao trabalho doméstico e de cuidados, com a produção no quintal, da horta, do pomar e de pequenos animais. Seu trabalho no roçado é considerado apenas como uma ajuda e, portanto, não é reconheci-do como trabalho, o que promove a invisibilização das mulheres como produtoras de alimentos.

Ainda prevalece uma visão homogênea de família em que o ho-mem representa os interesses do conjunto, incluindo a mulher e fi-lhos. Aparentemente os membros da família têm interesses co-muns que se complementam, ocultando a hierarquia de gênero e geração centrada no poder dos homens sobre as mulheres e filhos(as). A divisão sexual do trabalho separa trabalho de homens e de mulheres, e o trabalho dos homens sempre é mais valorizado que o das mulheres.

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A separação entre as esferas da produção e reprodução orga-niza a economia capitalista e patriarcal, que coloca como centro a produção mercantil e, ao mesmo tempo, oculta e invisibiliza os elos entre essas duas esferas.

No padrão atual, a alimentação para os pobres, cada vez mais homogeneizada, é centrada em carboidratos, alimentos industriali-zados e produzidos em massa; e os ricos se beneficiam de alimen-tos carregados de experiência e cultura, produtos de origem con-trolada e orgânicos (Marcha Mundial das Mulheres, 2008).

Mulheres rurais em lutaNo Brasil, as mulheres rurais têm uma longa trajetória de lutas

para conquistar seu reconhecimento como trabalhadoras rurais e como cidadãs. Nesse percurso estão as lutas para serem aceitas como sindicalizadas, pelo acesso à previdência e à licença materni-dade, para ter documentos. Essas lutas desembocaram na reivindi-cação por renda, o que questiona o homem como representante da família, e incluem a demanda para que as mulheres participem em todos os momentos da produção e comercialização. Com isso, am-pliaram-se as reivindicações para se ter acesso ao crédito, à assis-tência técnica, mas também para decidir sobre a produção e o con-trole da comercialização.

As trabalhadoras rurais e camponesas constróem um dos mo-vimentos de mulheres mais enraizados, com maior organicidade e capacidade de mobilização em nosso país. São exemplos desse processo as quatro edições da Marcha das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2011), os vários acampamentos do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), das mulheres do MST, a ações das mulheres em vários movimentos pelo fortalecimento da agroecolo-gia e tantos outros.

Soberania alimentar: estratégia dos povos para outro modelo

A construção de uma proposta e uma abordagem de soberania alimentar faz parte de um processo de resistência dos movimentos camponeses à ofensiva capitalista de imposição de uma agricultura de mercado. Em suas trajetórias esses movimentos recuperam o significado das práticas de produção alimentar, da agricultura, dos conhecimentos, da cultura alimentar desenvolvidos pelos povos, e resgatam o papel das camponesas como produtoras de alimentos. As lutas em torno da soberania alimentar contribuem para visibilizar a relação campo e cidade e a importância de considerar a inter-re-lação entre o consumo alimentar na cidade com a produção e dis-tribuição de alimentos.

Por um novo paradigma de sustentabilidade da vida humana

utilizar o conceito de divisão sexual do trabalho e o princípio da soberania alimentar para abordar as práticas das mulheres como produtoras e consumidoras de alimentos permite:

Ter uma visão integrada da produção, reprodução e consumo e entender as práticas das mulheres, marcadas pela divisão sexual do trabalho, que faz com que garantam o cuidado e sustentação da vida humana às custas de uma grande sobrecarga de trabalho. As-sumir essa destinação naturalizada, ao não ser encarada como uma questão política e econômica, deixa o caminho aberto para que as respostas às tensões vividas pelas mulheres apareçam a partir do mercado e do consumo alienado.

A transformação deste processo exige a construção de outro paradigma de sustentabilidade da vida humana, no qual o cuidado da vida seja colocado no centro da organização econômica e social, e seja estabelecido o equilíbrio entre produção e reprodução como responsabilidade de todos (as). Exige, portanto, redefinir os tempos de trabalho produtivo e reprodutivo, a importância da co-responsa-bilização dos homens pelo trabalho doméstico e de cuidados, a es-truturação e aumento de serviços sociais, mas também a constru-ção de alternativas solidárias e coletivas.

O reconhecimento do papel histórico das mulheres na produção de alimentos e no descobrimento, hibridação, seleção e preservação das sementes, na construção de um amplo conhecimento acumula-do durante milênios, que garantiu a biodiversidade. Disso decorre a compreensão de que o quintal, na realidade brasileira, cumpre um papel importante para uma produção diversificada, que é funda-mental para a garantia de soberania alimentar. Essas práticas têm também um papel importante na resistência à agricultura de merca-do e sua tentativa de homogeneizar a produção no campo.

O reconhecimento de que a família não é uma unidade homo-gênea e está perpassada por conflitos e interesses de gênero, mar-cados por uma relação de poder desigual entre homens e mulhe-res. Daí a importância das mulheres serem consideradas como sujeitos individuais e com direito à autonomia econômica e política. O que abre questões como a demanda pelo acesso à renda, como o direito à documentação e o questionamento do homem como re-presentante da família.

A compreensão da importância da produção para o auto-con-sumo, combinada com acesso à renda, colocou para as mulheres a questão do seu direito de participar em todas as decisões e mo-mentos da produção e comercialização. Esta postura levanta tam-bém a necessidade de acesso ao crédito.

A reorganização da produção, reprodução e consumo em uma perspectiva de construção da igualdade entre homens e mulheres é, portanto, central para um novo paradigma de sustentabilidade da vida humana.

*Nalu Faria é psicóloga, coordenadora da SOf Sempreviva Organização

feminista.

Bibliografiafaria, N. Economia feminista e agenda das mulheres no meio rural. in: Butto, A (Org). Estatísticas Rurais e a Economia feminista. Brasilia. MDA. 2009.Marcha Mundial das Mulheres. Desafios para a Soberania Alimentar desde as mu-lheres. São paulo. Marcha Mundial das Mulheres. 2008

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A história do Brasil é marcada por um modelo de de-senvolvimento conservador, excludente e concentra-dor da terra e da renda, resultando em graves proble-mas sociais, econômicos e ambientais para o país.

para contrapor a esse modelo o Movimento Sindical dos Tra-balhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR - concebeu o projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário – pADRSS, que tem na essência a demanda por uma ampla e massiva reforma agrária com valorização e o fortaleci-mento da agricultura familiar.

O desenvolvimento rural sustentável e solidário se efetiva so-mente se construído com a participação dos trabalhadores e tra-balhadoras rurais, para o que é essencial a democratização do acesso a terra, a políticas públicas com igualdade de oportunida-

des e exercício pleno da cidadania – acesso à saúde, educação, lazer, cultura, habitação, segurança, etc. (10º CNTTR, 2009).

Nesse sentido, a CONTAg tem lutado pela implantação de uma política de Desenvolvimento do Brasil Rural - pDBR, apoiando fortemente a proposta aprovada pelo Conselho de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário - CONDRAf1. E, conforme preconiza o pADRSS, esta política deve abrigar os re-ferenciais da agroecologia nos processos de produção agrope-cuária, com foco nas potencialidades econômicas locais e na capacidade de mão-de-obra das populações do campo e da flo-resta, garantindo sustentabilidade na produção e na renda. Da mesma forma, promove processos organizativos da agricultura familiar por meio do SiSCOp2, que se propõe a organizar a agri-cultura familiar nas cadeias de produção, comercialização e

políticas públicas de abastecimento alimentarpOR pAulO OlivEiRA pOlEzE*

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acesso aos mercados, garantia da assistência técnica e crédito rural, por meio do cooperativismo.

Na contramão da crise internacional – o ano de 2012 se apre-senta à beira de uma recessão das economias avançadas endivida-das, em função do socorro ao setor privado na crise de 2008 – o Brasil segue num importante processo de ascensão econômica, política e social, condição que o coloca como referência nos seto-res agropecuário e energético, especialmente.

O MSTTR cumpre o papel de avaliar e propor saídas concretas para os históricos problemas socioeconômicos herdados pelo Bra-sil aproveitando da oportunidade e da conjuntura socioeconômica nacional para avançar mais rapidamente na construção e imple-mentação de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável garantindo vida plena às populações do campo e cidades com se-gurança e soberania alimentar.

O potencial da agricultura familiar sua relação com soberania e segurança alimentar.

Com a instituição da lei 11.326/06 se consagrou por definitivo o conceito de “Agricultura familiar”. Antes esse público era identi-ficado por meio de expressões de pouco ou insignificante peso sócio-político, como pequenos produtores, produtores familiares, produtores de baixa renda ou agricultores de subsistência.

Segundo dados do Censo Agropecuário 2006 a agricultura familiar representava 84,4% dos estabelecimentos agropecuá-rios, com uma área de 80,25 milhões de hectares (24,3% da área total); ocupava 12,3 milhões de pessoas acima de 14 anos no campo (74,4% do total), sendo em média 5,0 pessoas ocu-padas a cada 100 ha de área, contra 1,7 dos estabelecimentos agropecuários não familiares, o que mostra uma eficiência maior; e, mesmo com 1/3 (um terço) da área total dos estabele-cimentos agropecuários, ela foi responsável por 38% do valor total da produção.

Esses dados reafirmam a estratégia da CONTAg de lutar por uma ampla e massiva reforma agrária como forma de expan-dir e consolidar o modo de produção da agricultura familiar para enfrentar os desafios das próximas décadas em que a produção de alimentos precisará crescer em 50% para atender a uma po-pulação de 9,0 bilhões de pessoas no ano de 2050, conforme estima a fAO (2009).

A agricultura familiar é estratégica para garantir a segurança alimentar das populações rurais e urbanas com produção de qua-lidade e em quantidade em todos os Municípios, Estados e Regi-ões do Brasil, com possibilidades de atendimento a outros povos.

Ao longo dos últimos 17 anos, já fizemos uma grande caminhada onde pautamos e conquistamos por meio dos gritos da Terra Brasil3, um significativo número de políticas públicas e programas, a exemplo do pronaf Crédito (Custeios e investimentos), proagro Mais, progra-ma garantia-Safra, Seguro da Agricultura familiar – SEAf, progra-ma de garantia de preços na Agricultura familiar – pgpAf, progra-

ma de Aquisição de Alimentos – pAA, programa de Alimentação Escolar – pNAE, programa de Habitação Rural – pNHR, Serviço de Atenção à Sanidade Agropecuária – SuASA, dentre outros.

para garantir a implementação dessas políticas públicas e pro-gramas necessita-se uma consistente articulação dos atores so-ciais e políticos, especialmente por parte dos gestores Municipais e Estaduais, bem como a garantia da participação das organiza-ções da sociedade civil para efetivo controle social. Nesse sentido, a CONTAg orienta suas federações e Sindicatos para ocupar qua-litativamente os espaços de representação legalmente constituídos (Conselhos, fóruns, Câmaras Temáticas etc.) garantindo atendi-mento às demandas dos trabalhadores/as rurais, especialmente, na implementação do pronaf Crédito, pNAE, pNHR e pAA.

Grandes desafios à agricultura familiar para garantia da segurança alimentar

A agricultura familiar precisa integrar sistemas de produção e comercialização articulados a redes de consumo e permuta da pro-dução por meio de contratos de curto, médio e longo prazo, garan-tindo a participação direta das partes nas tomadas de decisão so-bre a logística de beneficiamento, armazenamento e distribuição da produção, bem como a formação dos preços. portanto, é preciso organizar a agricultura familiar preparando-a para disputar chama-das públicas e conquistar espaços para colocar sua produção no mercado institucional.

por outro lado, a agricultura familiar precisa ser vista como profissão que garanta segurança, renda e qualidade de vida. As-sim, é necessário consolidar as políticas públicas e programas existentes para facilitação de acesso aos recursos de investi-mentos em infraestrutura, capacitação em gestão e organização da produção e acesso aos mercados, além de superar as defici-ências de logística, registro/certificação da produção e, em es-pecial, de assistência técnica.

Contudo, negociar preços remuneradores à produção é o desa-fio maior. Como negociar preços remuneradores em longo prazo garantindo qualidade e estabilidade nos contratos?

*Paulo Oliveira Poleze é Assessor da CONTAg.

1 A política de Desenvolvimento do Brasil Rural – pDBR foi proposta pelo Conse-lho de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário – CONDRAf e –compre-ende o espaço rural como o conjunto diversificado dos espaços ambientais, so-cioculturais, econômicos e político-institucionais do território nacional, onde predominam processos de organização da sociedade fundados nas atividades agrícolas (...) e não agrícolas e nas atividades urbanas que mantêm fortes rela-ções de dependência e interação com a dinamização da vida social nesses espa-ços rurais (CONDRAf, 2009)

2 O SiSCOp é a estratégia de atuação do MSTTR para articular, mobilização e apoiar ações de fortalecimento e consolidação da união Nacional das Coopera-tivas da Agricultura familiar e Economia Solidária – unicafes.

3 Ação de mobilização nacional anual de lideranças do MSTTR para proposição, avaliação, reivindicação e negociação de políticas públicas para o desenvolvimen-to rural sustentável e solidário, desde o ano de 1996.

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CRESÇA. Comida. Justiça. Planeta

A chamada vocação agrícola do Brasil é geralmente acom-panhada de adjetivos como inequívoca, inquestionável, algo tão indiscutível quanto um dogma religioso. A palavra vocação, de fato (do latim vocatio), tem origem religiosa. É

o chamamento divino ao cumprimento irresistível de uma missão. “Quem é chamado deve seguir incondicionalmente”, diz a Bíblia.

Durante milênios, a agricultura assegurou praticamente sozinha a sobrevivência da humanidade. Nessa perspectiva histórica, o co-mércio, outros serviços e a indústria são atividades recentes. São elas que garantem nos dias atuais a maior parcela de renda dos pa-íses desenvolvidos. No Japão, a agricultura responde hoje por ape-nas cerca de 1% do piB. Mais recentemente, no caso da China, seu governo (comunista e ateu, por sinal) decidiu romper com a voca-ção agrícola do país, que vai se tornando o maior importador mun-dial de alimentos e grande exportador de produtos com alto conte-údo tecnológico.

Não faz muito tempo, a agropecuária brasileira foi rebatizada: passou a chamar-se agronegócio, unida para sempre à indústria e outras atividades vinculadas ao setor. pediu perdão pelas dívi-das e pelas multas resultantes do desmatamento. Trata agora de atirar à fogueira o Código florestal e outros obstáculos ao cum-primento de nossa vocação maior: desbravar a natureza para ser o celeiro do mundo.

Dizem seus defensores que o agronegócio brasileiro, ao contrá-rio do que se dá nos países desenvolvidos, não recebe subsídios do governo. Que basta que este reduza o custo Brasil, os impostos so-bre suas atividades e que cumpra outras obrigações como a me-lhoria da infraestrutura e logística para o setor. Mas se considera-mos que subsídio é toda forma de apoio à atividade econômica, financeira ou não, direta ou indireta, ou ainda de ordem legal, vemos

Agronegócio: vocação ou profecia autorrealizada?pOR SERgiO SCHlESiNgER*

que a realidade não é essa. Eis aqui alguns dos instrumentos que o governo vem utilizando para fortalecer o agronegócio.

A entrada das multinacionais do agronegócio é estimulada a partir do final dos anos 1980, com a chamada abertura comer-cial e financeira. Esta última estabeleceu gradualmente a livre circulação de capitais, permitindo que fossem remetidos ao ex-terior sem comprovação de que houvessem ingressado anterior-mente, liberando as remessas de lucros, royalties e assistência técnica entre filiais e matriz no exterior. Agrotóxicos e equipa-mentos agrícolas tiveram suas tarifas de importação reduzidas. A exportação de matérias-primas foi isenta de impostos, esti-mulando a exportação da soja em grãos, especialmente. Em 1997, a lei de proteção de Cultivares viabilizou a comercializa-ção de sementes transgênicas.

Os juros do crédito rural são subsidiados pelo Tesouro: em 2006, a média da taxa Selic, referência para os juros pagos ao mer-cado pelo governo, foi superior a 15%, enquanto os médios e gran-des produtores rurais eram financiados a 6,75% ao ano. O último Censo Agropecuário, referente a 2006, aponta que a agricultura familiar é responsável por 84,4% dos postos de trabalho gerados pela agropecuária e 38% do valor total da produção. Na safra 2005/06, ela recebeu apenas 13,7% dos financiamentos públicos destinados ao setor.

A renegociação das dívidas resultantes destes financiamentos tornou-se outra fonte de subsídios, sobretudo para a agricultura em-presarial. A partir de 1995, elas foram sucessivamente renegociadas e reduzidas. Somente entre 2002 e 2005, o governo abriu mão de R$ 9 bilhões. As dívidas renegociadas em 1995, 1999 e 2002, rola-das em 25 anos com juros de 3% ao ano (enquanto a taxa Selic os-cilava entre 15 e 20%), só em contratos acima de R$ 100.000 so-

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OXFAM

mavam um valor global de R$ 26 bilhões. Cálculos informais indicam que seus beneficiários não são mais que vinte mil grandes proprietários. feitas as contas, isto representa uma transferência a cada um deles de R$ 15 mil mensais.

O BNDES é o braço financeiro do governo federal, principal executor da política de desenvolvimento econômico. Sua carteira de financiamentos, muito superior à de qualquer outra instituição financeira do país (R$ 140 bilhões em 2011), revela as prioridades setoriais do governo. Seus empréstimos são também concedidos a juros subsidiados pelo Tesouro. A referência é a TJlp, que geral-mente corresponde a cerca da metade da Selic. O banco financia desde o plantio até os equipamentos agrícolas. usinas de cana-de--açúcar, frigoríficos e a indústria de papel e celulose são os seg-mentos do agronegócio que vêm recebendo os maiores financia-mentos. fibria, JBS e Marfrig estão entre as dez empresas privadas que mais receberam recursos do BNDES. Nas três empresas, o BNDES tem também participação acionária.

Muitas das empresas que protagonizaram fusões recentemen-te tinham o BNDES como sócio. É o caso da Sadia-perdigão, que formaram a BR foods, e da votorantim Celulose e Aracruz, que se uniram na fibria. Nesta última, o banco detém 30% do capital. A promoção de fusões e aquisições visa ampliar a consolidação des-tes setores e também estimular a internacionalização da atuação de empresas brasileiras, como a JBS, da qual o BNDES é também acionista.

Estas mesmas prioridades estão presentes no programa de Aceleração do Crescimento (pAC), criado em 2007 pelo governo federal. Nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, sobretudo, o objetivo é o apoio à grande produção agropecuária, como no caso do asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém e o escoamento da

soja. No caso da cana-de-açúcar, além do investimento em novas usinas, o pAC prevê também investimentos de R$ 4,1 bilhões em obras destinadas ao transporte do etanol, concentradas na cons-trução de dois alcooldutos.

É mais longa a lista das benesses do Estado ao agronegócio. A Embrapa, por exemplo, através de convênios com a Syngenta e a Monsanto, desenvolve variedades de soja transgênica adapta-das às diversas condições climáticas do território brasileiro, como no caso da soja. Mas fiquemos por aqui. A soja nos dá uma ideia clara sobre quem, afinal paga esta longa e pesada conta. Enquan-to a exportação de seus grãos é isenta de impostos, o preço do óleo de soja comestível, componente da cesta básica do consu-midor brasileiro, tem embutido, no mercado interno, uma carga tri-butária de 37,18%.

Tudo isso, na visão das lideranças do agronegócio brasileiro, está longe de ser suficiente. Segundo a senadora Kátia Abreu, também presidente da Confederação da Agricultura e pecuária do Brasil, “Estamos no momento de decidir se vamos ganhar dinheiro com a produção agrícola ou se vamos ser apenas uma grande re-serva legal de florestas do mundo”. Em outras palavras, a visão do agronegócio é a de que é preciso mudar o Código florestal para remover os obstáculos (as florestas e seus habitantes, no caso) que impedem o Brasil de conquistar a liderança mundial na produ-ção de alimentos.

E é assim que cresce, continuamente, o preço que pagamos por nossa suposta vocação agrícola. E que há de se autorrealizar a profecia de que seremos em breve o celeiro do mundo.

*Sergio Schlesinger, economista, consultor da fASE na área sócio-ambiental.

Coordenação editorial: Silvio Caccia Bava

Reportagem e edição:luís Brasilino

Edição de arte: Órbita Design

Ilustrações:Daniel Kondo

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