4524 AS REVOLUÇÕES DA BIOLOGIA

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03 a 06 de setembro de 2018ISBN 978-85-8857-812-8 Anais do VII ENEBIO – I EREBIO NORTE

AS REVOLUÇÕES DA BIOLOGIA: ALGUNS ELEMENTOS DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA E SUAS 4524

AS REVOLUÇÕES DA BIOLOGIA: ALGUNS ELEMENTOS DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO

Marcelo D’Aquino Rosa (Pecim - Unicamp – Bolsista Capes) Carla Nayelli Terra (Pecim – Unicamp – Bolsista Capes)

RESUMO: Alguns episódios na história da Biologia foram determinantes e influenciaram direta-mente nas questões do ensino desse componente curricular. Esses eventos, cruciais para a alteração do pensamento científico, foram permeados por debates entre diferentes correntes, sendo que as mudanças de alguns paradigmas envolveram questões de natureza política, social e filosófica. O objetivo desse texto é debater alguns dos episódios na história da Biologia, como as questões rela-cionadas ao evolucionismo e à origem da vida. Ao final, refletimos o quanto esta problemática é reduzida e simplificada nas questões referentes ao ensino de Biologia e como a História da Ciência poderia ser mais trabalhada a partir da formação de professores, para uma quebra destas visões reducionistas na educação escolar. PALAVRAS-CHAVE: história da Biologia; história da Ciência; evolucionismo; origem da vida.

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos séculos, a Ciência e o conhecimento científico passaram por algumas reviravoltas e o que se conhecia foi transformado com base em descobertas e renovações de ideias e teorias no campo da Biologia. As revoluções e redescobertas na Ciência ocorreram

com grande intensidade a partir do movimento iluminista, trazendo o ser humano para o centro do conhecimento.

No campo das Ciências Biológicas, antigamente conhecidas como História Natural enquanto uma área de conhecimento, as ideias referentes à origem e transformação da vida sofreram subs-tanciais alterações com base nas descobertas e experimentos científicos realizados por alguns nomes que até hoje estão marcados no ensino escolar dessa disciplina. Comumente vemos nos livros didá-ticos e apostilas de Ciências ou Biologia os nomes de Francesco Redi, Louis Pasteur, Jean Baptiste Lamarck, Charles Darwin e Alfred Russell Wallace.

Um possível problema na abordagem desses tópicos no ensino da Biologia é que, na grande maioria dos casos observados, as questões discutidas ficam retidas às descobertas dos cientistas e suas teorias formuladas, estas enquanto um produto final. Não há menções às inspirações de Darwin nas ideias de Lamarck ou as mesmas são mostradas de forma extremamente simplificada e descon-textualizada nos materiais didáticos. Já outros nomes igualmente importantes, como o do cien-tista francês Pouchet, são comumente esquecidos ou relegados a um segundo plano, reduzindo a Biologia apresentada enquanto disciplina escolar a um campo de conhecimento cujo crescimento foi contínuo, linear, sem rupturas, crises ou troca de conhecimentos entre as diferentes correntes de pensamento. Esta, conforme veremos adiante, é uma visão bastante deturpada de Ciência e de trabalho científico, segundo Gil-Pérez e colaboradores (2001).

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Em que pesem o fato dos materiais didáticos apresentarem certa concepção de currículo para determinada disciplina (LOPES; MACEDO, 2011), ou mesmo as áreas como a Biologia na Educação Básica se constituírem em um currículo modelado pela ação dos professores (GIMENO SACRISTÁN, 2000), é nos materiais didáticos e na educação escolar que estão presentes a histó-ria de vida destes cientistas, sendo suas descobertas narradas em tom de grandes acontecimentos históricos. É ainda na educação escolar em Ciências no Ensino Fundamental, ou na disciplina de Biologia no Ensino Médio, que os estudantes são apresentados aos nomes destes cientistas, que cumpriram importante papel na história da Ciência e são lembrados até os dias atuais.

Outro potencial problema dos livros didáticos, material amplamente utilizado para os pro-cessos pedagógicos nas escolas até os dias atuais (ISSITT, 2004), é o enfoque muito grande destes nas questões conceituais e dos seus conteúdos, enquanto outros fatores, como o método científico ou a história da Ciência, acabam ficando deslocados ou em segundo plano (BINNS; BELL, 2015). O estudo de Ferrari, Leite e Delizoicov (2001), por exemplo, apresenta um exemplo de um livro didático de Biologia em que Gregor Mendel é abordado como o “pai da genética”, um herói soli-tário que realizou extraordinárias descobertas científicas a partir do cruzamento de suas plantas de ervilhas. Essa seria uma visão deformada de Ciência com grande potencial para ser reproduzida erroneamente ao se ensinar Biologia na educação escolar, por exemplo.

Consideramos, pela razão supracitada, que se constitui em importante fator que os estudan-tes de nível Fundamental ou Médio possam ter acesso à história destes cientistas e suas descobertas de várias formas diferentes do livro didático e demais materiais presentes na educação escolar, pois acreditamos em uma Ciência que não possa ser considerada neutra socialmente, ahistórica, acrítica ou ateórica (GIL-PÉREZ et al, 2011; PRAIA, GIL-PÉREZ, VILCHES, 2007). Este é um dos fato-res que, quando ocorre de forma recorrente na prática dos professores, pode influir negativamente no ensino das Ciências e Biologia, de uma maneira geral (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2011).

Acreditando que a história da Ciência tenha um importante papel no ensino dos compo-nentes curriculares Ciências e Biologia na educação escolar, o objetivo desse artigo em formato de ensaio teórico é desvelar algumas ideias a respeito de pensamentos e experimentos que são conside-rados chave na área da Biologia. Igualmente, queremos debater brevemente acerca das contribuições históricas de trabalhos dos cientistas discutidos neste texto.

A TRANSFORMAÇÃO DAS ÁREAS DE CONHECIMENTO DA CIÊNCIA COM BASE EM ALGUNS EVENTOS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO

O estudo das questões relacionadas à História, Filosofia e Sociologia (HFS) e das mudan-ças paradigmáticas no campo da Ciência nos currículos escolares pode ser uma prática positiva, uma vez que já vem contribuindo para a aprendizagem das Ciências em alguns países do mundo (MATTHEWS, 1995). No ensino de alguns componentes curriculares e, por consequência, nos materiais didáticos brasileiros, vemos que este fator ocasionaria uma potencial melhora na educação escolar, uma vez que ainda são reproduzidas muitas questões reduzidas e/ou distorcidas de alguns episódios históricos que ocorreram no campo da Ciência, mesmo nas escolas e nos dias atuais.

No campo da Biologia existem dois exemplos clássicos de rupturas com visões ingênuas e simplistas das Ciências, que antes eram tomadas como verdades inquestionáveis, a saber: as mudan-ças de paradigma (KUHN, 1997) sobre as teorias de origem da vida e da evolução. Embora estas

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ideias sejam tratadas de maneira bastante superficial nos materiais didáticos (e no ensino de Ciências em geral), há que se questionar sobre quais eram os fatores históricos, científicos, filosóficos e políti-cos do momento que permearam esses dois grandes debates no ramo da História Natural.

As ideias evolucionistas defendidas por Darwin e Wallace, por exemplo, foram inicialmente rechaçadas e ridicularizadas por irem de encontro aos dogmas do Cristianismo e da Igreja Católica, rompendo com os ideais fixistas/criacionistas dessa instituição e derrubando o princípio da imuta-bilidade dos seres vivos (FREITAS, 1998). A biografia de Darwin possui um salto de muitos anos entre o término de sua viagem no Beagle (expedição determinante para formulação de sua teoria sobre a seleção natural) e a publicação de sua obra “A origem das espécies”, em 1859.

Este grande intervalo seria explicado, em parte, por uma possível relutância do mesmo em publicar suas ideias, por possuir uma formação religiosa e teológica forte, sendo esta anterior aos estudos sobre evolucionismo. Martins (2009) ainda salienta que Darwin, embora crente nas ideias evolucionistas e da seleção natural, não defendeu de maneira explícita nenhum ponto de vista a res-peito da origem da vida, preferindo se referir a este fenômeno como mero “sopro” que deu origem a um ancestral comum de todos os demais seres vivos atuais, fator que ajuda a reforçar o fato da crença religiosa de Darwin na Inglaterra do século XIX.

Ainda segundo Freitas (1998), a própria discussão sobre a origem da vida iniciou-se em outros campos como a Filosofia e a Teologia, sendo que só depois chegou ao trabalho dos natu-ralistas e, assim, nesse sentido o francês Jean Baptiste Lamarck foi o cientista pioneiro, inclusive influenciando muito dos pensamentos evolucionistas do próprio Charles Darwin. Além das ideias de Lamarck, o geólogo Lyell também teria sido uma pessoa bastante importante para o naturalista inglês na formulação de suas ideias evolucionistas.

Já próximo ao período das publicações a respeito das teorias evolucionistas e da seleção natural, ganha destaque a figura de Darwin. Embora o mesmo tenha trocado muitas cartas com Wallace (Figura 1) a respeito de suas ideias e ambos tenham apresentado juntos suas teorias, a figura do primeiro é muito mais lembrada e presente no ensino de Biologia do que o segundo.

Figura 1. Os cientistas Charles Darwin e Alfred Russel Wallace

(Fonte: http://biogeoamazonica.blogspot.com.br/2013/06/darwin.vs.wallace.html, acesso em 01/12/2017)

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Papavero e Santos (2014, p. 177-178) abordam essa questão por um viés muito interessante ao fazerem a reflexão de que

Passados mais de 150 anos da publicação conjunta de Darwin e Wallace, este último, apesar de ter intuído a seleção natural e a origem das espécies mais rápida e detalhada-mente que Darwin, ainda permanece relegado a um plano secundário na história das ciências. Muito do que vemos hoje em relação ao estrelato de Darwin e o anonimato de Wallace pode ser explicado pela indústria acadêmica que gira em torno da figura de Darwin. Entretanto, parte da resposta a esse fenômeno também pode ser encontrada na maneira pouco atenta com que estudantes, professores e pesquisadores têm estudado a história do evolucionismo.

Além do fator atribuído acima pelos autores, consideramos também que Darwin ganhou um reconhecimento maior justamente pela publicação de sua obra “A origem das espécies”, em 1859, um livro tido como referência aos cientistas evolucionistas até os dias atuais. Já Wallace, por outro lado, por não ter publicado uma obra desta magnitude, acabou sendo relegado ao segundo plano em seu contexto histórico.

Já na mesma época, em meados do século XIX ocorriam paralelamente na França alguns estudos e experimentos a respeito das teorias sobre a origem da vida, ficando evidente o embate entre as teorias da abiogênese e da biogênese. Embora os livros didáticos de Ciências e Biologia abordem a questão por um ponto de vista pautado em reducionismos e visões ingênuas, alguns estudos mostram que o embate entre os dois campos de visão sobre a origem da vida não foi tão simples e direto como se é apresentado nos materiais didáticos.

Martins (2009) apresenta os estudos de Pouchet, cientista contemporâneo de Pasteur (Figura 2) que realizou experimentos semelhantes aos deste, obtendo resultados diferentes e que endossavam as ideias acerca da geração espontânea (abiogênese). A diferença entre os experimentos de ambos, no caso, estava nos meios de cultura (o caldo ou “alimento” dos microgranismos), utili-zados nos dois estudos. Dessa forma, a briga entre as duas correntes de pensamento alongou-se por bastante tempo no contexto da época e permanece até os dias atuais, de certa forma, pois as ideias referentes à abiogênese vão ao encontro de um pensamento religioso e fixista, que supõe a criação de todas as formas atuais de vida por um criador ou ser superior.

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Figura 2. Os cientistas Louis Pasteur e Felix Pouchet

(Fonte: http://www.oei.es/historico/divulgacioncientifica/?La-controversia-Pasteur-vs-Pouchet-sobre-la-generacion-espontanea-un-recurso, acesso em 01/12/2017).

Este é um perigo que verificamos ser potencialmente danoso no caso das disciplinas de Ciências e Biologia, ainda mais quando este se apresenta dessa forma em materiais didáticos, pois tende a se refletir na própria prática e forma de ensino dos professores. Os livros didáticos e mate-riais apostilados, em geral, começam a trabalhar este conteúdo pelos experimentos de Redi (acesso das moscas aos frascos de alimentos) e posteriormente de Pasteur (caldo nutritivo), alertando o público leitor que ambos conseguiram derrubar de maneira inegável a teoria da abiogênese, sendo que esta não é uma verdade absoluta.

Martins (2009) chega a tratar esta forma de abordagem de “pseudo história”, pois estes materiais “simplificam” mais de 2000 anos de discussões e embates na área a alguns poucos nomes e parágrafos, incorrendo em um reducionismo perigoso e cheio de imprecisões e falsas informações. A autora ainda termina seu trabalho evidenciando que as ideias de Louis Pasteur ganharam ênfase na França do século XIX por questões políticas e religiosas, uma vez que o país sofreu um golpe de Estado em 1851 e a Igreja voltou a ter grande poder sobre a população francesa.

Em que pesem esses fatores sociais de natureza política, filosófica e/ou religiosa, quando transpomos os problemas referentes ao ensino das temáticas sobre o evolucionismo e a origem da vida aos dias atuais, ainda assim nos deparamos com questões delicadas enquanto educadores. As religiões de matriz cristã, como o catolicismo e o protestantismo, fazem corrente contrária às ideias biológicas referentes a essas questões pelo viés da Biologia, constituindo um verdadeiro nó na (já árdua) tarefa docente. Como professores das áreas de Ciências, acreditamos que toda e qualquer temática referente ao conhecimento científico deva ser abordada em sala de aula, concordando com o ponto de vista de que se configura um problema muito maior para o ensino quando

Ocorre que muitos professores, até mesmo os de Ciências e Biologia, fogem do assunto, omitindo-se a respeito de seu posicionamento sobre a origem e a diversidade da vida, o

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que se configura em grave problema, considerando que a escola pública, assim como o Estado, é laica [...] (SILVA; PIGNATA, 2014, p. 111)

Sendo a escola uma instituição laica, assim como Estado brasileiro, consideramos que o ensino dessas temáticas deva ser incluído e abordado pelo viés biológico e científico, reforçando o respeito e a consideração às crenças individuais de cada sujeito, uma vez que no Brasil a liberdade de expressão religiosa também é assegurada a toda a população. Acreditamos ainda que essa abordagem para o ensino de Ciências e Biologia possa reforçar uma visão não-dogmática de Ciência, apresen-tando-a como uma área de conhecimento em constante transformações, inacabada e influenciada pela atividade das pessoas.

Assim, Greca e Freire Jr. (2004) mencionam a importância de se evitar que certas visões e concepções rígidas, deformadas e socialmente neutras de Ciência sejam tomadas como verdades absolutas e questões comuns no ensino das Ciências. Na educação escolar, em nosso ponto de vista, apresentar o lado “humano” dos cientistas contribui para que os estudantes que cursam as disci-plinas de Ciências se interessem e tenham envolvimento com os conteúdos referentes à Biologia e Física, por exemplo.

Concordamos também com as ideias de Gooday et al (2008), quando estes falam que aprender Ciências, além dos conteúdos, deve ser também aprender sobre a constituição da Ciência (instituição) nas disciplinas escolares. Ainda de acordo com esses autores, essa mudança ocorreria principalmente pela mudança na formação dos professores que lecionariam essas disciplinas.

CONSIDERAÇÕES FINAISNesse artigo foram discutidas algumas questões referentes ao trabalho de cientistas nos cam-

pos de conhecimento das Ciências e da Biologia. Apresentamos brevemente as contribuições destes pesquisadores à Ciência e à história da Ciência, ao longo do período em que os mesmos se manti-veram ativos e produtivos enquanto cientistas e também posteriormente.

As questões históricas relativas ao campo da Biologia continuam a apresentar desdobramen-tos nem sempre positivos, revelando muitas vezes uma imagem de Ciência neutra, acrítica, ahistó-rica, aproblemática e com sérias distorções em sua imagem para o público em geral (GIL-PÉREZ et al, 2001). Tais questões, em qualquer área da Ciência, podem torná-la um campo de conhecimento pouco interessante aos estudantes na Educação Básica, justamente por apresentá-lo desconexo e des-contextualizado, refletindo em potencial perda de motivação dos alunos por esse componente cur-ricular nos processos pedagógicos, conforme já argumentado anteriormente (PRAIA, GIL-PÉREZ, VILCHES, 2007). Contornar essas questões na educação escolar faz-se, assim, uma importante questão para contribuir para o ensino e a aprendizagem das Ciências e da Biologia.

Conforme salientamos em nossa escrita, consideramos fortemente que as questões relacio-nadas à HFS da Ciência deveriam ser abordadas com maior ênfase nas aulas de Ciências e Biologia, para que os estudantes pudessem reconhecer fatores intrínsecos à atividade humana dos cientistas em suas atividades com maior destaque. Frisamos que as atuais condições para o ensino das Ciências e Biologia nem sempre são as ideais, a começar pela própria formação dos professores que, com raras exceções, é também superficial neste aspecto - ao menos em sua etapa inicial.

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Assim, possíveis sugestões para uma melhora nesses aspectos passariam por um maior traba-lho referente às questões desta natureza em momentos de formação continuada e/ou permanente dos professores de Ciências em atividade, inserção com maior ênfase desta temática nos documen-tos oficiais - currículos escolares e diretrizes estaduais e municipais -, além de uma reformulação dos próprios materiais didáticos, também neste sentido.

Uma última sugestão é que as questões referentes à HFS e suas publicações pudessem ter uma maior penetração junto às instituições escolares e aos professores da Educação Básica. Essa é uma crítica que ouvimos de muitos professores de Ciências e Biologia a respeito das pesquisas em Educação e Ensino, de uma maneira geral, e que estendemos aos trabalhos e publicações da área de História e Filosofia da Ciência.

Consideramos que nós, pesquisadores das áreas de Educação e Ensino, deveríamos ter esta preocupação mais presente em nossas atividades: tornar nossas publicações mais “úteis” e menos “prescritivas” e, dessa forma, oferecer subsídios aos professores e processos pedagógicos que analisa-mos em nossas pesquisas (MACHADO, 2007).

REFERÊNCIASBINNS, I. C.; BELL, R. L. Representation of scientific methodology in secondary science textbooks. Science & Education, v. 24, n. 7, p. 913-936, 2015.

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GIL-PÉREZ, D. et al. Para uma Imagem não Deformada do Trabalho Científico. Ciência & Educação, v. 7, n. 2, p. 125-153, 2001.

GIMENO SACRISTÁN, J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

GOODAY, G.; LYNCH, J. M.; WILSON, K. G.; BARSKY, C. K. Does science education need the history of science? Isis, v. 99, p. 322-330, 2008.

GRECA, I. M.; FREIRE JR, O. A “Crítica Forte” da ciência e implicações para a educação em ciências. Ciência & Educação, v. 10, n. 3, p. 343-361, 2004.

ISSIT, J. Reflections on the study of textbooks. History of Education, v. 33, n. 6, p. 683-696, 2004.

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 5ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1997.

LEITE, R. R. C. M.; FERRARI, N.; DELIZOICOV D. A história das leis de Mendel na perspectiva fleckiana. Revista da Associação Brasileira de Educação Em Ciências, v. 1, n. 2, p. 97-108, 2001.

LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de Currículo. São Paulo: Editora Cortez, 2011.

MACHADO, N. J.; Qualidade da educação: Cinco Lembretes e uma Lembrança. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, p. 277-294, 2007.

MARTINS, L. A-C. P. Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada. Filosofia e História da Biologia, v. 4, p. 65-100, 2009.

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MATHEWS, M. História, Filosofia e Ensino de Ciências: a tendência atual de reaproximação. Cad. Cat. de Ensino de Física, v. 12, n. 3, p. 164-214, 1995.

PAPAVERO, N.; SANTOS, C. F. M. Evolucionismo darwinista? Contribuições de Alfred Russel Wallace à teoria da evolução. Revista Brasileira de História, v. 34, n. 67, p. 159-180, 2014.

PRAIA, J.; GIL-PÉREZ, D.; VILCHES, A. O papel da natureza da ciência na educação para a cidadania. Ciência & Educação, v. 13, n. 2, p. 141-156, 2007.  

SILVA, R. F.; PIGNATA, M. I. B. Charles Darwin e a teoria da evolução. In: 11º Congresso Pesquisa, Ensino e Extensão (11º CONPEEX). Anais.. Goiânia: Universidade Federal de Goiás-UFG, 2014.

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NOVOS ATORES NO ENSINO DE EVOLUÇÃO: KROPOTKIN, A ESCOLA RUSSA E A 4532

NOVOS ATORES NO ENSINO DE EVOLUÇÃO: KROPOTKIN, A ESCOLA RUSSA E A INTÉRFASE DO DARWINISMO

João Gabriel da Costa (Bolsista CAPES – Mestrado PPGECT/UFSC)

Resumo: Desde a Origem das Espécies até o período conhecido como eclipse ou intérfase do Darwinismo (1890-1940), uma escola de naturalistas russos dispensa o argumento malthusiano da luta pela sobrevivência, sugerindo a cooperação como fator evolutivo central, sendo Piotr Kropotkin o mais proeminente entre eles. Essa tradição foi influenciada por diferenças ambientais e geográ-ficas entre a Sibéria e a Europa, mas também pelo contexto social e histórico distinto. Incluir essa corrente no ensino de evolução pode superar limitações apontadas na literatura a partir de uma concepção de história contextualizada e não-simplista, com atenção às sugestões da concepção crí-tica do movimento Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), onde se discute a influência de fatores socio-históricos na produção da ciência.Palavras-chave: ensino de evolução, História e Filosofia da Biologia, educação CTS, Piotr Kropotkin

Introdução

As propostas que Charles Darwin publicou no livro A origem das espécies (1981), cuja primeira edição saiu em 1859, não foram as primeiras ideias evolucionistas, ao contrário do que é muitas vezes disseminado – segundo Sloan (2014), muitos naturalistas já haviam desen-

volvido ideias evolutivas décadas antes de Darwin, incluindo Jean-Baptiste de Lamarck. Outra crença comum é de que as ideias em A origem das espécies tenham se mantido sempre hegemônicas entre naturalistas e pesquisadores. Apesar de seu grande sucesso inicial no campo científico – e da verdadeira turbulência que causou na sociedade europeia – a ideia da evolução por seleção natural sofreu sérias contestações e não possuía ampla adesão durante um período significativo do desen-volvimento da Biologia Evolutiva, entre as décadas de 1890 e o início dos anos 1940. Isso significa que, décadas depois da morte de Darwin, em 1882, pelo menos duas gerações de pesquisadores trabalharam em outras teorias evolutivas concorrentes à seleção natural, incluindo a ortogênese, o saltacionismo, o neolamarckismo e a teologia natural (BOWLER, 2005).

Essas distintas teorias buscavam dar respostas às limitações apontadas na seleção natural, como uma explicação para a não-diluição das características, a falta de um mecanismo de trans-missão dos caracteres ou a própria origem das variações – o que se deu em um contexto de cres-cente separação entre naturalistas e os chamados “experimentalistas”, pesquisadores trabalhando com experimentos controlados em laboratórios (BOWLER, 1983). Esse período foi chamado de eclipse do Darwinismo por Julian Huxley no livro Evolução: A Síntese Moderna (2010), de 1942, mas autores contemporâneos têm sugerido o termo concorrente de intérfase do Darwinismo – uma referência ao momento da divisão celular em que existe grande atividade, ainda que ela esteja esta-cionária – para evitar o apagamento da produção científica nesse intervalo, bem como uma noção

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teleológica de que a seleção natural necessariamente voltaria, como acontece com a luz em um eclipse (LARGENT, 2009).

Distantes do eixo Londres-Paris onde esses debates se desenvolvem – não apenas geografi-camente, mas também culturalmente – está uma tradição de naturalistas que também questionou pontos basilares do argumento de Darwin, muitas vezes ignorados pela historiografia da ciência, mas caracterizados por outros como a Escola Russa, da qual fizeram parte N. Beketov, S. I. Korzhinskii, I. I. Mechnikov, K. F. Kessler, N. A. Severtsov, K. A. Timiriazev e P. Kropotkin (WEINER, 1993). Esses pensadores compartilhavam uma crítica à ideia de luta pela sobrevivência, conceito fundamen-tal na seleção natural por influência do argumento de Thomas Malthus referente à competição por recursos. A partir das ideias de Darwin, articularam uma corrente própria do pensamento evolutivo da segunda metade do século XIX ao início do século XX.

A partir desse contexto, essa pesquisa busca investigar quais as potencialidades de discutir a Escola Russa e o contexto da intérfase do Darwinismo no Ensino de Evolução. De forma auxiliar, esse trabalho envolve caracterizar as principais ideias da Escola Russa de pensamento evolutivo.

MetodologiaEssa pesquisa tem caráter qualitativo e parte da análise de livros e trabalhos sobre a Escola

Russa do pensamento evolutivo, motivo pelo qual a pesquisa se encontra na interface entre o Ensino de Evolução e a História e Filosofia da Biologia. A caracterização desse elemento da História da Biologia é feita com base nos referenciais do movimento Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) de linha crítica e nos debates sobre a inclusão de História e Filosofia da Ciência (HFC) no Ensino de Ciências.

Partindo de um conhecimento prévio a respeito do livro “Apoio mútuo”, de P. Kropotkin, fonte primária traduzida e publicada em inglês e português, uma busca na ferramenta Google Scholer foi feita por fontes secundárias que discutissem suas ideias, momento onde uma série de trabalhos em inglês apontaram para a existência da Escola Russa. Foram buscados trabalhos de referência sobre o eclipse do darwinismo através de uma pesquisa pelo conceito em inglês na fer-ramenta Google Scholar, onde algumas pesquisas apontaram para o novo conceito de intérfase do darwinismo. No campo da educação em ciências, foram utilizados como referencial trabalhos que tratam dos principais desafios ao ensino de evolução no Brasil contemporâneo; da importância do uso da história e filosofia da ciência na educação; e do debate entre as relações ciência-sociedade na perspectiva CTS crítica. A análise do material encontrado é realizada buscando apontar potencialidades para enfrentar algumas das limitações apontadas na literatura da Educação em Ciências para o Ensino de Evolução no Brasil.

Resultados e discussão

A Escola Russa do pensamento evolutivo

Desde a década de 1860, o ictiologista russo Kessler já defendera o que chamou de apoio mútuo como um fator evolutivo oposto à “luta mútua”, à competição (TODES, 1987, p. 546). Para diferentes autores dessa escola, a cooperação – o apoio mútuo – era considerado uma lei do processo

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evolutivo. Embora influenciados e estimulados pelas ideias da seleção natural, os naturalistas russos iam a campo em regiões muito diferentes daquelas estudadas por Darwin ou Wallace, que estive-ram nas florestas tropicais. Esses autores defenderam que, nas tundras e campos gelados do interior russo, a principal competição pela sobrevivência era contra as condições adversas da natureza e a principal arma nessa luta era a cooperação intraespecífica, que poderia facilitar abrigo, alimentação, aquecimento, entre outras necessidades básicas (TODES, 2009, p. 37).

Todes (1987, p. 3) ainda levanta motivações externas à ciência para essa posição: a pre-dominância de uma economia rural e de subsistência, em um país de proporções continentais e baixíssima concentração demográfica, tornavam a ideia de competição menos palatável – ao con-trário da Europa Ocidental que vivia o desenvolvimento capitalista através da industrialização, do crescimento das cidades e de um ethos da competição e eficiência. Vucinich (1988) demonstra como o argumento malthusiano era rechaçado por todo o espectro político russo da época: de um lado, enquanto símbolo de competição capitalista e individualismo; de outro, como representante do materialismo e do niilismo ocidentais.

É nesse contexto que surge a obra Apoio Mútuo: um fator da evolução (2006), publicada no formato livro em 1902 por Piotr Kropotkin, o naturalista da Escola Russa cujo trabalho teve maior influência e visibilidade na ciência europeia. Seu trabalho, um conjunto de artigos escritos entre 1890 e 1896, era uma resposta à interpretação da brutal competição com que Thomas Huxley caracterizou a natureza em seu artigo A luta pela existência: um programa (1888). Kropotkin se declara um darwinista, mas crítico da competição como principal fator evolutivo – e ferozmente contra aqueles que usavam essa interpretação para justificar as guerras, o imperialismo ou a desi-gualdade social. Além de naturalista, Kropotkin foi um dos militantes anarquistas mais influentes na história, ideologia política para a qual ele buscava coerência e mesmo argumentos em seu estudo da natureza (COSTA, 2015).

Sua busca por desenvolver um Darwinismo sem Malthusianismo parte das observações que fez na Sibéria entre 1862 e 1867, juntando dados sobre comportamento de dezenas de espécies animais. Ele defendeu a Lei do Apoio Mútuo como principal fator evolutivo, que significava em sua obra a cooperação intraespecífica, em particular as expressões de sociabilidade animal. Kropotkin considerava a cooperação como algo além de uma estratégia evolutivamente funcional, mas uma força positiva responsável pelo progresso na evolução. Para o autor, a ênfase dada ao aspecto da competição pelos darwinistas de sua época causariam o “desgosto do próprio Darwin” e sua motiva-ção era desenvolver o papel da cooperação, reconhecida dentro da teoria darwinista, mas silenciada por seus defensores (KROPOTKIN, 2006, p. VIII). Além da visão progressiva, Kropotkin contava ainda com a influência direta do meio ambiente no processo de transformação das espécies, elemen-tos que seriam dispensados pelos chamados darwinistas de sua época em diante.

Seus trabalhos foram publicados em algumas das principais revistas científicas da época e dialogaram com os principais debates correntes no campo, demonstrando que não havia um completo isolamento da Escola Russa frente aos naturalistas europeus. Essas publicações também atestam que suas pesquisas utilizavam metodologia e referenciais compatíveis com o resto da ciência produzida no período, ainda que defendessem uma posição bastante distinta dos darwinistas nesse momento – o que é compreensível, também, pelo momento da intérfase do Darwinismo (COSTA, 2015).

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NOVOS ATORES NO ENSINO DE EVOLUÇÃO: KROPOTKIN, A ESCOLA RUSSA E A 4535

Contribuições para o Ensino de EvoluçãoZamberlan e Silva (2012) discutem algumas das dificuldades no Ensino de Evolução no

Brasil. Entre elas, está a descontextualização do tema evolução, tratado como conteúdo específico, quando deveria ser um eixo norteador de todo o ensino de Biologia. Nos livros didáticos do Ensino Médio, é bastante comum que esse tema receba menos de 10% do espaço da disciplina e apareça apenas no final do terceiro ano, de forma isolada, problema já apontado por pesquisas desde os anos 1990 (CICCILINI, 1993). Tidon e Vieira (2009) discutem a influência das ideias do design inteligente nos currículos como problemáticas ao ensino de evolução – ao qual podemos acrescen-tar, contemporaneamente, projetos como o Escola Sem Partido. Além disso, apontam dificuldades conceituais de muitos docentes no tema da evolução, como a compreensão populacional e não--progressiva da evolução, às quais a revisão de Vieira e Karat (2016) acrescentam as dificuldades de estudantes com a compreensão das grandes dimensões temporais e a relação filogenética do ser humano com as outras espécies. Esses pesquisadores discutem a grande influência de concepções equivocadas de evolução veiculadas na mídia como um fator relevante para a má compreensão de estudantes sobre evolução.

Corrêa e colaboradores (2010) discutem, entre os problemas existentes nos livros didáticos, um suposto embate direto entre Lamarck e Darwin, que não ocorreu – pelo diferente momento histórico em que viveram, mas também pelos diferentes pontos em comum em seus pensamentos e pelas distorções na forma simplificada como Lamarck e Darwin são usualmente apresentados. Alguns exemplos disso estão no silenciamento de que Darwin também cedeu espaço para a herança de caracteres adquiridos na maioria das edições da Origem ou de que Lamarck desse papel central a uma tendência de avanço rumo à complexidade na transformação das espécies, frente a qual a herança de caractereres adquiridos era secundária. Almeida e Falcão (2010) apontam como essa visão simplificada surge nos currículos importados dos EUA, nos anos 1960, e se perpetua desde então.

Muitas dessas dificuldades estão diretamente relacionadas à ausência de outros autores importantes para o desenvolvimento das ideias evolutivas, assim como a falta de informações sobre seus contextos históricos. Uma solução apontada na literatura é a inclusão da História e Filosofia da Ciência no Ensino de Ciências (ZAMBERLAN; SILVA, 2012). Matthews (1995) defende o uso de história e filosofia no ensino de ciências porque podem

humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade; podem tomar as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permi-tindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamento crítico; podem contribuir para um entendimento mais integral de matéria científica (…); podem melhorar a formação do professor auxiliando o desenvolvimento de uma epistemologia da ciência mais rica e mais autêntica (MATTHEWS, 1995, p. 165)

A saga de pesquisadores radicados em condições adversas na Sibéria – especialmente com biografias agitadas como Kropotkin – certamente possibilita interesses pessoais, culturais e políticos associados ao debate científico. Ainda mais importante, o processo de debate internacional sobre quais hipóteses se tornam hegemônicas na teoria evolutiva – e sob quais critérios – promove um

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NOVOS ATORES NO ENSINO DE EVOLUÇÃO: KROPOTKIN, A ESCOLA RUSSA E A 4536

avanço significativo na interpretação da natureza da ciência, ressaltando seu caráter coletivo e argu-mentativo (PEDUZZI; RAICIK, 2017).

A partir do debate acumulado no campo, Allchin (2004) aponta uma série exaustiva de precauções necessárias para o trabalho com história da ciência na educação, evitando simplifica-ções prejudicias, como “versão romanceada; personalidades sem defeitos; descobertas monumentais e individuais; insights do tipo Eureka; somente experimentos cruciais; sentido do inevitável (plot trajectory); retórica da verdade versus ignorância; ausência de qualquer erro” (p. 193), entre outras. Muitas dessas características estão presentes nos materiais sobre ensino de evolução e a inclusão da história de outras correntes do pensamento evolutivo pode evitar particularmente o sentido de inevitável, as descobertas individuais, experimentos cruciais e a ausência de erros na trajetória da biologia evolutiva. Allchin ainda aponta como sinais de falta de contexto histórico a ausência de ideias antecessoras e a aceitação sem críticas do novo conceito (p. 193).

Corrêa e colaboradores (2010, p.222) interpretam que, para os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), o uso da História e Filosofia da Biologia é visto como importante para “a compreensão de que há uma ampla rede de relações entre a produção científica e os contextos sociais, econômicos e políticos”. Discutir essa influência social é uma dificuldade que ultrapassa o Ensino de Evolução e perpassa toda a Educação em Ciências, porque significa questio-nar a ideia hegemônica da ciência enquanto instituição autônoma à sociedade, capaz de buscar – ou mesmo alcançar – a verdade sobre a natureza de forma neutra.

O movimento Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) – em particular nas suas concep-ções críticas – busca trazer esses questionamentos às concepções de ciência e tecnologia. Auler e Delizoicov (2001) consideram que há uma perspectiva CTS reducionista e uma ampliada, sendo que esta é capaz de questionar a tecnocracia, a visão salvacionista de ciência e tecnologia e o deter-minismo tecnológico. Isso envolve debater seus pressupostos epistemológicos, incluindo a interpre-tação da ciência como produtora de verdades absolutas, de aplicação universal, bem como depende de questionar seus condicionamentos e limitações colocados pela estruturas sociais de manutenção, financiamento e validação da ciência, que são inevitavelmente perpassadas por interesses de classe, nacionais, ideológicos, entre outros (SANTOS, 2007).

A influência das concepções sociais e econômicas, no contexto da consolidação do capi-talismo industrial, é bastante visível no processo de debate sobre as teorias evolutivas no período indicado – como colocou Kropotkin, ao discutir os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, “a luta pela sobrevivência se tornou a explicação favorita entre aqueles que querem encontrar desculpas para esse horror” (2006, p. VIII). Kropotkin não utilizava o conceito de Darwinismo Social, disse-minado muitas décadas depois, mas sua crítica faz parte do início do debate sobre o uso das ideias darwinistas em defesa da competição ou mesmo da eugenia, processo que continua relevante até os dias de hoje (COSTA, 2015). Além disso, o debate sobre a existência da intérfase do Darwinismo e a existência de escolas de pensamento evolutivo com diferentes interpretações e valores sociais é uma oportunidade para questionar o mito da neutralidade científica (JAPIASSU, 1999) e o mito do avanço linear da ciência, relacionado a uma concepção epistemológica de aproximação progressiva da verdade.

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Considerações finaisLargent (2009) aponta que o período da intérfase do Darwinismo (1890-1940) é pouco

estudado, o que ele credita à grande influência dos autores da Nova Síntese Evolutiva. No campo do Ensino de Evolução – onde a História da Biologia é uma das bases – certamente há um fenô-meno análogo. Renovar o olhar para esse período e incluí-lo nas propostas educativas de ensino de evolução pode abrir caminhos para necessários debates sobre a natureza da ciência e as complexas relações ciência-sociedade.

Nesse sentido, a apresentação das ideias desenvolvidas pelos naturalistas russos, em associa-ção a seu contexto sócio-histórico, pode servir diretamente para trabalhar algumas das limitações e fragilidades apontadas na literatura para o Ensino de Evolução, desde que esse trabalho seja feito a partir de determinadas concepções históricas diferentes da simplificação de atores, da ausência de contexto e do silenciamento das disputas intracientíficas; perspectivas capazes de apontar as influên-cias sociais sobre as ideias científicas e seu desenvolvimento não-linear e não-previsível. No que diz respeito à influência mútua entre as ideias científico-tecnológicas e os contextos sociais e históricos, as sugestões do movimento CTS na linha crítica superam concepções ingênuas de autonomia plena da ciência em sua produção e manutenção, ainda que traçar as linhas entre condicionantes e deter-minantes na relação ciência-sociedade continue sendo um tema aberto a análise e debate.

ReferênciasALLCHIN, D. Pseudohistory and Pseudoscience. Science & Education 13: 179-195, 2004.

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03 a 06 de setembro de 2018ISBN 978-85-8857-812-8 Anais do VII ENEBIO – I EREBIO NORTE

NOVOS ATORES NO ENSINO DE EVOLUÇÃO: KROPOTKIN, A ESCOLA RUSSA E A 4538

HUXLEY, T. H. The struggle for existence: A programme. New York: Nineteenth Century, Fevereiro, 1888.

JAPIASSU, H. Um desafio à educação: repensar a pedagofia científica. São Paulo: Ed. Letras & Letras, 1999.

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LARGENT, M. The so-called eclipse of Darwinism. In Cain and Ruse. Descended from Darwin. Philadelphia: American Philosophical Society, 2009.

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PEDUZZI, L. O.; RAICIK, A. C. Sobre a natureza da ciência: asserções comentadas para uma articulação com a história da física. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 42p, 2017. Consultado em: 08 de julho de 2017.

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ZAMBERLAN, E. S. J.; SILVA, M. R. O Ensino de Evolução Biológica e sua Abordagem em Livros Didáticos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 187-212, jan./abr. 2012.

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A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO 4539

A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO CLUBE DE CIÊNCIAS “PROF.

DR. CRISTOVAM W. P. DINIZ”: DIFERENÇAS E SIMILITUDES

Antonia Ediele de Freitas Coelho (PPGECM/UFPA – Bolsista CAPES) Willa Nayana Corrêa Almeida (PPGECM/UFPA – Bolsista CAPES) Carlos Alberto Rodrigues de Souza (UFPA – Campus Castanhal)

João Manoel da Silva Malheiro (IEMCI/UFPA)

Resumo: Essa pesquisa analisa a proposta de Sequência de Ensino Investigativo (SEI) desenvolvida no Clube de Ciências “Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz”, além de investigar quais as diferenças e similitudes existentes entre a teoria da Construção do Espírito Científico proposta por Bachelard e SEI constituída a partir das ideias de Carvalho et al. (2009). Caracterizamos essa pesquisa como qualitativa, utilizamos técnicas de registros, observações e interações no ambiente investigado. O Clube conta com a participação de cerca de 50 alunos, de 5º e 6º ano, com idade de 9 a 15 anos. Com essa investigação foi possível percebemos que a SEI em muitos momentos se aproxima das ideias defendidas por Bachelard, principalmente ao considerarmos a problematização como ele-mento determinante desse processo.Palavras-chaves: Sequência de Ensino Investigativo. Espírito Científico. Clube de Ciências.

Introdução

Historicamente diversas filosofias e epistemologias procuraram investigar e compreender de que forma advém o procedimento de elaboração do conhecimento, e a maneira como este é apreendido pelo homem, enquanto sujeito ativo desse processo. Nesse sentido, Gaston

Bachelard destaca-se como um dos pensadores modernos que se atentou para a questão da Teoria do Conhecimento considerando a capacidade do ser humano em conduzir e escalar os obstáculos durante o processo histórico de construção de aprendizagens, para proporcionar a preparação de uma nova teoria.

Em A formação do espírito científico objetiva-se demonstrar, principalmente que “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização” (BACHELARD, 1996, p. 17).

De acordo com a noção de obstáculo, o pensamento bachelardiano propõe a ideia de que a ciência decorre por descontinuidade, considerando que cada um dos avanços no conhecimento, que resultam da ciência, representam historicamente uma ruptura, um corte ou uma superação de uma aprendizagem anterior.

Podemos inclusive, de acordo com as considerações de Bacherlard (1996, p.18), dizer que “acender a ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o pas-sado”, afinal “a observação primeira é sempre um obstáculo inicial para a cultura científica” (Ibidem, p. 25), portanto, essa reflexão se caracteriza pelo rompimento com aquilo que já se compreende

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A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO 4540

para conseguir alcançar, por meio desse processo de investigação até o momento da experimentação, novas descobertas e caminhos, para que se alcance o conhecimento científico.

A partir disso, Sasseron (2008, p. 338) sugere que os processos responsáveis pelas constru-ções mentais, elaboram-se por meio de “competências comuns desenvolvidas e utilizadas para a resolução, discussão e divulgação de problemas em quaisquer das Ciências”, isso quando se consi-dera “a busca por relações entre o que se vê do problema investigado e as construções mentais que levem ao entendimento dele”.

Considerando as ideias de Bachelard (1996), Sasseron (2008), Carvalho et al. (2009), dentre outros autores, o objetivo dessa investigação é analisar as diferenças e similitudes entre a Sequência de Ensino Investigativo (SEI), utilizada como principal metodologia no Clube de Ciências “Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz”, e a teoria da Construção do Espírito Científico.

A Construção do Conhecimento CientíficoBachelard (1996) apresenta a opinião como o primeiro obstáculo a ser superado pelo Espírito

Científico, ressaltando que a mesma não pode simplesmente ser corrigida e posta como um “conhe-cimento vulgar provisório”, entretanto, é necessário perceber que “o espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendamos, sobre questões que não sabemos formular com clareza” (BACHELARD, 1996, p. 18-19).

Daí apontamos a necessidade de saber formular problemas coerentes, que possam servir como ponto de partida para a elaboração do conhecimento científico, destacando que sem a per-gunta não é possível que haja conhecimento mesmo que o Espírito prefira “o que confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas” (BACHELARD, 1996, p. 18-19).

As crises então surgem como respostas ao crescimento do pensamento, que agora necessitam de uma “reorganização total” do princípio do saber e a “cabeça bem feita” que é resultado de um produto da escola, uma cabeça fechada, necessita ser uma cabeça refeita e, para isso, necessita saber questionar (BACHELARD, 1996).

A esse respeito, o autor complementa essa ideia afirmando que, é bem possível que o conhe-cimento obtido pelo esforço científico possa declinar e mesmo que a “pergunta abstrata e franca se desgasta: a resposta concreta fica” (BACHELARD, 1996, p. 18).

Com isso, acrescentamos que a partir de um problema bem elaborado, com definição dos objetivos do que será abordado no estudo, é bem possível que se consiga obter respostas consistentes e que permitam ao educando uma aproximação ao que vem a ser o conhecimento científico, haja vista que um obstáculo epistemológico acontece por meio de uma aprendizagem não questionada, acreditando-se na premissa de que nosso espírito apresenta uma incrível disposição em considerar como mais clara aquela ideia que em muito é utilizada (BERGSON, 1934).

Consequentemente, cabe ao homem “movido pelo espírito científico [que] deseja saber, mas para, imediatamente, melhor questionar” (BACHELARD, 1996, p. 21, grifo nosso).

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A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO 4541

A Sequência de Ensino Investigativo no Clube de Ciências “Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz”

Para Sasseron e Carvalho (2008), atividades práticas e que permitam aos estudantes desem-penharem funções relativas a pesquisadores, reforçam a ideia de que o ensino de Ciências auxilia no processo de construções mentais, que podem ser observados por meio de indicadores, através dos quais os alunos manifestam que a Alfabetização Científica, ou seja, a construção do conhecimento científico, está ocorrendo.

As atividades desenvolvidas no Clube de Ciências “Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz” des-tinam-se a alunos do 5º ao 6º ano do ensino fundamental, e procuram auxiliar no processo de ensino e aprendizagem por meio de propostas extracurriculares, nas quais os participantes possam ser capazes de desenvolver tarefas com base na resolução de problemas simples, que envolvem a uti-lização de atividades experimentais investigativas, propostas de acordo com a SEI, nas perspectivas de Carvalho et al. (2009) (MALHEIRO, 2016).

Nesse aspecto, a SEI realizada no Clube de Ciências compreende sete etapas de desenvolvi-mento, sendo que são efetivadas a partir da elaboração de uma pergunta inicial que serve de base para o desenvolvimento das etapas propostas apoiando a ideia de Bachelard (1996), de que o conhe-cimento científico deve ser construído por meio da elaboração de uma pergunta inicial.

Durante cada atividade realizada, os estudantes são orientados a agir e refletir sobre o que está sendo realizado. São etapas que se superpõem, no entanto, necessitam de cautela por parte dos professores-monitores, para que consigam auxiliar os alunos a realizarem as fases e compreenderem a função de cada uma delas.

Os professores-monitores, em sua maioria, são graduandos das mais diversificadas licencia-turas, principalmente, Pedagogia. Para a participação enquanto mediadores das atividades desen-volvidas, eles passam por uma “Formação de professores-monitores para atuarem no Clube de Ciências”, na qual são direcionados a se familiarizarem com as etapas das Sequência de Ensino Investigativo, com o objetivo de melhor reconhecerem e desenvolverem as etapas, posteriormente, guiando os alunos.

Para efetivação dessas etapas, os estudantes são guiados pelos professores-monitores, que costumam auxiliá-los por meio de perguntas, questionamentos constantes, e observações sobre o que vem sendo realizado. Por isso, é válido ressaltar que cabe ao professor-monitor a função de auxi-liar sempre que necessário, embora sem dar quaisquer respostas as indagações dos estudantes. Esses sete momentos que são acompanhados pelas constantes intervenções dos professores-monitores, podem ser assim sintetizadas:

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A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO 4542

Quadro 1: Sequência de Ensino Investigativo

Etapas Descrição1. O professor (monitor) propõe o problema

Os participantes são divididos em grupos, de quatro a cinco alunos, e são guiados pelo monitor que propõe o problema a ser resolvido pelos estudantes, para em seguida distribuir os materiais que serão utilizados nesse processo.

2. Agindo sobre os objetos para ver como eles reagem

Ocasião em que os alunos verificam os materiais experimentais e o monitor observa em cada grupo se o problema proposto foi compreendido pela equipe.

3. Agindo sobre os objetos para obter o efeito desejado

Momento no qual os estudantes manuseiam os objetos para tentar encontrar a solução ao problema. Durante esse processo, o monitor passa nos grupos permitindo que os alunos possam verbalizar e demonstrar o que estão fazendo.

4. Tomando consciência de como foi produzido o efeito desejado

A partir dessa ocasião, após de terem encontrado uma solução plausível para o problema, o monitor organiza uma discussão entre a turma permitindo que todos possam contar os passos realizados para se chegar a tal conclusão.

5. Dando as explicações causais

Nessa etapa o monitor deve perguntar as equipes o “Por que” de terem chegado a tal resultado, ou seja, na ocasião anterior os alunos deveriam expressar o “Como” realizaram o experimento e a partir desse momento devem esclarecer “Por que deu certo” dessa maneira e não de outra.

6. Escrevendo e desenhando

Nesse momento os estudantes são estimulados a escrever e desenhar o que foi realizado, ou seja, devem contar por meio de uma redação simples o que fizeram explicando o porquê chegaram a determinada conclusão.

7. Relacionando atividade e cotidiano

Durante esse momento o monitor necessita aproximar do cotidiano dos estudantes as atividades realizadas, isto é, deixar claro que as atividades experimentais investigativas não se resumem a mera manipulação de materiais, mas que ao contrário disso, aproximassem bastante de situações familiares observadas no dia-a-dia.

Fonte: Adaptado de Carvalho et al. (2009)

Por meio dessas etapas, almejamos desenvolver o conhecimento científico. A partir disso, torna-se importante ressaltar que as atividades realizadas ocorrem em dois sábados distintos, sendo primeiro realizadas as seis primeiras etapas e no segundo a sétima etapa, envolvendo a execução de propostas de vídeos, filmes, dinâmicas, etc.

Metodologia da pesquisaOptamos por uma pesquisa de abordagem qualitativa, na qual “o pesquisador é ao mesmo

tempo sujeito e objeto de suas pesquisas”, pois “estar no ambiente é uma condição necessária para acessar a fontes de informações importantes e diversas” (GERGHART e SILVEIRA, 2009, p. 32).

Bogdan e Biklen (1994) complementam essa ideia, afirmando que em uma pesquisa qua-litativa não se utiliza tratamentos estatísticos que possam ser quantificados na análise dos dados recolhidos.

As análises dos dados foram realizadas por meio da análise de conteúdo, de acordo com a proposta de Bardin (2009), considerando os três elencados pela autora: 1. A pré-análise; 2. A explo-ração do material; 3. O tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação.

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A SEQUÊNCIA DE ENSINO INVESTIGATIVO E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO NO 4543

Dessa forma, segundo Bardin (2009), a pré-análise consiste na organização dos materiais que serão analisados, sistematizando as ideias. O segundo ponto refere-se à exploração do mate-rial por meio da definição das categorias de análise e da identificação das unidades de registro. O terceiro e último polo é a etapa destinada ao tratamento dos resultados obtidos, no qual podemos perceber a condensação e a proeminência das informações para que aconteça a análise.

As observações foram realizadas pelos autores da pesquisa, enquanto atuantes como profes-sores-monitores das atividades realizadas. Os registros e análises realizadas ocorreram no Clube de Ciências “Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz” na Universidade Federal do Pará, Campus Castanhal, que atua com aproximadamente 50 alunos, almejando que a SEI implementada como sua principal metodologia, favoreça a construção do Espírito Científico em seus alunos.

Resultados e discussõesAo considerarmos as etapas definidas por Carvalho et al. (2009), podemos perceber que em

diversos momentos as perspectivas adotadas no Clube de Ciências aproximam-se das ideias propos-tas por Barchelard (1996). Esse fato pode ser percebido, pois uma das principais características da SEI é a de permitir aos estudantes a construção de experimentos a partir de uma problematização inicial.

A esse respeito, a SEI desenvolvida no Clube de Ciências demonstra almejar a construção do Espírito Científico em seus estudantes, já que para Bachelard é preciso que se saiba formular problemas, já que essas problematizações não surgem de maneira espontânea, afinal

é justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há per-gunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído (BACHELARD, 1996, p. 18, grifo do autor).

Dessa forma, a presença dos professores-monitores como facilitadores desse processo ganha destaque, em razão de que esses sujeitos procuram fazer constantes questionamentos que devem ser respondidos pelos alunos, mas não em forma de uma pergunta diretiva, mas capaz de induzi-los a analisar, discutir e verificar os dados que estão sendo alcançados.

Bachelard explica que os professores devem estar atentos aos conhecimentos que são trazidos pelos alunos, pois a construção de um Espírito não acontece em uma aula, “não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar uma cultura experimental, de derrubar obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana” (BACHELARD, 1996, p. 23, grifo do autor).

Por meio disso surge o maior desafio que é “colocar a cultura científica em estado de mobiliza-ção permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dia-letizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir” (BACHELARD, 1996, p. 24).

Ao agir sobre os objetos para obter o efeito desejado, os estudantes são levados a investigar os dados que foram elencados e fazer comparações com suas percepções iniciais para rever os pontos que nessa etapa ficaram mais claros, ou mesmo fortalecer os aspectos que antes eram aceitos como verdadeiros, mesmo que de forma não muito científica.

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Corroborando com essa ideia, Bachelard (1996), ressalta que ensinar e aprender são ações que acontecem de forma significativa quando os principais atores desse processo se envolvem, haja vista que “para que a ciência objetiva seja plenamente educadora, é preciso que seu ensino seja socialmente ativo. É um alto desprezo pela instrução o ato de instaurar, sem recíproca, a inflexível relação professor-aluno” (BACHELARD, 1996, p.300).

Além disso, ao dar as explicações causais do que e de como fizeram para chegar a determi-nada resposta, os alunos são capazes de expressar entre os pares suas descobertas, contribuindo ainda para o auxílio entre os próprios grupos e, para que os estudantes se sintam ainda mais estimulados a participarem de cada etapa realizada (SASSERON e MACHADO, 2017).

A esse respeito, as afirmações de Bachelard apresentam-se de maneira significativa, já que para este autor os alunos são de suma importância e suas escalas de aula deveriam acontecer com um rigor decrescente, nas quais “o primeiro da classe recebe, como recompensa, a alegria de explicar para o segundo, o segundo para o terceiro, e assim sucessivamente até o ponto em que os erros se tornem maciços demais” (BACHELARD, 1996, p. 300).

E, nesse sentido, as indagações que nascerem a partir da problematização inicial poderão ser superadas em grupo por meio da cooperação e diálogo entre os envolvidos. Afinal

não basta ao homem ter razão, ele precisa ter razão contra alguém. Sem o exercício social de sua convicção racional, a razão profunda mais parece um rancor; essa convicção que não se confronta com um ensino difícil age na alma como um amor desprezado (BACHELARD, 1996, p. 300-301).

Segundo Lopes (1993), Bachelard defende a transformação do aluno em professor. Durante a realização dessa atividade em que se recebe e transmite o conhecimento, o pensamento se vitaliza, assim, ocorre a formação dos Espíritos dinâmicos e auto-críticos.

Bachelard (1996), considera ainda o papel do erro nas experiências primeiras, em razão de que, para o autor, esses equívocos podem levar o Espírito Científico em formação a realizar uma interpretação equivocada do que está sendo analisado, daí a necessidade de que tais desacertos venham a ser estudados, analisados e discutidos durante o procedimento de ruptura com as experi-ências iniciais ou conhecimento comum, já que a constituição do Espírito Científico acontece por meio do questionamento das falhas e da superação dos obstáculos.

Nesse aspecto, Carvalho et al. (2009) acrescentam que não se deve desconsiderar os erros durante a construção do conhecimento científico, é preciso utilizá-lo como ponto de partida para rever conceitos, atitudes e necessidades dos estudantes ao longo de cada uma das etapas da SEI.

A esse respeito, destacamos que a evolução da ciência se demonstra como um processo que se dá por descontinuidade, através de rupturas entre um conhecimento já estabelecido como verda-deiro e outra aprendizagem que surge nesse novo cenário, para retificar os erros percebidos anterior-mente e simplificar, ou melhor, substituir teorias pré-formuladas e tidas como verdades absolutas. E essa ciência problematizadora, que gera entendimentos que vão de encontro aqueles já existentes, promove por meio de rupturas e saltos àquilo que Bachelard chama de revolução científica.

Exatamente por isso, que desconsiderar os saberes prévios dos alunos não contribui para a superação dos obstáculos epistemológicos que são expostos por Bachelard, haja vista que “o princípio

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pedagógico fundamental da atitude objetiva é: Quem é ensinado deve ensinar. Quem recebe instru-ção e não a transmite terá um espírito formado sem dinamismo nem autocrítica” (BACHELARD, 1996, p. 300).

Considerações finaisPor meio dessa investigação foi possível observamos que a SEI realizada no Clube de Ciências

“Prof. Dr. Cristovam W. P. Diniz”, contribuem em muitos aspectos para a construção do Espírito Científico em seus estudantes e, concomitantemente, para a construção do conhecimento.

Ao analisarmos as ideias adotadas por Bachelard (1996), podemos identificar sua aproxima-ção com a proposta de SEI identificada no Clube de Ciências (CARVALHO et al., 2009). As ati-vidades desenvolvidas nesse espaço baseiam-se em questionamentos iniciais e através de atividades experimentais investigativas os alunos são capazes de utilizar a aprendizagem do cotidiano como um meio de se alcançar o conhecimento científico, pois segundo Bachelard (1996), são essas rupturas que promovem a cientificação do Espírito.

Além disso, a valorização do erro como forma de romper com preceitos pré-estabelecidos e utilizá-lo como ponto de partida para a construção do conhecimento científico é algo que está presente nas duas teorias.

ReferênciasBACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 5ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009.

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BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: Uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994.

CARVALHO, A. M. P.; VANNUCCHI, A. I.; BARROS, M. A.; GONÇALVES, M. E. R.; REY, R. C. Ciências no Ensino Fundamental: o conhecimento físico. São Paulo: Scipione, 2009.

GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T.; Métodos da pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. Disponível em http://www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005pdf. Acesso em: 21 maio. 2013.

LOPES, A. R. C. Contribuições de Gaston Bachelard ao ensino de ciências. Enseñanza de las ciências. v.11, nº3, p.324-330, 1993.

MALHEIRO, J. M. S. Atividades experimentais no ensino de ciências: limites e possibilidades. Actio: Docência em Ciência, v. 1, n. 1, p. 107-126, jul./dez., 2016. Disponível em: https://periodicos.utfpr.edu.br/actio/article/view/4796/3150. Acesso em: 11 nov. 2016.

SASSERON, L. H. Alfabetização Científica no Ensino Fundamental: Estrutura e Indicadores deste processo em sala de aula. (Tese) Doutorado em Educação. São Paulo (SP) Universidade de São Paulo (Usp). 265f, 2008.

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SASSERON, L. H. MACHADO, V. F. Alfabetização científica na prática: inovando a forma de ensinar Física. 1ª ed. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017.

SASSERON, L. H. CARVALHO, A. M. P. Almejando a Alfabetização Científica no Ensino Fundamental: a proposição e a procura de Indicadores do processo. Investigações em Ensino de Ciências., v. 13, n. 3, p. 333-352, 2008.

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O QUE A VIDA TEM A ENSINAR PARA O ENSINO DE BIOLOGIA? UMA ABORDAGEM BIBLIOGRÁFICA SOBRE MITOS, LENDAS

E CRENÇAS ACERCA DOS RÉPTEIS E AVES PARAIBANOS.

Fleuriane Dantas Lira (UEPB) Alana Jessica de Souza Brito (UEPB – Bolsista PIBIC)

Helena Rayssa Nunes Batista (UEPB) Eduardo de Souza Silva (UEPB)

Roberta Smania-Marques (UEPB)

RESUMO: Historicamente criamos crenças acerca da fauna com a qual compartilhamos o ambiente. Culturalmente repassadas entre as gerações, elas podem repercutir em hábitos anticonservacionistas. Através de revisão bibliográfica, traçamos paralelos entre o conhecimento científico e as crenças da população brasileira em relação a répteis e aves. Os resultados indicam que há aversão aos répteis que, geralmente, são relatados com sentimentos de repulsa, medo e ódio; já as aves estão associadas a mensagens de fé ou de maus presságios. Estas crenças levam à preservação, caça e/ou à matança destes animais. Nossas análises resultaram em um banco de dados robusto, a partir do qual traça-remos intervenções para a desmistificação e promoção de atitudes conservacionistas em relação à fauna Paraibana.Palavras-chave: Etnozoologia. Etnobiologia. Educação.

INTRODUÇÃO

A prática da classificação dos animais em úteis e nocivos teve início a partir do momento em que a civilização humana introduziu a domesticação animal em seus hábitos (BECK & KATCHER, 1996). Essa distinção se manteve de forma cultural sendo passada por gerações

e é visivelmente acentuada ainda hoje através de elementos escolares formais e não formais, tais como livros didáticos, textos de divulgação científica, notícias, filmes, animações, entre outros. Essas convicções pré-estabelecidas corroboram com a fácil aceitação das crenças1 em relação ao estudo zoológico.

As peculiaridades de cada comunidade podem conduzir a diferentes juízos de valor entre as diferentes regiões do Brasil (ALVES et al., 2009). A população brasileira é marcada por uma per-cepção dos répteis que pode chegar, muitas vezes, ao repúdio extremo (ALVES et al., 2009; 2010). Por exemplo, há algumas espécies que são consideradas benévolas por serem utilizadas na medicina popular para o tratamento de enfermidades (SANTOS et al., 2016), contudo outras espécies são declaradas como um indício de que algo maligno está para acontecer (SAIKI, 2008).

Devido aos mitos, lendas e crenças serem difundidos entre as famílias, muitos conceitos são, às vezes, passados de maneira equivocada. Com o intuito de compreender as relações entre a população brasileira nordestina com os animais nativos analisamos a bibliografia da etnozoologia

1 A crença é um estado psicológico que contém significado, ou seja, são as nossas representações do mundo (MOSER, 2004).

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brasileira. Assim, reunimos os relatos de crenças acerca de répteis e aves e tentamos traçar paralelos com o conhecimento científico a fim de melhor compreender o que as pessoas pensam sobre este tema e quais os possíveis caminhos de desmistificação que podem gerar ações conservacionistas da fauna local.

METODOLOGIAPara entendermos como a população vê a Classe Reptilia, em específico os Squamata (ser-

pentes, anfisbenas e lagartos), os Testudines (tartarugas, cágados e jabutis), os Crocodylia (jacarés), os Dinosauria (dinossauros) e a subclasse Neornithes (aves modernas), investigamos a literatura da área da etnozoologia, enfatizando as ocorrências para o estado da Paraíba.

Foram analisadas prioritariamente as bibliografias avaliadas como A1, A2 e/ou B1 pelo sis-tema de Periódicos Qualis Capes, além de monografias, dissertações e teses. Os trabalhos frutos de conclusão de cursos de graduação e pós-graduação consistiram na principal fonte de resultados para os dados no estado da Paraíba. Contudo, os clados dos Testudines e Crocodylia apresentaram pouca quantidade de referências de qualidade e por esse motivo acessamos bibliografias de Qualis B2, B3 e esporadicamente C, além de sites de domínio público, a fim de identificar se havia mais exemplos das informações de interesse. Os artigos de Qualis abaixo de B1 que apresentavam informações repetidas foram desconsiderados para as análises e as discussões dos dados obtidos.

Com a finalidade de explicarmos ou justificarmos os dados referentes ao conhecimento científico em relação a evolução, comportamento, morfologia, fisiologia, anatomia e filogenia dos grupos estudados utilizamos o livro a Vida dos vertebrados, uma vez que, esta é a principal fonte para a zoologia dos vertebrados (POUGH et al., 2008).

Com o propósito de encontrar as bibliografias de interesse utilizamos para a busca o banco de dados do Google Acadêmico de duas formas: primeiro com combinações de conjuntos de palavras-chave gerais para todos os clados: Brazil, Brasil, Paraíba, mito, myth, lenda, legend, folk, belief, crença, etnoherpetologia, folclore; e palavras-chaves específicas: Ordem Testudines – quelô-nio, chelonii, testudine, testudinata, testudinidae, tartaruga, turtle, jabuti, tortoise, cágado; Ordem Crocodylia – crocodilo, crocodile, jacaré, alligator, gavial, gharial; Dinosauria (Ordens extintas dos clados Ornitischia e Saurischia) – dinosaur, dinosauria; o clado Dinosauria, Subclasse Neornithes, que corresponde às aves modernas (aves, birds); Lepdosauria (Ordem Squamata) – squamata, cobra, serpentes, víbora, lizard, lagarto, calango, lagartixa, amphisbaena, anfisbena, cobra-de-duas--cabeças, snake, viper, serpent, lizard, amphisbaina, amphisbene, amphisboena, amphisbona, amphista, amfivena, amphivena, anphivena.

Após a busca geral, fizemos uma busca por mitos e relatos correspondentes a todas as espé-cies, dos cinco grupos, que são encontradas na Paraíba. Utilizamos as informações sobre as espécies de aves encontradas na Paraíba de acordo com a catalogação disponível no site WikiAves (http://www.wikiaves.com/)2. Como os outros grupos não possuíam uma lista oficial de todas as espécies que ocorrem no estado consultamos o site (http://www.mma.gov.br/biomas/) para delimitar quais os biomas que ocorrem na Paraíba. A partir destes dados, consultamos a lista de espécies de répteis dos livros “Guia ilustrado: a herpetofauna das caatingas e áreas de altitudes do nordeste brasi-leiro” (FREITAS e SILVA, 2007) e “Guia ilustrado: a herpetofauna da mata atlântica nordestina”

2 As espécies de aves domésticas não foram consideradas.

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(FREITAS e SILVA, 2005), importantes referências da área de herpetologia, a fim de identificarmos quais delas eram relatadas para os biomas da Paraíba. Consultamos as espécies selecionadas no site (http://www.splink.org.br/), para identificarmos quais delas ocorrem no estado na Paraíba3.

Após a leitura dos textos na íntegra, identificamos e categorizamos os relatos de crenças. O clado pertencente aos dinossauros não foi considerado neste trabalho por ter sido inteira-

mente pesquisado em sites de domínio público, além de não existirem relatos e crenças classificados nas categorias zooterápica e consumo, uma vez que não há evidências da convivência da espécie humana com as espécies dos dinossauros, que já estão extintas.

RESULTADOS E DISCUSSÕESAo final de toda a busca e seleção dos textos que se encaixavam aos nossos critérios, foram

analisados 794 textos que descreviam relatos, mitos e crenças para Crocodylia (N = 17); Neornithes (N = 21); Squamata (N = 27); e Testudines (N = 32). Deparamos-nos com uma quantidade de dados (N = 252) que puderam ser classificados em quatro categorias de acordo com o uso do animal ou a origem do mito e/ou da crença: religiosa (N = 46), zooterápica (N = 49), consumo (N = 16) e biológica (N = 141). Apesar desta divisão, observamos uma forte influência do elemento fé nos mitos, relatos e crenças populares relacionados aos outros temas que não a religião, o que pode ser explicado pelo fato de grande parte da população do Brasil ser cristã (84,6% de católicos e evangé-licos) (IBGE, 2012).

A categoria religiosa abrange as crenças em que há menções de uso ou percepção antropoló-gica acerca dos animais em atos ou crenças religiosas. Por exemplo, em diferentes cidades das diver-sas regiões brasileiras, há a crença de que quando a enorme cobra que dorme embaixo da cidade – com a cauda debaixo da igreja e a cabeça abaixo do lago ou do rio do local – acordar, ela fará toda a terra tremer (BERNARDE, 2014; SILVA et al., 2016). Outros exemplos bastante conhecidos é o de que o corujão de orelha (Asio clamator) causa má sorte no casamento e que o canto do acauã (Herpetotheres cachinnans) e do urutau (Nyctibius griseus) são sinais de mau agouro (SAIKI, 2008). Estas crenças estão ligadas a acontecimentos pontuais e/ou esporádicos que são equivocadamente associados aos animais. Um das consequências ambientais geradas pela disseminação dessas ideias é a alta pressão ecológica sobre certos grupos com sérias implicações conservacionistas, uma vez que não há o interesse da população em adotar atitudes preservacionistas em relação a animais que supostamente trazem má sorte (FARIAS et al., 2010).

Os dados agrupados na categoria zooterápica abordam o uso de partes dos animais para fins medicinais. Por exemplo, há relatos do emprego de ossos de jacaré no tratamento do reumatismo (COSTA-NETO, 2011; LEITE, 2010); do uso da urina do Jabuti-piranga (Chelonoidis carbonária) na cura da eczema (doença inflamatória da pele) (SILVA, 2010); utilização do casco de cágados do gênero Phrynops no tratamento de “perebas” (feridas) (COSTA-NETO, 2000), entre outras crenças. Essas práticas são acometidas, em especial, nas populações de áreas rurais que habitam locais nos quais o sistema de saúde é deficiente, as quais consideram a zooterapia como importante alternativa

3 Os dados disponíveis sobre as espécies de répteis da Paraíba na rede speciesLink (http://www.splink.org.br) vieram das coleções: Herpetológica do Museu de História Natural da Bahia (CH); Herpetológica “Alphonse Richard Hoge” (IBSP-Herpeto); de Répteis (MCP-Repteis); Herpetológica Museu de História Natural Capão da Imbuia (MHNCI-Herpeto); de Répteis do Museu de Zoologia da UNICAMP (ZUEC-REP); e pelo Museum of Comparative Zoology (HU-Zoo).

4 Alguns textos foram utilizados para mais de um grupo, portanto, o somatório do N dos clados não corresponde ao N total de artigos analisados.

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medicinal, uma vez que ela utiliza fontes naturais para a fabricação de remédios caseiros (MCGAW et al., 2007). É provável que o uso destes animais ou das partes de seus corpos para a confecção de remédios possa gerar riscos à saúde humana. Além de não termos encontrado estudos científicos que corroborem a cura ou à redução dos sintomas a partir do uso dos produtos ou subprodutos cita-dos nos relatos, as condições insalubres às quais os produtos zooterapêuticos comercializados estão expostos podem facilitar a propagação de doenças (zoonoses) (FERREIRA et al., 2013).

A categoria consumo incluiu relatos do uso de animais ou parte deles na dieta humana ou na confecção de objetos para o uso cotidiano. Por exemplo, foram comuns os relatos da ingesta de vísceras assadas, banha, “óleo do ovo” de testudines na fritura de alimentos, uso da carne, couro, casco e callipe (substância gelatinosa encontrada na carapaça) (REBÊLO e PEZZUTI, 2000). Para a fabricação de objetos são mais comumente utilizadas as carapaças de testudines para a confecção de bolsas, pentes, aros para óculos, grampos e fivelas além de servir como bacia ou instrumento agrí-cola; a cinza é misturada ao barro na fabricação de potes; a pele do pescoço pode ser utilizada para a fabricação de tamborins; a gordura, ao ser misturada com resina, é usada na calefação de barcos ou mesmo na farmacologia (CARNEIRO, 2006).

A maior parte dos nossos dados (55,9%) foi agrupada na categoria biológica que abarcou as informações relacionadas ao comportamento, à morfologia, à fisiologia, à anatomia e/ou à filogenia dos animais estudados. Os quadros 1 e 2 reunem algumas das crenças mais comumente relatadas para os grupos dos squamatas e dos testudines.

Quadro 1 - Resultados das crenças sobre o grupo dos Squamata.

Conhecimento Popular Acerca dos SquamataTodas as cobras estão equipadas com armas (comilho/presas e venenos) para atacar e matar qualquer ser humano à vista (ALVES et al., 2014).As cobras hipnotizam (BERNARDE, 2014; PAZINATO, 2013; SILVA et al., 2005).Todas as cobras são venenosas e perigosas (ALVES et al., 2014).Serpentes verdes não mordem (BITTNCOURT, 2004).Serpentes verdes são mansas e só atacam quando se sentem acuadas (BITTNCOURT, 2004).Serpentes bravas são venenosas (BITTNCOURT, 2004).Serpentes não cuidam dos filhotes (BITTNCOURT, 2004).As serpentes soltam o couro que fica preso em pedras ou no telhado (BARBOSA et al, 2007).Serpentes não têm pé, nem mão e andam se ralando no chão (BARBOSA et al., 2007)Urinar na água atrai cobra (BERNARDE, 2014).A pico-de-jaca (Lachesis muta) e a cascavel (Crotalus durissus) andam somente em casal (BERNARDE, 2014; BITTNCOURT, 2004; PAZINATO, 2013; SILVA et al., 2016).A sucuri (Eunectes murinu) engole boi (BERNARDE, 2014).As sucuris podem ter cinquenta metros (BERNARDE, 2014).A cobra deixa o veneno na folha para atravessar o rio (BERNARDE, 2014).A cobra mama (BERNARDE, 2014; PAZINATO, 2013; SILVA et al., 2005).Há quem acredite que há uma espécie de cobra-voadora (BERNARDE, 2014).A caninana corre na ponta do rabo e dá chicotadas (BERNARDE, 2014).A bico-de-papagaio (Bothrops bilineatus) vai até a casa da vítima e canta como um galo, o que faz com a pessoa morra neste momento (BERNARDE, 2014).A bico-de-papagaio (Bothrops bilineatus) quando pica alguém sai de lado pra ver o tombo (BERNARDE, 2014).Se a cobra for mal morta (apenas machucada) irá se vingar (BERNARDE, 2014; PAZINATO, 2013).

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Quem pisa em espinho de cobra pode se envenenar (BERNARDE, 2014; PAZINATO, 2013; SILVA et al., 2005).Jararaca de rabo branco (Lepidochelys olivácea) morde com a cauda (BITTNCOURT, 2004).A jibóia (Boa constrictor) tem bafo e sucuri (Eunectes murinus) baba (BERNARDE, 2014).A cascavel se alimenta de humanos (BERNARDE, 2014).A surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta) tem um ferrão venenoso na ponta da cauda (BERNARDE, 2014).A cobra coral tem um ferrão na cauda (BERNARDE, 2014).O veneno da urutu-cruzeiro (Bothrops alternatus) se não mata, aleija (BERNARDE, 2014).Cada anel do guizo da cascavel (Crotalus durissus) corresponde a um ano de vida dela (BERNARDE, 2014; BITTNCOURT, 2004; PAZINATO, 2013; SILVA et al., 2005).As cobras comem lagartos (PASSOS et al., 2015).Tem lagarto que se finge de morto (PASSOS et al., 2015).Quando alguém vai pegar um calango ele deixa o rabo cair, para despistar e fugir (BAPTISTA, 2008; PASSOS et al., 2015).Os calangos ficam se olhando e balançando a cabeça (PASSOS et al., 2015).A briba é o lagarto que anda de noite (PASSOS et al., 2015).As bribas (Hemidactylus mabouia) rastejam pelas paredes (PASSOS et al., 2015).A reprodução dos anfisbênios é que nem a da galinha, através de ovos (BAPTISTA, 2008).A pele da anfisbêna é casquenta (BAPTISTA, 2008).Cobra-de-duas-cabeças da família Amphisbaenidae são chamadas assim por terem uma cabeça na frente e outra cabeça atrás (BITTNCOURT, 2004).A amphisbaenia é uma cobra que rasteja, por isso a chamam de cobra-de-chão (HOHL, 2013).

Quadro 2: Resultados das crenças sobre o grupo dos Testudines.

Conhecimento Popular Acerca dos TestudinesOs machos dos quelônios têm a barriga afundada para dentro (BARBOSA et al., 2007).Quando mexemos com os Testudines, eles entram no casco (BARBOSA et al., 2007).Os quelônios têm um casco de osso, quatro patas, cabeça e rabo pequeno (BARBOSA et al., 2007).As patas dos quelônios tem uma cobertura que parece escama (BARBOSA et al., 2007).Alguns desses animais vivem melhor em casas do que na mata, quando o bicho é bem cuidado (CANTO, 2016).É errada a proibição da criação desse animal pois existem muitos por aí então não faz falta pegar algum para criar (CANTO, 2016).Os Testudines não apresentam nenhum tipo de perigo a sociedade (CANTO, 2016).Os animais se programam para nascer no período de chuvas, pois se observa filhotes de passarinho, de calango, de jabuti nascendo todos no mesmo tempo (BARBOSA, 2007).É possível diferenciar o sexo dos cágados pelo tamanho da cabeça e pelo desenho do casco (FABRES et al., 2009).Os testudines tomam sol na margem do lago para fortalecer o casco e o cálcio nos ossos (FABRES et al., 2009).As tartarugas normalmente vivem cinco anos (KILAVA, 2013).As tartarugas conseguem viver felizes com luz artificial (KILAVA, 2013).As tartarugas enterram-se para hibernar (KILAVA, 2013).As tartarugas não precisam de cuidados veterinários como os cães e gatos (KILAVA, 2013).Caso encontre uma tartaruga com o casco virado para baixo é sinal que ela não está se divertindo (TERRA, 2017).

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O grupo dos Squamata é o que reúne a maior quantidade de crenças, abrangendo os subgru-pos das anfibenas, lagartos e serpentes. Em relação às anfibesnas, nos deparamos com crenças sobre a origem de seu nome vernáculo (BITTNCOURT, 2004) e a confusão quanto sua classificação (HOHL, 2013). Por se tratar de um lagarto ápode, as pessoas normalmente as confundem com as serpentes e por sua forma não possuir distinção clara entre suas regiões cranial e caudal, esses ani-mais são vulgarmente intitulados de “cobra-de-duas-cabeças” (POUGH et al., 2008).

Os lagartos mais comuns nos municípios paraibanos possuem um pequeno porte e são popularmente chamados de “calangos”. Por conseguirem se adaptar em moradias antrópicas, é comum que as pessoas observem alguns comportamentos desses animais e os expliquem com base no senso comum. Por exemplo, há a crença de que esses animais rastejam, por andarem com sua parte ventral muito próxima à superfície ou que “deixam o rabo cair” para fugir de algum humano que o tente pegar (PASSOS et al., 2015). É improvável um calango rastejar visto que ele não é um lagarto ápode (POUGH et al., 2008). A explicação do desprendimento da cauda do lagarto quando em situação de perigo é uma interpretação relativamente correta do que é observado, porém não fica esclarecido para a população que este é um mecanismo de defesa do animal e que para a cauda tornar a crescer ele necessita de um maior consumo de energia (POUGH et al., 2008). Portanto, não é vantajoso (e nem divertido) para o animal participar dessas “brincadeiras”.

Como esperado, as serpente apresentaram uma quantidade de mitos biológicos muito maior do que qualquer outro grupo (Quadro 1). Acreditamos que este fato possa estar associado à sua representação na bíblia como uma forma de personificação do “Diabo” (OLIVEIRA, 2013). Uma vez que grande parte da população brasileira é religiosa (IBGE, 2012), estas crenças podem contri-buir para representação negativa e aversão às serpentes (ALVES et al., 2014). Percebemos que esse grupo é, dentre os répteis, o que mais sofre personificações. Deparamos-nos com diversas descrições de crenças baseadas em ações e sentimentos naturalmente humanos associados às serpentes, como por exemplo: hipnotizar, andar em casal, mamar, correr e dar chicotadas, se vingar e até ir à casa da vítima e cantar (BERNARDE, 2014; BITTNCOURT, 2004; PAZINATO, 2013). Atrelado a isso, algumas espécies são peçonhentas e podem causar acidentes ofídicos graves em humanos, o que torna comum o pensamento de que todas as cobras estão equipadas com armas (comilho/presas e venenos) para atacar e matar qualquer ser humano à vista (ALVES et al., 2014). Apesar desta terrível crença, sabemos que esses acidentes são causados apenas quando as serpentes se sentem ameaçadas ou acusadas (BERNARDE, 2014). Por se tratar de uma questão cultural, o ambiente escolar, ainda nos dias de hoje, muitas vezes, dá espaço para que este tipo de conhecimento se sobreponha ao conhecimento científico, colaborando para que as representações equivocadas sobre os répteis sejam disseminadas (LUCHESE, 2013). A vastidão de informações que encontramos para as serpentes, em todas as categorias, revela a relevância da promoção de intervenções para desmistificar crenças sobre esses animais.

Apenas uma espécie de jacaré (Melanosuchus niger), das seis existentes no Brasil, ocorre na Paraíba. Por serem animais de grande porte e de hábito característico, há pouco convívio da popu-lação com esse animal, o que implica na escassez dos dados encontrados. Para este grupo, encontra-mos uma dissertação (LEITE, 2010) na qual há muitos relatos de uma comunidade do Piauí que tem habitualmente o costume de observar o comportamento de uma espécie de jacaré (Caiman crocodilus). A autora cita relatos que descrevem os comportamentos de nidificação, vocalização, cui-dado parental, alimentação, reprodução e hábitat. As crenças que encontramos remetiam a algumas

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regiões dos Estados Unidos da América, os quais foram desconsiderados, tendo em vista que o nosso foco são os mitos da população brasileira.

A partir das informações coletadas, podemos perceber que há, normalmente, uma maior aproximação entre a espécie humana e os três subgrupos dos Testudines (tartarugas, cágados e jabu-tis) quando comparados aos Crocodylia. A criação desses animais como pets pode vir a favorecer o aparecimento e a continuidade dos mitos que encontramos, como por exemplo, a ideia facilmente aceita pela população de que todos os Testudines podem “entrar” no casco quando se sentirem ame-açados (BARBOSA, et al., 2007). Sabemos, contudo, que esses animais não conseguem “entrar no casco”, uma vez que não há nenhum espaço oco entre a carapaça e o plastrão. O que acontece é que as pessoas comumente observam o ato de defesa de se recolher à carapaça, ocultando os membros, a cabeça e a cauda e o interpretam como se fosse realmente possível o animal se esconder comple-tamente dentro de seus cascos (POUGH et al., 2008). Uma prática muito comum, principalmente com crianças que brincam com Testudines, é o de deixar o animal invertido com as patas para o ar numa superfície plana (TERRA, 2017). Esse é um dos exemplos clássicos que gostaríamos de dizi-mar, tendo em vista que além dos animais não conseguirem se desvirar sozinhos (KILAVA, 2013). Além disso, ao ficarem emborcados, todos os seus órgãos, com o auxílio da gravidade, tendem a pesar contra a carapaça, e devido à sua anatomia, esse peso comprime os pulmões e dificulta a res-piração, podendo levar o animal a óbito se permanecido nessa posição por muito tempo (POUGH et al., 2008).

Ao contrário dos outros grupos, os relatos encontrados para as aves silvestres paraibanas remetiam a relações comportamentais e climáticas, como por exemplo, a reprodução e/ou a postura da asa-branca (Dendrocygna autumnalis) e do galo-de-campina (Paroaria dominicana), assim como a instalação do ninho da curica (Pyrilia caica) e do papagaio (Amazona aestiva) indicam incidência ou dão o prenúncio de chuvas para as comunidades rurais na Paraíba (ARAUJO et al., 2005).

Como a nossa finalidade foi a de conhecer os mitos e criar possíveis meios capazes de realizar ações conservacionistas, nossas intervenções se concentrarão em promover informações da categoria biológica. Assim, consideramos não trabalhar com as categorias religiosa, zooterápica e consumo, visto que, além de não ser a nossa intenção promover o debate entre ciência e religião com a popu-lação, tampouco queremos incentivar o uso destes animais silvestres como fonte de recurso. As informações contidas nos quadros 1 e 2 serão o alicerce para a criação de jogos educativos biologi-camente corretos para crianças, jovens e adultos. Os objetivos deste tipo de intervenção são os de além de levar o conhecimento científico, também desenvolver competências racionais e emocionais.

Acreditamos que a elaboração e a aplicação de intervenções sem o mínimo de conhecimento sobre o público alvo e as crenças do mesmo podem não se tornar muito eficazes, pois não há educa-ção que não esteja imersa na cultura de um povo e, particularmente, do momento histórico em que esta se situa. Dessa forma, é necessário que haja uma referência cultural presente nas intervenções realizadas (MOREIRA; CANDAU, 2003).

A escola é e sempre foi uma instituição cultural (MOREIRA; CANDAU, 2003). Muitos dados acerca dos mitos, relatos e crenças são coletados em ambientes formais de ensino, como por exemplo, nas escolas (LUCHESE, 2013). Assim, é de se esperar que informações referentes à zoo-logia, ecologia e evolução dos répteis e aves apresentem aspectos de explicação baseada em senso comum, mesmo em ambientes formais de educação. Portanto, trabalhos como o nosso podem fornecer importantes pistas em relação aos obstáculos epistemológicos que docentes de ciências

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e biologia enfrentam ou enfrentarão na educação básica. Além disso, as discussões apresentadas podem nos proporcionar elementos básicos, necessários para construir métodos adequados para intervenções didáticas que possam desmistificar e ensinar de forma biologicamente correta.

CONSIDERAÇÕES FINAISDe uma forma geral, nossa pesquisa indica que com exceção do grupo das aves modernas,

os répteis compõem um grupo que suscitam sentimentos negativos de medo e repulsa dos seres humanos, o que pode ser um grande obstáculo para a aproximação afetiva antrópica e para a criação e manutenção de medidas conservacionistas dos répteis. Salientamos a importância da continuidade de estudos etnozoológicos para uma melhor compreensão das crenças populares, que, por sua vez, serve como princípios fundamentais na elaboração de estratégias adequada para uma harmonia no convívio entre nós humanos e os répteis. Acreditamos que uma importante barreira a ser superada nas intervenções educacionais é a falta de comunicação e entendimento entre as diferentes formas que as pessoas pensam e nas diferentes crenças que elas possuem. Ao conseguirmos identificar as crenças mais comuns que a população julga como verdade, poderemos traçar intervenções mais eficazes em relação a compreensão do conhecimento biológico. Com o suporte nesses dados, come-çamos a traçar medidas de intervenção educacional prioritariamente para a população paraibana em relação à importância dos répteis para o equilíbrio do ecossistema.

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O PAPEL DA HISTÓRIA DO RACISMO CIENTÍFICO NO ENSINO DE CIÊNCIAS E 4558

O PAPEL DA HISTÓRIA DO RACISMO CIENTÍFICO NO ENSINO DE CIÊNCIAS E NA EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Ricardo Ferreira Machado (Bolsista Doutorado/CAPES - PPGEFHC1/UFBA/UEFS) Lia Midori Meyer Nascimento (UFS - Professora do Departamento de Biociências / Doutoranda no

PPGEFHC/UFBA/UEFS) Diego Palmeira da Silva (Bolsista Doutorado/CAPES - PPGEFHC/UFBA/UEFS)

Juanma Sánchez Arteaga (UFBA/UEFS – Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA)

Resumo: A partir da leitura de que o racismo está presente na sociedade brasileira na contempora-neidade, o presente trabalho apresenta uma perspectiva panorâmica da inferiorização das popula-ções indígenas por parte da ciência brasileira do século XIX. Por essa análise, tomamos esse exemplo para argumentar na defesa de um ensino de ciências que, a partir de uma abordagem CTS que parta da discussão da história do racismo científico como um aspecto essencial da história das ciências, possa estar voltado às relações étnico-raciais positivas e ao combate ao racismo na escola, que tenha em conta os aportes da história da ciência em relação ao racismo científico e que prepare aos profes-sores de biologia para lidar com fenômenos complexos como o racismo em sala de aula.Palavras-chave: Racismo científico, educação para as relações étnico-raciais, formação de professo-res, história da ciência, currículos CTS.

Introdução

Por todo o mundo, não é raro que casos de racismo apareçam nas manchetes dos jornais ou em denúncias nas redes sociais. No Brasil, casos de preconceito étnico-racial envolvendo pes-soas negras famosas, como jogadores de futebol e jornalistas de televisão, costumam ganhar

repercussão e chegam a conquistar reparações judiciais e levantar debates. Porém, essas situações representam apenas uma pequena amostra do que as pessoas não brancas sofrem em seu dia a dia.

Mesmo nas escolas, locais em que a diversidade é um fato, é possível perceber estudantes e professores em situações de preconceito. O racismo se destaca como uma das violências mais prati-cadas pelo desrespeito às diferenças. É um grande desafio para que novas práticas pedagógicas sejam pesquisadas e implementadas, visando a extinguir a ideia de que a cor da pele ou a “raça” faz com que alguém seja superior ou inferior a outrem.

A formação de cidadãos críticos sobre esta realidade, alinhada a um ensino que promova o respeito à diversidade étnico-racial e à educação antirracista são objetivos interdisciplinares desejá-veis para o ensino de ciências, e tais objetivos são especialmente pertinentes desde uma abordagem CTS que parta da discussão sobre a história das ciências, sobretudo levantando o papel histórico da ciência na consolidação do racismo (ARTEAGA & EL-HANI, 2012).

1 Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das ciências.

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O PAPEL DA HISTÓRIA DO RACISMO CIENTÍFICO NO ENSINO DE CIÊNCIAS E 4559

É importante que os espaços de formação de professores e as escolas da educação básica construam uma visão crítica equilibrada a respeito do conhecimento científico, de forma que ao mesmo tempo que seja reconhecido o seu imenso valor epistêmico e cultural na sociedade contem-porânea, assim como os imensos benefícios derivados dele, o conhecimento científico possa tam-bém ser entendido na sua natureza social e histórica, enquanto uma construção humana permeada por relações desiguais de poder, usada em muitos momentos ao longo da história como mecanismo de legitimação da exclusão e de reforço das opressões de raça ou gênero. A formação para a cidadania e para a construção de uma compreensão crítica do mundo são objetivos desejáveis para o ensino de ciências (BRASIL, 1998). No contexto brasileiro, essa formação precisa ser alinhada ao ensino que promova o respeito à diversidade étnico-racial, a educação antirracista e o engajamento dos estudantes na luta por equidade racial, o que implica, necessariamente, a formação de professores comprometidos com essas questões (VERRANGIA; SILVA, 2010).

O espaço escolar é um contexto social privilegiado para tais discussões e, por isso, o racismo e qualquer outro tipo de descriminação devem ser combatidos também na escola. Além disso, no Brasil, a lei 11645/08, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, foi aprovada para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Tendo em vista a importância dessas discussões chegarem à sala de aula, compreender o papel histórico da ciência na consolidação do racismo e na construção de estereótipos do “outro”, especificamente das populações afrodescendentes e indígenas brasileiras, é fundamental na formação de professores.

Metodologia Nesse trabalho apresentaremos um caso histórico (a caracterização das populações indígenas

pelas ciências naturais brasileiras entre o final do século 19 e início do século 20), para, a partir daí, defender a importância de introduzir a discussão sobre a história do racismo científico na sala de aula de ciência, a partir de uma abordagem CTS orientada a promoção da educação das relações étnico-raciais e à luta contra o racismo. A escolha dos autores aqui discutidos foi feita pela rele-vância dos estudos antropológicos realizados por esses cientistas a respeito dos povos indígenas do Brasil para esse período. As fontes primárias consultadas foram os trabalhos publicados por esses pesquisadores nas revistas das principais instituições de pesquisa do Brasil no período estudado. Consultamos os registros do Archivos do Museu Nacional, do Boletim do Museu Nacional, da Gazeta Médica da Bahia, da Revista Brazil Medico e de textos publicados por naturalistas em revistas inter-nacionais nesse período e que discutem a/as raça/s indígenas do Brasil. Além disso, utilizamos tra-balhos já publicados sobre esses cientistas como fontes secundárias.

A apresentação desse caso nos possibilita compreender como a ciência construiu o racismo como elemento central em suas explicações biológicas e antropológicas entre os séculos XIX e XX, a partir de trabalhos originais e de trabalhos de história da ciência referentes à temática e ao período histórico. A partir da introdução dos elementos fundamentais presentes nos discursos raciais sobre as populações indígenas nos autores discutidos, apresentamos uma breve análise dos discursos racis-tas que estavam penetrados dentro das ciências naturais nesse período. Esse estudo sobre a história do racismo científico se constitui como a nossa base para a discussão do racismo na contemporanei-dade e de que maneira o ensino de ciências deve contribuir para uma educação antirracista.

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O PAPEL DA HISTÓRIA DO RACISMO CIENTÍFICO NO ENSINO DE CIÊNCIAS E 4560

Defendemos que uma forma promissora de alcançar esses objetivos é partir de uma abor-dagem CTS que parta da história da ciência (MATTHWES, 1994) para discutir na formação de professores sobre a história do racismo exercido pela biologia humana e pelas ciências naturais sobre as populações indígenas e afrodescendentes. Nessa abordagem de ensino, a ciência passa a ser compreendida como uma construção humana demarcada no tempo e no espaço. O conhecimento científico deixa de ser tratado como uma conquista individual de grandes gênios e passa a ser enten-dida como o resultado do trabalho de muitas pessoas, e de pessoas comprometidas com seus grupos sociais, e com os ideários, ideologias e paradigmas vigentes em cada período ao longo do tempo.

Gil Perez e colaboradores (2011) apontam que noções empírico-indutivistas, ateóricas, ahistóricas, dogmáticas, elitistas, exclusivamente analíticas, acumulativas e lineares do processo de construção do conhecimento científico, em geral protagonizadas por insights individuais de grandes pensadores, são amplamente difundidas. Romper com essas visões sobre a produção do conheci-mento científico é uma tarefa importante e que pode ser alinhada com a discussão a respeito do racismo como uma construção social que teve historicamente grande respaldo das ciências naturais.

De modo mais específico, Sánchez Arteaga e El-Hani (2012) defendem o potencial que os debates históricos sobre o racismo científico podem ter para possibilitar aos estudantes compreen-der situações atuais em que há risco do discurso biológico ser utilizado com propósito ideológico de marginalizar e segregar grupos humanos. Os autores defendem que a abordagem histórica deve ser realizada com um enfoque nas relações ciência, tecnologia e sociedade (CTS), na medida em que os casos de racismo científico observados na história são compreendidos a partir das relações entre a produção científica e tecnológica e os valores sociais, culturais, políticos e morais em que se originam. A abordagem de Sánchez Arteaga e El-Hani (2012) é especialmente interessante para os objetivos deste trabalho, tanto pela defesa da abordagem histórica do racismo científico, mas tam-bém - ao visar uma formação que possibilite ao estudante estar atento ao risco do uso ideológico do discurso contemporâneo sobre raças - por contribuir para uma educação antirracista. Segundo essa perspectiva, a discussão da história do racismo científico pode ser colocada em articulação com discursos contemporâneos sobre questões raciais nos quais o papel das ciências atuais tem sido objeto de polêmicos debates recentes (por exemplo, a questão das cotas raciais à luz dos discursos da genética contemporânea tem sido analisada criticamente por Dias e colaboradores (2018) em que trabalham com a ideia de raça como “questão sócio-científica”.

Nesse sentido, uma discussão histórica sobre como os discursos científicos tornaram-se, em muitos casos, instrumentos teóricos para a legitimação das hierarquias raciais no Brasil, pode ser de extrema relevância para promover uma formação de professores mais sensível ao respeito à diversi-dade étnico-racial e mais engajada no combate ao racismo.

Resultados e Discussão: O olhar histórico da ciência sobre os povos indígenas do Brasil (séc. 19-20) como exemplo de racismo científico

Em relação à questão racial no Brasil, a ciência teve um papel fundamental no fortaleci-mento das hierarquias raciais herdadas do período escravocrata. Ao final do século XIX a hierar-quização social existente no Brasil tomou outro corpo e passou a ser explicada e justificada por teorias científicas racistas. Nesse período, as hierarquias raciais foram explicadas como resultados das leis naturais, uma vez que foi dada por certa a existência de uma evolução biológica e intelectual

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diferencial entre os distintos grupos humanos (SCHWARCZ, 1993). As condições de vida, a situ-ação de miséria e muitas doenças foram explicadas como características inatas das raças negras e indígenas ou como resultado do processo de degeneração devido à miscigenação.

A partir da chegada do evolucionismo no Brasil na década de 1870, o racismo científico - que já tinha penetrado anteriormente no país, através de figuras proeminentes como Agassiz ou Gobineau -, embasado agora nas teorias evolutivas de Charles Darwin, dominou o discurso médico e antropológico do final do século XIX ao início de século XX (SÁNCHEZ ARTEAGA et al, 2015; SÁNCHEZ ARTEAGA, 2006, 2007, 2009, 2013, 2017). Nesse período, um dos objetivos dos grupos hegemônicos era a consolidação da República. Para eles era importante a afirmação do Brasil enquanto uma terra de elevada intelectualidade que produzisse conhecimento sobre as raças que habitavam essas terras.

Entretanto, na mente daqueles cientistas e intelectuais, o objetivo de tornar o Brasil uma república “avançada” e “civilizada” esbarrava na composição racial do país, a qual tinha parte da população composta por índios e negros, considerados como raças inferiores pelas ciências da época (MONTEIRO, 2001). Dentre esses, alguns povos indígenas, como os Caingangues (ou “Botocudos”, como foram batizados pelos colonizadores portugueses) foram cientificamente carac-terizados “sob o ponto de vista moral e intelectual” como “a expressão da raça humana no seu maior grau de inferioridade” (LACERDA, 1882, p. 2).

Ao mesmo tempo em que as teorias raciais, que dividiam a humanidade em raças hierar-quizadas entre si, agradavam aos intelectuais e à elite política brasileira, provocavam, na mesma proporção, certo mal-estar em relação ao sentimento de identidade nacional, pois essas teorias, promulgadas a maioria das vezes por cientistas e intelectuais estrangeiros (quase sempre oriundos da Europa ou dos Estados Unidos) representavam o Brasil como exemplo de nação degenerada, sendo que a degeneração encontrava sua causa principal, aos olhos desses cientistas forâneos, na mistura racial (MONTEIRO, 2001; SOUZA, 2008, SÁNCHEZ ARTEAGA, 2012). Um dos representan-tes dessa visão, já mencionado, foi o francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) que via o país como o maior exemplo de degeneração decorrente da miscigenação. Para ele, era a mistura de raças que apagava as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, e resultava num tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental, o mestiço (SKIDMORE, 1976, p. 46).

Por sua vez, o naturalista Louis Agassiz apontava em seus relatos o Brasil como o melhor exemplo de uma nação com um declínio racial notório devido à miscigenação, a qual era responsá-vel por retirar as melhores qualidades de cada raça (AGASSIZ; AGASSIZ, 1938, pág. 366). Charles Darwin também acreditava na degeneração das raças pela miscigenação e, para ele, os traços físicos considerados feios das populações dos países americanos se deviam a reversões atávicas causadas pela mistura das raças: “há muitos anos, muito antes de pensar no assunto atual, fiquei impressionado com o fato de que, na América do Sul, homens de ascendência complicada entre negros, índios e espanhóis, raramente tinham, seja qual for a causa, uma boa expressão” (DARWIN, 1868, vol. 2, p.46).

Essas visões racistas da diversidade racial da humanidade se propagaram pelo mundo, e na década de 70 do século XIX, fundamentalmente a partir da abertura das primeiras cátedras de antro-pologia física no Museu Nacional (FARIA, 1952; SÁ et al., 2008) e os primeiros trabalhos nacionais sobre a evolução diferencial das chamadas “raças” (SÁNCHEZ-ARTEAGA et al., 2015), o Brasil passou de objeto para sujeito produtor desses discursos racialistas através dos estudos científicos

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sobre a sua composição racial, nos quais a concepção de que as principais desigualdades sociais eram uma consequência direta das variações raciais, foi aceita como um preconceito inquestionável pelos cientistas nacionais. Através dos estudos científicos determinavam-se as raças “perigosas”, “inferio-res” e passíveis de serem exterminadas com o pressuposto de tornar possível o avanço da sociedade brasileira, atrasada pela presença dessas “raças inferiores” (SCHWARCZ, 1993).

O médico João Batista de Lacerda Filho (1846–1915) foi um dos pioneiros a realizar pes-quisas sistemáticas sobre as “raças” indígenas do Brasil. Este autor, inspirado pelos trabalhos de Morton, Nott, Gliddon, Paul Broca, Paul Topinard2, entre outros, denunciava o atraso na produção nacional de conhecimento sobre os “caracteres físicos das raças indígenas”, em comparação com os antropólogos estadunidenses e europeus (MONTEIRO, 2001).

Nesse período houve grande esforço para a produção de conhecimento sobre os povos que viviam no Brasil de modo a garantir uma suposta compreensão e justificativa para as desigualdades sociais enquanto dados da natureza. Nesse contexto, os estudos sobre os povos indígenas à luz das teorias raciais aumentaram significativamente. Cientistas e intelectuais se dedicaram aos estudos dos povos indígenas do Brasil numa perspectiva racialista, quando não abertamente racista, dentre eles podemos destacar João Lacerda, Sílvio Romero, Hermann von Ihering. Foi um período de grande efervescência intelectual, durante o qual as ciências antropológicas, a medicina e a biologia humana atuaram como produtoras de conhecimentos que legitimavam os processos de marginalização de grupos étnicos, justificando em termos naturalistas a sua exclusão de benefícios sociais, como o acesso à terra (MOURA, 1994).

Alguns dos cientistas mencionados foram acusados de defender o extermínio desses povos, outros afirmavam que era desnecessário empreender qualquer política nesse sentido, pois as popu-lações indígenas estavam abocadas inevitavelmente à extinção por causas puramente naturais. Por outro lado, os pressupostos racistas esbarraram em um contradiscurso que via no índio não apenas as raízes da nacionalidade, como também um caminho para o futuro da civilização brasileira, sobre-tudo através do processo de mestiçagem (MONTEIRO, 2001). Ainda assim, mesmo os mais dedi-cados defensores dos índios tendiam a concordar que os mesmos haviam de desaparecer, porém, não necessariamente pelos defeitos da raça. Nesse contexto:

...aflorava novamente uma situação de tensão. Tanto nos recintos elegantes das acade-mias e institutos das capitais, quanto nos recantos rústicos dos sertões do Império, as disputas entre os que defendiam a “catequese e civilização” dos índios e aqueles que promoviam a sua remoção e mesmo extermínio intensificavam-se cada vez mais. Neste contexto, as doutrinas raciais – que pregavam a inerente inferioridade dos índios, a impossibilidade dos mesmos atingirem um estado de civilização e, por fim, a inevitabi-lidade de seu desaparecimento da face da terra – teriam um lugar de destaque no debate em torno da política indigenista (MONTEIRO, 2001, p. 173).

O médico Nina Rodrigues (1862-1906) foi outro destacado estudioso da classificação racial do povo brasileiro. Seus estudos, altamente interdisciplinares, se baseavam na craniometria, assim

2 Paul Broca impulsionou a antropometria a partir de 1859 com a criação da Société d’Anthropologie de Paris. Broca era professor da Faculté de Médecine de Paris e era consagrado, na França e no exterior, como o fundador da antropologia moderna. Paul Topinard foi um dos principais discípulos de Broca.

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como em estudos clínicos e em proto-etnografias das populações afrodescendentes e mestiças, como instrumento para a comparação das raças humanas. Rodrigues também estudou o surgimento de doenças como resultado na miscigenação e considerou à mestiçagem o principal fator desenca-deante da criminalidade no Brasil. No trecho que segue observamos uma caracterização feita por Rodrigues sobre os povos indígenas, na qual se manifesta sua oposição científica a muitas das teses sobre os “selvagens” que, do Rio de Janeiro, defendia outro grande teórico das raças do país, o já mencionado J.B. de Lacerda:

Spencer demonstra que é o sistema nervoso e não o muscular, em que o Dr. Lacerda procurava a explicação do fenômeno, que dá a medida do desenvolvimento da força miótica; e ainda, que esta guarda uma relação direta de dependência com o estado e o desenvolvimento das funções físicas, de sorte que o menor desenvolvimento do cérebro do selvagem explica suficientemente a sua fraqueza física (RODRIGUES, 1959, p. 143).

Nesse fragmento fica evidente que as supostas fraquezas físicas conferidas aos povos indí-genas eram atribuídas às características inatas de sua raça. Para isso, usavam-se medidas como o tamanho e o formato da cabeça e o tamanho do cérebro. Tais conclusões estavam, em sua maioria, baseadas nas teorias raciais ancoradas em um modelo etnocêntrico, monocultural e imbricado nas relações de poder do período.

Os cientistas Lacerda e Peixoto (1876), por exemplo, chegaram à seguinte conclusão após a análise de 6 crânios de índios botocudos:

Pela sua pequena capacidade craniana, os Botocudos devem ser colocados a par dos Neo-Caledônios e dos Australianos, isto é, entre as raças mais notáveis pelo seu grau de inferioridade intelectual. As suas aptidões são, com efeito, muito limitadas e difícil é fazê-los entrar no caminho da civilização (LACERDA; PEIXOTO, 1876, 71-72).

Nesse trecho os autores apontam para o suposto problema colocado pela composição racial do Brasil ao desenvolvimento e à suposta civilização dessa sociedade. Por meio desses estudos, alguns cientistas e políticos defendiam o embranquecimento da população brasileira como caminho para tornar esse país civilizado e desenvolvido (SOUZA, 2008). João Batista de Lacerda apontava que o embranquecimento da população brasileira iria acontecer naturalmente, pois as populações dos povos negros e indígenas estavam em declínio (SCHWARCZ, 2011).

Nesse breve texto podemos observar o quanto a ciência estava engajada na produção de conhecimento com fundamentos racistas no final do século XIX (temos focado especificamente em alguns exemplos de caracterizações científicas dos povos indígenas, mas poderiam ter se analisado numerosos outros exemplos). Apontamos que tais conhecimentos influenciaram diversos setores da sociedade, como a política, o judiciário e o imaginário popular sobre a diversidade humana no Brasil. Até os dias atuais o Brasil continua a ser uma sociedade extremamente desigual e ultra--hierarquizada racialmente, o racismo opera de modo explícito nas relações sociais, por mais que a maioria dos brasileiros não se reconheçam racistas (SCHWARCZ, 1993; GOMES, 2012).

A partir disso, pretendemos propor uma discussão sobre o racismo na contemporaneidade e sobre as contribuições que a história das ciências podem ter na construção de uma escola, uma

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universidade e uma sociedade livre do racismo. Articularemos essa discussão com o papel das esco-las de formação professores, sobretudo de biologia, para o engajamento na formação crítica sobre a ciência no combate ao racismo.

O racismo no Brasil: identidade, alteridade e a formação de professores de ciências

Como vimos no apartado anterior, para as ciências de finais do século XIX e inícios do século XX, os fatores sociais eram considerados como elementos secundários na explicação da reali-dade, e as explicações racistas eram as mais aceitas nos meios científicos e políticos. Na atualidade, essa visão arcaica (e não mais aceita pela ciência) sobre os povos negros e indígenas, originadas no século XIX, contribui para a manutenção dos estigmas atribuídos a esses grupos humanos. Para ser superada, é fundamental compreender historicamente que as teorias raciais subjacentes ao pro-cesso de estigmatização deixaram de ser aceitas pela ciência há muitos anos (VERRANGIA; SILVA, 2010; MOLINA ANDRADE, et al., 2014).

Na contemporaneidade, do ponto de vista biológico, raça humana é um conceito inope-rante, obsoleto. Mas “raça” é uma palavra polissêmica, e se como conceito biológico aparece como mito anticientífico, do ponto de vista sociocultural é uma categoria que ainda vigora; nesse último sentido, a ideia de Raça é legitimamente reivindicada por movimentos sociais que lutam pelos direitos das populações não eurodescendentes como uma ideia de afirmação de identidade frente ao eurocentrismo e ao racismo.

Os estudos raciais do Brasil foram permeados por processos identitários imbricados com lutas políticas que conduziram historicamente a processos de alterização e marginalização dos povos não europeus como radicalmente “outros”. As identidades (também) são produzidas dentro de discursos - inclusive nos discursos científicos, por exemplo, quando falamos em herança, genes, ancestralidade... - e em contextos institucionais históricos específicos; identidades são marcadas pela diferença, pela exclusão e demarcadas por jogos de poder (HALL, 2013). As ciências naturais, ao longo da sua história, foram utilizadas e ainda têm a potencialidade de serem usadas como meio de marginalização do outro pelas diferenças (SANCHEZ ARTEAGA et al., 2015; SANCHEZ ARTEAGA, 2007).

No processo de luta por uma educação antirracista é fundamental reconhecer que o espaço escolar não é neutro e que nele se manifestam diversas questões sociais, inclusive o racismo. O silên-cio da escola na discussão desse tema é algo muito sério, pois muitos atos de racismo vivenciados pelos estudantes dentro e fora da escola acabam por ser naturalizados. Problematizar essa temática dentro da escola pode possibilitar o oferecimento de lentes teóricas que aportem elementos para a construção de uma sociedade firme na luta contra o racismo. Por esse motivo, a formação inicial e continuada dos professores necessita abordar o racismo enquanto um problema social que afeta a escola e que precisa ser combatido (Gomes, 2012).

O silêncio sobre as problemáticas raciais, segundo Gonçalves (1985), é uma marca central do espaço escolar. Esse autor chama a atenção para os conflitos e tensões que possibilitam a mani-festação do racismo por olhares, invisibilidades, visibilidades e palavras. Gomes (2012) afirma que o silenciamento não pode ser entendido como o desconhecimento do problema, mas uma forma de operar e viabilizar o racismo enquanto mecanismo de seletividade e exclusão dentro da escola.

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Existem rituais pedagógicos de discriminação racial dentro da escola. Esse apontamento nos faz refletir sobre as diversas formas de racismo que podem se manifestar na escola, desde um ato de discriminação racial explícito, até atos simbólicos que podem passar despercebidos, como a maior atenção e preocupação com o rendimento escolar de estudantes brancos, e/ou naturalizar o fracasso escolar dos estudantes negros, etc. A identificação de atos racistas nem sempre é simples, é um processo complexo e que necessita do intenso exercício de se colocar no lugar do outro (GOMES, 2012). Para que o ensino de ciências contribua para essa mudança, a história da ciência, mais espe-cificamente do racismo científico, precisa ser inserida nesse processo. Segundo Verrangia e Silva (2010), dentre as temáticas que devem permear um ensino que promova relações étnico-raciais éti-cas, estão os eixos: “impacto das Ciências Naturais na vida social e racismo”; e “superação de estere-ótipos, valorização da diversidade e Ciências Naturais”, temáticas com as quais os debates históricos tratados neste trabalho se relacionam, e que podem ser trabalhados em sala de aula a partir de uma perspectiva CTS sensível à história das ciências (MATTHEWS, 1994, SÁNCHEZ ARTEAHA & EL-HANI, 2012). O estudo crítico dos processos históricos que compuseram e estruturaram os conceitos e as teorias das ciências sobre a existência e a hierarquia de raças devem ser levantadas (VERRANGIA; SILVA, 2010).

A formação de novos professores de biologia tem o dever de discutir a importância do racismo como um fator essencial na história da ciência e a contribuição que a ciência teve para a consolidação desse problema. Essa discussão está alinhada com as orientações Lei nº 11.645/08 que estabelece a obri gatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e Indígena na edu cação escolar brasileira em todos os níveis de formação, e também se alinha com uma for-mação que contemple a ciência enquanto construção humana permeada pela história, pela política e por relações de poder, tal como proposto numa abordagem CTS do ensino de ciências. Essa perspectiva, de modo mais amplo, busca avançar para o ensino que não se aprisione nas fórmulas e conceitos das ciências abstraídos de toda realidade social e humana, mas na ciência enquanto um constructo social demarcada no tempo e no espaço, permeada por contradições e disputas.

Considerações finais No presente trabalho consideramos abordar a questão do racismo no Brasil através da inclu-

são da história das ciências no ensino de Biologia, focando em alguns exemplos de inferiorização científica dos povos indígenas brasileiros, como exemplo de racismo científico. Entendemos que esta inclusão (que pode ser feita seja a partir do caso mencionado, ou de muitos outros que podem ser trazidos da história das ciências no Brasil) contribuiria para uma formação crítica com relação ao racismo e à ciência, possibilitando uma compreensão de como o discurso da ciência foi utilizado em apoio a ideias racistas e do porquê isso não pode ser mais aceito nos tempos atuais.

AgradecimentosAgradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq

pelo apoio financeiro ao projeto de pesquisa “Investigações Colaborativas sobre Materiais Curriculares Educativos para as Relações Étnico-Raciais baseadas na história do Racismo Científico” no âmbito do qual essa produção foi gerada. Agradecemos a Capes pela bolsa de doutorado do primeiro autor.

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CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA IDEIA COSMONÔMICA PARA A APRENDIZAGEM INFORMAL CIENTÍFICA EM 4568

CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA IDEIA COSMONÔMICA PARA A APRENDIZAGEM INFORMAL CIENTÍFICA EM BIOLOGIA

Saulo Cezar Seiffert Santos (UFAM/Unioeste – Bolsista PROP/CAPES) Márcia Borin da Cunha (PPGECEM – Unioeste)

Resumo: Aprendizagem ocorre em toda vida, e a aprendizagem científica em Biologia pode ocor-rer em muitos espaços informais. Há, contudo, poucas pesquisas sobre aprendizagem informal em Biologia e as abordagens normalmente são em relação à escola. Por isso, a pesquisa apresentada no artigo buscou fazer uma reflexão sobre as contribuições do pensamento do filósofo Herman Dooyeweerd para com os pressupostos da aprendizagem informal em Biologia. Mediante uma pes-quisa bibliográfica, foi realizada uma comparação de alguns conceitos da teoria sociocultural de Vigotsky e de Bakhtin com pontos do pensamento dooyeweerdiano. Dessa comparação brotou a percepção da relevância da experiência ordinária em ambientes não escolares e a preparação do pen-samento teórico para a abertura cultural em temas de aprendizagem informal em Biologia.Palavras-chave: Divulgação científica; Biologia; Dooyeweerd; Teoria sociocultural.

Introdução

A aprendizagem humana ocorre ao longo da vida, apesar de o foco principal ocorrer na escola. Esse foco escolar, porém, é pouco em comparação com as experiências vividas pelas pessoas no decorrer da vida. Segundo estimativas da National Research Council (2009), a educação

básica formal (ou escola) ocupa somente 18,5% do tempo da criança e do adolescente, quantidade de tempo que se reduz gradativamente no transcorrer da vida adulta posterior.

Especificamente, a pesquisa sobre a aprendizagem em Biologia aparentemente se concentra no ensino formal, apesar de se encontrarem estudos de educação não formal relacionados à divulga-ção científica, a visitas a museus e a aulas de campo (TEIXEIRA; MEGID NETO, 2012).

Neste trabalho adotamos o termo “aprendizagem informal científica”, pois o processo de aprendizagem é focado no interesse do indivíduo, colaborativo, não-linear (necessariamente) e aberta, não obstante possa ocorrer integração escolar, como é o caso de excursões e de visitas moni-toradas. É recebida por meio de experiência do sujeito com fenômenos e ambientes, e os espaços informais possuem em si características relacionadas ao designer ou à configuração que propiciam ao indivíduo se apropriar e construir o seu conhecimento por meio das experiências (ESHACH, 2007; NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2009).

Neste trabalho, o termo “educação não formal” até aparece, sendo que isso é devido aos vários sentidos que se intercruzam com “educação informal” (MARANDINO, 2017), mas entendemos que o termo por nós escolhido, de “aprendizagem informal”, engloba perfeitamente os dois sentidos – tratando-se, neste caso, de educação informal científica. Assim fica também contemplada a com-preensão da Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação em Ciências − ABRAPEC, com-preensão expressa por ocasião do Encontro Nacional de Pesquisadores em Educação em Ciências

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CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA IDEIA COSMONÔMICA PARA A APRENDIZAGEM INFORMAL CIENTÍFICA EM 4569

− ENPEC com o eixo temático “Educação em Espaço Não Formal e Divulgação Científica”, na edição de 20171, com pesquisas em: i) história, políticas e práticas de divulgação científica e suas relações com a Educação em Ciências; ii) relações entre comunicação e educação; iii) educação em museus e centros de ciências; iv) feiras e exposições de Ciências; e v) divulgação científica e inclusão social.

Assim, já cabe agora especificar que a aprendizagem informal pode ser observada i) por con-centração de estudos e ii) por espaços de aprendizagem (NATIONAL RESEARCH COUNCIL, 2009), assuntos de que se trata a seguir.

A concentração de estudos pode ser por pessoas, ou seja, baseando-se em teorias de apren-dizagem e conhecimento sobre como aprendem em espaços informais (não formais), com o uso do construtivismo; centrada em locais na relação de lugares e artefatos de aprendizagem em configu-ração informal e mídias; e centrada na cultura na qual valorizam as práticas sociais como forma de afiliação social do indivíduo para a formação cultural.

Sobre os espaços de aprendizagem informais, eles podem ser variados. Sugere-se organizar da seguinte forma: ambientes projetados (museus, centro de ciências, zoológicos, jardins botânicos, aquários, entre outros) com configuração baseada em uma intenção educativa por parte dos proje-tistas; Programas de Educação Pós-Escolar e de Adultos, em que são atividades de educação como excursões de férias; como espaços cotidianos (o espaço do lar, do trabalho, da comunidade e da convivência) e, atualmente, muito ligados pelos relacionamentos e pelos conexos aos espaços com uso de tecnologias presentes, como literatura, televisão, rádio e internet; e outros espaços. Há uma infinidade de espaços que aderem em parte alguns dos espaços acima, mas possuem características diferenciadas.

O desafio de relacionar os aspectos de sentidos distintos da realidade como a cognição, aspecto sociocultural, interação físico-social, contexto institucional e nichos humanos não são compatíveis só para as teorias construtivistas, necessitando de relacionar com uma realidade mais abrangente. Para o estudo desses espaços de aprendizagem informal encontra-se a presença da teo-ria sociocultural normalmente baseada no psiquismo de Vigotsky (CUNHA; GIORDAN, 2009; OVIGLI, 2015; RUFATO, 2015) e modelo ecológico de aprendizagem (BRONFENBRENNER, 1977).

Outros fundamentos na filosofia das ciências naturais e das ciências humanas podem cola-borar para a investigação em aprendizagem informal. Como Larry Laudan, que compreende que a ciência se conforma em Grupos de Tradições da leitura da realidade para soluções de problemas empíricos e conceituais no ponto de vista da racionalidade (LAUDAN, 2011). Semelhantemente, Alasdair MacIntyre utiliza a ideia de Racionalidade Mediada pela Tradição (MACINTYRE, 1989). MacIntyre entende que grupos distintos formam culturalmente conhecimentos relativamente dis-tintos sobre o mundo e, nesse sentido, a inteligibilidade é dada por meio das lentes da tradição construída por cada grupo cultural, no sentido de verdade por correspondência em que busca uma pretensão de universalidade, e que pode ser comparada entre outros grupos por abdução.

Roy Bhaskar (2008) propõe uma epistemologia do Realismo Transcendental ou Crítico. Entende a realidade em níveis transfísicos de análise por meio das tradições culturais de inter-pretação do mundo, contudo cada comunidade possui a responsabilidade moral e intelectual de

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construir os seus sistemas com interação, e assim tendo verossimilhança, podendo também ser comparados os sistemas explicativos de grupos culturais diferentes.

Herman Dooyeweerd (1969), semelhantemente, faz uma crítica ao pensamento da ideia transcendental de Kant e percebe a realidade como significada por meio de aspectos modais per-ceptíveis pela experiência ordinária e processada pelo pensamento teórico (científico) nos níveis numéricos, espacial, físico, biológico, analítico, histórico, simbólico, social, econômico, estético, jurídico, ético e fiduciário. Assim, neste trabalho, buscamos estabelecer um diálogo com esse autor.

Nosso objetivo é apresentar tópicos da filosofia de Dooyeweerd numa relação com a apren-dizagem informal científica em Biologia para temas educacionais.

O método realizado foi uma pesquisa bibliográfica sobre temas biológicos de dissertações e de teses no banco de teses da Capes e de artigos no Google Acadêmico, usando o descritor “não formal” e “informal”. Verificamos teorias relacionadas à aprendizagem e ao discurso, e realizamos uma reflexão sobre alguns conceitos relacionados à filosofia dooyeweerdiana.

Aprendizagem Informal em BiologiaA Educação em Biologia fora da escola − como, por exemplo, na região amazônica − ocorre

com uma predominância dos temas da diversidade biológica e suas relações com Ciência, Tecnologia e Sociedade − CTS. Essa educação carece, contudo, de pesquisas sobre essas temáticas, pois a maio-ria das pesquisas (em especial em teses de doutorado) acontece na área da Arqueologia (PEREIRA, 2009), nas áreas de concentração das ciências físicas e químicas (SILVA, 2007; AROCA, 2009) ou como Educação Ambiental (FERNANDES, 2010; FREITAS, 2014). São, evidentemente, áreas relevantes, mas não tratam necessariamente dos temas presentes com produção e divulgação cien-tífica regional e que tenha relação com as abordagens sobre biodiversidade e CTS. Quanto a essas abordagens, encontraram-se poucos trabalhos, como, por exemplo, o trabalho de Jacobucci & Jacobucci (2008), autores que tratam de museus em temas biológicos, realizando uma análise docu-mental e designer do Museu Goeldi – MPEG/PA, Museu da Vida – Fiocruz/RJ, Museu de Ciência & Tecnologia/RS, Estação Ciência/SP e Espaço Ciência/PE.

Quanto a pesquisas sobre aprendizagem em Biologia localizamos: i) a tese de doutorado de Teixeira e Megid Neto (2012), que encontraram sete trabalhos em aprendizagem informal em 316 do estado da arte brasileiro no período de 1972 a 2004 e ii) Alves, Passos e Arruda, (2010) que localizaram 3 artigos em 44 em periódicos brasileiros no período de 1979 a 2008. Segundo Ovigli (2015), é recorrente a teoria de aprendizagem de Vigotsky e outras teorias relacionadas com o dis-curso, especialmente Bakhtin, em pesquisas de educação não formal científica.

Tópicos da Filosofia da Ideia CosmonômicaHerman Dooyeweerd (1894-1977), natural de Amsterdã, filósofo, foi diretor da Universidade

Livre de Amsterdã e editor de várias revistas científicas. Foi influenciado pelo neokantismo, sobre-tudo pela Escola de Baden, representada pelos filósofos Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1863-1936), e também na fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) (OLIVEIRA, 2006). Desenvolveu suas ideias na perspectiva neocalvinista de articular a produção

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científica e cultural à visão filosófica de pressupostos cristãos (CARVALHO, 2010). É tido como um dos maiores filósofos da Holanda, sendo comparado com Baruch Espinoza.

A sua filosofia foi denominada de Filosofia da Ideia Cosmonômica (De Wijsbegeerte der Wetsidee, em holandês), ou filosofia da ideia de Lei do Cosmo (KALSBEEK, 2015). Aqui segue um resumo sucinto a partir de Carvalho, Dooyeweerd e Kalbeek (DOOYEWEERD, 1969, 2015; CARVALHO, 2010; KALSBEEK, 2015). Cabe aqui destacar, da sua enorme produção do direito, filosofia e teologia, apenas três teorias: teoria dos aspectos modais da realidade, teoria das estruturas de individualidade e a sua epistemologia.

Sobre a teoria dos aspectos modais, Dooyeweerd compreende a realidade como significado ou como sentido. Sua ontologia é o significado provido da antítese absoluta. Essa antítese absoluta são os pressupostos absolutos que um sistema filosófico toma como fundamento, e pressuposto da construção da arquitetônica filosófica. Esse pressuposto é dado como lei (por isso filosofia da ideia de lei). Dessa forma, é uma construção transcendental, ou seja, a priori, pelo significado derivado dos pressupostos iniciais. Denominou-se de Arqué, ou motivos-base da construção filosófica; a esses absolutos, Dooyeweerd também os chama de compromissos religiosos (fiduciário, crença ou segurança).

Como Dooyeweerd foi um neocalvinista, aponta que esse sentido é o absoluto da divindade eterna na sua criação, queda e redenção na pessoa de Jesus pelo Espírito Santo para existência cós-mica. Traz, contudo, uma contribuição de indicar outros Arqués, ou seja, o motivo da antiguidade grega de matéria e forma (movimento e absoluto), tomismo medieval de natureza e graça (natureza autônoma e supernatureza humana), e a moderna com natureza e liberdade (materialismo cientí-fico e liberdade humana). Aqui se configura uma evidência de que não existe fundamento de pen-samento neutro, senão que todo pensamento possui pressuposto e compromisso religioso em sua estrutura profunda.

Os outros motivos-base são binários, isso devido à antítese provocada entre dois pressupos-tos absolutos que geram tensões inconciliáveis na leitura filosófica da realidade. Para exemplificar, o motivo natureza e liberdade é o último e possui influência de todos os outros motivos-base his-tóricos, em que as bases do pensamento para a natureza estão na ciência e seu estudo de filosofia materialista que busca a razão de causa e efeito. Esta filosofia materialista está em tensão com o motivo-base da liberdade, que é o pensamento humanista de liberdade, de autonomia e de pro-gresso da humanidade, que desenvolve esses preceitos com base de empréstimo da filosofia cristã fundada no livre-arbítrio e na igualdade. Ora, o pensamento científico devora a liberdade, isso por não haver razão materialista para tal liberdade, e, por não encontrar razão, por sua vez, desqualifica tal pressuposto. Por outro lado, a liberdade se afirma como autonomia humana e cria seu pensa-mento e forma de viver, assim sujeitando a ciência ao seu serviço, e devora a ciência abstraindo-a do controle historicista.

Uma vez que ocorre o motivo-base, o seu pressuposto selecionado ou sincretizados, tal rea-lidade passa a possuir significado e nesse significado há o seu lado lei (ou significado, ou seja, o sentido transcendental de coerência de significado com a totalidade) e o seu lado assunto ou sujeito (que possui significado na função sujeito/guia ou a função objeto).

Nesse tempo cósmico, a realidade possui significados irredutíveis em níveis de sentido que são os aspectos modais, ou modo de ser como as coisas no tempo podem se apresentar. São quinze aspectos modais hierarquizados, aqui o aspecto, o significado e a ciência relacionados:

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1) quantitativo, quantidade numérica, álgebra e aritmética;

2) espacial, expansão contínua, geometria;

3) cinético, movimento constante, dinâmica;

4) físico, energia/matéria, física relativística;

5) biótica, vida orgânica, biologia;

6) sensível, sensação/emoção, psicologia;

7) analítico, distinção/análise, lógica;

8) histórica, poder formativo/cultural, história e cultura;

9) lingual, simbólico, semiótica;

10) social, relacionamento social, sociologia;

11) econômico, frugal/parcimônia, economia;

12) estético, harmonia/beleza, estética;

13) jurídico, retribuição, direito;

14) ético, amor/fidelidade, moral;

15) pístico, fé/certeza, teologia.

Todo ser ou portador de significado possui uma estrutura de individualidade que, no tempo cósmico, está na função sujeito ou objeto em relação aos aspectos modais. Por exemplo, uma pedra é um ser mineral na função sujeito, ou guia, no aspecto 4 (físico); isso quer dizer que a mesma pedra possui os outros aspectos anteriores e mais simples (3 = cinético, 2 = espacial e 1 = quantitativo) de estar como sujeito, enquanto outros onze aspectos posteriores estão na função objeto para o homem. O homem está em todos os quinze aspectos, pois o seu ego transcende a todos eles.

Cada ser possui sua estrutura de individualidade. Esta pode estar entrelaçada na função encáptica com outras estruturas de individualidade. Os tipos função são: tipo fundante irreversível (organismo com células formando tecido, ou tecido formando órgãos), tipo simbiótico (organis-mos em mútua troca), tipo sujeito-objeto (uso de um ativo ao passivo, caranguejo e concha, ou um hábitat) e tipo correlativo (complexo, como pensamento e linguagem).

O ser humano interage com a realidade e é portador de um ego que transcende a realidade temporal e sua experiência no mundo. Ele, a partir da sua estrutura biopsíquica, constrói, na fun-ção sujeito, o seu Horizonte da Experiência Humana com a sua Estrutura a priori do significado cósmico baseado no motivo-base adotado como Arqué pelo seu ego; a sua experiência perpassa uma variedade de estruturas modais e incide na dimensão plástica da experiência do indivíduo (flexí-vel) de viver, formando a sua Estrutura de Perspectiva do Horizonte da Experiência. Por isso, cada aspecto é experimentado de forma única e idiossincrática e, em vista disso, a estrutura a priori é denominada de idionomia.

A epistemologia em relação ao pensamento ocorre por meio de o ego experimentar intencio-nalmente a realidade a partir da sua idionomia, chamando-se de experiência naïve (não é realismo naïve), ou experiência ordinária, em que todos os aspectos modais estão reunidos e dados. Essa experiência, passando pelo processo sistasis, experimenta com intuição na sua totalidade, seme-lhantemente ao que se entende na fenomenologia, chamando-se de experiência enstand. Para o

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pensamento teórico (científico), foca-se ou se extrai parte da experiência ordinária num aspecto modal da realidade e, por meio da ação antitética analítica de opor a função lógica (por meio da intuição teórica) à experiência não lógica, tornando a experiência uma síntese, um insight intuitivo (teórico), uma abstração da realidade − esse processo é denominado gegenstand.

Um dos pontos interessantes de Dooyeweerd é que toda consciência possui um ego trans-cendental que adota pressupostos, vale dizer, um Arqué. Trata-se de pressupostos nos quais o ego conforma uma idionomia (idiossincracia) num contexto cultural. Esse ego encontra o mundo com a sua consciência por meio da experiência ordinária (“ingênua”, no sentido positivo do adjetivo) como um todo e toda a sua riqueza. Assim, por meio dessas experiências, forma ideias teóricas por meio do processo do pensamento teórico mediante da abstração de algum aspecto modal da realidade. Então, por exemplo, ao pensar sobre as plantas, fará insight no aspecto modal biótico da estrutura de individualidade vegetal. Fortalece o não reducionismo do pensamento teórico de um aspecto modal em outro, como não pensar a biologia em termos fisicalistas, mas respeitando o que esse aspecto contribuiu com outros aspectos, como a estética e a cultura, ou mesmo o que não o reduz, se for o caso.

Relações entre Aspectos Modais e Tópicos da Teoria SocioculturalRufato (2015), interpretando Ash (2003), define que a teoria sociocultural se baseia na ideia

de que as atividades humanas têm lugar em contextos culturais através de interações sociais media-das por sistemas de linguagem e outros símbolos e moldadas por um desenvolvimento histórico dos indivíduos.

A teoria sociocultural recebeu contribuições da psicologia de Vigotsky na formulação de suas hipóteses em relação à linguagem (VIGOTSKY, 1982a, 1982b; VIGOTSKY; BÜHLER, 1982): i) filogenética do homem, ii) mediação simbólica para a internalização cultural e iii) orientação da Zona de Desenvolvimento Proximal para progresso de aprendizagem.

Pela filogenética do homem se presume a evolução biológica e o desenvolvimento biopsí-quico humano da própria espécie (VIGOTSKY, 1982a). Para Dooyeweerd, a estrutura humana, na sua idionomia, presume também a sua estrutura biopsíquica como base para o desenvolvimento do pensamento e suas experiências. Logo, essa estrutura biopsíquica é a condição de existência das experiências histórico-culturais, mas não se limita nessas experiências, pois se expande em novas ideias com base em analogias desses aspectos, a exemplo da ideia de vida cultural (aspecto biótico), de sentimento ético (aspecto sensitivo), etc.

A mediação pode ser instrumental ou simbólica, contudo a relação objeto e sua represen-tação é mediada pelo símbolo, ou seja, a língua, que ocorre por duas vias: i) por meio da fala egocêntrica (do uso intrapessoal) como ferramenta para o planejamento das ações e ii) por meio da fala comunicativa para uso interpessoal com outro para a solução de problemas. Ambas as falas colaboram para a internalização de experiências e assim promovem a formação cultural em recep-ção sincrética (VIGOTSKY; BÜHLER, 1982). A interpretação de Dooyeweerd é que a experiência ordinária é sistática, ou seja, na construção do pensamento ingênuo não ocorre a separação dos aspectos modais, mas incorporação da experiência no horizonte de experiência humana, na análise integrada realizada pela intuição pré-teórica (KALSBEEK, 2015). É importante ressaltar que a comunicação é posta como função-guia (simbólica), ou seja, ocorre um processo encáptico sensível

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(recepção audível-visual), analítico (lógica estrutural), histórico (poder formativo de controle e cria-ção) e simbólico (significação e referência) numa relação social eu-tu com o outro, ou conversando consigo mesmo. Talvez não seja possível separar e distinguir claramente as estruturas de individu-alidade da relação encáptica correlativa sobre os aspectos, pois, para Vigotsky, a linguagem inter-nalizada forma o pensamento e, para Dooyeweerd, a lógica e o poder formativo são anteriores ao simbólico, devido ao fato de haver pensamentos sem necessidade de símbolos, ou a possibilidade de conhecimento tácito.

A orientação da Zona de Desenvolvimento Proximal − ZDP para o progresso de aprendiza-gem da criança (VIGOTSKY, 1982b) corrobora a ideia do processo relacional em que um sujeito mais maduro orienta o menos maduro para alcançar soluções para os problemas, sendo que, uma vez apropriada a competência para solucionar algo sozinho, cessa também o ZDP. O nível guia aqui é relacional, ou seja, é o aspecto modal social, de relacionamento, com função de orientação. Há uma teoria especial do relacionamento interindividual que não vamos explorar, mas a ideia do ZPD é importante para analisar como o relacionamento subordina os outros aspectos para a sua direção (sensitivo, analítico, formativo e simbólico), tornando-se uma encapse correlativa à situação didá-tica. Basden (2013) sugere que, na análise equilibrada dos aspectos modais, adote-se o princípio de Paz (Shalom), ou seja, qual seria a melhor direção possível. No caso, para o aspecto social busca-se conduzir a cooperação, a execução de atividades úteis e o uso de uma comunicação eficiente.

Outra contribuição ligada à teoria sociocultural foi realizada por Bakhtin (2017) na análise filosófico-literária da relação dialógica na produção textual, em que destacamos o entendimento de que o texto é uma realidade imediata e relação dialógica.

O texto como realidade imediata é dado como realidade do pensamento e das vivências, ou seja, sem texto sem pesquisa e sem pensamento (BAKHTIN, 2017, p. 71). O texto é concebido por Bakhtin no sentindo amplo (e subentendido) de coerência como qualquer conjunto coerente de signos, assim, a ciência das artes opera com textos. A busca de compreensão é feita pelo princípio da fé na sua interpretação (ibidem, p. 72). O texto, para Dooyeweerd, é uma tecnologia, ou seja, um encapse correlativo, com função simbólica. A função de interpretar está ligada à ideia de se referir a alguém ou a algo que contribui no diálogo do ciclo hermenêutico (parte e todo), diálogo no qual o uso do aspecto analítico na construção teórica é fundamental para guiar o pensamento teórico. Em especial, porém, aqui há analogia simbólica antecipada para os aspectos adiantados (antecipação) e para os anteriores (retrocipação). Então estudar a realidade por meio da experiência interpretativa pode alcançar todos os níveis modais.

Quanto à relação dialógica diz Bakhtin: “As relações dialógicas são relações (de sentido) entre toda espécie de enunciado na comunicação discursiva” (ibidem, p. 92). Para Bakhtin, o enunciado se confunde com o texto, pois são construções autorais em diálogo (responsivas em princípio) de sujeitos na comunicação discursiva (pois é com o outro). Esse discurso, podemos relacioná-lo como delimitação transfrásica, atitudinal (ato de fala), interativo, contextual, autoral, dialogismo genera-lizado e construído ideologicamente (MAINGUENEAU, 2015). Em interação com Dooyeweerd, ver o mundo como significado e como relação de sentido aponta para o Arqué, e tudo faz sentido para a experiência humana no tempo cósmico, por meio das construções pessoais que refletem essa idionomia (lado sujeito) com o diálogo com o sentido do lado lei (condição transcendental de coerência de significado da totalidade). Para Bakhtin, contudo, encontra-se no outro o sentido para si, ou seja, o sentido é determinado pelo outro, ou seja, a relação dialógica se dá no significado

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dialogal com outro (KRAMER, 2007). Para Dooyeweerd, isso é parcialmente correto, pois, em parte, existe uma lei cósmica transcendental, de certa forma “realista” e dada nos aspectos modais, de forma compatível e verossímil entre as visões de mundo distintas (e idionômicas). Mesmo assim, contudo, todo significado é também construído socialmente por meio de influências ideológicas e de heranças culturais (visão de mundo).

Contribuições para a Aprendizagem Informal em BiologiaRelacionamos algumas contribuições da Filosofia da Ideia Cosmonômica que podem con-

tribuir para a aprendizagem informal em Biologia: a) Numa visita ao espaço não formal para a promoção de aprendizagem informal, como em museus ou

em zoológicos, é um erro não discernir, no processo educativo, a experiência ordinária (sistática) da experiência teórica/abstrata (distática). Em outras palavras, é um erro esperar pensamento abstrato ao se experimentar de forma sistática, em que o foco não foi dirigido pela intencionalidade.

b) Semelhantemente, não pode ignorar que o processo de aprendizagem informal se inicia na atuação da intuição não teórica e integradora da experiência ordinária, voltado para a intencionalidade pessoal. É outra a intuição teórica conformada culturalmente e hábil para extrair, da experiência ordinária, o pensamento elaborado abstratamente. Em outras palavras, é preciso treinar a habilidade de abstração (pensar teoricamente é também uma competência) para poder ser executada com facilidade.

c) É possível, na experiência ordinária, predominar a ação do conhecimento tácito para a formação educativa que o reconhecido conhecimento explícito. Logo, ações relacionadas ao predomínio do aspecto sensitivo, como a observação livre do ambiente num passeio ao jardim botânico, podem surtir uma experiência agradável, mas pouco explicável (na experiência foram apreendidos outros dados, os sensíveis, que podem ser associados ao aspecto estético, por exemplo). Também, na atividade para a formação de conceitos, desde conceitos espontâneos até os científicos, é importante a experiência abstrata (relacionar os aspectos analítico, cultural e simbólico) em atividades concentradas para a pro-moção do gegenstand, como plantar mudas (ênfase formativa) e compreender o processo de plantio (ênfase analítica). Aqui ocorre a orientação dos objetivos propostos pelas configurações informais, se só lazer ou com propósitos de conhecer teorias, experiências ou atividades científicas.

d) A experiência vivida nas visitas a ambientes projetados para a aprendizagem informal é única para o indivíduo devido ao processo de abertura cultural na estrutura de perspectiva do horizonte de experi-ência (idionomia), a priori, e a orientação do Arqué do ego. Isso evidência que a formação prévia esco-lar influenciará diferentes respostas aos visitantes com formação específica que prepare para conhecer determinado fenômeno, ou assunto de que, na sua vida cotidiana, o indivíduo possui experiência de tal forma que torna a experiência significativa de forma idiossincrática. Um exemplo é quando estudantes visitam um zoológico com grandes vertebrados pela primeira vez. Desse tipo de visita os estudantes não têm experiência prévia e então a atividade será uma novidade em que a apreensão do aspecto sensível terá destaque. Por outro lado, a observação da vida em fazenda, em que grandes ver-tebrados não são novidade para aqueles indivíduos visitantes, então eles podem se ater às informações simbólicas e a outras relações.

e) A aprendizagem informal inicia pela experiência ordinária sistática, mas pode conduzir para analisar os outros aspectos modais, como aspecto social (relacionamentos), o econômico (sustentabilidade), o estético (harmonia e beleza) e o ético (moralidade do tema). Em que cada aspecto, aos estudantes

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serão necessários procedimentos que permitam esse olhar interdisciplinar numa temática relacionado à sua formação.

f ) É importante não caminhar ao reducionismo no processo comunicativo (dialógico). Na experiência se percebe que a Vida é mais que átomos e moléculas; a discussão é mais que frases e língua; e a orien-tação de segurança é mais que determinação econômica.

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O CINEMA E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA: UM DIÁLOGO A PARTIR DO FILME ‘AS MONTANHAS DA LUA’

Paulo Antônio de Oliveira Temoteo (UFLA – Bolsista PIBID/CAPES) Laise Vieira Gonçalves (Departamento de Biologia – UFLA)

Antonio Fernandes Nascimento Junior (Departamento de Biologia – UFLA)

Resumo: O conhecimento científico, por vezes, é visto como um produto sem influências de seu contexto histórico, mas ele é influenciado por diversos fatores que vão além do método cientifico. Assim, buscando possibilitar que os alunos da disciplina de Metodologia Científica do curso de Ciências Biológicas da UFLA tenham uma visão ampla da produção cientifica, foi proposto que assistissem ao filme As Montanhas da Lua e a partir dele, estabelecessem um diálogo com as visões de ciência nele apresentadas. A partir da Análise de Conteúdo dos diálogos chegaram-se as cate-gorias: Hipótese e Comprovação; Questão da Verdade; Papel da Comunidade Cientifica; Choque Cultural; Importância do Financiamento. Demonstrando a obra como meio potencializador para construção de uma visão sistêmica da produção cientifica.Palavras-chave: Ensino de Ciências, Epistemologia, Metodologia Científica.

INTRODUÇÃO

O conhecimento científico, muitas das vezes, é ensinado nas escolas como um produto pronto e acabado. Porém, tal conhecimento, assim como todos os demais, possui história e, pos-suindo história, está permeado por influências econômicas, políticas, ideológicas, filosófi-

cas, sociais e culturais (QUEIRÓS et al. 2013).Em virtude disso, é importante desmistificar a visão equivocada de ciência empirista-indu-

tivista que visa colocar a ciência como um conhecimento que não possui influência de ideias aprio-rísticas do contexto histórico, colocando a experimentação e observação como “neutras”. Visando superar a visão simplista de um conhecimento infalível produzido por grandes gênios em suas descobertas individuais, sem influências de teorias estabelecidas da época (QUEIRÓS et al. 2013; SANTOS; SCHEID, 2011).

Vale considerar que a visão empirista-indutivista constitui uma das sete visões equivocadas que Gil-Pérez et al. (2001) ressaltam em sua profunda análise das visões de ciência na bibliografia. Algumas dessas visões que são interessantes para se trazer aqui são as visões: ‘rígida’, ‘aproblemática e ahistórica’ da ciência.

A primeira delas, a visão rígida, coloca a ciência como algorítmica, infalível e exata, conside-rando o Método Cientifico como único e que deve ser seguido mecânica e rigorosamente para se ter resultados quantitativos precisos, confiáveis e infalíveis, deste modo indo contra a ambiguidade do trabalho científico que é essencialmente incerto e não dogmático (GIL-PÉREZ et al. 2001).

Se tratando da visão aproblemática e ahistórica, esta, se relaciona fortemente com a visão rígida, pois ela omite o caráter histórico da produção científica, ignorando o problema ou situação

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problema, que a princípio confuso, precisou ser formulada dando origem ao empreendimento cien-tífico. Ela também ignora as condições e limitações que o fator histórico impunha a produção do conhecimento científico (GIL-PÉREZ et al. 2001).

Desta forma, pensando no caráter interdisciplinar da natureza científica tendo em vista que é uma produção história humana, ensinar tal conteúdo requer um instrumento pedagógico igualmente interdisciplinar. Logo, o cinema pode vir a ser como meio para a compreensão da natu-reza cientifica visto que ele envolve várias disciplinas e conteúdos programáticos contribuindo para ampliar a visão de mundo dos alunos ao possibilitar reconstruir eventos do passado (SANTOS; SCHEID, 2011; INEZ, 2017).

O cinema constitui um dos principais meios de comunicação em massa e arte do sec. XX em diante. Ele se faz da integração entre imagens, sons e palavras, tendo portando um alto grau comunicativo. É importante ressaltar que o cinema não se resume apenas ao filme, ele é composto por uma grande cadeia, uma estrutura, que inclui investidores, distribuidores, exibidores, produto-res, órgãos de censura, gosto dos expectadores dentre vários outros elementos, até finalmente chegar ao seu destino final que são os expectadores, estes que em sua maioria se importam apenas com a história que é projetada na tela (BERNARDET, 1980).

Logo é importante pensar o cinema não apenas como um recurso para o ensino, mas tam-bém como uma linguagem a ser dominada criticamente, tendo em vista que da mesma maneira que ele apresenta um caráter altamente educativo ele também pode possuir caráter altamente alienante (BARROS et. al, 2013). Ademais, se faz muito interessante o professor se apropriar dos bons ele-mentos que essa linguagem possui, possibilitando ao aluno ressignificar a visão única e deformada de cinema como entretenimento, que é amplamente difundida.

O diálogo entre o cinema e educação faz parte da história do cinema, desde o seu princípio seus idealizadores já vislumbravam a possibilidade do mesmo ser utilizado como poderosa ferra-menta pedagógica. Tendo em vista que cinema é arte, ele pode contribuir de várias maneiras para a formação de um cidadão, dentre elas, auxiliar a compreender a diversidade de valores que estão inseridos em sua própria maneira de pensar e agir, assim como a da sociedade (ARAÚJO, 2007).

Com o propósito de contribuir para uma formação de discentes que esteja de acordo com uma perspectiva histórica, filosófica e social da ciência, foi desenvolvida uma prática pedagógica com estudantes do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Lavras – MG (UFLA). Tal prática consistiu em apresentar a alunos do curso que ainda não tiveram contato formal com história, filosofia e sociologia da ciência, o filme “As Montanhas da Lua” para, em seguida, avaliar se este era capaz de levar o aluno a uma contextualização social da mesma.

METODOLOGIANa primeira aula da disciplina de Metodologia Científica (ofertada no 3º período do curso

de Bacharelado em Ciências Biológicas e eletiva para licenciandos) foi pedido para que os alunos assistissem em casa ao filme “As Montanhas da Lua”. Após assistirem individualmente ao filme os alunos deveriam responder, na página do facebook que foi criada para a disciplina, a seguinte ques-tão: ‘Qual a ideia de Ciência que o filme transmite?’.

No total foram 23 avaliações. Tais avaliações que os alunos fizeram sobre o filme, a partir desta pergunta, foram utilizadas para a análise deste trabalho. A intenção era procurar entender se

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os alunos conseguiriam estabelecer o diálogo entre as questões sociais da ciência postas no filme e as mesmas questões para a ciência em geral. A escolha da primeira aula para o contato com o filme se deu em função da suposição de que eles ainda não tinham nenhum contato formal com a história, a filosofia e a sociologia da ciência.

Sobre o filme estudado “As Montanhas da Lua” de título original Mountains of the Moon (IMDB) é um filme

comercial estadunidense do ano de 1990, com direção de Bob Rafelson, roteirizado por William Harrison e também pelo diretor, possuindo duração de 136min. O filme se passa no sec. XIX, contando a história do capitão Richard Francis Burton (Patrick Bergin) e do tenente John Hanning Speke (Iain Glen) ambos ingleses, na perigosa expedição de busca da até então desconhecida nas-cente do rio Nilo.

A história do filme retrata a expansão das potencias europeias no continente africano, pro-cesso também denominado de ‘roedura’. Retratando os corajosos, destemidos e desbravadores Richard Francis Burton e John Hanning Speke, ambos os geógrafos, que ao início do filme passam por uma frustrada incursão pelo continente africano devido ao ataque de uma tribo nativa, tendo por consequência o retorno de ambos ao seu país de origem. Na Inglaterra, conseguem financia-mento para uma grande expedição, patrocinada pela Sociedade Geográfica Real para descobrirem a nascente do rio Nilo.

Com o financiamento adquirido, os geógrafos retomam ao continente em sua expedição de exploração com uma grande caravana. Porém, à medida que adentram no continente, várias são as dificuldades que eles vão encontrando sejam elas ataques de leões e insetos, roubos e deserções, e o principal deles o choque cultural com povos nativos do continente. À medida que os encontros vão acontecendo, continente e povos são retratados como atrasados, primitivos, exóticos e violentos em oposição aos exploradores britânicos que são vistos como íntegros, destemidos e justos. O filme também retrata o desenvolvimento da amizade dos personagens principais, tendo em vista a cum-plicidade que ambos necessitam ter para lidar com os problemas da jornada.

Devido a um último embate entre os exploradores e um poderoso povo africano os explo-radores são obrigados a encerrarem a expedição e voltarem para Inglaterra. Devido à urgência do retorno não foi possível realizar testes mais detalhados para constatar que o Lago Vitória vislum-brado por Speke era realmente a nascente do rio Nilo. Devido a isso, em sua volta a Sociedade Geográfica Real, haverá um embate entre os amigos, Speke que acredita ser o Lago Vitória a nas-cente do rio e Burton que vê necessária a realização de mais testes para comprovar se este lago é de fato a nascente do rio Nilo.

Sobre a análise dos dadosEste trabalho se insere no campo da Pesquisa Qualitativa, campo no qual segundo Lüdke e

André (1986) o pesquisador se aprofunda no ambiente de pesquisa, para que possa compreender todo o contexto e assim buscar ter uma visão ampla do processo em que o fato se dá e não apenas de seu produto final. Deste modo as autoras afirmam que a pesquisa qualitativa busca compreender a partir dos dados descritivos a perspectiva dos participantes da pesquisa.

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Dentro da Pesquisa Qualitativa este trabalho se utiliza da Análise de Conteúdo Temática, que segundo Minayo et al. (2016) se caracteriza por um hibridismo das análises quantitativas e qua-litativa que busca descobrir os núcleos temáticos e suas frequências de aparição visando à compreen-são da produção humana que consiste basicamente das relações, representações, intencionalidades e significados.

RESULTADOS E DISCUSSÃOForam analisadas as 23 respostas enviadas pelos estudantes sobre as ideias de ciência que o

filme ‘As Montanhas da Lua’ transmite. Com a análise foram construídas cinco categorias a partir da frequência de ideias convergentes, descritas na Tabela 1.

Tabela 1: Tabela de Categorias

Categoria Frequência Descrição

Hipótese e Comprovação 12

Nessa categoria estão agrupadas as falas que se remetem a proposição de hipóteses e a comprovação das mesmas para que se obtenha um conhecimento científico.

A Questão da Verdade 6Essa categoria agrupa as falas que entendem o conhecimento cientifico como a busca da “verdade”, do conhecimento propriamente dito, ou do desconhecido.

O Papel da Comunidade Cientifica

5Essa categoria reúne as falas que trazem para discussão a comunidade cientifica, sua aprovação, suas discussões e sua importância para ciência.

Choque Cultural 5 A categoria agrega as falas que demonstram as diferenças culturais que são encontradas ao longo da expedição cientifica.

A Importância do Financiamento 4

Essa categoria agrupa as falas que trazem à tona o financiamento necessário para que as expedições e as pesquisas possam ser realizadas

Para melhor compreensão das categorias serão citadas algumas falas dos estudantes. Tais falas foram transcritas e nomeadas como EX, onde E significa “Estudante” e X, o número que identifica cada um.

Hipótese e ComprovaçãoA categoria ‘Hipótese e Comprovação’ agrupa as falas que destacam a importância da proposi-

ção de hipóteses e suas comprovações para o fazer cientifico. Tais afirmativas se remetem a estrutura básica do método cientifico. Como pode ser exemplificada pela fala a seguir:

E14: “O filme As Montanhas da Lua retrata a expedição de Richard Burton e John Speke em busca pelas nascentes do rio Nilo, e isso mostra a importância de se comprovar e contestar a veracidade das hipóteses levantadas, neste caso a existência do rio Nilo.”.

A ideia de proposição de hipóteses e sua comprovação por meio da experimentação deri-vam do método hipotético-dedutivo proposto por Descartes. Segundo ele, o mundo seria um grande mecanismo que sendo impossível de ser compreendido por meio da análise, visto que esta

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interromperia seu funcionamento, deve-se buscar compreende-lo propondo hipóteses e buscando sua comprovação a partir da experimentação (NASCIMENTO JUNIOR, 1998).

Gil-Pérez et. al (2001) explicam que, mesmo a comprovação e a evidência experimental que esta proporciona tenham um papel central na ciência, tal papel deve ser relativizado tendo em vista que as hipóteses que são o ponto de partida para a busca pelos dados. Tal fala exemplifica essa questão:

E15: “O filme mostra alguns impasses relacionados à busca de algo até então desconhecido, no caso, a nascente do Rio Nilo, e assim como tudo já descoberto na ciência é necessário que se haja uma hipótese e a partir disso sejam feitos testes ou especulações para provar algo...”.

Ademais uma concepção de ciência que se apoia puramente na observação, experimentação, proposição de hipóteses e a acumulação de evidencias que buscam obter um resultado exato, preciso e verdadeiro, possui um cunho positivista conforme Kominsky e Giordan (2002) onde se coloca a ciência como o nível mais elevado do conhecimento, tendo um olhar dogmático de certo modo em relação à ciência. Perdendo segundo Gil-Pérez et al. (2001) o caráter não dogmático da ciência, tendo em vista que este foi um dos pilares da estruturação do conhecimento cientifico, em outras palavras, não entender o conhecimento científico como pronto e acabado, mas que pode e está em constante transformação.

A Questão da VerdadeAssim podemos entender que o conhecimento científico não pode ser considerado ‘verdade’

tendo em vista que ele está sujeito a transformações e mudanças. Assim podemos pensar a categoria ‘A Questão da Verdade’. Nessa categoria os alunos trouxeram à tona seu entendimento de ciência como prática que conduz a verdade, como pode ser visto em algumas falas a seguir:

E7: “... Esta situação dá uma boa noção ao expectador do modo como a ciência funciona, além de, de forma menos acentuada, tratar sobre o compromisso do cientista com a verdade acima de seus interesses pessoais.”.E19: “O filme consegue passar a obstinação do ser humano e sua curiosidade sem limites que o leva a buscar incessantemente a “verdade” ou respostas para suas perguntas, e isso nada mais é que o pensamento cientifico sendo retratado por metáforas por toda a aventura.”.

Entender que o filme pode suscitar esse tipo de pensamento, a princípio pode ser entendido como uma problemática. Mas este pode ser um excelente ponto de problematização para que se possa com a mediação do professor desmistificar o conhecimento científico como verdade. Mas se o conhecimento científico não busca a verdade, propriamente do que ele se constitui? Fleck (2010) afirma que a ciência busca fatos científicos, estes, configurando nas palavras do autor como:

“... primeiro um sinal de resistência no pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção de pensamento, e finalmente uma forma (Gestalt) a ser percebida de maneira imediata. Ele é um acontecimento que decorre das relações na história do pensamento, sempre é resultado de um determinado estilo de pensamento” (FLECK, 2010; p. 144-145).

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Por conseguinte, o conhecimento científico, só faz sentido se este está atrelado a um coletivo de pensamento de um determinado contexto histórico, estando sujeito a ‘mutações’ no desenvolvi-mento histórico e cultural da sociedade (FLECK, 2010).

“... sempre uma única solução de um problema era conforme ao estilo. Tal solução conforme a um estilo, somente é possível de forma singular, chama-se verdade. Ela não é “relativa” ou até mesmo “subjetiva” no sentido popular da palavra. Ela é sempre – ou quase sempre – é determinada dentro de um estilo de pensamento... A verdade tam-bém não é convenção, mas um acontecimento no corte longitudinal no contexto do momento: coerção do pensamento conforme o estilo.” (FLECK, 2010; p.150-151).

Choque CulturalAssim podemos pensar que categoria ‘A Questão da Verdade’ se relaciona fortemente com

a categoria ‘Choque Cultural’. Conforme visto no filme, existe um embate entre os pesquisadores europeus com as tribos africanas, não somente pelos seus diferentes costumes, mas também no âmbito intelectual tendo em vista que estavam em jogo diferentes maneiras de ver o mundo. Como podemos perceber o filme foi importante para suscitar essa discussão como podemos ver na seguinte fala:

E22: “O filme mostra como foram as expedições europeias para a África em busca da nascente do Nilo, ilustra como os europeus se intitulavam superiores em contraposição aos diferentes povos africanos que encontraram ao longo das expedições, como sendo primitivos e agressivos. Também mostra como as expedições financiadas eram justificadas em nome do desbravamento de novas terras, na exposição dos relatos das descobertas, enfatizando a “superioridade europeia” como aqueles que possuíam o conhecimento científico. O interessante de perceber é como o saber científico é um processo construtivo que agrega os conhecimentos anteriores como ponto de partida para novas investigações.”.

De um lado, o olhar cientifico, tipicamente europeu, e do outro um olhar guiado por um pensamento com cunho intuitivo. Logo, há um choque entre tais maneiras de pensar, tendo os europeus uma visão selvagem dos africanos, devido ao alto valor que dão ao conhecimento cientifico em detrimento dos demais tipos de conhecimento. Tal valorização do conhecimento cientifico pode ser entendia pela influência da filosofia positivista na ciência, influência que hierarquiza os tipos de conhecimento colocando o científico acima de todos os demais, esta é uma concepção que mesmo muito difundida é amplamente questionada. (KOMINSKY; GIORDAN, 2002; NASCIMENTO JUNIOR, 2012). Um desses questionamentos pode ser visto na fala a seguir:

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E23: “... É interessante ressaltar que os povos nativos do continente africano foram considerados (e representados no filme) como “atrasados” e “primitivos”, fato semelhante ocorreu com os povos nativos brasileiros durante a exploração pelos portugueses. Essa soberania entre povos é uma forma de estudo do comportamento humano e o “embate” de culturas. Minha impressão sobre o filme foi que este teve intenção de evidenciar o conhecimento gerado pelas expedições, mas também com o intuito de revelar o início do processo de desigualdade gerado pelo eurocentrismo, o qual também possui influência política, econômica, social, cultural e científica perante outros continentes...”.

Uma das implicações que o pensamento positivo teve sobre a ciência e sociedade foi que ele proporcionou segundo Nascimento Junior (2012) subsídio para a construção da teoria do Darwinismo Social, proposta por Spencer. A grosso modo, essa teoria poderia ser resumida na seguinte frase: a história social se confundiria com a história natural. Vale ressaltar que um lado mais radical dessa teoria denominada ‘Eugenia’, proposta por Dalton, que quando foi colocada em prá-tica na Alemanha nazista teve implicações desastrosas e totalmente desumanas.

Para fecharmos a discussão da categoria ‘Choque Cultural’, podemos refletir mais uma vez sobre uma colocação de Fleck (2010, p.76): “Nas ciências exatas, assim como na arte e na vida, não existe outra fidelidade à natureza senão a fidelidade à cultura.”.

O Papel da Comunidade Cientifica A categoria ‘O Papel da Comunidade Cientifica’ engloba as falas sobre o filme que demonstra-

ram a importância da comunidade cientifica, no filme representado pela Royal Geographic Society. Como pode ser visto nas seguintes falas pelos nomes ‘conselho europeu’ e ‘sociedade’:

E8: “... Somos em seguida apresentados a uma segunda hipótese, mas sem comprovação, que acaba sendo refutada por Richard, mas, aceita pelo conselho europeu...”.E10: “... Enquanto para Speke apenas chegar ao local já teria comprovado a origem da nascente. O que ocorreu após as expedições foi que a teoria de Speke foi aceita na sociedade, mas não obteve credibilidade, já que ficou apenas na observação...”.

Segundo Nascimento Junior (1998) o filosofo Thomas S. Kuhn irá propor que o papel das comunidades cientificas será o estabelecimento dos ‘Paradigmas Científicos’ que são inconscientes, constituindo a estrutura global da ciência. Desta maneira, as comunidades científicas, irão propor e desenvolver as teorias a partir de um conjunto de leis já estabelecidas, com uma base metafísica, uma visão de mundo e metodologias definidas, constituindo o que se chamará de ciência ‘normal’. Dessa forma, as comunidades cientificas, também darão credibilidade aos estudos feitos pelos cientistas.

Assim o filme colabora para superar a visão deformada da ciência individualista e elitista também colocada por Gil-Pérez et al. (2001), visão que ignora a coletividade, cooperatividade e intercambio entre equipes na produção do conhecimento científico vendo o trabalho científico como fruto de um único cientista ou equipe. Vale ressaltar também que tal visão ignora a presença feminina e minorias sociais na produção científica. No filme é possível ver como as mulheres eram impedidas da produção científica. Como aparece em uma das seguintes falas que se enquadram na categoria:

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E23: “... Também faz-se interessante ressaltar o momento do filme em que as expedições são discutidas apenas entre homens, evidenciando as pequenas aberturas de possibilidade para participação de mulheres.”.

A Importância do FinanciamentoPor fim, a categoria ‘A Importância do Financiamento’ ressalta a necessidade do financiamento

para a execução da pesquisa. É importante mencionar que o cientista é um trabalhador, assim a pes-quisa se constitui como uma profissão, então para exercer a sua pesquisa o mesmo necessita receber o seu salário e possuir capital que a viabilize, seja para expedições, ferramentas etc. Como pode ser visto na seguinte fala:

E22: “... Mostra como as expedições financiadas eram justificadas em nome do desbravamento de novas terras, na exposição dos relatos das descobertas, enfatizando a “superioridade europeia” como aqueles que possuíam o conhecimento científico...”.

A ciência, portanto, não está desvinculada de interesses econômicos. Nascimento Junior (2010) coloca que estes interesses muitas vezes ditam os rumos das pesquisas das sociedades cienti-ficas desde a sua concepção, a princípio por reis, nobres, burgueses subsidiavam as pesquisas como pode ser visto no filme e atualmente pelo estado e por empresas e seu capital privado. Podemos vislumbrar essa ideia na seguinte fala:

E2: “... Além disso, o filme deixou claro também que para fazer ciência, depende de dedicação, insistir e não desanimar nunca (essa parte ficou bem clara quando a expedição consegue financiamento da parte da sociedade geográfica) e assim recomeçar a expedição novamente à África.”.

Levando em consideração que os recursos, muitas vezes, são escassos, é interessante para os financiadores que as pesquisas sejam atraentes, promissoras e exequíveis, dessa maneira a avaliação das propostas de pesquisa dos cientistas são feitas em grande parte por seus pares. Devido a isso, mesmo que as comunidades cientificas sofram grandes influências externas de cunho econômico, elas possuem certa autonomia (DAVYT; VELHO, 2000).

Como pode ser visto no filme, mesmo que as personagens principais, Burton e Speke, tinham espírito explorador e desbravador, sua incursão para descoberta da nascente do rio estava condicionada ao financiamento. Tendo em vista que em sua primeira incursão logo a princípio foi frustrada devido à falta de contingente e provisões para lidar com os embates com povos africanos que estariam em meio ao percurso. É importante também trazer a tona que a expedição estava ali-nhada com os interesses imperialistas da Inglaterra, tendo em vista que o país estava expandindo suas colônias na África e era bastante interessante reconhecer a geografia dos locais já que seriam explorados economicamente. Tal processo como falado anteriormente possui nome de ‘roedura’ do neocolonialismo do sec. XIX. Tal ideia pode ser vista na seguinte fala que compõe a categoria:

E9: “O filme “as montanhas da lua” mostra o capitão Richard Burton e seu colega John Speke que realizam uma perigosa expedição: uma longa jornada em busca da nascente do rio Nilo, em nome do Império Britânico da Rainha Victória.”.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES O diálogo estabelecido pelos alunos sobre as visões de ciência a partir do filme se mos-

trou significativo tendo em vista que o filme possibilitou aos estudantes, não apenas observarem o método científico como também seu entorno e seu desenvolvimento histórico.

Os resultados do trabalho indicam que o filme ‘As Montanhas da Lua’ se mostra um meio interessante e potencializador para discussão das visões científicas uma vez que permitiu trazer à tona visões de ciência que englobam a metodologia, a comunidade cientifica, além do contexto social e econômico que a ciência está inserida, de maneira a possibilitar ao aluno, juntamente com a mediação do professor, uma visão mais completa da produção do conhecimento cientifico.

APOIO: CAPES e FAPEMIG

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O PREMEN E O DESAFIO DO CECINE EM FORMAR ALIGEIRADAMENTE PROFESSORES PARA AS CIÊNCIAS NATURAIS

Kênio Erithon Cavalcante Lima (CAV/ UFPE – Coordenador PROFBIO Associada UFPE) Francimar Martins Teixeira (PPGEdu – CE/ UFPE)

Resumo: A história do Centro de Ensino de Ciências do Nordeste (CECINE) retrata muito do percurso que o ensino das ciências construiu nas últimas decanas no Brasil. Junto a isso, temos o Programa de Expansão e Melhoria do Ensino (PREMEN) que determinou procedimentos para a formação de professores e atuação desses nos denominados Ginásios Polivalentes. Assim, esta pesquisa buscou compreender como se estabeleceu a relação do PREMEN com o CECINE para a formação de professores e disseminação do conhecimento das Ciências da Natureza nas regiões Norte e Nordeste, o que nos levou a observar mudanças em intervenções antes realizadas pelo CECINE para manter o enfoque no ensino com experimentação e no desenvolvimento científico e tecnológico da região.Palavras-Chave: Formação de Professores. Currículo Estadunidense. Experimentação.

O Centro de Ensino de Ciências do Nordeste (CECINE), localizado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), teve sua fundação oficial em 1965 com o propósito de formar e atualizar professores das Ciências Naturais e Matemática à época (SILVA, 2012). Foi criado

com recursos provenientes de programas da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), além dos investimentos e doações feitas por fundações internacionais e da colaboração via parcerias com os Governos Estaduais e Secretarias Municipais (NASCIMENTO, 2011; LIMA, 2015; TEIXEIRA; LIMA; NARDI, 2017), os quais financiaram a construção física e custearam bolsas para professores ministrantes, para estagiários e para os professores cursistas (SILVA, 2012; LIMA, 2015) que vinham se atualizar e/ ou buscar nova formação, como será visto no decorrer deste trabalho.

As intervenções no CECINE se sustentavam na busca de inovar o ensino das Ciências, com foco em atividades experimentais, orientados por currículos provenientes de convênios estabelecidos entre o Brasil e os EUA (TEIXEIRA, 2013; LIMA, 2015). Sustentavam um compromisso de qua-lificar cientificamente e tecnologicamente a população escolar do Norte e Nordeste brasileiro para retirar a população dessas regiões do atraso econômico, científico e tecnológico (FURTADO, 1959). Dentre suas formas de intervenção e de formação, o CECINE também participou do Programa de Expansão e Melhoria do Ensino (PREMEN), o qual apresentava como objetivo formar em menor tempo e em quantidade professores para atuarem na Educação Básica brasileira. Assim, para este recorte, questionamos: Como aconteceu o PREMEN no contexto de formação já consolidado do CECINE ? De que forma o PREMEN possibilitou a continuidade das intervenções do CECINE para a qualificação / quantificação da Educação no campo das Ciências Naturais à época nas regiões Norte e Nordeste do Brasil ? Por objetivo principal, desejamos compreender como se estabeleceu a

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relação do PREMEN com o CECINE para a formação de professores e disseminação do conheci-mento das Ciências Naturais nas regiões Norte e Nordeste. Para este estudo, surge um novo objeto que foram os Ginásios Polivalentes, construídos dentro do Projeto do PREMEN, os quais também serão analisados neste estudo.

No aspecto metodológico, nossa pesquisa se caracteriza como documental e por levanta-mento através de entrevistas semiestruturadas (Richardson, 2011). Consultamos registros – Atas de reuniões – do CECINE e entrevistamos ex-professores formadores e ex-professores colaboradores das atividades do CECINE, o que faz de nosso estudo uma pesquisa de cunho mais qualitativo do que quantitativo.

O PREMEN e a sua relação com o CECINE na formação de professores para as Ciências Naturais

Foi no compromisso de não somente atualizar, mas agora também de formar professores nas Ciências Naturais e na Matemática para a demanda do Ensino no Primeiro e Segundo Grau à época, ajustados nas diretrizes vigentes (BRASIL, 1971), que o Centro de Ensino de Ciências do Nordeste (CECINE) compartilhou de projetos e propostas do Programa de Expansão e Melhoria do Ensino (PREMEN). Notadamente, aconteceram intervenções e orientações condizentes às prá-ticas do ensino com experimentos, em continuidade do que já era feito nos cursos de atualização com os currículos estadunidenses (NARDI, 2005; TEIXEIRA, 2013; LIMA, 2015).

O programa foi uma reivindicação do próprio Centro que não mais desejava apenas atua-lizar professores (MELO, 1982); ratificando pressupostos dos cursos de atualização que já aconte-ciam, dando as condições necessárias para estimular a formação de uma nova geração de cientistas, necessários para auxiliar no desenvolvimento da região, a qual se compreendia estar no atraso (FURTADO, 1959). Mas ao se falar de atraso é importante justificar que, para o CECINE, o atraso das duas regiões era muito mais científico e tecnológico, diferente do discutido por Furtado (1959) e por outras instâncias governamentais (LIMA, 2015). Para instituições como a SUDENE e outros investidores e Fundações, o atraso pairava na qualificação profissional da população, fator que retardava a ocupação de setores da indústria em prol do desenvolvimento econômico da região. Por este foco, o PREMEN, inicialmente, então se fez com um propósito diferente do desejado e já executado pelo CECINE, demandando adaptações, já que não se tinha mais a ajuda da SUDENE, ficando a cargo dos convênios com o Governo Federal, especificamente com o PREMEN, deman-dar as novas orientações para a qualificação do ensino das ciências no país (NASCIMENTO, 2011).

O programa se constituiu em um projeto do Governo Federal pelo Decreto nº 63.914 de 26/12/1968. Com investimentos estrangeiros iniciou a construção física e equipou ginásios, deno-minados Polivalentes, para uma nova proposta de Ensino no Brasil (MELO, 1982; GOUVEIA, 1992). Esses foram lembrados pelos ex-professores do CECINE como ginásios “com estrutura de primeiro mundo e um senhor laboratório” (Entrevista Ex-Professor CECINE P7, 11/2014). Os giná-sios ofertariam Ensino estruturado para profissionalizar, em menor tempo, a massa populacional brasileira, na suposta demanda de qualificar mão de obra, focado no desenvolvimento econômico. Foram supervisionados e administrados pelo PREMEN e, de acordo com as orientações do MEC-USAID (United States Agency for International Development), coordenados pela Companhia de

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Aperfeiçoamento e Difusão de Ensino Secundário (CADES) (MELO, 1982; GOUVEIA, 1992; ROMANELLI, 1992).

A construção dos Ginásios Polivalentes aconteceu em diversos Estados brasileiros, implan-tando no ensino público a lógica de ensinar para o trabalho, com pouca proposição e perspectivas de um ensino para desenvolver pesquisas e formar pesquisadores e cientistas. A perspectiva dos Ginásios contrariaria pressupostos e concepções instituídos no CECINE, que ainda desejava con-tinuar qualificando no modo de ensinar ciências para oportunizar o interesse de estudantes ao campo e ambiente das ciências e da pesquisa (LIMA, 2015). Da mesma forma, contrariou acordos definidos no Plano Decenal de Educação da Aliança para o Progresso, que solicitara investimento e educação para “o fomento do ensino no campo das ciências e da pesquisa científica e tecnológica” (GOUVEIA, 1992, p.34), na condição de qualificar os países para o real progresso, com indepen-dência nas ciências e tecnologia das grandes potências mundiais da época (REIS, 1968; GOUVEIA, 1992).

O Governo Federal, orientado nos acordos MEC-USAID, em conformidade com a Lei nº 5.540 (BRASIL, 1968), §1º, Art. 23, instituiu que “serão organizados cursos profissionais de curta duração, destinados a proporcionar habilitações intermediárias de grau superior”, a exem-plo das licenciaturas. Pela defasagem e insuficiência na oferta de vagas para cursos superiores nas Instituições públicas para o Ensino Superior no Brasil, a oferta dos cursos aligeirados disponibili-zaria técnicos e profissionais com título de Ensino Superior. Assim, esses novos cursos aligeirados absorveriam grande parte da população escolarizada sem oportunidade de uma formação superior em cursos mais clássicos e tradicionais, pois, não caberia nessa proposta de cursos formarem pro-fissionais de nível superior como as engenharias e cursos no campo da saúde, além de outros de maior reconhecimento e de exigência técnica e domínio de conteúdos (ROMANELLI, 1992). A oportunidade de realizar cursos superiores e alcançar prestígio social e profissional ainda seria uma demanda e uma espera para boa parte da população brasileira.

O CECINE então adotou e acatou as demandas e exigências colocadas pela CADES em referência à formação de professores pelo PREMEN; mas também continuaria, mesmo partici-pando do PREMEN nas condições pré-estabelecidas, instigando, na formação dos professores, a experimentação para estimular práticas e hábitos focados na pesquisa. Esse sempre foi um propósito assumido pelo CECINE, para continuar e efetivar o projeto de retirar o Norte e o Nordeste do atraso e garantir um desenvolvimento científico coerente, o que se fez como concepção comungada por muitos dos seus professores formadores.

Em uma análise crítica, entendemos que a criação das licenciaturas intermediárias ou curtas leva a crer que, para o governo e os órgãos responsáveis em regulamentar o Ensino do Primeiro e Segundo Grau da época, a profissionalização e a atuação docente não necessitariam de grande domí-nio científico e, muito menos, aperfeiçoamento e qualificação profissional e científica para o seu efetivo exercício. O mínimo necessário seria capacitar as pessoas de informações e domínio de con-teúdos e técnicas suficientes para serem reproduzidos e repassados em sala de aula, dando formação superior nos moldes dos cursos e formação profissionalizante, sem habilidades de pesquisador e de cientista. Não foi o ideal, mas o suficiente para aumentar o quantitativo de professores que viriam a atuar nos Ginásios Polivalentes.

Com a legalidade para a formação aligeirada, coordenadas pela CADES, instalaram-se as licenciaturas curtas (GOUVEIA, 1992; ROMANELLI, 1992), a exemplo da ofertada pelo CECINE

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(MELO, 1982). A perspectiva se firmou em impactar e ampliar, no curto tempo, o quantitativo de professores no país com formação específica para as novas demandas de aperfeiçoamento das pes-soas. De acordo com ex-professores entrevistados, as licenciaturas curtas ofertadas pelo CECINE vieram a atender a duas demandas para o desenvolvimento regional: oportunizou a formação de maior quantitativo de pessoas em curto tempo; aumentou o quantitativo de professores, desti-nando-os a ocuparem salas de aula carentes de educação nas Ciências Naturais e na Matemática. Nessa distribuição, houve espaço e oportunidade garantida de atuação dos formados – egressos das licenciaturas curtas – em diversas instituições de ensino, principalmente nos Ginásios Polivalentes.

De acordo com Melo (1982), o CECINE institui as Licenciaturas Curtas seguindo as orien-tações gerais da administração do PREMEN, preenchendo-as com uma carga horária de 1.600 horas, distribuídas com 60% de disciplinas específicas e 40% de formação pedagógica, em um tempo estimado de 10 meses. De acordo com os ex-professores do CECINE (Entrevista Ex-Professores CECINE P3, 11/2014; P4, 12/2014), confirmado em Melo (1982), dentro desse programa, os licenciandos receberam bolsas para custear despesas, além de assistência médica e dentária, já que muitos dos estudantes provinham dos mais diversos Estados do Norte e Nordeste brasileiros, exi-gindo-se deles dedicação integral ao curso. Firma-se então toda uma preocupação em atender todo o Norte e o Nordeste, dando condições de permanência aos licenciandos. Esses tinham aulas todos os dias da semana, com uma intensiva carga de aulas o dia todo. Possuíam aulas teóricas e aulas prá-ticas, essas alternadas com aulas expositivas e experimentações, seguindo os moldes e perspectivas dos cursos que ora ocorrera no CECINE, orientados nos currículos estadunidenses, ainda que estes não fossem mais a base de conteúdos para o PREMEN.

O Projeto PREMEN elaborou e se utilizou de material próprio, a exemplo do CECINE que foi responsável por confeccionar o Projeto Nacional de Química (PRONAQ), de autoria e colaboração de professores como Ricardo de Carvalho Ferreira, Aymar Maciel Soriano de Oliveira, Roberto Kramer Pinto, Manoel Machado Ramalho, Ângelo José Camarotti e Fernando Soares de Azevedo, sendo o material aplicado para todos os cursos do Brasil que tiveram os conteúdos de Química como base curricular do curso. Tal participação, na elaboração de materiais específicos para o PEMEN, só afirma e confirma o reconhecimento e mérito da atuação do CECINE em rela-ção à formação de professores. Muitos dos professores formadores do CECINE, que compunham a equipe iniciada ainda antes dos anos de 1965, continuavam integrados ao projeto para a formação dos professores no referido Centro. Outros professores foram integrados ao corpo docente depois, alguns sem vínculo empregatício, mas com bolsas específicas referentes à execução das atividades de ensino. Também participaram professores que já pertenciam ao quadro de efetivos da própria UFPE ou de convidados de outras Instituições de Ensino Superior da capital para ministrarem módulos, de acordo com as especialidades desses nos cursos de formação.

Os ex-professores entrevistados também relatam e compreendem que a prática – atividades experimentais e abordagem dos conteúdos científicos – então executada no período do PREMEN não diferenciariam tanto do que já se fazia nos cursos de férias/ atualização no início das ativida-des do CECINE. A mudança se deu apenas nos conteúdos e experimentos que não seriam mais abordados em cursos específicos, mas em diversos módulos de conteúdos específicos que, quando somados, qualificariam e formariam futuros professores, os quais foram destinados a atuarem como licenciados nas salas de aula de Ciências e Matemática do 1º Grau (5ª a 8ª série) dos Ginásios Polivalentes.

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O processo de seleção dos licenciandos para o PREMEN consistia na visita de professores do CECINE aos diversos Estados do Norte e Nordeste, onde efetuaram avaliações escritas, acrescidas de entrevistas aos candidatos, diagnosticando as possibilidades e interesse desses de se deslocarem de suas cidades para realizarem o curso de licenciatura em Recife – PE. Em mesma composição de importância, na concepção então instituída pelo CECINE, as entrevistas dariam a possibilidade de selecionar as pessoas que se apresentassem em condições de não somente assimilar teoricamente os novos conhecimentos e estratégias, mas, principalmente, se mostrassem aptas a se colocarem em uma nova ordem de discurso, partilhando de novos paradigmas e compromisso na disseminação de um novo olhar de ensino de ciências, sustentado e orientado nos experimentos. Eram selecionados dez candidatos de cada Estado por ano, os quais receberam recursos do MEC (MELO, 1982).

No referente ao que aconteceu no CECINE, “a finalidade desta licenciatura era formar em caráter de emergência, o professor de 1º grau e não especialista na matéria” (MELO, 1982, p.22), com a oferta de dois cursos: Matemática e Ciências, distintos pelo quantitativo e diversificação das disciplinas específicas, às quais atenderiam a especificidade para a formação dos professores. Em registro de Melo (1982), consta que para o curso de Ciências ofertaram as disciplinas específicas com carga horária de 960 horas, sendo essas: Biologia (306horas), Física (280horas), Geociências (83horas), Química (154horas), Complementos de Matemática (77horas) e Complementos de Português (60horas), na responsabilidade de diversos professores do CECINE e de outros con-vidados para ministrarem módulos às turmas. Como disciplinas pedagógicas, com carga horá-ria de 480 horas, ofertaram as disciplinas: Psicologia da Educação II e III (90horas), Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º Grau (60horas), Didática Geral (60horas), Prática de Ensino (150horas), Introdução à Educação (60horas) e Estudos de problemas Brasileiros (60horas), sobre a responsabilidade do Centro de Educação da UFPE.

Os ex-professores do CECINE entrevistados e participantes do PREMEN (Entrevista Ex-Professor CECINE P3, 11/2014; P4, 12/2014; P7, 11/2014) recordam realizarem visitas aos Ginásios Polivalentes para conhecerem suas estruturas e acompanhar, nas poucas vezes em que isso foi possível, a atuação dos professores formados. Relatam a não disponibilidade de transporte e/ ou de recursos financeiros o suficiente para que viabilizassem as visitas nas escolas no propósito de acompanharem os trabalhos dos professores em formação (estágios) e dos já formados e em ativi-dade, o que só foi possível nas Polivalentes da área metropolitana do Recife e de cidades circunvizi-nhas. Destacam que os ginásios possuíam ótimos espaços físicos, com destaque aos laboratórios que foram muito bem equipados, viabilizando a aplicação de muitos dos pressupostos do que fora tra-balhado como concepção de ensino científico pelo CECINE. Mas a impossibilidade do CECINE acompanhar nos espaços de sala de aula a atuação de muitos dos professores formados no programa, executando as atividades práticas e os conteúdos estipulados nos currículos então aplicados – cor-relacionadas aos materiais trabalhados na formação – inviabiliza a possibilidade de se afirmar que, efetivamente o PREMEN alcançou excelência na proposta de qualificar profissionais, e com esses a educação científica na região.

De acordo com Gouveia (1992), os resultados do PREMEN se colocaram desanimadores para os professores e estudantes, quando analisados no Estado de São Paulo. Destaca que “as con-dições de trabalho nas escolas e a proletarização do professor tornaram-se tão sufocantes que os professores as denunciam através da resistência às novas propostas, colocando em cheque o ‘mito da melhoria do ensino de Ciências’” (GOUVEIA, 1992, p.87), o que põe em questão a eficiência

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dos projetos apresentados e instituídos nos cursos de formação. Os professores não encontrariam à época condições suficientes para aplicar a modernização do ensino. Continuariam replicando, ainda que existissem propostas de um ensino com a experimentação, pressupostos do ensino tradicional (GOUVEIA, 1992), o que induz a imaginar que no Norte e Nordeste essa situação pode não ter sido diferente.

O CECINE e as Escolas Públicas: adaptar recursos e estratégias para efetivar o ensino científico no contexto produzido no PREMEN

O propósito do CECINE de qualificar os professores das escolas e do Ensino Superior com a Educação Científica na região atendeu, em muito, as expectativas, quando se analisa que qualificaram diversos desses professores, em atuação nas escolas e Instituições do Ensino Superior, com as novas propostas curriculares inspiradas nos currículos estadunidenses / Currículos Sputiniks (NARDI, 2005; TEIXEIRA; 2013; LIMA, 2015). As intervenções nas formações e atualizações inseriram a perspectiva de um ensino com experimentos para melhor assimilação e constatação da teoria e prática. Mas o que seria o meio de modernização também se fez em frustração quando se constata que a aplicabilidade de todo esse conhecimento, técnica e recursos trabalhados nas formações pelo CECINE, ampliado com o PREMEN, não encontrariam as mesmas condições estruturais, de coerência e de oportunidade nas escolas públicas pelo Norte e Nordeste brasileiro. A modernização esbarrou na fragilidade de se implantar um projeto que não se preocupou, com a mesma intensidade, em estruturar para atuar em toda a dimensão pertinente para a sua execução. Neste caso, as escolas que seriam o fim desse processo formativo.

Os Centros de Ensino de Ciências receberam das Fundações Ford e Rockfeller e Instituições públicas – a exemplo da SUDENE para o CECINE, mediados pelos acordos MEC-USAID (ROMANELLI, 2002; NASCIMENTO, 2011; TEIXEIRA, F., 2013), diversos recursos finan-ceiros que custearam bolsas e pró-labore aos professores formadores e estagiários, compra de vasto acervo bibliográfico à disposição dos participantes dos cursos, equipamentos e recursos multimídia que foram aplicados nos diversos cursos de atualização e formação dos professores (Livro de Ata do CECINE). Acresce a tais investimentos e benefícios passagens para deslocamentos aos núcleos dos diversos Estados – no caso do Norte e Nordeste, para organizar os cursos e para as entrevistas aos futuros cursistas (PREMEN) na fase inicial de suas atividades com a atualização e posterior formação superior. Estruturou espaço físico próprio – O CECINE – e equipou seus laboratórios, estruturados para receberem turmas com quantitativo limitado, mas representativo (em média de quarenta a cinquenta pessoas), na garantia de reposição de materiais e equipamentos, quando estes faltassem ou quebrassem, para não acontecer atrasos ou falhas na execução do que fora programado.

E os professores, que tiveram os cursos e que foram orientados a aplicarem e replicarem em seus espaços de atuação – as escolas – as mesmas propostas, orientadas pelos currículos estaduni-denses para modernizar a Educação Científica local, dispunham das mesmas condições estruturais e materiais a que foram submetidos em suas formações no CECINE para efetivar o que estava plane-jado em suas escolas ? Na constatação dos ex-professores do CECINE (P4, 12/2014; P5, 10/2014; P6, 11/2014; P7, 11/2014), ratificada por pesquisas que estudaram a efetivação dos projetos de formação e atualização pelos Centros de Ensino de Ciências no Estado de São Paulo (CARVALHO, 1972; GOUVEIA, 1992), concluem que não. A exceção ainda estaria nos Ginásios Polivalentes, os

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quais já foram construídos e equipados para receberem os professores formados para o respectivo programa.

Por certo, muitos dos equipamentos e recursos trabalhados nos cursos de férias e nas for-mações ofertadas pelo PREMEN com os professores cursistas se colocavam como um obstáculo à disseminação de tais propostas e estratégias de ensino experimental, se for compreendido que sua ausência nas escolas públicas inviabilizaria a replicação da atividade. Era necessário ajustar e/ ou adaptar os recursos e estratégias para efetivar determinadas atividades orientadas nos currícu-los estadunidenses e nos materiais produzidos pelos Centros de Ciências pelo Brasil aplicados no PREMEN. Não necessitariam de laboratórios altamente equipados; mas de um mínimo de recursos que desse suporte aos estudantes executarem muitas das atividades orientadas e sugeridas nos rotei-ros e manuais que acompanhavam os Kits de experimentação dos referidos currículos e propostas – Currículo Estadunidense e material produzido para o PREMEN.

Os recursos não chegavam, ou, quando chegavam, não era na mesma qualidade e quanti-dade do disposto nos cursos de formação do CECINE. Constatam que em muitas das atividades experimentais sugeridas pelos currículos eram exigidos recursos didáticos e discussões conceituais mais aprofundadas além de tempo extra dos professores para equipar os espaços. Esse tempo extra para executar a experimentação teria que acontecer mediante redução de carga horária desses pro-fessores, para que esses pudessem trabalhar e estruturar os espaços em que explorariam os conteúdos e as experimentações nas respectivas disciplinas das Ciências Naturais. Fato esse que não aconteceu em decorrência da própria carência de professores já existente nas escolas (CARVALHO, 1972; GOUVEIA, 1992).

Ao se realizar um comparativo, em termos de abrangência territorial e economia da região do Estado de São Paulo com as regiões Norte e Nordeste brasileiros, supõe-se que o Norte e o Nordeste se mantiveram em desvantagem. Tem-se que São Paulo possuiu maior quantidade de esco-las beneficiadas com o projeto por estarem mais bem equipadas e com melhor infraestrutura física e maior quantidade de professores ao compararmos com as outras duas regiões – Norte e Nordeste. Assim, melhor disseminaram os projetos entre os professores e suas escolas do que os constatados para o Norte e o Nordeste.

São Paulo tanto recebeu suporte do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) paulista, quanto do CECISP (Centro de Treinamento para Professores de Ciências de São Paulo) e até de projetos da USP (CARVALHO, 1972; LIMA, 2015), para a propagação dos projetos de modernização do ensino das ciências com experimentações. Mesmo assim, por relato de pesquisadores que estudaram as intervenções baseadas nos currículos estadunidenses, ocorreram inconsistências e fragilidades na vivência e execução, sem a eficiência e satisfação então esperada para as escolas de São Paulo (CARVALHO, 1972; KRASILCHIK, 1972; GOUVEIA, 1992). E o que esperar e imaginar para as escolas do Norte e Nordeste que se estruturaram basicamente a partir das ações coordenadas e disseminadas com o CECINE e com menor investimento financeiro e de recursos ?

Construíram critérios de escolha de turmas e escolas que seriam privilegiadas para vivencia-rem na íntegra as intervenções com os recursos para atividades experimentais sobre os fenômenos naturais, ou de se determinar atividades expositivas para que os materiais se fizessem suficientes para serem trabalhados nas diversas turmas, mas sem o propósito de ser uma atividade investigativa, apenas de confirmação do já esperado como verdade científica. Fato esse que se repetiu nas diversas

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regiões atendidas pelos Centros de Ciências e pelo PREMEN. De uma forma ou de outra, ocorre-riam perdas na ideia e no propósito do aluno manusear para “descobrir”, para “aprender fazendo” e daí não alcançando a capacidade de “aprender a aprender”. Na realidade do Norte e Nordeste, a exceção estaria nos Ginásios Polivalentes. Ainda assim, só beneficiariam poucos professores e poucos alunos do vasto território do Norte e Nordeste do Brasil. Aos demais professores e escolas, valeram-se da criatividade e da adaptação para vivenciar as intervenções com experimentações.

No relato dos ex-professores, em referência a comentários dos professores cursistas quando retornavam ao CECINE para realizarem novos cursos, constam que acontecia, em muitas das esco-las, a aplicação dos recursos e estratégias com ajustes e adaptações metodológicas que despertavam momentos de encanto dos alunos, mas distante do que seria possível e desejado de se fazer para, efetivamente, modernizar e revolucionar o ensino das ciências nessas regiões. Foi preciso adaptar as estratégias e recursos à realidade das escolas, entendendo a diversidade de culturas e disponibilidade de recursos, como também as próprias condições financeiras dos Estados do Norte e dos nordesti-nos para equiparem seus sistemas de educação e assim darem as condições desejadas quando com-paradas com as efetivamente executadas pelos professores em suas escolas. As adaptações ocorreram e foram necessárias para que, efetivamente, os professores cursistas replicassem e propagassem, em parte, nos seus espaços escolares um pouco das mesmas técnicas – experimentos com recursos e estratégias adequadas – para não comprometerem a essência da proposta curricular: de modernizar a região com o desenvolvimento científico e tecnológico de sua população, tirando-a do atraso.

Considerações Finais Em síntese, constata-se que as escolas e os professores se viam distantes da possibilidade de

replicarem tais acontecimentos e de aproximarem o saber ensinado e experimentado nos cursos ofertados pelo CECINE à realidade das comunidades e das escolas. O propósito de modernizar de muitos desses professores se fixou na angústia e na vontade de fazer e de inovar; mas como sempre, e de forma corriqueira ainda para os dias atuais, foram cobrados pelo insucesso. Obtiveram formações aligeiradas, sem a possibilidade de serem efetivamente avaliados e orientados coerentemente, antes mesmo de aplicarem a nova proposta imposta em seus espaços de atuação.

Em um entendimento, compreende-se que, para efetivamente viabilizar o projeto então dis-seminado pelos Centros de Ensino de Ciências, acrescidos dos resultados esperados pelo PREMEN para as escolas públicas do Brasil, careceriam mudanças estruturais e operacionais, atuando direta-mente nos laboratórios e na disposição de recursos financeiros, além de dispor ao professor redução de carga horária para maior envolvimento no planejar e no executar das atividades experimentais (GOUVEIA, 1992). Pois, “como querer que alguma inovação fosse praticada se as condições da escola já se sabiam quais eram? Isto é, classes superlotadas, falta de material didático, organização de horário não compatível com o trabalho de laboratório (método experimental)” (GOUVEIA, 1992, p. 108). Sem esse entendimento e compromisso da gestão escolar e das instituições gerenciadoras do sistema educacional da época, as intervenções, quando – e se foram – realizadas no percurso de formação instituída pelo PREMEN, restringiram-se a simples demonstrações. Essas, muito mais para encantar e seduzir o estudante, no propósito de envolvê-los e os aproximar do desejo de se fazer e vivenciar momentos de cientista, do que propriamente oportunizar a assimilação e aplicação dos novos conhecimentos científicos e técnicas então desejados (KRASILCHIK, 2000).

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O ENSINO E APRENDIZAGEM DE FÍSICA: DISCERNINDO DIFERENTES PERFIS EPISTEMOLÓGICOS

Eloídes de Sousa Melo (PPGECIM-UFAM) Elizandra Rego de Vasconcelos (PPGECIM-UFAM)

Welton Yudi Oda (PPGECIM-UFAM)

RESUMO: O trabalho aqui apresentado tem como objetivo investigar de que forma as ativida-des desenvolvidas no PIBID Física contribuem para o processo ensino e aprendizagem a partir de diferentes perfis epistemológicos. Foi usado como método de análise a análise de conteúdo, além da análise documental de uma atividade desenvolvida no PIBID Física da Universidade Federal do Oeste do Pará, descrita em um relatório de atividades de 2012. A atividade tinha por objetivo abordar os conceitos físicos através da experimentação. Por meio da atividade, foi possível distinguir alguns dos obstáculos epistemológicos de Bachelard, sendo esses a experiência primeira, o conheci-mento geral, obstáculo realista e o último obstáculo epistemológico. Assim, verifica-se que o PIBID é um programa de suma importância no que se refere não só a formação docente como também na formação do espírito científico de licenciandos, professores supervisores e estudantes da educação básica.PALAVRAS-CHAVE: PIBID, formação de professores, epistemologia, obstáculos epistemológicos, positivismo

INTRODUÇÃO

O ensino de Ciências

A física como uma ciência da natureza é apresentada como “um processo de descoberta do mundo natural e de suas propriedades, uma apropriação desse mundo através de uma lin-guagem que nós, humanos, podemos compreender” (Gleiser, 2000, p. 4). Apesar disso,

segundo o autor, os estudantes têm dificuldade de compreender a disciplina, já que não conseguem traduzir os fenômenos descritos a partir de uma simbologia, ou mesmo linguagem matemática.

Sendo necessário desde a sua implementação a renovação do currículo era prioridade, já que o mesmo tinha como referência as escolas secundárias dos Estados Unidos. Nesta época havia uma grande insatisfação por parte dos físicos com relação ao ensino de física nessas escolas, acarretando na criação do projeto Physical Science Study Committee, o PSSC, o qual tinha por objetivos a renovação do currículo de Física no ensino médio (MOREIRA, 2000).

Apesar de a disciplina ter sofrido muitas melhorias com o passar dos anos, muito ainda tem se discutido acerca das problemáticas referentes as dificuldades no processo ensino e aprendizagem. Sendo que muitas das dificuldades enfrentadas tanto por estudantes quanto por professores se dão pela natureza da disciplina, a qual segundo Baptista (2006) é recoberta por uma malha teórica que

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possui bases sólidas constituídas por princípios que revelam o que há de mais objetivo na construção científica, ou seja, baseada na certeza, numa verdade absoluta.

Nesse contexto, o que se espera dos estudantes, por exemplo, é um resultado, o qual deve ser eficiente, e que indique através de um número, a aprendizagem. Neste sentido, um dos métodos utilizados para a aprendizagem é “a memorização mecânica, por intermédio de um ensino descon-textualizado e pouco interativo, é o melhor caminho na instrução de sujeitos racionais, “pensantes” e “esclarecidos” (RIBEIRO; LOBATO; LIBERATO, 2010, p. 27, destaque dos autores, p. 27). Tornando o ensino sem significado e dificultando o desenvolvimento de competências e habilidades (ALIPRANDINI et al, 2009).

Com isso, uma das formas de amenizar os problemas relacionados ao processo ensino--aprendizagem está em desenvolver práticas ou metodologias diferenciadas e/ou inovadoras, que estimulem a participação dos estudantes em sala de aula, bem como uma melhor “preparação” para o professor ao enfrentar as dificuldades vivenciadas em sala de aula, isto é, um contato inicial com a dinâmica escolar, por meio do estágio supervisionado ou da participação em programas de iniciação à docência, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID.

Diante disso, este trabalho tem como objetivo investigar de que forma as atividades desen-volvidas no PIBID Física contribuem para o processo ensino e aprendizagem de ciências num con-texto interdisciplinar a partir de diferentes perfis epistemológicos, rompendo com o pensamento positivista de Auguste Comte, contribuindo para constituição do ser professor de licenciandos de uma universidade localizada no interior do Pará.

REFERENCIAL TÉORICOSe pensarmos no contexto da disciplina Física, de acordo com os Parâmetros Curriculares

Nacionais - PCN+ (Brasil, 2002, p. 59) a mesma deve se apresentar “como um conjunto de compe-tências específicas que permitam perceber e lidar com os fenômenos naturais e tecnológicos” dentro de uma perspectiva que vai além do cotidiano até a compreensão de um universo mais complexo regido por leis e princípios que a mesma constrói.

Além disso, para se atingir os objetivos da disciplina à formação do profissional deve ser apoiada em conhecimentos sólidos e atualizados capazes de auxiliar na resolução de problemas e preocupado em buscar novas formas de saber e fazer científico e tecnológico (BRASIL, 2001).

Neste sentido, as diretrizes apontam perfis específicos para a formação do profissional, sendo o físico-pesquisador, físico-tecnólogo, físico-interdisciplinar e físico-educador, em que este último é dedicado “à formação e à disseminação do saber científico em diferentes instâncias sociais, seja através da atuação no ensino escolar formal, seja através de novas formas de educação científica, como vídeos, “software”, ou outros meios de comunicação ” (Brasil, 2001, p. 3). Vale ressaltar que em cada um dos perfis descritos acima, os físicos devem atuar de forma conjunta e harmoniosa com especialistas de outras áreas para um melhor desenvolvimento científico.

Assim, partindo do perfil destacado acima (físico-educador) adentramos no contexto da pesquisa. O que é o PIBID?

O PIBID é um programa de bolsas de iniciação à docência que visa a melhoria da forma-ção inicial e continuada de professores da educação básica. É um contato inicial do discente com

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a dinâmica escolar e aprimoramento de professores já atuantes, de modo a promover melhorias na qualidade da educação básica pública brasileira (CAPES, 2010).

Têm como objetivos a inserção dos licenciados no cotidiano escolar bem como oportuniza a “participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino--aprendizagem”, além de “contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura ” (CAPES, 2010, Art. 3°, IV e VI).

Com isso, podemos pensar na formação dos professores no PIBID a partir de duas vertentes: a valorização do interesse pela docência, descrita pelo próprio programa e a aprendizagem da pro-fissão. Sendo que o principal propósito é da reflexão sobre a experiência de formação diferenciada, descrita por Perrenoud (2000) como aquela em que o aprendiz vivencia as situações fecundas de aprendizagem.

No contexto aqui apresentada essas situações ocorrem pela inserção precoce em sala de aula, articulação ativa entre teoria e prática, conhecimento prático das situações vivenciadas no contexto escolar, de modo a possibilitar o desenvolvimento precoce de saberes docentes amplo e inestimável (ROCHA, 2015).

Com tal característica, ao incentivar a aproximação dos discentes com a profissionalização fortalece os processos de identificação profissional, descrevendo as iniciativas do PIBID condizentes com o entendimento de que ensinar vai além de ministrar aulas (Therrien, 2006; 2010 apud Rocha, 2015), exige segundo Rocha (2015, p. 34):

Transformação do conhecimento teórico e científico em saberes complexos e articu-lados ao contexto específico do professor para que ele possa não somente conduzir o aprendizado do aluno para reconstrução de conhecimentos elevando-o a patamares mais organizados e complexos, mas também valorizar a sua prática como oportunidade de produção de conhecimento profissionais através da reflexão, problematização e análise.

Ainda de acordo com o autor o processo formativo possibilitado no PIBID afasta do futuro profissional a dependência de manuais didáticos (Rocha, 2015), dando-lhe liberdade em desenvol-ver as atividades e o processo investigativo, rompendo o caráter positivista de algumas instituições de ensino, que tem suas organizações de estudos científicos e das disciplinas apoiadas em ideias positivistas (Lorenz, 2008), isto é, com raízes no empirismo, no naturalismo e mecanicismo, na qual se valoriza a fragmentação ou especialização dos saberes, alargando as fronteiras entre as disci-plinas e como consequência a concepção positivista de mundo, natureza e sociedade, inviabilizando atividades interdisciplinares (THIESEN, 2008).

Outro processo possibilitado pelo PIBID é o rompimento de obstáculos epistemológicos. Segundo Bachelard (1996) esses são responsáveis pelo não progresso da ciência, haja vista que o obstáculo é “um fato mal interpretado por uma época, para o historiador, permanece um fato. Para a epistemologia é um obstáculo, um contra- pensamento” (Bachelard,1996, p. 22), logo não tem como haver progresso científico se existem barreiras que o impeçam.

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Dessa forma, Bachelard (1996) descreve alguns obstáculos epistemológicos que dificultam a formação do pensamento científico, sendo estes: a experiência primeira, o conhecimento geral, o obstáculo verbal, a extensão abusiva das imagens usuais, o conhecimento unitário e pragmático, o obstáculo substancialista, o obstáculo animista, o mito da digestão, a libido, e o que ele definirá como os obstáculos do conhecimento quantitativo.

Na experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica. Para o autor é difí-cil se desfazer desse obstáculo, haja vista que o próprio sistema educacional se encontra em inércia, a começar pelos materiais disponibilizados, considerados cópias, fornecendo aos estudantes uma ciência socializada, imóvel e imutável, reflexo da exigência de programas universitários (vestibular) em passa-la como natural (idem).

Outra maneira de descrever essa experiência primeira é o primeiro contato do estudante com o conhecimento científico, descrito pelo conhecimento prévio trazido para sala de aula, os quais são baseados na observação de fenômenos cotidianos (RAMALHO, 2009). Para a autora, há várias formas de romper esse obstáculo em sala de aula, sendo uma delas a contextualização do conteúdo,

Esse processo de contextualização pode ser realizado através de um experimento simples, fácil de ser realizado em sala de aula e que teria o papel de instrumento auxiliador nesse processo. Desse modo, esse primeiro obstáculo pode ser superado, proporcionando um entendimento mais satisfatório ao aluno, mais eficaz durante as falas dos alunos e através das correções das representações gráficas realizadas durante a aula. (RAMALHO, 2009, p. 115).

Quando a experiência primeira não é rompida, se observa um conhecimento vago sendo generalizado, o que nos leva ao próximo obstáculo: o conhecimento geral como obstáculo ao conhecimento científico: consiste em propor verdades primeiras como forma de explicar toda uma teoria. Não há uma problematização, dinâmica de conceitos, apenas uma aceitação passiva de conceitos, dessa forma o obstáculo torna-se um gerador de verdade (Bachelard, 1996). “A lei é tão clara, tão completa, tão fechada, que não se sente necessidade de estudar mais de perto o fenô-meno da queda. Com a satisfação do pensamento generalizante, a experiência perdeu o estímulo” (BACHELARD, 1996, p. 71).

No obstáculo verbal, considerado pelo autor como o mais difícil de ser superado. Esse tem foco nos hábitos orais e diários, no qual para a explicação de uma teoria se utiliza uma palavra concreta e a associa a uma teoria abstrata. Nessa o autor fala sobre o perigo da utilização das “metá-foras imediatas para a formação do espírito científico é que nem sempre são imagens passageiras; levam a um pensamento autônomo; tendem a completar-se, a concluir-se no reino da imagem” (BACHELARD, 1996, p.101).

No obstáculo referente ao conhecimento unitário e pragmático, toda uma teoria é expli-cada por uma parte, isto é, “a ideia de uma natureza homogênea, harmônica, tutelar apagou todas as singularidades, todas as contradições, todas as hostilidades da experiência” (ibdem, p. 90). O substancialista, como todos os obstáculos epistemológicos, tem muitas formas, sendo constituído de intuições dispersas e por vezes opostas. “O espírito pré-científico condensa num objeto todos os conhecimentos em que esse objeto desempenha um papel, sem se preocupar com a hierarquia

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dos papéis empíricos.” (ibdem, p. 105) Neste são atribuídas qualidades as substâncias, sejam essas superficiais ou mais profundas.

No obstáculo animista, atribui-se vida a objetos inanimados. Neste o espírito do pesquisador prioriza a vida, sendo este obstáculo acompanha o homem em qualquer fase do seu desenvolvimento intelectual (idem). No mito da digestão, quaisquer fenômenos estão relacionados ao estômago, podendo ser representado pelas fases sexuais descritas por Freud. Levando-nos ao obstáculo da libido, em que “as almas decididas querem ter para torna-se”. Interpretado a partir da perspectiva do poder e da vontade de domínio de outros seres por parte do pesquisador, que ajuda a refletir sobre as experiências e ensaios dando uma explicação coerente para o fenômeno (BACHELARD, 1996).

Outro obstáculo é o do conhecimento quantitativo, o qual é livre de erros. “Um conheci-mento objetivo imediato, pelo fato de ser qualitativo, já é falseado.” (ibdem, p. 225).

Assim, de uma maneira geral, para Bachelard (1996, p. 21) “a noção de obstáculo epistemo-lógico pode ser estudada no desenvolvimento do pensamento científico e na prática da educação”. Porém, tais não devem ser compreendidos apenas como falha dos estudantes, representando a difi-culdade de aprendizagem. De acordo com Lopes (1993) apud Polato Gomes e De Oliveira (2007), “eles são importantes à aprendizagem e para que esta ocorra satisfatoriamente é necessário que haja, além de questionamentos e críticas, ruptura entre conhecimento comum e científico, construindo este e desconstruindo aquele. ”

METODOLOGIAConforme descrito anteriormente, o objetivo deste trabalho é investigar de que forma as

atividades desenvolvidas no PIBID Física contribuem para o processo ensino e aprendizagem de ciências, em particular a física, a partir de diferentes perfis epistemológicos. A noção de perfil epis-temológico apresentado por Bachelard se apresenta como uma ferramenta que marca rupturas his-tóricas na elaboração de conceitos científicos que venham superar os obstáculos do conhecimento e se constituam em novas teorias (BACHELARD, 1996).

O que se espera por parte do estudante, por exemplo, é a compreensão e conscientização de que um modelo novo rompe um anterior de modo que haja a apreensão e a constituição de um novo conceito a partir de uma concepção vinda do senso comum, de uma ciência clássica ou de uma ciência quântica. Essa pluralidade é chamada por Bachelard (1984) de “perfil epistemológico”, isto é, “diferentes formas de ver e representar a realidade” (GOMES; OLIVEIRA, 2007, p. 108-109).

Nesse contexto, as atividades aqui apresentadas foram desenvolvidas durante o primeiro e segundo ano de atuação do projeto PIBID Física Ambiental.

A tabela 01, faz um levantamento dos relatórios produzidos durante a vigência do programa na escola.

Tabela 01: Relatórios elaborados pelos pibidianos. Adaptada de Xavier (2014)

Materiais produzidos QuantidadeRelatórios individuais 32Relatórios de atividades desenvolvidas – escola 15 (com 24 atividades)Relatórios anuais por escola 9Relatório final 1

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A pesquisa aqui realizada foi do tipo documental, que de acordo com Gil (2008) é aquela que se vale de materiais que ainda não receberam tratamento analítico, podendo ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. Além disso, os documentos são elencados em dois tipos (GIL, 2008, p. 51)

Os documentos de primeira mão, que não receberam qualquer tratamento analítico, tais como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, contratos, diários, filmes, fotografias, gravações etc. De outro lado, existem os documentos de segunda mão, que de alguma forma já foram analisados, tais como: relatórios de pesquisa, relatórios de empresas, tabelas estatísticas etc.

Para este, os documentos pertencem à segunda mão, já que foram analisados por Xavier (2014) ao investigar os desafios enfrentados pelos bolsistas no desenvolvimento das atividades.

Assim, para a análise qualitativa, foi escolhido o relatório de atividades elaborados por bol-sistas PIBID, levou em consideração a análise de conteúdo, a qual é utilizada para descrever ou interpretar conteúdos documentais ou textuais. Além disso, por meio das descrições sistemáticas a reinterpretação e compreensão dos significados vão além da leitura comum (MORAES, 1999).

Bardin (1977) define ainda a análise de conteúdos como sendo:

[...] o conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimen-tos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção / recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (p. 42).

Nesse contexto, as análises serão realizadas em dois processos, sendo estes as descrições e a inferência. Em que nesta primeira há a exploração do texto na medida que o mesmo vai se descons-truindo. Seguido disso, parte-se para a categorização referente à classificação unidades, isto é, os cri-térios definidos pelo autor e por fim a etapa da inferência, momento de interpretação, “o momento de expressar os significados captados e intuídos nas mensagens analisadas” (Moraes, 2009, p. 8). Ou seja, onde se atribui significado ao discurso, por meio de deduções lógicas e justificadas.

Diante disso, o quadro 01 mostra as atividades desenvolvidas em 2011 - 2012, dessas foram selecionadas três, para o discernimento dos perfis epistemológicos.

Quadro 01: Atividades desenvolvidas no PIBID Física.

Atividade 1 - Aplicação de questionários na escola Atividade 2 - Elaboração do plano de trabalho 2011Atividade 3 – Inventário dos materiais didáticos do laboratório multidisciplinar e biblioteca Atividade 4 - Mostra de experimentos Atividade 5 - Elaboração do plano semestral 2012Atividade 6 – Oficinas temática de raios-xAtividade 7 – Vídeo-aulas de hidrostática Atividade 8 – Oficinas temáticas de física nos esportes

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RESULTADOS E DISCUSSÃOA partir do relatório foi selecionado para este trabalho a atividade Mostra de experimentos,

já que a experimentação é uma estratégia didático pedagógica que perpassa ideais positivistas, ao ser descrita como um fim em si mesma e ao mesmo tempo como um meio de formação do espírito científico ao romper com os obstáculos epistemológicos impostos a ela.

• Mostra de Experimentos

Essa atividade tinha como objetivo abordar os conceitos físicos através da experimentação e divulgação do PIBID na escola. Tal atividade foi desenvolvida em três turnos, mas o que se sentiu mais motivado foi o turno noturno, conforme relatório (UFOPA, 2012, p. 9):

O uso da estratégia possibilitou uma melhor divulgação das atividades do PIBID-Física Ambiental na escola, principalmente dos alunos e professores. A atividade despertou maior interesse nos alunos do turno noturno, o que pode ser atribuído à carência do uso de estratégias metodológicas diferenciadas neste horário. (UFOPA, 2012, p. 9)

O papel da experimentação tem sido de bastante discussão no ensino de Ciências, prin-cipalmente no ensino de Física, uma vez que tem sido defendida enquanto estratégia de ensino e aprendizagem desde o século passado por meio da incorporação de projetos de ensino nas escolas brasileiras (Higa e Boaventura de Oliveira, 2012). Segundo as autoras, essa incorporação acontece sob diferentes concepções de ciência, de ensino e de aprendizagem. As quais referem-se aos papeis dados ao professor e ao estudante, ao conhecimento e atividade experimental em si.

Nessa perspectiva, a atividade experimental pode ser descrita em termos da ilustração da teo-ria, na qual o modelo de aprendizagem é da transmissão-recepção de conhecimentos já elaborados, em que se procura verificar leis e teorias consideradas verdades inquestionáveis; como estratégia de descoberta individual, no qual o estudante é capaz de construir o conhecimento de forma autônoma e individual bem como através de sua interação com o meio, neste caso o conhecimento é fruto de um processo indutivo e; para introdução dos estudantes nos processos da ciência, neste o objetivo estar na habilidade do “fazer ciência”, pautada na existência de um “método científico”, conjunto de eta-pas e regras procedimentais do qual é possível abstrair conteúdo conceitual (idem).

Considerando o exposto, a atividade Mostra de Experimentos enquadra-se nessa primeira categoria, ilustração da teoria, já que o objetivo da atividade em si era a abordagem dos conceitos físicos e consequente apresentação do programa a escola como forma de estimular os estudantes a participarem das atividades desenvolvidas pelos bolsistas (UFOPA, 2012, p. 9).

Através da atividade pudemos observar uma melhor interação dos bolsistas com os estu-dantes, além de perceber a motivação dos alunos em querer entender/aprender como ocorriam os fenômenos físicos presentes nos experimentos. Pode-se também observar que com os experimentos os alunos puderam relacionar a Física vista em sala de aula com o cotidiano.

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Vale ressaltar que as atividades experimentais estão inseridas em um contexto epistemoló-gico-pedagógico, epistemológico já que envolve concepções da realidade, de relações das diferentes formas de conhecimento e de método científico e de concepção de ciência. Pedagógico, uma vez que envolve concepções de aprendizagem, em que leva em consideração os conhecimentos prévios dos estudantes, das relações entre conteúdo e método, uma concepção de currículo, isto é, a cons-trução deste (AMARAL, 1997).

Todavia deve-se ter cuidado com as interpretações inadequadas do fenômeno, sejam elas advindas do cotidiano dos estudantes ou obtidas na escola uma vez que podem resultar na consti-tuição de obstáculos epistemológicos (Bachelard, 1996). Esses obstáculos referem-se as dificuldades existentes no processo de progressão do conhecimento científico, os quais surgem “no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e con-flitos” (idem, p.11).

Dessa forma, apesar de ser apenas demonstrativa, atividade aqui proposta rompe com alguns dos obstáculos epistemológicos de Bachelard, sendo um destes: a experiência primeira, na qual o conhecimento se “apoia no sensualismo mais ou menos declarado, mais ou menos romanceado, e que afirma receber suas lições diretamente do dado claro, nítido, seguro, constante, sempre ao alcance do espírito totalmente” (Bachelard, 1996, p. 21), isto é, é composta de informações per-cebidas e adquiridas com o tempo não suscetíveis as críticas, na qual o indivíduo fica imerso num mar de ignorância, considerando os conhecimentos primários como verdadeiros e rejeitando as novidades que vão contra eles.

Logo, a atividade proposta rompe com este obstáculo ao permitir aos estudantes se ques-tionarem acerca dos fenômenos apresentados e associando-os aos conteúdos apresentados em sala de aula ao cotidiano, fazendo-os aceitar novos conhecimentos, formando assim um novo espírito científico.

De acordo com Lopes (1993) o desenvolvimento científico é descontínuo, haja vista que está sempre se desconstruindo e reconstruindo, isto é, para se construir conhecimentos novos os ante-riores devem ser desconstruídos, o que é chamado de rompimento de obstáculos epistemológicos.

Assim sendo, o trabalho educativo consiste essencialmente em uma relação dialógica, onde não se dá apenas o intercâmbio de ideias, mas sua construção. Não existem respos-tas prontas para perguntas previsíveis, mas a constante aplicação do pensamento para a elaboração de um intertexto. (LOPES, 1993, p. 324).

Dessa forma o PIBID é um programa que possibilita esse diálogo, que leva a desconstrução e construção do conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAISDada a natureza da Ciência, cada uma das etapas pela qual passou foi de suma importância

para o seu desenvolvimento. As quais atualmente refletem no seu processo ensino e aprendizagem, principalmente no ensino de Física, que ficou marcada por seu caráter de ciência moderna, indu-tivista e mecanicista. Porém, muito se tem investigado para a melhoria desse processo, para tal

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muitos pesquisadores fazem um resgate histórico de todo o contexto que a levou ao patamar que se encontra agora.

Assim, dado esse contexto, foram criados programas que melhorassem esse processo, tanto no que se refere ao estudante da educação básica como o licenciando e o professor que já está atu-ando. Dentre esses programas foi criado o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID, o qual tem por objetivo a valorização docente, bem como a inserção dos estudantes na realidade escolar.

Através do PIBID, os licenciandos elaboram e aplicam atividades consideradas diferenciadas como forma de identificar e amenizar os problemas referentes ao processo ensino e aprendizagem.

Com isso, no trabalho aqui exposto foi selecionada uma atividade de exposição de experi-mentos, utilizada como forma de apresentarem aos estudantes o programa, bem como incentiva-los à prática científica, isto é, a formação do seu espírito científico, rompendo assim com as barreiras positivistas da ciência. E no que se refere ao perfil epistemológico, vale ressaltar que o mesmo guarda consigo marcas que uma cultura deve superar (Bachelard, 1984). Dessa forma, pode-se inferir que o PIBID é um programa de suma importância no que se refere não só a formação docente como também na formação do espírito científico de licenciandos, professores supervisores e estudantes da educação básica.

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MÁQUINAS TÉRMICAS: POSSIBILIDADES DE UMA ABORDAGEM SÓCIO-HISTÓRICA NA ESCOLA

RESUMO: O presente trabalho apresenta uma experiência de ensino de Física desenvolvida por meio do tema máquinas térmicas. Esta se materializou por meio de projeto realizado com alunos de segundo ano do ensino médio em 2017, no contexto do Programa Ciência na escola – PCE, em uma escola estadual do Estado do Amazonas. A história da Ciência é abordada como uma das possibilidades possíveis de mudança no cenário do ensino de Física, propondo por meio dela uma abordagem que se configure em algo mais prático, tanto em aplicabilidade quanto para compreen-são de aspectos inerentes a Ciência e sociedade de maneira geral. Por fim analisamos essa potencia-lidade mencionada aplicada ao sistema de máquinas térmicas, tema do ensino de Física do segundo ano do ensino médio, discutindo e explicitando fatores que em seu contexto, proporciona vasta gama de possibilidades de abordagem, que vão desde aspectos técnicos científicos até os meios de racionalização da Ciência. Percebemos possibilidades de diálogo relevante do conteúdo em práti-cas interdisciplinares fato que contribui para a alfabetização científica e tecnológica dos discentes, objeto de busca de nosso estudo, assim como base da proposta disciplinar nos documentos oficiais que regem o ensino de Física.Palavras-chave: Ensino de física, história da Ciência, máquinas térmicas.

DESCRIÇÃO DA EXPERIÊNCIA REFLEXIVA

A partir da experiência como professor de Física em escolas da rede pública Estadual de ensino do estado do Amazonas tenho buscado demonstrar por meio de minha prática educativa a importância do ensino de Física para a sociedade, bem como as possibilidades de se promo-

ver alfabetização científica por meio do contexto histórico e social dos conteúdos estabelecidos para sua aprendizagem.

Tenho lecionado no ensino médio desde 2016 e neste período observei o interesse dos estudantes pelo tema, e vi a possibilidade de contextualizar diversos conceitos físicos durante o estudo sobre máquinas térmicas. Contudo, com o trabalho em sala de aula percebi que para chegar a problematização deste tema, faz-se necessária a compreensão de diversos conceitos, tais como: calor, temperatura, transformações gasosas dentre outros. E estes conceitos possuem um nível de abstração grande e, isto, por vezes, dificulta a compreensão do tema.

O tema máquinas térmicas se apresenta como uma possibilidade de ensinar Física sob o enfoque histórico e social no desenvolvimento tecnológico relacionado ao conhecimento cientí-fico. A possibilidade de abordagem deste tema para compreensão da realidade social é de grande potencialidade. Trata-se de um momento histórico no qual avanços científicos associados a uma transformação social significativa, trazem aspectos de grande valor para uma análise crítica de suas características, assim como possibilita diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, promovendo interdisplinaridade.

No Estado do Amazonas, a secretaria Estadual de Educação possui um programa de iniciação científica voltado para educação básica, intitulado Programa Ciência na Escola – PCE, que tem por objetivo apoiar a participação de professores e estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental,

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da 1ª à 3ª série do ensino médio em projetos de pesquisa a serem desenvolvidos em escolas públicas estaduais sediadas no Amazonas e municipais de Manaus. Fato este que tem contribuído para mui-tas reflexões acerca do ensino de Ciências.

O programa prevê cinco (5) bolsas para estudantes da educação básica e uma (1) para o professor orientador durante o período de cinco meses para realização do projeto. Nesta ocasião, trabalhei o tema junto com cinco alunos na escola. Conforme observamos no quadro 1 – etapas do Projeto PCE.

QUADRO 1 – ETAPAS DA REALIZAÇÃO DO PROJETO

Encontro Atividade Conceitos Resultados

1 Diálogo sobre o surgimento e a evolução da Física.

A Física como construção humana.

Questionamentos e análises por parte dos alunos a respeito do tema.

2 Diálogo sobre o Renascimento e o Iluminismo.

Revoluções de pensamentos e suas contribuições.

Questionamentos e análises por parte dos alunos a respeito do tema.

3 Documentário: A História da Energia.

Aplicações cotidianas do conceito de Energia.

Questionamentos e análises por parte dos alunos a respeito do tema.

4 Discussão sobre o documentário: A História da Energia.

Aplicações cotidianas do conceito de Energia.

Questionamentos e análises por parte dos alunos a respeito do tema.

5Aula expositiva dialogada sobre o tratamento físico do conceito de Energia.

Energia potencial gravitacional e elástica, cinética, térmica, elétrica entre outras formas.

Construção de um quadro com um conjunto de características comuns associados a sistemas que contem a grandeza Energia do ponto de vista da Física.

6 Discussões sobre a Máquina Térmica e a revolução do calor.

Mudanças sociais e tecnológicas a partir da revolução do calor.

Questionamentos e análises por parte dos alunos a respeito do tema.

7Aula expositiva dialogada sobre o tratamento físico do conceito de máquinas térmicas.

Fornecimento de calor, transformações gasosas, rendimento e outros.

Análise do comportamento físico das grandezas que envolvem o conceito de máquinas térmicas.

8Tentativa de construção de uma máquina térmica simples com material de baixo custo.

Calor, movimento e transformações de Energia.

Etapa não concluída.

Fonte: dos autores

Durante a realização do projeto os alunos mostraram-se interessados no tema em relação à história da Ciência e conseguiram fazer relações dos conceitos/temas trabalhados com a história da Ciência através do tempo. Era comum, por exemplo, surgirem perguntas como: Professor, quer dizer que a Ciência como conhecemos hoje nos livros pode mudar? Diante disso, pude perceber a importância do ensino de Física associado ao seu contexto histórico.

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Também foram identificadas algumas dificuldades, a principal foi a ampla quantidade de conteúdos que selecionados para as atividades. Este fato acabou por confundir os alunos em várias ocasiões, mas também trouxe aspectos positivos e reflexões pertinentes a respeito da proposta. É preciso desconstruir a visão conteudista na qual fomos formados, com foco exagerado nos conceitos e não nos temas. E apesar do tema máquinas térmicas não representar mais uma fonte de energia tão atual, o seu estudo vincula o ensino de Física a construção histórica da Ciência. Os estudantes refletiram que aquele conhecimento/tecnologia, em dado momento histórico teve grande repercus-são científica, tecnológica e, sobretudo, social. Certamente, este movimento reflexivo constitui meu processo formativo continuo enquanto professor.

REFLEXÃO TEÓRICA ACERCA DA EXPERIÊNCIAApesar de existirem diversas concepções de ensino de Física, podemos enfatizar de maneira

simplificada, dois aspectos amplamente difundidos no meio educacional: a abordagem conceitual e a matematizada (CARVALHO JUNIOR, 2008. Pg.4).

O ensino de Física em geral é marcado pela abordagem matematizada, que tem como foco a memorização das leis e fórmulas para resolução de problemas aplicados a Física, porém as aplicações matemáticas, sem nenhuma discussão dos fenômenos não permitem questionamentos mais sólidos, pois nem sempre a quantificação numérica é suficiente para compreender um fenômeno físico, é necessário o entendimento do fenômeno e de seu comportamento. Hoje, o ensino de Física busca outras abordagens, direcionadas para a formação social, cientifica e cultural dos sujeitos, permi-tindo aos discentes desenvolverem habilidades para compreender o mundo, argumentando sobre seus fenômenos e construindo valores, por meio do conhecimento desta disciplina (CARVALHO JUNIOR, 2008.pg. 4).

Pietrocola (2001, pg. 90) levanta indagações sobre esta problemática, tais como: Como o conhecimento científico pode auxiliar a conhecer o mundo que nos cerca? De que forma o conhe-cimento físico pode ser utilizado para gerar ações no cotidiano?  

A resposta aos questionamentos do autor encontra fundamento na abordagem conceitual da Ciência, proposta que compreende que o conhecimento científico deve ser socializado para uma compreensão e possível mudança da realidade, partindo do pressuposto que as aulas de Ciências buscam dialogar com os alunos aspectos de suas realidades a fim de compreendê-la.

Defendo que a utilização de fórmulas matemáticas pode auxiliar na quantificação dos fenô-menos, mas não é eficiente em relação à compreensão dos mesmos, esta compreensão só se adquire com a abordagem conceitual, quando se permite discutir os fenômenos, relacionando-os ao coti-diano (PIETROCOLA, 2001). Ricardo (2007, p.01) comenta sobre essa necessidade quando expõe que:

[...] ao mesmo tempo em que os alunos convivem com acontecimentos sociais significa-tivos estreitamente relacionados às Ciências, e à tecnologia e seus produtos, recebem na escola um ensino de Ciências que se mostra distante dos debates atuais. Em muitos casos os alunos acabam por identificar uma Ciência ativa, moderna e que está presente no mundo real, todavia, distante e sem vínculos explícitos com a Física que só “funciona” na escola. 

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Segundo o autor, para o aluno, a Física ensinada na escola, muitas vezes, não tem conexão com a Ciência vista no cotidiano, fazendo com que o estudante se distancie deste conhecimento devido à falta de referências de sua aplicação, sendo um dos motivos da falta de interesse e motiva-ção pela Ciência Física. 

Quanto à matematização dos conceitos Físicos, sua utilização, quando não associada de forma coerente às discussões conceituais contribui para a memorização de fórmulas, e a Física por consequência, é “transmitida” em forma de conhecimento pronto, onde não há questionamento em relação a suas leis e teorias, onde sua função é apenas a de tornar conhecimento aos discentes suas “verdades”, caracterizadas em informações abstratas transmitidas de forma mecânica.   

Pietrocola (2007) comenta ainda, sobre a importância da matemática no ensino de Física como ferramenta fundamental para seu desenvolvimento, mas salienta características que devem ser levadas em conta quando se trata de sua aplicação em outras Ciências: 

A matemática é parte essencial dos saberes necessários para a aprendizagem da Física. Podemos destacar duas formas pelas quais o ensino da matemática na Física permite a aprendizagem de conteúdos físicos. A primeira se fundamenta no domínio técnico dos sistemas matemáticos, como a operação com algoritmos, a construção de gráficos, a solução de equações e etc. esse domínio esta ligado ao contexto interno dos saberes matemáticos, e designaremos habilidade técnica, no sentido de ser capaz de lidar com regras e propriedades especificas dos sistemas matemáticos. A segunda se fundamenta na capacidade de utilizar os saberes matemáticos para a estruturação de situações Físicas. Essa capacidade está ligada ao uso organizacional da matemática em domínios externos a ela e a designaremos habilidade estruturante. Existe um mito sobre a relação entre o ensino de Física e o ensino de matemática que pode ser derrubado quando se tem clareza de sobre a diferença entre essas duas habilidades – enquanto a primeira pode ser obtida fora do ensino de Física, ou seja, em disciplinas de conteúdo exclusivamente matemá-tico, a segunda não pode. A capacidade de lidar com a matemática em situações que lhe são próprias não garante a capacidade de utilizá-la em outros setores do conhecimento, como na Física. Em outras palavras, dominar tecnicamente a matemática não garante a capacidade de utilizá-la para estruturar o pensamento no domínio do mundo físico. (PIETROCOLA, 2007, pg. 91) 

Utilizar o ensino de Física matematizado, segundo a manifestação do autor, onde as equa-ções se tornam foco principal de seu estudo, não tendo a mesma atenção para os conceitos envol-vidos, torna o conhecimento físico desconexo, transformando o aluno em um mero receptor de informações. Hoje ainda é comum esta prática, o ensino não é tratado de forma igualitária e liberta-dora, ainda há uma grande distancia entre estudantes e professor, ainda visto como único detentor do conhecimento a ser ensinado. 

A concepção conceitual por sua vez, direciona-se para habilidades que vão além da mate-matização, não estamos com isso dizendo que a matemática não é importante no ensino da Física e em seu desenvolvimento, mas sim, que deve ser ferramenta complementar da ação docente que se direcione não especificamente a sua aplicação e, sim, a sua utilização para o entendimento de um

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conceito maior. Ou seja, a linguagem matemática é indispensável para o ensino da Física, mas o seu domínio deve suceder e não anteceder a percepção dos conceitos. 

Na realidade atual, saber Física passa a significar ter instrumentos conceituais para dialogar com o mundo em vários níveis, esta maneira de trabalhá-la, contribui para construção da cidadania, formando pessoas críticas, reflexivas e com base para se posicionarem e questionar posicionamentos diversos.

Capecchi e Carvalho (2006) comentam que um ensino que tenha por objetivo preparar os jovens para uma participação ativa na sociedade, deve procurar desenvolver novas visões de mundo por parte dos estudantes, considerando o entrelaçamento entre estas e conhecimentos anteriores.

Abordagens Históricas No Ensino De Física: Necessidades E ContribuiçõesA História da Ciência é ferramenta de grande potencial para o ensino da Física, por meio

de suas contribuições é possível estabelecer relações temporais históricas e sociais significativas para a aprendizagem das Ciências, permitindo compreender a Ciência como processo de construção humana, assim como desconstruir conceitos falsamente atribuídos a ela.

De uma maneira geral, os argumentos para a utilização da HFC são, entre outros, que: humaniza o conteúdo ensinado; favorece uma melhor compreensão dos conceitos cien-tíficos, pois os contextualiza e discute seus aspectos obscuros; ressalta o valor cultural da Ciência; enfatiza o caráter mutável do conhecimento cientifico; e, permite uma melhor compreensão do método cientifico (MATTHEWS, 1995; HÖTTECKE e SILVA, 2011).

A localização histórica nos permite compreender o momento atual em que vivemos e ana-lisá-los criticamente, fator que é de grande importância para formação de cidadãos críticos e atuan-tes na sociedade. Os PCN (2000) afirma que para se chegar a esta criticidade por meio do estudo da Física é essencial que o conhecimento seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humanas.

Desconstruir a Ciência como verdade absoluta é uma das mais significativas contribuições possibilitadas pelo estudo da HC, pois o discurso da Ciência como única verdade aceitável e confi-ável ainda se faz muito presente nas práticas educativas.

Martins (2000) defende que o estudo do contexto social em que a Ciência se desenvolveu é muito importante para desmistificar alguns mitos acerca dos cientistas e de seu trabalho. Outros autores (ACEVEDO et. al., 2005;PRAIA, GIL-PEREZ; VILCHES, 2007, p. 5) mencionam que:

[..].uma abordagem histórica no Ensino de Ciências permite aos estudantes adquirirem um conhecimento da Natureza da Ciência (NDC), o quê, conforme as concepções con-sideradas mais adequadas atualmente,permite a formação de um cidadão crítico, apto, inclusive, para a tomada de decisões tecno-científicas.

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A natureza da Ciência, discussões sobre sua origem, seus aspectos permitem a compreensão dos sistemas que envolvem a Ciência e a tecnologia, localizando o aluno em um sistema no qual a Ciência faça significado em sua vida por meio destas aplicações das Ciências da natureza. A esse respeito, Carvalho (2010) comenta que a escola precisa ensinar aos alunos os fenômenos da natu-reza que os rodeiam, levando em consideração o que eles conhecem a respeito dos temas abordados, possibilitando aos mesmos a oportunidade de examiná-los na busca por explicações.

Proporcionar meios para a percepção das aplicações e utilidade da Ciência no cotidiano do aluno, para assim dar significado à existência desta em sua realidade é objetivo de muitas pesquisas. Essa percepção se encontra nos conceitos trazidos pelos alunos de suas vivências sociais diárias, onde o aluno, por acumulado cultural e difusão de informação entende que as tecnologias presentes no dia a dia envolvem Ciência, mas não consegue visualizar esta Ciência como sendo a que se aprende na escola, logo, não conseguindo fazer uso social do conhecimento que lhe é apresentado.

Articular conteúdos científicos e seus usos sociais é necessário para compreender que a Ciência é construída pela sociedade, que não é algo externo que trabalha em função das melho-rias. É necessária a discussão sobre a natureza da Ciência, sobre sua construção feita por homens e mulheres e para eles, sobre as necessidades que a envolvem e que envolve a elaboração dos conheci-mentos estudados em sala de aula, diante dessa necessidade;

A inclusão da HFC na educação científica vem sendo recomendada como um bom recurso para uma formação de qualidade, especialmente visando o ensino/aprendizagem de aspectos epistemológicos da construção da Ciência. Argumenta-se a importância de se aprender sobre o que caracteriza a Ciência como um empreendimento humano, e defende-se a HC como uma estratégia pedagógica adequada para discutir certas caracte-rísticas da NDC (ALLCHIN, 1999;ABD-EL-KHALIC e LEDERMAN, 2000,pg 06).

Portanto, a utilização da HC no ensino de Física é de grande utilidade, pois proporciona desenvolvimento do senso critico dos alunos, permitindo o entendimento de sua construção dentro de um contexto real, auto-afirmando que esta não se desenvolve fora de um contexto social, mas a partir de necessidades específicas e influenciadas por um momento histórico e uma estrutura cultu-ral predominante, contribuindo assim para uma alfabetização científica e tecnológica por meio do estudo da Física e suas aplicações enquanto Ciência da natureza.

Alfabetização Científica No Ensino De Física Por Meio Do Tema Máquinas Térmicas

Sasserom e Carvalho (2011) discutem amplamente em sua pesquisa que por ser um conceito complexo (e provavelmente por isso mesmo), a idéia de Alfabetização Científica é vista por alguns estudiosos como possuindo vieses distintos e necessários de serem observados para que seja compre-endida e vislumbrada em diversas situações e ocasiões.

Para a discussão deste trabalho nos apropriaremos do conceito de alfabetização cientifica abordado por Chassot (2014) na qual considera a alfabetização científica como um conjunto de conhecimentos que facilitam aos homens e mulheres fazer leitura do mundo onde vivem.

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O “mundo” adquire nas palavras do autor caráter geral e singular, pois o conhecimento cien-tífico adquirido no processo de alfabetização científica, deve não apenas permitir o entendimento e intervenção na realidade do mundo global, mas também no mundo local, sendo importante que esse fazer Ciência forneça possibilidades para uma leitura crítica da realidade na qual o aluno se insere. O autor também descreve sobre a responsabilidade da prática docente e do nosso fazer educação:

A nossa responsabilidade maior no ensinar Ciência é procurar que nossos alunos e alunas se transformem, com o ensino que fazemos em homens e mulheres mais críti-cos. Sonhamos que, com o nosso educação, os estudantes possam tornar-se agentes de transformação – para melhor – do mundo em que vivemos. (CHASSOT, 2014, pg.55).

O autor entende o processo de formação como um processo que proporciona criticidade, no qual o processo educativo ocorre por meio da ação da prática desta criticidade adquirida e propor-cionada pelo ensino, seja das Ciências, seja da palavra.

Sasseron e Carvalho (2011) ao usar o termo “alfabetização científica” para designar as idéias que temos em planejar um ensino que permita aos alunos interagir com uma nova cultura, com uma nova forma de ver o mundo e seus acontecimentos, podendo modificá-los e a si próprio através da prática consciente propiciada por sua interação cerceada de saberes de noções e conhecimentos científicos, bem como das habilidades associadas ao fazer científico.

Em relação em ao ensino de Física, como discutido nos tópicos anteriores, alguns modelos de práticas distanciam o aluno da compreensão da realidade a partir dos conteúdos ministrados, apesar da Física ser a Ciência que tem como objeto de estudo os fenômenos da natureza, sua prática não vem fornecendo subsídios para que seja utilizada para compreensão desta realidade.

Alguns conteúdos trazem em seu aspecto construtivo potencialidades de abordagens que possibilitam reflexão de maneira crítica em situações de contextualização, partindo desta problemá-tica e analisando a aplicabilidade de conteúdos, propomo-nos expor as características do conteúdo máquinas térmicas, abordadas no segundo ano do ensino médio.

O conteúdo máquinas térmicas se configura dentro de um processo no qual é o objeto final de um estudo de uma sequência de conteúdos, como calor, temperatura, transformações gasosas e leis da termodinâmica, por fim, o estudo das máquinas térmicas, que é um sistema que demonstra a aplicação prática de cunho tecnológico que envolve todos os conceitos mencionados e um único processo. Apesar das necessidades de muitos conceitos técnicos ligados a Física, este conteúdo ao ser tratado apenas a partir desta perspectiva deixa de fora aspectos importantes significativos de sua abordagem.

O surgimento da máquina térmica marca como um signo um momento de grande impor-tância na história do desenvolvimento cientifico e tecnológico, assim como da Ciência. A possibili-dade de superação, em alguns aspectos, do trabalho humano e animal por um sistema de máquinas, demonstrava o avanço em termos de aplicabilidade do conhecimento das Ciências naturais em sistemas que, a primeira vista, viriam beneficiar o homem em seu processo de trabalho e em seu desenvolvimento intelectual.

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O estudo do calor, objeto de grandes pesquisas entre químicos e físicos da época trazem contribuições que levam o estudo dessas Ciências para outros patamares, com a compreensão dos processos termodinâmicos mais uma pequena parcela da natureza é compreendida e por consequ-ência abre espaço para novas discussões e conhecimentos que viriam a partir deste.

Este conteúdo que marca uma mudança significativa na história da Ciência e tecnologia é tratada de forma ahistórica muitas vezes, pautadas em técnicas e métodos que levam o aluno a discutir aspectos teóricos sem referencias de aplicações e sem ter a dimensão do significado deste estudo para o seu cotidiano tecnológico atual. Sobre a necessidade de mudança de abordagem Chassot (2014) comenta que;

Há necessidade de tornar o nosso ensino mais sujo, isto é, encharca-lo na realidade, há usualmente, uma preocupação de se fazer um ensino limpo. A matematização parece ser um indicador de quanto o que ensinamos é para mentes privilegiadas e, portanto, des-vinculado da realidade do mundo que se pretende explicar. (CHASSOT, 2014, pg.103).

Diante de tantos aspectos sociais e científicos envolvendo o surgimento das máquinas térmi-cas, vemos neste conteúdo grande potencial para promover alfabetização cientifica, pois marca um momento histórico de grande significado, possibilita discussões de cunho histórico e social, rela-ciona as configurações de trabalho e meios de produção, assim como aspectos científicos associados ao que entendemos hoje como “avanços tecnológicos” e as transformações sociais.

ANÁLISE E A AVALIAÇÃO DA EXPERIÊNCIAO ensino de Física marcado por abordagens que valorizam a matematização e a reprodução

do conhecimento ainda é predominante nas escolas. Com esta configuração temos a abordagem conceitual, que tem seu direcionamento pautado na compreensão dos fenômenos físicos através do debate, da discussão e do confronto das idéias.

Quando analisamos conceitos, hipóteses e leis Físicas em nossas ações docentes nos torna-mos mediadores dos conhecimentos a serem adquiridos. Ao se estabelecer diálogo com o discente, o ensino de Física passa a ser libertador e a aprendizagem se torna significativa e contextualizada.

No caso da aprendizagem em Física, isto significa, sobretudo, a aquisição pelos alunos de novas práticas e linguagem, sem deixar de relacioná-las com as linguagens e práticas do cotidiano. A aprendizagem com este aspecto traz um novo olhar sobre conteúdos e atividades trabalhados nas aulas de Física, abrangendo aspectos diversos da construção dos conhecimentos científicos, desde seu caráter de produção humana até a importância dos símbolos na construção dos conceitos científicos. 

Por meio de minha experiência profissional, no dia-a-dia da escola, percebo a dificuldade em adotar essa abordagem devido às limitações por parte da organização do ensino, que ainda está direcionada a outros aspectos estruturais, algumas vezes distantes do mencionado acima. 

O atual sistema educacional não permite pôr em prática a ideia proposta por ele mesmo em seus documentos norteadores, currículos, livros didáticos, métodos de avaliações entre outros aspec-tos, não estão de acordo com essa concepção de ensino, onde a formação do cidadão se desenvolve

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por meio de reflexão, percebe-se isso até mesmo na formação docente, onde a organização educa-cional tenta direcionar os futuros professores a uma realidade que ainda não existe nas escolas, dei-xando claro que sua função será buscar dentre tantos obstáculos, pequenos espaços para uma prática satisfatória em busca da melhoria do todo. 

O conteúdo máquinas térmicas traz em seu histórico aspectos relacionados à construção da Ciência, revolução industrial, mudanças sócias e estruturais no trabalho, assim como a própria visão de trabalho, entre outros fatores que fazem deste um tema de que possibilita práticas significativas que abordem vários aspectos distintos, valorizando o pensamento crítico e análises mais aprofunda-das de vários aspectos técnicos, sociais e culturais que o envolvem.

Dessa forma concluímos que tratarmos o tema na perspectiva sócio histórica é de grande sig-nificado para a formação cidadã do docente e por meio desta prática é possível propor alfabetização cientifica e tecnológica de forma significativa e sólida, pois este colabora também para a construção de uma imagem de Ciência construída, inacabada e ininterrupta, que avança a partir de suas espe-cificidades e necessidades sociais, podendo ser relacionada com o momento histórico atual, assim como outros momentos de ruptura e mudanças de paradigmas.

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VACINA E VACINAÇÃO EM LIVRO DIDÁTICO: INFERÊNCIAS A PARTIR DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA EM UM VOLUME

DO 3º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Jefferson Rodrigues Pereira (Mestre em Educação em Ciências e Matemática (IEMCI/ UFPA)

Gilson Carlos Rodrigues Pereira (Graduando em Ciências Biológicas/ UFPA)

Eduardo Paiva de Pontes Vieira (IEMCI/UFPA)

RESUMO: Neste trabalho analisa-se a partir da História da Ciência, a vacinação como conteúdo presente em um livro didático do 3º ano do Ensino Fundamental aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD/2016-2018). Utilizando alguns pressupostos da análise de conteúdo discutisse as informações que o livro apresenta, destacando-se o surgimento da vacina e “A Revolta da Vacina”. O livro didático introduz o tema com informações históricas, contudo, a construção do conhecimento científico é representada como um processo continuo e centrado na figura de um cientista, o que pode possibilitar uma concepção de que a atividade científica é desenvolvida indi-vidualmente e de forma linear e não conflituosa.Palavras-chave: História da Ciência. Livro didático. Vacina. Revolta da Vacina.

INTRODUÇÃO

As pesquisas em História da Ciência - HC1 têm tido espaço ampliado no cenário educacional nos últimos anos (OKI e MORADILLO, 2008). Eventos acadêmicos e revistas da área das Ciências intensificam a produção e a discussão quanto à importância da História da Ciência

e/ou História e Filosofia da Ciência no processo de ensino e aprendizagem. O potencial pedagógico que a História da Ciência possui é apontado por autores como Barros e Carvalho (1998); Beltran et al, (2011) e Basílio et al, (2015); entre outros. Dentre as potencialidades que a História da Ciência pode trazer ao ensino, Martins (2006) ressalta a possibilidade da quebra de verdades irrefutáveis que muitas vezes é atribuída a ciência. Seguindo esta linha, Beltran et al (2011) afirma que a História da Ciência propicia aos alunos refletirem sobre os embates que envolvem a construção do conheci-mento científico e seus efeitos e possibilidades em determinado contexto social.

As pesquisas em História da Ciência podem ser empreendidas em diferentes abordagens, especificamente, o presente trabalho se detém em uma análise pormenorizada do livro didático relacionado ao ensino de biologia que é justificada pelo fato deste tipo de material constituir um dos principais recursos utilizados pelos professores para planejamento e desenvolvimento de suas aulas. Não obstante, os livros didáticos integram um dos mais antigos programas vinculados ao Ministério

1 - A terminologia História da Ciência, comumente abreviada pela sigla HC, será adotada neste trabalho, referindo-se ao conjunto de abordagens no ensino que se dirigem ao que estabelecem Beltran et al (2014), especificamente, em relação aos processos que problematizam os conheci-mentos elaborados, construídos e adaptados em diferentes épocas e culturas ao tempo em que podem ser considerados inacabados e sujeitos a modificações baseadas em outros documentos e abordagens históricas.

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da Educação e que gera um grande investimento orçamentário como indica o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)2. Além do que, é necessário problematizar a concepção de livros didáticos como detentores da verdade conforme referem Santos e Martins (2011).

Os livros didáticos podem trazer “[...] uma ciência descontextualizada, separada da socie-dade e da vida cotidiana, e concebem o método científico como um conjunto de regras fixas para encontrar a verdade” (SIGANSKI et al, 2008, p. 4). Ainda de acordo com os autores supracitados, os conteúdos e conceitos elencados pelos livros didáticos, devem ser problematizados, pois, são provenientes de ações eminentemente humanas não neutras e suscetíveis às concepções de quem o produz. Ressalta-se que já existem pesquisas sobre o livro didático em uma perspectiva da História da Ciência, por exemplo, as de Carneiro e Gastal (2005) que trazem ponderações da história da Biologia difundida nos livros didáticos do ensino médio e universitário e Vidal e Porto (2012) que analisam os conteúdos de História da Ciência nos livros didáticos de Química do ensino médio.

Assim, propõe-se discutir em um livro didático do 3º ano do Ensino Fundamental aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD 2016/2018) o tema vacina e vacinação através da perspectiva da História da Ciência, por entender-se que a HC necessita ser trabalhada neste nível de ensino, uma vez que, de acordo com Silva (2012) a inserção da História da Ciência nos anos inicias do ensino fundamental proporciona uma educação significativa aos educandos. Para isso, utilizam-se pressupostos da Análise de Conteúdo segundo Bardin (2004) detendo-se na exploração do tema vacinação. Desta forma, há o objetivo neste trabalho em trazer discussões e inferências de como a História da Ciência está vinculada no livro didático dos anos iniciais por meio do enunciado selecionado.

O ENSINO E A PERSPECTIVA EM HISTÓRIA DA CIÊNCIAA relação entre o Ensino de Ciências e a História da Ciência tem suscitado o interesse de

inúmeros pesquisadores. De acordo com Carneiro e Gastal (2005) vários estudiosos da Área de Ensino preconizam a inserção da história aos processos de educação em ciências. Basílio et al, (2011) referem que as questões históricas em sala de aula objetivam a percepção de como o conhe-cimento é produzido e instituído no decorrer da história. Deste modo, as questões históricas no ensino de ciências possibilitam levantar discussões e reflexões quanto aos temas abordados.

Esta visão significativa da História da Ciência direcionada ao ensino vem sendo abalizada por pesquisas como as de Barros e Carvalho (1998) em pressupostos que afirmam ser a História da Ciência um importante instrumento no ensino de Física, por exemplo, para a construção das con-cepções científicas nas aulas. Uma vez que, tais estudos têm apontado relações entre as concepções alternativas dos estudantes com modelos científicos que predominaram em determinado período histórico (BARROS e CARVALHO, 1998, p. 83).

Beltran et al (2011) relatam em seu trabalho “História da Ciência em Sala de aula – Propostas para o ensino das Teorias da Evolução” que a História da Ciência possibilita ao educador conduzir aos discentes certos enfoques da ciência. Os quais permitem demonstrar que a construção do conheci-mento científico está relacionada com tensões e divergências, assim como acontece em outros cam-pos de desenvolvimento humano. A partir desta premissa a História da Ciência propicia a quebra das idealizações de verdades irrefutáveis e um saber a-histórico. Compreende-se assim que:

2 Informação disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico.br. Acessado em: 18 de novembro de 2017.

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O estudo adequado de alguns episódios históricos permite compreender as interrelações entre ciência, tecnologia e sociedade, mostrando que a ciência não é uma coisa isolada de todas as outras, mas sim faz parte de um desenvolvimento histórico, de uma cultura, de um mundo humano sofrendo influências e influenciado por sua vez muitos aspectos da sociedade (MARTINS, 2006, p.23).

Marques e Caluzi (2003, p. 2) enfatizam que se tratando em adotar a História da Ciência ao ensino, como por exemplo, na química, é necessário entender que a mesma “[...] deve servir de apoio aos conteúdos abordados uma vez que nada é considerado como imutável, irrefutável ou mesmo dogmático na Ciência. Nada está a salvo de críticas e reflexões”. Essa característica de apresentar uma ciência não linear torna a abordagem histórica um importante instrumento de discussões em sala de aula. Tal visão é destacada por Bachelard (1996) quando diz que a ciência é construída de rupturas, ou seja, de saltos e de descontinuidades, uma perspectiva alinhavada aos pressupostos da História da Ciência e que não se resume simplesmente em descrever fatos históricos.

Um ponto crucial ao se discutir a utilização das abordagens históricas nos processos de ensino seja em química, física, biologia ou áreas afins, é considerar que a História da Ciência não deve suprimir o ensino regular das ciências mas, suplementar esse processo conforme sinaliza Martins (2006). Além disso, quando se trabalha com a História da Ciência, deve-se evitar questões que tirem o aspecto reflexivo e crítico que a mesma possibilita na construção do conhecimento. Entre os cuidados que existem ao desenvolver o ensino com a História da Ciência Martins (2005) alerta para não se apresentar:

“[...] uma História da Ciência puramente descritiva, repleta de datas e informações que não têm qualquer relevância para aquilo que está sendo estudado. Este tipo de História da Ciência apresenta, muitas vezes, alguns indivíduos como gênios que tiraram suas idéias e contribuições do nada e outros como verdadeiros imbecis que faziam tudo errado. Passa ao leitor uma visão completamente distorcida do processo de construção do pensamento científico (MARTINS, 2005, p.314).

Existe uma grande potencialidade para o uso da História da Ciência no ensino, entretanto, é necessário prudência ao tentar desenvolver o ensino em uma perspectiva histórica, para que não o transforme em memorização de datas ou possibilite concepções que produzam discursos sobre verdades absolutas ou inquestionáveis. Ainda assim, deve se observar as possibilidades que existem para os diferentes espaços educacionais, determinadas faixas etárias e temas tratados.

CONSIDERAÇÕES SOBRE VACINA E VACINAÇÃOO advento da vacina é uma construção científica geralmente reconhecida como um dos

empreendimentos mais bem-sucedidos da história humana. Utilizada na prevenção e controle de doenças as vacinas contribuíram com a redução significativa no número de mortes e propagação de doenças infectocontagiosas. Quando se discute saúde pública, a vacinação está entre as mais impor-tantes ferramentas (PÔRTO e PONTE, 2003).

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A história da vacina está ligada a varíola, doença transmissível que no século XVII atingiu populações em escala global. Neste período o tratamento da doença era realizado por um método conhecido como “variolação”, conforme aponta Feijó e Safádi (2006). Tal técnica consistia em:

“[...] introdução, na pele de indivíduos sadios, de líquido extraído de crostas de varíola de um paciente infectado. Esse processo [...] provavelmente teve origem na China e foi levado á Europa Ocidental, onde, embora tenha provocado vários casos de morte por varíola, foi utilizado na Inglaterra e nos EUA até surgirem as primeiras investigações do médico inglês Edward Jenner, publicadas no trabalho Variolae Vaccinae, em 1798 (FEIJÓ e SAFÁDI, 2006).

Edward Jenner percebeu que muitos camponeses apresentavam imunidade a varíola, havendo em comum o fato de ordenharem vacas e terem sido infectados com cowpox - uma doença do gado parecida com a varíola (Brasil, 2003). Depois de inúmeros testes, Edward Jenner, confirmou que os camponeses permaneciam resistentes a varíola, ainda quando injetado com o vírus (Brasil, 2003). Assim, em 14 de maio de 1796 Edward Jenner:

“[...] inoculou James Phipps, um menino de 8 anos, com o pus retirado de uma pústula de Sarah Nelmes, uma ordenhadora que sofria de cowpox O garoto contraiu uma infec-ção extremamente benigna e, dez dias depois, estava recuperado. Meses depois, Jenner inoculava Phipps com pus varioloso. O menino não adoeceu. Era a descoberta da vacina (BRASIL, 2003, p.2).

A partir deste momento iniciou-se um processo de aceite e também de desconfiança (BRASIL, 2003). A classe média mostrou resistência por não acreditar na eficácia do método, o meio religioso alegava quanto ao perigo da depravação da humanidade, uma vez que, estava se injetado material bovino nas pessoas. Essa técnica passou a ser chamada de vacalização ou minotau-rização e pelos profícuos resultados que alcançou, fortaleceu-se e foi amplamente difundida.

Em 1885 Louis Pasteur obteve êxito em procedimentos relacionados com a imunização contra a raiva humana (CREPE, 2009) e em homenagem aos estudos de Edward Jenner, Pasteur denominou de “vacina” o produto obtido por meio dos procedimentos de imunização (FEIJÓ E SAFADI, 2006).

De acordo com Rezende (2009) a varíola foi a primeira doença infecciosa a ser erradicada do planeta através da imunização profilática. A varíola foi umas das mais devastadoras doenças que assolou o mundo, responsável por inúmeras mortes. Quando não levava a óbito a varíola causava sequela como nos diz Rezende (2009, p. 378) “[...] desfigurando o rosto dos sobreviventes com cicatrizes indeléveis e perda de visão. Ainda de acordo com o autor a varíola adentrou no Brasil através dos colonizadores provenientes da Europa e África.

No Brasil a primeira epidemia de varíola levou a óbito aproximadamente trinta mil pessoas e começou na Bahia no ano de 1563 (REZENDE, 2009), contudo, o efeito mais contundente e visível da varíola será observado no Rio de Janeiro, nos primórdios do século XX, contribuindo para o estabelecimento de um quadro caótico no qual Oswaldo Cruz tomara medidas que levaram ao famoso episódio conhecido como “Revolta da Vacina” (PORTO, 2003).

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Porto (2003) enfatiza que o Rio de Janeiro de 1904 fora assolado pela varíola, nestes termos, Oswaldo Cruz enviou ao congresso uma lei que ratificava a vacinação como obrigatória, já que havia sido instituída em 1837 a obrigatoriedade, porém não era efetivada. Porto (2003, p.53) salienta que Oswaldo Cruz cria “[...] uma polícia sanitária que tinha o poder para desinfetar casas, caçar ratos e matar mosquitos”. Essas situações foram o estopim para a Revolta da vacina. Vieira (1994) destaca que devido à revolta popular a vacinação deixou de ser obrigatória, contudo era necessário apre-sentar comprovante de vacinação para inúmeras situações desde viagens até a matrícula em escolas.

CAMINHOS METODOLÓGICOS Este estudo caracteriza-se na perspectiva da abordagem qualitativa. A opção metodológica

de exploração do material foi baseada em pressupostos presentes na análise de conteúdo na pers-pectiva de Bardin (2004), assim, incluindo incialmente a pré-análise e a exploração do material e sendo desenvolvido com o tratamento de resultados que possibilita inferências sobre o conteúdo do material empírico pesquisado. Dentre os livros didáticos aprovados pelo PNLD para o triênio de 2016 a 2018, selecionou-se o material intitulado “Ciências Humanas e da Natureza” destinados a alunos do 3º ano do ensino fundamental. A escolha pelo livro deu-se pelo fato do mesmo ter sido adotado pelas escolas públicas do município de Breves –PA e consequentemente são utilizados pelos professores e educandos dessa região, e por estar disponível para análise.

Quadro 1- Livro selecionado

Livro Autores Editora Triênio

Ciências Humanas e da Natureza

Charles Hokiti Fukushigue Chiba, Caroline TorresMinorelli, Valquíria Garcia, Vanessa Silva Michelan Leya

201620172018

Fonte - Os autores

Em sequência realizou-se a exploração do material, momento no qual foi desenvolvida a leitura do tema previamente escolhido em seus pormenores. Na última etapa se realizou o trata-mento de resultados e interpretações que compõe as inferências presentes nas discussões do referido trabalho.

ANÁLISES E DISCUSSÃOO livro didático analisado traz recortes históricos relevantes à discussão quando se propõe

desenvolver o ensino na perspectiva da História da Ciência. Ao iniciar a abordagem do tema vaci-nação, o livro didático, faz uma descrição da importância da mesma para a prevenção de doenças e a forma como a vacina atua no organismo. Como observado no seguinte trecho “Após a vacinação, quando o corpo entra em contato com um agente que pode causar alguma doença, ele logo combate esse agente, prevenindo a doença” (CHIBA et al, 2014). Depois da introdução do assunto são apre-sentadas questões sobre o desenvolvimento da vacina. No tópico: A primeira vacina, os estudantes devem ter contato com as seguintes informações:

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Figura1 - Informações sobre a primeira vacina

Fonte - Chiba et al, 2014.

Neste trecho são introduzido aos alunos de forma muito suscita a idealização de Edward Jenner sobre a vacina. Contudo, um cuidado necessário ao se trabalhar com História da Ciência, é evitar a criação de “heróis”, sobretudo, pela possibilidade de mitificar indivíduos, consequente-mente produzir a ideia de que determinadas atividades ocorrem de forma isolada e em detrimento de outras, além disso, deve se evitar a comunicabilidade de episódios históricos descontextualiza-dos. O recorte supracitado pode incorrer no entendimento heroificado pela forma como o texto é apresentado, centrado em um indivíduo que surge em determinada situação para salvar as pessoas, ainda assim, esta é uma possibilidade diante de outras, pois de fato não há uma construção textual explicita que afirme o caráter salvacionista da ação, ainda assim, a apresentação de informações desta forma se dirige ao encontro do que afirma Beltran (2011, p. 49):

Os materiais didáticos, como livros e sistemas apostilados, disponíveis para o professor, raramente abordam a História da Ciência e, quando há esta abordagem, muitas vezes é através de pequenas biografias, separadas do texto principal, que dão ao aluno uma visão de ciência um tanto quanto distorcida, de que a ciência é neutra, livre de erros, consti-tuída apenas pelos acertos de poucos e raros “gênios”.

A maneira como a história é apresentada também é alertada por Vidal e Porto (2012), ao tecerem críticas aos livros didáticos. Para eles, essas obras trazem concepções céleres e superficiais sobre os fatos históricos, e tal simplismo nas informações não contribui com as discussões e a critici-dade inerentes a constituição do conhecimento científico. Em relação ao texto presente na Figura 1, destaca-se ainda que a leitura incide em uma interpretação na qual Edward Jenner deliberadamente aplicou na população “os agentes que causavam a doença nas vacas”. Sem uma contextualização sólida, a tentativa de informar o fato histórico pode acarretar em um erro conceitual. É preciso des-tacar, entretanto, que o livro didático menciona que “desde a descoberta da primeira vacina, muitas outras foram criadas para diferentes doenças, com a participação de diversos cientistas” (CHIBA et

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al, 2016, p.145). A informação de que diferentes vacinas foram fabricadas com a contribuição de vários cientistas permite apresentar aos alunos que os cientistas não eram indivíduos raros.

No texto, existem poucas informações biográficas sobre Edward Jenner, limitando-se a sua nacionalidade, profissão, data de nascimento e falecimento, não obstante, outros pesquisadores que contribuíram com trabalhos na construção e aprimoramento de vacinas, como Louis Pasteur, não são citados. Em relação a essas situações o trabalho de Vidal e Porto (2012, p.298) constatou que “[...] dados relativos à vida dos personagens se restringe apenas ao nome e as datas de nascimento e morte [...] Dificilmente, encontramos descrições de aspectos da vida pessoal dos cientistas, pesqui-sadores ou filósofos”. Enfatizam também que:

Trata-se de uma visão que se conecta com a que comtempla aos cientistas como seres especiais, gênios solitários, que falam uma linguagem abstrata, de difícil acesso. A visão descontextualizada vê-se reforçada, pois, pelas concepções individualistas e etilistas da ciências (CACHAPUZ et al ,2005, p.43).

Ainda que o volume analisado possibilite pensar o pesquisador de outra forma, é possível que a mitificação do cientista prevaleça entre professores e estudantes. Após esse tópico, o livro didático traz um pequeno relato sobre a vacina no Brasil. São destacadas as reformas urbanas que aconteceram no Rio de Janeiro. O livro didático também indica o ceticismo que a população tinha em relação à vacina e as medidas tomadas por Oswaldo Cruz, que levaram a revolta popular contra a obrigatoriedade da vacinação, incluindo os bondes derrubados pela população revoltosa cuja des-crição é feita por VIEIRA (1994) quando diz que:

O cenário era desolador: bondes tombados, trilhos arrancados, calçamentos destruídos - tudo feito por uma massa de 3 000 revoltosos. [...] No dia 16, o governo revoga a obri-gatoriedade da vacina, mas continuam os conflitos isolados, no dia 20, a rebelião está esmagada. (VIEIRA, 1994, p. 66-67).

Neste período surgiram muitas charges, e algumas se toram bastante conhecidas. Essas char-ges estão presentes no livro didático e reproduzem um pouco o embate ocorrido ante a adoção de um meio científico não aceito por uma parcela da sociedade. A rejeição em grande parte é resultado da falta de informação popular quanto ao procedimento aliado aos costumes da época.

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Figura 2 - Charges da revista da Semana

Fonte - Chiba et al, 2014.

Nos recortes analisados se entende que o livro didático faz uma introdução acerca da vaci-nação, tratando de sua origem no mundo e sua história no Brasil, confirmando, assim, a presença da História da Ciência em suas páginas. As informações são relevantes, pois, o livro é destinado aos alunos do 3º ano do ensino fundamental da educação básica, e talvez por isso, procure abordar o assunto de forma mais acessível em relação a informação e o público alvo. Contudo, enfatiza-se, assim como Carneiro e Gastal (2005, p.34) que é necessário ‘[...] questionar a concepção de histó-ria veiculada nesses materiais e não a sua ausência”. Logo, ao se trabalhar com História da Ciência, independentemente, do nível de escolaridade, deve-se ter o cuidado em demonstrar os percursos que levam a construção do conhecimento científico, com vistas a possibilidade de os estudantes refletirem sobre esses acontecimentos, compreendendo-os como oriundos de um complexo pro-cesso de investigação no qual inúmeros atores estão associados. Caso contrário se estará em confor-midade com uma abordagem meramente caracterizada por uma apresentação da ciência:

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[...] Sem referência a seu processo de criação e muito menos ao contexto em que foi criada. E, o que é pior, na tentativa de suprir esta lacuna passa uma visão da História da Ciência como se fosse, como já dizíamos, um armazém, um depósito onde se guardam as vidas dos cientistas, seus feitos e suas obras (PRETTO, 1985, p. 77).

Reforçando essa ideia, Vidal e Porto (2012) afirmam “[...] que, na maioria das vezes, as transformações da ciência são descritas como um processo linear e direto [...]”. Nesta discussão, cuja proposta é a análise do livro didático sobre o tema vacinação, verifica-se que existe uma intro-dução da História da Ciência, capaz de fazer menção discreta aos conflitos que envolvem a ciência, ainda que se constate uma apresentação da ciência capaz de fomentar uma percepção de produtivi-dade continua, mítica e pouco contextualizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O livro didático analisado apresenta em suas páginas recortes da História da Ciência e isto

confirma que a HC tem ganhado espaço em diferentes cenários. Uma vez que introduz a História da Ciência no início do Ensino Fundamental, movimentando discussões que se dirigem para uma faixa etária compreendida entre os 08 e 09 anos de idade. Contudo é necessário questionar a forma como essa História da Ciência está vinculada no livro didático e não sua presença ou ausência.

A análise de conteúdo do material permite constatar que os recortes que retratam embates e conflitos na aceitação de um método científico estão ligados à aceitação popular (Revolta da Vacina) e não às tensões em nível de comunidade científica. Nesta perspectiva, é preciso mencionar que a Academia de Ciências do Reino Unido, inicialmente, não considerou a consistência dos trabalhos de Edward Jenner, que precisou refinar aspectos metodológicos e realizar mais inoculações para ter o trabalho reconhecido e publicado em 1798 (RIEDEL, 2005). Ademais, na simplificação das informações se arrisca a difusão de informações que podem acarretar em equívocos conceituais, por exemplo, a ideia de que Edward Jenner deliberadamente inoculou agentes infeciosos dos animais na população, sem maior contextualização ou explicações, nestes termos, seria pertinente informar que Jenner utilizou em primeiro momento material biológico proveniente de uma pessoa infectada com varíola bovina e de forma controlada em outra pessoa.

Os conflitos inerentes à construção do conhecimento científico são vistos de forma superfi-cial apresentado a ciência linear em um prosseguimento de teorias, contrária a visão de ciência feita de rupturas e saltos que é preconizado pelos pesquisadores da Área de Ensino. Ainda nesta apre-sentação da atividade cientifica, percebe-se também que os cientistas são apresentados de forma a abalizar a ideia de “gênios” ou pessoas que nasceram predestinadas a “descobrir” algo em detrimento do fato de que o conhecimento cientifico é comumente exitoso após muitas tentativas e erros.

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UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM CONCEITUAL EM FILOSOFIA, EPISTEMOLOGIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Diego Marques da Silva Medeiros (UFGD)

RESUMO: A partir da experiência do autor no ensino de filosofia, epistemologia e história da Ciência para licenciandos em Ciências Biológicas, elaborou-se uma proposta de abordagem con-ceitual acerca do assunto. Embasando-se na noção de entendimento apresentada por Lacey (1998), a abordagem estrutura-se a partir de três questões: por que é Ciência? O que é Ciência? E o que é possível com a Ciência? Neste trabalho, objetivou-se apresentar a abordagem conceitual, sua sequ-ência, suas fontes e respectivas informações, e propô-la de modo que possa vir a contribuir com a formação em Ciências e, especialmente, de professores de Ciências.Palavras-chave: Conteúdo Conceitual; Lógica; Positivismo; Racionalismo Crítico; Crítica Pós-moderna.

Introdução

Inicia-se este trabalho considerando material didático como qualquer coisa que tenha a função de auxiliar a aprendizagem do aluno e, consequentemente, o ensino do professor (VILAÇA, 2009). Portanto, uma proposta conceitual de ensino pode ser considerada um material didático. Assim,

este trabalho tem o objetivo de descrever e propor uma abordagem conceitual para o ensino de filosofia, epistemologia e história da Ciência.

A proposta tem como inspiração a atuação do autor como docente no componente curri-cular “Prática de Ensino I: Epistemologia, Filosofia e História da Ciência e do Ensino de Ciências” do curso de licenciatura em Ciências Biológica da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais (FCBA) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), e cuja ementa aparece no Projeto Pedagógico do Curso da seguinte maneira:

Paradigmas que orientam a produção de conhecimento na área das Ciências Naturais e Ciências Humanas. Concepções epistemológicas de Ciências e o Ensino de Ciências e Biologia. Especificidades e diferenças da produção de conhecimentos da área bási-cas de Ciências Biológicas e da área de Educação em Ciências. Contribuições da História e Filosofia da Ciência no Ensino de Ciências e Biologia. A experimentação no Ensino de Ciências e Biologia. Relações entre Ciência, tecnologia, sociedade e ambiente. Alfabetização científica e sua contribuição para a sociedade contemporânea (UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS, 2016).

O desenvolvimento conceitual descrito neste trabalho tem, por finalidade, a constru-ção da compreensão de “Ciência” junto a alunos de licenciatura, o que abrange parte da ementa

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anteriormente citada. Para tal, adotou-se a noção de entendimento1 exibida por Lacey (1998). O autor explica que o entendimento de algo envolve três questões básicas: “o que é”, “por que é” e “o que é possível”? Ademais, argumenta que o entendimento é sempre relativo, de modo que “o que é possível” depende de “o que é” que, por sua vez, ocorre em função do “porque é o que é”. Desse modo, a compreensão do que é Ciência e, consequentemente, do que é possível a partir dela, ocorre em função do entendimento dos movimentos históricos que levaram até ela.

A abordagem conceitual, proposta e descrita nas próximas seções, é apresentada em três etapas consecutivas e relativas às questões básicas do entendimento: por que é Ciência? O que é Ciência? E o que é possível com a Ciência?

Por Que é Ciência?O início do conteúdo justifica-se historicamente pelo que se tem de registro em relação ao

surgimento do pensamento crítico. Para esse fim, toma-se como principal referência o livro “Hitória da Filosofia” da coleção “Os Pensadores” (ABRÃO, 1999). Inaugura-se com abordagem acerca dos conflitos decorrentes da invasão dória e decadência grega no período homérico, o que levou à uma miscigenação cultural importante ao surgimento da filosofia. Sendo, nas polis, as decisões tomadas de modo democrático, o convencimento exercido pelo cidadão livre e não estrangeiro passou a ser de suma importância para o planejamento social. Tal convencimento, por sua vez, passou a existir em função do logos (a razão).

O argumento construído inicialmente é o de que, não mais havendo legitimidade de gover-nantes escolhidos pelos deuses, restou que o ser humano conhecesse a si, ao mundo e à sua ativi-dade mundana (ABRÃO, 1999). A estratégia, nesse sentido, foi a lógica dedutiva que: a partir de premissas amplamente aceitas como verdadeiras, aplicadas sob algum aspecto da realidade, chega a conclusões igualmente verdadeiras. Sócrates (400 a.C.) fez isso. Conta-se que ao vislumbrar que sua reputação de sábio dependia do reconhecimento da própria ignorância, desenvolveu o método maiêutico, a partir do qual conclui-se o conhecimento verdadeiro a partir da premissa “só sei que nada sei”.

A compreensão do surgimento da Ciência Moderna se depara, contudo, nem tanto com as filosofias imersas no mundo grego mitológico (ABRÃO, 1999). A mitologia e suas premissas, inclu-sive, entre os séculos II e VI (d.C) no Império Romano, era considerada vulgar, coisa de miseráveis e de civilizações pagãs. Dentre os vários movimentos filosóficos que surgiram, um dos mais signifi-cativos para uma nova revolução do pensamento humano foi o cristianismo, que se desenvolvera no Império Romano e a partir de premissas extrapoladas da vida de Jesus de Nazaré. No entanto, com a decadência do império e o início das invasões bárbaras, o patrimônio intelectual cristão passa a ser protegido por vias religiosas. O clero é reconhecido como único intermediário entre o ser humano e Deus, controla a intepretação das escrituras e condena, por heresia ou paganismo, pensadores que se aventurassem a novas deduções.

Importa vislumbrar a treva dos povos durante a Idade Média, pois enquanto a nobreza ostentava riquezas, direitos e ambições, fora dos castelos o povo vivia de submissão, miséria e doen-ças. Mas o que eram as trevas do povo se tornou as trevas de todos a partir do momento em que a insustentabilidade da situação se transformou em violentos conflitos civis e disseminação de

1 Entendimento, na noção apresentada por Lacey (1998), teve, para este trabalho, significado equivalente ao de compreensão.

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doenças. Nesse caso, as ultrapassadas escrituras clericais não mais ajudavam, e os reis passam a auto-rizar a atividade de pensadores e estudiosos, os quais passam a ter sob suas tutelas (ABRÃO, 1999).

A idade das trevas culminou no período que hoje ficou conhecido como Renascença, pois a humanidade parecia aspirar pela recuperação dos tempos de glória do conhecimento, da arte e da cultura grega e romana (ABRÃO, 1999). A opressão religiosa levou a um novo entendimento, de que o contato com Deus poderia ocorrer por meio das artes e da filosofia. Assim, perdem força a igreja e o clero como intermediários da humanidade com o divino. Começa uma jornada em busca da autovalorização e do empoderamento do indivíduo; os artistas passam a assinar suas obras; e surgem corajosos empreendimentos como a reforma, a contrarreforma e a tolerância religiosa.

É no final da Idade Média – quando os problemas só encontram solução a partir do estudo e da razão – e no Renascimento que indivíduos começam a questionar com mais intensidade os limites da compreensão e da ação humanas (ABRÃO, 1999). A invenção do relógio mecânico passa a representar o poder que o homem tem de controlar a natureza (CAPRA, 1998). Na astronomia, Copérnico propõe o heliocentrismo e Kepler demonstra sua lógica matemática. O cenário não seria melhor para que uma porção de indivíduos começasse a questionar o que, afinal, seria o conheci-mento e qual a maneira mais adequada e confiável de obtê-lo.

O Que é CIÊNCIA?Para explicar os fundamentos da Ciência Moderna, recorre-se inicialmente a Bacon (1999),

ao propor que os limites do conhecimento ocorrem em função da doutrinação religiosa e da obser-vação sem critérios. Mas que critérios seriam necessários para que esses limites fossem expandi-dos? Respondem, inicialmente, a essa questão, principalmente, dois autores: Galileu Galilei e René Descartes (ABRÃO, 1999). O primeiro afirma que o espaço deve ser entendido de forma homo-gênea, não havendo naturezas distintas das coisas – como seriam os mundos sub e supralunar de Aristóteles. Para Galileu, o mundo físico, seja cósmico, seja terreno, é passível de ser matematica-mente descrito.

Sobre Descartes, aborda-se acerca da dúvida hiperbólica, método a partir do qual a única certeza que resta é a da existência da dúvida. Para o autor, se a dúvida existe, existe em pensamento que, portanto, também possui existência. Existe, pois, uma coisa que pensa (o indivíduo, res cogi-tans); “se penso, logo existo”. Essas ideias escapam à dúvida hiperbólica pois são claras e distintas. Desse modo, a partir de uma atitude cética, é possível alcançar ideias claras e distintas, algo que vai além das simples opiniões (DESCARTES, 1999).

Outras ideias claras e distintas a que Descartes chegou foram: da existência de uma coisa infinita (Deus, res infinita), causa da existência da coisa pensante (finita, por sua vez); e da existência das coisas extensas (res extensa), as coisas que percebemos e representamos no pensamento, mas que são diferentes dele e de Deus, pois apresentam extensão calculável (altura, comprimento, largura). A natureza é, portanto, transformada em coisa, em objeto do conhecimento; a coisa extensa é trans-formada em coisa pensada por meio da representação do cogito (sujeito do conhecimento) em ideias claras e distintas (DESCARTES, 1999).

Chega-se, portanto, à conclusão de que Descartes considera, como critério válido de obser-vação, a adoção de naturezas distintas entre corpo (res extensa) e pensamento (res cogitans) tendo, ambos, Deus (res infinita) como causa (DESCARTES, 1999). Assim, enquanto a teologia se ocupa

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da coisa infinita e a filosofia da coisa pensante, a Ciência é a única capaz de investigar as coisas extensas. Desse modo, Descartes fundou quatro princípios analíticos, a partir dos quais a Ciência seria capaz de alcançar ideias claras e distintas acerca do mundo físico. Seriam eles: o princípios da dúvida e evidência; o princípio da decomposição e análise; o princípio da composição e síntese; e o princípio da enumeração e verificação. Sequencialmente, o trabalho de Isaac Newton é proposto como a primeira e mais plena realização da Ciência Moderna a partir dos critérios baconianos, galilaicos e cartesianos.

A lógica indutiva, ou indução, foi apresentada como o método geral da Ciência Moderna. A esse respeito, Bacon (1999) apresentou o indutivismo empírico como alternativa à observação dog-mática ou sem critérios. Diferente da dedução, método lógico predominante na filosofia, a indução parte de premissas que se referem a instâncias particulares, de modo que a conclusão que se chega é uma afirmação possível acerca dessas premissas. Nesse caso, a indução pode ser completa, quando as premissas partem de um esgotamento dos casos a observar. No entanto, esse tipo de raciocínio lógico é estéril quanto à produção de novos conhecimentos, à medida que suas conclusões são meramente descritivas. Por outro lado, a indução incompleta – quando as premissas se referem a alguns ou, até mesmo, um único caso observado dentro de uma categoria – é a considerada ver-dadeiramente científica, pois a conclusão trata de inferência, algo que pode ser falseado a partir de novas observações. Sobre esse método lógico, Galileu propôs o teste quantitativo-experimental, em que situações são arranjadas para a obtenção de premissas quantitativas das instâncias investigadas.

Em suma, aborda-se que a Ciência Moderna parte de casos específicos e indícios neles per-cebidos para conclusões generalistas, acerca de casos semelhantes, porém não observáveis por serem vastos ou inacessíveis. Portanto, a estratégia indutiva inicia por uma primeira etapa de observação dos fenômenos e coleção de dados, passa pela descoberta de relações entre eles e culmina na gene-ralização dessas relações.

Superstição, como conceituado em Skinner (2003), é a percepção de relações de contin-gência que de fato não existem, que são apenas coincidências; relações simplesmente temporais ou espaciais, mas não de causalidade. Sobre o assunto, aborda-se acerca de regras contra equívocos de indução; equívocos que levariam a formulação de conhecimentos supersticiosos ou falsos. Tais equívocos são, na maioria dos casos, relacionados à amostragem insuficiente e à amostragem ten-denciosa. Conforme explica Souza e colaboradores (1976, p. 64), “quanto mais representativa [e] quanto maior a amostra, maior a força indutiva do argumento”.

A justificativa ao uso da lógica indutiva incompleta como estratégia científica é, então, apre-sentada em relação ao princípio da constância das leis da natureza (ou princípio do determinismo). Nas palavras de Nérici (1978, p. 72):

“nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos [e] o que é verdade de muitas partes suficientemente enumeradas de um sujeito, é verdade para todo esse sujeito universal”.

Para exemplificar as estratégias indutivas na Ciência Moderna, faz-se uso das abordagens indutivas descritas e categorizadas por John Stuart Mill (1806-1873) que, com o objetivo de elevar as Ciências Humanas e Sociais ao patamar das Ciências Naturais, discutiu a lei da causalidade, cuja ideia é a de que todo fato que tem um começo tem, também, uma causa (MILL, 1999).

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Outro detalhe importante na abordagem são as adjetivações atribuídas à Ciência Moderna. Tais quais: “realista”, que remete ao entendimento de um mundo que de fato existe independen-temente do pensamento e da representação; “materialista”, que denota uma realidade que pode ser desvelada a partir objetos e eventos materiais; e “positivista”, no sentido de que a produção de conhecimentos a partir de estratégias científicas modernas são (talvez as únicas) funcionais para o provimento adequado ao desenvolvimento humano.

Considerado pai do positivismo, August Comte postula ainda outro critério à produção de conhecimentos à Ciência: observação consensual (MATOS, 1993). Com suas ideias, a Ciência Moderna se torna, na época contemporânea, um objeto de devoção; o que foi impulsionado prin-cipalmente por um grupo de estudiosos do início do século XX denominado Círculo de Viena. A esse respeito, aborda-se as ideias do positivismo lógico (como ficou conhecida a corrente filosófica fundada pelo grupo). Em síntese: a investigação metafísica era algo ultrapassado e a Ciência deve-ria se fortalecer a partir da unificação da linguagem e dos fatos que a fundamentam. A filosofia, nesse caso, serviria apenas para discutir a própria Ciência e apontar soluções a possíveis impasses (CONDÉ, 1995).

O empirismo também foi uma importante atitude cultivada a partir do Positivismo Lógico. Para Schlick (1975), um dos mais importantes membros do Círculo:

“As proposições factuais são, pois, o fundamento de todo saber, mesmo que elas preci-sem ser abandonadas no momento de transição para afirmações gerais. Estas proposições estão no início da Ciência. O conhecimento começa com a constatação dos fatos”

Portanto, dizer se uma asserção possui ou não sentido depende de sua verificabilidade por meio de fatos. Se o objeto de uma asserção não pode ser observado de modo consensual, então a asserção não possui sentido; o que, por sua vez, não quer dizer que é falsa, mas que não faz parte do conhecimento de fato positivo. Por outro lado, proposições feitas a partir da experiência e que expressam casos particulares de um fenômeno, quando em número considerável e encadeadas logi-camente (indução), levam à formulação de teorias científicas (asserções com sentido).

Um exemplo a ser trabalhado é o da psicologia behaviorista inicial (Behaviorismo Metodológico) que, inserida na tradição lógico-positivista, reagiu contra a psicanálise e as ciências ditas mentalistas a partir da ideia de que:

“A mente não pode ser negada, mas também não pode ser estudada, pois não faz parte do mundo físico e, portanto, não é passível de ser captada pelos sentidos” (MATOS, 2001).

O que é possível com a Ciência?A abordagem da crítica pós-moderna em relação à Ciência começou com a apresentação de

um dos autores mais influentes do século XX nesse sentido. Karl Popper (1902-1994), em oposição ao Positivismo Lógico, fundou a corrente filosófica denominada Racionalismo Crítico, negando a possibilidade de que a verificação possa aproximar as teorias científicas da verdade. Para Popper, as

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verificações relevantes são aquelas que colocam as teorias em risco, ou que justificam a falsidade de uma teoria. Isso, pois, mesmo que haja uma realidade que extrapole os limites dos sentidos huma-nos – e Popper era, de fato, realista – os testes só podem comprovar que as conjecturas científicas não são adequadas, ao passo que outras tantas e conflitantes entre si podem ser numerosamente verificadas sem que sejam falseadas (SILVEIRA, 1996; LACEY, 1998).

Outra questão tratada por Popper é sobre o engano da lógica indutiva. Para o autor, “todo o nosso conhecimento é impregnado de teoria, inclusive nossas observações” (POPPER, 1975, p. 75). Portanto, a observação de um fato é precedida de uma hipótese ou teoria que torna a observação pretenciosa, invalidando a lógica indutiva que dá lugar à lógica dedutiva. Nesse sentido, as tarefas da Ciência seriam a explicação de fenômenos, predição de acontecimentos e aplicação técnica de teorias a partir da lógica dedutiva; mas, diferentemente da filosofia, isso ocorre a partir de critérios que possibilitem o falseamento das asserções (SILVEIRA, 1996).

Algo também considerado relevante de se abordar são as características discutidas por Popper acerca da lógica dedutiva na Ciência. Características que servem para a avaliação crítica das teorias e das estratégias científicas. Portanto, para Popper (apud SILVEIRA, 1996) a lógica dedutiva é:

a) Transmissora da verdade: sendo as leis científicas e as condições específicas sobre as quais elas foram aplicadas em uma pesquisa, ambas, verdadeiras, então as conclusões a que se chega também serão;

b) Retransmissora da falsidade: se a conclusão é falsa, então as leis científicas ou as condições específicas sobre as quais elas foram aplicadas em uma pesquisa, ou ambas, são falsas;

c) Não retransmissora da verdade: uma conclusão verdadeira pode ser produzida a partir de leis e condi-ções específicas falsas.

Argumenta-se que, para Popper, a demarcação da Ciência em relação a outras estratégias de produção de conhecimento se dá em relação à sua testabilidade, refutabilidade ou falsificabilidade (SILVEIRA, 1996). Assim, o principal critério para que uma teoria seja considerada científica é se ela possui, ao menos, um falsificador em potencial, ou seja, o apontamento de um fato, logicamente possível, que entre em conflito com a teoria em determinadas condições. De acordo com Silveira (1996, p. 07), “as teorias científicas, quando combinadas com as condições específicas, devem proi-bir algum acontecimento que é logicamente possível de ser observado”. Logo, a avaliação de uma teoria científica depende de três questões básicas: ela pode ser criticada? Ela se expões a críticas de todos os tipos? E, por fim, resiste a tais críticas?

O impacto de Popper e de outros influentes autores pós-modernos no combate de visões positivista ingênuas acerca das possibilidades científicas foi significativa, mas tardia no sentido de evitar o que Enrique Leff (2011) chamou de crise da percepção marcada pelo logocentrismo científico, hiperespecialização do conhecimento, dominação da natureza, coisificação das relações, racionalidade tecnocrata, política economicista e pragmatismo político. Para o autor, qualificar o conhecimento científico como verdadeiro levou àquilo que se deu o nome de “era do conheci-mento”. Em suas palavras:

Nunca antes [o ser humano] havia construído e transformado o mundo com tanta intensidade sobre a base do conhecimento [...]. Mas essa civilização do conhecimento é, ao mesmo tempo, a sociedade do desconhecimento, da alienação generalizada, da deserotização do saber e o desencantamento do mundo (a sociedade dos poetas mortos;

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uma sociedade sem propósito, sem imaginação, sem utopia, sem futuro). Nunca antes na História houve tantos seres humanos que desconhecessem tanto e estivessem tão excluídos dos processes e das decisões que determinam suas condições de existência; nunca antes houve tanta pobreza, tanta gente alienada, tantos saberes subjugados, tantos seres que perderam o controle, a condução e o sentido de sua existência; tantos homens e mulheres desempregados, desenraizados de seus territórios, desapropriados de suas cul-turas e de suas identidades. Nessa civilização supercientificada e “hipertecnologizada”, tanto os que dominam como os que são dominados, se encontram alienados de seus mundos de vida, em um mundo no qual a incerteza, o risco e o descontrole aumen-tam proporcionalmente ao aumento dos efeitos do domínio da ciência sobre a natureza (LEFF, 2011, p. 312-313).

No sentido de discutir o embate da concepção moderna, realista, materialista e positivista de Ciência em relação às críticas pós-modernas, outro autor a ser dado amplo foco é Hugh Lacey em sua obra “Valores e atividade científica” (1998). Para ele, as teses mantidas pelos positivistas em defesa da Ciência podem ser sumarizadas em:

a) Imparcialidade: na Ciência, a seleção de dados e restrição de teorias não se justificam e não funcionam a partir de valores que não sejam apenas de ordem cognitiva, tais quais os de ordem pessoal;

b) Neutralidade: os produtos da Ciência, ou seja, as teorias e as aplicações tecnológicas, uma vez referen-tes a uma realidade comum a todos, não servem a valores específicos;

c) Autonomia: as decisões no movimento de produção científica não são controladas por valores de pessoas ou grupos que não estão entre os sujeitos que fazem a Ciência.

Para Lacey (1998), a crítica pós-moderna pode vir da epistemologia e da sociologia. No caso da tese da imparcialidade, a epistemologia expõe a impossibilidade do engajamento seletivo de valores por parte dos cientistas. Quer dizer que os cientistas não são capazes de usar apenas de valores cognitivos suprimindo, por completo, seus valores pessoais. No entanto, o autor coloca a possibilidade de que a comunidade científica exerça tal controle. Do ponto de vista sociológico, isso vem se demonstrando possível, apesar de que ainda há muitas evidências indicando que, em diversas comunidades e por vários motivos, esse controle não é exercido de modo adequado.

Em relação à neutralidade, a impossibilidade epistemológica de se provar que as teorias se referem à uma realidade que de fato existe independente das ideias não permite que a tese seja sus-tentada. Do ponto de vista sociológico, a insustentabilidade da neutralidade da Ciência é algo ainda mais evidente pela capacidade que, em vista de seus valores particulares, determinados grupos têm em adquirir e operar os produtos da Ciência em detrimento de outros. Um caso exemplar é o das pesquisas na área de melhoramento vegetal e na maneira restrita pela qual os produtos tecnológicos são absorvidos no mercado. Conforme aponta Lacey (1998), de modo geral, a Ciência ainda serve ao valor genérico de controle da natureza e exploração insustentável dos recursos naturais.

A tese da autonomia é epistemologicamente sustentável, mas, do ponto de vista sociológico, isso não ocorre. Dentro dos sistemas sociais nos quais a Ciência é exercida, não há possibilidades de que ela ocorra de maneira autônoma a grupos de interesse. A realização de muitas práticas científicas depende de políticas e investimentos que são condicionados a critérios não cognitivos.

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Além disso, mesmo que as decisões da pesquisa sejam tomadas de modo autônomo, as teorias e os produtos tecnológicos sempre estarão a mercê dos valores de mercado em sociedades capitalistas.

Considerações FinaisDe modo geral, o conteúdo proposto vai da construção lógico-histórica do método e do

positivismo científico para as críticas pautadas nas relações da Ciência com as transformações con-temporâneas do mundo e da estrutura social. Pensa-se que a partir da estruturação do conteúdo dessa maneira, e das fontes e informações aqui apresentadas e descritas, seja possível contribuir de modo relevante à construção do conceito “ciência” por parte de aprendizes, em especial de licen-ciaturas em áreas científicas. A esse último grupo, inclusive, importa que o cientificismo ingênuo seja superado em prol de um ensino de Ciências mais crítico e atento aos movimentos histórico--dialéticos por meio dos quais a Ciência se produz.

O conteúdo de ensino apresentado até aqui pode, logicamente, ser abordado a partir de diversas atividades e sequências didáticas, não importando se de maneira expositiva ou de outras que privilegiem a ativa produção do conhecimento por parte dos alunos. Importa apenas que seja dada a devida relevância ao ensino conceitual, ou seja, objetivando que os alunos aprendam a refletir e discutir criticamente fatos a partir dos significados construídos em aula.

Entretanto, o ensino para a formação integral do indivíduo – no sentido exposto por Zabala (2007) – não se sustenta apenas de conteúdo conceitual. Assim, convém que os aspectos procedi-mentais, atitudinais, factuais e interdisciplinares sejam devidamente trabalhados e articulados ao aprendizado de conceitos, leis, hipóteses e teorias. Experiência que vem demonstrando resultados positivos nesse sentido trata-se da organização de debates, tal qual uma atividade em particular para este fim, de autoria deste autor e a qual não será descrita em detalhes neste artigo, denominada Julgamento da Ciência. A partir dela, os discentes se organizam em equipes responsáveis por defen-der ou sustentar acusações à Ciência; acusações essas justificadas e bem fundamentadas na crítica pós-moderna.

Por fim, admite-se que a abordagem conceitual em filosofia, epistemologia e história da Ciência não detém conteúdo estanque. Pelo contrário, a produção na área é antiga e vasta, de modo que, dentro da carga-horária que geralmente se tem para trabalhar o assunto nos cursos de licen-ciatura, o amplo recorte e a restrita seleção de autores, fatos, teorias e conceitos é justificada. O que parece importante é que, independente da seleção de conteúdo que se faça, a abordagem tenha uma lógica sequencial e estrutural de modo a promover o entendimento claro, organizado e crítico do aprendiz acerca do tópico em questão.

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UMA PROPOSTA DE ABORDAGEM CONCEITUAL EM FILOSOFIA, EPISTEMOLOGIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA 4639

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JULGAMENTO DA CIÊNCIA: RELATO DE UM DEBATE

Diego Marques da Silva Medeiros (UFGD) Ivan Lucero Areco (UFGD)

Petrus de Campos Kermessi (UFGD)

RESUMO: Como atividade final de ensino sobre epistemologia, filosofia e história da Ciência em um dos componentes curriculares do curso de licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal da Grande Dourados (Dourados/MS), propôs-se aos discentes um debate intitulado “Julgamento da Ciência”. Parte dos alunos participantes assumiu a responsabilidade de promover acusações contra a Ciência enquanto, outra parte, a de defender a Ciência dessas acusações. Este trabalho descreve suscintamente a atividade proposta e narra as discussões ocorridas. Percebeu-se que os alunos foram capazes de produzir conhecimentos relevantes e alinhados a diversas e influen-tes propostas teóricas da área. Por fim, considerou-se que a atividade produziu resultados válidos e relevantes no âmbito do ensino. Palavras-chave: Atividade Didática; Epistemologia da Ciência; Filosofia da Ciência; Positivismo; Crítica Pós-positivista.

Introdução

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em Dourados/MS, os acadêmicos graduandos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais (FCBA) cursam, no primeiro semestre após o ingresso, o compo-

nente curricular “Prática de Ensino I: Epistemologia, Filosofia e História da Ciência e do Ensino de Ciências”, cuja ementa aparece no Projeto Pedagógico do curso da seguinte maneira:

Paradigmas que orientam a produção de conhecimento na área das Ciências Naturais e Ciências Humanas. Concepções epistemológicas de Ciências e o Ensino de Ciências e Biologia. Especificidades e diferenças da produção de conhecimentos da área bási-cas de Ciências Biológicas e da área de Educação em Ciências. Contribuições da História e Filosofia da Ciência no Ensino de Ciências e Biologia. A experimenta-ção no Ensino de Ciências e Biologia. Relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente. Alfabetização científica e sua contribuição para a sociedade contemporânea (UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS, 2016).

Numa carga horária total de noventa horas-aula (de modo que cada hora-aula na institui-ção em questão equivale a cinquenta minutos), o professor responsável pelo referido componente curricular no ano de 2017, também primeiro autor deste trabalho, com graduação em Ciências Biológicas e Doutorado em Ensino de Ciências, ministrou a ementa de modo a problematizar as estratégias científicas de compreensão de mundo e contrapô-las às críticas pós-positivistas.

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Ao final do período trabalhado, no intuito de oportunizar que os alunos exercitassem suas capacidades críticas e argumentativas acerca dos conhecimentos produzidos, lhes foi sugerida uma atividade denominada “Julgamento da Ciência”. Tão interessantes pareceram seus resultados, que levaram à decisão de descreve-los e discuti-los neste trabalho – que se apresenta como um relato de experiência.

O julgamento da ciênciaSendo, o Julgamento da Ciência, atividade final do componente curricular em que se estava

a ensinar, aproximadas setenta horas-aulas anteriores à atividade foram aproveitadas para aborda-gem conceitual do conteúdo. Para tal, adotou-se a concepção de Lacey (1998) de que a compreen-são de algo envolve três questões básicas: “o que é”, “por que é” e “o que é possível”? Também, que o entendimento é sempre relativo, de modo que “o que é possível” depende de “o que é” que, por sua vez, ocorre em função do “porque é o que é”. Desse modo, a compreensão do que é Ciência e, consequentemente, do que é possível a partir dela, ocorreu em função do entendimento dos movi-mentos históricos que levaram até o contexto científico em que nos encontramos.

Após à abordagem conceitual, a atividade Julgamento da Ciência foi proposta aos discentes. Originalmente desenvolvida pelo professor responsável pelo referido componente curricular no ano de 2017 (e primeiro autor deste trabalho), tratou-se de um debate com elementos ficcionais. Os alunos foram ambientados em um tribunal, no qual puderam representar promotores de acusação ou advogados de defesa. Seis acusações foram apresentadas sobre a Ciência e, em seções, os promo-tores tiveram a tarefa de provar e argumentar a favor das acusações. Do outro lado, a defesa teve a função de apresentar provas e argumentos que apoiassem a Ciência e respondessem adequadamente às acusações, além de proporem soluções às acusações as quais não tivessem condições de defender.

As seis acusações com as quais os participantes tiveram que lidar são fruto da crítica pós--positivista – tais quais as formuladas a partir de autores como Karl Popper, Thomas Kuhn, Imre Lakatos, Fritjof Capra, Enrique Leff, Hugh Lacey e outros – e foram inspiradas nas discussões apresentadas no podcast episódio 200 do SciCast publicado pelo blog Deviante (FERNANDES, 2017), em que os participantes discutem sobre problemas na Ciência. Tais acusações, da forma como foram apresentadas aos alunos, estão listadas a seguir:

a) A Ciência está em pedestais. O conhecimento científico é erroneamente qualificado, de modo a ser caracterizado como verdade última sobre as coisas, subjugando outras formas de conhecimento, como o popular, o filosófico e o religioso.

b) A Ciência não é para todos. Linguagem, funcionamento próprio e o dificultoso caminho da formação científica afastam o público leigo de seu entendimento. No entanto, esse público tem seus modos de vida controlados pela Ciência. A consequência são resultados que servem melhor às elites e aos deten-tores do poder político e econômico que, por sua vez, controlam as massas por meio do conhecimento científico e, consequentemente, tecnológico.

c) Os cientistas agem de modo automático. Diferente dos filósofos naturalistas do passado, que fun-daram as bases da Ciência, atualmente os cientistas são superespecialistas que agem a partir de pro-tocolos e repetições da tradição acadêmica. Há uma minoria de cientistas que compreendem as bases lógico-filosóficas e teórico-metodológicas de suas atividades de investigação.

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d) A Ciência não passa de algo como o dogma e a ideologia. Não tendo como provar a existência real do mundo objetivo que a Ciência investiga, seus defensores não têm razão em argumentar que o conhe-cimento científico é mais relevante, correto ou exato que outras formas de conhecimento.

e) Os cientistas não são imparciais. Eles escolhem, rejeitam ou negligenciam teorias conforme seus sentimentos e valores éticos, morais e societários. Muitas das vezes, os cientistas mal sabem ou refle-tem sobre as bases filosóficas que distinguem os valores pessoais e sociais dos valores cognitivos; em outras, são ingênuos, pois acreditam totalmente na imparcialidade do método que adotam.

f ) Não existe autonomia e neutralidade na Ciência. A Ciência demanda recursos humanos, materiais e financeiros. Portanto, toda prática científica é financiada por grupos ou pessoas com interesses específicos na atividade. Tais interesses decaem sobre problemas de ordem pessoal ou social, o que leva a Ciência a servir majoritariamente à resolução dos problemas de quem fornece os recursos que a mantêm.

Para a escolha das equipes, os quatro alunos com as melhores notas na primeira prova ava-liativa do componente curricular em questão foram definidos como capitães e tiveram a função de escolher suas equipes de acordo com um sorteio de ordem. Assim, o primeiro da ordem escolheu um dos discentes matriculados no componente curricular e passou o turno para o próximo capitão que, por sua vez, escolheu um dentre os demais e assim por diante, até que se esgotassem as opções. Por fim, cada equipe foi composta por sete integrantes.

Aproximadamente dois meses antes do debate em si, as instruções da atividade foram envia-das aos e-mails dos alunos, indicando o referencial já utilizado na disciplina e o referido podcast como principais materiais de estudo. Nesse período, entre o e-mail enviado e a realização efetiva da atividade, os alunos se reuniram, estudaram em conjunto e formularam seus discursos. Houve, inclusive, muitas procuras aos professores da FCBA para a produção de provas e argumentos, o que se soube de acordo com relato dos próprios colegas. De maneira geral, tanto os alunos quanto os demais professores relatavam que os discentes participantes estavam eufóricos com a proposta.

Os lados do debate foram formados por duas equipes cada, totalizando quatorze discentes representando a acusação e outros quatorze a defesa. Para isso, as equipes se intercalaram. Sendo a acusação formada pelas equipes 1 e 3, e a defesa pelas equipes 2 e 4. A apresentação relativa à pri-meira acusação começou com um dos promotores da equipe 1; em seguida, a resposta foi de um dos advogados da equipe 2; a réplica, então, passou a ser de um dos promotores da equipe 3; e, por fim, a tréplica, de um dos advogados da equipe 4. A próxima acusação, então, inverteu a ordem, sendo que a apresentação inicial foi elaborada pela equipe 3, a resposta pela equipe 4, a réplica pela 1 e a tréplica pela 2. O professor responsável exerceu o papel de juiz.

O início do debate foi marcado pelas falas do professor responsável acerca da atividade e dos registros que estavam sendo realizados. Em relação a esses registros, foram colocados pontos de escuta em lados opostos da sala e os alunos foram comunicados e consentiram de modo livre e esclarecido com a gravação da atividade.

A seguir, apresenta-se, em seções isoladas, o desenrolar do debate acerca de cada uma das seis acusações.

A Ciência está em Pedestais

Acerca dessa acusação, um dos discentes promotores argumentou que, nas notícias, a Ciência é tida como “conhecimento supremo”, ou seja, o conhecimento é apresentado como se servisse para

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tudo e para todos. O discente, então, falseou o que é noticiado, explicando que as pesquisas são limitadas a certas variáveis e não abrangem a população total, mas apenas uma amostra dela. Nas palavras do discente sobre a abordagem midiática: “e aí eles pegam essa parte bem pequenininha da Ciência e transformam num todo generalizado, como se valesse para tudo em todo lugar”.

Iniciados os dez minutos atribuídos à resposta, alunos representantes da defesa, principal-mente os que compunham a equipe de quem se pronunciaria na vez, se reuniram, discutiram e for-mularam o discurso. Essa foi uma prática recorrente a todos os turnos, de modo que, na maioria das vezes, as falas de acusação ou de defesa eram proferidas dentro dos últimos três minutos restantes.

Em resposta à apresentação da acusação, o discente da defesa indagou se seria a mídia ou a própria Ciência quem enaltece os conhecimentos. A conclusão foi que seria a mídia o problema, pois a Ciência teria mecanismos que impediriam a extrapolação de seus resultados no sentido de torna-los genéricos ou superiores aos demais. Nas falas do aluno, a multiplicidade de testes e a pos-sibilidade de falseamento das teorias a partir deles seriam os mecanismos que protegem a Ciência dessa acusação.

A réplica da acusação trouxe para a discussão algo relevante: o fato de que o controle exer-cido quanto ao enaltecimento do conhecimento científico é realizado pela própria comunidade científica e a partir de seus próprios erros, e não da multiplicidade de testes experimentais. Portanto, os cientistas sempre chegam a conclusões generalizáveis que permitem que sejam absorvidas pela tecnologia e, posteriormente, pela economia que, por sua vez, irá disseminar o uso do conheci-mento. Nesses casos, a Ciência atua sobre seus erros de aplicação, o que aparenta algo como falta de responsabilidade.

Em tréplica, a defesa sustentou que, apesar de não haver possibilidades de um conhecimento definitivo, as bases empíricas da Ciência permitem que ela seja generalizada e que, aliás, esse fato e o de que suas teorias são faseáveis dentro da própria prática científica são o que diferencia a Ciência das outras formas de conhecimento. Nas palavras do discente, enquanto “os conhecimentos popu-lar, filosófico e religioso [...] não são mutáveis, [...] a Ciência muda”. Portanto, o fato da Ciência produzir teorias que podem ser refutadas ou gerar resultados não esperados quando em aplicação tecnológica, só não seria algo pelo qual a Ciência possa ser acusada como, também, é o que a demarca dentre outras estratégias epistemológicas.

A Ciência não é para Todos

O discente apresentou a acusação apontando para exemplos de aplicação tecnológica, que não são simples de serem operados por pessoas idosas ou leigas, ou que são inacessíveis a quem não possui o capital necessário para adquirir. Também para o fato de que a Ciência, ou o conheci-mento gerado por ela, entra em contradição com crenças mantidas por diversos grupos, tais quais os religiosos.

A resposta da defesa foi que, mesmo que a capacidade de usar o conhecimento científico ou de operar as tecnologias não seja algo comum a todos, a Ciência e a aplicação tecnológica são questões que podem ser aprendidas. Contrapondo-se ao exemplo da acusação, o discente ainda argumentou que, mesmo não sendo comum habilidades de pessoas idosas em manusear deter-minados produtos tecnológicos, ainda assim eles fazem o uso de uma variedade deles, como o de medicamentos. A respeito das contradições com a crença religiosa, a defesa argumentou ainda que,

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diferente da religião, a Ciência é mais abrangente e eficaz, gerando produtos que podem servir a qualquer um, não importando as características da pessoa.

A acusação exerceu sua réplica argumentando que mesmo o aprendizado da Ciência é algo custoso e que, por isso, não seria qualquer pessoa que teria acesso. Apenas as mais endinheiradas, que é a minoria populacional. Portanto, a maioria tem acesso apenas a uma “Ciência mais básica” e “não tem condições para fazer observações científicas”. O aluno também apontou para o fato de que, mesmo que os produtos tecnológicos da Ciência cheguem à população em geral, em muitos casos o uso leva a efeitos colaterais indesejados.

Como tréplica da defesa, argumentou-se que não se pode levar em consideração que o acesso à Ciência seja apenas por vias do aprender Ciência. O sujeito pode não saber Ciência e não ser um cientista, mas, ainda assim, ter acesso à Ciência pela aquisição dos produtos tecnológicos. A defesa também rebateu o argumento acerca dos efeitos colaterais, expondo que haver ou não efeitos cola-terais não muda o fato de a Ciência alcançar a todos.

Os Cientistas Agem de Modo Automático

A respeito dessa acusação, os discentes apresentaram que os cientistas usam métodos de pesquisa muito semelhantes em seus experimentos, algo que é inadequado e que eles próprios assu-mem, pois, cada experimento é sobre um aspecto diferente da realidade, o que leva a crer que deveriam ser exercidos métodos diferenciados. O exemplo dado foi a respeito da embriologia com-parada, que atribui conceitos semelhantes a estruturas ou processos que são, mesmo que sutilmente, diferentes. Outra ideia defendida foi a de que os cientistas são arrogantes no sentido de criarem ambientes experimentais artificiais em laboratório e se referirem às suas teorias de modo generali-zado. Reforçou-se, também, a acusação apontando para o fato de que os cientistas são superespecia-listas e entendem sobre um recorte apenas ínfimo da realidade.

A defesa respondeu que a questão da superespecialização do conhecimento é algo natural nos dias atuais, uma vez que os campos científicos se multiplicaram exponencialmente. Também argumentou que a especialidade não é um aspecto negativo, uma vez que o conhecimento especia-lizado pode servir para uma porção de outras áreas. Sobre a questão da arrogância dos cientistas, o discente desmistificou a concepção de que cientista só trabalha em laboratório, levando em consi-deração a Ciência teórica e as observações naturalísticas. Defendeu, ainda, a Ciência laboratorial a partir da afirmação de que não é qualquer experimento que pode ser feito em ambientes naturais, pois, em alguns casos, como quando se trabalha com vírus, é preciso exercer certo controle sobre as variáveis, para que não se tenha resultados prejudiciais ao ambiente.

A acusação questionou os métodos de observação naturalística e propoes que, mesmo havendo etapas fora do laboratório, o cientista, em algum momento, deverá recorrer ao laborató-rio para testas as hipóteses construídas a partir da observação. Nesse sentido, os cientistas, sejam naturalistas, experimentais ou teóricos, sempre acabarão por recorrer a métodos muito semelhantes entre si.

Para concluir, a defesa argumentou que a semelhança de métodos é algo desejável, uma vez que diversas das estratégias em comum são as responsáveis pela produção do conhecimento positivo na área. Além disso, defendeu o sujeito cientista que, se faz as coisas de modo automático, isso se deve a uma relação de poder que existe de forma abrangente nas relações sociais, seja na Ciência quanto em outras áreas de atuação. A partir da lógica de que “quem tem mais manda e quem tem

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menos obedece”, o discente argumentou que o cientista institucionalizado não deve ser responsabi-lizado por ter que seguir protocolos.

A Ciência não Passa de Algo como o Dogma e a Ideologia

A apresentação da acusação considerou a questão do “cientificamente falando”, argumen-tando que apenas dizer expressões desse tipo leva a crer que o que se está falando é a verdade abso-luta. Ademais, o fato de, na escola, os professores ensinarem o conhecimento científico do modo acrítico leva a essa ingenuidade, de que a Ciência é mais certa ou capaz de gerar resultados mais práticos que outras estratégias de produção de conhecimento, como é o caso da arte, da música e da religião que, de acordo com o discente, “não são conhecimentos postos como válidos, só a Ciência é válida”. Um dos motivos apontados para isso é o de que a Ciência atua em sobre fatos, levando à concepção de que seria suficiente na compreensão da realidade.

A Ciência foi defendida dessa acusação a partir da alegação de que ela rompe com o pen-samento religioso a partir da apresentação de teorias que não são, justamente, consideradas como verdades absolutas, mas, como hipóteses a serem experimentadas. Quanto ao conhecimento cientí-fico, argumentou-se que é secular, ou seja, é valorizado à luz do contexto em que se vive, de modo a mudar de tempos em tempos. Assim sendo, defendeu que não é somente a Ciência responsável pelo valor atribuído ao conhecimento científico, mas também o sistema educativo que manipula o assunto inadequadamente em suas atividades de ensino.

A acusação debateu que o professor que ensina Ciência na escola também é um cientista e que, portanto, faz parte da comunidade científica e tem ampla responsabilidade pela forma como ensina Ciência. O professor, cientista, ensina Ciência de um modo abstrato, o que limita o ques-tionamento e o entendimento do aprendiz. Portanto, essas pessoas que fazem parte da comunidade científica, ou seja, trabalham com a Ciência, são as responsáveis pela concepção de que a lógica seria suficiente para a explicação de tudo. Ainda, a respeito da expressão “cientificamente falando”, expõe que é algo comum também a outras práticas produtoras de conhecimentos, como é o caso de “uma pessoa crente que usa ‘mas na Bíblia está escrito que...’”.

Em defesa da Ciência, o discente exerceu a tréplica explicando que as pessoas tratarem a Ciência de modo dogmático não implica em ela ser dogmática de fato. Sobre como a Ciência é ensinada na escola, defendeu que não é objetivo formar cientistas, mas pessoas que sejam capazes de consumir os produtos da Ciência. Por fim, acerca dos conflitos entre Ciência e Religião, afirma que a delimitação de ambas foi um passo necessário no movimento histórico, mas é algo que não necessita mais ocorrer atualmente.

Os Cientistas não são Imparciais

Para o aluno que apresentou a acusação, o ser humano “é corruptível e influenciável” e suas ações são facilmente compradas. O cientista não é, portanto, imparcial, tanto por esse motivo, quanto pelo motivo de ser muito difícil separar os valores que realmente importam na atividade científica daqueles que nada têm a ver com ela. Para exemplificar a corruptibilidade dos cientistas, o discente apresentou o caso de fraude relacionado a artigos publicados por pesquisadores de uma importante universidade americana por volta de 1960. De acordo com o aluno, uma organização, que envolve famosas empresas que comercializam produtos à base de açúcar, financiou cientistas

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em publicações que voltavam o foco dos problemas de saúde para o consumo de colesterol. Foi apresentada como prova, inclusive, matéria jornalística sobre o assunto.

Em resposta, a defesa usou o mesmo argumento construído pela acusação sobre o modo automático de atuação dos cientistas. Defendeu que, se dependesse apenas do cientista, seus méto-dos levariam a um conhecimento imparcial. No entanto, eles atuam em um sistema em que tudo gira em torno do capital, o que leva a crer que nenhum cientista consegue desenvolver bem uma pesquisa sem que dependa de financiamento e que, mesmo que consiga, pode haver um esquema semelhante à sabotagem, ou seja, barreiras criadas pelo capitalismo para pesquisas que não promo-vam o consumo e outras nuances do capital. Portanto, o fato de o cientista não ser imparcial está ligado à sua falta de autonomia.

A réplica da acusação pontuou que não é somente a corrupção em vista do capital que atra-palha a atividade imparcial na Ciência, mas também o fato de que as crenças e os valores pessoais dos cientistas não deixam nunca de interferir naquilo que eles fazem. Para complementar, outro dos promotores do grupo apontou que a Ciência teve seus tempos de glória, mas, no momento, ela serve a determinados valores sociais. O exemplo dado para corroborar a informação foi a de bombas que se concentram nas mãos de uma porção de pessoas que exercem poder pela capacidade que têm de destruir toda a humanidade.

Em tréplica, a defesa lança mão da definição do réu, que é a ciência, não o cientista. Se, por um lado, não é possível se esperar imparcialidade dos cientistas, por outro, a atividade cientí-fica (que é realizada não por uma pessoa cientista, mas por uma comunidade composta por vários sujeitos, dentre os quais, os cientistas) tem sua demarcação frente outras formas de produção do conhecimento por ser imparcial. Por fim, a defesa reiterou com vigor que a Ciência é o verdadeiro réu da acusação, não o cientista.

Não Existe Autonomia e Neutralidade na Ciência

A última acusação foi apresentada a partir da retomada de argumentos já expressados ante-riormente durante o julgamento. De acordo com o discente que expos a fala, estando em uma sociedade capitalista, torna-se impossível que a Ciência não seja financiada para gerar resultados valorizados por determinados grupos de interesse. Para reforçar seu argumento, o discente cita Jean-Paul Sartre ao propor que o ser humano é “produto do meio no qual ele vive”.

Ao defender a Ciência, o discente no papel de advogado argumentou que se, por um lado, há aspectos negativos na ausência da autonomia e da neutralidade na atividade científica, por outro, é bastante desejável. Não sendo autônoma e neutra, a Ciência acaba por ser dirigida por e para interesses sociais, e não apenas dos grupos que fazem a Ciência. Para reforçar o argumento, lançou ainda mão do exemplo da Ciência aplicada ao combate de doenças.

A acusação pareceu não ter argumentos relacionados à última fala da defesa, usando o poder da réplica apenas no sentido de acentuar, novamente, que a Ciência não pode ser neutra por conta do cientista, que não pode se livrar de seus valores pessoais; e que não pode ser autônoma, pois depende de recursos que a comunidade científica, sozinha, não possui.

Para finalizar o julgamento, a defesa argumentou que a impossibilidade de se defender a imparcialidade, a neutralidade e a autonomia da atividade científica não implica na impossibilidade de que ela funcione bem. Pelo contrário, talvez os problemas relacionados à Ciência venham do fato de não se assumir que ela ocorre não somente a partir de valores cognitivos, mas também de

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valores sociais, morais, éticos e, em grande parte das vezes, particulares dos cientistas. Assumir que a Ciência é influenciada por valores não cognitivos é um passo adiante no que se refere à evolução da Ciência.

Discussão da experiênciaO debate proposto e a experiência decorrente dele tiveram relevância dentro do componente

curricular em questão por permitirem que fossem avaliadas as concepções de Ciência, de cientista, de atividade científica e de comunidade científica possivelmente construídas a partir da abordagem conceitual baseada em Lacey (1998). Percebeu-se que, apesar da multiplicidade de referenciais apre-sentados, as ideias de Lacey (1998) e de Popper (2004) foram as mais, mas não as únicas, mobiliza-das pelos discentes participantes.

Sobre Ciência, é possível perceber a superação de ingenuidades referentes ao seu status frente a outras estratégias de produção do conhecimento. Afinal, o lugar “superior” que ocupa contem-poraneamente não se deve tanto à certeza de que seja o conhecimento mais certo, que representa o mundo tal como ele é; se deve, sim: em primeiro lugar, à sua capacidade de gerar tecnologias eficazes em controlar a natureza (LACEY, 1998) e de resolver problemas que limitam a vida humana; em segundo, às ingenuidades da população estimuladas pelos meios de divulgação científica, que pare-cem contar histórias de produção precisa de conhecimentos, sem falhas ou fracassos.

O poder gerado pela supervalorização da Ciência parece, ainda, se concentrar nas mãos de poucos. Sobre isso, foi possível perceber a concepção dos alunos participantes de que são diversos os fatores interferentes na acessibilidade à Ciência, dentre os quais, a educação e a condição financeira dos indivíduos. As críticas às ideias de que o consumo de tecnologias e o ensino escolar são meios de acesso à Ciência pareceu ser um grande avanço educacional por parte dos alunos. Fato que se pode ver corroborado nas ideias apresentadas em Freire (2005) e Chassot (2003) é que a alfabetização científica é um problema muito mais complexo do que parece.

Sobre o sujeito cientista, houve também diversas desmistificações. A mais expressiva foi da confusão que se faz do sujeito com a comunidade científica. Se a imparcialidade é uma tese possível de demarcação e defesa positivista da Ciência, isso ocorre por estratégias comunitárias, uma vez que o cientista, em particular, sempre estará a mercê de seus valores pessoais na produção de dados e seleção de teorias que compõem a pesquisa (LACEY, 1998).

A atividade científica também pareceu ser criticamente discutida pelos discentes. Sobre o assunto, a concepção popperiana de que a Ciência não produz verdades, mas, sim, teorias possíveis de serem falseadas (POPPER, 2004), foi um fator crucial nas discussões. Outra questão bem abor-dada foi a respeito da abrangência das teorias em decorrência de seus métodos. Afinal, a Ciência realmente dá conta de uma realidade que extrapola seus experimentos e observações? As discussões caminharam no sentido de que as teorias são apenas conjecturas da realidade e que passam por pro-cessos de correção sempre que novos dados surgem em contradição aos resultados esperados. Sobre isso, a ideia da teoria como verdade provisória ganha força a partir de Popper (2004), enquanto as críticas relacionadas à invulnerabilidade das teorias ao falseamento são bem apresentadas por Lacey (1998).

A noção de que a Ciência não é produto apenas do cientista, mas de uma comunidade que envolve outros cientistas e profissionais técnicos e administrativos variados, responsáveis por avaliar,

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JULGAMENTO DA CIÊNCIA: RELATO DE UM DEBATE4648

publicar, divulgar e organizar o conhecimento científico, pareceu corroborar com a noção de Bunge (1980) acerca da Ciência como um sistema concreto, e com as ideias de Lacey (1998) sobre o con-trole exercido por essa comunidade em relação aos valores adequados à produção científica.

Considerações finaisNo âmbito do ensino, a experiência com o Julgamento da Ciência foi muito válida. Os dis-

centes participantes demonstraram satisfação e declararam ter aprendido mais com a atividade que em qualquer aula expositiva sobre o assunto. Os comentários informais de colegas e outros alunos sobre os “murmúrios” sobre a atividade também corrobora acerca de seu valor educacional, princi-palmente pelo interesse causado.

Vale ressaltar que este trabalho, tratando-se de um relato de experiência, não teve a pretensão de investigar criteriosamente o conteúdo das falas dos participantes da atividade. A narrativa aqui apresentada parte apenas do entendimento subjetivo dos autores a partir da experiência direta com os acontecimentos e da escuta dos áudios gravados. Acerca disso, uma Análise de Conteúdo está sendo desenvolvida no intuito de investigar com mais precisão os tipos de concepções construídas e apresentadas durante o Julgamento da Ciência, em especial aquelas que puderem ser identificadas como ingenuidades (tópico evitado neste relato).

ReferênciasBUNGE, M. Ciência e Desenvolvimento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1980.

CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista Brasileira de Educação, n. 22, 2003.

FERNANDES, T. SciCast #200: Problemas na Ciência. Deviante, [S.l.], jun. 2017. Seção SciCast. Disponível em: <http://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-200-problemas-na-ciencia/>. Acesso em: 15 fev. 2018.

FREIRE, P. A. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 2005.

LACEY, H. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.

POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix, 2004.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS. Projeto Pedagógico do Curso de Ciências Biológicas Licenciatura. Dourados/MS: UFGD, 2016.

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UNIVERSIDADE DAS CRIANÇAS: CIÊNCIA, GÊNERO E A PRODUÇÃO DA NORMALIDADE 4649

UNIVERSIDADE DAS CRIANÇAS: CIÊNCIA, GÊNERO E A PRODUÇÃO DA NORMALIDADE

Juliane dos Santos Amorim (UFMG-ICB – Bolsista CNPq) Débora D’ávila Reis (UFMG – ICB)

Francisco Ângelo Coutinho (UFMG – FaE)

RESUMO: A proposta desde trabalho foi pautada em estudo realizado durante a disciplina de pós--graduação intitulada Ecologia das Práticas Científicas (2017.1) na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG. Interessa-nos, sobretudo, discutir a participação da ciência moderna na constituição dos padrões normativos de gênero. Tivemos como objeto de análise um banco de perguntas apresen-tadas por crianças (8-13 anos) dentro do projeto de extensão Universidade das Crianças UFMG. As perguntas selecionadas supostamente revelam a preocupação das crianças com a padronização e fisiologia do corpo feminino/masculino e também questões relacionadas ao gênero, essas questões foram discutidas à luz dos ensinamentos da autora Isabelle Stengers e outras autoras que discutem ciência moderna.PALAVRAS-CHAVE: Padrões normativos; Ciência; Gênero; Feminino

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende tematizar as relações entre as ciências modernas, as normas de gênero e a relação da mulher na ciência. Interessa-nos, sobretudo, investigar de que modo a ciência participa dos processos de constituição dos padrões normativos de gênero e da

cosntrução do feminino. Para isso, tomamos como ponto de partida perguntas feitas por crianças e pré-adolescentes (entre 8 e 13 anos) que participaram do projeto de extensão Universidade das Crianças da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

O projeto Universidade das Crianças é um projeto de extensão iniciado em 2006 como uma parceria entre o Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e o Núcleo de Divulgação Científica (NDC) da UFMG. Trata-se de uma iniciativa voltada para divulgação científica infantil na qual alguns participantes visitam escolas e, a partir de perguntas sobre o corpo humano apresentadas pelas crianças, iniciam um diálogo. Posteriormente, os participantes do projeto realizam pesquisa e discussão acerca das questões e produzem um texto de resposta, o qual será levado de volta à escola e apresentado e rediscutido com as crianças, através de uma metodologia própria, com oficinas, dinâmicas, respeitando o seu tempo, espaço e local, algumas perguntas também são transformadas em curtas de animação, e outros em ilustrações. Atualmente o projeto conta com participantes de uma multiplicidade de áreas do saber que vai desde às Ciências Biológicas até as Artes Plásticas, Antropologia e Educação.

Para realizar a discussão sobre gênero e o papel do feminino evidenciada nas perguntas das crianças, traremos algumas autoras que pesquisam esse tema, mas principalmente a autora Isabelle Stengers, uma pesquisadora físico-química, que se enveredou pela filosofia e história da ciência, que

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ultimamente, consagra-se a uma reflexão em torno da ideia de uma “ecologia das práticas”, de ins-piração construtivista, em suas obras emerge sempre uma tensão constante em direção a uma leitura política das ciências e em particular essa relação entre os poderes e os saberes.

A autora distancia-se do poder demarcatório que os epistemólogos se concedem, ao delimi-tarem o científico do não-científico, conforme se cumpra a “marcha progressiva das ciências” ou não (STENGERS, 1990). Por reconhecer este poder demarcatório dos epistemólogos, é que Stengers destaca-se destes. Contudo, ela não torna o poder como estranho à ciência, estando presente nos riscos dos operadores em produzir fatos e não artefatos.

PERCURSO METODOLÓGICOAo verificar as perguntas que constam num banco de dados do projeto de extensão da

Universidade das Crianças UFMG, selecionamos as perguntas que para nós revelam uma preocupa-ção com os padrões de normatividade de gênero e do ser feminino na sociedade (Tabela 1).

Tabela 1 – Perguntas selecionadas do banco de dados do Projeto de Extensão da Universidade das Crianças UFMG:

N° Perguntas Selecionadas1. Por que as meninas gostam de boneca e os meninos, de carrinho?2. Por que não temos a mesma aparência?3. Por que as mulheres são mais bonitas que os homens?4. Por que os homens são maiores que as mulheres?5. Por que somos diferentes? Por que não somos iguais?6. Por que as meninas desenvolvem primeiro que os meninos?7. Qual a parte mais importante do corpo da mulher?8. Por que o corpo dos homens são diferentes das mulheres?9. Por que os homens são mais fortes que as mulheres?10. O que o homem tem e a mulher não tem?11. Por que mulher tem peitos e homem não tem?12. Como as mães engravidam?13. Por que as mães tem que escolher o nome dos filhos?14. Por que as mulheres casam?15. Por que as mulheres são mais românticas?16. Por que as mulheres fazem unhas e os homens não?17. Por que tem mães que abandonam os filhos?18. Por que algumas mulheres tem barba?

DESENVOLVIMENTO DO TRABALHOEm uma determinada sociedade é possível, ao observar o corpo e seus gestos, contar a histó-

ria dos seus homens e de suas mulheres. Torna-se indispensável pensar sobre o processo de inscrição de marcas que se fazem com o tempo, como começam a existir e vão sendo inscritas nos corpos, construindo certas verdades sobre os corpos. Há que se salientar que algumas marcas, práticas cor-porais e delineações de gênero na infância não preexistem nos corpos dos indivíduos para serem reconhecidas e valorizadas, mas são produzidas, historicamente, culturalmente e socialmente.

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No projeto Universidade das Crianças, as perguntas apresentadas denunciam o quanto as crianças são afetadas pela normatividade dos padrões de gênero e do feminino/masculino na nossa sociedade. Questões que se referem tanto ao corpo biológico, como por exemplo:“Por que a mulher tem peito e o homem não?”, “Por que os homens são maiores que as mulheres?”, quanto ao modo de ser mulher na nossa sociedade, como: “Por que as mulheres são mais românticas?”, “Por que as meninas gostam de boneca e os meninos gostam de carrinho?” são comuns nos estudos de gênero. O debate acerca do significado dessas questões e das distinções anatômicas entre homens e mulheres põe em evidência dicotomias com as quais a produção de um argumento feminista necessariamente está preocupada: natureza/cultura, homens/mulheres, heterossexual/homossexual, sexo/gênero, etc.

De acordo com a autora Anne Fausto-Sterling (2000), no livro Sexing the Body, faz-se necessário a discussão sobre e compreensão do que ela denomina “falsas dicotomias”, como biolo-gia/cultura e essencialismo/construtivismo. A autora busca compreender de que maneira as diferen-ças sociais são atribuídas ao corpo e analisa as contribuições de várias vertentes teóricas, produzidas pelas ciências médicas, biológicas e sociais, que fazem referência às diferenças sexuais baseadas no corpo (cérebro, genes, hormônios e fisiologias masculina e feminina), para explicar possíveis varia-ções das habilidades, das capacidades, dos padrões cognitivos e da sexualidade humana.

No discurso da ciência do século XX o modelo do sexo único persiste. Como nos lembra Londa Schiebinger (2001: 212): “A noção da mulher como um homem incompleto ou imperfeito - um desvio da norma - serviu como um fundamento das perspectivas ocidentais da diferença sexual”. Ela alerta para o quanto a história da medicina foi afetada por esse olhar acerca da diferença sexual: a tendência a ignorar as diferenças sexuais não reprodutivas entre homens e mulheres foi tão forte que até a década de 1980 experiências clínicas com novas drogas realizadas pela Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos eram com frequência conduzidas apenas em homens.

A autora Isabelle Stengers (2002), no livro “A invenção da Ciência” , ao se referir ao movi-mento chamado de “crítica radical da ciência”, atribui à racionalidade científica, enquanto um dis-positivo meramente instrumental, a preponderância dos valores masculinos na sociedade. A crítica do movimento feminista radical, diferentemente de perspectivas feministas mais antigas, viam em algumas ciências, como na Medicina, História ou Biologia, a presença de valores ditos masculinos como a competitividade, e reivindica, com isso, a totalidade das ciências enquanto “produto social sexuado”.

Stengers reconhece o movimento da “crítica radical das ciências” como um movimento de resistência do feminino diante do masculino na ciência. A autora salienta ainda que as colocações desse movimento conferem à ciência um lugar privilegiado de poder, uma vez que a ela é dada a função de definir os limites sociais e políticos. Ora, adverte Stengers, “os cientistas, os técnicos e os experts não estão em questão, estão à espera, como todos os demais, dos limites do poder de expan-são de uma dinâmica que os define para além de suas intenções e de seus mitos” (STENGERS: 2002, p. 21).

Outro ponto frágil na sociologia das ciências, este com respeito à crítica radical, mas não aos relativistas, é o fato de que, ao adotarem um vetor de crítica a priori, seja a técnica (no caso da tecnociência) ou os valores masculinos (no caso da crítica feminista), a crítica radical esquiva-se das controvérsias e das práticas propriamente científicas, bem como da heterogeneidade do campo científico, marcada, frequentemente, por uma divisão entre vencedores e vencidos.

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Stengers (1989) nos traz um exemplo quando ela nos apresenta a ciência de Barbara McClintock, uma mulher, cientista, singular, e a intervenção essa pesquisadora veem provocar nas ciências com o seu modo de produzir conhecimento. A Barbara McClintock trabalha fazendo pes-quisa com embriologia nos cultivares de milho, e o que é interessante segundo Stengers (1989) é seu modo de fazer pesquisa, pois ela faz a ciência com o milho e não sobre o milho. Num mundo em que fazer ciência era colocado como uma atividade masculina, em que pouco espaço e pouco reconhecimento era dado às mulheres, McClintock tentava ultrapassar a questão de gênero e queria ser reconhecida pelo seu valor como cientista.

Segundo Stengers (1989), o fazer ciência no feminino não é para reduzir o conhecimento que produzimos ao fato de sermos mulheres, reiterando por esse caminho, mais uma vez, um apelo a uma natureza que ao mesmo tempo nos transcende e nos subjuga e categoriza. Não é tampouco para esquecermos que somos mulheres fazendo ciência. Dizer que fazemos ciência no feminino tem o sentido de afirmar as marcas que nos constituem, marcas que tatuam nossas peles, se inscrevem em nossos corpos, fabricam nossos olhos, afinam nossos ouvidos.

Nós, do projeto Universidade das Crianças, acreditamos ser importante repensar como esses mecanismos de construção do feminino/masculino e de gênero, que estão presentes na ciência, são encontrados também no campo da educação de meninos e meninas. Esses mecanismos atuam dei-xando marcas inscritas em seus corpos, normatizando-os, disciplinando-os, regulando-os, contro-lando-os e constituindo neles comportamentos, posturas, verdades e saberes sobre o ser masculino ou feminino, ou, ainda, sobre ser menino ou menina.

Assim, retomando às questões, a causa das diferenças sociais entre homens e mulheres estaria localizada nas relações de gênero, ao passo que as diferenças biológicas podem ser atribuídas à natu-reza em função do dimorfismo sexual da espécie. Esse tipo de abordagem desfrutou de popularidade nas teorias de gênero entre as décadas de 1960 e 1970, no entanto o modelo encontrou problemas. O discurso que mantém o ‘sexo’ como um dado da natureza independente do contexto cultural omite alguns aspectos da questão, como o próprio papel desempenhado pela tecnociência moderna em sua produção.

Nas palavras da bióloga Donna Haraway (2004: 225) “Como raça, sexo é uma formação ‘imaginária’ do tipo que produz realidade, inclusive corpos percebidos então como anteriores a toda construção.” Evidentemente, ficções não são opostas a realidades aqui. De fato, os trabalhos de Haraway tem elaborado um projeto de “objetividade corporificada” (1995: 18) uma epistemologia capaz de reconhecer simultaneamente a objetividade e a eficácia dos saberes que produzimos e o caráter localizado e contextual de seus processos de produção. Objetividade corporificada significa olhar para a história da ciência e reconhecer a parcialidade de nossas perspectivas. Significa reconhe-cer que os objetos que emergem de laboratórios – sejam eles micróbios ou sexualidades – são efeito de interações complexas entre métodos e tecnologias de visualização, corpos, demandas mercadoló-gicas, intencionalidades humanas, aparato conceitual e políticas estatais.

Ao se observarem algumas perguntas retiradas do banco do projeto Universidade das Crianças, como “Por que os homens são maiores que as mulheres?” ou “Por que os homens são mais fortes que as mulheres?” nota-se que elas refletem esse modelo sexual binário onde o sexo masculino sobres-salta o sexo feminino. O autor Laqueur (2001) diz em seu livro que esse surgimento do sexo binário acontece nos fins do século 18, pois os revolucionários europeus (franceses, sobretudo) precisavam justificar a tradicional desigualdade entre homens e mulheres, de modo a torná-la compatível com

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os ideais igualitários republicanos. Todos os “homens” eram iguais, mas as mulheres eram mental-mente frágeis, infantis e, por conseguinte, estavam incapacitadas para exercer as tarefas intelectuais, científicas e políticas dos homens. Não por serem “imperfeitas”, do ponto de vista ontológico, mas por serem diversas, do ponto de vista biológico.

Finalizando essa discussão e lembrando do papel importante que as “perguntas” das crianças tem para o projeto Universidade das Crianças, e porque devemos valorizar essa curiosidade, como a própria autora Isabelle Stengers diz na entrevista feita por Dias et al. (2016) ao relatar seu ponto de vista quando se trata de divergência e de perguntas:

“Acho que você sempre tem uma escolha, mas fazer uma pergunta que viaje tem a ver com uma forma de contraste positivo que eu chamo de divergência. Uma divergência não é uma discordância. Você diverge e ao mesmo tempo cria. Divergir é uma maneira de criar algo que tenha importância. Você cria a si mesmo e o que importa para você em processo divergente. Tentar entender a divergência e não descobrir a semelhança, nem generalizar: eis o ponto das questões genéricas, questões que devem suscitar divergên-cias.” (DIAS et al., 2016, pag. 167).

CONCLUSÃOAs perguntas do banco do Universidade das Crianças nos revelam uma preocupação em se

opor parte dos(as) participantes em se encaixar nos padrões normais de homem/mulher do modelo binário. Possivelmente influenciadas pelas aulas de ciência, onde não raramente os temas sexo e sexualidade são vistos apenas a partir de características anatômicas, biológicas e físicas enquanto questões relacionadas a gênero e suas construções socioculturais são raramente abordadas.

Assim como Isabelle Stengers, nós do projeto Universidade das Crianças UFMG acredita-mos que uma outra ciência é possível, mas ela exige aquilo que, hoje em dia, é para a maioria dos cientistas uma perda de tempo, reapropriar-se da imaginação necessária e se abrir às preocupações dos outros, aos seus saberes, às suas objeções, assim acreditamos no quanto é necessário existir cien-tistas capazes de participar de uma inteligência coletiva pensando nos problemas sociais.

REFERÊNCIASDIAS, J. P.; BORBA, M.; VANZOLINI, M.; SZTUTMAN, R.; SCHAVELZON, S. Uma ciência triste é aquela em que não se dança. Conversações com Isabelle Stengers. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 59, n. 2, p. 155-186, oct. 2016.

FAUSTO-STERLING, A. Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. New York: Basic Books, 2000.

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp, pp.7-41. 1995.

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HARAWAY, D. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cad. Pagu [online], n.22, pp.201-246. ISSN 0104-8333. 2004.

LAQUEUR, T. Inventando o Sexo – Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2001.

SHIEBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? Bauru: EDUSC. 2001.

STENGERS, I. A Ciência no Feminino. Revista 34 Letras, (5/6), 427-431. 1989.

STENGERS, I. “Quem tem medo da ciência?: ciência e poderes”. São Paulo, Siciliano. 1990.

STENGERS, I. A invenção das Ciências Modernas. São Paulo, Editora 34. 2002.

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HIGIENISMO E EDUCAÇÃO: DISCURSOS DOS CIRURGIÕES DENTISTAS NA IMPRENSA PARAENSE NO INÍCIO 4655

HIGIENISMO E EDUCAÇÃO: DISCURSOS DOS CIRURGIÕES DENTISTAS NA IMPRENSA PARAENSE NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Marcelino Carmo de Lima (IEMCI – UFPA) Luiz Carlos Silva Conceição (IEMCI – UFPA)

José Jerônimo de Alencar Alves (IEMCI – UFPA)

Resumo: No Estado do Pará, no início do século XX, os discursos higienistas foram difundidos pelos profissionais da área da saúde. Em parte, esses discursos tinham propósitos pedagógicos. Analisando os jornais da época pudemos constatar algumas matérias assinadas por cirurgiões den-tistas referentes à relação entre higienismo, odontologia e educação. Nosso propósito é analisar esses discursos no sentido de compreender como as propostas dos cirurgiões dentistas se inscreveram nos discursos higiênicos da época, relacionados à educação. Esses discursos propunham estabelecer o ensino especial da higiene relacionada à saúde bucal nas escolas públicas, especificamente, por pro-fissionais diplomados na área da odontologia. Palavras-chave: higiene, educação, cirurgiões dentistas, escolas públicas, Pará.

Introdução

Hoje, muitos temas como higiene corporal e saúde, orientação sexual, alimentação saudável, estão em varias disciplinas, através dos Temas Transversais, recomendados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Entretanto, eles têm sido alvo de discussão quanto a sua

conformação, abordagem e até mesmo a sua permanência no currículo escolar. No inicio do século XX, esses temas estavam, em grande parte, relacionados a uma disciplina chamada Higiene, que era um campo de conhecimento dominante e que tinha intensa penetração nos currículos das escolas. Retomar, através da análise histórica, essas questões higiênicas dessa época, no sentido de contribuir para trazer subsídios para essas discussões, tem sido uma prática recorrente. Alguns autores têm contribuído para a compreensão dessa associação entre Higiene e Educação.

Stephanou (1999), em sua tese de doutorado sobre os discursos “médico-higienistas” na educação, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul, buscou compreender esses discursos e a constituição de práticas médicas nas escolas, bem como, a emergência de uma educação sanitária mais abrangente, voltada para a população das cidades.

Viana (2015) analisou a relação entre educação e higienismo, na Amazônia, nos periódicos educacionais na passagem do século XIX para o XX, a fim de compreender como essa relação con-tribuiu para colonialismo nessa região.

As análises sobre a penetração dos discursos higienistas no Brasil, no campo da educação, têm despertado a atenção de muitos autores, além de Stephanou, tais como Gondra (2004), Vivianni (2007), Ferreira (2003). Essas análises têm focalizado, sobretudo, as localidades mais urbanizadas do país, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Quanto à Amazônia, como vimos, Viana analisa os discursos higienistas nos periódicos educacionais que circularam em Belém do

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Pará no período entre 1891 a 1912. Entretanto, para se ter uma compreensão histórica mais ampla do impacto dessa área do conhecimento no âmbito educacional nessa região, ainda há muito a se pesquisar.

Analisando jornais da época encontramos algumas matérias referentes à relação entre higiene, odontologia e educação. Pretendemos analisar essas matérias com o propósito de compre-ender como as propostas dos cirurgiões dentistas da época se inscreveram nos discursos higiênicos da época, relacionados à educação. Para isso, foram analisados os jornais publicados na década de 1910.

Nesta pesquisa foi realizada uma busca através da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, nos jornais A Província do Pará, Folha do Norte e Estado do Pará, no período entre 1900 e 1920. A busca realizada através de palavras-chave como higiene, saúde, odontologia e dentista, e fez parte de uma pesquisa mais ampla, cuja intenção era obter fontes para a construção de uma Dissertação de Mestrado1. É importante sublinhar que, nesta pesquisa, apenas no jornal Estado do Pará encon-tramos dados relevantes para a atual análise, que consistem nos artigos assinados por cirurgiões dentistas.

Alguns autores têm mostrado que o ensino de ciências e biologia deve possibilitar que o aluno adquira uma postura crítica em relação aos conteúdos trabalhados e, principalmente, ao processo de construção do conhecimento e que a história da ciência e da educação teria o papel de abrir esse mundo de possibilidades. Este estudo trata da verificação da inserção de preocupações de profissionais sobre questões de saúde humana. Ele se insere em uma área específica da história da educação brasileira, que busca compreender os processos pelos quais as práticas de saúde alia-das a educação, tiveram seu momento inicial e sua consolidação no âmbito educacional brasileiro. Estudos como este são relevantes, pois possibilitam conhecermos as relações que envolveram a cons-trução de um campo de saber, como é o exemplo da higiene e sua inserção no campo educacional, tendo a possibilidade de contribuir para a compreensão, no ensino de ciências e biologia, das práti-cas discursivas que fundamentaram a higiene como um campo de conhecimento ligado à educação.

Higienismo e Educação: do Brasil para a AmazôniaA penetração dos discursos higienistas na Amazônia não foi algo isolado, mas sim reflexo de

um movimento higienista mais amplo que vinha se expandindo nos centros mais urbanizados do país, a partir das origens europeias. Para compreender esse processo na Amazônia, antes, retoma-remos a esse processo em outras regiões do país, conforme se pode observar em algumas análises.

Nesse período, algumas cidades brasileiras passaram por um processo de urbanização que alterou seus espaços físicos e o modo de viver de suas populações, sobretudo a capital do país. Sanitaristas e higienistas estavam na vanguarda dos projetos dessas cidades rumo à modernidade e ganharam importância social dentro desse contexto, sendo reconhecidos como os possuidores de um conhecimento “verdadeiro”, que “atribuía à higiene um caráter exorcizador até então desconhe-cido e à saúde uma extensão impensada” (STEPHANOU, 2005, p. 147).

O higienismo foi uma corrente médica que se estendeu durante o século XIX, e teve funda-mental importância nesses processos de medicalização. Essa corrente tinha a preocupação com vários

1 A pesquisa a qual nos referimos foi a Dissertação de Mestrado defendida por Marcelino Carmo de Lima, em 2016.

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aspectos da vida humana, principalmente com o meio e com a saúde das populações, construindo mecanismos de controle social por meio da proteção ao trabalho, saúde e habitação (VIVIANI, 2007).

O discurso higienista, abrangia o campo da medicina bacteriana, da fisiologia, demografia, pedologia e puericultura, e reivindicava o estatuto da racionalidade científica, utilizado para legiti-mar a intervenção estatal sobre vários aspectos da vida humana a fim de direcionar o corpo social rumo ao progresso (VIVIANI, 2007; ALVES, 1997).

Na transição do século XIX para o século XX, a escola passou a ser alvo do discurso higienista. Estes discursos se difundiam através de “conferencias e artigos educativos divulgados na imprensa da época ou transmitidos pela radiodifusão” (STEPHANOU, 2005, p. 145).

Higiene e Educação na imprensa local: os discursos dos cirurgiões dentistas

Esses discursos que atingiram as capitais mais urbanizadas do país também penetraram com efeitos similares na cidade de Belém, que foi transformada pelos produtos materiais e ideológicos vindos da Europa. O boom econômico ocasionado pela exportação do látex permitiu a entrada ace-lerada de novos projetos modernizadores nessas capitais, inclusive os relacionados com os discursos de Higiene, tais como os que analisaremos a seguir.

No artigo Ensino especial da higiene da boca, publicado no jornal Estado do Pará, o cirurgião dentista Magno e Silva2, se refere ao movimento de criação de um ensino especial da higiene bucal nas escolas públicas. Ele afirma que esse movimento vinha despertando a atenção dos governos de alguns países da Europa, ou seja, que seriam avançados ou modernos, demonstrando interesse em implantar a higiene bucal nas escolas.

O interesse que, nestes últimos anos, vem despertando a atenção dos governos europeus sobre a necessidade da criação, nas escolas públicas, do ensino especial da higiene da boca, mostra-nos o quanto eles se interessam pelo bem que isto, em larga soma, poderá trazer aos seus concidadãos. (SILVA, 1911, p. 1).

Assinala, ainda, que em decorrência disso, por toda parte estariam surgindo “associações e corporações científicas encarregadas, todas elas, de melhor estudar as bases dos seus programas” que, uma vez aceitos, seriam postos imediatamente em prática. Justifica os benefícios que uma medida como essa traria, argumentando sobre os resultados “colhidos em ensinos similares”, espalhados por vários lugares no continente europeu, que ele considerava ser uma medida de elevado alcance. Isto porque os governos passaram a exigir, de maneira obrigatória, a fiscalização dos exames dentários, nos lugares em que se fazia necessário, desde as escolas públicas (onde a quantidade de crianças pobres era maior) até as instituições de ensino superior. Ele também ressaltou que esse fato, mesmo parecendo ser apenas uma exigência de classe, portanto, sem prerrogativa para ser considerada pelos poderes públicos, não deixou de ser atendido nesses locais. (SILVA, 1911, p. 1).

2 O cirurgião dentista Antonio Magno e Silva obteve o diploma Cirurgia Dentária em curso de odontologia anexo da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Escola Livre de Odontologia do Pará, criada em 1914, onde atuou como professor da cadeira de Clínica Odontológica e diretor, entre os anos de 1916 a 1938. Para mais detalhes, ver a Dissertação de Mestrado de Lima (2016a).

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A iniciativa de tornar obrigatório o ensino especial da higiene bucal nas escolas, segundo cirurgião dentista Magno e Silva, havia sido originada na Rússia em 1896, quando os dentistas russos fizeram uma petição ao ministro do interior, para a organização de uma repartição dentá-ria naquele país. Essa ideia, logo teria se tornado realidade e conseguido adeptos, se expandindo para várias regiões como França, Alemanha, Japão, Inglaterra, Suécia, entre outros. Nesses países, segundo Silva, onde por imposição liberal, de utilidade pública, esses ensinamentos haviam pro-duzido grandes benefícios, dos quais menciona que somente em 1908 no México “os dentes de meninos de 250 escolas” haviam sido examinados e todos precisavam de cuidados.

Existem pesquisas no âmbito da história da educação que demonstram que esse movimento ao qual se refere o cirurgião dentista paraense, já havia chegado às regiões mais urbanizadas do Brasil no início do século XX.

De acordo com Mott et al (2008. p. 106), o dentista Frederico Eyer, que foi “inspetor geral da Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar de São Paulo e grande defensor da prevenção e do tratamento dos dentes das crianças”, atribui à cidade de São Paulo um papel pioneiro nesse campo, no Brasil. Assinalam, ainda, que

Em 1908 a Associação Odontológica Paulista nomeou uma comissão para inspecionar os dentes das crianças que frequentavam escolas públicas na capital. A partir da década seguinte começaram a funcionar dispensários junto às escolas da capital paulista e do interior do estado, destinados ao tratamento de dentes das crianças pobres e patrocina-dos por senhoras da elite (MOTT, et al, 2008, p. 106).

Magno e Silva assinala que em vários locais onde já havia sido instalado o programa, a maioria das crianças carecia de tratamentos dentários e, conforme os exemplos, do mesmo modo se poderia avaliar o que estaria ocorrendo nas escolas paraenses e o resultado prático que a sociedade teria no dia em que fosse “também obedecida a praxe daquele ensino” nas escolas paraenses. Magno e Silva afirma que apesar de ser uma nação nova, o Brasil, assim como as nações do velho mundo, estava progredindo a passos vertiginosos, no que se refere às ciências. Dizia ele, ao apresentar sua proposta, que a própria odontologia não era “a mesma exercida nos lendários tempos hipocráticos”, visto que havia “evoluído sensivelmente”, sendo considerada parte integrante da medicina. Magno e Silva demonstra em sua fala que do norte ao sul do país, “odontologistas distintos” (portanto dedicados e qualificados) estavam empenhados “pela mesma teoria, pregando pela tribuna, pela imprensa, pela palavra, o mesmo valor desses conceitos, que, talvez”, num futuro não muito distante pudessem ser tomados como “objeto de consideração por parte dos poderes competentes”. Pois assim

(...) os governos dos Estados, empenhados como se acham na magnânima obra de remo-delamento do ensino primário, prestariam inestimável benefício à infância se, ao lado dos novos métodos de instrução, introduzidos nas escolas, colocassem uma assistência de Clínica Odontológica. (SILVA, 1911, p. 1).

Evidente que essa teoria a qual se refere o cirurgião dentista paraense Magno e Silva, trata--se do movimento de surgimento de vários estabelecimentos, cuja finalidade seria proporcionar os cuidados dentários das crianças nas escolas públicas, nesse período. Como por exemplo, a comissão

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para inspecionar os dentes das crianças da Associação Odontológica Paulista, criada em 1908 e o Dispensário Dentário Escolar de São Paulo, criado em 1912 (MOTT, et al, 2008; MARTINO, et al, 2010).

É importante ressaltar que a proposta de introdução da odontologia nas escolas era algo muito mais abrangente que a tarefa de educar sobre a higiene bucal, que pudesse ser realizada pelos professores. Não se tratava apenas de instruir as crianças sobre os cuidados bucais. Esse processo deveria ser feito pelos profissionais da odontologia, pois “assim, facilmente seria zelada a saúde das crianças e inculcada no seu cérebro, por profissionais competentes, a necessidade de cuidarem de seus dentes”. (SILVA, 1911, p. 1). Cabe ressaltar, ainda, que esse era um momento em que a medi-cina (e a odontologia era considerada parte dela) estava voltada para a educação, demonstrando através de iniciativas de assistência e proteção à infância, bem como a prescrição de práticas ade-quadas para o cuidado das crianças pelas famílias, desde a lactação, o crescimento, a educação e o desenvolvimento mental (STEPHANOU, 2005, p, 148).

Magno e Silva analisa em tom de crítica a maneira como se constituía a prática dos profes-sores no que se refere ao ensino dos princípios da higiene bucal. Segundo ele, as crianças geralmente tratavam os dentes de maneira menosprezada, sobretudo, “nos colégios, onde, se não possuem quem esteja incutindo no espírito a ideia de sua conservação, pouco se lhes dão que a cárie os vá inutilizando” (SILVA, 1911, p. 1). Para ele, no que diz respeito aos cuidados da higiene bucais, seria necessário que os cirurgiões dentistas interferissem no ensino nas escolas, pois somente mais tarde é que as crianças iriam compreender o mal que a falta de cuidado ou do zelo adequado poderia cau-sar. Assim, era um dever que consistiria aos dentistas de instruir as crianças, no sentido de mostrar os sofrimentos que poderiam passar, prejudicando a saúde e privando-as até mesmo do tempo de estudo.

Nesse momento, entre os motivos de preocupação com a saúde das crianças, a boca era con-siderada porta de entrada de várias doenças como, por exemplo, a tuberculose. Havia a crença na relação direta entre a saúde dos dentes e a saúde física e mental das crianças, inclusive entre dentição, delinquência e aproveitamento escolar, o que motivou dentistas e educadores a implantar serviços e iniciar campanhas pela necessidade do uso de escovas e dentifrícios (MOTT, et al, 2008, p. 105).

Alinhado às noções de higiene da época e ao pensamento da “era bacteriológica”, Magno e Silva (SILVA, 1911, p. 1) afirmava que “a boca, pelo estudo dos micro-organismos, é um perfeito receptáculo de germens, que aí vivem esperando simplesmente uma oportunidade para, no pri-meiro ato de descuido, atacarem-nos como inimigos traiçoeiros”. Dessa forma, se a ciência estaria emprestando armas para eles lutarem contra esses ataques, porque não utilizá-las, sendo que a higiene dentária não teria outra finalidade senão a de “prevenir os dentes ou, de um modo mais geral, a boca, contra as ações nocivas desses parasitas?”. Com isso, ele também destaca o caráter da superioridade da ciência ao afirmar que “ela estabelece regras tão seguras e infalíveis que basta, apenas, para isso, que saibamos conhecer a natureza dos agentes morbígenos e as circunstâncias que concorrem como elementos poderosos, para favorecerem a sua ação no nosso organismo”. A natu-reza infalível da ciência tem mais uma demonstração quando relata o método pelo qual as doenças são combatidas. “Assim, de posse desses elementos, ela destrói os focos de infecção em sua origem e aniquila completamente o poder nocivo desses germens”.

Magno e Silva prossegue argumentando sobre a importância de se ter cuidados com a saúde bucal. Elencando algumas funções dos órgãos relacionados à boca, ele considerava ser “inegável que

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uma boca sã, com os dentes bem conservados, seja para a face um belo ornamento; e ao contrário disto é a impressão má que sempre nos causa uma boca desguarnecida de dentes”. Portanto, seria mais que uma necessidade que eles, os cirurgiões dentistas, ensinassem às crianças a persistência na conservação dos dentes. E enquanto não pudessem “possuir esses ensinamentos, professado nas escolas”, que fossem eles “os dentistas os seus mestres, falando-lhes nas conferências públicas e escrevendo-lhes pelas colunas dos jornais e pelas páginas dos livros” (SILVA, 1911, p. 1).

A ideia de utilizar exemplos de outros países, considerados modernos, para valorizar a prá-tica odontológica que se pretendia instalar nas escolas públicas, continua, se estendendo também a fala de outro cirurgião dentista paraense, Julio Muniz3. Essa proposta de se introduzir os ensina-mentos de higiene bucal nas escolas também foi um assunto abordado em um artigo publicado no jornal Estado do Pará, em 1915. O artigo intitulado Higiene Oral: A árvore de Natal da Sociedade Dentária do Pará às criancinhas indigentes de Belém. Nesse artigo, ele afirma que na Europa e nos Estados Unidos, onde a higiene pública dentária já havia se consolidado, os cirurgiões dentistas estariam recebendo apoio das variadas instâncias dos Estados.

Não é de admirar, portanto, que a higiene pública dentária seja uma questão interna-cional. E, assim, na Europa e na América onde o resultado prático das clínicas dentá-rias já está reconhecido, os cirurgiões dentistas não trabalham sozinhos. O Governo, os Departamentos dos Estados, e todas as organizações militares, escolares e hospitalares, contribuem com a sua parte de trabalho e auxílio. (MUNIZ, 1915, p. 1).

Para corroborar suas afirmações, Muniz detalha os diversos países da Europa além dos da América do Norte, onde os cirurgiões dentistas teriam dado inúmeras contribuições para os serviços de dentários nas escolas e uma infinidade de estabelecimentos teria sido criada para atender a esses serviços dentários. Essas medidas seriam fatos que já vinham ocorrendo em várias regiões conside-radas desenvolvidas, principalmente na Europa.

Na Grã-Bretanha foram Firber e Cunningham quem introduziram a prática de exa-minar a boca da criança no ato da sua admissão escolar. Na Dinamarca e na Suécia, Christensen, Forberg, Haderup e Lenhaldtson estabeleceram, também, o cuidado den-tário escolar. Na Alemanha, o Dispensário de Estrasburgo, na Alsácia, sob a proficiente direção do professor Ernest Jessen, é um modelo no gênero que serviu de exemplo para os seus 213 estabelecimentos congêneres. A Suíça, a Noruega e a Rússia estabeleceram clínicas semelhantes. Só Londres contém vinte Dispensários Dentários, e a América do Norte apresenta o seu magnífico Dispensário Modelo: o Forsyth de Boston, onde mais de 2.000.000 de crianças possuem o direito de ser examinadas e tratadas! (MUNIZ, 1915, p. 1).

Como se quisesse demonstrar a importância desses serviços para a sociedade paraense, o cirurgião dentista Julio Muniz ressaltou que somente esse “cuidado internacional dentário nas esco-las deve bastar para provar o seu resultado benéfico”.

3 Diplomou-se Cirurgião Dentista pela Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1915 foi convidado para assumir a cadeira de Prótese e Técnica Odontológica na Escola Livre de Odontologia do Pará. Para mais detalhes, pesquisar os trabalhos de Lima (2016ª) e Lima et al (2016b).

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O artigo citado trata de uma festa de natal – inspirada em uma organizada pelo Dispensário Dentário da cidade de Detroit nos Estados Unidos – onde seria montada uma árvore contendo, ao invés de presentes, objetos de higiene oral, para cuidados bucais das crianças pobres de Belém. Essa festa teria caráter humanitário, visto que a ideia era que ela fosse realizada pelos membros da Sociedade Dentária do Pará4 em parceria com as damas da sociedade belemense.

O meu distinto colega e amigo, dr. Alberto Pereira, presidente da Dentária do Pará, apresentou, anteontem, na sessão mensal ordinária dessa agremiação, a proposta, por unanimidade aceita, de fazer-se, no próximo dia de Natal, uma festa semelhante à do Dispensário Dentário de Detroit. Já foram fornecidas inúmeras listas a distintas senho-ras e senhoritas no nosso “set”. Essa festa de caridade que prestará um real benefício às pobres criancinhas de Belém, realizar-se-á na manhã de 25 de Dezembro vindouro, num dos nossos mais conhecidos e benquistos grêmios esportivos. (MUNIZ, 1915, p. 1).

Embora o artigo escrito por Julio Muniz tenha como foco central a realização de uma festa beneficente, em seu conteúdo aparecem vários discursos ligados à higiene, e especificamente à higiene oral para as crianças, tendo como pano de fundo as escolas para a sua aplicação prática.

Aliado ao discurso da caridade, o discurso higienista, que teve presença marcante no início do século XX, tanto no âmbito nacional como local, passa a ser defendido pelos cirurgiões dentistas com uma serie de argumentos que buscam convencer a sociedade e o poder público da importân-cia dessas práticas. Conforme assinalam Pykosz e Oliveira (2009), esses argumentos procuravam garantir a necessidade do poder público investir na implantação de um conjunto de dispositivos, os quais teriam como finalidade principal a educação dos corpos dos alunos das escolas públicas, via inculcação de preceitos higiênicos.

A ideia de realizar um natal que contemplasse as crianças da classe pobre, além de exercitar a prática da caridade, conforme o discurso de Muniz, também seria uma ótima oportunidade para fazer propaganda da higiene oral. Ele afirma que “a árvore de Natal da Sociedade Dentária do Pará significará o seu modesto concurso a essa solenização patriótica, e o seu primeiro passo em prol da Propaganda de Higiene Oral, que se propôs fazer”. Para ele, “a base fundamental da higiene pública bucal”, estaria “no cuidado que se deve ter com as crianças das Escolas”. Entre os argumentos dos quais nos referimos anteriormente, Julio Muniz utiliza o recurso de autoridade para corroborar seu pensamento, citando uma referência estrangeira, Ernst Jessen, cirurgião dentista alemão, ao afirmar que: “salvar o primeiro molar permanente; prevenir o desfiguramento e o mau desenvolvimento dos dentes e dos maxilares; manter em condições saudáveis a boca de uma criança é colocar um alicerce útil na sua vida individual” (JESSEN apud MUNIZ, 1915, p. 1). Segundo ele, a tarefa das clínicas dentárias escolares seria, portanto, eliminar os dentes estragados e cuidar dos saudáveis.

Assim como Magno e Silva, cirurgião dentista citado anteriormente, Julio Muniz se vale de argumentos que se referem a outros países para convencer a sociedade paraense da importância de suas práticas. Segundo Muniz, esse movimento de expansão dos cuidados dentários nas escolas, mundo afora, seria suficiente para comprovar os benefícios deste empreendimento, cuja Sociedade

4 A partir de 1915, surgiram registros sobre a Sociedade Dentária do Pará no jornal Estado do Pará, informando sobre reuniões de seus membros. Entretanto, ainda não foram encontrados outros registros sobre ela, como Estatutos, Atas das Reuniões, etc.

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Dentária do Pará, objetivava implantar nas escolas públicas da cidade de Belém, a exemplo do que vinha ocorrendo em outros países, e até mesmo no Brasil, como é o exemplo de São Paulo.

Ele afirmava, ainda, que “o efeito moral de uma festa assim”, seria “incontestável”, pois pro-vocaria “nas crianças, junto a um sentimento de prazer, uma reflexãozinha de que não se deve recear o dentista”. Esse trecho da fala de Julio Muniz evidencia uma preocupação dos cirurgiões dentistas da época, que diz respeito ao temor ao dentista por parte da população. É importante ressaltar que mesmo depois da descoberta da anestesia, ocorrida por volta da primeira metade do século XIX (REZENDE, 2009), o medo ainda persistiu (ou ainda persiste) por muito tempo e, isso era visto como um fator negativo para a aceitação buscada pelos cirurgiões dentistas perante a sociedade paraense (LIMA et al, 2016b). Embora, já houvesse métodos de extração e cuidados dentários uti-lizando a anestesia muito antes desse período pesquisado, em muitos lugares, a anestesia ainda não havia sido introduzida, ou ainda era uma prática pouco comum.

Considerações Finais Neste artigo tivemos como objetivo analisar alguns artigos de jornal, assinados por cirurgiões

dentistas, veiculados na imprensa paraense, no sentido de compreender como suas propostas sobre a higiene se inscreveram nos discursos higienistas da época relacionados à educação. Conforme apresentado no texto, pudemos observar que de modo geral, através das escritas dos dentistas, houve propostas de intervenção direta na prática educacional nas escolas, cuja intenção era provocar mudanças nos hábitos higiênicos dos escolares paraenses, no que diz respeito à higiene bucal.

Notamos, ainda, que os dentistas pretendiam que a introdução do ensino de higiene odon-tológica nas escolas não fossem apenas de caráter teórico, e sim que incluíssem um ensinamento prático, que imprimisse a incorporação de hábitos e costumes de higiene por parte dos estudantes em relação à saúde bucal, inclusive pela aceitação e requerimento, e a não rejeição ou temor do pro-fissional da odontologia. Esses ensinamentos deveriam ser feitos pelo profissional especializado em odontologia e não por professores e outros profissionais não especializados nesse campo de conheci-mento. Assim, pretendiam introduzir na escola um espaço para a atuação profissional, requerendo para isso, a criação de clínicas dentárias para o tratamento dentário dos alunos, associadas ao espaço educacional.

No que se refere à abrangência da análise proposta neste artigo, consideramos de importân-cia crucial para entendermos os processos pelos quais um campo de conhecimento é construído, como uma área de saber como a higiene é inserida no campo educacional. Abordagens como esta trazem um pouco da história das múltiplas relações que se inscrevem em determinados contextos, na construção do conhecimento. Permite vislumbrar como os profissionais da saúde tiveram parti-cipação intensa, se constituindo, assim como seus saberes, peças importantes no cotidiano escolar. Entretanto, para se ter uma compreensão mais abrangente de um processo complexo como a histó-ria da educação brasileira, ainda há muito a se pesquisar.

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CIÊNCIAS E FILOSOFIA EM UMA TURMA DO ENSINO MÉDIO DA ESCOLA JOSÉ 4665

CIÊNCIAS E FILOSOFIA EM UMA TURMA DO ENSINO MÉDIO DA ESCOLA JOSÉ MARIA HUGO RODRIGUES

Nádia Caroline Sobrinho Gauna (EEJMHR) Luiz Felipe Faria Rodrigues (EEJMHR)

Pedro Inácio Marcelino Cardozo (EEJMHR) Vera de Mattos Machado (UFMS)

Resumo: A Escola Estadual José Maria Hugo Rodrigues, situada em Campo Grande/MS, nas aulas de iniciação científica com alunos do Ensino Médio buscou romper obstáculos epistemológicos relacionados à cultura científica. Utilizando o curso de formação docente em Ciências, do projeto EDUCA/MS, parceria com a FUNDECT/UFMS, objetivou desafiar os alunos a contextualizar o método científico de algum filósofo indicado pela professora. O filósofo Karl Popper foi o esco-lhido e sua teoria, hipotético-dedutiva, contextualizada com o conteúdo de Biologia: Teoria da Abiogênese e Biogênese, por meio de verificação do surgimento de larvas em lixos domésticos. Com esse experimento, houve a maior compreensão do conteúdo, e os alunos consideraram essa forma de aula importante na construção do pensamento científico. Palavras-chave: Construção do conhecimento, epistemologia, falseabilidade, experiência e Karl Popper.

INTRODUÇÃO

Um grande desafio foi dado à Escola Estadual José Maria Hugo Rodrigues, situada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no ano de 2017, com as aulas de Metodologia Científica para alunos do ensino médio. Já é sabido que a escola tem o papel de oferecer a disseminação da

cultura científica desde o Ensino Fundamental, mas como pensar em “iniciação científica” e não focar apenas em experimentos? A ciências assume um papel muito importante no acesso à cultura científica, de modo que todos tenham uma melhor compreensão do mundo e das transformações que nele ocorre (VIECHENESKI e CARLETTO, 2013).

Para Francelin (2004), o pensamento científico não se forma nem se transforma apenas pelo experimento, pelo contrário, antes da ação científica, existe o pensamento, a filosofia, que traz à tona a discussão em torno da construção do conhecimento, as características relacionadas ao desenvolvimento deste e os seus possíveis desdobramentos e consequências. Na visão de Lorenzetti e Delizoicov (2001 apud Viecheneski e Carletto, 2013), a alfabetização científica é uma atividade vitalícia que pode ser sistematizada no ambiente escolar desde os primeiros anos de escolarização, lembrando que esse processo pode ir para além da escola quando for realizado em ambientes não formais de ensino.

O ensino de Ciências contribui na alfabetização científica, mas não somente está voltada para a formação de futuros cientistas. Assim como a música, teatro e literatura, a ciências desde cedo para as crianças também auxilia na compreensão do aluno como parte integrante da cultura,

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CIÊNCIAS E FILOSOFIA EM UMA TURMA DO ENSINO MÉDIO DA ESCOLA JOSÉ 4666

adquirindo conhecimentos para entender e agir em seu mundo. Tomando como base a grande rele-vância da iniciação cientifica para alunos, as aulas desta disciplina ofertada nesse ano teve um auxilio da formação continuada docente.

As turmas do Ensino Médio (EM), da escola estadual José Maria Hugo Rodrigues tiveram as aulas todas embasadas pela formação continuada docente em Ciências da Natureza do projeto EDUCA/MS1, realizado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em parceria com a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT).Em todos os encontros do curso de formação, foram abordados alguns filósofos e sua epistemologia na construção do conhecimento, como por exemplo: Gaston Bachelard, Francis Bacon, Mario Bunge, Karl Pooper, dentre outros.

Com base em Lima e Marinelli (2011) e Francelin (2004), a epistemologia bachelardiana defende o pluralismo metodológico ou polaridade epistemológica, em que a filosofia deve ser uma ciência de dois polos, o que não significa dualismo, e sim a complementação desses dois polos, ofe-recendo à ciência o seu verdadeiro dinamismo.

Lima e Marinelli (2011) também nos mostra que as ideias centrais de Gaston Bachelard estão focadas na concepção de ruptura, de obstáculos epistemológicos, problemática, na construção do novo espírito científico, no qual o conhecimento constitui-se por meio das aproximações viabi-lizadas, simultaneamente, pelo conhecimento teórico e pela aplicação técnica.

Utilizando o curso de formação de docentes do projeto EDUCA/MS, principalmente as aulas que abordaram a Construção do Conhecimento e o Estudo de Ciências, o objetivo desse trabalho foi planejar e desenvolver uma aula em que os alunos deveriam apresentar, defender e contextualizar o método científico de algum dos filósofos oferecido pela professora, ou até mesmo algum de interesse do grupo. Os filósofos e suas teorias fornecidos aos alunos foram: René Descartes – Racionalismo mecanicista, Francis Bacon – Empirismo indutivo, Augusto Comté - Positivismo, Karl Popper e Thomas Khun – Racionalismo crítico, Jean Piaget – Construtivismo e epistemologia genética, Gaston Bachelard – Obstáculos epistemológicos e Mario Bunge – Realismo ingênuo e o crítico. O filósofo escolhido por um dos grupos da turma do 2º ano B de 2017 foi Karl Popper, sendo suas ideias contextualizadas ao conteúdo de Biologia: a Teoria da Biogênese e Abiogênese.

Nesse sentido, uma pesquisa sobre o filósofo e sua teoria foi realizada. Karl Popper foi um filósofo austríaco, que nasceu em 1902 e morreu em 1994. Popper defendia o progresso da Ciência não mais baseada na verificação e cumulativa, e sim, no falseamento das teorias, ou seja, só progre-dimos a partir do momento em que submetemos as teorias a testes cujo objetivo é o falseamento (IGNÁCIO, 2015).

De acordo com Popper (2001, p. 27),

“[...] do ponto de vista lógico, haver justificativa no interferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelar-se falsa”. Ele observa que independente da quantidade de casos que se possa observar não há justificativa para generalizações amplas. Nesse sentido ele cita aquele clássico exemplo de que ‘todos os cisnes são brancos” (POPPER, 2001, p.27).

1 FUNDECT/CAPES N° 11/2015 – EDUCA-MS - CIÊNCIA E EDUCAÇÃO BÁSICA

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Por isso, Popper fez fortes críticas ao método indutivo, onde é possível comprovar teorias com a observação do assunto, fato ou fenômeno pesquisado, o que fazia o método indutivo não ser muito preciso, já que, a conclusão nunca seria absoluta. Assim, ele propõe o método hipotético--dedutivo, o qual une dois métodos, o dedutivo e o indutivo, oferecendo a racionalização ao dedu-tivo e a experimentação ao indutivo.

O método de Popper busca perceber problemas, eliminar os erros de uma hipótese, ou seja, por meio de experimentos ou análise estatísticas, testar as hipóteses, para tentar resolver o problema de pesquisa (DINIZ, 2015). Para Karl Popper o método hipotético-dedutivo é dividido da seguinte maneira:

• Se começa com um problema, onde vamos chamá-lo de (P1) .

• Depois, é dada uma solução provisória para este problema que seriam as hipóteses do porque acontece aquele problema, que vai ser chamada de teoria tentativa (TT) .

• Por fim o processo de (EE) , eliminando erros.

Se as hipóteses não resistem aos testes que buscam falsear essa hipótese, ela será refutada, ou seja, será negada.

De acordo com Popper (1986, p.94):

[...] iniciamos nossas investigações partindo de problemas. Sempre nos encontramos numa situação problemática e escolhemos um problema que esperamos poder solucio-nar. A solução, que sempre tem o caráter de tentativa, consiste numa teoria, numa hipó-tese, numa conjectura. As várias teorias rivais são comparadas e discutidas criticamente, a fim de se identificar suas deficiências; os resultados permanentemente cambiantes, sempre inconcludentes, dessa discussão crítica, formam o que poderia ser denominado a ciência do momento (POPPER, 1986, p.94).

Pode-se observar no esquema abaixo como o método hipotético-dedutivo é apresentado.

Figura 1: Esquema com o método hipotético-dedutivo segundo Popper.

Fonte: Assis apud Gil, 2006.

Diferente do método indutivo que tenta afirmar a suas hipóteses, Popper vai sugerir que devemos refutar nossas próprias hipóteses, ou seja, buscar as negações daquela hipótese, este é o processo de falsificabilidade.

Com base nisso e nas aulas de Biologia sobre a Teoria da Abiogênese e Biogênese, foi reali-zado o trabalho escrito e o vídeo apresentados na aula de Iniciação Científica. Os alunos utilizaram como situação exemplo o surgimento de larvas em lixos domésticos, embasado no experimento de Francesco Redi: experimento das moscas.

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De acordo com Popper (2001 p.47):

[...] só quando certos acontecimentos se repetem segundo regras ou regularidades, tal como é o caso dos experimentos passiveis de reprodução, podem as observações ser sub-metidas à prova. Somente por meio de tais repetições podemos chegar a convencer-nos de não estar frente a uma simples coincidência isolada [...] (POPPER, 2001, p.47).

PROCEDIMENTOS DIDÁTICO-PEDAGÓGICOS Podemos exemplificar o método hipotético-dedutivo com uma situação presente em nosso

cotidiano: O surgimento de larvas em lixos domésticos. Primeiro, por meio da observação é possível notar o surgimento de algumas larvas em sacos de lixos ou em algumas matérias orgânicas, como a carne. Temos, então, como problematização: o surgimento dessas larvas.

Seguindo o método formulou-se algumas hipóteses de como essas larvas surgem no lixo:• Hipótese 1: Elas surgem de forma espontânea?

• Hipótese 2: Essas larvas são causadas pelo contato de moscas nos recipientes onde está presente a matéria orgânica?

Sendo essas as conjecturas, buscamos testá-las, processo denominado teste de falseamento. Dessa forma, foi colocado em um recipiente, que permaneceu aberto, restos de carne, em

um segundo recipiente colocou-se restos de carne e uma pequena rede de modo que esta carne ainda tenha contado com o ambiente externo, o que possibilitaria a mosca de ter contato com a carne, e em um terceiro recipiente foi colocado a carne, porém este foi completamente fechado.

Essas condições foram reproduzidas com sacos de lixos. Foi colocado em um saco de lixo completamente lacrado, em outro aberto e em um terceiro com pequenos furos, matérias orgânicas como restos de alimentos. Após alguns dias foi possível observar que ambos o saco de lixo e os reci-pientes lacrados estavam livres de larvas, e que aqueles completamente abertos estavam lotados de larvas, e os com pequenas aberturas também foi possível encontrar algumas larvas, mas em pequena quantidade como está sendo representado na Figura 2.

Feito isso, foi possível concluir que as larvas não surgiam de forma espontânea, como defendia a Teoria da Abiogênese, a qual grandes pensadores acreditavam, como Aristóteles, René Descartes, e sim que era necessário o contato da mosca com a matéria orgânica para depositar seus ovos e assim eclodirem e desenvolverem as larvas. Esse experimento realizado por Francesco Redi, em meados do século VII, foi importante para o meio científico, pois comprovou que um ser vivo é originado a partir de outro ser vivo.

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Figura 2: Foto de experimento - surgimento das larvas em sacos plásticos com restos de matéria orgânica. A) sacos plásticos fechados com um pouco de larvas; b) larvas.

Fonte: próprios autores.

A aula realizada a partir do conhecimento prévio dos alunos e dúvidas quanto às observações do dia a dia, tornou a Ciência prazerosa, conforme observado. Unimos diversos tipos de conheci-mento em uma aula, o senso comum, o filosófico e o científico, e muitas vezes também abordamos o conhecimento religioso.

O termo epistemologia, que no início era uma palavra distante da realidade dos alunos, tor-nou-se parte deles, pois ao escolher o filósofo e a forma de contextualizar o método científico com o que mais os agradava, transformou a filosofia e a ciência em algo concreto. As aulas de iniciação científica foi uma forma de unir disciplinas diferentes e desafiar os alunos a relacionar conteúdos que aparentemente não possuíam conexões.

Diversos estudos indicam que os professores apresentam dificuldades em promover um ambiente desafiador aos alunos, propiciar a investigação, e que o ensino interdisciplinar e contex-tualizado ainda é um grande obstáculo para os docentes (VIECHENESKI e CARLETTO, 2013), nesse contexto buscamos romper esses receios não apenas do docente, mas também dos alunos, e pudemos notar, com os relatos dos mesmos que foi uma proposta positiva e significativa.

Os alunos relataram que o acesso à disciplina de Iniciação Científica, possibilitou a percep-ção da importância e da grande necessidade que a pesquisa científica possui. Sendo assim, é possível que a participação desta disciplina no meio escolar influencie o desenvolvimento de futuras pesqui-sas por parte dos alunos.

Além disso, toda a apresentação e o desenvolvimento do trabalho em vídeo forneceu uma grande troca de aprendizagem entre os alunos, visto que, para toda a construção do vídeo, foi

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necessário uma pesquisa e aprofundamento do tema. Essa experiência forneceu um ciclo de apren-dizagem, onde o conhecimento adquirido é compartilhado entre os alunos, o que se mostrou uma ótima forma didática, pois foi possível fazer de forma autônoma a construção de um aprendizado e o preparo de como este conteúdo seria passado adiante.

Tendo em vista, que os autores do vídeo fizeram parte da mesma realidade do público-alvo, possibilitou a construção de algo mais direcionado para os próprios alunos. Construindo assim um conteúdo produzido de alunos para alunos.

Os depoimentos dos alunos corroboram com as teorias de Guy Brousseau (BARROS, et al., 2010), quanto as situações didáticas não serem um modelo único da forma do pro-fessor criar a sua aula, mas sim, uma proposta de apresentar as mínimas condições que devem ser consideradas em um ambiente de ensino e aprendizagem, sempre valorizando o conheci-mento prévio, como uma forma de o aluno aprimorar em si mesmo. Neste contexto, indica-se uma triangulação, professor-saber-aluno, em que há inter-relações entre os três.

Podemos destacar que os alunos consideraram essa forma de aula importante na construção da autonomia deles mesmos, o desenvolvimento do pensamento científico crítico, e a linguagem utilizada foi a de aluno e não a de um professor, o que torna o entendimento mais acessível.

Estas falas vão ao encontro do que é proposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/1996, bem como o Plano Nacional de Educação (2014/2024) na busca da formação de cidadãos críticos e autônomos. Não esquecendo, que as metodologias ativas também possuem essa mesma proposta, oferecer autonomia ao educando, despertando a curiosidade, esti-mulando tomadas de decisões individuais e coletivas, advindos das atividades essenciais da prática social e em contextos do estudante (BORGES E ALENCAR, 2014).

CONCLUSÃOConcluímos que a mudança no formato de aula expositiva para uma aula prática, nas aulas

de Metodologia Científica para alunos do Ensino Médio, contribuiu para romper com os obstáculos epistemológicos relacionados à cultura científica. Verificamos que por meio do pensamento hipoté-tico-dedutivo de Karl Popper os alunos conseguiram chegar a uma conclusão sobre o experimento realizado. Muitos não entendiam a Teoria da Abiogênese e Biogênese, e outros não gostavam de Biologia, e a partir deste material apresentado e explicado pelos colegas houve a maior compreensão deste conteúdo, bem como os outros conteúdos de diversas disciplinas abordados nessa disciplina.

Aulas focadas no contexto do aluno e valorizando suas escolhas possibilita um ciclo de aprendizagem para os mesmo, como: a sua autonomia na busca de aprofundar o conteúdo, de como criar uma ferramenta de apresentação, compartilhamento de ideias entre os participantes do grupo e ainda, fornece uma linguagem mais simples durante a exposição do trabalho, aquela que os próprios alunos entendem com maior facilidade. Como os mesmos relataram: “um conteúdo produzido de alunos para alunos”.

Também podemos observar que oferecer subsídios aos alunos construírem seu próprio mate-rial de estudo favorece a ruptura de muitos obstáculos na aprendizagem, a qual Gaston Bachelard defende.

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Da mesma forma podemos concluir que é de fundamental importância que as escolas refor-cem a alfabetização científica desde as etapas iniciais, para que os alunos ampliem o seu universo de conhecimento, contribuindo na inserção do aluno na cultura científica.

Apoio Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT).

REFERÊNCIASBARROS, R, J, A, R., et al. As teorias de Guy Brousseau e Gerard Vergnaud como auxílio em uma intervenção matemática. IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade. Setembro 2010.

BORGES, T, S.; ALENCAR, G. Metodologias ativas na promoção da formação crítica do estudante: o uso das metodologias ativas como recurso didático na formação crítica do estudante do ensino superior. Cairu em Revista. Jul/Ago 2014, Ano 03, n° 04, p. 1 19-143.

DINIZ, M. T.M. Contribuições ao ensino do método hipotético-dedutivo a estudantes de Geografia. Geografa Ensino & Pesquisa, vol. 19, n. 2, maio/ago. 2015.

FRANCELIN, M.M. Ciência, senso comum e revoluções científicas: ressonâncias e paradoxos. Ciência Informação, Brasília, v.33, n. 3, p.26-34, set./dez. 2004.

IGNÁCIO, L. E. O progresso da ciência: uma análise comparativa entre Karl R. Popper e Thomas S. Kuhn. Santa Maria, Rio Grande do Sul. 2015.

LIMA, M. A. M.; MARINELLI, M. A epistemologia de Gaston Bachelard: uma ruptura com as filosofias do imobilismo. Revista de ciências humanas. Vol. 45, n 2, p 393-406. Outubro 2011.

LIVRE PENSAMENTO. O método hipotético-dedutivo . Disponível em: <livrepensamento.com>. Acesso em: 07 set. 2017.

VIECHENESKI, J. P.; CARLETTO, M.R. Sequência didática para o ensino de ciências nos anos iniciais: subsídios para iniciação à alfabetização científica. Revista Dynamis. FURB, Blumenau, v. 19, n. 1, p. 03-16, 2013.

POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2001.

_____________. Autobiografia intelectual. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1986.

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QUAL A COR DA BELEZA?

Juliardnas Rigamont dos Reis (PPGCIMES – UFPA)

RESUMO: Há um intenso movimento de (re) descoberta crítico-reflexiva de culturas histórica e socialmente marginalizadas que atua em diversas áreas, como na do conhecimento e escolar. O Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena é um desses movimentos. Promove, no âmbito da EAUFPA, o contato com a cultura africana, afro-brasileira e indígena, e destaca a valorização da construção da identidade cultural. Na esteira dessa proposta, desenvolve-se o Grupo de Trabalho Qual a cor da beleza? Um grupo de pesquisa de embasamento crítico-reflexivo multidisciplinar que possibilita discutir questões de padrões de beleza e estética, focando a cultura afro-brasileira e indígena.PALAVRAS-CHAVE: africana, afro-brasileira, indígena, padrões de beleza.

INTRODUÇÃO

O Grupo de Trabalho “Qual a Cor da Beleza?” atuou junto ao Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena, no ano de 2016, em uma perspectiva multidisciplinar, abrangendo as disciplinas biologia, filosofia e história, com o objetivo de

promover uma discussão crítico-reflexiva sobre os processos de construção de padrões de beleza e estéticos, sobretudo no que se refere à beleza humana, com enfoque na cultura afro-brasileira e indígena.

De modo geral, tratava-se de averiguar se é possível uma determinação objetiva da beleza, algo como uma espécie de conjunto de características corporais fenotípicas que pudesse ser compre-endido como belo de maneira absoluto, portanto independente da constituição subjetiva e cultural daqueles que o observassem. Havendo tal conjunto, cabe a questão se ele pertenceria a um deter-minado grupo humano ou se acharia distribuído entre as diferentes etnias que constituem a espécie humana.

Do ponto de vista filosófico, partindo da noção de gosto enquanto a capacidade humana de julgar se um objeto é belo ou não, impunha-se como central a questão de saber se essa capacidade configura -se de maneira subjetiva, sendo determinada, sobretudo pelo sentimento que a sensação de um objeto desperta em nós ou se ela se configura de maneira objetiva, a partir de princípios e regras claramente estabelecidos, os quais nos ensinariam o que é a beleza em suas mais diversificadas manifestações. Nesse último caso, a beleza seria como que alvo de um saber lógico ou científico, o qual se encarregaria de nos instruir sobre o que seria ou não belo.

Em estreita associação com isto, procuramos explorar o modo como a sociedade, com seus diversos fatores, tais como meios de comunicação (esses acima de tudo), entretenimento, arte, e também as próprias ciências e demais áreas do saber, podem moldar a visão que temos sobre a beleza, definindo ou contribuindo para a formação do gosto. Aqui, o relativismo cultural, que seria responsável pela diversificação dos padrões de beleza, vê-se confrontado por uma cultura cada vez

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mais massificada, a qual, produzida em escala industrial global, parece neutralizar as formas genu-ínas de manifestação cultural, no que seria a construção de um padrão único de beleza, ditado por aqueles que financiam a indústria dos meios de comunicação de massa.

Assim, na perspectiva da constituição fenotípica dos grupos humanos, a filosofia discutiu sobre a objetividade ou não do gosto e de como a constituição social pode ser determinante e mesmo impositiva com relação a isso. A história abordou a perspectiva do “embranquecimento” e o eurocentrismo da ciência do XIX. A biologia explicou geneticamente de que forma ocorreu esse “embranquecimento” das etnias e como a interação dos genes, permiti essa grande variedade de padrões estéticos entre os seres humanos.

JUSTIFICATIVAA discussão e a reflexão acerca da diversidade étnico-racial não podem ficar restritas apenas

ao dia 20 de novembro, que simboliza o Dia da Consciência Negra, mas ser inserido no currículo escolar em todas as áreas do conhecimento: ciências da natureza, ciências humanas, linguagens e códigos, matemática. E é o que tem ocorrido na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará - EAUFPA, onde um grupo de docentes, há seis anos, implantou o Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena, motivados a executar a Lei 10.639/03 que no seu texto determina o estudo da história e cultura afrodescendente sendo ampliada pela lei 11.645/2008, as quais terão que incluir a cultura e a história indígena. Ou seja, é um projeto rela-cionado à nossa identidade, e esta questão está fundamentada na LDB, na Constituição Federal e permeia por todas as áreas do conhecimento.

O surgimento desse projeto foi movido pela busca incessante dos professores, da referida Instituição, em adotar práticas que provoquem a reflexão e a transformação social, ou seja, educar para pensar. E seu desenvolvimento visa levar aos alunos as ferramentas necessárias, para que eles tenham consciência da importância e influência da cultura africana e indígena na sociedade atual, visando à contribuição na construção de sua personalidade, seja como afrodescendentes, indígenas ou não. Além de incutir o respeito à diversidade nas características físicas e culturais, quebrando assim os pré-conceitos, inerentes à conduta do ser humano.

De que adianta “inserir” nos alunos, os conhecimentos matemáticos, linguísticos, biológi-cos, geográficos, científicos se eles não se identificam com o meio nos quais vivem, não se conhecem como sujeito, não se sentem integrados a sociedade? Nesse caso, eles podem ser capazes de aprender os conceitos, mas não os usará para transformar o local/meio onde vive. Porque sem o autoconheci-mento, através da construção de sua identidade não se forma cidadãos ativos e atuantes.

O projeto visa também, contribuir com a construção da identidade dos sujeitos inseridos, e por muitas vezes a discriminação, é um fator opressor na formação do ser humano. Pois, as pessoas negras constroem sua identidade a partir de modelos ditados pelos “não-negros”, que geralmente assumem atitudes e pensamentos diferentes dos seus. Logo, o sujeito negro precisa se ver como negro, e aprender a respeitar a imagem que tem de si, bem como ter modelos que confirmem essa expectativa. Sem raízes, um povo não constrói sua identidade. Para o aluno “branco” descendente de europeus é fácil construir sua identidade, pois a sociedade produz conhecimentos que respeitam este grupo.

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Somos descendentes dos povos africanos e indígenas e precisamos valorizar a atitude, pos-tura e valores para educarmos cidadãos em quanto à pluralidade étnico-racial. Os negros trouxeram sua cultura, sua religiosidade, sua arte, seus valores, sua culinária, seu dialeto e sua contribuição no desenvolvimento produtivo no Brasil. Da mesma forma os índios, etnia predominante no Brasil até a chegada dos europeus, também contribuíram. É como expressa muito bem Gabriel, o Pensador em sua música Lavagem Cerebral:

“A raiz do meu país era multirracial. Tinha índio, branco, amarelo, preto. Nascemos da mistura então porque o preconceito? Barrigas cresceram, o tempo passou... Nasceram os brasileiros cada um com a sua cor. Uns com a pele clara outros mais escura. Mas todos viemos da mesma mistura”. (CONTINO,Gabriel)

Como está muito bem exposto na letra da música, é necessário que haja a valorização das raízes africanas da nação brasileira ao lado das indígenas, europeias, asiáticas. Só assim, iremos reco-nhecer a história e cultura dos afro-brasileiros e indígenas.

Porém, a Lei em si não basta. É preciso que modifiquemos o ensino-aprendizagem para que tenhamos um resultado eficaz, valorizando conhecimentos dessas culturas, fazendo acontecer mudanças necessárias. Com este projeto espera-se que a consciência de valorização do ser humano ultrapasse as fronteiras da violência, do preconceito e do racismo.

RESULTADOSUm grande desafio à prática docente é possibilitar aos alunos metodologias de ensino e

aprendizagem que permitam a um só tempo, o desenvolvimento de suas habilidades e competên-cias, bem como a sensibilização profunda no que diz respeito a temas polêmicos, controversos e desafiadores ao objetivo de se educar para a vida cidadã.

Soma-se a isto a convergência com Demo (2001, p.9), para quem “pesquisar e educar são processos coincidentes (...) o aluno não vai à escola para assistir aula, mas para pesquisas, compre-endendo-se por isso que sua tarefa crucial é ser parceiro de trabalho, não ouvinte domesticado”.

Nesse sentido, os docentes de filosofia, história e biologia do segundo ano do Ensino Médio da EAUFPA desenvolveram com seus alunos, ao longo do ano letivo de 2016, no âmbito do Grupo de Trabalho intitulado Qual a Cor da Beleza?, submetido ao Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena, uma reflexão, primeiramente filosófica, acerca das noções de beleza, gosto, indústria cultural e meios de comunicação de massa, no sentido de oferecer um aporte crítico-reflexivo para pensarmos de que forma a etnias que constituem o povo brasileiro, se relacionam no que diz respeito ao estabelecimento de padrões de beleza de um ponto de vista histórico e biológico.

Nos primeiros encontros com os alunos, tinha como objetivo permitir uma melhor compre-ensão do tema, então foram promovidos debates, palestras e rodas de conversa sobre o tema. Para que pudessem se familiarizar melhor com a multidisciplinaridade e a temática. A discussão estabe-lecida, predominantemente no campo da genética, junto com a discussão sobre os fatores genéticos e fenotípicos formadores das diversas constituições físicas das etnias que constituem a formação do povo brasileiro, é marcada historicamente por uma declarada política de “branqueamento” da

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população e da cultura nacional. Soma-se a perspectiva filosófica, no sentido de demonstrar que, se não há um padrão objetivo para o gosto, ao menos cuja objetividade seja absoluta, a construção dos padrões de beleza são uma mistura de subjetividade e cultura.

Isto significa que esses padrões são individual e socialmente construídos, de maneira que, assim como podem funcionar como um elemento de coação social e veículo ideológico, margina-lizando aqueles que não se enquadram nos padrões estabelecidos, ou fazendo-lhes não reconhecer seus padrões originários em nome do acatamento de padrões dominantes. Estes padrões podem ser igualmente uma forma de combate as hegemonias e valorização da diversidade e da pluralidade na construção de nossas identidades culturais e individuais.

Após uma melhor familiarização com a temática, o primeiro texto trabalhado com os dis-centes foi “Do Padrão do Gosto”, no qual o filósofo iluminista escocês David Hume (séc. XVIII d.C.) aborda o que ele chama de uma demasiadamente evidente variedade de gostos e opiniões exis-tente no mundo que não pode ser ignorada. Cumprindo aquilo que estabelece como o fundamento sólido para o conhecimento acerca da natureza humana, em suas diversificadas manifestações, den-tre elas o gosto. Hume toma como ponto de partida, para a defesa da tese de que embora possam existir algumas características consideradas belas por muitos de nós, o gosto é predominantemente relativo, porque é algo subjetivo, a própria alteridade estética, que se impõe irrefutavelmente a mais simples, porém honesta, observação:

Mesmo aqueles homens de conhecimentos parcos são capazes de observar as diferenças de gosto dentro do estreito círculo de suas relações, inclusive entre pessoas que foram educadas sob o mesmo governo e nas quais foram incutidas os mesmos preconceitos, desde cedo. Mas são aqueles indivíduos capazes de uma visão mais ampla e que conhe-cem nações distantes e épocas remotas os que se surpreendem ainda mais com essa grande incoerência e contradição (HUME, 2013, p.92).

Nesse contexto a particularidade parece se sobrepor à cultura, de maneira que o gosto se apresenta como uma capacidade de difícil “domesticação”, tamanha a sua subjetividade. Mas esta subjetividade, que se faz sentir, de maneira incontornável, na abundante variedade de gostos, impõe não só a conclusão de que o gosto é predominantemente relativo, mas que pode servir de base para o reconhecimento da alteridade, da dignidade do outro. “A beleza não é uma qualidade das próprias coisas; ela existe apenas no espírito de quem as contempla, e cada espírito percebe uma beleza dife-rente” (HUME, 2013, p.95), ou seja: a beleza não pode ser determinada de maneira objetiva. Não à toa, o objetivo ao propor a leitura e discussão desse texto foi sensibilizar os discentes para figura do outro, através da reflexão sobre a subjetividade do gosto.

Em seguida, abordamos o clássico texto da filosofia contemporânea “A indústria cultural - o Iluminismo como mistificação das massas”, dos filósofos frankfurtianos Adorno e Horkheimer. Nesse texto, os autores dão prosseguimento ao projeto filosófico de uma análise crítica da socie-dade capitalista pós-industrial em seus diferentes contextos, mas encarando-a sobretudo como uma deturpação das promessas iluministas de conhecimento verdadeiro e irrestrito e igualdade entre os seres humanos. Eles revelam que o desenvolvimento da racionalidade, financiado pelas classes dominantes, promove o engendramento de uma cultura marcada pela sistematicidade, pela seme-lhança dos bens culturais, pela padronização mercadológica dos mesmos. Mas acima de tudo, pelo

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seu viés profundamente ideológico e alienante. Nesse sentido, o foco dos debates acerca deste texto foi à padronização da beleza na cultura midiática contemporânea.

Distinguindo-se da cultura popular, que se caracteriza por manifestações espontâneas e genuínas dos povos e grupos étnicos, a partir das quais estes grupos estabeleceriam, entre outras coisas, seus padrões de beleza; a cultura de massa, no sentido de uma cultura amorfa, e que por-tanto se molda aos interesses de quem a financia e domina, está submetida sobretudo a objetivos mercadológicos. Por meio do termo Indústria Cultural, Adorno e Horkheimer desejam explicar o processo de incorporação, da produção e veiculação de bens culturais, por parte do modo de pro-dução capitalista.

E como, para estes autores, na esteira do materialismo histórico-dialético, esse modo de produção se estrutura pela maximização da exploração entre as classes sociais, a cultura massificada tem como finalidade a transmissão ideológica dos valores e do modo de agir das classes dominantes às classes dominadas, no sentido de completar o processo de alienação, que faz com o indivíduo, ao absorver o modo de pensar de uma classe ou grupo que não é o seu, torne-se incapaz de compreen-der a sua própria situação social:

Para todos, alguma coisa é prevista a fim de que nenhum possa escapar; as diferenças vêm cunhadas e difundidas artificialmente. O fato de oferecer ao público uma hierarquia de qualidades em série, serve somente à quantificação mais completa. Cada um deve-se portar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nível, determinado a priori por índices estatísticos, e dirigir-se à categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo (ADORNO & HORKHEIMER, 1982, p.162).

Assim, a partir da leitura do texto de Adorno e Horkheimer, temos acesso a uma perspectiva mais determinista em relação à construção dos padrões de beleza, pois aqui predominam os fatores sociais e econômicos sobre a subjetividade individual, e ao mesmo tempo bem menos otimista, uma vez que, para estes filósofos, a força avassaladora do capitalismo avança sem escrúpulos em direção à produção e veiculação de bens culturais, na tentativa feérica de estabelecer padrões globais, na tentativa de assegurar definitivamente a docilidade das classes dominadas em face dos processos de exploração das classes dominantes.

Nesse contexto, a relações étnico-raciais se entrelaçam com a relações econômicas, na medida em que grupos menos favorecidos, e que sofreram um agressivo processo de colonização, como afri-canos, afrodescendentes e indígenas, e que encontram em suas manifestações culturais formas genu-ínas e poderosas de resistência, inclusive no que diz respeito à manutenção de seus padrões culturais, sofrem ainda mais o impacto dessa padronização violenta que, sufocando a autenticidade e diversi-dade dos bens culturais, submete as diferentes culturas a um processo massivo de homogeneização.

Foram muito enriquecedoras as discussões acerca desse texto e foi notório que os alunos foram sensibilizados e conseguiram observar que o conceito de belo foi imposto desde o início pelas classes dominantes. E que tal conceito é quase indissociável o conceito de beleza ao poder aquisitivo. Para esse texto foram propostos quatro debates, afinal trata-se de um texto complexo e de difícil interpretação. Não se pode esquecer que o público alvo do grupo de pesquisa era adoles-cente entre catorze e dezessete anos. Durante os debates foi possível observar que o senso crítico dos

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alunos estava sendo aflorado, pois o comportamento deles não era o mesmo dos primeiros debates. Tornaram-se mais participativos e expuseram suas opiniões.

Outro texto lido e debatido por todos os participantes do projeto foi “Do Padrão do Gosto”, de David Hume, no qual aborda a relatividade do gosto e a ideia de que embora possam existir algumas características consideradas belas por muitos de nós, o gosto é predominante relativo, por-que é algo subjetivo. O objetivo ao propor a leitura e discussão desse texto foi sensibilizar o outro. Pois, os docentes entendem que a estética não é apenas abstrata, mas também é um reflexo de como agimos e aprendemos, por intermédio da cultura. Ou seja, a Estética é um pensamento que ganha vida através da absorção feita pelo individuo. Ela dialoga com a nossa realidade, está entrelaçada com o nosso cotidiano, por isso é difícil resumi-la em uma única disciplina. Pois, a estética faz parte da formação educacional do individuo.

No decorrer dos encontros o amadurecimento dos alunos foi bastante significativo, estavam mais seguros do tema, discutiam e se expressavam com segurança. Então já estavam preparados para discutir o texto de Ricardo Santos e Marcos Maio, intitulado “Genótipo e Fenótipo: Qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era genômica”. Texto que de abrange a história, a biologia e a filosofia justamente na temática do nosso Grupo de Trabalho, pois a ideia principal do texto é a mistura de etnias e a tentativa de “branqueamento” que queriam realizar no Brasil, para que após certo tempo não existisse mais negros. A forma que o texto explica isso é muito clara e acessível a todos, tanto na parte histórica, quanto na parte biológica.

Os debates e discussões desse texto foi o clímax das atividades do projeto. No primeiro debate foi apresentada a todos os discentes envolvidos, a imagem da Redenção de Can que é men-cionada no texto, e expressa o “branqueamento” abordado no texto, de forma muito objetiva, pois mostra uma senhora negra com as mãos voltadas para o céu, agradecendo por seu neto, filho de um branco com uma parda, ter nascido branco.

A imagem foi utilizada para aborda o mito da democracia racial existente no país, pois é de conhecimento de todos, a existência do racismo fenotípico no país, pois deste o Brasil Colonial que os europeus, homens “brancos” de olhos claros, cabelos lisos e narizes finos definiram um padrão de valor e beleza para toda a espécie humana e a impuseram ao longo dos séculos, incialmente a “ferro e fogo”, depois através da indústria cultural, conforme foi discutido no primeiro texto apresentado ao grupo e atualmente pelo controle politico e financeiro.

No auge do imperialismo esse racismo fenotípico ganhou muita força, e então no século XIX a “raça branca” se impôs nos cincos continentes e os povos americanos, africanos, asiáticos, do Oriente Médio, da Ásia Menor e oceânicos passaram a aceita-la como o padrão de referência, e o corpo branco ocidental passou a ser objeto de desejo universal.

Nos séculos XIX e XX persistiu a Tese Eugenita, que defende a ideia de que o homem branco europeu tinha o padrão de melhor saúde, de maior beleza e de maior competência civilizacional em comparação com as outras “raças” existentes no Brasil.

Nos dias atuais isso não mudou muito, pois os seres humanos continuam sendo classifica-dos pelas suas características fenotípicas de pele, e os “não-brancos” são sempre tratados de forma negativa e sendo desqualificado pelos brancos. Isso faz com que o racismo fenotípico cresça a cada dia e acaba forçando a maioria desses cidadãos a tentar mudar suas características fenotípicas para aproximar-se, mesmo que minimamente, do padrão de beleza imposto como ideal.

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Trazendo isso para a biologia, chegamos à genética, e a luta atual por desqualificar a base genética da raça e a obsessão das pessoas para se aproximar desse padrão de beleza imposto. E as mudanças fenotípicas são constantes, as pessoas usam produtos químicos para pintar e alisar os cabelos; usam lentes de contato para clarear os olhos; realizam cirurgias plásticas para afinar o nariz; utilizam cremes para clarear a pele. Mas isso altera apenas as características externas (fenotípicas), mas a informação genética (genotípica) permanecerá a mesma e continuará sendo transmitida as próximas gerações, não reforçando, portanto, a teoria do “branqueamento”.

Utilizando novamente a letra da música Lavagem Cerebral do Gabriel, o pensador, esclare-ceu-se que o “branqueamento” historicamente proposto no Brasil era algo impossível, pois o genó-tipo dos brasileiros brancos está marcado pela sua ancestralidade ameríndia e africana. Portanto, geneticamente, nenhum brasileiro tem descendência 100% branca, ou seja, a cor, como socialmente percebida, tem pouca relevância biológica. Até as pessoas mais brancas da nossa sociedade brasileira apresenta no sangue marcas de ancestralidade ameríndia e africana.

Nos debates, também foi desmistificado a ideia de que a espécie humana apresenta “raças” com diferenças biológicas substanciais, algo que foi usado durante muito tempo como justifica-tiva para a discriminação. Todavia, com os avanços da genética molecular e o sequenciamento do genoma humano foi possível à realização de exames mais detalhados relacionando a variação genética, a ancestralidade biogeográfica e a aparência física das pessoas e os resultados mostraram que os “rótulos” utilizados para distinguir as “raças” não têm nenhum significado biológico. Pois, a pequena porcentagem de genes que se diferem não justifica a classificação da sociedade em raças.

Mesmo fenotipicamente sendo muito fácil distinguir um africano de um europeu, essa faci-lidade desaparece completamente quando se procuram evidencias dessas diferenças “raciais” no genótipo dos mesmos indivíduos. A pequena quantidade de genes diferentes entre esses indiví-duos está normalmente ligada à adaptação aos diferentes ambientes. Conclui-se, então, que a raça biológica é totalmente inexistente, pois os problemas raciais que crescem constantemente também deveriam ser. Mesmo assim, o conceito de “raça” ainda persiste nos dias atuais, no âmbito social e cultural, como forma de privilegiar a “raça branca”.

Com a realização desse projeto conseguiu-se uma das mais valorosas missões da educação para a cidadania: contribuir para a ampliação da visão de mundo dos educandos, através do contato com diferentes sujeitos, pontos de vistas e percepções da realidade. Tal exercício foi experimentado pelos alunos envolvidos no grupo de trabalho Qual a cor da beleza?, conforme podemos observar nos relatos abaixo:

“(…) Bom, o cartografia em si é um projeto muito importante, mas participar do “Qual a cor da beleza?” significou muito para mim visto que participei de debates sobre o pre-conceito, sobre a visão de filósofos e também pude ver o lado biológico e isso contribuiu muito para o aprendizado e para mudar a visão sobre mundo. (...)” (Aluno 1)1

“(...) É inegável que projetos como o Cartografia ou qualquer projeto semelhante, são raramente encontrados em outras escolas, não por falta de vontade, mas de recursos. Nos primeiros encontros, notei que o ambiente seria totalmente diferente da sala de aula, a

1 A utilização do termo aluno seguido de numeração em substituição aos verdadeiros nomes dos alunos por conta de suas idades serem inferiores a 18 anos.

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conversa em roda e a troca de ideias acerca do assunto, trouxeram uma dinâmica dife-rente para mim, mas também para meus colegas e professores.(...)”  (Aluno 2)

“Relacionar um tema tão relativo (a beleza) com linhas de argumentos de pensadores, biólogos, filósofos clássicos e contemporâneos, não foi tarefa fácil, mas ao longo dos encontros, as discussões tornaram-se mais fluidas, introduzindo os alunos ao real obje-tivo do projeto. O Projeto Cartografia, em sua essência, não só complementa a grade escolar do aluno, mas o incentiva a refletir e analisar acerca da sociedade no qual está inserido, formando assim cidadãos capazes de valorizar a cultura e a formação moral de seus semelhantes e diferentes. (...)” (Aluno 3).

“(...) Estudo na Escola de Aplicação da UFPA por mais de 10 anos, e o projeto Cartografia, é um dos projetos mais lindos que a escola oferece e uma das experiências mais marcantes que tive na vida. O tema do meu cartografia era “De que cor é a Beleza?” e juntamente com os Professor Rafael Costa (Filosofia) e a professora Julia Rigamont (Biologia) discutimos os diferentes tipos de beleza que existem na nossa sociedade e o motivo por, normalmente, apenas um ser considerado o mais aceitável. Com o projeto eu aprendi que há diferentes tipos de beleza, e o mais importante, aprendi a valorizar e respeitar cada uma. Principalmente, a afro descendente que no meio de tantas é a que com maior frequência é discriminada. Particularmente, vi a beleza que há no cabelo cheio cacheado (uma rica herança africana) e tive a coragem de libertar os meus que durante muito tempo ficavam presos por vergonha que eu tinha do seu volume. (...)” (Aluno 4).

“(...) O projeto Cartografia acrescentou muitas coisas na minha vida de uma maneira muito significativa. Me fez ter um olhar mais crítico sobre muitos fatores sociais, me fez respeitar mais as diferenças e conhecer a cultura de um povo tão importante na nossa história.” (Aluno 5).

“(...) Ao projeto Cartografia e aos professores que estiveram comigo nesse projeto, os meus mais sinceros agradecimentos. Tudo o que lá foi discutido foi muito importante para o meu crescimento acadêmico e pessoal.” (Aluno 6).

“(...) A princípio, é difícil dizer com precisão tudo o que aprendi com a realização desse projeto, pois, estudamos pontos de vistas biológicos e filosóficos, em diferentes contex-tos históricos. Entretanto, falar sobre a significância de todo esse aprendizado parece ser algo mais fácil. Esse assunto em específico é de suma importância para a construção de uma sociedade livre de preconceitos. Por meio de todo esse estudo, eu consigo, hoje, ver--me livre de preconceitos e regras para contemplar as mais diversas belezas que existem dentre nós e nossas variadas tonalidades. Afinal, aprendemos que o “feio” ou “bonito” é uma tentativa de dizer como nos sentimos diante de algo. Então, o segredo é se permitir, uma vez que, o “feio”, muitas vezes, só é considerado “feio” por razões e/ou medidas impostas por um grupo mais poderoso. Por fim, posso dizer que o projeto pode ser

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comparado à uma tesoura que corta a vendas e permite que enxerguemos a realidade de um jeito mais original. (Aluno 7).

“(...) a participação no Qual a Cor da Beleza? proporcionou a minha aceitação, pois a cor da minha pele e meu tipo de cabelo foram alvos de muita chacota durante toda a minha infância e parte da minha adolescência, mas agora após a participação nesse pro-jeto aceito-me como sou e ao olhar no espelho me acho linda. Nunca mais prendi meus cabelos, ao contrário compro agora produtos que valorizem não apenas meus cachos, como o seu volume.” (Aluno 8).

“(...) com todos os debates e leituras que participei durante esse projeto percebi o quanto o nosso país é mestiço. Podemos ver traços de negros em quase todas as pessoas, como cabelos enrolados, nariz largos, quadril avantajado, lábios grossos. Ao meu ver uma pequena minoria no Brasil podem ser considerada branca, pois a maioria do povo bra-sileiro tem em seu sangue gerações e fatores históricos com o DNA negro.” (Aluno 9).

“(...) participar desse projeto me fez enxergar que a discriminação é uma idiotice, pois por mais que fenotipicamente uma pessoa aparente ser branca, em seus genes há uma mistura de etnias. Então seu DNA possui genes de afrodescendentes. Somos todos pre-tos!” (Aluno 10).

“(...) Com esse projeto ficou muito claro para mim, que uma das principais caracterís-ticas do povo brasileiro é sua heterogeneidade genética, fruto da contribuição das etnias que formaram nossa sociedade. A cor dos olhos, do cabelo, da pele, o tipo do cabelo etc é determinado através de genes adquiridos dos nossos pais que constituí todo nosso DNA. Esses genes que carregam todas as nossas características é passada de pais para filhos através dos gametas sexuais (...)” (Aluno 11).

Tamanha é a satisfação de todos os envolvidos no Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e Indígena ao perceber o crescimento dos nossos alunos enquanto cidadão. É sabido que este é um “trabalho de formiguinha”, mas resistimos ano após ano, na continuidade desse projeto que contribuí e muito para a quebra do mito da democracia racial vivenciada em nosso país.

CONCLUSÃOMesmo o Brasil tendo a segunda maior nação negra do mundo, foi necessária a criação de

uma Lei, para que houvesse um tardio reconhecimento da importância da cultura negra na socie-dade brasileira, pois a implantação desta lei não relega o papel do negro na História do Brasil como simples escravizado e sim como um grande contribuidor do multiculturalismo que é o nosso país.

E as lutas por igualdade, respeito às diferenças, valorização da cultua africana e indígena têm sido constantes em vários setores da sociedade, entre eles, e talvez o mais importante, encontra-se o ambiente escolar, que se apresenta como o lugar da mudança, das falas diversas, do universo em transformação. Portanto, o Projeto de Extensão e Pesquisa Cartografia da Cultura Afro-brasileira e

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Indígena é muito rico e desde sua fundação até os dias atuais. Nota-se a mudança do modo de pen-sar dos alunos, bem como em seu comportamento como a diminuição de bullying relacionados à cor de pele, além da aceitação da cor de pele, do cabelo. Tanto que se tornou cada vez mais comum alunos com cabelos crespos não mais manterem os cabelos presos, ou fazer tratamentos estéticos para alterá-lo. Hoje se observa que sabem a origem dos seus ancestrais e começaram a se aceitar como são. Não mais sendo “massa de manobra” dos padrões de belezas impostos pela cultura euro-cêntrica existente em nosso país.

Este projeto é uma proposta construída, mas não acabada, estando sujeito a constantes mudanças de acordo com o cotidiano em sala de aula.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBRASIL – Lei Federal n°. 10.639, de 09/01/2003. Estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira no currículo da Rede de Ensino no Brasil. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Brasília: Gráfica do senado, 2003.

BRASIL – Lei Federal n°. 10.645, de 10/03/2008. Estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo da Rede de Ensino no Brasil. Brasília: Gráfica do senado, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana”. Novembro de 2009.

BRASIL. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: MEC, 2006.

CONTINO, Gabriel. Lavagem Cerebral. Disponível em http://letras.mus.br/gabriel-pensador/137000/. Acesso em 12/08/2016.

DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 8ªed. São Paulo: Cortez, 2001.

HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.

HUME, David. Tratado da natureza humana. Trad. Déboda Danowski.2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2009

HUME, David. Do padrão do gosto. Pp. 91 a 113. In: DUARTE, Rodrigo (org). O belo autônomo: textos clássicos de estética. 3a ed. Trad. C. A. Nunes et all. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Crisálida, 2013. 400p

SANTOS, Ricardo Ventura e MAIO, Marcos Chor. Genótipo e Fenótipo: Qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era genômica. Pp 83 a 112. In: LIVIO, Sansone, PINHO e Osmundo Araújo(organizadores). Raça: novas perspectivas antropológicas. 2ª ed. rev. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia : EDUFBA, 2008. 447 p.

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A HISTÓRIA DE KARL FRIEDRICH PHILIPP VON MARTIUS PARA O ENSINO DA 4682

A HISTÓRIA DE KARL FRIEDRICH PHILIPP VON MARTIUS PARA O ENSINO DA BOTÂNICA

Carolina Ayumi Umezaki Maciel (UEPA) Alexsandro Sousa Santos (UEPA)

Bianca Venturieri (UEPA) Ana Cláudia Caldeira Tavares-Martins (UEPA)

RESUMO: O presente trabalho buscou relatar uma investigação sobre a relação entre História da Ciência e o Ensino de Botânica, ao rememorar a história e técnicas de um naturalista botânico, Karl F. P. von Martius. As referências bibliográficas relatam que a botânica é trabalhada de forma des-contextualizada e fragmentada do contexto da natureza, havendo problemas para os alunos e pro-fessores. Logo, o trabalho objetivou-se em relacionar História da Ciência e o Ensino de Botânica, propondo uma atividade prática para despertar o interesse dos discentes, a produção de exsicatas, como uma prática botânica. Por fim, a atividade foi considerada de grande aproveitamento pelos discentes, pois conseguiram compreender a relação histórica e o ensino como uma prática relevante para uma aprendizagem significativa.Palavra-chave: Ensino de Botânica; História da Ciência; Exsicatas

Introdução

Quando mostramos uma paisagem de uma floresta com as suas devidas características como árvores, plantas e animais, a qualquer pessoa, provavelmente se observaria imediatamente os animais, tal aspecto é citado por alguns autores como “cegueira botânica” (ARRAIS et

al., 2014; SALATINO; BUCKERIDGE, 2016), quando ignoramos a presença dos vegetais, conse-quentemente negligenciamos a sua importância para ao meio ambiente.

Figueiredo (2009) relatou um quadro onde a botânica é trabalhada de forma fragmentada e desvinculada de outros conteúdos, além de ser frequentemente abordada sem vínculos com o coti-diano dos alunos, o que consequentemente trará uma falta de interesse sobre o estudo da botânica.

Quando se desconhece como pensam e agem os cientistas, impede-se que os alunos enten-dam os conceitos, procedimentos e regras dos fenômenos da ciência, uma vez que é estudada de forma afastada de suas realidades, tendo como consequência a visão de uma ciência incompreensível (KOSMINSKY; GIORDAN, 2002).

Dentre as principais problemáticas enfrentadas por professores e alunos no ensino de botâ-nica na Amazônia, citam-se: a falta de propostas metodológicas ou desconhecimento de experi-mentos botânicos, conceitos infinitos e descontextualizados, insegurança, despreparo para ensinar o conteúdo de forma prática, entre outros (BONFIM et al., 2015; FIGUEIREDO, 2009; SILVA et al., 2014).

A utilização da História da Ciência (HC) no ensino pode contextualizar e proporcionar um maior entendimento dos conceitos, leis e teorias aceitas pela comunidade científica ao longo

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da história, além dos alunos poderem observar como as teorias científicas evoluíram numa pers-pectiva sócio-histórico-cultural, refletindo sobre o passado e compreendendo o presente e o futuro (SEQUEIRA; LEITE, 1988).

Portanto, ao contar a história de Martius e as atividades científicas rotineiras desse natura-lista naquela época, principalmente a produção de exsicatas, propõe-se destacar as suas contribui-ções para a história da botânica brasileira.

Karl Friedrich P. von Martius foi um botânico alemão, reconhecido pelo seu trabalho de identificação de plantas pelo próprio rei da Baviera, e a sua vinda ao Brasil ocorreu pelo casamento de Dona Leopoldina com D. Pedro. Sendo ela amante das ciências e das artes, solicitou uma comi-tiva de artistas e cientistas para contribuir com as descobertas da natureza brasileira (LISBOA, 1994).

Dessa forma, Martius tonou-se um dos principais botânicos que contribuíram para o conhe-cimento da flora do Brasil através de suas expedições de coleta, catalogação, descrição e ilustração das espécies (DIENER, 2014; KURY, 2001)

Sabendo-se que a botânica é estudada de forma desfragmentada e distante da realidade que vivemos, a história da botânica se tornaria uma ferramenta importante para melhorar o ensino do conteúdo.

Acreditando que a HC aliada ao ensino de Botânica poderá tornar essa disciplina mais integradora, contextualizada e compreensível, o objetivo do presente trabalho foi utilizar a história de Karl F. P. von Martius e sua rotina de trabalhos como eixo estruturante para uma proposta de atividade prática no ensino de botânica.

MetodologiaO presente relato ocorreu em uma turma de graduação da Universidade do Estado do Pará

(UEPA), com 17 graduandos do curso de Ciências Naturais – Habilitação em Física. A pesquisa é do tipo participativa, na qual o público alvo colabora ativamente na construção dos dados, sendo aplicado em sala de aula e constituída de três etapas:

A) Inicialmente, aplicou-se um questionário prévio estruturado com perguntas abertas visando conhecer quais as experiências vividas pelo discente com o ensino de botânica, a importância das plantas e seu ensino em relação à história da ciência.

B) Na segunda etapa, foi apresentada uma síntese sobre a história de Martius no Brasil, suas viagens, rotinas de trabalho e contribuições para o conhecimento da flora brasileira, principalmente com a produção de um dos principais livros, a Flora Brasiliensis, além de apresentar algumas de suas pranchas aos alunos visando a compreensão e importância dos registros históricos.

C) Posteriormente, os alunos foram convidados a produzir exsicatas com algumas plantas previamente coletadas, prensadas e secas para os alunos, como exemplo das atividades realizadas por Martius em sua época. Nessa oportunidade, foi esclarecido aos discentes a importância das informações constantes nas etiquetas das exsicatas, à saber: identificação taxonômica, descrição das espécies, locais, data de coleta e nome dos coletores.

D) Na terceira e última etapa, um novo questionário novamente estruturado com perguntas abertas foi aplicado, com o intuito de verificar as percepções desenvolvidas pelos alunos acerca da produção das

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exsicatas e possíveis relações com a História da Ciência e o Ensino de Botânica. As informações dos questionários foram tabuladas e geraram percentuais para a análise das respostas obtidas antes e depois da aula.

Para a análise das respostas, foram comparados os questionários antes e depois da interven-ção, para se verificar alguma possível influência da pratica realizada.

Resultado e discussãoFoi observado que ao longo da vida estudantil dos alunos (Figura 1), a maioria estudou

superficialmente o conteúdo de botânica, ou acharam desinteressantes por ser uma matéria deco-rativa e não despertar seu interesse, além de ser relatado que alguns alunos não tiveram nenhum contato com a Botânica. No estudo de Bonfim et al. (2015), foi observado que os alunos estudam a botânica de forma superficial, baseado na repetição de conceitos e infinitas nomenclaturas científi-cas. O mesmo foi observado no trabalho de Figueiredo (2009) em que os alunos não sentiam prazer em estudar botânica e que decoravam os conteúdos para a realização de provas.

Figura 1. As experiências dos discentes de Ciências Naturais com o conteúdo de Botânica.

Para Faria (2012), os conteúdos botânicos possuem valores culturais, econômicos, medi-cinais, alimentícios, entre outros que podem ser importantes para os conhecimentos científicos, conservação da natureza e resolução de problemas na sociedade. Nessa pesquisa, observou-se o desinteresse e a falta de importância da matéria na visão dos discentes em alguns relatos:

• A16: “Uma matéria que eu nunca aprendi, porque é muito decorativa”

• A13: “Tive contato com a matéria no ensino médio e superior, porém não dei muita importância”

• A15: “Bom, particularmente foram experiências não muito positivas, pois só tive contato com esse assunto no cursinho e não foi um assunto de despertou meu interesse”

• A4: “Estudei no terceiro ano do ensino médio, porém não tenho afinidade com a disciplina”

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Assim, os relatos indicam que o ensino de botânica ao longo da formação dos discentes pre-cisou de métodos mais contextualizados, os quais poderiam utilizar as vivências do dia a dia, pois acredita-se que o desinteresse pode afetar o aprendizado dos alunos com o conteúdo, causando um déficit que pode ser prejudicial para a educação e formação da cidadania.

No trabalho de Güllich (2003), os professores relatam as dificuldades de ensinar o conteúdo, uma vez que os alunos também não demonstram interesse. De acordo com as respostas, pode--se observar que esses futuros professores podem vir a sentir dificuldades ao ministrar o conteúdo botânico, o que poderá refletir na aprendizagem dos alunos, tornando-se um “ciclo vicioso” como é chamado por Salatino e Buckeridge (2016), onde os professores não compreendem o conteúdo e consequentemente ocorre um déficit no aprendizado.

As consequências para a falta de conhecimento sobre as plantas é o desconhecimento sobre a importância delas nas florestas e cidades, para o equilíbrio da natureza e para a economia (SALATINO; BUCKERIDGE, 2016). O que para Oliveira e Paes (2008), é de grande importância que os alunos entendam esses processos vegetais, para garantir a proteção e o equilíbrio do planeta.

Apesar disso, ao questioná-los sobre a importância das plantas, os alunos entendiam seu papel no serviço ambiental, como por exemplo, os ciclos biogeoquímicos, manutenção da tempe-ratura do planeta, cadeia alimentar; bem como viam as plantas com uma função ornamental, além também de citarem a importância medicinal e alimentícia.

Como é observado em algumas respostas dos discentes:• A1: “As plantas são importantes para a vida terrestre pois constituem o primeiro nível trófico, além deles

serem importantes na manutenção de ciclos terrestre, como o ciclo da água”

• A9: “As plantas podem ter aplicações medicinais, econômicas, educação ambiental e consumo de substâncias para fins estéticos”

• A10: “As plantas são produtoras de oxigênio, manutenção do clima e da precipitação de chuvas, além da importância na alimentação”

• A15: “Temos diversas utilidades para as plantas, como: arborização em áreas urbanas, uso de plantas medi-cinais em remédios caseiros e também tem a sua parte ornamental”

Algo parecido acontece ao perguntar sobre a importância de estudar botânica (Figura 2), os discentes colocaram a importância de compreende-las e conhecer seus benefícios (59%), enfo-cando, principalmente, a produção de medicamentos (47%). Observando outros trabalhos como o de Oliveira e Paes (2008), os alunos também associam as plantas aos serviços ambientais, a alimen-tação e ornamentação.

No município de Barcarena-PA, Bonfim et al. (2015) ao questionar os discentes sobre as plantas que conheciam, os mesmos citaram 23 espécies distribuídas nas categorias medicinal, ali-mentícia e ornamental, o que demonstrou os conhecimentos prévios dos alunos, os quais poderiam ser usados para produzir significados científicos. Assim, acredita-se que os discentes compreendem o importante papel das plantas, mas mesmo sabendo a importância da disciplina e seus benefícios, as práticas de ensino não estão suprindo a necessidade de uma aprendizagem efetiva por não esta-belecerem conexões entre o dia a dia e a sala de aula.

Observou-se as questões ambientais tomando força nos últimos anos, e acredita-se que os conteúdos sobre a natureza, como a ecologia e a botânica, possuem grande influência na formação

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de cidadãos críticos e preocupados com o ambiente, bem como conhecemos esse processo como Educação Ambiental, sendo citado e explicado por diversos autores como Jacobi (2005); Loureiro (2004); Reigada e Tozoni-Reis (2004)

Figura 2. A importância de estudar botânica na visão dos discentes do curso de Ciências Naturais

Ao perguntar a relação da História da Ciência com o ensino de botânica (Figura 3), a maiorias dos alunos associaram à construção e compreensão da ciência (43,8%), sendo definido o mesmo pensamento por Alfonso-Goldfarb (2004) que descreve a HC como um instrumento crí-tico da própria ciência, pois conviveu com a suas transformações ao longo dos tempos e recuperou conhecimentos que pareciam errados diante dos critérios científicos, e principalmente, recuperou o conhecimento produzido pela cultura humana.

Figura 3. A relação da HC com o ensino de botânica na visão dos discentes do curso de Ciências Naturais

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Com o segundo questionário, foi possível observar que a maioria dos alunos compreendeu a importância da produção de exsicatas (Figura 4), para a criação de um registro histórico e iden-tificação e classificação de plantas. Já que as exsicatas constituem os herbários, local de depósito das coleções histórias, e servem de base para diversos estudos florísticos, tornando-se um valioso banco de dados para armazenar informações sobre as plantas, documentando as pesquisas botânicas (MONTEIRO; SIANI, 2009).

Além disso, Monteiro e Siani (2009) enfatizam os herbários como centro educacional:

“Um herbário também pode funcionar também como centro educacional, pois desen-volve e mantém rotineiramente coleções para estudos de floras locais, constituindo-se em fonte de inúmeros dados para a pesquisa botânica e áreas de fronteira, como Ecologia, Biogeografia, Genética, Química e outras.”.

Também foi perceptível o enfoque dos alunos, ao serem questionados sobre a importância da HC para o ensino de botânica associado a construção das exsicatas, pela sua relevância no pro-cesso de construção do conhecimento para construção e conservação do conteúdo (44%), a conser-vação e identificação da flora (31%), bem como o uso metodológico (25%).

Figura 4. Compreensão dos alunos sobre a relação da HC com o ensino de botânica.

No relato de Costa e Joy (2017), é relacionado o manuseio dos espécimes na prática para uma menor abstração do conhecimento, facilitando o entendimento dos termos técnicos conside-rados difíceis pelos alunos.

Apresenta-se, então, a História da Ciência e as suas vantagens ao contar a construção dos conhecimentos científicos que conhecemos atualmente, ao desmistificar a imagem de uma ciência exata e distante da realidade da sociedade. Para entendemos que a ciência está diretamente ligada

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as mudanças da sociedade, e seus acontecimentos podem influenciar o processo da construção científica.

Com base no relato dos estudantes constatou-se que a História da Ciência pode proporcio-nar maior facilidade para compreensão de conceitos, leis e teorias científicas, facilitando a contextu-alização e o aprendizado dos alunos, conforme é destaque em alguns relatos dos discentes:

A1: “Serve para demonstrar como, ao longo da história, a sociedade influenciou nas descobertas da botânica, como a vinda da princesa Leopoldina ao Brasil que ajudou na descoberta de espécimes da flora brasileira”;

A7: “Contextualiza as descobertas e arquivamento de dados científicos, de uma forma mais lúdica e chamativa, tornando a construção de conhecimento mais agradável”

A12: “A importância desta atividade para o ensino de botânica seria de conhecer as espécies, sua localidade e origem. Esse conjunto de informações e características das plantas fornecem uma grande contribuição ao conhecimento científico”

Considerações finaisDurante a pesquisa, a necessidade de melhorias na qualidade da educação botânica tornou-

-se notável, uma vez que diversas literaturas indicam a hesitação frente ao conteúdo pelos alunos e professores. É necessário melhorar o estudo da botânica nas salas de aula, pois ao estuda-las, compreende-se processos específicos das plantas, e assim entende-se o seu papel de importância dentro do mundo.

Dessa forma, foi notável, a partir das análises, que os discentes compreenderam a relação entre a História da Ciência e o ensino. Com a realização da atividade, os alunos puderam ter maior contato com as plantas e realizar uma das principais atividades dos botânicos, a produção de exsica-tas, que são registros históricos guardados ao longo dos anos de pesquisa. Pois, a História da Ciência pode trazer relatos sobre as experiências passadas que estão diretamente ligadas aos acontecimentos da sociedade, e ao inseri-la no meio educacional, conseguimos aproximar o conteúdo com o dia a dia dos alunos.

Assim, acredito que ao inserir a ciências das plantas de modo interdisciplinar, pode-se, finalmente, observar as plantas como componentes ativos e fundamentais para a biodiversidade e sociedade.

Referência ALFONSO-GOLDFARB, A. M. Introdução. In: AFONSO-GOLDFARB, A. M. O que é História da Ciência?. 4. ed. São Paulo: Editora Brasilensis, p. 7-14, 2004.

ARRAIS, M.; SOUSA, G.; MASRUA, M. O ensino de botânica: investigando dificuldades na prática docente. Revista SBEnBio, p. 6997–7008, 2014.

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GASPAR VIANNA E A LEISHMANIOSE TEGUMENTAR AMERICANA: PROPOSTA DE ENSINO DE BIOLOGIA

A PARTIR DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Alexsandro Sousa Santos (Universidade do Estado do Pará) Carolina Ayumi Umezaki Maciel (Universidade do Estado do Pará)

Bianca Venturieri (Universidade do Estado do Pará) Diego Ramon Silva Machado (Universidade do Estado do Pará)

RESUMO: Este trabalho apresenta uma investigação no ensino de Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA), a partir de uma abordagem histórica das pesquisas do médico paraense Gaspar Vianna (1885-1914). Para isso se fez uma intervenção com graduandos de Ciências Naturais – Biologia, utilizando Vinhetas Históricas Interativas (VHIs) como estratégia didática, na qual foi abordada a história de Vianna e seu trabalho com LTA, com a finalidade de aprofundar sobre os principais conceitos e informações sobre a doença. Durante a pesquisa verificou-se que diversos conceitos sobre LTA eram pouco conhecidos pelos alunos, como o vetor da doença, em que 43% alegou ser o cachorro. Além disso, foi notório que seus conhecimentos sobre história da ciência eram bastantes superficiais. Bem como a maioria dos alunos (75%) não conhecia o termo Vinhetas Históricas Interativas.Palavras-chave: História da ciência, Leishmaniose, Gaspar Vianna, Vinhetas Históricas Interativas.

INTRODUÇÃO

A Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) é uma doença causada por protozoários do gênero Leishmania, transmitida por mosquitos flebotomínios, que acompanha o homem desde a antiguidade, de acordo relatos e descrições encontrados desde o século I (BASANO;

CAMARGO, 2004). No passado, todos os casos de LTA no Brasil eram atribuídos a L. brazilien-sis, pois apesar de atualmente se ter conhecimento de diversos tipos de Leishmania (gênero), até a década de 60 a classificação dos parasitas da doença era exclusivamente baseada no comportamento clínico-evolutivo, haja vista que a microscopia óptica não permitia distinção entre os protozoários do gênero (VALE; FURTADO, 2005).

Este protozoário (L. braziliensis) foi descoberto pelo médico paraense Gaspar Vianna, que estudou vigorosamente a doença (LTA), propondo em 1912 seu tratamento com tártaro emético, um composto de antimônio que foi usado e abandonado na Antiguidade devido seus efeitos tóxi-cos, fato que gerou bastante discussão no meio científico (REZENDE, 2009).

Atualmente LTA tem apresentado um aumento no número de casos e ampliação de sua ocorrência geográfica, sendo encontrada em todos os Estados brasileiros, sob diferentes perfis epi-demiológicos, com estimativas de 523.975 ocorrências de casos entre 1985 e 2003 (BASANO; CAMARGO, 2004). Por conta disso, tem-se a importância de estudar as doenças tropicais (como

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a Leishmaniose), pois contribui para o desenvolvimento de ações de auto cuidado e proteção (COSTA; KALHIL, 2009).

As agências de saúde no Brasil e a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimulam a ela-boração de iniciativas para o controle de doenças negligenciadas, a partir de medidas que conciliem educação e promoção em saúde, nos ambientes formais e informais de ensino. Entretanto, ainda há a necessidade de abrangência e diversificação na abordagem das doenças tropicais, como o aumento de atividades relacionadas a esta temática, e elaboração e distribuição de materiais paradidáticos (Santos; Meirelles, 2013).

Portanto, adotou-se para o ensino da temática abordada (LTA), a história da ciência (HC), uma tendência no ensino ciências com enfoque metodológico, que de acordo com Mathews (1995), além de melhorar a formação do professor, pode humanizar as ciências e aproximar dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade, tornando as aulas mais desafiadoras e reflexi-vas, e assim, permitindo o desenvolvimento do pensamento crítico no aluno.

Para isso, Wandersee e Roach (1996) sugerem o uso de Vinhetas Históricas Interativas (VHIs), estratégia didática que se concentra em certo aspecto da história da ciência, baseando-se em uma história verídica da vida de determinado cientista (uma controvérsia científica, por exemplo), apresentando de forma interativa pontos chave da vida deste cientista. A estrutura das Vinhetas con-siste em um texto com a história de um cientista e um acontecimento de sua vida profissional (uma escolha intelectual ou comportamental), e o resultado final deste acontecimento (Apêndice A).

Segundo Wandersee e Roach (1996) além de familiarizar os alunos com as barreiras cogni-tivas e sociais encontradas pelos cientistas no passado, diversas investigações indicam que a interati-vidade das VHIs ajuda a alcançar a natureza dos objetivos científicos, ou seja, a natureza da ciência.

Essas iniciativas, segundo Mathews (1995), são convenientes devido à crise contemporâ-nea no ensino de ciências, evidenciada pela evasão de alunos e professores das salas de aula, bem como os índices assustadoramente elevados de analfabetismo em ciências. Além do mais, recentes reformas educacionais apontam para a necessidade da contextualização histórico-social do conheci-mento científico (MARTINS, 2007).

Portanto, presente trabalho teve por objetivo investigar o ensino de doenças tropicais, especificamente a Leishmaniose Tegumentar Americana, a partir de uma abordagem histórica das pesquisas de Gaspar Vianna, utilizando as Vinhetas Históricas Interativas, a fim de demonstrar a importância e contribuição da história da ciência no ensino de biologia.

METODOLOGIAA investigação do trabalho foi realizada em uma turma de graduação do curso de Ciências

Naturais com habilitação em Biologia, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), no período da manhã, no campus do Centro de Ciências Sociais e Educação (CCSE), durante o horário normal de aula da turma, e em apenas uma aula, com 16 (dezesseis) alunos.

Inicialmente os alunos responderam ao primeiro questionário, antes de iniciar a aplicação metodológica, que continha perguntas abertas e fechadas principalmente relacionadas a LTA, para análise do conhecimento prévio dos alunos sobre a temática, por se tratar de estudantes de biologia.

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A metodologia foi constituída de uma aula expositivo-dialogada, utilizando VHIs como base, em que se apresentou a história de Gaspar Vianna e suas principais contribuições para a medi-cina tropical no Brasil, e posteriormente abordando uma controvérsia científica como ponto chave (Apêndice A).

Portanto, primeiramente realizou-se a aula expositivo-dialogada sobre a vida de Gaspar, na qual se apresentou seu trajeto acadêmico e profissional, mostrando pontos de suas principais pesquisas, mais especificamente, seu trabalho com Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA). Posteriormente pleiteou-se acerca de um ponto específico da vida profissional de Vianna: a desco-berta do protozoário Leishmania (viannia) brasiliensis (um dos causadores de LTA), e a discussão do tratamento da doença com tártaro emético.

Ulterior as discussões, foi aprofundado a respeito da temática de biologia (LTA), apresen-tando, de maneira dialogada, o agente causador, o vetor da doença, formas de contágio e medidas profiláticas, além do ciclo de vida da Leishmaniose no homem. Esses conceitos foram importantes para a coleta de dados da pesquisa, com a aplicação de dois questionários, anterior e posteriormente a aula.

Por fim, os alunos responderam ao segundo questionário, no qual também compreendeu perguntas objetivas e subjetivas a respeito dos mesmos conceitos abordados no primeiro questioná-rio sobre LTA, para análise do conhecimento prévio e do conhecimento adquirido dos alunos. Além disso, este segundo questionário continha uma pergunta sobre VHIs e outra a respeito da opinião dos alunos acerca da importância História da Ciência para o ensino de ciências, haja vista que os estudantes envolvidos na pesquisa também são futuros professores de ciências.

RESULTADO E DISCUSSÃOAo questionarmos sobre o conhecimento dos alunos de quem era Gaspar Vianna, percebe-

mos que 50% da turma afirmou conhecer Vianna, enquanto outra metade da turma (50%) res-pondeu de forma negativa a pergunta. França (2011) considera importante conhecer a história de cientistas passados, pois a partir da análise da produção do conhecimento científico de determinado cientista, podemos relacionar as ações interpessoais e os resultados apresentados.

Ao analisar as respostas referentes à pergunta a respeito de qual microrganismo causador de LTA, foi possível perceber que a maioria dos alunos (87,5%) possuíam conhecimento prévio satisfatório sobre um protozoário ser o causador da doença. Este aspecto foi surpreendente durante a aplicação, pois como enfatiza Moura et al (2015) um dos assuntos de biologia considerados mais complexos pelos alunos é o de “Zoologia dos invertebrados”, mais especificamente o conteúdo de “Protozoários”, devido ao fato que, de acordo com os próprios discentes, esses conteúdos são repas-sados pelos professores de forma convencional.

Entretanto, em relação ao agente transmissor da doença (Figura 1), 43,8% dos alunos assinalaram, erroneamente, que o cachorro era o principal transmissor de LTA, o que Oliveira (2008, apud França, 2011) destacou ao estudar o nível de conhecimento da população associado as Leishmanioses, que em relação a forma de transmissão de Leishmaniose a população relaciona imediatamente ao cachorro.

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Figura 1. Referente a pergunta sobre o transmissor da LTA, feita aos alunos de Ciências Naturais.

Apesar de LTA ser transmitida por mosquitos flebotomínios, de acordo com Madeira et al (2003), em cães infectados e com lesões sugestivas provenientes de áreas endêmicas, sugere-se o acompanhamento periódico do animal, objetivando a confirmação do diagnóstico, haja vista que estes animais podem funcionar como importantes fontes de infecção nesses locais.

Quando questionados a respeito de quais as medidas de prevenção para LTA, 62,6% dos alunos apontaram como profilaxias medidas gerais relacionadas a doenças tropicais, como “evitar a transmissão pelo mosquito” (31,3%) ou simplesmente a “higienização” (31,3%). A partir dessa análise, foi perceptível a carência de informações a respeito do agente transmissor e medidas profi-láticas, que de acordo com Domingues (2006), são importantes e com a finalidade de impedir ou diminuir os riscos de transmissão de uma doença.

Além disso, a relevância do estudo de doenças tropicais evidencia-se, pois de acordo com Santos e Meirelles (2013) o Ministério da saúde ressalva que as doenças negligenciadas são um entrave para o desenvolvimento de regiões onde prevalecem. Portanto, a escola como espaço de interação social é um campo importante para este estudo, pois atua como facilitadora da discussão entre as relações socioambientais e práticas para a melhoria da qualidade de vida.

Entretanto, após a intervenção didática, os alunos conseguiram compreender de forma sufi-ciente os conceitos abordados sobre LTA, principalmente as profilaxias, com respostas voltadas para medidas de controle do vetor, que Domingues (2006) considera como segundo nível de prevenção.

Pode-se relacionar essa compreensão suficiente do conteúdo ao fato de que a História da Ciência, de acordo com a resposta de alguns alunos em relação a importância da HC no ensino de ciência, “ajuda na compreensão do assunto abordado”, e segundo Martins (2007), de fato, a História da Ciência pode atuar com estratégia didática facilitadora na compreensão de conceitos, modelos e teorias.

Outros pontos que se destacaram pelos alunos na importância de HC no ensino de ciên-cias foram: “construção e desenvolvimento do pensamento científico” e a “importância de grandes cientistas e suas contribuições para a ciência”. E apesar de que a valorização exacerbada de um cientista pode ocasionar a elitização da ciência, de acordo com Roach (1996, apud WANDERSEE;

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ROACH, 1996) é importante que os alunos familiarizem-se com os processos investigativos de grandes cientistas para que compreendam sua condição cultural e política, ou seja, de que a ciência é parte integrante da sociedade.

Além disso, os alunos mencionaram a história da ciência como “valorosa para evitar erros praticados por cientistas anteriores”, e segundo Wandersee e Roach (1996), “essa familiarização com barreiras cognitivas encontradas por cientistas no passado podem servir para antecipar as barreiras instrucionais que se deparam alguns atuais estudantes”.

Essa familiarização possibilita ainda a desmistificação do método científico, haja vista que proporciona ao aluno um estudo mais detalhado do trabalho do cientista, demonstrando, por exem-plo, que diferentes cientistas constituem diferentes metodologias em suas pesquisas, afastando-se, muitas vezes, dos passos do “famoso” método empírico-indutivista (ATAIDE; SILVA, 2011).

Além disso, a partir da análise dos dados obtidos e da observação durante a aplicação meto-dológica, notou-se que a maioria dos alunos não conhecia o termo Vinhetas Históricas Interativas (Figura 2), bem como sua estrutura, principalmente devido ao fato de ser uma técnica relativamente nova e existirem poucos trabalhos e publicações a respeito.

Figura 2. Referente a pergunta sobre o conhecimento dos alunos a respeito das Vinhetas Históricas Interativas.

CONSIDERAÇÕES FINAISA história, filosofia e sociologia da ciência, de acordo com Mathews (1995), apesar de não

ter todas as respostas para o ensino de ciências, possui a capacidade de humanizar esta ciência, aproximando-as do contexto social, tornando as aulas mais desafiadoras e reflexivas, contribuindo para um entendimento mais integral da matéria científica.

Portanto, partindo desses princípios, pode-se caracterizar a metodologia utilizada como satisfatória, pois demonstrou, de maneira concisa, a história de Gaspar Vianna, traçando pontos específicos de sua carreira, a partir do uso das Vinhetas Históricas Interativas, familiarizando os estudantes com as barreiras ou controvérsias encontradas pelo cientista.

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Os dois questionários aplicados anterior e posteriormente a metodologia, foram importan-tes para trabalhar o conhecimento prévio e o conhecimento adquirido após as atividades. Além do uso de Vinhetas, que se torna muito oportuno nesse caso, pois podem agir como pontes cognitivas a partir da história da ciência, permitindo aos alunos fazerem ligações entre o que já sabem e o que precisam saber.

Além disso, este trabalho contribuiu de forma significativa para a formação dos sujeitos envolvidos na pesquisa, incluindo como nova experiência, permitindo conciliar a história e filosofia da ciência, o ensino de biologia e sua aprendizagem. Portanto, pretende-se continuar a investigação na educação básica, a fim de ponderar a pesquisa sob diferentes parâmetros.

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Apêndice A – Modelo de Vinheta Interativa

VINHETA HISTÓRICA INTERATIVAAlexsandro Sousa Santos1

Carolina Umezaki Ayumi Maciel2 Diego Ramon Silva Machado3

Gaspar de Oliveira Vianna em sua breve vida de apenas 29 anos, sagrou-se como um dos mais geniais cientistas da história da medicina brasileira. Natural de Belém do Pará e descendente de família portuguesa, nasceu no dia 11 de maio de 1885. Graduou-se em ciências e letras, porém, tinha um certo desejo por medicina, até então, curso inexistente em Belém. Por conta disso, Gaspar viajou para a cidade do Rio de Janeiro, para estudar medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Vianna se destacou ao início do curso em suas aulas práticas, principalmente nas técnicas de preparo de material e coloração. Foi aluno de Chapot-Prevost, um famoso cirurgião e professor na época, o qual pediu que Vianna doasse sua rica coleção de preparação microscópicas (organizadas por iniciativa própria) ao laboratório de histologia da faculdade para fins didáticos. Tornou-se, por-tanto, um exímio patologista, e em 1909 defendeu sua tese doutoramento, intitulada Estrutura da Célula de Schwam nos Invertebrados.

Após o término do curso, Gaspar Vianna foi convidado por Oswaldo Cruz para trabalhar no Instituto Manguinhos, e foi nessa ocasião que teve a oportunidade de trabalhar com Carlos Chagas, grande nome da medicina na época, responsável pela descoberta da doença de Chagas. E foi nesse sentido que Gaspar descobriu que o Trypanosoma cruzi (protozoário causador da doença de chagas) não se multiplicava na forma tripomastigota no plasma, mas sim intracelularmente, como amastigota.

Além disso Gaspar Vianna se dedicou em Manguinhos a estudar outra doença bastante preocupante na época, acometendo milhares de trabalhadores das zonas de colonização pioneira, produzindo lesões deformantes, a Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA). Vianna passou a se interessar de forma vigorosa por esta moléstia e seu agente etiológico, até observar pela primeira vez uma forma diferente do protozoário, o qual batizou como uma nova espécie de Leishmania respon-sável por LTA, denominando de L. brazilienssis. Além disso, Vianna se dedicou vigorosamente, até achar publicar seu tratamento, em 1913.

Vianna então inconformado com a inexistência de uma terapêutica para a doença, se dedi-cou exclusivamente a nova manifestação, publicando em 1912 seu tratamento com tártaro emético, um antimoniato bastante criticado na época.

1 Aluno do curso de graduação em Licenciatura plena em Ciências Naturais – Biologia.2 Aluno do curso de graduação em Licenciatura plena em Ciências Naturais – Biologia.3 Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

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Pontos chaves - controvérsiasEm relação a Leishmaniose tegumentar, Gaspar Vianna considerava L. braziliensis como

uma nova espécie, diferente de L. tropica. Entretanto, Charles Wenyon, grande protozoologista da época, entendia que a doença (o mesmo agente etiológico) poderia se apresentar de diferentes for-mas, dependendo da região, ou seja, poderia apresentar forma menos aguda em determinado lugar e forma mais aguda em outro, ambas a partir do mesmo organismo: L. tropica.

Vianna entendia que diferentes manifestações clínicas de Leishmaniose tegumentar pode-riam indicar diferentes agente etiológicos. Já outros cientistas como o próprio Carlos Chagas, acreditavam que o clima poderia interferir na manifestação clínica, gerando doenças causadas por um mesmo parasita específico. Diante das diversas vertentes, apresente sua opinião sobre esta questão.

Porém, além da nova espécie de Leishmania, partindo de seu inconformismo com a inexis-tência de terapêutica, Vianna, dedicou exclusivamente a nova manifestação, publicando em 1913 seu tratamento com tártaro emético, um antimoniato bastante criticado na época.

O tártaro emético era uma substância bastante utilizada desde a Antiguidade, porém aban-donado e proibido em certos lugares, devido aos seus efeitos tóxicos. É denominado tártaro emético por causa de sua ação emetizante, provocando vômitos.

Além disso, outra questão quase impediu a descoberta de Gaspar no tratamento de LTA. O paciente escolhido por ele para iniciar seus ensaios, estava aparentemente em boas condições, porém, foi encontrado morto no dia em que iria iniciar o tratamento. Vianna declarou que se já tivesse aplicado a primeira injeção, a morte do paciente teria sido atribuída a ela e provavel-mente não prosseguiria a terapêutica.

Entretanto, receoso com acidentes, Gaspar Vianna iniciou os tratamentos com soluções muito diluídas, aumentando cuidadosamente, que foi bem tolerada na época por seus pacientes. Logo após isso, Vianna publicou sua terapêutica a respeito da LTA.

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GENÉTICA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO(S) – RELATO DE UMA PRÁTICA DOCENTE4698

GENÉTICA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO(S) – RELATO DE UMA PRÁTICA DOCENTE1

Joana Weck André (CCB - UFSC) Marina Lopes e Gomes (PPGE - UFSC)

Resumo: O presente artigo resulta de um relato de experiência do estágio docente em biologia que ocorreu no ano de 2016. Por meio dele, duas professoras, no início de suas experiências, contam sobre suas frustrações e encantamentos pela jornada de ministrar aulas de genética para a turma 213 do Instituto Federal de Santa Catarina, campus Florianópolis. A principal marca desse relato se mostra nos posicionamentos político-sociais que foram feitos, desde o início de seus planejamen-tos, quando desejaram abordar questões histórico-sociais sobre ciência em aulas de genética, até a execução das práticas e o final da experiência docente, quando se encontraram em um momento conturbado e esperançoso com as ocupações dos estudantes nas escolas públicas pelo Brasil.Palavras-chave: Formação Inicial; Ensino de Genética; Educação; Sociedade.

“a vida está sempre em estado de rascunho. Quando algo se cristaliza já deixou de ser vida”

(Chaves, 2016, p.12)

Redigimos este artigo com base nas anotações realizadas por nós duas, estagiárias e autoras, em cadernos de campo. Neles rabiscamos nossas observações desde a etapa inicial (aulas na Universidade para a escolha das escolas), passando pela etapa de observação (onde acompa-

nhamos as aulas dos professores em sala), chegando até o final do estágio, quando assumimos a docência das aulas e produzimos os trabalhos finais da disciplina. Portanto, é a partir dessa mistura de anotações pessoais, experiências vividas, referências teóricas, encontros com os professores que escrevemos o presente artigo. Por este motivo, o leitor encontrará ao longo do texto recortes dos nossos diários e trechos dos trabalhos de estudantes da turma 213.

Era a segunda grande etapa da experiência docente da nossa formação: o estágio de docên-cia em Biologia. Para realizar mais esta etapa tão importante, a parceria sincrônica era essencial. Já sabíamos que a sintonia acontecia, pois conseguimos juntas tomar decisões democrática e coletiva-mente, gerando discussões que nos fazem despertar juntas. Por este motivo, decidimos continuar unidas nessa jornada pela educação. Agora o desafio era escolher a escola, a turma e os horários. Depois de alguns instantes, conversas e debates com colegas, as decisões foram tomadas e os está-gios direcionados. Nós ficamos com a turma 213 do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) ministrada pelo professor Eduardo. Estávamos nos preparando para lecionar pela primeira vez no ensino médio, nossos estômagos borboletaram. O desafio era, dentro da nossa perspectiva de ensino, manter a sequência dos assuntos que já estavam sendo tratados com a turma na disciplina.

1 Relato das experiências que tivemos na disciplina Estágio de Docência em Biologia em 2016

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No período da manhã fomos nos encontrar com os professores de biologia que atuam no IFSC. Já tínhamos escolhido as turmas e os professores com quem vamos trabalhar, mas não sabíamos quem eles eram, como se pareciam. Nos reunimos no saguão para não ocorrer desen-contros. Fizemos um pequeno tour pela instituição e caminhamos até o pequeno laboratório de biologia. Lá nos encontramos com os professores, conversamos, demos risadas, combinamos, conhecemos… “Professores de biologia são legais, né?” (risos). (Relato das Pesquisadoras sobre a Reunião no Instituto Federal de Santa Catarina em 24 de agosto de 2016)

De acordo com a sequência do trabalho desenvolvido na disciplina de Estágio (composta por etapas de observação e de regência pelas estagiárias) as primeiras aulas foram de observação, em que tivemos a oportunidade de conhecer a turma e o ritmo da aula ministrada pelo professor Eduardo. A aula do nosso primeiro dia foi dedicada para apresentação de seminários da turma, na qual a ideia foi apresentar um trabalho de criação de “mundos-outros” (ficcionar a realidade, trans-gredindo o que já está dado) colocando em prática os conteúdos já vistos na disciplina. Assistindo aquela aula nos inspiramos para pensar como trabalhar genética com ficção nas futuras aulas de biologia. A ideia de ficção que nos avizinhamos aqui, aproxima-se do ato de chegar até um limite possível e transgredi-lo, sempre cientes que assim que atravessados eles se reconstituem. Esforço constante da ficção, trabalhado como uma aposta na criação e na produção de diferenças.

Após algumas poucas semanas trabalhando com o professor Eduardo, quem assumiu a turma foi o professor Leandro. Eduardo é daqueles professores encantadores que brinca com a arte e a bio-logia dentro das aulas. Leandro faz o estilo de professor brincalhão e amigo da turma, além de expert dos temas de microbiologia e genética. O que, para nós, foi incrível, pois trabalhar com estes dois docentes enriqueceu muito a nossa experiência. Cada um à sua maneira de lecionar, como se fossem complementares e completos ao mesmo tempo. Leandro nos auxiliou muito, pois nossa parte na disciplina seria exatamente as aulas de genética clássica, o que nos assustou um pouco no início. Não que a genética seja assustadora, pelo contrário, mas é um assunto abstrato que fala de moléculas, micro-coisas invisíveis, às vezes difíceis de compreender. Nos vimos em um grande desafio: como ministrar aulas sobre genética que não sejam apenas expositivas? Afinal essa é uma das nossas buscas como biólogas-educadoras: nos movimentar entre fronteiras, atravessar limites, ir além daquilo que já é posto. Pois assim como Chaves (2016) fala ousamos “escrever a educação, a arte e a ciência à revelia das fronteiras” (p. 12), isto é, não seguir somente os campos disciplinares, mas transgredi-los, criar novos espaços, potencializá-los. Instigar a criatividade, a curiosidade e inquietar os estudantes.

A primeira ideia foi trabalhar numa perspectiva de “passado, presente e futuro”, ou seja, dis-cutir como a Genética se constituiu como campo de conhecimento ao longo do tempo, para mais tarde, abrirmos debates sobre o que sabiamos hoje, graças a tudo que vem sendo estudado até então e, por fim, os estudantes poderiam protagonizar as possibilidades da genética futurista, embebidas em ficção. Assim como bem fala Pelbart (1993): “Pois na sua textura mais íntima, mesmo quando atreladas a aparatos académicos rigorosos, as experimentações teóricas comportam um quinhão irredutível de ficção.” (p. 11)

Durante o tempo de observação da turma, mantivemos as reuniões com o corpo docente de biologia e mesmo com as ideias organizadas de certo modo, não conseguíamos decantá-las, muito menos explicá-las aos colegas e professores nas reuniões. Em alguns momentos sentíamos medo de não conseguir fazer o que queríamos e cair na reprodução conceitual e repetição metodológica, isto

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é, na exclusiva transmissão de informações baseadas em conteúdos a serem ensinados. Nossa ideia como docentes era possibilitar a execução de práticas pedagógicas que favorecessem um exercício de autoria e construção de saber. Para isso “faz-se necessário que as relações sejam afetivas e democráti-cas, garantindo a todos a possibilidade de se expressar.” (LOPES, 2016. p. 5)

Respiramos fundo e com a ajuda de ambos professores de nome Leandro (o professor do IFSC e o orientador/professor do Estágio) enfrentamos as dificuldades, atravessamos as tempestades um tanto sofridas e direcionamos nossas ideias. Foram horas e dias buscando referências e fatos que compusessem essa pretendida história da genética. Grandes descobertas, prêmios Nobel e experi-mentos científicos constituíram nossas aulas. E junto deles, mulheres.

Sendo nós, duas professoras e biólogas, concordamos desde o início que seria necessário trazer algumas cientistas, suas biografias e pesquisas, para nossas aulas. Essa tarefa não foi muito fácil. É recorrente o silenciamento e apagamento das mulheres nas ciências - quando não a com-pleta exclusão - visto que todas as descobertas científicas em que participaram ou protagonizaram, carregaram por muito tempo e, algumas ainda carregam, apenas os nomes de cientistas homens. A exemplo, temos Rosalin Franklin apagada por James Watson e Francis Crick.

“Desde 1901, 97% dos ganhadores de prêmios Nobel de ciências foram homens. Só 18 mulheres entram no grupo de 590 prêmios Nobel científicos. Nesse longo período, os homens ganharam 99% dos Nobel de Física, 98% dos de Química e 94% dos de Medicina.” (ANSEDE, 2016) As pesquisadoras Silva e Ribeiro (2010) apontam ainda que por muito tempo, tanto em paí-ses da Europa como no Brasil, as mulheres não puderam fazer parte do meio acadêmico e científico e, mais tarde, mesmo sendo admitidas em Universidades, não recebiam o título por seus estudos, sendo desta forma impedidas de exercerem cargos competentes à titulação por elas de direito.

Assim, o mundo da ciência se estruturou em bases quase exclusivamente masculinas, ora excluindo as mulheres, ora negando as suas produções científicas, através de discur-sos nada neutros. Apesar dos mecanismos de exclusão, sejam pelos processos formais, pelos discursos científicos que ao naturalizarem as diferenças entre homens e mulheres determinam os lugares sociais ou até mesmo pelos processos culturais de invisibilização de mulheres cientistas ao longo da história, as mulheres, em maior ou menor represen-tatividade, estiveram presentes e atuantes na história das ciências. (SILVA; RIBEIRO, 2010, p. 2)

Nosso esforço foi um pouco maior para encontrar prêmios científicos e descobertas reali-zadas por elas. Este fato não significa que elas não foram e não são protagonistas nessa área, signi-ficando que elas não recebem ainda hoje, o devido reconhecimento por suas atuações. A ideia de trazer esta questão social tão importante nos empolgou. Daríamos aula de genética, mas trazendo com ela questões sociais que nos impactam diariamente. Esse nosso esforço foi recompensado e enxergamos na prática a importância de maneiras mais democráticas de educação quando, ao final de uma de nossas aulas, duas estudantes se aproximaram de nós relatando quão importante foi para elas ouvirem a história de mulheres cientistas. Isso as motivou em continuar os estudos fazendo faculdade de Biologia ou Química. Foram duas alunas, mas a emoção era de ter conseguido con-quistar um espaço e uma representatividade para aquelas meninas em questão, e isso já era motivo suficiente para sairmos da aula com sorriso estampado no rosto.

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Ainda durante o planejamento, ficamos de certa forma mais relaxadas com essas decisões, afinal estávamos tateando os caminhos alternativos, maleáveis, escorregadios de como abordar um conteúdo tão endurecido pelas amarras da ciência moderna. Desafio que sempre encontramos nesse eterno processo de formação inicial docente. Talvez tenha sido esse um dos motivos de nossos medos e aflições, da nossa incapacidade, em alguns momentos, de nos expressarmos e mostrarmos o que queríamos atingir com nossos planos. Percebemos que nessa jornada o desafio nunca será totalmente superado, ele é vagarosamente rearranjado, assim como a sociedade e sua história.

Com os planos definidos, fomos para a prática. Até podemos traçar planos, contudo a rea-lidade prática sempre será imprevisível. Começamos bem: primeira aula dada de acordo com o planejamento. Passado: a história da genética. Quem foram as pessoas que descobriram o que sabe-mos hoje? Quantas delas foram reconhecidas? Onde estão as mulheres cientistas e quem são elas? Prêmios Nobel, fotografias, questionamentos e datas compuseram a árvore da genética montada por todas, professoras e estudantes, naquela aula. Construímos o saber a respeito das pessoas ilustres e reconhecidas na comunidade científica da época, tentando enfatizar a questão do silenciamento das cientistas pela ciência moderna, já que a maioria dos reconhecidos pela comunidade científica eram nitidamente homens brancos, isto é, trazer questões para além daquilo que já nos é dado sobre ciên-cia, mas alguns elementos que nos facilitassem pensar os contextos de produção da ciência, em seus aspectos político-sociais imbrincados. O objetivo foi cumprido: colocar em evidência o momento histórico e social das descobertas e demonstrar como isso molda e determina o conhecimento em meio a cultura.

(Foto pelas autoras em 2016 do esquema da primeira aula desenhado para a fanzine final da disciplina do Estágio - A História da Genética)

Se pensarmos que é a visão do cientista que constrói essa realidade, podemos concluir que a ciência não é neutra, afinal sua percepção sendo atravessada constantemente por aspectos

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sócio-histórico-cultural-econômico-políticos. Tal compreensão direcionou, e ainda direciona, nossa prática docente: demonstrar que essa ciência é apenas mais uma maneira de conhecermos o mundo dentre tantas outras que foram excluídas por seus métodos e ou autoria. Tal “neutralidade” acaba impedindo que outros conhecimentos, outros caminhos possam se expressar. Por isso, em nosso plano de aula escolhemos começar pela história da genética.

A consolidação da ciência moderna no século XIX, que se iniciou na revolução científica do século XVI, gerou uma transformação técnica e social em toda humanidade, constituindo um modelo de racionalidade global. Somos transformadas pela ciência ao mesmo tempo em que nós a criamos. Portanto, podemos pensar que “somos todos protagonistas e produtos dessa nova ordem.” (SANTOS, 1988, p. 47) Passamos por um momento em que a ciência é tida hegemonicamente como construtora de “verdades absolutas” - utilizamos esse termo para dizer sobre conhecimentos do senso comum que estão incrustadas na nossa cultura - , assim como, não estamos acostumados a levantar questionamentos acerca de informações que venham acompanhadas das frases, como: “comprovado cientificamente”, ou “cientistas afirmam…”

Não é difícil perceber que a maioria dessas informações vêm carregadas de números e dados estatísticos, tornando-os cada vez mais complexos e inapreensíveis. Isso acontece, pois historica-mente a ciência moderna se consolida através da base matemática, através da observação e da experi-mentação, do afastamento entre sujeito e objeto, “conhecer significa dividir e classificar” (SANTOS, 1988, p. 50). Pois: “se não for dito em linguagem matemática, a ciência diz logo: ‘não é científico.” (ALVES, 1999, p. 3), ou seja, se não couber no método científico, se não puder ser medido, quanti-ficado, não é real, não é verdadeiro. Se a ciência moderna fala a língua matemática, sua linguagem se limita à esse mundo, gerando convictos e a convicção una do saber apontamos aqui como limitante do conhecimento. “A ciência é muito boa - dentro dos seus precisos limites. Quando transformada na única linguagem para se conhecer o mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento.” (ALVES, 1999, p. 9)

Por isso, destacamos nessa prática a ideia de mostrar que essa crença na ciência não se formou do dia para a noite, sendo importante saber o quanto os momentos históricos e sociais moldam nossos saberes e operam nas relações entre saber e poder. Afinal, não é apenas a visão do cientista que constrói a ciência, mas também os interesses políticos e econômicos. O conhecimento científico está altamente entrelaçado com esses interesses e, pensando nisso, a “ciência é uma pro-dução cultural, que está em nossos cotidianos e, visivelmente, carregada de interesses e relações de poder.” (GOMES, 2017, p. 7)

Em nosso plano de aula, seguimos adiante e adentramos no presente. Levamos para a sala de aula notícias e reportagens produzidas pela mídia que falassem de novas descobertas e/ou apli-cações genéticas da atualidade. O intuito era entender que o conhecimento continua sendo produ-zido, e que sua produção está carregada por interesses. Qual a importância dessas descobertas? Para quem e para que são importantes? Através de algumas perguntas como essas fomos direcionando as discussões, tateando os caminhos escondidos pelas “verdades” apresentadas pela mídia. Além disso, observamos quais os avanços genéticos que estão sendo produzidos atualmente. Conseguimos envolver os estudantes na discussão e tentamos, com certa dificuldade mediante a escassez, encon-trar reportagens que despertassem o interesse individual de alguns alunos. Como já conhecíamos a turma, dentre as reportagens entregues, estava uma que falava sobre os poderes do homem aranha e questionava se seriam possíveis na vida real. Esta reportagem foi entregue à alunos que nitidamente

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gostavam do universo dos super-heróis, por exemplo. Somada as reportagens, tivemos que explicar alguns conceitos básicos de genética, como cromossomos, alelos, herança genética etc. Para isso conta-mos com a ajuda do professor Leandro, quem nos disponibilizou alguns de seus materiais e de suas práticas para a montagem das explicações.

Essa foi a nossa última aula presencial no IFSC. Na semana seguinte, as escolas do Brasil inteiro estavam sendo ocupadas pelos estudantes. Viver um momento como esse na posição de pro-fessoras foi uma das experiências mais intensas da nossa formação inicial docente. Foi ver e colocar na prática o que pensávamos sobre docência, ensino e escola. Assim como planejamos e trouxemos nossa proposta para estes estudantes acerca do passado e do presente, a parte do futuro estava nas mãos deles, em todos os sentidos possíveis. Na atividade que propomos lá no início do semestre, os alunos deveriam, em grupos, apresentar histórias ficcionais que nos fizessem imaginar como seria esse futuro da genética. Poderiam criar o que quisessem, com os recursos que bem entendessem, desde que o assunto conversasse com aquilo que fomos construindo durante as aulas.

Bem, segundo meus pensamentos depois de várias aulas de Biologia sobre Genética, acho que poderíamos “clonar” animais extintos pegando seu DNA e juntando-o com DNA de outras espécies que descenderam desses animais. (Estudante 1 - Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC)

Na data de hoje, 27/11/2555, aconteceu algo muito interessante, nasceu o primeiro híbrido de um humano com nossos amigos alienígenas humanóides. Este acontecimento é até mais fantástico do que se parece, tendo em vista que a espécies alienígena tem uma “Árvore gené-tica” totalmente diferente da nossa, que se procriou em um ambiente extremamente diferente, mudando e adaptando suas características. O que torna esse híbrido mais incrível é justa-mente a união dessas duas Árvores. (Estudante 2 - Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC)

Permitir ao aluno criar, imaginar, inventar, com e através da ficção se mostrou extremamente potente. Recebemos as mais diversas histórias, a maioria sobre mundos distópicos, arruinados pela ciência ou salvos por ela. Todas contadas com termos científicos e com possíveis técnicas de mani-pulação genética futuristas.

SANIDITARIUM, A CURA PARA O FUTURO. Esta semana vem ao mercado a pílula Saniditarium criada pelo profissional em genética Professor Henriot. Esta pílula milagrosa é capaz de modificar a genética de seus descendentes evitando doenças hereditárias. (Estudantes 3, 4 e 5 - Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC)

É o ano de 2050 e depois de tanto tempo de ameaças, finalmente foi declarada a 3ª Guerra Mundial, a guerra biológica que promete acabar com tudo e todos que não se unirem ao país mais forte. (Estudantes 6, 7, 8 e 9 - Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC)

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Enquanto do lado de dentro da porta da sala de aula estavam os possíveis futuros da genética, do outro lado estava acontecendo a construção e luta por um futuro social mais justo. O futuro das escolas públicas brasileiras, da educação e o futuro daqueles jovens que se levantaram para ocupar o Instituto Federal de Santa Catarina, para gritar por seus direitos e para lutar. O que buscávamos desde o início do estágio com nossos planos estava se concretizando da maneira menos prevista: era a reflexão e a possibilidade de pensamento crítico tomando forma e voz, a partir outras razões ou saberes, mas ainda através de mentes agentes e corpos protagonistas. Contudo, a Genética não pode ser esquecida, apesar do contexto exigir outras razões e práticas, ela também tem seu valor e seguirá ocupando os currículos escolares e parte dos conhecimentos construídos pela humanidade. Como enriquecemos o viver a partir dela é que continua sendo nosso desafio.

Entretanto, ver acontecer esse momento histórico foi emocionante e marcou profunda-mente nossa recém caminhada pela docência. Foram tantas questões que vieram nos habitar… Como nos posicionar? Como sermos professoras neste contexto? Pensar na relevância daquilo que ensinamos perante ao momento e lugar que estamos inseridas, todas essas reflexões e muitas outras fizeram essa experiência docente ter uma potência jamais imaginada por nós.

E, no fim, depois de tantas aflições para planejar aulas que fossem além daquilo que é enten-dido como ciência hegemônica, após buscar formas de permitir atravessamentos na biologia - histó-ricos, sociais, políticos - o que planejamos veio ao encontro de nós e nos atravessou, assustou- nos, emocionou- nos. Fez estremecer qualquer pretensão, e nos inspirou em continuar nessa caminhada lado a lado com os(as) estudantes, na esperança de lutar por uma educação que desmanche territó-rios e derrube paredes.

REFERÊNCIASALVES, Rubem. O que é científico? 1999. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/oqueecientificorubemalves.html>. Acesso em: 26 ago. 2017.

ANSEDE, Manuel. Homens ganharam 97% dos Nobel de ciência desde 1901: Mulheres, por mais um ano, não receberam nenhuma premiação na edição de 2016. 2016. Elaborada pelo jornal El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/14/ciencia/1476437077_380406.html>. Acesso em: 11 jan. 2018.

CHAVES, Sílvia Nogueira; BRITO, Maria dos Remédios de. O começo nunca é um fim. In: CHAVES, Silvia N.; BRITO, Maria dos R. de (org.). Formação, ciência e arte: autobiografia, arte e ciência na docência. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016. p. 11-17.

GOMES, Marina Lopes e. Infográficos em revista: que ciências aprendemos? In: 7° SBECE / 4° SIECE, 2017, Canoas. Anais... . Canoas: Ulbra, 2017. Disponível em: <http://www.sbece.com.br/resources/anais/7/1495386029_ARQUIVO_Infograficosemrevista-quecienciasaprendemos(MarinaGomes-SBECE2017).pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018.

LOPES, Daniel. O PIBID Enquanto Reflexão da Prática Docente. In: CONGRESSO DE PESQUISA E EXTENSÃO E DA SEMANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UEMG/BARBACENA, 9., 2016, Barbacena. Anais... . Barbacena: UEMG, 2016. v. 3, p. 1 - 13. Disponível em: <http://revista.uemg.br/index.php/anaisbarbacena/article/view/2006/1002>. Acesso em: 15 jan. 2018.

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PELBART, Peter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 132 p.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as Ciências na transição para uma Ciência Pós-Moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 46-71, 1988.

SILVA, Fabiane Ferreira da; RIBEIRO, Paula Regina Costa. Mulheres na ciência: problematizando discursos e práticas sociais na constituição de “mulheres-cientistas”. In: CONGRESSO IBEROAMERICANO DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E GÊNERO, 8., 2010, Curitiba. Anais... . Curitiba: Utfpr, 2010. p. 1 - 15. Disponível em: <http://files.dirppg.ct.utfpr.edu.br/ppgte/eventos/cictg/conteudo_cd/espanhol/E5_Mulheres_na_Ciência.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2018.

-----------------------------------------------------------PARECERES 1 - O relato de experiência traz apontamentos pertinentes à formação docente de professores de Biologia, tendo todavia a opção por tais correções para o material final: - Atentar para as questões da ABNT tais como referenciadas pelo evento nas citações no sistema Autor-data e nas referências bibliográficas, bem como da imagem do fanzine e sua legenda; - Identificar os instrumentos de análise para a construção do relato, quando houver: diários, caderno de anota-ções, observação participar, dentre outros. - Se possível citar a importância do estágio também para os professores supervisores envolvidos. APROVAR APÓS CORREÇÕES.\r\n\r\nAvaliador 2 -Aprovar após correções - Relato de Experiência propositivo para a área, contudo, convém obser-var aspectos normativos antes da submissão final ao evento - Não sei se é de bom tom caracterizar nominalmente os professores, talvez a utilização de nomes fictícios seja mais prudente - o que pode ser explicitado em nota de rodapé - Opção do (s) autor(es)

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O CASO DE ROSALIND FRANKLIN E A FOTOGRAFIA 51: COMO AS RELAÇÕES DE GÊNERO PERMEIAM

O EMPREENDIMENTO CIENTÍFICO

Júlia Dionísio Cavalcante da Silva (Universidade Federal Fluminense) Terená Bueno Kanouté (Secretaria Municipal de Educação de São Paulo)

RESUMO: A Ciência, enquanto espaço de produção de conhecimentos, não está isenta de repro-duzir relações sociais de desigualdade entre seus representantes. Seja em termos raciais, de classe social ou de gênero, o que ocorre na sociedade encontra-se fielmente representado no empreendi-mento científico. Assim, a sub-representação e parco reconhecimento de mulheres na história da ciência não é um fenômeno aleatório, pois está relacionado à estrutura androcêntrica da sociedade. Neste sentido, a objetivo do presente trabalho é descrever aspectos sócio históricos que marcaram a inserção das mulheres na Ciência, utilizando o caso de Rosalind Franklin como exemplo ilustrativo deste movimento.PALAVRAS-CHAVE: Gênero, ciência, mulheres, Rosalind Franklin.

I. APRESENTAÇÃO

O presente trabalho consiste na ampliação de uma pesquisa de monografia realizada para a conclusão do curso de licenciatura em Ciências Biológicas, em que a temática de relações de gênero foi utilizada como enfoque para a análise das trajetórias de pesquisadoras do

Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da UFRRJ.Ao longo da pesquisa entramos em contato com diversos referenciais teóricos, principal-

mente das Ciências Sociais, que articulavam a estrutura do empreendimento científico às relações sociais de gênero. Ressaltando que a sub-representação e o pouco reconhecimento das mulhe-res cientistas historicamente tem origem na construção das desigualdades sociais entre homens e mulheres. A partir desta reflexão desenvolvemos um trabalho de pesquisa que objetiva levantar e analisar aspectos históricos da trajetória de mulheres cientistas e refletir sobre como as relações de gênero perpassam a história e o desenvolvimento da Ciência.

Para tanto, utilizamos um processo de revisão bibliográfica em três frentes. A primeira, con-siste no caminho teórico que fundamenta a inserção das mulheres no empreendimento científico e os desdobramentos sociais e históricos deste movimento. Para esta frente, utilizamos autoras funda-mentais para o campo de estudos de Ciência e Gênero, como Schiebinger, Fox Keller e Löwy, que discutem a inserção feminina, representatividade de mulheres cientistas, reconhecimento da contri-buição das mulheres para a história da ciência, produção de conhecimentos sob a óptica feminina e a influência do feminismo na Ciência.

A segunda frente corresponde à descrição do caso de Rosalind Franklin, que utilizamos para ilustrar como as relações de gênero atravessam o empreendimento científico e marcam a história da

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Ciência, neste caso, através de conflitos e tensionamentos em torno na presença feminina. Neste ponto utilizamos o capítulo biográfico sobre Franklin presente no livro de McGrayne, em que a autora detalha aspectos sobre a infância, juventude e carreira profissional da pesquisadora, bem como sua difícil relação com colegas de profissão e as dificuldades que enfrentou por ser mulher.

A terceira frente, corresponde à articulação das duas primeiras com o ensino de Ciências e Biologia, levando em conta a responsabilidade das Ciências Biológicas na construção das desi-gualdades de gênero e da possibilidade de desconstrução de tais desigualdades através de processos educativos social e historicamente responsáveis, Heerdt, Macedo e Alves são as autoras utilizadas para esta frente.

A articulação entre gênero, Ciência e educação, foco do presente trabalho, aponta para a possibilidade de desconstrução de diversos aspectos relacionados aos discursos, enunciados e estru-turas do empreendimento científico a partir da perspectiva das relações de gênero. Neste sentido, o que procuramos aqui é contribuir com a produção de uma Ciência inclusiva e, de fato universal, que reconheça sua responsabilidade nos processos de construção e desconstrução de desigualdades sociais.

II. ROSALIND FRANKLIN – UM DE MUITOS CASOSVejamos a ilustração abaixo:

Ilustração 1: Difração de raios-X de uma molécula de DNA.

Fonte: Página Leadership and Legacy of Rosalind Franklin1

A imagem acima, considerada uma das mais importantes para ciência do século XX e um divisor de águas para genética molecular, corresponde a um registro fotográfico de difração de raios--X de uma molécula de DNA, obtida em 1952 pela equipe da biofísica e especialista em cristalo-grafia molecular Rosalind Franklin, do laboratório de difração da universidade King’s College, em Londres. É conhecida como Fotografia número 51.

1 Disponível em: <http://rosalindfranklinhd2015.weebly.com//> Acesso em junho de 2017.

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Franklin nasceu em Londres, em 1920, numa família judia de elite. Foi educada em escolas e internatos particulares e desenvolveu um interesse especial por física e química. Entrou em conflito com o pai para que pudesse cursar a universidade, apesar da família ter recursos mais que suficientes para tanto. O posicionamento conservador de sua família destoava profundamente das aspirações acadêmicas e profissionais da jovem Franklin. Mesmo assim, em 1938, ela iniciou seu curso de Ciências Naturais em Cambridge, na Newnham College, onde formou-se em 1941 e obteve o PhD em 1945, com uma pesquisa sobre a estrutura carbônica do carvão.

Mudou-se para Paris em 1945, onde se especializou em cristalografia e difração de raios--X e consagrou sua carreira como especialista. Chegou à King’s College em 1951 onde começou a trabalhar com fibras de DNA no laboratório chefiado por Maurice Wilkins, com quem imedia-tamente estabeleceu um conflituoso relacionamento profissional por conta de sua personalidade assertiva. McGrayne (1995) e Schiebinger (2001) descrevem este fato como manifestação pura-mente machista, uma vez que o comportamento assertivo dificilmente seria considerado um traço negativo se Franklin fosse um homem. Ainda mais em um ambiente de trabalho em que a objetivi-dade e racionalidade são prezadas.

Na época, Maurice Wilkins e seus colaboradores estavam interessados em desvendar a estru-tura da molécula de DNA. Muitos pesquisadores também se dedicavam a este propósito, como o químico americano Linus Pauling, a equipe do laboratório de Wilkins e Franklin, na King’s College, e a dupla Francis Crick e o James Watson da universidade de Cambridge. Logo se estabe-leceu uma competição entre as equipes, apesar da constante circulação de informações de todos os lados, divulgadas em periódicos, seminários e palestras.

Em 1953, James Watson e Francis Crick publicaram o artigo considerado um dos textos mais importantes das Ciências Biológicas de todos os tempos, onde descreveram a estrutura espacial da molécula de DNA utilizando informações cruciais da Fotografia 51 e das análises de Franklin, que Wilkins havia fornecido sem sua autorização.

Pela descoberta, James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins, dividiram o prêmio Nobel em medicina de 1962. No entanto, apesar de ter sido a autora da fotografia e ter estado envolvida na investigação, Franklin não foi citada entre os laureados e nem na lista de autores do seminal artigo.

Rosalind Franklin havia morrido em 1958, com apenas 37 anos, em decorrência de câncer nos ovários. Muitos argumentam que por este motivo não foi citada na premiação que seus colegas receberam em 1962. Ela nem ao menos foi lembrada ou mencionada nos discursos de aceitação. Em publicações posteriores, foi descrita por James Watson como intransigente, pouco atraente e incapaz de interpretar seus próprios dados (MCGRAYNE, 1999).

Embora a fotografia seja celebrada até hoje e esteja presente em praticamente todos os livros e capítulos didáticos sobre genética, as motivações puramente políticas, que levaram à exclusão de Franklin da autoria e das glórias da descoberta permaneceram pouco exploradas. Somente déca-das depois do acontecimento o caso de Franklin recebeu a atenção e reflexão merecidas, em um momento em que as temáticas de gênero, movidas por demandas feministas, adentraram o âmbito acadêmico e estabeleceram pesquisas que relacionam o processo de exclusão e invisibilidade das mulheres no empreendimento científico à estrutura patriarcal da sociedade (SCHIEBINGER, 2001).

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III. GÊNERO E CIÊNCIA – CAMPOS ATRAVESSADOSPara sociólogo Pierre Bourdieu (2001), campo consiste num espaço social que apresenta seus

próprios princípios, hierarquias e leis, nele se inserem e se relacionam indivíduos e instituições com motivações compartilhadas e produções específicas. Assim, de acordo com o autor, os campos cien-tíficos, apesar de estarem embasados na razão, são, nas palavras do autor, “mundos sociais idênticos aos demais”. E reproduzem relações de força, poderes, interesses e conflitos da mesma maneira.

Os termos gênero e ciência foram relacionados pela primeira em 1970, pela física Evelyn Fox Keller, durante a ascensão do movimento feminista e a ampliação dos estudos sociais e culturais da ciência (SCHIEBINGER, 2001). Fox Keller (2006) aponta que as Ciências da Natureza e Exatas, enquanto campo científico, embora sejam responsáveis pela produção de conhecimentos e avanços tecnológicos imprescindíveis, lidam com questões fundamentais que envolvem as relações sociais de gênero. Que afetam tanto sua capacidade de produtividade – e de suas/seus representantes – quanto os enunciados e conhecimentos produzidos.

Apesar destas alegações, pesquisadoras e pesquisadores mais conservadores e tradicionais defendem que fatores sociais possuem pouca ou nenhuma influência sobre o pleno funcionamento do empreendimento científico e a universalidade de suas motivações. Uma enorme contradição que aos poucos vem sendo desconstruída (SCHIBINGER, 2001).

Para autoras como Londa Schiebinger, Donna Haraway, Evelyn Fox Keller e Ilana Löwy, o domínio masculino sobre a ciência tem origem na histórica distinção, socialmente construída, das características, responsabilidades e atividades exercidas por homens e mulheres, predeterminadas unicamente a partir de atributos reprodutivos. Estabelecendo, assim, uma relação assimétrica entre mulheres e homens no que diz respeito à ocupação, trânsito e trabalho nos espaços sociais.

Neste sentido, a Biologia tem grande responsabilidade nesta construção, uma vez que ao descrever as diferenças entre os sexos biológicos através de modelos comparativos hierárquicos, ali-mentou no imaginário social a ideia de que características femininas são inferiores quando compa-radas às masculinas. O que justificaria a posição de subalternidade das mulheres frente aos homens (MARTIN, 1991).

A cientista política Flávia Biroli (2014), relaciona estas questões às esferas pública e privada. Segundo a autora, as mulheres, devido à suas características e papéis reprodutivos, deveriam natu-ralmente encarregar-se da esfera privada, de convívio particular, doméstico e familiar2. Já a esfera pública caberia aos homens, para lidar com a sociedade, o Estado e o trabalho produtivo – ou seja, os espaços de tomada de decisão e fluxo de capital. Apesar de existir distinção, o domínio masculino sobre as mulheres ocorre em ambas as esferas.

Desta forma, funções, comportamentos e responsabilidades sociais são predeterminados levando em conta unicamente o sexo dos indivíduos. Assim, por sua capacidade de gestarem bebês, mulheres deveriam ser obrigatoriamente maternais, cuidadoras e emotivas. E, consequentemente, inaptas para o ofício científico, que corresponde à uma atividade onde a racionalidade, dedicação exclusiva à atividade profissional e objetividade imperam (SCHIEBINGER, 2001; FOX KELLER, 2006).

2 A filósofa e ativista antirracismo Sueli Carneiro (2012) ressalta a diferença na experiência histórica de mulheres negras e brancas quanto ao trabalho em espaços públicos e ambientes domésticos de outras famílias, que o discurso clássico relativo à opressão da mulher não abarcava até o surgimento dos debates que articulam as questões de gênero às raciais, que corresponde ao feminismo negro.

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Nesta perspectiva equivocada, a concentração desproporcional de mulheres em áreas como pedagogia e enfermagem – que envolvem o cuidado com o próximo e afetividade – bem como sua reduzida representação nas ciências exatas e tecnologias, não corresponderiam à fenômenos fora do comum (GUEDES, 2012). Uma vez que estariam prescritos pela natureza feminina e não teriam correspondência com os aspectos culturais e sociais responsáveis pela construção de expectativas sociais e relações dispares entre homens e mulheres.

Fica evidente que campo das Ciências – da Natureza e Exatas – não foge do pressuposto descrito por Bourdieu (2001) anteriormente. Ou seja, reproduz e reforça todos os aspectos que se desdobram da desigual relação entre mulheres e homens. A bióloga e historiadora da ciência Ilana Löwy aponta que “não se deve esquecer que a Ciência é um empreendimento de caráter cumulativo e que, portanto, seu passado, do qual as mulheres foram sistematicamente excluídas, continua a pesar sobre o presente” (2000, p. 24).

Deste modo, apesar de não haver mais restrições institucionais ao ingresso de mulheres a espaços de aquisição e produção de conhecimentos científicos, a sub-representação feminina em determinadas posições ainda ocorre. Seja ocupando cargos de liderança, atuando como porta vozes oficiais da Ciência, recebendo premiações e incentivos ou figurando entre os nomes mais famosos da História da Ciência, as mulheres ainda não têm o mesmo apelo, reconhecimento e estímulo que os homens. O que facilmente pode ser ilustrado pela relação de laureados com os prêmios Nobel em Ciências ou das figuras mais importantes de História da Ciência, onde a ampla maioria dos exemplos é do sexo masculino (SCHIEBINGER, 2001).

O acesso à educação e o posterior avanço para o mundo do trabalho (esferas públicas) não foi, como ainda não é, uma realidade histórica e universal para as mulheres. Sobretudo conside-rando fatores como raça e classe social (GUEDES, 2012). A naturalização das funções e expectativas sociais em termos de sexo é responsável pela manutenção da integridade da sociedade patriarcal, assim os espaços de socialização, especialmente a família e a escola, podem funcionar como agentes de padronização e reprodução destas estruturas (ZAIDMAN, 2009).

Neste sentido, a vida de Rosalind Franklin, descrita por McGrayne (1999), é bastante ilus-trativa, pois está repleta de momentos em que as relações de gênero se apresentam e interferem no desenvolvimento de sua carreira profissional. Assim, desde os acontecimentos que antecede-ram o Nobel de 1962, premiação em si e o merecido reconhecimento décadas depois são evi-dências de como a História da Ciência está marcada pelo apagamento de figuras ilustres do sexo feminino, assim como de suas decisivas contribuições para a construção do conhecimento cien-tífico. Acontecimentos que aos poucos vem sendo revisitados através da difusão e fortalecimento dos estudos de gênero, historicamente impulsionados pelo movimento feminista do século XX (SCHIEBINGER, 2001, FOX KELLER, 2009).

IV. DE VOLTA À FOTOGRAFIA 51Tendo em vista estes aspectos, a Fotografia 51, dependendo da forma como é utilizada e

analisada, adquire significados e funções diferentes. Pode servir simplesmente para ilustrar uma aula de Genética ou embasar novas publicações e pesquisas sobre este tema. Ou ainda como gatilho para contextualizar e vincular temáticas consideradas teoricamente muito distantes, como são a genética molecular e as relações sociais entre os gêneros.

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Esta histórica fotografia e o caso de Franklin, impulsos que motivaram o desenvolvimento deste texto, trazem consigo uma enorme carga de significados para além da imagem espacial de uma molécula. Ela supera sua função unicamente técnica quando interpretada através da lente das relações de gênero nas Ciências. Onde se converte em um símbolo de resistência, representando as mulheres que adentraram um campo historicamente estruturado e dominado por homens e tiveram seus trabalhos roubados, foram subestimadas, destratadas, escondidas, esquecidas ou simplesmente apagadas da história, perdendo o direito de reconhecimento de seu brilhantismo.

Daí a importância de que os conhecimentos científicos sejam apreendidos e ensinados de maneira situada e em constante diálogo com o contexto aonde foram produzidos. Heerdt (2014) defende que o ensino de Ciências contextualizado social e historicamente é fundamental para a construção de uma sociedade equânime em termos de gênero. Para tanto, segundo a autora, são necessárias iniciativas educativas que promovam discussões e debates acerca de temas sociais em constante diálogo com conceitos e informações científicas utilizadas durante as aulas.

Neste sentido, conceber a Fotografia 51 e sua história como um exemplo da forma como construção de conhecimentos procedeu historicamente, significa dar voz à uma figura que perdeu sua chance no devido momento. Ou seja, dar a oportunidade de que futuras gerações de cientistas conheçam Rosalind Franklin e suas contribuições. E, além disso, que reconheçam as nuances con-traditórias da Ciência e da sociedade, percebendo ambas como campos indissociáveis e interdepen-dentes e mutuamente influenciáveis.

V. CONSIDERAÇÕES FINAISA percepção atual sobre a inserção das mulheres na sociedade, impulsionada pela ocupação

feminina dos espaços públicos, nos permite observar criticamente diversos acontecimentos histó-ricos que marcaram o empreendimento científico. O que houve com Rosalind Franklin foi revisto como um caso de discriminação de gênero décadas depois, através do avanço dos estudos de gênero voltados para a História da Ciência. Na época, apesar de já existirem movimentos de contestação das assimetrias sociais, econômicas e políticas entre homens e mulheres, o caso não foi reexami-nado à luz das desigualdades de gênero. Assim, apesar de sua origem privilegiada e oportunidades, Rosalind Franklin sofreu um golpe em sua carreira pelo fato de ser mulher. Neste sentido, o gênero foi central para a forma como suas contribuições como pesquisadora foram reconhecidas.

Além disso, vale ressaltar que fatores relativos à raça e classe social também atravessam o empreendimento científico e a História da Ciência, pois existe um padrão bem definido de indi-víduo da ciência – branco, ocidental e homem – que aos poucos vem sendo contestado, pois um modelo tão excludente não é capaz de representar universalmente toda a humanidade em termos de motivações, necessidades, objetivos e progresso científico e tecnológico (LÖWY, 2000).

Devido ao impacto social, inúmeros desdobramentos e presença constante nas redes sociais e mídias – em especial atualmente – gênero e suas diversas perspectivas chegam à escola através de múltiplas vias. Como currículos, solicitação de discentes ou comunidade escolar, livros didáti-cos, discursos científicos, comportamentos sexistas, preconceitos e discriminação (ALVES, 2016; MACEDO, 2007).

Assim, a maneira como a temática é aproveitada é decisiva para a superação de seus nocivos desdobramentos sociais. Segundo Tragtenberg (1985) a escola tem função dúbia, ao mesmo tempo

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em que pode funcionar como território de reprodução das estruturas sociais impostas, tem o poten-cial de agir como espaço profundamente questionador da ordem social. Neste sentido, existem duas possibilidades de abordagem de temáticas sociais tão delicadas quanto é a de gênero. A primeira em direção à conformação, cuja finalidade é a manutenção da estrutura social e a segunda, e mais importante, diz respeito à ruptura de conformação e a contestação do modelo social apresentado. O ensino de ciências e biologia contextualizado e socialmente responsável se insere nesta segunda.

Para Joan Scott (1995) a perspectiva de gênero é uma ferramenta de revisão da realidade, ou seja, uma forma de rever fenômenos e procurar desnaturalizá-los. Significa estranhar o fato de haverem tão poucas mulheres reconhecidas como grandes cientistas, tendo seus trabalhos laureados com premiações de prestígio internacional e sendo tratadas com as mesmas honrarias pela mídia – ao longo de todo o ano e não apenas no Mês da Mulher.

Significa, sobretudo, trazer exemplos para futuras gerações de mulheres na ciência, não para que apenas integrem comitês, chefiem laboratórios e recebam premiações, mas que atuem politi-camente para que outras tantas também o façam, abrindo espaço para que o caráter universal da Ciência seja um fato e não apenas uma especulação.

REFERÊNCIASALVES, L.L. Discursos sobre gêneros e sexualidades inscritos em corpos de livros didáticos de ciências (1970-1999). 2016. 187 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016.

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HEERDT, B. Saberes Docentes: gênero, natureza da ciência e educação científica. 2014. 239 f. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2014.

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