A ÚNICA LUTA QUE SE PERDE É AQUELA QUE SE ABANDONA. Etnografia entre familiares de mortos e...

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A ÚNICA LUTA QUE SE PERDE É AQUELA QUE SE ABANDONA

ETNOGRAFIA ENTRE FAMILIARES DE MORTOSE DESAPARECIDOS POLÍTICOS NO BRASIL

DESIRÉE DE LEMOS AZEVEDO

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Desirée de Lemos Azevedo

“A única luta que se perde é aquela que se abandona”

Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil

Campinas

2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2012/15601-7

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasMarta dos Santos - CRB 8/5892

Azevedo, Desirée de Lemos, 1982- Az25u Aze"A única luta que se perde é aquela que se abandona" ; Etnografia entre

familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil / Desirée de LemosAzevedo. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

AzeOrientador: Bela Feldman. AzeTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Aze1. Violência política. 2. Movimento social. 3. Estado. 4. Sofrimento -

Aspectos sociais. 5. Ditadura - Brasil. I. Feldman, Bela. II. UniversidadeEstadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: There is no defeat while the struggle is being made ; ethnographyamong relatives of dead and disappeared people in the brasilian dictatorship.Palavras-chave em inglês:Political violenceSocial movimentStateSuffering - Social aspectsDictatorship - BrazilÁrea de concentração: Antropologia SocialTitulação: Doutora em Antropologia SocialBanca examinadora:Cynthia Andersen SartiLetícia Carvalho de Mesquita FerreiraAdriana Garcia PiscitelliLiliana Lopes SanjurjoBela FeldmanData de defesa: 22-01-2016Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Para ela, Cecília.

Para quem é tudo. Para quem eu sou.

Agradecimentos

Essa tese, como todas as outras, não poderia ter sido escrita sem apoios, apostas, incentivos, críticas, diálogos, afetos, carinhos e cuidados de diferentes tipos. Apesar do processo de escrita de uma tese ser extremamente solitário e quase sempre penoso, estou certa de que esse texto é fruto do encontro entre diferentes intenções que me extrapolam, de todos os autores que li às pessoas que simplesmente me desejaram o melhor nessa empreitada. Sempre sob os riscos do esquecimento, gostaria de retribuir em agradecimentos aos mais diretamente implicados. Eventualmente, poderei me apropriar de alguns poetas para tentar expressar aquilo que o senti-mento alcança, mas as palavras escapam. Peço licença a todos eles.

Em primeiro lugar, agradeço às agências de financiamento que possibilitaram mi-nha dedicação exclusiva a esta pesquisa ao longo de quatro anos, à Capes, em um primeiro momento, e à Fapesp, em seguida. Mantenho a certeza na necessidade de um futuro em que o fortalecimento dessas e de outras agências torne possível uma universidade pública e uma pro-dução científica mais fortes, mais amplas e, principalmente, mais democráticas.

Bela Feldman é minha orientadora desde o mestrado. Lembro-me de já nos primei-ros momentos desse encontro providencial ter me identificado com sua postura firme e direta, seu jeito rebelde, nada convencional, e sua antropologia engajada. Não é fácil agradecer por tudo o que lhe devo ao longo desses anos: por sua acolhida afetuosa, por seus ensinamentos sobre an-tropologia e pesquisa e, sobretudo, pela forma como ela me ensinou. Bela tem uma forma bonita de orientar. Eu me beneficiei de sua confiança, de minha parte mais do que retribuída, e de seu profundo respeito por minhas ideias e decisões. Trabalhar com ela sempre foi gozar da liberdade que tanto prezo e, ao mesmo tempo, me beneficiar de sua experiência, sua atenção e sua franque-za em relação aos meus caminhos. Seus constantes pedidos de “duas páginas”, um exercício de síntese tão difícil quanto importante, foram determinantes para a depuração e o refinamento das ideias. Bela está presente em cada uma das páginas que seguem. Nessa relação, que foi bem além de uma orientação, eu conheci uma pessoa generosa e companheira, não somente compreensiva, mas parceira nos momentos difíceis. Hoje, creio que posso agradecer à Bela por sua amizade.

Além de Bela, outros professores foram fundamentais para a formação antropoló-gica da reticente historiadora que ingressou no PPGAS em 2009: Guita Grin Debert, Nádia Farage, Mauro Almeida, Rita Morelli, Ronaldo Almeida, Omar Ribeiro Thomaz, Suely Kofes, Heloísa Pontes e o saudoso John Monteiro. A todos eles agradeço pelos conhecimentos compar-tilhados, pelos esforços por nos arrancar da obsessão por nossos próprios temas, mas também pelo diálogo e contribuições generosas com nossas pesquisas.

Aos professores Márcio Selligman-Silva e Bruno Groppo, com quem também quem fiz cursos durante o doutorado, assim como Emílio Crenzel e Valentina Salvi agradeço pelo muito que pude aprender, pela generosidade, e pelos instigantes diálogos sobre temas comuns de pesquisa. As trocas com cada um deles contribuíram enormemente para minha formação e para o desenvolvimento desse trabalho. Ao Emílio agradeço especialmente pela leitura e comentários valiosos quando essa tese ainda era apenas um projeto.

À Cynthia Sarti e à Maria Filomena Gregori tenho muito a agradecer. Suas falas precisas durante o exame de qualificação são o tipo de contribuição generosa que não se pode esquecer. Elas foram determinantes ao enxergar o potencial da pesquisa, me encorajando a reali-zar o redirecionamento de foco que a trouxe até este resultado final. As duas terão sempre minha gratidão e admiração. À Cynthia, Adriana Piscitelli, Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira e Liliana Sanjurjo agradeço por aceitarem compor a banca de defesa. Agradeço igualmente aos suplentes, Douglas Mansur, Igor de Renó Machado e Antônio Guerreiro.

A todos os funcionários do IFCH, especialmente à Márcia Goulart, pelo paciente trabalho cotidiano.

Em 2011, Patrícia Carvalho, Carlos Eduardo Marques, Igor Scaramuzzi, Inácio Dias de Andrade e eu formamos uma pequena, mas unida turma de doutorado. Da época em que fizemos os cursos, sinto imensa saudade da convivência em sala de aula, no IFCH e, prin-cipalmente, nas nossas obrigatórias pizzas de quinta-feira. A Pat, nossa gaúcha de Brasília, foi um respiro de sanidade no meio de tantos garotos. Só com ela essa convivência foi possível! Inteligente, divertida e ponta firme, a Pat nunca diz não pra um convite. Um prazer desfrutar de sua amizade. Pensar no Carlos sempre me faz sorrir. Ele parece um sujeito enrolado, mas é puro disfarce. Deu uma rasteira em todo mundo e o foi o primeiro a defender sua tese. Eu sei o quanto a vida tornou as coisas mais difíceis para ele do que para nós. Fica registrada aqui minha admiração por sua força e competência. O Igor é uma das pessoas mais afetuosas que já conheci. É um privilégio conviver com seu humor, ao mesmo tempo, ingênuo e sarcástico. Ele sabe ser amigo e, além disso, é um rapaz muito sonhador (“sabemos do que estamos falando!”). Com o Inácio, todo mundo sabe, minha maior afinidade. Grande brother, ele sempre soube que a mi-nha notória implicância é uma forma de carinho. Eu seria injusta se não somasse à turma dois de seus mais importantes “agregados”. Natália Corazza Padovani, “minha feminista preferida”, sempre fazia eu me sentir uma ogra ao explanar por aí as minhas falas mais heterodoxas em sala de aula. Garota maneira e muito querida. Alan Carneiro, que eu simplesmente adoro, é a doçura e a sensibilidade em pessoa. A todos eles, só posso dizer obrigada pela convivência, pelos debates e pela amizade. Foi tudo muito melhor com vocês, queridos!

Na Unicamp, conheci pessoas queridas com quem aprendi muito e cujo afeto e carinho estarão sempre comigo. Agradeço à Laura Santonieri, Gustavo Rossi, Hugo Ciavatta,

Giovana Lopes Feijão, Raúl Ortiz Contreras, Hector Guerra Hernandez, Julian Simões, Patrícia Gimeno, Rodrigo Charafeddine Bulamah, Luybeth Camargo de Arruda, Fernanda Gallo, Joana Da Hora, Jimena Pichinao, Jose Quidel, Roberta Rizzi, Diego Amoedo, Ana Laura Lobato, Fabiana de Andrade, Larissa Nadai, Rafael Cremonini Barbosa, Ernenek Mejía, Mariana Petroni, Paulo Dalgalarrondo, Antônio Guerreiro, Luís Felipe Sobral. Agradeço ainda à Nashieli Rangel Loera, carinho que passa por nossas filhas, Bernardo Curvelano Freire, meu implicante favorito, Gabor Basch, o mais adorável rabugento, e Mauro Brigeiro, carinho imen-so. A todos agradeço pela amizade, pelo prazer da convivência e pelos momentos de reflexão conjunta que considero parte relevante da minha formação. Vocês podem até não saber, mas participaram, de diversas maneiras, das reflexões presentes nessa tese.

Taniele Rui é uma amiga e uma inspiração. Não há palavras suficientes para agrade-cê-la. Nem por todas as formas de apoio e cuidado desde minha chegada à Campinas, nem pela leitura, estímulo e contribuições imprescindíveis que deu a esse trabalho, pelo quanto aprendi de antropologia com ela, e muito menos pela delicadeza do seu afeto. Tani é alguém de quem estou sempre com saudade. O tempo com ela nunca é suficiente. Ela é uma companheira daquelas que fazemos poucas e, quando isso acontece, levamos por toda a vida. O mesmo eu posso dizer sobre Liliana Sanjurjo, com quem tenho minha maior parceria de trabalho. Crescemos juntas nesses debates nem sempre generosos do mundo acadêmico. Desse primeiro contato, nasceu uma ami-zade preciosa de confidências e cuidados, carinhos e muitas trocas. Tani e Lili, duas mulheres incríveis, de quem quero ser amiga na medida mais precisa que eu puder.

Ao longo da pesquisa de campo, conheci pessoas a quem chamo sinceramente de interlocutores. Com Amanda Brandão, parceira de pesquisas na Comissão da Verdade Rubens Paiva, troquei impressões e dividi as angústias do campo. Os dias passados na Assembleia Legislativa de São Paulo foram mais produtivos e agradáveis ao seu lado. A ela agradeço pela companhia, pelas trocas, pelo estímulo, assim como pela leitura e comentários importantes sobre alguns capítulos dessa tese. Com os assessores da comissão, Renan Quinalha, Tatiana Merlino, Thaís Barreto e Vivian Mendes aprendi sobre o funcionamento de uma comissão da verdade e alguns de seus desafios. Juntos aprendemos um pouco mais sobre Direitos Humanos, ditaduras e a história recente do país. Agradeço-lhes pelos ensinamentos práticos de como bem unir o trabalho com as convicções políticas. No Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, co-nheci pessoas que serão pra sempre marcantes na minha vida. Agradeço em especial a Carmem Lapoente, Cecília Coimbra, Luiza Martins, Jane Quintanilha, Joana D’Arc Fernandes, João Costa, Luiz Edmundo Moraes, Sérgio Moura, Marcos Valladares e Zélia Lima pela paciência, pela forma afetuosa com que me receberam, por seu genuíno interesse nessa pesquisa e, mais do que isso, por seus questionamentos e opiniões frequentes sobre ela. Eles me estimularam constantemente a repensar e a questionar minhas percepções, tornando-se uma contribuição fundamental para o desenvolvimento do trabalho. De outros espaços da pesquisa, agradeço as

colaborações diretas de Adriano Diogo, Heloisa Greco, Maurice Politi, Carlos Lichtsztejn, Ana Miranda, Beatriz Affonso, Fernanda Pradal, Tiago Regis, Amy Westhtrop, Moniza Rizzini, Vítor Guimarães, Pedro Bomfim, Marlon Weischert e Nadine Borges.

Para os familiares de mortos e desaparecidos políticos, embora as palavras me faltem, há tantas que quero dizer. Agradeço a todos eles, em especial aos que li e ouvi durante o traba-lho de campo. Agradeço afetuosamente a Victória Grabois, Elizabeth Silveira e Silva, Maria Amélia de Almeida Teles, Thaís Barreto e Ivan Seixas com quem convivi mais intensamente. A vocês, penso que seria tolo dizer como sua generosidade tornou possível essa pesquisa. Talvez seja banal falar do quanto lhes admiro a corajosa impertinência, a tenacidade na luta e a capa-cidade de cultivar amor como resposta a tanta violência. Sinto que nas relações tecidas durante esta pesquisa recebi muito mais do que poderei um dia lhes retribuir. Vocês me ensinaram quanta dignidade é preciso para assumir o sofrimento e a própria vulnerabilidade. Fizeram-me ver quanta beleza há em fazer do reconhecimento dessa dependência fundamental, que nos une a todos e que nos expõe uns aos outros, a maior de nossas forças. Não fosse tudo isso motivo suficiente, também os agradeço por serem vozes a lembrar que, se para o júbilo o planeta está imaturo/é preciso arrancar alegria ao futuro. A todos os familiares, que não têm nenhuma respon-sabilidade, nem concordância prévia com os escritos que seguem, meu mais profundo respeito e sincera gratidão.

Em terras soteropolitanas, conheci e sou grata pela amizade, o carinho e o apoio de Mariana Balen Fernandes, Marina Guimarães Vieira e Frederico Lobo. Agradeço também a Cecilia Maccalum, Nicolau Parés, Yann Pellissier, Ricardo Sangiovanni e Lorena Volpini. Mônica Andrade, ainda que mais nova, cuidou de mim com o carinho de uma mãe.

Ao Diego Marques não há fórmula simples de agradecimento. Estivemos juntos, aprendemos e crescemos. Compartilharemos sempre Cecília, o maior amor. E, através dela, laços grandes demais para serem ditos. E se há tanta suavidade em nada se dizer/E tudo se enten-der, devolvo-lhe o inefável nos versos de outro poeta. Ele que, afinal, também está entre aquelas coisas que nos unem.

Através de Marcello Bertolo, Nelsinho Costa e Príncila Mello agradeço a todas aquelas amizades de longa ou curta data que, em presença ou em lembrança, me enchem de felicidade e me arrancam sorrisos. São amores que desafiam tempos e distâncias, por meio dos quais o eu sempre deságua em nós. Carol Moreira é mais do que amada. Minha parceira e con-fidente desde uma eternidade. Afeto, confiança e cuidado que se impõem sobre o afastamento cotidiano e os contrastes de personalidade. Bruno Miranda Neves e Marcela Reis são mais do que amigos, são irmãos que reconheci na vida. A eles também não tenho formas de agrade-cer, mesmo sabendo que não esperam isso de mim. Eles estavam ao meu lado em momentos fundamentais da minha vida. Estavam lá no mais difícil de todos. Juntaram meus cacos e me

ajudaram a seguir, quando eu achei que não conseguiria. O amor deles, nosso amor, é mais do que precioso.

Já no fim dessa jornada, passei a acreditar em reencontros e portas mágicas. Através de uma destas, quando nada parecia indicar, vi de novo aquele olhar. O mesmo olhar e, com ele, o mesmo sentimento: Then as it was, then again it will be. Nesse dia, Fabinho começou a revolver tudo o que parecia posto. Me fez desejar a suavidade da sua presença, a intensidade do nosso apego e a liberdade dessa relação. Desde então, o agradeço pela felicidade (imensa felicidade) e por me fazer acreditar em dias melhores e mais leves.

Ana Thereza, minha mãe, é dessas para quem tudo o que as filhas fazem é lindo. Cresci com seu apoio incondicional em toda e qualquer coisa que decidi fazer. Por isso, lhe sou imensamente grata. E se ela apoia nas decisões, também segura as pontas quando as coisas dão errado. E as coisas são caprichosas, vez por outra, teimam em dar errado. Eu insistiria em agra-decer minha mãe por tudo que fez por mim, pelo refúgio da sua existência, não fosse a certeza de que para ela agradecimentos não fazem sentido. Ela fez, porque é isso que nós fazemos uma pela outra. Eu sei mãe: é tudo nosso! Ao Fernando, meu pai, agradeço por ser meu primeiro profes-sor. Por despertar meu gosto por música, literatura, pintura, cinema e fotografia, por tentar me ensinar tudo o que sabia e sempre me estimular a aprender mais. Meu interesse pela leitura e o estudo se deve a sua presença em minha vida. Meu avô, Flávio Pimentel de Lemos, partiu (sem me deixar) algumas semanas antes da defesa dessa tese. A ele, ilustre professor, tão acostumado às homenagens, nada menos do que a minha devoção.

Minha irmã, Louise de Lemos, é minha maior amiga, minha atriz preferida, minha companheira de vida. Nos conhecemos e nos amamos pelos detalhes imperfeitos. Sonhamos o sonho uma da outra. Eu a defendo, ela me protege. Sempre foi assim. Pedro Nunes um dia me emocionou dizendo que eu era sensacional. E disse daquele jeito mesmo que só ele sabe dizer. Como resposta, queria dizer o quanto o admiro e aprendo com sua leveza diante da vida. Um professor guerreiro, um parceiro de noitadas imprescindível, e o melhor companheiro que eu podia querer para minha irmã. Junto aos dois tenho amor, guarida e cumplicidade. Agradeço pelo lugar que me reservam no mundo que dividem.

De tudo quanto eu disse até agora são momentos, situações, processos e contextos. Se na vida somos uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, você, Cecília, é aquilo que me recorta e me fixa. Nosso amor não tem contexto. Sinto-o estável, permanente, inabalável. Translúcida me vejo na sua vida. Você consegue entender um sentimento como este, minha filha? Como pode algo que nos extrapola ser, ao mesmo tempo, tão concreto? Sua presença está ins-talada no meu próprio corpo. Seu cheiro no meu colo. Seu amor, Ciça, tenho sempre comigo, onde quer que você esteja. Às vezes, quando olho para ele, posso ver você sorrir pra mim. Aí me lembro que com você eu me sinto livre, que ao seu lado há infindáveis mundos por existir.

Eu posso ser a sua Princesa Coice de Mula, ser uma funkeira, ou a melhor das patinadoras. Podemos ser Jedis ou caçadoras de nuvens. Do seu lado, torcer pelo Flamengo é mais feliz. E você até me ensinou – veja só!! - a desenhar um homem que não é palito. Obrigada por tudo minha filha. Obrigada por estar comigo, por ser você e pelo que você me ensina a ser. Mamãe te ama “ao cilindro”.

A Frederico García Lorca

Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu

Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu Que bebi na tua boca a fúria de umas águas

Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei Porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.

Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia. Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.

E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória E cantar de repente: “os arados van e vên

desde a Santiago a Belén”.

Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo: Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.

Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão: Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram

Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê? “El passado se pone su coraza de hierro

y tapa sus oídos con algodón del viento.

Nunca podrá arrancársele un secreto.”

E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos

Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas! Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados

De infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão. Companheiro. Que dor de te saber tão morto.

(Hilda Hilst)

Resumo

A presente tese reflete sobre o movimento de familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Lidando com uma perspectiva histórica, esta etnografia acompanha o surgimento e a inserção desse movimento político nas arenas de debates públicos sobre a Ditadura (1964-1985). Espaços onde a identificação da violência passada, a denúncia da injustiça e a nomeação de direitos se fazem centrais. O objetivo é compreender como a expressão pública de testemunhos, demandas e denúncias passam a ser reconhecidas como uma forma de coletivizar as experiências, as dores e as trajetórias familiares e constituir os “mortos e desaparecidos” como categoria a partir da qual a produção de narrativas sobre a Ditadura se volta para a busca de “responsabilidades” e de “direitos”, mas também para a construção de projetos de futuro calcados no respeito aos Direitos Humanos. Ao longo do texto, coloco em evidência as categorias, as narrativas e as práticas através das quais as organizações se inserem nos espaços de disputa política e reivindicam a condição de vozes mais autorizadas a falar sobre o passado. Também discuto como, nesse processo, os “familiares de mortos e desaparecidos” passam a se ver e serem vistos como uma comunidade, sujeitos do sofrimento, do conhecimento, da denúncia e de estratégias políticas de luta por reconhecimento. Por fim, argumento que os familiares de mortos e desaparecidos são uma comunidade política e moral que se imagina forjada, simultaneamente, pela luta e pela vulnerabilidade, em meio às redes de afeto e de solidariedade que se constituem na relação entre os sujeitos do movimento, com os “mortos e desaparecidos” e com as instituições do Estado para as quais suas demandas são direcionadas.

Palavras-Chave

violência política, movimento social, Estado, sofrimento, Ditadura (1964-1985).

Abstract

This thesis reflects on the political movement composed of the families of the dead and  disappeared people in the brasilian Dictatorship (1964-1985). The etnography deals with a historical perspective to accompany the emergence of the relative’s movement and his insertion in the public arenas dedicated to debating the violent past and promoting iniciatives to strengthen the rule of law and promote human rights. The goal is to understand how the public witnesses, claims and denounces of the relative’s movement had been recognized as a way to convert family pains and trajectories into a collective experience, and build the “political dead and desappeared people” into a category through which the narratives on the Dictatorship turn to state responsibilities, rights and a better future with respect for human rights. The text underlines the category, narratives and practices mobilised by the movement to disputing the public space and to legitimise the relatives as the leading authorities on the past. I also discuss how, in this process, the “dead and desappeared relatives” are seen and feel themselves as a community composed by suffering and knowlegde subjects, with political strategies to report rights abuses and struggle for recognition. Finally, I ague that the dead and desappeared relatives are a moral and political community that imagine itself forged by struggle and vulnerability, through ties of affection and solidarity and in relationship between the movement actors, the dead and desappeared people, and the state institutions tha deals with his claims.

Keywords

political violence, social moviment, State, suffering, Dictatorship (1964-1985).

Lista de abreviaturas

ABI Associação Brasileira de Imprensa

ADPF Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental

AI-5 Ato Institucional Nº5

ALESP Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

ALERJ Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro

ALN Ação Libertadora Nacional

ARENA Aliança Renovadora Nacional

CBA Comitê Brasileiro pela Anistia

CA Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

CEJIL Center for Justice and International Law

CEMDP Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

CJP Comissão de Justiça e Paz

CNBB Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CNV Comissão Nacional da Verdade

CONADEP Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

CTV Comissão Teotônio Vilela

CVRP Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva

DOI-CODI Destacamento de Operações e Informação – Centro de Operações de Defesa Interna

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

EAAF Equipo Argentina de Antropología Forense

FFAA Forças Armadas

FEDEFAM Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos

GTA Grupo de Trabalho Araguaia

GTNM/RJ Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

ICTJ Internacional Center of Trasitional Justice

IML Instituto Médico Legal

ISER Instituto de Estudos da Religião

MDB Movimento Democrático Brasileiro

MFPA Movimento Feminino pela Anistia

MJ Ministério da Justiça

MJDH Movimento Justiça e Direitos Humanos

MPF Ministério Público Federal

NEV/USP Núcleo de Estados da violência da Universidade de São Paulo

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

OEA Organização dos Estados Americanos

ONU Organização das Nações Unidas

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCdoB Partido Comunista do Brasil

PF Polícia Federal

PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

SDH Secretaria de Direitos Humanos

STF Supremo tribunal Federal

Sumário

Introdução 23

Pesquisa e organização do texto 38

1.“Não se trata de conhecer, mas de reconhecer” 49

Memórias do esquecimento 61

O problema dos “mortos e desaparecidos políticos” 75

Memória, Verdade e Justiça 90

2.“Tudo começou com a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos” 109

Estado e Violência: a militância do GTNM/RJ 112

Uma comunidade de sofrimento: a luta e a Comissão de familiares 130

3.“Os nossos mortos e desaparecidos” 153

Os casos e a causa 159

A Comissão da Verdade Rubens Paiva 176

Quem são os mortos e desaparecidos políticos? 210

4.“Nós não somos o Estado” 219

O Estado no banco dos réus 230

O Estado, este outro 244

Dependência, suspeição, ressentimento 262

5. “O sofrimento dele já foi. Já acabou. Ele agora é seu” 273

Uma ausência que os habita 276

Beth e René 279

Iara, Alex, Iuri e Arnaldo 290

Victória, André e Criméia 300

Ñasaindy, Damaris, Soledad e José Maria 310

Mariluce, Gildo e Tessa 318

Vulnerabilidade e resistência 326

Apontamentos finais 335

Referências Bibliográficas 347

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Introdução

Em outubro de 2009, o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) organizou, em parceria com o Governo Federal, a Conferência Internacional sobre o Direito à Verdade. O evento tinha como objetivo analisar as possibilidades de criação de uma comissão da verdade no Brasil, empreendimento que viria a se concretizar três anos depois. A intenção dos organizadores era distanciar as discussões sobre a implementação de tal comissão das polêmicas estabelecidas entre setores sociais com memórias conflitantes acerca da Ditadura (1964-1985), e aproximá-las da legislação e da produção acadêmica transnacional sobre os Direitos Humanos. Para tanto, foram convocados conferencistas considerados especialistas no tema, entre pesquisadores, juristas e consultores, brasileiros e estrangeiros, além de atores vinculados às administrações estadual e federal. Entre eles, o Ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi, além de Paulo Sérgio Pinheiro e José Gregori, dois de seus antecessores no cargo. Defendendo a necessidade de (re)conhecer as “violações de direitos humanos” cometidas pela Ditadura e afirmar os “direitos das vítimas”, o evento também reservou espaços para que fossem ouvidos alguns “testemunhos”. Chamada nessa condição, Suzana Lisboa, integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, falou ao público:

Boa noite a todos e a todas. Eu queria agradecer ao Paulo Sérgio e a Glenda a oportunidade de estar aqui. Agradecer as palavras do Marco Antônio de reconhecimento da nossa luta, também feito pelo Ministro José Gregori e pelo Belisário. Isso é muito importante pra nós porque, infelizmente, mesmo tendo sido os protagonistas dessa história por mais de 40 anos, nós, os fami-liares, somos em muitos momentos malvistos, malquistos e mal-entendidos. Fez 30 anos, no dia 22 de agosto, que nós fizemos, no dia da votação da Lei da Anistia no Congresso Nacional, a denúncia do encontro do corpo do Luís Eurico, meu marido. O primeiro desaparecido que nós localizamos enterrado no cemitério de Perus. Logicamente recebi, a partir de então, uma quantidade imensa de ameaças, não só da direita, mas também da esquerda, porque essa atitude foi uma atitude considerada revanchista. Naquela época, qualquer co-mentário, qualquer vírgula que se falasse em relação à lei da anistia, qualquer complemento que se pedisse, qualquer crítica, era como se estivéssemos nós querendo desmanchar um compromisso que nós não fizemos, nós não parti-cipamos, nós não nos incluímos. E tivéssemos que abdicar dos nossos direitos de denunciar a tortura, a morte e o desaparecimento dos nossos familiares. Basta falar em responsabilizar os torturadores para que vozes se levantem a falar de novo em revanchismo (…). Isso faz e fez com que nós tivéssemos essa pecha incômoda, porque nós estamos sempre ali a lembrar, lembrar e lembrar (….) Nós não queremos lembrar para reverenciar o passado, queremos lembrar para que não mais aconteça. Para que o mesmo tiro que teve Carlos Marighel-la na mão, uma marca de defesa que mostrou a sua execução, não apareça em um menino de 8 anos (…) que foi executado recentemente aqui em São Paulo

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e que tinha na mão a mesma marca de defesa que o Marighella. O mesmo mal súbito que matou José Maria Ferreira de Araújo, marinheiro desaparecido aqui em São Paulo em 1970, foi a mesma desculpa que inicialmente foi dada pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul, em junho desse ano, para justi-ficar a morte de um sem-terra. (...) Nesse momento, eu gostaria muito de não ter visto nos jornais de hoje a palavra do Presidente da República dizendo que vai limpar o Rio de Janeiro. Pessoa não são sujeira, as pessoas estão ai para se-rem cuidadas. Eu acho que por essas coisas, nós temos dificuldades de sermos aceitas. Nós não temos partido, o nosso partido é o partido da verdade e da justiça. Infelizmente, o Brasil tem cumprido um caminho na busca da verda-de, mas é um caminho tortuoso... [na realidade, é um caminho] na busca da reparação, que é só o que foi feito até hoje. E tem sempre delegado a segundo plano a verdade, nem se fala da justiça. A Lei N. 9140 de 95 foi conquistada por nós, familiares e sociedade civil. (…) O que a lei fez? Ela reconheceu a morte de 136 dos desaparecidos políticos que estavam no nosso dossiê e criou uma comissão [a CEMDP] para avaliar outros casos. O ônus da prova de quem era? Nosso. Nós tivemos que provar à comissão que a ditadura militar havia mentido em suas versões de suicídios, atropelamentos e tiroteios. (…). A verdade, o pouco de verdade que foi construída pela comissão foi a partir dos nossos processos (…). Nós invadimos os arquivos do Instituto Médico Legal (…) assim tivemos as primeiras fotos relativas aos nossos familiares. Nós fica-mos dentro do IML dias e dias olhando fotos de cadáveres mutilados. Uma coisa que é muito difícil suportar. Buscando naquelas fotos enxergar os nossos familiares. (…) As nossas principais críticas à lei eram, e são: o Estado não reconhece que matou... reconhece que matou, mas não diz como matou. Não nos diz de forma alguma como foram mortos os nossos familiares, por quem foram mortos e não encaminha a punição dos responsáveis. E principalmente, uma questão que muito nos incomoda é que trata a questão dos familiares de mortos e desaparecidos como se fosse uma questão pessoal entre governo e família. (…). Não é uma questão familiar, é uma questão da sociedade1.

Visivelmente emocionada, como quase sempre parece estar, Suzana usou seu tempo para falar de questões que vão além de suas experiências pessoais. Nesse dia, como em outras oportunidades, Suzana se apresentou como membro de uma coletividade que estabelece deman-das para o “Estado”, inserindo seu relato pessoal sobre a busca por seu marido, desaparecido durante a Ditadura, em um conjunto mais amplo de gestões, movimentações e articulações realizadas ao longo de décadas por “nós, os familiares”. Tal coletivo, marcado apenas pelo traço genérico e difuso do parentesco, vai ganhando contornos à medida que Suzana narra e relaciona outros casos que, como o de seu marido, concretizam e particularizam a categoria central de sua

1 Trechos do discurso de Suzana Lisboa, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=44uSOF-2-OQI. Acesso em 19/10/2013. As pessoas citadas em seu discurso são: Paulo Sérgio Pinheiro, coorde-nador do NEV, ex-Ministro dos Direitos Humanos, membro da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Glenda Mezarobba, pesquisadora do NEV, consultora da CNV. José Gregori, Ministro dos Direitos Hu-manos em cuja gestão foi elaborada a Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos. Marco Antônio Barbosa, ex-Presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Belisário dos Santos Jr., advogado de presos políticos na Ditadura, ex-conselheiro da CEMDP. José Maria Ferreira de Araújo e Carlos Marighella fazem parte da lista dos “mortos e desaparecidos” denunciada pelos familiares.

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narrativa, os “mortos e desaparecidos políticos”. A associação da denúncia dos casos à exposição de um conjunto de demandas – Memória, Verdade e Justiça – vistas como “direitos” persegui-dos, porém negados durante 40 anos, demarca uma história, uma memória e um horizonte de ação política comum, aquilo que ela denomina como “a nossa luta”.

Ao falar dessa luta, procurando estabelecer aquilo que a caracteriza, Suzana enfatiza tanto os estreitos laços sociais e afetivos que mantém relacionados os “mortos e desaparecidos políticos” e seus “familiares”, quanto os procedimentos (legais burocráticos, mas também ex-traoficiais) mobilizados ao longo dos anos para denunciar essas mortes no país onde as noções de perdão e esquecimento, que teriam sido promovidas pela Lei de Anistia de 1979, são consi-deradas as principais marcas da transição política para a democracia.2 Sua narrativa evidencia os esforços investigativos “dos familiares”, os conflitos políticos por eles enfrentados, além de uma série de frustrações em relação à legislação e aos aparatos institucionais, considerados insuficien-tes e injustos. Ressalta, assim, uma relação antagônica entre “os familiares” e “o Estado”, fazendo um percurso que vai dos constrangimentos impostos pela Ditadura, materializados na Lei de Anistia que ignora suas demandas, à falta de compromisso dos governos democráticos com a busca da verdade e da justiça, resumida pelas insuficiências da Lei de Mortos e Desaparecidos. A contraposição entre, de um lado, a insistência em “ lembrar, lembrar e lembrar” e, de outro, as ameaças, as acusações de revanchismo, a indiferença, as injustiças, o isolamento político e o esquecimento, sugere que, nesse contraste, são “os familiares” os atores sociais verdadeiramente interessados e empenhados em construir uma memória sobre o período.

O protagonismo reivindicado por Suzana encontra respaldo nas nossas representa-ções sobre a naturalidade dos vínculos sociais, morais e afetivos associados ao parentesco, que legitimam como direito e obrigação incontestáveis de um familiar prantear e enterrar “seus mor-tos”, reivindicar suas memórias e, quando necessário, exigir justiça.3 Podemos notar que essas

2 Como veremos com vagar ao longo do texto, a Lei de Anistia foi elaborada sob responsabilidade do ditador João Figueiredo e aprovada pelo Congresso Nacional, em 1979. A anistia (esquecimento e per-dão) para os perseguidos políticos era reivindicada por diversos setores da oposição desde o pós-Golpe. Mas foi apenas a partir de 1978 que essa demanda se concretizou em uma grande campanha por Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, que alcançou grande popularidade. Ela procurava relacionar a conquista do perdão para os perseguidos políticos à publicização de denúncias sobre as violências cometidas pela Ditadura, bem como à exigência de medidas que levassem ao fim o regime de exceção. Contudo, a pro-posta de lei que foi encaminhada pelo Planalto ao Congresso, em 1979, contrariou os desejos de grande parte dos envolvidos na campanha popular. Por um lado, a Anistia beneficiou apenas uma parcela dos cassados, presos e perseguidos políticos, ao mesmo tempo em que foi aplicada preventivamente a todos os agentes do regime, inclusive aos torturadores. Por outro lado, surgiu dissociada de um processo de reconhecimento e reparação das violências cometidas durante a repressão política. Apesar disso, a lei é ainda hoje considerada o principal símbolo do longo processo de abertura do país para a Democracia, muitas vezes referida como o “acordo” ou “pacto” político que a possibilitou, razão pela qual Suzana refe-re-se a ela como “um compromisso que nós não fizemos, nós não participamos, nós não nos incluímos”.

3 Conforme pontua Hertz (1960), para além de ser um fenômeno físico, a morte está cercada por dife-

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representações, muito comuns nas narrativas de “familiares de mortos e desaparecidos políticos”, são também observadas em discursos públicos de diversos outros atores sociais. Ao abordar o tema, procurando relatar e compreender a “busca incansável” desses familiares, os jornais com al-guma frequência citam Antígona de Édipo para lembrar a “tradição ancestral de enterrar os mortos”,4 assim como a “necessidade dos rituais fúnebres” para que os familiares concretizem e assimilem a morte.5 É também comum encontrar nas reflexões de autoridades e defensores de direitos huma-nos o destaque para o luto como obrigação/direito “milenar e sagrado”6 associado ao parentesco e reconhecido “desde as sociedades mais remotas”.7 Partindo dessa mesma perspectiva, a campanha institucional pergunta: “como você se sentiria se não tivesse o direito de enterrar um filho?”.8

Em todas essas referências, a linguagem do parentesco é aquela que delimita uma comunidade de interesses e de sentimentos decorrentes das relações entre os mortos e os sobre-viventes. Associada ao terreno da natureza, tal linguagem é capaz de criar identidade, sensibi-lizando atores que, embora não partilhem a mesma experiência (ou os mesmos ideais políticos atribuídos aos mortos), reconhecem afetos e obrigações como aspectos inerentes aos (seus pró-prios) vínculos familiares. Mas, se Suzana nota que o foco nos dramas familiares pode se tornar princípio de sensibilização de uma sociedade que, em grande parte, não se pensa afetada por seu passado ditatorial, ela também aponta que esse prisma não tem sido suficiente para que a

rentes e complexas emoções e representações sociais, variáveis entre sociedades. A partir de exemplos etnográficos, o autor argumenta que as diferentes ações sobre o corpo, em variados tipos de rituais funerários, são responsáveis pela transição de status do falecido no interior de sua comunidade, reafir-mando os laços sociais entre vivos e mortos. Em estudo não menos clássico, Ariès (2012) discute mais especificamente as representações “ocidentais” sobre a morte, a partir de dados sobre a França e Estados Unidos. Partindo dessa associação natural entre parentesco e práticas de luto, o autor questiona a ideia de continuidade atemporal (desde a antiguidade) das mesmas representações sobre a morte, o corpo, o luto, o enterro digno, as relações entre corpo e alma, bem como das práticas funerárias, enfatizando as transformações históricas das atitudes diante da morte.

4 Cf. O Estado de São Paulo 31/03/2014, No segredo dos desaparecidos, uma ditadura ainda de pé.

5 Cf. Carta Maior 02/08/10, Desaparecidos: à margem do rio dos mortos.

6 Texto de apresentação do relatório da CEMDP, Direito à memória e à verdade, assinado pelo Ministro Paulo Vannuchi. (SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2007).

7 Cf. Folha de São Paulo, 2/11/2001, Ministério Público e Araguaia. Artigo assinado pelos Procurado-res Guilherme Schelb e Marlon Weichert.

8 O cartaz é parte de uma campanha institucional, organizada em 2009, pelo Projeto Memórias Re-veladas do Arquivo Nacional. O projeto foi criado nesse mesmo ano com intuito de construir uma pla-taforma única de consulta para acessar os acervos sobre a Ditadura, dispersos em diversos arquivos por todo o país. Para além dessa ferramenta consultiva, o projeto também empreende atividades culturais e científicas com intuito de fomentar a memória sobre o período, tais como exposições, seminários, con-cursos de teses e dissertações, etc. Na campanha em questão, o objetivo era informar que “ainda existem mais de 140 desaparecidos político no Brasil” e apelar por documentos e informações que “ajudem a encontrá-los”. Sobre a política de arquivos no país e a instalação e funcionamento do projeto Memórias Reveladas, ver: Azevedo, 2011.

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questão dos “mortos e desaparecidos” deixe de ser vista como uma “questão familiar”. Com essa afirmação, Suzana procura criticar a legislação brasileira, referindo-se a certos princípios das normativas internacionais de Direitos Humanos, como o chamado “direito à verdade”, segundo os quais o reconhecimento, o esclarecimento e a punição de violências cometidas por regimes autoritários devem ser encarados como “questões da sociedade” e “obrigações do Estado”.9

9 O direito humanitário internacional é construído através dos tratados e decisões estabelecidos nas es-feras dos órgãos judiciais e organismos internacionais, assim como da jurisprudência e legislação interna dos países. Segundo Gonzales e Varney (2013), através desses artefatos, o “direito à verdade” se tornou um princípio “bem estabelecido”. Ele indica que as vítimas de “graves violações de direitos humanos” e seus familiares têm direito a uma “reparação efetiva”. Isso incluí conhecer “a verdade” sobre essas viola-ções (investigação e esclarecimento eficaz dos fatos), a identidade dos perpetradores e, quando for o caso, o paradeiro das vítimas. Trata-se de um “direito das famílias” de celebrar a vida e lamentar a morte, e um

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No entanto, é preciso notar que muitas das “autoridades” envolvidas com o tema no Brasil concordam, em parte, com as insuficiências destacadas por Suzana (e outros familiares), argumentando, em muitas oportunidades, que o Estado brasileiro está se alinhando – ou ainda precisa se alinhar – a tais princípios. A frase “para que nunca mais aconteça”, presente tanto na fala de Suzana, como no discurso proferido pelo Ministro dos Direitos Humanos no mesmo evento, assim como no cartaz institucional mostrado acima, surge como marca desse entendimento comum, forjado pela gramática dos Direitos Humanos.

A aproximação entre os discursos de familiares e de atores institucionais remete à questão posta por Veena Das (1995) ao analisar as atuações dos Estados indiano e paquistanês no caso das mulheres sequestradas e violentadas durante os conflitos que envolveram a Partição, em 1947. Ao observar o processo, a autora se pergunta: como a noção de responsabilidade na-cional é evocada frente às tragédias pessoais desenvolvidas naquele contexto? Analisando as ma-neiras pelas quais os eventos relativos a tal episódio deixam de dizer respeito apenas às famílias envolvidas, tornando-se uma preocupação dos Estados nacionais, a autora argumenta que os discursos formulados na ordem da família não excluem ou se colocam em outro plano em relação aos discursos concebidos na ordem do Estado, mas se cruzam e sobrepõem de múltiplas maneiras, articulando os domínios da política e do parentesco. Considerando as gestões desenvolvidas no Brasil por instituições do Estado em face dos “mortos e desaparecidos”, assim como as demandas a elas direcionadas por parte dos “familiares”, parece possível argumentar o mesmo. Nota-se que as acusações de insuficiência e injustiça direcionadas às leis por parte dos “familiares” não se expressam apenas através da linguagem do parentesco, mas também dos “direitos”. É especifica-mente a gramática dos Direitos Humanos, estabelecida no plano transnacional, que passa a ser acionada como padrão de sensibilidade e moralidade capaz de dar forma ao descontentamento e sentido às trajetórias de luta pessoal e coletiva, entrando, ao mesmo tempo, para o repertório de ideias institucionais sobre governo, democracia, cidadania e civilidade.10

O discurso de Suzana expõe a variedade de estratégias e categorias acionadas para garantir a legitimidade moral das vozes e das posições “dos familiares de mortos e desaparecidos

“direito da sociedade” de conhecer para evitar a repetição. O Estado, portanto, tem a obrigação de pro-mover esses direitos e recordar (Memória) os acontecimentos. Diz-se que o “direito à verdade” está bem estabelecido porque, apesar da crescente aceitação, ele não é alvo de nenhuma convenção internacional específica. Contudo, é referido no Protocolo Adicional I à Convenção de Genebra, na Convenção Internacio-nal para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (ICCPED) e na Resolução 9/11 da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Ademais, a Comissão e a Corte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da OEA entendem que o “direito à verdade” é estabelecido em várias das disposi-ções da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (GONZALES & VARNEY, 2013).

10 Conforme também argumenta a autora, o fato desses atores compartilharem a mesma linguagem não implica que a signifiquem da mesma maneira e, portanto, que não haja atrito entre suas expectativas em relação às mesmas questões.

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políticos” nas diferentes arenas de debate público que frequentam na luta por “direitos”. Ao nos falar dos esforços por essa afirmação, sua narrativa estabelece movimentos entre o luto e a cau-sa coletiva, a dor pessoal e a memória nacional, os vínculos afetivos da família e as “ações de Estado”. Confrontada com narrativas semelhantes de outros “familiares” durante o trabalho de campo, compreendi que o campo de atuação política desses atores aponta para processos em que a mobilização de categorias e a construção de significados escorrega por entre fronteiras, sobrepon-do certos domínios que pressupomos distintos, tais como família e Estado, indivíduo e sociedade, natureza e cultura, público e privado, emoção e razão. Nessa tese, sugiro que um movimento de familiares se constitui, simultaneamente, nomeando e atravessando esses domínios. Funda-se em meio às complexas relações que “os familiares” estabelecem entre si, através de redes de militância e solidariedade, com os “mortos e desaparecidos” e com as instituições do Estado.

Essa etnografia toma, portanto, o campo de atuação dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos” como objeto. Acompanhando a inserção desse ator coletivo em arenas de debates públicos em que a identificação da violência passada, a denúncia da injustiça e a nomeação de direitos se fazem centrais, procuro debater como noções sobre política, parentesco, sofrimento e Direitos Humanos são associadas na reconstrução de suas memórias sobre a Ditadura. O obje-tivo é compreender como a expressão pública de testemunhos, demandas e denúncias passaram a ser reconhecidas como uma forma de coletivizar memórias e fazer política, ao mesmo tempo em que lograram constituir os “mortos e desaparecidos” como categoria a partir da qual a reconsti-tuição de narrativas sobre a Ditadura se volta para a busca de “responsabilidades” e de “direitos”, mas também para a construção de projetos de futuro calcados no respeito aos Direitos Humanos.

* * *

Comecei a me deparar com essas questões ainda em 2009, quando dei início ao mestrado. Para a dissertação, eu realizava uma pesquisa sobre as memórias e trajetórias de brasileiros exilados durante a Ditadura que acabaram por se tornar “cooperantes da revolução” em Moçambique (AZEVEDO, 2013). Os dados etnográficos vieram principalmente de encontros com esses atores, quando foram realizadas entrevistas em profundidade sobre suas histórias de vida. Na ocasião, suas narrativas me permitiram perceber como certas ideias, entre as quais a própria noção de exílio, ao serem comumente mobilizadas como eixo organizador das narrativas, permitiam que as trajetórias pessoais pudessem ser reconhecidas como parte de uma experiência coletiva.

Chamava atenção, o entendimento comum entre os entrevistados de que o “exílio” fora apenas uma das variadas experiências de exclusão vividas pelo conjunto dos brasileiros as-sociados ao amplo espectro das esquerdas nacionais, tomados como aqueles que de forma mais ativa, e conformando projetos alternativos de nação, “resistiram” à Ditadura. Uma experiência coletiva que os insere na história política do país, ao mesmo tempo em que os destaca como

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uma comunidade de “resistentes” e “perseguidos”, junto aos “presos políticos”, aos “cassados”, aos “banidos” e outros “sobreviventes”, assim como aos “mortos e desaparecidos” e seus “familiares”. A percepção de que tais atores guardavam o que chamei de leituras comuns do passado, apesar da ausência de qualquer tipo de organização política, reivindicações comuns, ou até mesmo de um contato cotidiano entre a maioria desses exilados no presente, me permitiu tecer considerações sobre as conexões entre a memória individual, as relações sociais e os macroprocessos políticos. Tema que sigo refletindo através dessa tese.

Em meio ao processo de entrevistas, em finais de 2009, alguns acontecimentos po-líticos fizeram com que a Ditadura se tornasse tema de intensos debates públicos no país. O lançamento do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), trazendo pela pri-meira vez um eixo específico sobre as “violações de direitos humanos” ocorridas no passado, foi o estopim de sérias polêmicas entre alguns membros do Governo Federal.11 Logrando alcançar as páginas dos principais jornais, o tema permaneceu em discussão no ano seguinte, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a constitucionalidade da aplicação da Lei da Anistia para os agentes do Estado acusados de violações de direitos humanos.12 Em sentido contrário a essa decisão, alguns meses depois, os “familiares dos mortos e desaparecidos no Araguaia” sairiam vitoriosos em um processo contra o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização (CIDH) dos Estados Americanos (OEA).13 Todos esses eventos, cobertos pelos

11 O primeiro programa, o PNDH-1, foi lançado em 1996. Em 2002, ele foi reformulado no PNDH-2. O terceiro programa começou a ser formulado em 2009. As polêmicas sobre ele excederam as questões relativas à Ditadura, que estão reunidas no eixo Memória e Verdade do documento. Outros pontos ques-tionados foram a regulamentação da imprensa e a legalização do aborto, por exemplo.

12 Segundo Rosito (2010), a partir de 2008 iniciou-se uma associação entre diferentes atores sociais, entre vítimas diretas, militantes historicamente relacionados a causas relativas à Ditadura, grupos or-ganizados da sociedade e agentes de instituições do Estado, para pautar publicamente o debate sobre a aplicação da anistia para os torturadores. O catalisador dessa associação teria sido uma audiência sobre a Anistia, organizada pelo Ministério da Justiça (MJ) naquele ano. Uma das principais consequências dessa audiência foi a preparação de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a chama-da ADPF 153. Questionando a constitucionalidade da aplicação de anistia para agentes do Estado, a arguição foi protocolada no STF pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2009. Foi, entretanto, declarada improcedente por sete votos contra dois no ano seguinte.

13 A Guerrilha do Araguaia foi um foco guerrilheiro instalado no sudeste do Pará, nos finais dos anos 1960. Operações militares entre 1972 e 1974 foram organizadas para combatê-la. Com exceção dos poucos que escaparam da região ou foram presos durante os primeiros anos, a maioria dos guerrilheiros é desaparecida. Em 1982, um grupo de “familiares” iniciou um processo coletivo na Justiça brasileira contra a União. Após vários recursos, a União foi condenada e o processo transitou em julgado (quando não cabem mais recursos) em 2007. O caso também foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1995, pela ONG Human Rights Watch, substituída depois pelo Cejil, em parceria com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o Grupo Tortura Nunca mais/RJ. Em 2009, o caso passou para a Corte Interamericana, levando o Estado brasileiro a ser condenado, em 2010. Em comum, ambas as sentenças condenam a União a abrir os arquivos das FFAA, localizar os desapare-cidos e esclarecer suas mortes. A sentença da Corte Interamericana ainda condena a União a processar

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jornais e pela televisão, possibilitaram a divulgação para um público mais amplo dos debates a respeito das formas adequadas do Estado democrático lidar com os dramas pessoais, coletivos e familiares decorrentes das violências vividas durante a Ditadura. Esses debates vinham sen-do travados por uma variedade impressionante de atores sociais, entre membros do Governo Federal, do Ministério Público Federal (MPF), dos poderes legislativo e judiciário em diferentes esferas, da OEA, de entidades civis e de direitos humanos brasileiras e estrangeiras, além dos grupos políticos formados por “familiares de mortos e desaparecidos” e “sobreviventes”.

Tais acontecimentos despertaram não apenas o meu interesse, como o de meus in-terlocutores à época, o que fez com que esses temas viessem à tona em nossas entrevistas. Pude perceber como, a despeito desse envolvimento de um conjunto variado de atores, era recorrente entre os entrevistados a visão de que o conhecimento sobre as violências do passado e a insatis-fação com as maneiras pelas quais elas vêm sendo tratadas no presente não eram compartilhadas por setores mais amplos da sociedade. Entendimento semelhante ao que apontou Suzana no dis-curso citado acima e que, posteriormente, eu vim a perceber também como recorrente entre “fa-miliares de mortos e desaparecidos”. Segundo essa interpretação, o desinteresse de importantes setores da sociedade – como sindicatos, partidos, organizações políticas e civis – teria feito com que o debate sobre como lidar com essas violências ficasse por muito tempo restrito a certas redes, compostas por “sobreviventes” e “familiares”, que precisaram construir uma mobilização social em torno da questão. Como consequência, a memória crítica sobre aquele período estaria sob o resguardo dos setores sociais que enfrentaram a Ditadura, seja através das formas de atuação política que se tornaram possíveis naquele contexto, seja buscando seus familiares que nelas pere-ceram. Por outro lado, haveria setores responsáveis pela construção de múltiplas formas de esque-cimentos e silêncios, identificados como setores que mantinham vínculos com a implementação e sustentação da Ditadura ao longo de 21 anos. As memórias sobre a Ditadura no Brasil estariam, portanto, confinadas às narrativas produzidas por aqueles que outrora foram os atores principais daquele drama social (TURNER, 2008), convertidos naquilo que Elisabeth Jelin (2002) tão bem definiu como empreendedores de memória. Não havendo possibilidade de reconciliação entre essas memórias, restaria o confronto entre “dois lados” e suas versões inversamente simétricas.

Instigada por essas questões, passei a me interessar mais diretamente pelos proces-sos de disputa pela consolidação de uma memória social sobre a Ditadura no espaço nacional. Interesse que pareceu promissor em 2011, ano em que terminei a dissertação e iniciei o curso de doutorado. Em 18 de novembro, foi sancionada a Lei Nº 12.528/11, que criava a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com responsabilidade de “investigar e esclarecer as graves viola-ções de direitos humanos”. Animada pela oportunidade, minha ideia inicial foi observar tais embates pela memória a partir de um acompanhamento etnográfico dos trabalhos da comissão,

penalmente os responsáveis. Ambas seguem sem serem cumpridas até hoje, não apenas na visão dos “familiares”, mas também das instituições que as proferiram.

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mais focado, portanto, nas construções estabelecidas a partir de um espaço institucional, suas tecnologias e tramas políticas. Contudo, essa possibilidade não se concretizou, em função da dinâmica de trabalho da CNV.14

Alternativamente, passei a circular de forma densa pelos diferentes espaços criados, inclusive junto a outras comissões da verdade que proliferaram nos estados, municípios e uni-versidades a partir de 2012, multiplicando as arenas de debates públicos sobre a Ditadura. Foi justamente nesse circuito, sobretudo nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, que passei a tomar contato com a atuação dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos”. Ao começar a frequentar tais eventos, a cada atividade eu era informada sobre novas reuniões, atos e debates. Essa movimentação se tornaria a principal característica da pesquisa empírica. Através dela, o encontro sistemático com os mesmos atores em diferentes lugares marcou minha inserção em um campo multisituado. Contudo, em meio aos diferentes atores sociais que afluíam aos eventos, entre aqueles ligados à administração do Estado, os acadêmicos e os militantes, a aproximação com os últimos ocorreu com maior facilidade, especialmente com os membros do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ (GTNM/RJ) e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.15

Em pouco tempo, minha inserção em campo passou a ser guiada pela movimen-tação desses atores. Atendendo a chamados públicos ou a convites pessoais, passei a acompa-nhá-los em audiências, atos, encontros e reuniões. Atividades nas quais foi possível conversar, trocar impressões sobre suas histórias de luta e sofrimento, sobre o contexto político atual, além de colaborar de alguma maneira com suas tarefas cotidianas. Nesse processo de enredamento (VIANNA e FARIAS, 2011), a luta dos “familiares de mortos e desaparecidos” tomou uma

14 Um pedido de autorização para pesquisa etnográfica foi enviado à CNV pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp. Esse pedido foi negado, sob o argumento de que as investigações eram protegidas por sigilo previsto em lei. Tentativas de aproximação menos formais foram igualmente realizadas através de vários meios. Elas mostraram a possibilidade de aproximação com alguns dos grupos de estudo que integram de maneira menos formal a CNV, mas não permitiriam o trânsito entre os diferentes espaços que a constituem. Essa negativa, entretanto, não abalou o prosse-guimento da pesquisa, que havia sido iniciada, um mês antes da posse dos membros da CNV, junto aos espaços públicos (debates, audiências e encontros) que vinham sendo criados pelos movimentos sociais e/ou instituições estatais para debater as expectativas em relação à comissão, bem como para criar outras comissões que auxiliariam a nacional. Posteriormente, os eventos públicos realizados pela comissão nacional, pelas comissões estaduais e atividades de outros órgãos envolvidos no debate fizeram parte dos eventos frequentados durante a pesquisa, acompanhando, sobretudo, a movimentação dos “familiares de mortos e desaparecidos”. As razões dessa negativa são de difícil definição. Ao longo da pesquisa ouvi de meus interlocutores uma série de explicações, em grande medida relacionadas às suas próprias experiên-cias e expectativas em relação à CNV. Essas questões serão mencionadas e analisadas no texto, mas não tomarão demasiadamente minha atenção. Com isso, pretendo evitar tanto especular, devido à ausência de dados que me permitam refletir mais seguramente sobre a questão, quanto deixar que essa negativa ofusque a pesquisa realizada.

15 Ambos os grupos são formados sobretudo por “familiares” e “sobreviventes”. Doravante poderei cha-má-los, respectivamente, de Grupo e Comissão de Familiares.

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centralidade não prevista no início, tornando-se, aos poucos, o foco da pesquisa. Isso não sig-nifica que esse caminho tenha sido acidental. Ao contrário, creio que tenha sido uma escolha (como qualquer outra) construída. Pesaram a seu favor a abertura que eu inicialmente assumi em relação ao potencial do trabalho de campo – inclusive de construir (e se construir a partir de) relações, afinidades políticas e afetos –, a minha experiência anterior de pesquisa, além das leituras e interlocuções acadêmicas feitas durante o doutorado.16 Como motivação adicional, eu percebi nessa escolha a possibilidade de dar continuidade às reflexões iniciadas no mestrado, pensando agora sobre as reconstruções narrativas estabelecidas no decorrer de processos reivin-dicatórios de direitos, em interface com as instituições estatais, quando as disputas pela memória se projetam sobre o espaço nacional.

A CNV e suas congêneres surgiram como promessas de realizar, em um país cor-rentemente considerado “sem memória”, especialmente sobre os “anos de chumbo”, um reco-nhecimento oficial (isto é, por parte do Estado) do amplo espectro de violências cometidas pela Ditadura. Tal empreendimento emergiu de forma a consolidar, a partir desses espaços insti-tucionais, a adoção de um novo padrão de produção da verdade sobre o passado, centrado na gramática dos Direitos Humanos. Com ele, é afirmado todo um conjunto de práticas que pro-duzem não apenas formas legitimas de acusação e reivindicação de direitos, como também ins-titucionalizam novas responsabilidades, sensibilidades e moralidades em relação ao sofrimento daqueles que passam a ser identificados como “vítimas”. Trata-se, portanto, da sedimentação de um novo sistema de conhecimentos e valores em relação ao passado, segundo o qual é preciso não apenas reconhecer e reparar direitos individuais ou das famílias, mas afirmar como “direitos da sociedade” o repúdio à violência, o honrar e o homenagear as vítimas e os esforços por co-mover as novas gerações para que “não mais aconteça”. Essa transformação – que afasta desses espaços as narrativas laudatórias da Ditadura ou justificadoras de suas violências – reposicionou os “sobreviventes” e “familiares” (e suas narrativas) no processo de formulação de uma memória nacional calcada na identificação de uma experiência de violência comum a toda sociedade (e não apenas a uma comunidade de perseguidos), capaz de criar subsídios para a sustentação pública das bandeiras Memória, Verdade e Justiça como causas políticas e objetos da ação do Estado.

A construção pública de uma agenda política em torno dos “mortos e desaparecidos políticos” e a intervenção legal administrativa sobre o conjunto mais amplo de violências cometi-das no passado ditatorial fazem parte do processo de construção dessas causas como “problemas sociais”. Questões nacionais que o país precisaria enfrentar no intuito de trilhar um caminho de respeito aos Direitos Humanos. Durante a pesquisa empírica, ao acompanhar a luta por direitos das organizações formadas por “familiares de mortos e desaparecidos” nesse contexto, me vi diante

16 Devo, nesse sentido, agradecer sobretudo à Maria Filomena Gregori, à Cynthia Sarti e à Bela Feld-man que, no exame de qualificação, me estimularam a lançar meu olhar para os “familiares” de uma forma muito mais específica do que eu pensava fazer então.

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de dois desafios mais gerais. Compreender como – através de quais categorias, narrativas e práti-cas – as organizações se inserem nos espaços de disputa política e reivindicam a condição de vozes mais autorizadas a falar sobre o passado; e pensar como, nesse processo, os “familiares de mortos e desaparecidos” passam a se ver e serem vistos como uma comunidade política e moral, sujeitos do sofrimento, do conhecimento, da denúncia e de estratégias políticas de luta por reconhecimento.

Para tanto, me pareceu necessário não tomar os “mortos e desaparecidos” como dado, assumindo o esforço de dilucidar os processos históricos por meio dos quais eles vieram a constituir uma categoria ao mesmo tempo política, legal burocrática e mnemônica/histórica. O que também implica em não aceitar “os familiares” como uma comunidade natural ou a priori. Ao tomar ambos os termos como categorias êmicas, pretendo compreendê-los de maneira rela-cional, pensando, desde uma perspectiva histórico processual, tanto a conformação dos casos de morte e desaparecimento e sua transformação em uma causa pelas organizações (BOLTANSKI, 2000), quanto os procedimentos que tornaram os “mortos e desaparecidos” uma questão relativa ao gestar e gerir (SOUZA LIMA, 2002) da administração pública.

Com a palavra ancorada no parentesco com as “vítimas” e no contraste entre sua história de militância e as representações sociais acerca do esquecimento geral da sociedade em relação à Ditadura, os “familiares” estão imersos em denúncias e narrativas da violência “repletas de “quando”, “como” e “onde”” (VIANNA, 2013: 22), a partir das quais acionam a gramática dos direitos.17 Esses elementos estruturam suas percepções de antagonismo em relação ao “Estado”, entendido de maneira homogênea como o ente que tem o dever de atuar a seu favor, e para onde são direcionadas suas acusações de insuficiência. Nesse sentido, é preciso considerar, como Vianna (2013) e Lacerda (2012), a polissemia em torno a ideia de “direitos”. Entendido, simul-taneamente, como um conjunto de normas e os princípios morais a elas subjacente, o direito é produto de disputas estabelecidas em diferentes escalas que o tornam contraditório e incomple-to, mas passível de tensionamentos na definição daquilo que é concebido como o justo. Importa considerar, portanto, como a moralidade e as emoções também se tornam um substrato da pres-são embutida na ação política “dos familiares”, através de um processo mediado pela memória, por narrativas da violência, pelo sofrimento e o parentesco. Elementos que, ademais, relacionam esses atores aos “mortos e desaparecidos” e entre si, criando uma comunidade que se imagina forjada, ao mesmo tempo, pela luta e pela vulnerabilidade.

Da opção de estudar o campo de atuação “dos familiares” decorre a centralida-de da política, da memória e do parentesco não apenas como categorias êmicas, mas também analíticas. Minha intenção, já mencionada, é evitar tomá-las separadamente. Por essa razão, as

17 No caso dos familiares de desaparecidos, esse “como”, “quando” e “onde” estrutura tanto um relato quanto uma demanda. Frente aos casos em que a ausência de informações é quase completa, “como?”, “quando?” e “onde?”, além de “quem (são os responsáveis)?” são perguntas que resumem uma das três principais demandas do movimento, a Verdade.

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reflexões travadas aqui não se referenciam em um único aporte teórico, mas guardam inspira-ção em estudos que, ao tratar de contextos marcados pela tensão social, a violência e o conflito político, iluminam as confluências entre esses domínios conceituais. Dialogarei, especialmente, com etnografias que exploram as diversas maneiras pelas quais certas situações políticas consi-deradas excepcionais são capazes de romper o universo social e simbólico dos atingidos, trans-formando suas referências prévias sobre relações sociais, noções de parentesco, moralidade, cor-poralidade, identidade, trajetória, temporalidade e subjetividade (DAS, 1995, 2007; CATELA, 2001; CARSTEN, 2007; DAS et al., 2000; POLLAK, 1990; VERDERY, 1999; ROBBEN, 2007; SANJURJO, 2013; ARAÚJO, 2012; VIANNA e FARIAS, 2011, LACERDA, 2012, VIANNA, 2013, 2014; FARIAS, 2008, 2014; FREIRE, 2011). Em comum, essas abordagens se debruçam sobre as conexões entre os macroprocessos sociais e as relações e práticas cotidianas (de afeto, afinidade e parentesco) dos sujeitos sociais envolvidos, iluminando também as diferen-tes maneiras pelas quais as narrativas e memórias pessoais ou coletivas acerca dos dramas vividos podem alcançar relevância política em escala mais ampla (CARSTEN, 2007).

Em sua influente definição, Veena Das (1995) chama de eventos críticos os processos que inauguram novas formas de ação social e redefinem sentidos para categorias com as quais os sujeitos tradicionalmente operam, atravessando distintas instituições, como a família, a co-munidade, a burocracia estatal, os sistemas políticos e profissionais.18 Ao mobilizar tal conceito, não pretendo, assim como a autora, descrever e refletir diretamente sobre os acontecimentos passados (e o terror que os envolve), e sim sobre processos em que sua (re)construção narrativa por parte de distintas instituições se cruzam, já que, nessas circunstâncias, conforme pontuou Carsten (2007), é possível observar as maneiras pelas quais as memórias pessoais e familiares podem ser preservadas, ou obliteradas, pela construção de narrativas mais amplas e, ao mesmo tempo, pensar como “o parentesco pode emergir como uma forma particular de socialidade na qual cer-tas temporalidades e memórias, certas disposições em relação ao passado, o presente e o futuro se tornam possíveis, enquanto outras são excluídas” (CARSTEN, Op. Cit.: 5).

O ativismo político dos “familiares” revela a centralidade das categorias associadas ao parentesco como elementos constituintes e indissociáveis de suas narrativas sobre o passa-do ditatorial com múltiplos significados. Elas encerram fronteiras de pertencimento, conferem legitimidade moral à palavra e à ação e, associadas à política, tanto balizam a estruturação de trajetórias coerentes, quanto situam uma posição frente ao cenário histórico de debates sobre a Ditadura no Brasil. Para dar conta desses variados aspectos, o parentesco será aqui entendido

18 Em uma formulação aproximada, o historiador Michel Pollak (1990), renomado pesquisador no campo dos estudos da memória, ao analisar as narrativas de mulheres sobreviventes da Shoa, chamou de situações-limite os acontecimentos de violência política extrema que tencionam e desconstroem as referências sociais e aquilo que se entende por natural, normal ou cotidiano em uma sociedade. Por constituir-se de situações inéditas, para as quais os sujeitos sociais não estão preparados culturalmente, as situações-limite provocam processos de reconstrução identitária.

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como uma forma de construir relações que atravessa os diferentes domínios que constituem a sociedade e a pessoa (BESTARD, 1998), ligando o mundo privado das famílias ao mundo dos aparatos legislativos e projetos de construção nacional (CARSTEN, 2004). Mais do que um olhar instrumental para os usos práticos que os “familiares” lhe conferem, na medida em que o mobilizam para legitimar sua atuação política, a intenção é tomá-lo como um sistema simbólico, através do qual as pessoas conferem significado às suas experiências pessoais, e uma dimensão da vida na qual investem suas emoções (CARSTEN, 2004).19

Ao longo da pesquisa empírica, tomei contato com muitas e diferentes histórias de sofrimento pessoal, contadas diretamente a mim ou relatadas nos eventos públicos que conformam o atual processo nacional de “acerto de contas com o passado”, estimulado pelas comissões da ver-dade. Trata-se de um processo ao longo do qual se está construindo socialmente a noção de “vítima” e ampliando as possibilidades para a elaboração de narrativas públicas do sofrimento, quando a mobilização do passado conforma novos embates políticos que passam pela definição e nomeação da violência passada no presente (SARTI, 2011). Um processo que, embora tomado como parte de um fazer institucional, deve ser visto também como um fazer de si, pois serve como base para a (re)construção de identidades (SANJURJO, 2013) e para a (re)afirmação de comunidades políticas (FONSECA e MARICATO, 2013; JIMENO, 2010). Ouvir essas histórias provocou em mim, além de afetação emocional, a vontade de refletir sobre os processos de transposição que levam as diferentes trajetórias pessoais a serem percebidas como parte de um mesmo drama coletivo. Pois, como bem apontou Castro (2014), interpretadas à luz das grandes questões colocadas para as co-letividades de militantes (tanto para os que lutaram contra a Ditadura, quanto para os que querem preservar uma memória dessa luta), suas trajetórias são indexadas a certos esquemas de pensamento.

Como um dos principais termos mobilizados pelos discursos nesse processo de in-dexação, “memória” se refere tanto aos acontecimentos do passado, quanto nomeia demandas, “direitos” e “obrigações”, surgindo muitas vezes associada a (e como sinônimo de) verdade ou verdade histórica. Na medida em que o termo aparece relacionado a certas leituras estruturadas do processo histórico, os atores sociais lhe atribuem um sentido exclusivo, afirmando ser possível

19 A despeito de suas diferenças, os estudos clássicos sobre parentesco tomavam como base comum a universalidade da oposição entre natureza e cultura. Ao mesmo tempo, projetavam uma diferenciação entre sociedades tradicionais, onde a centralidade do parentesco para a organização social era ressaltada, e as “sociedades ocidentais”, onde o parentesco estaria exclusivamente associado à família nuclear e à vida doméstica, divorciado das dimensões política, econômica e religiosa da vida social. Conforme pon-tuou Carsten (2004), as abordagens mais contemporâneas rompem com essas perspectivas, influenciadas tanto pela crítica feminista (e as reflexões de Foucault sobre o poder) que nega tal separação aguda entre o público e o doméstico, quanto pela virada interpretativista, influente nesse campo com os trabalhos de Schneider (1984), segundo o qual o parentesco deve ser tomado como um sistema simbólico, cujos sig-nificados devem ser buscados empiricamente. Para a autora, esse olhar aproximado para os significados contextuais do parentesco permite tanto observar sua relevância política em cenários nacionais ou locais, quanto as práticas cotidianas que o constituem como uma dimensão emocional e criativa da vida social.

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auferir do passado uma única verdade que querem ver compartilhada socialmente. Nesse sentido, a memória, entendida como construção e compartilhamento de narrativas, produz padrões de entendimento do passado, marcando tanto sentimentos de pertencimento social, quanto posições nas disputas políticas (HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1992). No caso específico, uma disputa pela definição dos sentidos das “políticas públicas” em construção. Nesse sentido, é importante notar que as narrativas analisadas aqui não serão tomadas como descrições de eventos, relações e categorias sociais fixadas no passado, mas antes como reformulações intimamente associada aos fe-nômenos sociais (e projetos de futuro concebidos) no presente. Trata-se, portanto, de uma reflexão sobre formas de conhecer sedimentadas pelas relações e representações do presente e do passado, permanentemente abertas a combinações nos processos sociais em que os sujeitos estão inseridos.

Tais formulações são consensos admitidos entre a maioria dos pesquisadores que operam com o conceito de memória. Porém, como argumenta Candau (2011), marcar a dife-renciação entre o uso analítico do termo e sua mobilização nativa parece fundamental sobretudo na análise de processos etnográficos em que a noção de “memória coletiva” (ou variações como “social” e “pública”) são mobilizados. O fato dos atores sociais falarem e pensarem em termos da existência de uma memória coletiva, ou de ser possível identificar empiricamente atos e suportes de memória (como a construção de museus, comemorações, atos, livros, etc.), não implica dizer que todos os membros de tal coletividade imaginada (nem a nacional, nem a de familiares) efeti-vamente compartilhem exatamente as mesmas representações sobre o passado, ainda que (re)co-nheçam os mesmos marcos memoriais. Nesse sentido, parece-me apropriado pensar a “memória coletiva” que tais atores reivindicam como um pensamento classificatório, um processo de afirma-ção de determinadas categorias a partir das quais certas representações sobre o passado podem ser selecionadas, classificadas e compartilhadas (ou rejeitadas) entre atores de um conjunto social.20

Por serem as narrativas e as disputas em torno da constituição da memória o nos-so principal meio de acesso ao passado, devo salientar ainda que essa tese não pretende nar-rar, reconstruir ou periodizar os complexos e contraditórios processos políticos que compõem os 21 anos de Ditadura. Uma certa homogeneização do período e noções de temporalidade

20 Ainda em relação ao campo de estudos da memória, devo ressaltar que minha intenção é estudar a emergência de memórias dolorosas na cena pública, mas não adotarei analiticamente as noções de trau-ma ou memória traumática (CARUTH, 1995; LA CAPRA, 2001). De origem psicanalítica, a noção de trauma tem sido cada vez mais associada a experiências coletivas. Essas associações se referenciam, em grande parte, na memória da Shoa, que passa a ser tomada como paradigma narrativo. Estou de acordo com as críticas formuladas por Fassim & Rechtman (2009), segundo os quais a noção de trauma é ape-nas uma das formas de se estabelecer relação entre esses processos políticos violentos e a experiência/memória individual e coletiva. Seu uso a priori supõe não apenas a universalidade do trauma, como iguala todo tipo de violência, tirando o foco da história e dos processos sociais específicos que, a partir de uma abordagem antropológica, pretendo fazer aparecer. Concordo ainda com Das (2007), quando a autora argumenta que a ideia de trauma faz uma transição muito direta entre as experiências psíquicas e os processos históricos.

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alternativas à linear serão percebidas durante a leitura. Elas refletem os esforços de “familiares” para reconstruir a história do período com base em categorias políticas e jurídicas que enfatizam suas dores e perdas e afirmam seus direitos. Ao mesmo tempo, refletem o fato de que o passado se faz presente no seu cotidiano, não apenas como uma forma de domesticação para fins políti-cos, mas também como uma forma de estar no mundo (DAS, 2007).

Servindo-me das palavras de Vianna e Farias (2011), eu diria que o maior desafio desse trabalho é lidar com a forma como os “familiares” caminham no limite político entre a perda pessoal e a ação coletiva. Quando pensamos a produção de memórias no enredamento das relações de parentesco, vem à tona a noção de perda e a dificuldade de aceitá-la ou de viver cotidianamente com o conhecimento dela. Após conviver com familiares ao longo do trabalho de campo e compartilhar um pouco de seu cotidiano, pareceu-me extremamente pertinente a colocação de Das (2007) sobre o sofrimento como uma forma de conhecer. Mas, ao contrário dos silêncios observados pela autora em sua etnografia, dialoguei com atores que, reivindicando um “dever de memória”, sentem-se impulsionados a testemunhar com impressionante frequên-cia. Mais do que refletir apenas sobre as conformações de uma memória traumática, expressa publicamente pelo testemunho, essa tese compartilha com a autora o interesse em desvelar as formas pelas quais, ao deslocar os acontecimentos traumáticos do passado para o cotidiano atra-vés da militância e das relações sociais que estabelecem entre si no intuito de reparar tais perdas, os “familiares” nutrem pacientemente um conhecimento venenoso, alcançado através da razão e da emoção, com o qual precisam inventar novas formas de viver.

Pesquisa e organização do texto

Em finais de março de 2012, ainda com o projeto inicial em mente, decidi começar a pesquisa com a intenção de experimentar possibilidades e compreender melhor os debates que envolviam a constituição da CNV no Brasil. Mas, naquele momento, a incursão no campo não era uma questão simples. Embora a comissão já tivesse sido sancionada, ainda não existia qualquer previsão de nomeação de seus membros e instalação dos trabalhos. Apesar disso, havia uma intensa movimentação em torno da questão, tanto em função da proximidade dos 48 anos do Golpe (ocorrido na virada de março para abril de 1964), quanto das expectativas em relação à proximidade do início dos trabalhos da CNV. Eram ações protagonizadas não apenas por “familiares”, mas também por gestores públicos, parlamentares e políticos,21 especialistas e

21 Na esfera federal, falamos, notadamente, dos procuradores federais ligados aos Grupos de Trabalho “Direito à memória e à verdade” e “Justiça de Transição” do MPF, que atuam, respectivamente, nas áreas civil e penal; dos funcionários da SDH, sobretudo os que atuam no âmbito da CEMDP; e do MJ, especialmente os vinculados à Comissão de Anistia (CA). Nas esferas estadual e municipal, também encontramos atores ligados aos Ministérios Públicos e aos governos e prefeituras, principalmente nas pastas relacionadas aos direitos humanos, assim como nas legislaturas.

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militantes. Em geral, atores que estiveram envolvidos ao longo dos anos com a problematização pública das violências cometidas pela Ditadura. Atuando conjuntamente, esses atores vinham constituindo arenas para o desenvolvimento de debates, muitos dos quais objetivavam justamente pensar formas de contribuir para o melhor funcionamento da CNV ou de pressioná-la para que sua atuação fosse ao encontro de suas mais variadas expectativas. Nesse período, foram organizados também atos, escraches,22 audiências e seminários. Ainda em março, foi instalada a primeira comissão da verdade do país, a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (CVRP) ligada à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). A CNV seria instalada em maio, levando cerca de quatro meses para iniciar suas atividades públicas. Meu pedido de pesquisa seria negado em definitivo apenas em novembro de 2012.

Durante esse período, eu pude experimentar uma densa circulação entre tais arenas. As primeiras atividades das quais participei foram fundamentais para o prosseguimento da pes-quisa. Entre elas, destaco o 5º Encontro Latino-americano Memória, Verdade e Justiça, realizado em Porto Alegre, com organização da Comissão de Anistia (CA) do Ministério da Justiça (MJ), da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.23 O en-contro reuniu militantes de direitos humanos, “familiares de mortos e desaparecidos”, “sobreviven-tes”, representantes dos Ministérios Públicos, parlamentares e membros da administração pública do Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Bolívia. Seu intuito era avaliar comparativamen-te as demandas e conquistas dos movimentos que debatem “os legados das ditaduras” no Cone Sul, pensando cada um dos processos a partir das normativas internacionais dos Direitos Humanos.

Durante os três dias de duração do evento, pude, em primeiro lugar, perceber a extensão alcançada atualmente no Brasil pelos debates acerca das violências da Ditadura e as formas de repará-las. Pela primeira vez, eu observava diretamente a variedade de atores e instituições envolvidos com a questão, assim como as fortes conexões existentes entre aqueles

22 O escrache é um formato de manifestação surgida na Argentina por iniciativa de filhos de desapare-cidos políticos e outros militantes associados à organização política H.I.J.O.S., nos anos 1990, época em que indultos e leis de anistia no país haviam limitado o julgamento de pessoas acusadas de envolvimento com a repressão. Nesse tipo de protesto, os militantes vão às casas ou locais de trabalhos dessas pessoas para exigir justiça, repudiar sua impunidade e tirá-las do anonimato através da exposição pública dos atos atribuídos a elas no passado (SANJURJO, 2013; CATELA, 2001). No Brasil, esse tipo de ação começou, inspirada pela experiência argentina, a partir de 2012, protagonizadas por diferentes orga-nizações políticas. À diferença da Argentina, no Brasil elas não estão necessariamente associadas aos familiares, ainda que haja alguns em suas fileiras. No entanto, organizações compostas por familiares apoiam suas ações.

23 Fundado em 1979, o movimento sediado em Porto Alegre tem o início de sua atuação relacionada às investigações de ações perpetradas pela Operação Condor. “Sua atuação no período das ditaduras mili-tares na região sul do continente latino-americano contribuiu para a retirada de milhares de perseguidos políticos dos países do Cone Sul. Sua principal missão voltou-se, naquele período, para a viabilização de asilo ou exílio das vítimas da perseguição política.” (texto no site http://ong.portoweb.com.br/direitoshu-manos/default.php. Acesso em: 22/11/13).

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considerados “autoridades” e as chamadas “organizações da sociedade civil”. Tais conexões me indicaram a existência de um campo de atuação por Memória, Verdade e Justiça, nos sentidos dado ao termo por Bourdieu (1996).24 Falo de um sistema relacional de agentes e instituições (não circunscritos ao território nacional) que se voltam direta ou indiretamente para esse debate, se defrontando segundo seus interesses específicos e as posições relativas nele ocupadas. Termos como “Estado”, “autoridade”, “especialistas”, “familiares”, “sociedade civil” e “movimento social” fazem parte da nomeação dessas posições relativas. O campo se constitui, por um lado, como um sistema dotado de práticas sociais, saberes e lógicas, conformando determinadas disposições e percepções comuns aos agentes envolvidos, mas também estrutura um sistema de posições, segundo as quais distinções são concebidas.

Em Porto Alegre, reconheci (e pude conhecer pessoalmente) alguns dos “familia-res” e “sobreviventes” cujas histórias eu já tomara contato em estudos prévios sobre o tema. Tive como estratégia me apresentar a alguns deles como pesquisadora, falando dos interesses acadêmicos que estavam por trás da minha presença ali. Em decorrência dessa abordagem, pude travar conversas informais nos intervalos das palestras, durante as quais troquei contatos, colhi informações e recebi convites e materiais sobre outras atividades. Com o tempo, de evento em evento, pude observar os mesmos atores, ou os mesmos grupos, se reencontrarem para reafirmar seus compromissos, rediscutir suas demandas comuns (ou remarcar suas diferenças) e articular projetos. Nessa dinâmica, eu também fui me tornando um “rosto conhecido”, reconhecida como alguém que frequentava os eventos por Memória, Verdade e Justiça. Isso facilitou não apenas a minha aproximação, mas também permitiu que pessoas passassem a me abordar para me conhe-cer (e saber sobre meus interesses) ou retomar conversar iniciadas em outros eventos.

Todavia, entre os contatos feitos no meu primeiro evento, em Porto Alegre, dois convites seriam particularmente importantes para estabelecer relações que se mostraram dura-douras ao longo de toda a pesquisa, mudando seus rumos. O primeiro convite veio de Victória Grabois, uma das lideranças do movimento de familiares, que havia sido convidada a falar em uma das mesas daquele encontro. Presidente do GTNM/RJ durante todo o período da pesquisa, Victória tem o pai, o único irmão e o primeiro marido desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. Falante, simpática e muito receptiva, ela conversou comigo por alguns momentos naquele dia. Ao fim do diálogo, me convidou para a entrega da Medalha Chico Mendes de Resistência. Essa ce-rimônia, tradicional entre os militantes de direitos humanos, é realizada pelo Grupo anualmente

24 Doravante poderei me referir ao campo de atuação por Memória, Verdade e Justiça como campo MVJ. Cabe ressaltar que a existência de um conjunto de disposições, interesses e práticas que ligam os diferentes atores envolvidos com Memória, Verdade e Justiça, estejam eles “dentro” ou “fora” do Estado, não é apenas uma observação analítica, mas também um entendimento nativo. No entanto, essa percep-ção de unidade convive com constantes formas de demarcar as diferenças, os protagonismos e a própria sinceridade ou autenticidade do envolvimento de cada sujeito em função de suas ações individuais ou das posições por eles ocupadas.

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em homenagem a pessoas ou entidades destacadas na luta contra a violência.25 Compareci à entrega da medalha, que ocorreu dois dias depois. Lá conheci outros “familiares” e integrantes do Grupo, além de conseguir marcar uma entrevista com Victória. Realizada na sede da organi-zação, algumas horas antes da reunião semanal entre os militantes, essa entrevista ensejou um convite para que eu ficasse e assistisse aos debates daquele dia. A receptividade à minha presença tornou-se a porta de entrada para que eu passasse a frequentar esse espaço semanalmente duran-te mais de um ano. A partir daí, minha circulação pelos eventos de Direitos Humanos no Rio de Janeiro estaria quase sempre marcada pela companhia dos militantes do GTNM/RJ.

O segundo convite foi feito pelo ex-preso político Maurice Politi que, assim como Victória, também palestrou em uma das mesas do encontro de Porto Alegre. Não apenas a mim, mas a todos os presentes, Politi recomendou a visita ao Memorial da Resistência de São Paulo. Trata-se do único museu sobre a repressão política da Ditadura existente no Brasil. Seu projeto museológico foi concebido por militantes da organização política da qual Politi faz parte, o Núcleo Memória26, em parceria com funcionários da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e da Pinacoteca do Estado.

Durante minha primeira visita ao Memorial pude reencontrar Politi e conhecer Ivan Seixas, “ex-preso político” e filho de um militante morto pela Ditadura. Ivan, que é membro do Núcleo Memória e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos27, havia sido recen-

25 O GTNM/RJ foi fundado em 1985 por “ex-presos políticos” e “familiares”. Reivindica-se uma organiza-ção de militantes pelos direitos humanos e um centro de referência da memória sobre a Ditadura. Suas ações incluem a denúncia de torturadores, a preservação da memória e a homenagem aos mortos e desaparecidos, a investigação e busca pela verdade das circunstâncias de suas mortes e pela localização dos corpos dos desapareci-dos. O Grupo promove anualmente a Medalha Chico Mendes de Resistência, cerimônia realizada no 1º de Abril, data que se refere ao Golpe Militar de 1964. A medalha foi criada em 1989, quando seus membros decidiram se contrapor à decisão do Exército Brasileiro de homenagear militares acusados de “torturadores” durante a Ditadura com a “Medalha do Pacificador”. O Grupo é filiado à FEDEFAM – Federação Latino-Americana de Associações de Familiares de Presos e Desaparecidos, entre outras associações internacionais de direitos humanos. Texto baseado em informações do site: http://www.torturanuncamais-rj.org.br (Acesso em 14/11/13).

26 O Núcleo Memória surgiu como um grupo de trabalho dentro do Fórum Permanente de Ex-Presos e Per-seguidos Políticos de São Paulo, entidade fundada em 2001 para defender os interesses dos ex-prisioneiros políticos e perseguidos. Tornou-se uma instituição independente em 2009. Suas atividades consistem na promoção de políticas públicas nas questões referentes à Memória Política, na defesa dos Direitos Huma-nos e em ações educativas nessas áreas. Promove a conscientização dos organismos públicos e privados para transformar em memoriais de referência os lugares onde ocorreram violações dos direitos humanos. Durante o ano de 2008, integrantes do Núcleo Memória assessoraram a Secretaria de Cultura de São Paulo e a Pinacoteca do Estado na transformação do prédio onde funcionou a sede do DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social) em Memorial da Resistência, inaugurado em 2009. Nesse ano, o Núcleo Memória tornou-se o primeiro membro institucional brasileiro da Coalizão Internacional de Museus de Consciência em Lugares Históricos. (Baseado no texto do site: http://www.nucleomemoria.org.br/. Acesso em: 14/11/13).

27 A Comissão de Familiares de mortos e desaparecidos políticos surgiu na década de 1980. Em 1993, criou o Instituto de Estudos sobre a violência do Estado (IEVE) que edita o Dossiê dos Mortos e Desaparecidos

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temente integrado como assessor à Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva (CVRP). Após a primeira visita, continuei frequentando o Memorial para participar dos Sábados Resistentes, tardes de debates sobre Ditadura e Direitos Humanos promovidas mensalmente pelo Núcleo Memória naquele local. Nesses eventos, tive a oportunidade de conhecer vários outros “fami-liares”, “ex-presos políticos”, assim como outros grupos políticos que estabelecem demandas em relação à Ditadura e “autoridades” envolvidas com esse tema em São Paulo. Nessa tarefa, contei com a ajuda de um interlocutor do mestrado, também integrante do Núcleo Memória. Informado sobre minha nova pesquisa, ele fez questão de ajudar nas apresentações, o que facilitou os con-tatos. Foi a partir daí que conheci os demais integrantes da CVRP – cujo grupo de assessores é formado em grande parte por militantes ligados à Comissão de familiares – e percebi a possibili-dade de acompanhar os trabalhos que vinham sendo realizados na Alesp. O funcionamento por meio de audiências abertas, o foco dos trabalhos estabelecido sobre os “mortos e desaparecidos” e a receptividade dos integrantes da CVRP abriram caminho para a realização da pesquisa, além de constituírem semelhanças importantes com o que eu já vinha acompanhando no GTNM/RJ. Também em São Paulo, a minha circulação por eventos organizados por outras entidades passou a ser feito em companhia dos integrantes da Comissão de Familiares que atuam na CVRP.

O início dos trabalhos da CNV, assim como a instalação de outras comissões da verdade em âmbito estadual e municipal, em universidades e em entidades civis (como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo)28 aumentou em número as audiências, seminários e outros eventos sobre MVJ. Muitas vezes, eram organizados em conjunto por distintas comissões da verdade ao lado de outras entidades. Conforme já mencionado, parte do trabalho de campo foi realizado na circulação entre esses espaços, os quais, em função da proximidade construída com os “familiares”, sobretudo os ligados ao GTMN/RJ e à Comissão de Familiares, frequentei em sua companhia. A pesquisa empírica conta também com a par-ticipação semanal nas reuniões do Grupo e outras atividades promovidas ou frequentadas por seus militantes no Rio de Janeiro, assim como o acompanhamento quase integral das ativida-des da CVRP em São Paulo – presencialmente ou através da transmissão online das sessões,

Políticos, sobre o qual falarei adiante. “O objetivo do Instituto é promover a continuidade das investiga-ções sobre as circunstâncias das mortes e localização dos restos mortais das vítimas da ditadura militar, dando prosseguimento às pesquisas nos arquivos (...). Tem como objetivos, também, identificar os res-ponsáveis pela tortura, assassinatos e “desaparecimentos” políticos e incentivar medidas judiciais para a reparação moral e material das vítimas da repressão política. Pretende, também, organizar e fornecer fontes, incentivar pesquisas acadêmicas, jornalísticas e da sociedade em geral, contribuindo para o de-bate e o desvendamento da história do passado recente do Brasil”. (Texto do site: http://www.desapare-cidospoliticos.org.br/index.php?m=1 . Acesso em 22/11/13).

28 Segundo a CNV, existem quase 100 comissões da verdade em atividade no país. Algumas delas estão li-gadas a órgãos da administração do Estado e autarquias, outras aos movimentos sociais e entidades de classe. A maior parte delas possui “acordos de cooperação” com a CNV, cujo intuito é descentralizar as investigações e fornecer “subsídios” para o relatório final, apresentado como a grande contribuição da comissão para o país.

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em função da combinação com as atividades no Rio – e das atividades promovidas ou frequen-tadas pelos militantes da Comissão de familiares e da CVRP.

Nessas atividades, além da observação, detalhadamente registrada nos cadernos de campo, assisti (e gravei) muitas horas de testemunhos. Nas audiências públicas da CVRP, onde cada sessão era referente a um caso de morte ou desaparecimento político, as testemunhas eram familiares, amigos ou pessoas que passaram pela prisão junto ou no mesmo período que o caso in-vestigado. Os longos testemunhos, em geral, perfaziam as histórias de vida e de morte desses mi-litantes, assim como as trajetórias de sofrimento e luta de seus familiares por informações e justi-ça. Tal dinâmica proporcionou um vasto material em narrativas de história de vida para análise, o que me fez reconsiderar minha intensão original de produzir entrevistas com esses atores. Frente ao desgaste emocional que significa refazer essas narrativas, optei por usar o material produzido nos espaços coletivos. Ainda que muitos “familiares” se dissessem acostumados com essa tarefa, e alguns deles nunca negassem um pedido de entrevista por “dever de memória”, acompanhando seu cotidiano, pude perceber pequenas queixas ou um ar de aborrecimento resiliente frente a cada solicitação de entrevista. Muitas vezes, esses pedidos vinham de jornalistas ou documentaristas interessados em contatos breves e perguntas pontuais.29 Preferi, portanto, investir na convivência e utilizar as narrativas disponíveis, o que me permitiu ouvir as mesmas histórias muitas vezes. Ainda assim, fiz alguns pedidos de entrevista, sendo atendida em alguns casos, mas evitei insistir quando a solicitação era adiada indefinidamente (mas, nunca negada). Nesses casos, aproveitei a convivência para aprofundar um diálogo sobre as questões que me pareciam relevantes.

As entrevistas realizadas foram sete: com uma “sobrevivente” militante do Coletivo MVJ/RJ, com duas familiares de mortos e desaparecidos integrantes do GTNM/RJ, com um “sobrevivente” militante da organização paulistana Núcleo Memória, com um ex-estagiário da CNV que, no momento da entrevista, era assessor da Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-Rio); com um procurador federal coordenador do Grupo de Trabalho Direito à memória e à verdade do MPF, e com o grupo de pesquisadores e militantes do Iser30 que acompanha e avalia os trabalhos da CNV. Através delas, procurei cobrir um espectro mais variado de posições que compõem o campo MVJ no qual a atividade dos “familiares” se desenvolvia. Procurei muitos outros gestores públicos para entrevistas, mas as tentativas de realização não lograram sucesso, possivelmente pelo excesso de trabalho ao qual esses atores estavam submetidos no curto tempo de funcionamento das comissões e pela temporalidade mais extensa que eu desejava para as

29 Com isso não quero dizer que as abordagens de jornalistas sejam consideradas necessariamente ruins por eles. Alguns “familiares” presentes há muitos anos na luta, e por isso muito solicitados, se queixaram de dar entrevistas a mim justamente porque “os pesquisadores” estariam interessados em entrevistas muito longas.

30 O Instituto de Estudos da Religião, apesar do nome restritivo, se define como uma organização da sociedade civil dedicada à causa dos direitos humanos.

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entrevistas. Alternativamente, trabalhei com a farta disponibilidade de pronunciamentos pú-blicos desses agentes, colhidas tanto nas atividades frequentadas, quanto em um levantamento cotidiano que fiz das notícias e entrevistas em jornais.

Complementarmente, procurando lidar com a dimensão histórica da luta e com a formação dos casos de mortos e desaparecidos, realizei pesquisas nos acervos de jornais e docu-mentos do GTNM/RJ, no Fundo Comitê Brasileiro de Anistia do Arquivo Edgar Leuenroth e no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Por fim, fiz um levantamento de filmes, blogs e literatura ficcional e não-ficcional sobre os casos.

É relevante mencionar que muito antes de iniciar essa pesquisa, eu já estava familia-rizada com as trajetórias de diversos “mortos e desaparecidos” e “familiares”. Para além de meu crescente interesse acadêmico pelo tema, foram diversos os meios através dos quais, ao longo da minha trajetória individual e profissional, pude tomar contato com a história da Ditadura, das esquerdas, da repressão política e de seus personagens. Lembro-me ainda hoje dos sentimentos que experimentei quando, ainda estudante de graduação, li pela primeira vez o livro relatório Brasil Nunca Mais, um dos primeiros e mais conhecidos projetos de apuração e divulgação das violências cometidas pela Ditadura.31 Nesse sentido, uma identificação política e afetiva com essas trajetórias, elemento prévio ao interesse acadêmico, assim como as relações estabelecidas durante a pesquisa de campo, abriram o caminho para que eu me deixasse afetar (FAVRET-SAADA, 2005). Apesar da crescente clareza em relação a esse envolvimento ao longo da pesquisa, eu pro-curei, ao mesmo tempo, controlar meus atos e minhas palavras na convivência com os “familiares”. Conforme argumenta Lacerda (2012), esse controle me pareceu relevante não como tentativa de simular neutralidade, mas de atenuar expectativas de que o trabalho seria plenamente condizente em conteúdo, forma ou objetivo com as formulações, conceitos e narrativas que o movimento constrói sobre si mesmo e sobre o mundo em seu fazer político. E também de que essa tese fosse, sob este aspecto, útil para suas disputas. Não porque eu tivesse certeza de que não o seria. Algo que, aliás, só eles podem dizer. Mas, por considerar, já naquele momento, que ser afetado não seria o mesmo que assumir um ponto de vista. Esse tema será retomado como fechamento dessa tese.

Outra questão de aspecto metodológico e ético envolve a minha opção pela menção dos nomes verdadeiros dos atores, em vez de pseudônimos. Após muitas dúvidas, tomei essa decisão por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque o exercício de tentar escondê-los

31 É interessante notar que, apesar das constantes alegações de que a “sociedade brasileira não conhece essa história”, há uma variedade de materiais ficcionais e documentais sobre o período. Além de vasta historiografia, há também literatura e filmografia em número razoável. Um levantamento feito por Leme (2011) aponta a existência de cerca de 90 filmes, produzidos até 2011, que abordam ou se passam no período da Ditadura. Além disso, o principal documento de denúncia das violências, o Brasil Nunca Mais, lançado pela primeira vez em 1985, alcançou 40 edições publicadas em 2011, ano em que foi lan-çado também em edição de bolso.

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seria, em parte, inútil, na medida em que se trata de pessoas publicamente conhecidas, men-cionadas constantemente em veículos de comunicação e notícias, sendo identificadas com as organizações políticas ou instituições das quais fazem parte e representam. Dessa maneira, a simples menção da posição ocupada pelo ator no período em questão, ou a menção de certos dados de biografia e trajetória, bastaria para que tal pessoa pudesse ser identificada pelo leitor. Em segundo lugar, assim como Farias (2011) e Leite (2004), procuro aqui respeitar sua luta por visibilidade. A construção de uma biografia pública, entendida como uma trajetória identificada ou identificável com a causa, é uma das principais prerrogativas para o reconhecimento e a legi-timação dos militantes e a visibilidade de seus casos.

Contudo, a decisão de nomeá-los não prescinde de cuidados específicos. Refletindo a partir de dilemas similares, surgidos no decorrer de sua pesquisa de campo, Bevilaqua (2003) argumenta que o problema da identificação dos informantes possui uma importância crucial. Conforme lembra a autora, a construção empírica e teórica da disciplina está associada ao equa-cionamento de três exigências imperativas: o compromisso ético entre pesquisador e seus infor-mantes, a especificidade da etnografia como conhecimento contextualizado e a possibilidade de exposição e compartilhamento dos dados aos pares para o debate e consequente aprimoramento da análise. Esse equacionamento precisa levar em conta que muitas vezes, embora, a identifica-ção dos atores envolvidos nos eventos narrados pareça fundamental para a composição dos dados empíricos que fundamentam a análise, ela pode trazer implicações tanto para os informantes, quanto para as pessoas as quais seus depoimentos se referem (e mesmo para o pesquisador). Uma outra dificuldade na divulgação desse tipo de dado é que, mesmo que a veracidade das infor-mações possa constituir uma questão secundária para a análise, existe ainda a possibilidade de que através da escuta de narrativas e acusações, verdadeiras ou inventadas, o antropólogo esteja sendo enredado pelos atores no desenvolvimento de suas disputas específicas.

Uma segunda preocupação manifestada pela autora também me perseguiu durante a pesquisa. Relendo meus cadernos de campo, pude perceber como eles estão recheados de ma-nifestações de receios, geralmente de ordem ética, sobre a necessidade de esclarecer melhor aos meus interlocutores sobre o que consiste, de maneira geral, a pesquisa empírica em antropologia, e, mais especificamente, a pesquisa que eu procurava realizar. Essa preocupação resultava, em grande medida, do excesso de espaços e atores com os quais eu tomava contato, não me permi-tindo esclarecer sempre e a todos o fato de eu realizar ali uma pesquisa. Mesmo que estes atores estivessem se expondo através de depoimentos públicos ou atuando no exercício de funções públicas, o uso de dados de pesquisa obtidos sem o amplo conhecimento dos sujeitos sociais não deixa de provocar questionamentos éticos.

Considerando todas essas questões, a decisão de nomear os interlocutores é uma re-gra com exceções. Em algumas situações, eu optei por mobilizar estratégias para preservar aque-les atores cujas trajetórias pessoais não são da mesma maneira divulgadas. Em outras, preservei

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aqueles cujas informações e falas não seriam necessariamente ditas publicamente, na medida em que teriam potencial para gerar constrangimentos entre seus pares. Sendo assim, em certas passagens da etnografia, o leitor observará que optei por não nomear os atores sociais ou as or-ganizações políticas sobre as quais narro, outras vezes mencionei seus nomes, mas não os dados que especificariam os eventos e as situações mencionadas, evitando assim ter que omitir dados da pesquisa relevantes para a análise.

Mas, se nomear certos atores pode gerar desentendimentos, o mesmo vale para o não nomear. Sendo assim, me parece fundamental destacar que os familiares nomeados nessa tese não são os únicos, nem tampouco estão sendo tratados como os mais importantes integran-tes desse movimento. Nomeei apenas aqueles familiares com os quais tive contato ou convivi de forma continuada nas cidades e nos espaços em que desenvolvi o trabalho de campo. Um traba-lho que não teve abrangência nacional, nem condições de cobrir todos os espaços de militância em que o movimento de familiares se faz presente, nem sequer nas cidades em que a pesquisa foi desenvolvida. Isso faz com que nem todos os familiares cuja participação na luta é reconhecida como relevante sejam diretamente mencionados aqui.

Para além dos familiares, um segundo grupo de atores cuja omissão de nomes pode gerar ressentimentos são as autoridades envolvidas nos processos narrados. Em relação a esse grupo, eu optei por não mencionar seus nomes na maioria das situações, mesmo aquelas em que os atores podem ser identificados com alguma facilidade pelo leitor. Para essa decisão, levei em consideração as diversas suscetibilidades, reputações e disputas envolvidas não somente nos de-bates em torno do sensível tema da Ditadura, mas, sobretudo, em torno do cenário político bra-sileiro mais geral, no qual algumas dessas autoridades tomam parte. Um cenário recentemente conflagrado em torno de disputas políticas complexas, de grande porte e de múltiplas durações atravessadas, que são, muitas vezes, transportadas por meio dos nomes dos atores sociais nelas envolvidos. Dessa forma, ao optar por não citar nomes em certas passagens da tese, minha intenção foi evitar que minhas afirmações fossem interpretadas de maneira individualizada, à guiza de críticas ou elogios pessoais e/ou partidários, desviando o foco que me interessa dar ao debate. Tenho consciência de que essa opção pode gerar percepções de apagamento dos atores não nomeados, pelas quais decidi assumir responsabilidade.

O resultado desse processo poderá ser conferido nas páginas seguintes. O texto está organizado em cinco capítulos mais os apontamentos finais.

Acompanhando o próprio processo de minha entrada em campo, o Capítulo 1 ofe-rece uma descrição do circuito de agentes, debates, eventos e políticas que chamei de campo MVJ. Para analisar tal circuito, o coloco em perspectiva em relação a dois outros momentos con-siderados chaves no processo de construção de narrativas sobre o passado ditatorial: a Anistia e a criação da Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ao longo da reflexão, procuro entender como

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o passado ditatorial veio a se tornar um “problema” e um objeto de “políticas públicas” no Brasil. O objetivo principal é desnaturalizar o reconhecimento dos “direitos das vítimas”, mostrando-os como fruto de uma construção social, para então argumentar que o momento atual está marcado pela consolidação de uma nova linguagem (FASSIN; RECHTMAN, 2009) sobre o passado recente e que essa transformação reinsere os sobreviventes e familiares (e suas narrativas) no processo de formulação de uma memória coletiva calcada na identificação da violência passada.

Com o Capítulo 2, nos aproximamos do movimento de familiares através das duas or-ganizações com as quais dialoguei ao longo da pesquisa, o GTNM/RJ e a Comissão de Familiares. Mesclando dados etnográficos e material histórico proveniente de diferentes fontes, apresento as perspectivas dos militantes vinculados a estas organizações acerca do processo de construção de sua causa política em torno da morte e do desaparecimento de seus familiares, enfatizando as traje-tórias políticas das organizações, a formação do movimento de familiares, a construção de seu pro-tagonismo na luta por Memória, Verdade e Justiça. Reflito também sobre as bases que permitem a identificação de uma comunidade moral entre os “familiares de mortos e desaparecidos políticos” a despeito do envolvimento ou não dos atores sociais assim reconhecidos com o movimento.

No Capítulo 3, a etnografia se volta para o processo de transformação das “mortes e desaparecimentos políticos” em casos, partindo principalmente das observações etnográficas na CVRP. Mostro como esse processo passa por dois esforços simultâneos, a coletivização e a particularização das mortes, movimentos que expressam a constante tensão entre o individual e o coletivo que atravessa tanto a experiência da militância política, quanto a construção social do problema. Argumento que é a partir da formação dos casos que “problemas da família” passam a ser vistos como “problemas sociais”.

Dando sequência a esta reflexão, o Capítulo 4 traz diferentes situações etnográfi-cas que mostram como a construção de um forte discurso de antagonismo do movimento de familiares em relação ao Estado, a partir dos casos, se articula a um intenso trânsito dos agentes sociais por entre as fronteiras que eles mesmos erigem para operar a separação entre “Estado” e “sociedade”. Argumento que esse processo dá lugar a uma economia moral da dependência, sus-peição e ressentimento entre os agentes que classificam uns aos outros segundo essas categorias.

O capítulo 5 volta-se para algumas trajetórias familiares por meio de narrativa co-lhidas ao longo da pesquisa. A ideia é pensar as maneiras pelas quais os familiares se apropriam do sofrimento para pensar a si mesmos e sua relação com o mundo, identificando uma comuni-dade moral e considerando-se parte dela, elaborando a um só tempo sua militância e seus afetos. Argumento que os familiares fazem de suas vulnerabilidades um lugar e uma forma de resistência.

Sobre as marcações gráficas no texto, vale ressaltar que utilizarei aspas para marcar as categorias êmicas e itálico para marcar categorias analíticas. Para citações, faço uso de aspas e itálico. Doravante, também utilizarei o itálico para marcar os nomes das organizações do

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movimento social, das instituições da administração do estado, bem como dos eventos citados. São minhas todas as traduções de textos em língua estrangeira.

Por fim, creio que caibam aqui algumas palavras sobre o termo Ditadura que será adotado. Ele será utilizado sempre em letra maiúscula, referindo-se tanto ao período histórico compreendido entre o Golpe de 1964 e a eleição presidencial indireta de 1985, quanto ao con-junto de instituições, aparatos legais (públicos e secretos) e métodos ilegais que conformaram, durante esse período, o regime de exceção. Embora a periodização 1964-1985 seja a de maior aceitação entre historiadores, devo alertar que ela não é um consenso, havendo tanto autores que consideram o período de exceção mais curto, quanto aqueles que o tomam por mais longo. Da mesma maneira que passo ao largo de tal debate, também opto por utilizar aqui o termo Ditadura sem complementos, evitando assim as polêmicas historiográficas sobre o caráter do regime, se “militar”, “civil-militar” ou outras terminologias que vêm se multiplicando nos de-bates entre historiadores com o passar dos anos. Ambos os debates, tanto sobre a duração do regime de exceção, quanto sobre o seu caráter político e/ou de classe, apesar de sua indiscutível relevância acadêmica e de sua enorme capacidade de gerar polêmicas, me parecem indiferentes às questões abordadas nessa tese.

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1.“Não se trata de conhecer, mas de reconhecer”

O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. (…)Sente-se intocável, vais aos jornais, marcha com destemor empunhando cartazes na cara da ditadura, desdenhando da polícia; desfila como as mães da Praça de Maio, mortas-vivas a assombrar os vivos;

imbuído de uma tarefa intransferível, nada o atemoriza. (…) Ao deparar na vitrine da grande ave-nida com sua própria imagem refletida, um velho entre outros velhos e velhas, empunhando como um

estandarte a fotografia ampliada da filha, dá-se conta estupefato da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o ícone do

pai de uma desaparecida política. Quando as semanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a

filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas nunca desiste. Agora quer saber como acon-teceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber, pra medir sua própria culpa. Mas nada lhe dizem.

Outro ano mais e a ditadura finalmente agonizará, assim parece a todos; mas não será a agonia que precede a morte, será a metamorfose, lenta e autocontrolada. O pai que procurou a filha desaparecida

ainda empunhará obstinado a fotografia no topo do mastro, mas os olhares de simpatia escassearão. Surgirão outras bandeiras, mais convenientes, outros olhares.

O ícone não será mais necessário, até incomodará. O pai da filha desaparecida insistirá, afrontando o senso comum.

(Bernardo Kucinski, K. Relato de uma busca).

Era 30 de março de 2012. Estávamos na Praça da Matriz, no centro de Porto Alegre, no horário de almoço, quando é grande o movimento. O agitado vai e vem de pessoas foi surpreendido por uma atividade vinculada à programação do 5º Encontro Latino-americano Memória, Verdade e Justiça. A convite dos organizadores, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz ocupou a praça para apresentar a performance Onde? Ação Nº 2.32 Os atores chamaram a atenção de quem passava pelo local, distraindo e retendo transeuntes por breves momentos. Alguns participantes do encontro, à sombra de uma árvore, acompanharam a performance atentamente.

Iniciando a apresentação, cinco rapazes de ternos pretos, óculos escuros e cenhos fechados marchavam em silêncio, arrastando pelo chão um corpo inerte. De tempos em tempos, paravam ameaçando o público com suas metralhadoras, enquanto um deles acionava uma espé-cie de lança-chamas sobre o corpo. À medida que se retiravam, dez moças de vestidos coloridos

32 Informações sobre o grupo em: http://www.oinoisaquitraveiz.com.br/. Trechos dessa mesma per-formance, realizada em outro local de Porto Alegre, podem ser vistos no site. Acesso em 15/08/2014.

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se aproximavam, trazendo, cada uma delas, uma cadeira. Posicionadas no centro da praça, can-taram e dançaram uma música triste que falava sobre ausência, sofrimento e memória. Ao fim da dança, muito lentamente, uma das moças se levantou da cadeira e, com a voz firme, começou a chamar por alguns nomes. Imediatamente, pude ouvir a voz de Victória Grabois a retrucar: presente! Como se a moça continuasse a gritar por eles, outros participantes do encontro refor-çaram a iniciativa de Victória. As vozes unidas respondiam clara e fortemente: presente!

No momento seguinte, outras moças começaram também a se levantar. Uma a uma, elas chamavam sua própria lista de nomes, em contratempo. Tornava-se cada vez mais difícil responder. As vozes sobrepostas, mas descompassadas, não apenas causavam confusão mental, e boa dose de angústia, como sufocavam as respostas. Os que interagiam com Victória logo perceberam essa dificuldade. Os nomes eram muitos, a tarefa cansativa. Mas Victória não de-sistiu. Escolheu a moça que lhe estava mais próxima e, já sozinha, respondeu apenas a ela até que se calasse. Foi então que as moças começaram a retirar pequenos papéis dos bolsos. Com os rostos marcados de tristeza e cansaço, faziam gestos suaves, ora lançando-os ao vento, ora en-tregando-os às pessoas ao redor. Outra vez cantando, deixaram a praça lentamente. Parados ali, ouvimos suas vozes se perderem aos poucos, à medida que se afastavam. Mas, quase uma hora depois, quando eu voltava do almoço, pude ainda cruzar com elas vagando com olhares perdido pelas ruas do Centro. De volta à praça, em meio às cadeiras, que me pareciam metáforas tanto do vazio, quanto da espera, peguei um dos papéis. De um lado, uma silhueta. No verso, dados básicos sobre a vida de uma “militante” e sua morte pela Ditadura.

A performance me causou grande impressão. Mesmo sem a certeza, naquele mo-mento, de que pesquisaria os “familiares de mortos e desaparecidos”, eu já havia tomado contato

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com narrativas sobre sua luta, a partir das quais construí representações que se viam reforçadas pela situação presenciada. Com base nelas, e sem refletir muito, fiz uma série de associações. A saída de cena das atrizes em busca de seus desaparecidos me deixou uma forte sensação de solidão e melancolia. A atitude de Victória testemunharia a persistência dos “familiares”, me fazendo pensar também na impertinência que pode ser atribuída a quem persiste quando todos desistem. O reencontro com as atrizes, muito depois do que eu pensei ter sido o fim da performance, me chamou atenção para o sofrimento permanente e invisível dos que viveram uma tragédia pessoal, apesar da vida que seguia para o restante da sociedade. Como no livro de Bernardo Kucinski – irmão da desaparecida Ana Rosa Kucinski – restava-me a ideia de que, imbuído de uma tarefa intransferível, o familiar arrefece, mas não desiste. Sua dor é pessoal, igualmente intransferível, mas ele se converte no símbolo de uma luta política. Uma luta que, entretanto, perdeu a solidariedade dos outros, tornando-se melancólica e inconveniente.

Após o impacto inicial, me peguei refletindo sobre a naturalidade com que assumi a oposição familiares x outros, associando noções como persistência, melancolia e isolamento político à “luta dos familiares”. A relação entre eventos críticos, parentesco e sofrimento deveria ser tratada como natural? Quais fatores estão implicados na forma como a expressão pública do sofrimento é percebida socialmente?

Os “familiares de mortos e desaparecidos” são muitas vezes definidos como comuni-dade por meio do sofrimento. Um sentimento entendido como pessoal e natural porque atrelado à experiência e aos laços de amor e cuidado encerrados pelas relações de parentesco. Porém, como lembra Le Breton (2013), toda dor envolve um questionamento da relação do indivíduo com o mundo. Nesse sentido, podemos pensar na constituição do sentimento de unidade entre esses familiares não apenas em função desse sofrimento comum creditado às obrigações morais e afetos com seus parentes, mas também por outra experiência que compartilham: a de comunicar socialmente esse sofrimento e encontrar ou não acolhida entre “os outros”. Esse outro “nós”, que surge contraposto àquele, congregaria os que não sofreram diretamente a mesma dor. Pessoas que, não obstante, poderiam nutrir sentimentos como compaixão, piedade ou solidariedade, que lhes permitiriam percorrer a distância interposta entre eles e aqueles que sofrem. Afinal, a perda pode ser capaz de unir todos os que a conhecem e, em alguma medida, sabem-se vulneráveis aos laços sociais que constituem a subjetividade (BUTLER, 2009).

Nas palavras de Boltanski (2004), a sensibilidade ao sofrimento alheio poderia ser definida como um sofrimento à distância, uma empatia que pode se transformar em indignação e se efetivar em práticas de generalização da dor específica para políticas de justiça e reco-nhecimento do sofrimento como uma questão social e universal. Se há a possibilidade de se constituir diferentes comunidades morais em torno do sofrimento, esse processo desliza entre as separações que percebemos existir entre a ordem privada dos sentimentos e a ordem pública da política. Trazendo esse debate para o tema da memória, Elizabeth Jelin (2002) estabeleceu

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um interessante diálogo com Todorov (2008). Segundo o autor, lembrar pode significar apenas reconhecer a singularidade de uma experiência e mantê-la como exclusiva dos que a possuem, tendo apenas um fim em si mesmo (memória literal), ou pode converter-se em princípio de ação para o presente e o futuro (memória exemplar). Jelin entende que essa questão está diretamen-te relacionada com a comunidade política que lembra, ou seja, com quem é o “nós” definido pela memória. Para marcar o fato de que há múltiplas possibilidades de construir coletividades em torno das memórias dolorosas, a autora se serve de uma diferença conceitual existente no Guarani, em que há dois termos para distinguir o nós: aquele que marca a fronteira entre quem fala mais a sua comunidade e o outro que o escuta (ore); e um outro que inclui o interlocutor (ñande). Suas fronteiras poderiam ser negociadas.

A expressão pública do sofrimento nos confronta com sentimentos e escolhas morais que não estão dados a priori. Como nos diz Susan Sontag, “nenhum “nós” deveria ser aceito como fora de dúvida quando se trata de olhar a dor dos outros” (SONTAG, 2003: 12). Refletindo sobre imagens que retratam a violência, Sontag põem em dúvida que a solidariedade seja o único sentimento possível no confronto com elas. Para a autora, depreender das imagens de guerras, martírios e massacres apenas o que confirma a aversão à violência seria descartar a política. Seria esquivar-se da história e ignorar a diversidade dos sentimentos de identidade que, constituídos, asseguram que, diante de uma violência, de um lado está a opressão e do outro a justiça. Da mes-ma maneira, a negociação das fronteiras entre os que sofrem e os que se sensibilizam com a perda dos “mortos e desaparecidos” no Brasil remete à história das disputas políticas ao redor do tema ou, mais precisamente, das distintas memórias que o compõem. Tais disputas devem ser conside-radas, para compreendermos sem naturalizar, tanto as representações sobre a figura política dos “familiares”, quanto as ações e repertórios que se constituem para expressar dor e engajamento.

Durante a pesquisa, pude acompanhar a circulação dos “familiares” por arenas pú-blicas em que os atores de conjunto mantém expectativas sobre a necessidade de enfrentamento político dos sofrimentos decorrentes da Ditadura. Solidarizando-se por um sofrimento à distância, esses atores compartilham conhecimentos e valores que querem ver convertidos em políticas de reconhecimento, denominadas Memória, Verdade e Justiça (MVJ). Nesse capítulo, não pretendo traçar uma história dessas políticas, mas localizar as formas de atuação dos “familiares” frente a uma economia mais geral dos discursos sobre a Ditadura para, então, mapear as categorias e os pressupostos que hoje compõem um regime discursivo e um padrão de entendimento comum ao que chamo de campo MVJ. Para tal tarefa, as situarei tanto em relação às narrativas acerca das especificidades da transição política no Brasil, quanto ao processo de incorporação de discur-sos e práticas prescritos como universalmente adequados pelo campo transnacional dos Direitos Humanos, considerando três momentos específicos: a transição democrática, a instituição da lei de Mortos e Desaparecidos e o momento atual de funcionamento das comissões da verdade.

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Subjacente a essa análise, está a perspectiva de que a violência é um fenômeno so-cialmente representado e deve ser pensada não em sua aparente objetividade, mas a partir das formas disponíveis para nomeá-la e representá-la (WIEVIORKA, 2006). E que, como indi-cam Fassin e Rechtman (2009), a empatia com as memórias dolorosas – seu reconhecimento como fazer político e como parte do fazer institucional – é um fenômeno social contemporâneo. Associado a categorias universalistas, como trauma ou direitos humanos, o (re)conhecimento institucional dessas memórias aponta novos padrões de moralidade e sensibilidade, assim como ilumina processos de constituição de sujeitos e comunidades políticas e morais.

Minhas primeiras ideias sobre esse processo começaram a ser formuladas durante o Encontro Latino-americano, cujo mote era justamente Memória, Verdade e Justiça. Ele reu-niu representantes de países do Cone Sul, fazendo referência direta à experiência histórica das chamadas Ditaduras de Segurança Nacional vividas na região nos anos 1960 e 1970. Como pode ser observado na programação das mesas, transcrita abaixo, os participantes e palestrantes eram sobretudo pessoas vinculadas a movimentos sociais, instituições não governamentais e governamentais, empenhadas no esclarecimento circunstanciado das violências cometidas pelas ditaduras (Verdade), a punição dos culpados (Justiça) e a construção de formas pedagógicas de “memória contra o esquecimento”, lembrar para que “nunca mais” aconteça (Memória).

As cinco mesas de debate foram divididas ao longo dos dias de encontro. Assistir atentamente a cada uma delas foi muito importante porque me permitiu perceber que os debates e iniciativas sobre “como lidar com o passado ditatorial” no Brasil são devedores de diálogos, formulações e tecnologias estabelecidas em um plano transnacional. Se a punição dos envolvidos nas ditaduras, a descoberta da verdade sobre as violências, os projetos memorialistas ou as formas de adequar as legislações às convenções internacionais vêm sendo construídos e geridos institu-cionalmente de maneiras específicas em cada país, a ideia central do encontro era que o exercício de identificar as semelhanças e as diferenças permitiria a troca de experiências e a colaboração em uma tarefa percebida como comum: enquadrar o passado a partir das premissas jurídicas, políticas e morais que integram uma economia global dos Direitos Humanos. Uma tarefa que se iniciou nos anos 1980 na maioria dos países. Por essa razão, uma boa parte das pessoas envol-vidas com as tentativas de estabelecer esse enquadramento no Brasil estavam em Porto Alegre. Não apenas representantes das organizações formadas por “sobreviventes” e “familiares de mor-tos e desaparecidos” (como o GTNM/RJ, o Núcleo Memória, o Coletivo RJ MVJ, o MJDH/RS), mas também profissionais de organizações não governamentais (como o Cejil33), e atores insti-

33 O Cejil é uma organização não governamental que protege os direitos humanos nas Américas através do uso das ferramentas previstas pelo direito internacional dos Direitos Humanos. Advoga no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tem status consultivo ante a OEA e a ONU. O Cejil é peticionário do caso Araguaia na Corte Interamericana, junto com a Comissão de Familiares e o GTNM/RJ; sendo esse o tema da mesa em que estes grupos estavam presentes. Beatriz Affonso, conhecida como Beca, é cientista social e a representante do Cejil no caso.

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Programação das mesas

Mesa 1 | Conteúdo e Consequência das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos HumanosBeatriz Affonso (Cejil Brasil)Pilar Eizalde (Cejil Cone Sul)Victória Grabois (GTNM/RJ)Macarena Gelman (vítima/Uruguai)Carlos Etchgoyhen (Psicanalista/Uruguai)

Mesa 2 | A obrigação de adequar a legislação interna às normas da Convenção Americana sobre Direitos HumanosMiki Breier (Dep. Estadual RS)Remo Carlotto (Dep. Federal Argentina)Hugo Gutierrez (Dep. Federal Chile)Chico Alencar (Dep. Federal Brasil)

Mesa 3 | Imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidadeMiguel Angel Osorio (Procurador Argentina)Ana Maria Reck (Procuradora Uruguai)Ivan Cláudio Marx (Procurador Brasil)Dani Rudnicki (MJDH Brasil)

Mesa 4 | Comissão da VerdadeAlexandre Veigas (Arquivistas sem fronteira)Maurice Politi (Núcleo Memória)Luiza Erundina (Dep. Federal Brasil)Vera Vital Brasil (Coletivo RJ MVJ)Katia Nouten (Federação Internacional de DH)

Mesa 5 | Para que não se repitaRoger Rodriguez (Mov. Social/Uruguai)Olga Flores (Mov. Social/Bolívia)Paulo Abrão Pires Jr. (CA/MJ Brasil)Adela Segarra (Dep. Federal Argentina)

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tucionais ligados a comissões parlamentares e órgãos executivos promotores de direitos (como a Secretaria de Direitos Humanos, o Ministério da Justiça e comissões de Direitos Humanos de Assembleias Legislativas e da Câmara dos Deputados), e instituições dedicadas à proteção de inte-resses difusos, direitos constitucionais e cidadania (Ministério Público Federal e estaduais).

Circulando por entre esses atores pela primeira vez, sem conhecer pessoalmente nenhum deles, tive grande liberdade para me aproximar e estabelecer contatos iniciais, mas também para observar as movimentações e os debates colaborativos, travados não somente nas mesas, mas durante os intervalos, entre cafés e corredores. Nessa movimentação, o trânsito entre os que se identificavam como representantes de movimentos sociais e como agentes institucio-nais se mostrou muito fluido, assim como o diálogo entre aqueles que há muitos anos fazem das denúncias contra a Ditadura sua causa, como os “familiares” e “sobreviventes”, e os atores que se aproximaram da questão desde sua formação acadêmica – mais comumente nas áreas de direito, psicologia e ciências sociais – e/ou sua atuação profissional em direitos humanos.34 Nas conversas que presenciei, assim como nas mesas, os assuntos que reuniam esses diferentes atores varia-vam em torno dos seguintes questionamentos: como garantir a descoberta da verdade sobre os crimes (mortes, desaparecimentos, torturas, etc.)? Como transformar atos caracterizados como legalmente prescritos ou anistiados em “crimes de lesa-humanidade”? Como transformar em leis nacionais as prescrições da Convenção Americana sobre tortura, desaparecimento forçado, direito à verdade, direito à informação, etc? Como operacionalizar o cumprimento das sentenças dos tribunais internacionais? Como fazer com que a sociedade conheça e se identifique com a memória das vítimas? Reunindo todas essas questões, restava ainda a dúvida: os caminhos para sua resolução são jurídicos ou políticos? Frente às experiências relatadas pelos representantes de outros países, os brasileiros faziam coro para lamentar o “nosso atraso” em estabelecer soluções. Processo que, por aqui, gera verdadeiros dilemas políticos, jurídicos e morais. As formas de viabilizar as demandas dos “familiares” e gerir o problema dos “mortos e desaparecidos” não fugiam a essa percepção, surgindo como temas transversais e indissociáveis desses questiona-mentos mais gerais. Em razão disso, apesar de não serem tema central em nenhum das mesas, os “mortos e desaparecidos” foram evocados em declarações que procuravam assegurar o com-prometimento individual, coletivo ou institucional com Memória, Verdade e Justiça a partir da sensibilidade às memórias e demandas dos “familiares”.

A reunião entre atores sociais dedicados especificamente à construção de denúncias contra a Ditadura e atores vinculados a instituições com atribuições mais amplas tem efeitos

34 Ali percebi também que essas categoriais não são sempre excludentes, embora muitas vezes sejam assim pensadas pelos atores. Isto é, há atores que pertencem aos movimentos sociais e às instituições, há os que estão envolvidos na questão tanto pela militância histórica, quanto pela atuação profissional. Da mesma maneira, há aquele que está no movimento pelos conhecimentos e capacidades profissionais e o que é levado para as instituições do estado pela história de militância. A imaginação dessas fronteiras será discutida no capítulo 4.

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sobre as formas como o passado é debatido. A partir dela, observa-se o interesse em identificar um conjunto de questões relativas ao passado ditatorial como “problemas sociais” da atualida-de, isto é, questões que demandam respostas racionais e especializadas estabelecidas na forma de “políticas públicas”. Tal como apontam Souza Lima e Castro (2008), essas políticas surgem aos olhos dos atores sociais como resultado dos deveres e capacidades do Estado Nacional de atender as demandas sociais e servir ao interesse (que seus especialistas identificam como) ge-ral. Mesmo que o geral se constitua pela extrapolação das demandas de setores específicos. No caso em tela, é a partir dos saberes, práticas, tecnologias e regimes discursivos moldados pelo campo dos Direitos Humanos35 que os especialistas ligados ao campo burocrático afirmarão a necessidade de um olhar para o passado que identifique “violações de direitos humanos” e “res-ponsabilidades”. Contudo, como seguem argumentando os autores, do ponto de vista analítico é necessário considerar que o esforço por identificar “problemas sociais” e formular planos de ações para solucioná-los conforma (e se conforma em) um campo de agentes e instituições não restritos àqueles juridicamente definidos como partícipes da administração pública, nem aos que limitam sua atuação ao território nacional. Envolvem movimentos sociais, ONGs e organismos internacionais que, ao disputarem a construção de direitos e de significados a ele atribuídos, promovem o entrecruzamento de diferentes formulações, expectativas e temporalidades que, por sua vez, participam desse permanente processo que é a formação do Estado. Assim sendo, menos do que encarar os Direitos Humanos como instrumento de proteção do indivíduo contra o Estado, aceitando a ambos como dados fixos, a intenção é abordá-lo como regime de catego-rias imerso na vida social, uma linguagem disputada no cotidiano (WILSON, 2003) que toma parte no processo de “ fazer-se Estado” (SOUZA LIMA e CASTRO, 2008).36

35 Especificamente no campo denominado Justiça de Transição. A Justiça de Transição é um campo de conhe-cimentos e práticas dos Direitos Humanos que elabora “soluções globais” para processos de transição política ou pacificação. Ela referenda medidas para enfrentar os “abusos do passado” e evitar novas violações no futuro. As comissões da verdade são uma possibilidade entre essas medidas. Segundo suas formulações, seriam quatro as “obrigações do Estado” em processos de transição: investigar, processar e punir; revelar a verdade; oferecer reparação; afastar os responsáveis de posições de autoridade (MEZAROBBA 2009). No Brasil, como em outras partes do Cone Sul, é mais comum a referência a essas medidas como práticas de Memória, Verdade e Justiça, sendo o termo Justiça de Transição mais mobilizado pelos “especialistas” e “autoridades”, em especial os atores vinculados à CA.

36 Conforme afirma Bourdieu (2011a) o Estado é uma tese que jamais é colocada como tal. Reúne e forja um conjunto de categorias do pensamento tomadas como naturais por serem inscritas na evidência da experiência comum. Para o autor, pensar o Estado do ponto de vista das ciências sociais demandaria compreender, em primeiro lugar, que tal esforço participa em maior ou menor medida da própria cons-trução do Estado. Daí, a importância metodológica de tornar, por um lado, clara as adesões da reflexão ao mundo social e, por outro, diferenciar os problemas sociológicos daqueles que estão colocados como problemas sociais, percebendo que estes têm relativa independência daquilo que se acredita ser a reali-dade dos fenômenos.

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A todo momento no encontro, ouvi comentários que identificavam a valorização so-cial das memórias das vítimas da Ditadura e a construção de um Estado mais democrático como os propósitos principais dos agentes envolvidos. A relevância do evento foi algumas vezes refe-rida justamente pela atração que exerceu sobre atores políticos destacados nos cenários nacional e local. Essa boa repercussão foi constantemente justificada nas falas de diversos atores pela proximidade da instalação da Comissão Nacional da Verdade. Para muitos deles, essa instalação seria fruto de um “novo momento” dos debates públicos sobre a Ditadura no Brasil. A fala do Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, nos dá pistas para entender essa leitura:

“Estamos diante de um desafio muito forte aqui no Brasil. Quem diria?! Quem diria, há quatro anos atrás, que nós, o povo brasileiro... os editoriais dos jornais... estaríamos discutindo a comissão da verdade?! [Quem diria que] saberíamos o que é comissão da verdade?! [Quem diria que] teria no seu orde-namento jurídico o direito à verdade positivado?! Quem diria que nós estivés-semos diante de um movimento de discussão pública da nossa lei de anistia?! Que foi criada no ambiente da transição controlada, da transição pactuada, cujas bases fundamentais eram exatamente o esquecimento, a não identifica-ção dos respectivos autores das violações e a consequente impunidade de cada um deles. Então, pouco a pouco, vai se rompendo com essa tradição do esque-cimento. E, para nós, ainda se alia uma perspectiva cultural muito importan-te, porque, ao longo do tempo, acostumou-se na sociedade brasileira a não se caracterizar as nossas identidades, a identidade brasileira, como um povo de resistência, mas sim como um povo apaziguador, um povo cordial, um povo que nunca enfrenta a sua própria violência. Então, nós estamos diante de uma mudança cultural. É a primeira vez na história do nosso país que é criado um órgão oficial com dedicação exclusiva, com tempo integral, para sistematizar as graves violações produzidas pelo Estado brasileiro em um momento da sua história. (…) Nós estamos criando um ambiente inédito no tratamento das violações do nosso passado. Porque aquela luta incessante, constante, perma-nente dos familiares dos mortos e desaparecidos ao longo do tempo, hoje se torna uma luta de toda a sociedade. A dor é desindividualizada e passa a ser de toda a sociedade. O direito à verdade deixa de ser um direito só das vítimas e passa a ser de toda a sociedade” (Paulo Abrão, 31/03/12, Encontro Latino-a-mericano Memória, Verdade e Justiça).

A caracterização da existência de um “novo ambiente” encontrou terreno fértil em parte da audiência do evento. Tal novidade se referiria ao envolvimento das instituições estatais e da sociedade brasileira de uma forma mais geral com lutas e dores vistas, até então, como particulares e que seriam, assim, “desindividualizadas”, tornadas parte dos interesses gerais de um Estado democrático. Estaríamos vivendo um processo de mudanças nas visões e atitudes sociais em relação ao passado ditatorial. Em outro evento, meses depois, no qual também estive presente – A 61º Caravana da Anistia no Rio de Janeiro –, Paulo Abrão sugeriu que o rompi-mento com tal “tradição de esquecimento” se explicava pela diferença existente entre conhecer e reconhecer. Interpretando sua fala, conhecer o passado seria produzir e consolidar socialmente

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informações, categorias, reflexões e narrativas sobre fatos e processos ocorridos. Uma ativida-de que pode ser (e foi) realizada pelos historiadores e pelos movimentos sociais, por exemplo. Reconhecer seria considerar esses fatos como “problemas sociais” a serem resolvidos, inseri--los na dinâmica de disputas políticas que envolvem as práticas e as linguagens institucionais, consolidar categorias jurídicas (tais como anistiados políticos, mortos e desaparecidos políticos, familiares, vítimas e perpetradores), definir novos padrões de sensibilidade em relação a essas violências e suas memórias dolorosas e, por fim, instituir direitos. O reconhecimento, portanto, passa pela necessidade de que instituições da administração do Estado assumam um papel no processo de produção de memórias. Concordando talvez com a análise de que é no campo da produção simbólica que o Estado melhor faz sentir sua influência, uma vez que “as administrações públicas e seus representantes são grandes produtores de problemas sociais” (BOURDIEU, 2011a: 95).

No Brasil, um conjunto de leis, políticas públicas e instituições governamentais re-conhecem que “violências políticas” foram praticadas durante a Ditadura, e que o “Estado” tem responsabilidade na reparação daqueles que a sofreram”.37 Esses artefatos legais e aparatos admi-nistrativos garantem àqueles que provem terem sido demitidos, cassados, exilados, banidos, tortu-rados, presos ou perseguidos por “razões políticas”, assim como àqueles que demonstrem que seus familiares foram mortos ou desaparecidos também por “razões políticas”, certos direitos, como “reparações” pecuniárias e morais. Embora, historicamente, esse processo não remeta aos últimos quatro anos, como Abrão argumenta – a questão dos “mortos e desaparecidos”, por exemplo, foi

37 Em âmbito nacional, são duas as instituições criadas para reparar as vítimas da Ditadura: a Comis-são Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e a Comissão de Anistia (CA), vinculada ao Ministério da Justiça (MJ). São quatro as leis que se referem a questão. O Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que concede anistia aos atingidos pelos atos de exceção previstos no artigo, ocorridos entre 1946 e 1988. Diferente-mente da Lei de Anistia (Lei Nº 6683/79), que apenas perdoava os crimes políticos e conexos, o artigo, vinculado à Constituição de 1988, define anistia como um conjunto de reparações (por exemplo a resti-tuição de funções, benefícios e promoções perdidas). A Lei 9.140 de 1995, que reconhece como mortas as pessoas que, por razões políticas, tenham sido detidas entre 1961 e 1988 e se encontram desapareci-das. Essa lei traz um anexo com os nomes de pessoas imediatamente reconhecidas e cria a CEMDP para analisar novos pedidos de reconhecimento, além de estabelecer indenização aos familiares. A Lei 10.559 de 2002, que cria o regime do anistiado político. Ela amplia e regulamenta as reparações previstas no Art. 8º do ADCT, criando a CA para avaliar os pedidos de reconhecimento. A Lei 12.528 de 2011 cria a CNV para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período previs-to pelo Art. 8º do ADCT. Sob essas leis, ver: Mezarobba, 2003, 2008a. Em diversos estados da fede-ração, leis de reparação também foram instituídas no começo dos anos 2000. Recentemente, comissões da verdade foram criadas também em diversos estados. As políticas públicas são variadas. Um exemplo são as Caravanas de Anistia, cerimônias realizadas pela CA em que o julgamento dos pedidos de anistia são feitas nos estados onde residem as “vítimas”, e não em Brasília, como forma de homenagem. Outro exemplo são os editais do Projeto Marcas da Memória, também da CA, que financia as mais diversas iniciativas da “sociedade civil” de filmes a projetos de apoio psicológico às vítimas de tortura. Sobre a CA e as Caravanas, ver: Rosito, 2010. Um terceiro exemplo, são as iniciativas relacionados ao Projeto Memórias Reveladas, mencionadas na nota 8.

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“reconhecida” em 1995 – é preciso concordar que recentemente, sobretudo depois do advento das comissões da verdade, cresceu a percepção de que as narrativas sobre a Ditadura centradas na cen-sura à “violência do Estado” e na afirmação de “direitos das vítimas” têm se multiplicado.

Dessa forma, cada vez mais, essas narrativas se tornariam fontes para novos supor-tes de memória, como filmes e livros, ganhariam espaço nos jornais e programas de televisão, seriam tomadas como tema de debates, seminários e trabalhos acadêmicos, além de ocupar espaços institucionais. Os “direitos das vítimas” – ainda que estejam tão longe de se tornarem consensos na sociedade, quanto de satisfazerem as demandas – estariam sendo consolidados, na medida em que passam a ser mobilizados e considerados legítimos em diferentes espaços públi-cos, entre domínios classificados como políticos, judiciais e administrativos. Essa percepção de aumento discursivo em torno do tema é acompanhada de um reforço das críticas aos silêncios “impostos” ou “cúmplices” de um momento anterior. Em face deles, o Brasil é retratado como um caso paradigmático de amnésia social, sobretudo nas muitas vezes em que nossa experiência em lidar com o passado ditatorial é comparada às respostas dadas no contexto regional, nota-damente na Argentina. As comparações feitas ao longo da tese com a experiência deste país, justificam-se, portanto, tanto pela relevância social alcançada naquele contexto pelas memórias do desaparecimento (SANJURJO, 2013; CRENZEL, 2008; CATELA, 2001; VECCHIOLI, 2001), quanto pelas insistentes comparações que observei ao longo da pesquisa, que tratam a Argentina como uma espécie de modelo a ser seguido.

Charge do cartunista Latuff “Torturadores lá e cá”, de 2013. Na Argentina, é Videla o militar que aparece preso. No Brasil, é o Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI/SP nos anos

1970, que dorme tranquilo em sua casa. Desde 2008, ele é considerado responsável pelas torturas praticadas no órgão por uma sentença declaratória da Justiça Civil.

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No Brasil, ao contrário, “ninguém conhece nada”, “ninguém lembra nada”, “nin-guém ensina ou aprende nada” sobre a Ditadura. Ouvi frases radicais como essa não apenas em Porto Alegre, mas inúmeras vezes durante toda a pesquisa. Devo admitir que, a princípio, fiquei desconfortável e desconfiada com essas afirmações. Como era possível tamanho apagamento, se eu mesma lembrava não apenas de aulas sobre a Ditadura, como poderia recuperar na memória filmes, livros, séries de televisão, além das memórias familiares as quais tive acesso? Procurando me desfazer dessa sensação e concretizar o esforço de não naturalizar representações e memórias (nem as minhas, nem as de meus interlocutores), considerei mais interessante entender essas percepções sobre o esquecimento, identificando os principais elementos que as compõem, do que questionar em que medida elas seriam ou não verdadeiras.

Diversos autores têm se dedicado a discutir os processos sociais que estabeleceram os conflitos violentos durante a Ditadura e as formas pelas quais essas experiências foram en-caradas após o fim do regime. Tomando como referência essa produção acadêmica, a próxima seção perfaz um brevíssimo histórico da Ditadura, apenas no que tange às violências cometidas e ao processo de transição para a democracia. À semelhança do que Sanjurjo (2013) argumen-tou sobre a Argentina, no Brasil, o campo acadêmico e o campo da militância (e o burocrático) pelos Direitos Humanos também se encontram e se tocam em muitos pontos. Entre atores que circulam por essas fronteiras é possível observar não apenas categorias de análise mobilizadas em comum, como muitas vezes a escolha dos mesmos temas a partir dos quais olhar o passado, além do compartilhamento de perspectivas acerca de como ele é encarado socialmente.38 Mas, enquanto a bibliografia sobre a Argentina tenta explicar as razões pelas quais as memórias da Ditadura se tornaram uma questão política central para aquela sociedade, as reflexões sobre o Brasil procuram desvendar por que o país de maneira geral convergiu para um esquecimento

38 Beatriz Sarlo (2007) argumenta que as disputas pelo passado costumam opor memória e história como nar-rativas concorrentes. Concordo com a autora que haja diferenças entre aquilo que convencionamos denominar memória, em linhas gerais, as representações sobre o passado de dimensões inseparavelmente individuais e cole-tivas (Halbwachs, 1990), e aquilo que consideramos ser a história, um fazer profissional moldado pelas práticas desse campo intelectual. Para a autora, em busca de verdades nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade) (SARLO, 2007: 9). É justamente por levar em conta essas desconfianças que certos atores sociais afirmam haver diferenças entre conhecer e reconhecer, uma observação que parece de fundamental relevância para entender a indexação dos danos causados pela Ditadura entre os “problemas sociais” concernentes aos direitos humanos a serem resolvidos no país. Por outro lado, creio que aproximações entre história e memória também devam ser observadas. Ambas são construções narrativas inseridas no presente e em permanente proces-so de (re)formulação. Configuram discursos cotidianamente disputados em conflitos sociais (POLLAK, 1992). Como narrativas sobre o passado, cada uma a seu modo e fazendo uso de seus métodos, participam igualmente dos embates políticos das sociedades nas quais são construídas e se influenciam ao participar, ora divergindo, ora convergindo, da consolidação de símbolos e categorias na conformação de imaginários e narrativas hegemô-nicas sobre o passado. É interessante, inclusive, notar o trânsito dos atores sociais entre o campo científico e os movimentos sociais. Entre os pesquisadores selecionados para compor o histórico que segue, dois são ligados ao movimento de familiares, um foi militante do movimento pela anistia, outro da luta armada contra a Ditadura.

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sobre sua experiência ditatorial. Assim, ao mobilizar essa produção acadêmica, a intenção não é apresentar uma história verdadeira desse processo, mas destacar as principais razões levantadas pelos autores para que o exercício de rememorar o passado seja considerado “pouco atrativo no país” (FICO, 2001). Através delas, pretendo iluminar essa espécie de memória do esquecimento que é parte fundamental das leituras e padrões de inteligibilidade compartilhados hoje pelos atores sociais que estão problematizando publicamente a Ditadura.

Memórias do esquecimento

Vítimas, enfim, fomos todos nós desse medo geral que se apossou da nação, que transtornou cada qual e fez que praticamente todos enterrassem a cabeça na areia para não ver ao redor. Na parte que nos cabe,

nos enfiamos na areia e nos cegamos, também, pensando que, assim, fugíamos desse medo geral (Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento)

Amplos setores da sociedade brasileira – e não só as elites – foram coniventes com a ditadura. Eis uma constatação necessária, que talvez sirva como ponto de partida para explicar a dificuldade de reflexão

sobre o tema dos crimes cometidos a partir do Golpe de 1964. (…) Daí, em parte, as tentativas de esquecer o assunto, em nome da reconciliação. Ou de tratar o tema como se fosse algo que ficou ultrapas-

sado com o fim da ditadura, algo que estaria por merecer um ponto final.(RIDENTI, 2001: 23)

Em 1964, um golpe dirigido por políticos e militares contra o Presidente João Goulart deu início ao período comumente conhecido como Ditadura ou Regime Militar. Tal processo, denominado Revolução por seus protagonistas, levou as Forças Armadas (FFAA) – à frente delas o Exército – a controlar não apenas as forças de segurança do país, mas o conjunto de suas instituições políticas. Esse controle, como nos lembra Ridenti (2001), se deu não sem a importante participação de uma variada gama de atores – que, por contraste, chamaremos de civis – entre parlamentares, políticos, funcionários públicos e operadores do direito. Além do apoio de empresários, meios de comunicação, setores da Igreja, e outras parcelas da população que não compunham as “elites”, nem participavam diretamente da administração pública.39

39 Conforme mencionei na introdução, há uma série de debates entre historiadores sobre o caráter da Ditadura em termos da composição social de suas lideranças. O fato do Golpe ter sido dirigido por seto-res da oficialidade militar, assim como o fato de o controle sobre as instituições ter ficado nas mãos des-ses oficiais justifica a popularidade do termo “ditadura militar”, inclusive no senso comum. No entanto, aos poucos, a historiografia procurou ressaltar as participações civis, elaborando novas designações para o período, sendo a mais popular delas “ditadura civil-militar”. O termo “terrorismo de estado”, popular em outros países como a Argentina, é mobilizado por poucos autores no Brasil, sobretudo em função de uma diferenciação comparativa com outros países do Cone Sul que, a partir de uma contabilidade res-

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O Golpe ocorre em um contexto de ebulição política internacional que importa lembrar. Segundo Reis Filho (2004, 2005), nos anos 1960 e 1970, a bipolarização da Guerra Fria, as lutas de libertação nacional e os movimentos terceiro mundistas marcavam as relações internacionais, não apenas construindo noções de oposição e unidade entre conjuntos de países, mas também provendo símbolos transnacionais que eram mobilizados nos conflitos políticos internos. Na América Latina, as disputas entre projetos associavam os ideais de desenvolvimen-tismo nacionalista à cisão paradigmática entre os blocos comunista e capitalista, que opunha irreconciliavelmente perspectivas “de direita” e “de esquerda”. Apesar da proximidade com os Estados Unidos, a região via disseminarem governos nacionalistas de caráter popular e prolife-rarem movimentos sociais reformistas e revolucionários. Inúmeros processos insurrecionais em todo o mundo, e o especial impacto da Revolução Cubana sobre as esquerdas latino-americanas, alimentavam os imaginários políticos, fazendo predominar a visão de que as transformações sociais almejadas deveriam ser arrancadas pela força, através de confronto violento, luta armada, guerrilha e outras formas de revolução social.

No Brasil, o Golpe ocorre em um contexto de acirramento dos conflitos entre “di-reitas” e “esquerdas” que, ao oporem projetos concebidos como antagônicos, voltavam-se para os mesmos territórios, arenas políticas e símbolos nacionais. A partir de 1961, essas disputas se materializaram em pressões sobre o governo de João Goulart, seja por sua desestabilização, seja por sua radicalização à esquerda (FICO, 2004; REIS FILHO, 2005). Nesse confronto, a violência foi, cada vez mais, sendo entendida como instrumento político legítimo. Segundo Reis Filho (2005), esse foi o conflito político mais violento e de maiores dimensões sociais ocorrido até então no país, mobilizando não apenas políticos, movimentos sociais e militantes organiza-dos, mas também parcelas variadas da população que, nos momentos decisivos que antecederam o golpe, ocuparam as ruas, seja para apoiar o presidente no Comício da Central, seja para pedir

trita ao número conhecido de vítimas letais, entende que a perseguição no Brasil foi voltada apenas para os grupos de militantes. Alguns autores (por exemplo, TELES, 2013) já argumentaram, contudo, que se a morte teria sido um destino mais comum para militantes, a tortura foi generalizada. Apesar desses debates, a maior parte dos termos sugere uma homogeneidade interna ao regime que não necessaria-mente corresponde à realidade. Alguns autores se preocuparam em compreender as diferenças e embates internos, inclusive entre os setores militares que participaram do regime. Entre esses autores, destaco Carlos Fico que, no conjunto dos trabalhos citados aqui, se preocupou em discutir essas disjunções. Esse assunto, entretanto, excede o escopo desse trabalho que, por preocupar-se com as memórias da oposição, lida com visões homogeneizadoras do regime que tendem a ressaltar sua força e coesão, sobretudo a par-tir do aspecto repressivo. O consenso no campo MVJ, tal como procuro demonstrar através do debate bibliográfico mobilizado, é que a Ditadura excluiu as disputas políticas e os movimentos sociais da esfera pública perseguindo não apenas militantes, mas toda forma de fazer política, inclusive em outros meios, como nas artes, nas igrejas, na questão indígena e no futebol, por exemplo. A mesma observação vale para as esquerdas. Sua diferenciação interna é assunto de diversas pesquisas (por exemplo RIDENTI e REIS, 2007, 2002; GORENDER, 1999), mas não será abordado aqui, tanto por exceder o tema, quanto por essa diversidade ser apagada nos debates acerca dos direitos humanos pela inclusão de toda a esquerda nas categorias que pretendem dar conta de sua perseguição.

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a intervenção militar nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, para tomar apenas dois exemplos de grandes eventos que testemunham a imersão do conflito na sociedade.

O Golpe vem a alterar o caráter da disputa, na medida em que um de seus lados toma o controle exclusivo das instituições. Em outra ocasião, argumentei (AZEVEDO, 2013) que, ao fazê-lo, os setores militares que tomaram o poder converteram o conflito em um drama social (TURNER, 2008), lançando sobre seus adversários – os setores rotulados como tendo uma iden-tidade política de esquerda – a pecha de “inimigos da nação”, “terroristas” e “subversivos”. Como categoriais estigmatizadas que personificavam toda sorte de ameaças à “segurança nacional”, eles foram excluídos do processo político através de mecanismos como a censura, a perseguição, a prisão, a tortura, o assassinato, o desaparecimento e o exílio. Nesses aspectos gerais, o contexto brasileiro se assemelha ao de outros países latino-americanos, onde sucessivos golpes desencadea-ram (e foram desencadeados por) uma onda de histeria anticomunista, alastrando pela região a adesão às metodologias repressivas e à lógica bélica da Doutrina de Segurança Nacional.40

Deflagrada, portanto, sob o discurso da proteção contra a “ameaça comunista” ou a instalação de uma “república sindicalista”, a Ditadura declarou guerra contra os cidadãos en-volvidos (ou presumidamente envolvidos) nas mais variadas atividades políticas. Segundo Greco (2003), em uma formulação que não destoa do entendimento de grande parte da historiografia, o contexto criado pela Ditadura era de desertificação social:

Repressão generalizada, tortura institucionalizada, prisões clandestinas, as-sassinatos e desaparecimentos políticos, censura prévia, aniquilamento dos canais de expressão e manifestação, militarização da guerra contra a subver-são (…) liquidação dos sindicatos e dos movimentos de trabalhadores rurais e urbanos, dissolução dos partidos políticos e das agremiações culturais, pros-

40 De elaboração norte-americana e difundida entre militares na Escola das Américas, os princípios ideo-lógicos da segurança nacional orientaram as Ditaduras estabelecidas em todo o continente latino-ame-ricano nesse período. Sua premissa era o antagonismo político central da Guerra Fria, que pregava a ne-cessidade de uma guerra total – isto é, por todos os meios, político, econômico, psicológico, etc – contra o comunismo, um “inimigo interno” que estaria disseminado em meio à população civil. Considerados pregadores de uma “ideologia exógena”, alheia aos “interesses nacionais”, os sujeitos sociais identificados com as esquerdas deveriam ser excluídos da comunidade nacional. A certeza de que havia uma guerra revolucionária em marcha, articulada internacionalmente pelo comunismo, levava à elaboração de me-canismos para uma “guerra contrainsurgente” que tornava a violência o principal instrumento mobili-zado pelos aparatos de Estado em nome da “segurança nacional” (PADRÓS, 2008). As metodologias de guerra contrainsurgente foram também inspiradas na experiência francesa na Indochina e Argélia. Contudo, as formas pelas quais os diferentes países latino-americanos implementaram essa guerra apre-sentam diferenças. Enquanto a Argentina optou pelo desaparecimento forçado como método, levando à cifra de 30 mil pessoas desaparecidas denunciadas pelas organizações de direitos humanos, países como o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai optaram pela prisão ilegal (nem sempre seguida de prisão legal) e a tortura como método repressivo mais generalizado. Há que lembrar que os sistemas de segurança e informação das diferentes Ditaduras atuaram em colaboração, estabelecendo perseguições além de suas fronteiras. A chamada Operação Condor é a face mais conhecida desse processo.

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crição das entidades estudantis, descaracterização do legislativo, militarização do judiciário – e desqualificação de ambos – hipertrofia do executivo, controle draconiano de escolas, fábricas e universidades, interdição das manifestações de rua, eliminação das oposições de esquerda, armadas ou não (GRECO, 2003: 67).

Toda essa atividade se estabeleceu através de órgãos de espionagem e repressão, pro-gressivamente articulados em um sistema de segurança e informação que passou a atuar mobili-zando, simultaneamente, métodos legais e ilegais (FICO, 2001). Os órgãos de segurança podiam tanto prender “suspeitos”, amparados na permissividade das leis de exceção – (re)formuladas no decorrer do período –, quanto simplesmente sequestrá-los. Esse último procedimento foi espe-cialmente mobilizado durante todo o período com variações de intensidade porque dificultava a ação de familiares e advogados. Apesar do termo “desaparecido” estar hoje associado à presunção de morte daqueles que, uma vez sequestrados, nunca mais foram vistos, é necessário lembrar que todos aqueles que foram presos de maneira ilegal estiveram momentaneamente desaparecidos até sua libertação ou a oficialização de sua prisão ou de sua morte. Segundo Padrós (2008), o uso sistemático de métodos clandestinos de prisão e interrogatório, ainda que teoricamente voltados para um inimigo específico, definido a partir de um espectro restrito da política (a disputa direta pelo poder), gerava sentimentos amplos de insegurança, impunidade e arbitrariedade, criando um clima de ameaça contínua sobre toda sociedade. Para o autor, a cultura do medo se tornaria o principal meio de dissuasão dos conflitos, paralisando e silenciando qualquer forma de oposição.

Todo o debate acerca da “verdade” sobre os crimes da Ditadura está profundamente ligado aos meandros e à extensão dessas perseguições e, sobretudo, às chamadas “versões ofi-ciais” construídas pela Ditadura para explicar a morte dos opositores. Segundo Teles (2005), durante todo o período, tornou-se comum a mobilização de práticas de esconder e mostrar a violência da repressão, em virtude da igual necessidade de legitimar o regime e difundir social-mente o medo, além de amenizar as pressões internacionais causadas pelas denúncias. Essas necessidades combinadas levavam a Ditadura a divulgar versões de mortes em tiroteio, suicídios ou atropelamentos. Em outros casos, a prisão podia ser negada. Não foram poucos os familiares que, em busca de seus parentes em instituições policiais e militares, ouviram que eles estariam “foragidos”. Não assumir a prisão implicava em não assumir o assassinato, nem entregar o cor-po.41 Para isso, foram criadas tecnologias de desaparecimento que contaram com a participação de médicos legistas, agentes funerários e governantes civis (TELES, 2005).42

41 Teles (2005) apresenta a transformação do uso dessas táticas em números, mostrando a coincidência entre o início do período da chamada distensão e o aumento dramático do número de desaparecidos. O fato de sobretudo a partir do Ato Institucional Nº 5, de 1968, toda a militância política precisar cobrir-se de clandestinidade, afas-tando-se de parentes e amigos, facilitava a argumentação de que os presos estariam “foragidos”. A clandestinidade também contribuía para a ideia de que os “terroristas” estavam sendo presos porque haviam feito algo.

42 A investigação mais completa sobre essa questão foi feita na cidade de São Paulo. Trata-se do relatório da CPI da Vala de Perus (Câmara Municipal, 1990) sobre o qual falaremos adiante.

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Contudo, alguns autores procuraram mostrar que, ao lado do medo, outras razões explicam os silêncios que se estabeleciam ainda à época frente às violências do regime. Eles argu-mentam que diferentes formas e intensidades de apoio, aprovação ou colaboração também pude-ram ser observadas em algumas parcelas da sociedade. Entre os mais conscientes acerca das vio-lências estariam os setores civis que participavam direta ou indiretamente do regime, da repressão e de seu acobertamento: os empresários que financiavam o aparato repressivo e aqueles jornalistas e meios de comunicação que colaboravam voluntariamente com a Ditadura (KUSHNIR, 2004). Porém, em diversos outros setores da sociedade, era possível encontrar quem aprovasse o regi-me, seja por pensar a política sob a lógica da Guerra Fria, compartilhando o medo da “ameaça comunista”, seja por se sentir identificado com os discursos patrióticos (REIS FILHO, 2005) e em torno ao otimismo (FICO, 1997), por festejar o “milagre econômico”, ou ainda por partilhar a defesa da moral e dos “bons costumes” (FICO, s.d2) e os discursos contra a corrupção ventilados pelos militares, entre outras formas de identificação. Nesse sentido, a repressão, a censura e as restrições à democracia e à liberdade teriam sido ignoradas ou toleradas não apenas em razão do medo ou do completo desconhecimento (embora também não se possa pressupor o oposto), mas também da justificação ou da indiferença a partir do que era dado a cada um conhecer.

Por outro lado, setores envolvidos na oposição ao regime, quer por identificação ideológica com as “esquerdas”, quer por razões humanitárias ou pela defesa da democracia par-ticiparam, desde os primeiros momentos, de articulações em solidariedade e defesa dos “perse-guidos, presos e desaparecidos políticos”, construindo denúncias que foram divulgadas no país até a intensificação da censura política operada pelo AI-5.43 Falamos, sobretudo, de religiosos, advogados, políticos do MDB, jornalistas, familiares de vítimas, militantes e simpatizantes das esquerdas, assim como dos próprios presos políticos e exilados, entre outros.44 Apesar da cen-

43 O Ato Institucional Nº 5 foi decretado em dezembro de 1968. Considerado o “golpe dentro do golpe”, o ato fechou definitivamente o regime, marcando o momento de institucionalização da censura política, o aprimoramento e centralização do aparato repressivo e o endurecimento das perseguições po-líticas. Ele autorizava o presidente da República a: decretar o recesso do Congresso Nacional, intervir em estados e municípios, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos de qualquer cidadão, decretar o confisco de bens considerados ilícitos e suspendia a garantia do habeas-corpus. Cabe notar que o episódio que serviu como justificativa para o ato foi a recusa do Congresso em cassar os deputados Márcio Moreira Alves e Hermano Alves, ambos do MDB, por fazerem críticas públicas ao regime e às FFAA. Em discurso na Câmara dos deputados, em setembro de 1968, Moreira Alves chamou o Exército de “valhacouto de torturadores”. O ex-deputado, também jornalista, é autor de um dos primeiros (e me-nos conhecidos) livros de denúncias sobre as torturas da Ditadura. Torturas e Torturados (ALVES, 1996), que chegou a ser publicado em 1966, tratava das violências ocorridas no contexto do Golpe.

44 Um exemplo dessas articulações são as Comissões de Justiça e Paz que se envolveram com a proteção de perseguidos políticos, marcando a virada do posicionamento da CNBB em relação à Ditadura, a que havia inicialmente apoiado. Em 1971, foi criada a comissão brasileira. Em 1972, a regional de São Paulo, sob a proteção de D. Paulo Evaristo Arns. A comissão tornou-se um espaço de reunião desse conjunto de diferentes atores e de referência para os perseguidos políticos e seus familiares, registrando as denúncias e mobilizando advogados.

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sura, a divulgação de denúncias por diversas vezes rompeu tais barreiras.45 Ademais, eram en-contrados caminhos de publicização no (ou através do) exterior, com apoio das comunidades de exilados e organismos e associações internacionais, algumas das quais se empenharam em mobi-lizar mecanismos pressão internacional sobre o Brasil (TELES, 2005; ROLLEMBERG, 1999).

Essas denúncias, fortemente centradas na ideia de perseguição “por razões políticas”, ganhariam mais visibilidade a partir de meados dos anos 1970, quando ainda tímidas formas de manifestação pública contrárias à Ditadura começam a aparecer. Em 1974, há uma importante vitória eleitoral do MDB. Em 1975, surgem os primeiros movimentos coletivos defendendo anistia, como o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA). Os debates sobre este tema passa-riam a circular entre presos, seus familiares e setores vários da sociedade. A partir de 1977, são retomadas as massivas greves e mobilizações estudantis e operárias, as associações começam a se reorganizar, surgem o Movimento contra a Carestia, as Comunidades Eclesiais de Base, os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), etc (GRECO, 2003). Reunindo grande parte desses movimentos e o conjunto dos setores políticos e sociais que se opunham ao regime, um verdadeiro Movimento pela Anistia surge e ganha força na sociedade. A partir dos dois últimos generais, Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985), a Ditadura começava a falar em uma abertura controlada, que ocorresse de maneira “lenta, gradual e segura”. Desejando conduzir o processo, o regime deixa expirar o AI-5 (final de 1978), revoga ou altera leis de exceção e engaja-se na elaboração de uma lei de anistia que fosse, ao mesmo tempo, restritiva para os opositores e ampla para os agentes do Estado, no intuito de evitar a investigações após o fim do regime.

Todo esse processo de transformações, cujas razões inspiram desacordos na histo-riografia, não implica no (nem é epifenômeno do) fim da repressão, que continuou atuando for-temente, como exemplificam as conhecidas mortes de Herzog e Manoel Fiel Filho, o Massacre da Lapa e a repressão às greves operárias.46 Houve também ações autoritárias sobre o legislativo,

45 A censura política operou de forma mais ostensiva durante os 10 anos de vigência do AI-5. Mas, há exemplos interessantes que mostram que as violências da Ditadura não eram completamente desconhe-cidas da “opinião pública”, nem ausentes da imprensa. Além da já mencionada publicação do livro de Moreira Alves, podemos citar a imprensa alternativa. Mas, não só. Há inúmeros exemplos também na grande imprensa. Em 1971, o delegado Fleury, um dos mais conhecidos agentes da repressão, chegou, por exemplo, a dar uma entrevista à Revista Realidade, na qual admitia sua atuação e dava notas para os presos que torturou, segundo o grau de resistência demonstrado (MORAES, 2008). Teles (2005) tam-bém apresenta uma série de exemplos de como a questão dos desaparecidos surgiu na imprensa, seja nos anúncios de buscas publicados por familiares; seja em artigos, como o famoso Os esperantes, de Tristão de Athayde, sobre os familiares de desaparecidos, publicado no Jornal do Brasil em 1974; ou ainda as reportagens sobre o pronunciamento público do Ministro da Justiça, em 1975, em relação a uma lista de desaparecidos que lhe fora entregue por familiares e o Cardeal Arns, pedindo esclarecimentos. Foi a primeira vez que a Ditadura se manifestou sobre o tema, contudo, sem admitir sua responsabilidade.

46 Entre 1975 e 1976, as mortes de Herzog e Fiel, militantes do PCB, são parte da forte repressão lançada contra esse partido, em um momento em que esquerda armada já estava dizimada. Herzog era diretor da TV Cultura, Fiel era operário. Suas mortes sob tortura no chamado Doi-Codi de São Paulo, mal camufladas como suicídio,

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como o fechamento do Congresso e uma onda de cassações políticas em 1977. Ademais, volta-vam à ativa grupos paramilitares descontentes com a abertura, cujos atentados e intimidações ganharam notoriedade com o caso RioCentro.47 Por fim, deve ser destacada a livre atuação da chamada Operação Condor no Brasil precisamente nesse período. Trata-se, dessa maneira, de um processo complexo, repleto de disputas e contradições. Talvez por essa razão, é a esse mo-mento que a maior parte dos autores atribui a produção das memórias e esquecimentos que se consolidariam no período democrático acerca da Ditadura.

O projeto de Anistia foi elaborado e enviado por Figueiredo ao Congresso Nacional, onde foi debatido extensivamente em uma Comissão Mista composta por parlamentares ligados ao governo (Arena) e à oposição (MDB). A proposta previa anistia para “crimes políticos e cone-xos” com exceção dos condenados pelos chamados “crimes de sangue” (atentados contra a vida). Segundo Carlos Fico (s. d.), desde aquele momento, era amplo o conhecimento de que o termo “crimes políticos e conexos” pretendia incluir os agentes do Estado. Para o autor, em que pese a desigualdade de recursos entre as partes e as intervenções na composição do Congresso em 1977, a existência de debates no legislativo, e o voto favorável da maioria do MDB à lei, foram os prin-cipais responsáveis por forjar historicamente o entendimento da lei como o “pacto básico da transi-ção ao garantir que, superada a ditadura, os que a implantaram e a conduziram não seriam punidos por seus atos arbitrários” (FICO, Op. Cit.: 15).48 Apesar das emendas propostas durante o processo, o resultado foi uma anistia “recíproca”, para perseguidos e agentes da repressão, embora “parcial”, por não se estender aos “condenados por crimes de sangue”. A lei não previa reparações.

Para Greco (2003), a existência de uma negociação parlamentar não pode elidir o fato de que essa disputa não foi travada apenas no Congresso. Desde 1978, um amplo debate sobre a anistia se desenvolvia na sociedade. Deu-se a crescente articulação de um movimento em âmbito nacional que impulsionou a realização, ainda naquele ano, do I Congresso Nacional pela Anistia. Contando com a participação dos CBAs, MFPAs, OAB, ABI, SBPC, setores religiosos, muitas entidades vinculadas aos já mencionados movimentos sociais emergentes na época, políticos do MDB, artistas, intelectuais, entre outros. Tal congresso, seguido por uma segunda edição e por outros encontros no Brasil e no exterior, deu um impulso organizativo ao

causaram enorme comoção, ocasionando a exoneração do comando do II Exército. A missa ecumênica realizada para Herzog reuniu milhares de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, repetindo o que tinha ocorrido na missa para o estudante Alexandre Vannuchi Leme, em 1973. Em 1976, o Massacre da Lapa foi uma operação desenca-deada para eliminar toda a direção do PCdoB que estava reunida em uma casa no bairro paulista da Lapa.

47 Entre 1977 e 1981, ocorreram inúmeros atentados à bomba, organizados por setores radicais da direita e do aparato repressivo, em locais como banca de jornal que vendiam imprensa alternativa e na sede da OAB do Rio de Janeiro. O mais famoso desses atentados ocorreria no RioCentro, espaço de eventos no Rio de Janeiro, durante o show comemorativo do 1º de Maio de 1981. O artefato, contudo, explodiu dentro do carro dos militares que o instalariam, ferindo um deles e matando outro.

48 Para uma excelente e bastante detalhada recuperação desse processo, ver: Greco, 2003.

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movimento, conectando-o ao conjunto da heterogênea oposição à Ditadura. Foi um movimento não apenas numeroso, como socialmente significativo, envolvendo atores sociais de visibilidade política que defendiam a volta da democracia e os novos atores coletivos que surgiam no cenário do país, nesse sentido, ainda que o movimento não tenha sido suficientemente forte para dar fim à Ditadura, nem para garantir a “anistia ampla, geral e irrestrita” que reivindicava,49 como expli-car que seja atribuído a esse momento as origens dos silêncios e esquecimentos sobre a Ditadura?

A resposta mais simples seria a de que o movimento foi derrotado. O que revelava uma Ditadura ainda forte o suficiente (ou assim percebida) para emplacar seu projeto a partir de generalizados receios de que, contrariada, pudesse impedir qualquer tipo de anistia. A noção de “transição negociada” vem, portanto, da ausência de uma ruptura política que excluísse os per-sonagens da Ditadura da nascente democracia. Esse é um argumento fundamental usado pela maior parte dos analistas para explicar os esquecimentos. As passagens a seguir exemplificam:

Quando aparece gente – tão rara quanto os micos-leões – lembrando as atro-cidades cometidas pela Ditadura, surge um mal-estar que toca até democratas tarimbados. Quase sempre, os rememoracionistas são informados de que a transição não incorporou esse tipo de cobrança, que os responsáveis pelo re-gime militar são, hoje, autênticos liberais. Como só acontece entre nós, estes eventos dramáticos teriam perdido seu nexo histórico. Não aviltam nem preo-cupam mais a nação (ALENCASTRO, 2001 [1994]).

As vicissitudes da luta política do presente, por vezes, levam até mesmo os que não compactuaram com o regime civil-militar a silenciar sobre os aspectos embaraçosos da história recente, em parte porque alguns deles se alinharam posteriormente a setores significativos dos antigos donos do poder, enquanto muitos daqueles que se mantém na oposição não querem ou não se sentem fortes o suficiente para enfrentar politicamente os antigos algozes, talvez te-merosos de “cutucar onça com vara curta”, desencadeando uma reação supos-tamente ameaçadora à democracia (RIDENTI, 2001).

Como sabemos, no Brasil, a transição foi negociada e – de certa forma – até hoje se “negociam” as fronteiras entre a memória e o esquecimento. (…) De fato, não é difícil imaginar a vigência de um acordo tácito para não dividir as Forças Armadas, evitando criminalizar a instituição onde se abriga o repres-sor. Enfim, procedimentos compatíveis com as tantas vezes celebrada da tradi-ção brasileira de promover mudança sem grandes rupturas (NOVAES, 2001).

49 A anistia seria “ampla, geral e irrestrita” para setores da esquerda e perseguidos, sem restrições de qualquer tipo, mas sem incluir os “torturadores”. Embora não se falasse à época de vítimas, violações de direitos humanos, ou de reparações, setores desse movimento se engajaram na denúncia das violências cometidas pela “repressão”, propondo novamente uma CPI dos Direitos Humanos, ou das torturas, como era mais comumente referida. Deputados do MDB simpáticos a causa chegaram a propor emenda nesse sentido na votação da anistia, que foi derrotada.

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Como se sabe, do latifúndio ao poder incontrastável dos bancos, da mídia mo-nopolizada de Roberto Marinho aos serviços públicos deteriorados da saúde e da educação, da dívida interna à externa, de José Sarney a Antônio Carlos Magalhães, passando por Delfim Neto, são inúmeras continuidades entre as trevas da ditadura e as luzes da democracia. E o que dizer da cultura política autoritária, cuja vitalidade ninguém pode contestar tantos anos depois de fe-chado o período da ditadura militar? (REIS FILHO, 2005).

Algumas dessas passagens lembram que a associação íntima entre a anistia e noções como esquecimento, conciliação e continuidade podem ser – e frequentemente são – relacionadas a representações sobre a nacionalidade e noções de historicidade a ela relacionadas. O que nos remete à fala de Paulo Abrão acima mencionada, e tantas outras que presenciei ao longo da pes-quisa. Ideias como a “cordialidade brasileira”, o “país do futuro” ou o “país sem memória” – este-reótipos mencionados ora elogiosa, ora criticamente, com a intenção de questionar ou reforçar – estão presentes quando o assunto é a transição para a democracia. Se a tal “cordialidade nacional” é elencada como uma das responsáveis pela ausência de ruptura política, outro vilão, o “nosso senso de historicidade”, que privilegiaria o futuro em detrimento do passado, seria o responsável por uma ruptura do nexo histórico (e mnemônico) entre ditadura e democracia, como se referiu Alencastro. Ainda que relativizáveis, essas representações sobre a identidade nacional são mobi-lizadas e produzem efeitos concretos na vida social. Daí que modificações nessas características, pensadas como disposições de longa duração, pareçam a subversão de uma “tradição cultural”.

Ao tentar complexificar a questão, os autores apontam outros elementos que tam-bém observei serem mobilizados nos debates atuais sobre a Ditadura.Voltando-se para o movi-mento pela anistia, Greco (2003) argumenta que duas eram as questões principais que partici-param da conformação de seu discurso público: a necessidade de se opor à proposta de “anistia parcial e recíproca” sinalizada pelo governo, e o interesse de se tomar parte na dinâmica mais geral de reorganização dos movimento sociais e oposição à Ditadura. Vinculando-se à primei-ra questão, a principal bandeira do movimento tornou-se a “anistia ampla, geral e irrestrita”. Outras demandas, como “liberdades democráticas”, “fim do aparelho repressivo” e o “fim da Lei de Segurança Nacional” referiam-se à segunda questão. Frente a esse contexto, a autora chama atenção para o fato de que a luta pela anistia possuiu “duas faces”. Essa ideia, na reali-dade, surge em um trecho das Resoluções do I Congresso. Nele, argumenta-se que a luta pela anistia deveria defender, por um lado, os que foram “atingidos pela repressão”, conforme a terminologia da época, por outro, produzir garantias para as lutas do momento (de operários, pobres, estudantes, associações profissionais, etc.). Se uma face olhava para o passado, a outra precisava mirar o presente se quisesse popularizar a luta para além dos atingidos (e dos pro-blemas passados), dialogando com os novos movimentos sociais, cujas reivindicações estavam marcadas por questões como melhores condições de vida e trabalho e a reivindicação de “li-berdades democráticas” que os permitissem atuar politicamente.

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Nesse sentido, não apenas a anistia, como a luta por ela, caminhariam na tensão entre passado e futuro, memória e esquecimento. Os novos movimentos focados na luta “por direitos” guardavam pouca identidade com a luta travada antes e durante a Ditadura, quando a questão da “reforma” ou “revolução” da sociedade eram centrais. Denominações como “novo sindicalis-mo” e “nova esquerda”, que os novos atores mobilizavam para se definir, denotam essa vontade de diferenciação em relação às experiências de militância anteriores. A incorporação mais am-pla das demandas pelo esclarecimento das torturas, mortes e desaparecimentos, localização dos corpos e a punição dos torturadores – ainda mal conceitualizadas como direitos – acabaram não alcançando tanta repercussão, seja no movimento mais geral pela anistia, seja no interior dos mo-vimentos sociais e dos novos partidos políticos.50 Nesse processo, teria prevalecido uma diluição da memória coletiva da repressão. A autora identifica dois atores principais desse esquecimento: os governos democráticos, que o teriam imposto oficialmente, reverberando acusações de “re-vanchismo” formuladas pelos militares; e a sociedade, cúmplice por ter abandonado a questão.51

Para Reis Filho, essa transformação lenta da Ditadura em democracia se contrapõe a uma verdadeira ruptura em termos de memória. Recordar a Ditadura tornou-se o mesmo que opor radicalmente um período de “trevas” às “luzes” democráticas. O autor não fala de um esquecimento, mas de uma série de esquecimentos que criam uma memória hegemônica sobre a Ditadura como um corpo estranho à sociedade, composta apenas por militares radicais, com

50 Nesse sentido, é interessante notar que os documentos de fundação do principal partido de esquerda que surgia no momento, o Partido dos Trabalhadores, para onde afluíram muitos sobreviventes e familia-res, negligenciam esse tema. O Estatuto e o Manifesto de lançamento o ignoram. O Programa faz uma referência única e pontual (em apenas uma frase), na seção Planos de Ação, à “apuração das torturas e punição dos responsáveis”. Nada consta sobre mortos e desaparecidos, nem sobre reparação e direitos. Dis-ponível em: http://novo.fpabramo.org.br/content/documentos-de-fundacao-do-pt-0. Acesso em 15/08/14. Já o PDT, surgido no exílio, em 1979, aponta em seu manifesto, a Carta de Lisboa, duas ações principais para o momento: conquistar a anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos por resistir à Ditadura e retornar o país à normalidade democrática. O documento fala da ocorrência de torturas e violações de direitos humanos, mas nada propõem em relação a elas. Disponível em: http://www.pdt.org.br/index.php/memoria-pdt. Acesso em 15/08/14. Já o PCB e o PCdoB, partidos cujas existências atravessam o período, se encontravam imersos em debates internos sobre suas responsabilidades políticas e suas opções de luta, disputas por “balanços” de suas ações que pouca relação tinham com a caracterização dos militantes como vítimas ou a reivindicação de direitos para os perseguidos, os mortos e os desaparecidos.

51 O termo “revanchismo”, cunhado pela Ditadura na transição, está de tal modo presente nas narrativas que condenam as iniciativas de memória que foi mencionado pela Presidente Dilma Rousseff em seu discurso de sanção da lei que cria a CNV. Ela disse: “As gerações brasileiras se encontram hoje em torno da verdade. O Brasil inteiro se encontra, enfim, consigo mesmo sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silên-cio” (18/11/11). O termo seria repetido em seu discurso no dia da instalação da comissão. Ao lado dessa noção, há também os discursos que minimizam a repressão, a partir do cálculo numérico de mortos e desaparecidos no país em contraposição aos números de outros países, novamente com destaque para a Argentina com suas 30 mil vítimas. Os que propalam esse discurso veriam com satisfação ser cunhado, em 2009, por um editorial da Folha de São Paulo, um termo que, na boca de críticos e adeptos, rapida-mente se popularizou: a “ditabranda” (Cf. Folha de São Paulo, 17/02/2009, Limites a Chávez).

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a qual quase ninguém deseja se identificar. Haveriam três principais deslocamentos de sentido na conformação dessa memória: a representação das esquerdas como parte integrante de uma “resistência democrática”, ocultando o caráter revolucionário dos projetos políticos de uma gran-de parcela; a representação das esquerdas armadas como a face radical e metodologicamente equivocada dessa “resistência”, entendendo que esses equívocos, mesmo que compreensíveis no contexto, produziram uma guerra, em que os “dois lados” tiveram suas responsabilidades; e a visão da sociedade como mera expectadora dessa guerra, desvinculada de uma ditadura “dos militares” e desejosa da volta à democracia. Através desses deslocamentos, tanto aqueles colabo-radores do regime que passaram a renegar o passado, quanto as esquerdas revolucionárias que desejavam se reinserir na nova dinâmica política poderiam ser incorporadas à democracia, seja pelo isolamento dos militares como culpados, seja pela chave da “resistência”.

Outro elemento reiterado pela produção acadêmica é que essa exclusão da memória da violência da vida pública deixou “a cobrança da dívida política da Ditadura para setores restritos, vistos como um punhado de quixotes radiais” (RIDENTI, 2001). Um “exército de Brancaleone”, nas pala-vras da deputada Luísa Erundina, durante sua participação no Encontro Latino-Americano. Esses setores seriam os herdeiros solitários de uma contramemória que começou a ser formulada durante a luta pela anistia (GRECO, 2003; TELES, 2005). Das denúncias e demandas produzidas naquele momento seria “extraída a matéria-prima para articulação de matriz discursiva própria centrada em novo léxico e nova gramática de direitos humanos” (GRECO, 2003: 114). Segundo ambas as autoras, essa tarefa seria levada adiante, a partir dos anos 1980, pelas novas organizações formadas por “sobreviventes” e “familiares”, como a Comissão de Familiares e os grupos Tortura Nunca Mais, surgidos em vários estados do país, assim como em projetos de investigação, entre os quais o mais relevante, conectado com as movimentações que surgiam no Cone Sul por um “acerto de contas com o passado”, foi o projeto Brasil Nunca Mais. Realizado por advogados de presos políticos e colaboradores, sob coordenação de D. Paulo Evaristo Arns e do Reverendo Jaime Wright, o pro-jeto constitui até hoje a principal referência sobre as violências praticadas pelo regime. Levantou métodos e locais de tortura, nomes de torturadores, listas de mortos e desaparecidos, o perfil dos atingidos, entre outros dados relevantes para compreender a repressão no Brasil.52

52 A equipe do projeto copiou clandestinamente quase a totalidade dos processos contra presos políticos que cor-riam no Superior Tribunal Militar. Nesses processos, foi possível averiguar as denúncias de violências feitas pelos próprios presos durante seus depoimentos aos juízes. Para os organizadores, o fato desses testemunhos terem sido registrados em documentos lhe dava mais credibilidade do que os testemunhos feitos posteriormente que, muitas vezes, tornavam-se alvo de desconfiança. A ação teve apoio e organização do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo. Um resumo dos resultados do levantamento foi publicado no livro relatório BNM, em 1985, no Brasil. Apesar da falta de publicidade, o livro entrou para a lista dos dez mais vendidos do país, tornando-se imediatamente um clássico. O conjunto dos processos copiados foram enviados para fora do país. Posteriormente, cópias foram recolhidas no Arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp. Em 2012, a versão original foi repatriada, digitalizada e disponibilizada integralmente online através do projeto BNM digital (site: http://bnmdigital.mpf.mp.br/).

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Como notou a socióloga argentina Elizabeth Jelin (2003), apesar das diferenças entre os processos de transição para a democracia no Cone Sul, o fim das experiências dita-toriais faria surgir uma série de empreendimentos coletivos voltados para o esclarecimento dos acontecimentos cobertos pela incerteza, como as torturas, mortes e desaparecimentos, visando o acúmulo de informações e seu registro público. Em toda a região, essa luta assu-miria um caráter de busca pela “verdade” que, divulgada publicamente, seria entendida como uma luta da “memória contra o esquecimento” ou “contra o silêncio”. Na Argentina, o fim do regime trouxe consigo o primeiro empreendimento desse tipo, a CONADEP, comissão para investigar os casos de desaparecimento.53 O Nunca Más, título de seu relatório final, inspiraria iniciativas similares em outros países, como foi o caso do Brasil. A expressão se tornaria um imperativo político (lembrar para que as violências não se repitam) que associava “memória” e “verdade”. Como consequência desse compromisso, surgem outros empreendimentos públicos para registrar, para marcar e comemorar, como memoriais, monumentos, comemorações, or-ganização de arquivos documentais, produções artísticas e variados processos de investigação e esclarecimento. Mas, enquanto na Argentina o relatório Nunca Más foi fruto de um trabalho estabelecido na esfera institucional, no Brasil, ele nasceu de um empreendimento clandesti-no, iniciado ainda nos finais da Ditadura, e publicizado apenas na democracia, sem qualquer apoio governamental.

A partir da abertura, em 1985, a Ditadura nunca deixou de ser debatida publi-camente em esforços para que as violências vividas fossem caracterizadas como “problemas sociais”. Além do projeto Brasil Nunca Mais, houve: a produção de diversas biografias de mortos, desaparecidos e sobreviventes; a descoberta de valas clandestinas, a localização de corpos de alguns desaparecidos; a abertura de diversos processos judiciais na área civil; as denúncias contra torturadores e médicos que participavam das torturas, acompanhadas de confissões de alguns deles; a identificação de centros clandestinos de tortura e assassinato; e a nomeação de ruas em homenagem a mortos e desaparecidos. As instituições do Estado, inicialmente fora dessas iniciativas, começariam a se envolver a partir dos anos 1990, quando ocorrem: a abertura de arquivos das polícias políticas, duas comissões parlamentares sobre os mortos e desaparecidos (uma no Congresso Nacional e outra na Câmara de Vereadores de São Paulo), e é sancionada a Lei de Mortos e Desaparecidos. Posteriormente, haveria: investiga-ções por parte do MPF; leis reparatórias estaduais e nacional; abertura de mais arquivos e a

53 A CONADEP, Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas, foi criada por Raul Alfonsín, primeiro presidente civil após a Ditadura. Era uma comissão “oficial” com a função de investigar os de-saparecimentos forçados no país. Baseada em testemunhos e buscas, ela foi responsável pelo primeiro le-vantamento do número de vítimas. O relatório serviu de provas no processo estabelecido contra as juntas militares que governaram o país, realizado em 1985. A comissão se tornou uma referência internacional para os processos de transição política que desejam levar em conta os direitos humanos, passando a ser considerada uma das primeiras comissões da verdade do mundo.

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criação de um centro de referência no Arquivo Nacional, o projeto Memórias Reveladas; e as primeiras iniciativas de construção de museus e alteração de nomes de ruas que homenageiam figuras do regime, etc.

Consideradas sempre insuficientes e frutos da pressão dos “familiares” e “sobrevi-ventes” por reconhecimento, essas medidas não alterariam a percepção de ausência de memórias e de interesse pelo tema na esfera pública, tampouco amenizariam a visão crítica do papel das instituições. Segundo Seligmann-Silva, o papel de omissão desempenhado pelo “Estado bra-sileiro” o tornaria um agente ativo do esquecimento oficial fundado na impunidade e em uma série de negações: à verdade, aos corpos, à informação e à justiça. O Estado torna-se, assim, cúmplice dos criminosos e responsável por condenar a memória das vítimas aos espaços privados (SELIGMANN-SILVA, 2009). Em outras palavras:

O Brasil silenciou-se diante dos crimes da ditadura e limitou-se a exercer uma memória objetiva, através de placas comemorativas, livros, filmes e algumas leis de reparações. A transição brasileira e nova democracia contribuíram para turvar o acesso à memória política: não com sua eliminação, mas condenando a memória ao exílio da esfera pública, restrita às lembranças das vítimas e suas relações privadas (TELES, 2007).

A crítica reside, portanto, no entendimento de que ainda há a necessidade de reti-rar as memórias das vítimas do isolamento das esferas privadas, construindo empreendimen-tos públicos destinados à escuta dessas falas, chancelados pela oficialidade institucional, que

Na charge do cartunista Latuff, a pátria personificada e envolta em uma bandeira de impunidade protege um general de pijamas (alusão aos militares, hoje reformados, que atuaram durante o regime)

dos coros por justiça vindo dos próprios mortos.

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possibilitem uma espécie de catarse coletiva (TELES, 2007). A construção de uma memória do mal (SELIGMANN-SILVA, 2009) – aquela que “reconhece os danos” e “restabelece a verdade” – exigiria a participação do campo jurídico e institucional, tanto para que a restituição pública da verdade e a realização de justiça (no sentido penal) permitam o luto dos familiares, que até o momento estaria interdito, quanto a construção de um estado realmente democrático, respei-tador dos direitos humanos e sensível aos sofrimentos. Nesse sentido, a busca pelos corpos dos desaparecidos, por Memória, Verdade e Justiça deveria ser analisada como uma luta familiar e cívica (SELIGMANN-SILVA, 2009). Não seria um luto mal resolvido, mas uma necessidade para a garantia de direitos em uma democracia frágil (RIDENTI, 2001; ALENCASTRO, 2001; TELES, 2007; TELES, 2005; GRECO, 2003).

Essas análises nos mostram que o permanente ativismo dos “familiares” é visto como principal responsável por manter, ao longo dos anos, a Ditadura como uma questão a ser tratada publicamente. Ao reivindicarem insistentemente as memórias dos “mortos e desapareci-dos políticos”, os “familiares” fariam deles um tema maldito (RIDENTI, 2001) na democracia. E o teriam feito sem se apoiar em uma expressividade numérica que pudesse parecer impactante em si mesma, afastando maiores questionamentos sobre a necessidade de “conhecer a verdade” e “fazer justiça”, tal como ocorre na Argentina.54 No Brasil, o cálculo de “mortos e desaparecidos” serviu muitas vezes ao propósito contrário. Seu “pequeno número”, segundo uma matemática perversa, tornou-se muitas vezes a medida da brandura da Ditadura, que não justificaria maiores esforços de reparação. O tema torna-se maldito, então, na medida em que passa a ser mobilizado com o intuito de tensionar essas percepções ou – para ficar com os termos mobilizados social-mente – de questionar os limites de uma “política oficial de esquecimento”.

54 Com isso não quero dizer que o alto número de vítimas seja a única razão pela qual os desapareci-mentos tenham impacto na Argentina (sobre esse assunto ver, por exemplo: SANJURJO, 2013, CA-TELA, 2001, CRENZEL, 2008, ROBBEN, 2007). Embora dados numéricos sejam frequentemente mobilizados para clamar ou justificar o horror moral diante da violência, não há relação direta ou neces-sária entre violência massiva e repúdio moral. Conforme aponta Calveiro (2013), a massificação pode ter inclusive o efeito reverso sobre o fenômeno. Ela “acaba por desumanizá-lo, convertendo-o numa questão de estatística, num problema de registro. Como afirma Todorov: “um morto é uma tristeza, um milhão de mortos é uma informação”” (CALVEIRO, Op. Cit.: 42).

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O problema dos “mortos e desaparecidos políticos”

De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um produto ou serviço financeiro. (…) Sempre me emociono à vista de

seu nome no envelope. E me pergunto: como é possível enviar reiteradamente carta a quem inexiste a mais de três décadas? (…) É como se as cartas tivessem a intenção oculta de impedir que sua memó-ria na nossa memória descanse; como se além de nos negarem a terapia do luto pela supressão de seu corpo morto, o carteiro fosse um Dybbuk, sua alma em desassossego, a nos apontar culpas e omissões.

(Bernando Kucinski, K. Relato de uma busca)

Nesse ponto, surge uma questão importante: o que é o “desaparecimento político”? No Brasil, não costuma haver dúvidas de que, quando mencionado esse termo, a questão em debate é a Ditadura. Essa referência conecta o “desaparecimento político” a um período específico da história regional do Cone Sul, conforme já foi dito, mas também o insere em um conjunto mais amplo de processos históricos globais que, nas palavras de Hobsbawm (1994), fizeram do século XX a era dos extremos. O período transcorrido entre a Primeira Guerra Mundial e o fim da URSS, para o autor o breve século XX, seria marcado pela conexão entre a emergência das grandes narrativas utópicas e de catástrofes humanas de proporções nunca vistas. Um século no qual, se acredita, a violência tornou-se o denominador comum (ARENDT, 1985) e o biopoder atingiu sua forma exemplar com os campos de concentração (AGAMBEN, 2007).

Desaparecimento forçado, desaparecimento político, holocausto, genocídio e exter-mínio são alguns dos termos cunhados para assinalar o caráter coletivo, político e civil de as-sassinatos que extrapolam a lógica da guerra feita entre exércitos, para se tornar uma expressão do poder como gestão da vida e das populações. Circunscritas por experiências de violência extrema, até então desconhecidas e, por essa razão, consideradas incompreensíveis, as mortes nesse contexto exigiriam categorias específicas, capazes de trazer em si a denúncia e a exigência de que não se repita. Após Auschwitz, nos diz Adorno (2003), essa exigência se torna um obje-tivo pedagógico central, que não pode ser minimizado e dispensa ser justificado. Como marca do fim daquela era, na Europa, como na América, em processos distintos, porém correlatos, a transição para o século XXI demandaria uma reflexão sobre aqueles acontecimentos que pas-sasse por um compromisso com a não repetição. Como marca distintiva, admitir e reparar os legados do extermínio seria a garantia de uma humanidade restaurada (JUDT, 2007), fazendo dos Direitos Humanos (WILSON, 2003, 2008) e dos esforços por acertar contas com o passado um dos temas mais importantes da nova comunidade internacional que emergia com o fim da Guerra Fria (TORPEY, 2006).55

55 Apesar dos esforços imediatamente posteriores ao fim da Segunda Guerra, como o Tribunal de Nu-remberg (que julgou crimes de guerra e não o extermínio propriamente), a criação da ONU e a Declara-

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A consolidação dessas categorias enquanto instrumentos de denúncia e garantia de não repetição tem relação com sua constituição progressiva enquanto “crimes de lesa-humanida-de”, geradores de “responsabilidade estatal” de reparação e “responsabilidade penal individual” na esfera do direito internacional dos Direitos Humanos.56 A inscrição do Brasil nesse novo compromisso global se dá com o fim da Ditadura. A democratização legal passaria tanto pela formulação de uma nova Constituição, quanto pela adesão progressiva a pactos internacionais, entre os quais os de direitos humanos, que implicariam no compromisso de internalizar certos pressupostos e dispositivos de governança global. A Constituição de 1988 declarou a tortura “crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia” (Art. 5º) e concedeu anistia, entendida agora como um direito aos benefícios trabalhistas que haviam sido perdidos pelos “atingidos por atos de exceção”, em decorrência de motivação “exclusivamente política” (Art. 8º do ADCT). Em 1989, o país ratificou tratados internacionais, como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA, 1985) e a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou castigos cruéis, desumanos e degradantes (ONU, 1985). Destaca-se também a participação em eventos interna-cionais, como a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em 1993, em Viena, onde foi contraído o compromisso de criar um Programa Nacional de Direitos Humanos, o que se efetivaria em 1996. Um ano antes seria promulgada a Lei de Mortos e Desaparecidos (Lei 9.140/95).

A sanção da lei permite que a questão adentre os domínios do campo burocrático, fazendo com que suas práticas, formalidades e representações de autoridade e oficialidade partici-pem da constituição de sentidos para o “desaparecimento político”. Entendo que, como qualquer outra categoria, esta não carrega em si uma definição, mas abrange um leque de disposições, entre as provenientes dos dramas e relações humanas e outras advindas das esferas do fazer institucional, que se sobrepõem e se tensionam. Nas palavras de Catela (2001), os significados que o termo pode

ção dos Direitos Humanos, a emergência de uma sensibilidade em relação ao passado e a necessidade de confrontar os crimes e repará-los se constrói progressivamente. Até mesmo o Holocausto só começará a ser visto com as proporções atuais a partir dos anos 1970. Como mostra Judt (2007), é nesse momento que surgirão os movimentos mais consistentes de indenização e homenagens como formas de reparação. Mas, este movimento só alcançará centralidade nas relações internacionais com o fim da Guerra Fria, quando os totalitarismos “de esquerda” e “de direita” começam a ser igualados como regimes de violên-cia. A partir daí, final dos 80 e os 90, os esforços por definir os “crimes contra a humanidade” e garantir formas de reparar e punir se multiplicaram em tratados e empreendimentos internacionais (TORPEY, 2006).

56 Entre os tratados da ONU, destaco a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção do Genocídio (1948) a Convenção de Genebra (1949), a Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes (1975), a Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados (1992), Estatuto de Roma (1998), Convenção Internacional para a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado (2010). O empenho de ONGs e países nos cenários nacionais, na ONU e nos organismos regionais levaram a esses tratados, além da criação de empreendimentos como as comissões de verdade e os tribunais penais internacionais. Segundo Sikkink (2011), a partir dos anos 90, haveria uma tendência global em direção a uma era da responsabilização.

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abarcar são “derivados de um campo de agentes (com seus pontos de vistas) e de instituições (com suas nor-mas), entrelaçados em projetos que lutam pela legitimação de um problema social e nacional” (CATELA, Op. Cit.: 199). Esse processo, em que está em jogo nomear um fenômeno desorganizador, surge como um exercício de inscrição do que é tomado como extraordinário na trama do cotidiano.

Os primeiros esforços em torno da construção de sentidos para o “desaparecimento político” vieram dos setores de oposição à Ditadura e passaram pela tentativa de defini-lo como parte de um conjunto de crimes perpetrados pela repressão política que deveriam ser reconhe-cidos como “terrorismo de Estado”. O desaparecimento teria um papel fundamental na carac-terização da Ditadura como um regime autoritário excepcional. No livro Desaparecidos Políticos: prisões, sequestros, assassinatos, organizado pelo CBA do Rio de Janeiro, em 1979, possivelmente o primeiro editado sobre o tema, o historiador Hélio Silva argumenta:

Sempre houve violências na história do Brasil. Mas o desaparecimento do preso político é fato relativamente novo. Aparece nos governos militares pós-1964 (…) Durante a ferrenha ditadura imposta pelo governo Floriano [Pei-xoto] (…) houve revoltas, motins, protestos, violências, prisões e mortes. Mas não consta o desaparecimento de presos políticos. No governo Hermes da Fonseca houve a revolta da Chibata (…) os revoltosos são severamente puni-dos, vindo a morrer muitos deles no presídio da Ilha das Cobras. Um navio é preparado pra transportar prisioneiros, muitos dos quais são jogados ao mar e outros abandonados na selva. Mas, o diário de bordo registra o nome das vítimas. Em outros períodos conturbados de nossa história houve violências. No governo Arthur Bernardes que recorreu ao estado de sítio (…) depois do movimento de outubro de 1930 tivemos um período de governo provisório discricionário (…), o Estado Novo (…) a intentona integralista (…). As re-pressões assinalaram prisões, violências, fuzilamentos, mas nenhum caso de desaparecimento de preso político. Os corpos apareceram, os mortos tiveram nomes (CABRAL e LAPA, 1979: 25).

O desaparecimento é, por um lado, inserido em uma história de “violência política” associada à trajetória de períodos discricionários na época republicana. Entendendo “política”, numa acepção restrita, como disputa direta pelo poder e, consequentemente, “repressão” como um movimento contra grupos organizados em torno deste propósito: militantes, oposicionistas, inimigos do regime.57 Por outro lado, o desaparecimento se converte em marca da excepcionali-

57 Essa definição do termo tem consequências que serão discutidas adiante, mas, por ora, caberia men-cionar que a definição da violência da Ditadura como “política” nessa acepção restrita é decorrência do impacto do movimento social que reivindicou determinadas vítimas (os militantes cassados, exilados, torturados, mortos e desaparecidos). Como aponta Sarti (2011), ao fazê-lo, excluiu aqueles que não se enquadravam na identidade pautada por essa reivindicação. Desse modo, toda uma série de violências cometidas pela Ditadura, contra “presos comuns”, contra mulheres, contra comunidades pobres, contra indígenas, etc., que hoje se constituem como pauta de movimentos sociais específicos, alguns dos quais tomam para si a categoria internacional “desaparecimento forçado” (Araújo, 2012), estiveram de fora da maior parte das denúncias estabelecidas em relação à Ditadura. Embora muito deles tenham sofrido violências semelhantes aos presos políticos, alguns enquadrados na mesma Lei de Segurança Nacional,

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dade da Ditadura, que é identificada não propriamente no exercício da violência para assegurar o poder, mas na criação de uma “figura misteriosa” cercada de ausências (de corpo, de nome, de informação) e incertezas (onde está? Morreu? Como? Quem é responsável?).

Apesar disso, algumas certezas começariam a se estabelecer como resultado das ten-tativas de circunscrever um fenômeno tão perturbador. Em primeiro lugar, como um crime contra opositores, o desaparecimento passa a ser considerado, circunscrito e mensurável em número de ví-timas. Depois, passa a não haver dúvidas de que se trata de um homicídio seguido de ocultação de cadáver praticado pelo Estado. “No Brasil e em outros países da América Latina, a coluna dos desapare-cidos excluí de todo a hipótese do reaparecimento” (CABRAL E LAPA, 1979: 28), diria Barbosa Lima Sobrinho em outro artigo deste mesmo livro. O desaparecimento implicaria em uma sequência definida de fatos, embora os detalhes que os encadeiam em cada caso sejam desconhecidos: o sequestro, provavelmente a tortura, a morte e a ocultação/destruição do corpo. A adoção desse entendimento teria um ponto identificado de origem: “por desaparecido adotamos o conceito tirado no Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978, em São Paulo: militantes políticos cuja prisão, sequestro ou morte não foram reconhecidos pelo governo” (CABRAL E LAPA, 1979: 15).58

Dezessete anos depois, em 1995, alguns desses entendimentos seriam vinculados à “Lei de Mortos e Desaparecidos”. Ela referenda a superposição das categorias “morto” e “desaparecido”, que se tornam indissociáveis, reconhecendo ao segundo a mesma condição do primeiro. A lei diz:

são reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias (Art. 1º, Lei Nº 9.140/95).59

Se desaparecidos eram aqueles cuja prisão não havia sido reconhecida pelo governo, a lei opera esse reconhecimento, indo além, pois afirma coletivamente a morte de todo desapa-recido que se enquadre em seus termos.

(como, por exemplo, os assaltantes de banco) sem ter, no entanto, a condição de “preso político” reco-nhecida.

58 Em contrapartida, “mortos oficiais” são todos aqueles cujas mortes foram admitidas e divulgadas pela Ditadura à época. É importante saber, entretanto, que isso não significa necessariamente: 1- que tenha sido esclarecido à família as circunstâncias em que tal morte ocorreu, 2- que o corpo tenha sido devolvido. São muitos os casos de “mortos oficiais” cujos corpos foram desaparecidos. Hoje se sabe que boa parte deles foi enterrado à revelia da família em cemitérios públicos, com nome falso ou com nome verdadeiro em local não comunicado.

59 A redação original definia o período entre 1961 e 1979. A Lei Nº 10.536/02, que reformulou algumas passagens da lei, alterou o período para 1961 a 1988.

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A necessidade de assentamento de algumas certezas em torno da figura dos desa-parecidos está relacionada aos dilemas e dificuldades que o fenômeno coloca não apenas como questão que importa e diz respeito à história do país, mas também como drama pessoal e fa-miliar com consequências morais e legais que se deslocam para o cotidiano. É sobre o segundo aspecto que a lei pretende se debruçar centralmente, chamando atenção para o fato de que “dra-mas e relações humanas são muitas vezes constituídos por procedimentos burocráticos” (FERREIRA, 2011: 30). Para além do sofrimento pessoal vinculado à dúvida posta pela ausência do corpo – sentimento que pode resistir mesmo depois da aceitação racional e da afirmação legal da morte –, as inúmeras situações cotidianas em que, confrontados com a burocracia, os familiares percebem-se desprovidos de papéis que certifiquem a situação de fato vivida não são dramas de menor importância. “A mulher é viúva de um marido que pode estar vivo. O filho é filho e órfão de um pai que pode estar vivo. É órfão ou o pai está vivo? E todas as repercussões jurídicas e econômicas disso criam figuras jurídicas inteiramente novas” (CABRAL E LAPA, 1979: 27). Diferentemente dos mortos, os desaparecidos não tinham nem corpo, nem documento, nem situação legalmente constituída: sem atestado de óbito, eram demitidos sem direitos por não comparecem aos seus empregos; não tinham viúvas, e estas não tinham direito à pensão ou a novo casamento; não deixavam herdeiros, nem era possível a partilha de bens.

A ausência de atestados é experimentada como uma perda de direitos e da própria cidadania que os documentos simbolizam (PEIRANO, 1986), pois, conforme bem argumenta Ferreira “mesmo em casos em que o indivíduo não está presente, ou talvez sobretudo neles, possuir o do-cumento certo, na hora certa, é condição não só para que procedimentos (...) sejam desembaraçados, mas também para que bens, direitos e responsabilidades sejam redistribuídos” (FERREIRA, 2011: 34). Do ponto de vista legal, na ausência de figura jurídica que contemplasse a situação “inteiramente nova”, restaria recorrer à “ausência”. Indicada como solução possível na “Lei de Anistia”, essa figura jurídica já estava prevista no Código Civil da época para efeitos de curadoria e sucessão de bens, precisando ser determinada judicialmente.60 Seguindo esse percurso, o familiar obteria uma “declaração de ausência” que geraria futuramente “a presunção de morte do desaparecido, para os fins de dissolução do casamento e de abertura de sucessão definitiva” (Art. 6, Lei Nº 6.683/79). Essa po-deria até ser uma opção individual, entretanto, não se fez opção para o movimento de familiares:

60 O único benefício da Lei de anistia em relação ao código civil (de 1916) era que, para os casos de “ausência de pessoa que, envolvida em atividades políticas, esteja, até a data de vigência desta Lei, desapare-cida do seu domicílio” (Art. 6, Lei Nº6.683/79), ficava diminuído para um ano o tempo necessário para pedir a “declaração de ausência”. Esta geraria em seguida o direito à dissolução de casamento e sucessão definitiva. Com a sucessão definitiva afirma-se a “presunção de morte”. Nos casos “não políticos” eram necessários dois anos para a declaração de ausência e sucessão provisória e trinta para a presunção de morte e sucessão definitiva.

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Se você quisesse poderia na justiça, como qualquer pessoa que desaparece por mais de 5 anos. Qualquer situação. [Por exemplo,] você tá casada, o cara some 5 anos e ninguém acha. Você pode ir na justiça e pedir o atestado de presunção de morte, né? Pra você resgatar a sua vida, pra fazer inventário, pra requisitar uma pensão ou dar baixa no nome dele em algum negócio. Enfim, a questão legal. Qualquer pessoa que desaparece 5 anos, você pode fazer isso. Era isso que eles queriam que fizesse. Não era isso que a gente queria, porque isso não era verdade. Então, eu acho que nenhuma família pediu ou aceitou. Provavel-mente alguma fez, mas eu não tenho conhecimento. (...) Mas eu acho que foi pouquíssimos. Eu não tenho conhecimento. Não sei de ninguém que fez, por-que não era essa a verdade. Eles não estavam desaparecidos porque, sei lá, foi atropelado em algum lugar e ninguém achou e foi enterrado como indigente, como em alguns casos acontece. Não é essa a situação e todo mundo sabia muito bem que não era. Minha mãe poderia fazer: meu irmão tava desapare-cido, procurou em tudo quanto era lugar. Mas ela não ia fazer isso, porque ela sabia que não foi isso que aconteceu. Jamais ela ia fazer isso (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 de dezembro 2013).

Para Elisabeth Silveira e Silva do GTNM/RJ, a figura jurídica “ausência” não di-ferenciaria os casos da grande variedade de ocorrências cotidianamente classificadas como “de-saparecimentos”. Entre outras possibilidades: sequestro ou perda de crianças; fugas de adoles-centes; adultos vítimas de acidentes, ou que saem de casa para tarefas cotidianas e, pelos mais variados e desconhecidos motivos, nunca mais retornam; ou ainda casos diretamente relaciona-dos à violência urbana. Os estudos antropológicos e sociológicos que tomam como objeto tais fenômenos (por exemplo, FERREIRA, 2011; ARAÚJO, 2012; OLIVEIRA, 2007) atentam para a diversidade de acontecimentos organizados sob o termo “desaparecimento” e, consequen-temente, para as imprecisões que ele carrega. Um fenômeno que, a princípio, não poderia ser associado à existência de um crime que o tenha originado.

Conforme aponta Ferreira (2011), o termo pode designar, muitas vezes, apenas o des-conhecimento do paradeiro ou a inacessibilidade de uma pessoa, podendo, após comunicação na delegacia e abertura de sindicância, ser substituído por outras classificações, tais como sequestro ou homicídio,61 que anulam a designação inicial de desaparecimento. Em outros casos, essa co-municação não chega a nenhum crime ou paradeiro, dando apenas seguimento aos procedimentos necessários para obter a “declaração de ausência” e assim alcançar determinados direitos ou dar baixa em compromissos que não se findam pela ausência do indivíduo. Nesses casos, apenas a pas-sagem temporal, e outros trâmites judiciais que comuniquem a manutenção do desaparecimento, podem permitir seu reconhecimento como “morte presumida”. Esse processo, entretanto, pode ocorrer a despeito do destino efetivo do desaparecido, que poderia continuar vivo. Analisando a relação entre estes dramas humanos e os procedimentos burocráticos que neles se entrelaçam, a

61 Considerando que “desaparecimento forçado”, figura jurídica criminal do direito internacional, não é tipificada no Brasil (embora esteja em debate na nova proposta de código penal). O desaparecimento político, por sua vez, não é tipificado como um crime, é uma categoria relativa ao direito civil.

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autora chama atenção para a possibilidade tanto de que o não reconhecimento de certas situações sociais venha da ausência de documentos que as comprove, quanto que o mundo dos documentos e do reconhecimento se constitua desgarrado do que se passa efetivamente na vida social.

A recusa do movimento de familiares em lançar mão das “declarações de ausência” está voltada exatamente para esse descolamento. Requerer tais declarações resulta necessário em parte pelas exigências e constrangimentos postos pela própria burocracia, observada assim como face opressora de um Estado que governa regulamentando as relações sociais. Como disse Beth, era a própria vida que precisaria ser resgatada das complicações legais postas por uma morte não documentada. Com a aceitação da “ausência”, apenas essas complicações legais seriam sanadas, satisfazendo tal Estado opressor, sem uma contrapartida em termos de reconhecimento do que se passava efetivamente nas vidas dessas pessoas sobre uma situação que, como apontou Beth, “todo mundo sabia”,62 isto é, os próprios formuladores da “Lei de Anistia” tinham conhecimen-to. Contudo, a crença compartilhada na legitimidade das estruturas de Estado está tanto na aceitação desse seu controle sobre a vida social, quanto na crença em seu poder/dever de fazer dos sujeitos cidadãos, constituindo “atos destinados a produzir um efeito de direito” (BOURDIEU, 2011: 113). Conforme afirma Bourdieu, o universo burocrático é constituído por uma rede de relações de reconhecimento providas de capital simbólico. Seu poder de nomeação faz dos docu-mentos, atestados e afins discursos oficiais capazes de criar uma declaração pública com efeitos de verdade, identidades registradas com direitos garantidos pelos agentes autorizados que lhe dão consequência. É essa eficácia simbólica que os familiares passaram a exigir que fosse lançada sobre a figura dos “desaparecidos políticos”, transformando conhecimento em reconhecimento.

A lei 9.140/95 opera essa nomeação, atendendo aos desejos de que os “desapareci-mentos políticos” fossem diferenciados da gama mais variada de desaparecimentos que ocorrem todos os dias, dando contornos materiais e temporais que o definem como um fenômeno distin-to, que assim alcança status de outro “problema social”.63 Como fenômeno geral, a lei explicita que o “desaparecimento político” foi um mecanismo empregado por “agentes públicos” contra pessoas que participaram de “atividades políticas” durante um período determinado, tornando

62 Conforme observam Das e Poole (2004), a prática de documentar é sabidamente uma das princi-pais tecnologias a partir das quais os Estados modernos consolidam seu poder como um controle sobre populações, territórios e vidas. Através delas, os Estados tornariam as populações legíveis para si mes-mos. Isto significa que a produção de categorias e instrumentos que classificam e regulam coletividades permitiriam construir linguagens, conhecimentos e modelos de governança. Por outro lado, as autoras chamam atenção para o fato de que se os documentos são símbolos da distância e do poder estatal, eles adquirem, ao mesmo tempo, penetração na vida social. Incorporados às práticas cotidianas dos sujeitos, esses documentos passam a carregar também ideias sobre sujeição e cidadania.

63 Conforme aponta Ferreira (2011), os desaparecimentos não políticos também alcançam status de “problema social”, na medida em que movem um conjunto de instituições e atores sociais com o objetivo de prevenir, combater e solucionar tal questão.

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pública a execução de prisioneiros sob a responsabilidade do Estado. Em termos legais, ele equi-vale à “morte presumida”, mas em condições excepcionais, já que é a própria lei que determina coletivamente a morte, dispensando apreciação caso a caso pelo judiciário, já que ela é feita pela CEMDP.64 Além de reconhecer imediatamente a morte de 136 desaparecidos (listados em um anexo da lei), indenizar os familiares e autorizar o assentamento civil das mortes, a lei criava uma comissão (a CEMDP) para reconhecer outros casos e proceder as demais reparações.

Com isso, a CEMDP se tornava o setor da esfera administrativa responsável por gerir o “problema dos mortos e desaparecidos”. Composta por um presidente indicado e um con-junto de membros, representantes: da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, da sociedade civil, dos familiares, das FFAA, do MPF e do Ministério das Relações Exteriores, a co-missão recebia e analisava requerimentos produzidos por familiares, restritos pela lei ao “cônjuge, o companheiro ou a companheira, descendente, ascendente, ou colateral até quarto grau” (BRASIL, 1995). Os requerimentos deveriam apresentar os artefatos que outrora compuseram a “versão” da morte, ou sua ocultação, montadas pela Ditadura (dossiês dos serviços de segurança e infor-mação, fichas do IML ou registros de cemitérios), para demonstrar que o caso constituía uma manifestação particular do fenômeno definido pela lei. A estes seriam juntados outros artefatos que permitissem a desconstrução daquela versão (testemunhos, perícias, documentos comple-mentares). É inevitável notar que, com o reconhecimento da morte, o desfecho dos casos dava-se não pela busca e /ou localização do corpo ou qualquer informação que comprovasse as circuns-tâncias que provocaram a morte e os culpados em cada caso, mas com a indenização e entrega de um documento padronizado que a atestava, constituindo a morte como um procedimento burocrático. Símbolos disso são os próprios atestados de óbito que, no espaço destinado à causa mortis, trazem a informação: “lei 9.140/95”.

No dizer de Ferreira (2011), se nos dedicarmos a pensar as formas pelas quais o mundo dos documentos e o mundo dos sujeitos convergem e se distanciam, percebemos que embora a separação entre esses mundos possa existir, raramente ela resiste à pressão que eles exercem um sobre o outro. Ao olharmos para os sentidos postos no “desaparecimento políti-co”, percebemos que seu reconhecimento como categoria legal, produtora de direitos, visava uma aproximação com a categoria internacional “desaparecimento forçado”. Contudo, algumas diferenças se estabeleceram, gerando acusações de insuficiência. O “desaparecimento forçado”

64 Atualmente, existem três possibilidades legais de “morte presumida”. A primeira, prevista pelo Código Civil deve passar pela obtenção de uma “declaração de ausência” que, prolongada até os prazos e critérios que a lei autoriza a sucessão definitiva, converte-se em presunção de morte (Art. 6º). Também pelo Código Civil, a “morte presumida” pode ser declarada sem a “ausência” no caso do desaparecimento de pessoa em grave perigo de vida, quando a morte for extremamente provável (Art. 7º). Em ambos os casos, é necessá-rio processo judicial. O terceiro caso é a lei 9.140/95 que dispensa qualquer tipo de procedimento judicial, e deve ser realizada diretamente no cartório, após o reconhecimento pela CEMDP. A lei traz uma lista de desaparecidos para quem os efeitos são imediatos e cria a CEMDP para decidir sobre novos casos.

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começou a ser definido no âmbito da ONU ainda nos anos 1980, com a formação do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário (ARAÚJO, 2012). Precisamente no período em que o “desaparecimento político” ia sendo institucionalizado no Brasil, foram cria-dos a Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado, em 1992, e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado, no âmbito da OEA, em 1996. Ademais, o Estatuto de Roma, que estabeleceu a criação do Tribunal Penal Internacional em 1998, incluiu o “desaparecimento forçado” entre os “crimes contra a humanidade” sobre os quais têm jurisdição (SIKKINK, 2006). Em todos esses documentos, a categoria é definida como uma privação de liberdade praticada ou encoberta por agentes do Estado, seguida da recusa em admi-tir tal prisão e dar informações. É considerado por todos um “crime contra a humanidade”, isto é, uma violação múltipla de vários direitos fundamentais (vida, liberdade, integridade, informa-ção, justiça), que precisaria ser penalmente tipificado pelos países signatários. Em nenhum caso, o desaparecimento é tomado como morte, pelo contrário, é considerado um crime em andamen-to enquanto não se determine o paradeiro ou se identifique os restos mortais do desaparecido.

Foi também nesse período, em 1994, que a Argentina estabeleceu sua lei sobre o assunto. Como parte de uma política reparatória mais ampla, foi criada a figura jurídica da “ausência por desaparecimento forçado”. Os debates em torno de sua definição foram pautados pela recusa de que os desaparecidos fossem dados como mortos (CATELA, 2001), opondo-se à política inicial da ditadura de declarar-lhes “ausente por morte presumida” (SANJURJO, 2013). Embora os efeitos civis das declarações de “morte presumida” ou “ausência por desaparecimento forçado” sejam análogos, essas categorias carregam significados específicos nos contextos em que se estabelecem. Na Argentina, a manutenção de uma categoria diferenciada da morte, mes-mo que pudesse se presumir ser este o destino dos desaparecidos, se mostrou fundamental para o movimento de familiares. Como coloca Sanjurjo (2013):

Marcar e sustentar a distinção entre morrer e desaparecer tem sido uma ques-tão de luta para o movimento de familiares de desaparecidos na Argentina. O desaparecimento e o assassinato seriam crimes de natureza distinta, seus efeitos e implicações sociais difeririam e, portanto, não poderiam ser tipifi-cados como um mesmo delito. Desaparecer equivaleria a matar o morto, sua memória e sua história (SANJURJO, Op. Cit.: 66).

Segundo a autora, o desaparecimento seria entendido como uma tentativa de apa-gamento da morte e de seus rastros. Uma forma de eliminação radical, física e simbólica, dos opositores do regime: sua identidade, sua memória, seus projetos políticos e, até mesmo, sua continuidade geracional (pensando que os desaparecimentos também se abateram sobre os filhos dos presos “apropriados” pelo regime). Dessa forma, a construção de sentidos para o desapareci-mento foi fruto de esforços para defini-lo como uma questão de Direitos Humanos, um “crime contra a humanidade” em uma acepção que associava o destino de cada indivíduo atingido ao processo vivido coletivamente pela nação. Nessa direção, o desaparecimento passa a ser entendido

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como uma prática social e uma forma de poder, um “poder desaparecedor” ou “concentracionário” (CALVEIRO, 2013). Entendimento que se aproxima das noções internacionais que definem o “desaparecimento forçado” como parte de um ataque generalizado do Estado contra sua popula-ção. Como no Brasil, na Argentina o desaparecimento, ou a “ausência por desaparecimento força-do”, foi definida naquele momento como uma figura jurídica civil. Contudo, naquele país, tais leis vieram depois das investigações operadas pela CONADEP e do julgamento das juntas militares. Ainda que a estes eventos tenham se seguido a sanção de leis que visavam impedir o julgamento de militares,65 as representações criadas em torno do “desaparecimento forçado”, associando-o a uma política de extermínio, um trauma coletivo e um problema de Direitos Humanos central para a sociedade, construíram um ambiente político para a posterior derrubada dessas leis de anistia, servindo também à formulação de argumentação jurídica para o processamento penal.

Segundo Catela (2011), a não aceitação da morte – desde as primeiras palavras de ordem do movimento de familiares que exigiam a “reaparição com vida” – fez com que a ausên-cia do corpo se transformasse em locus da dor e da denúncia. Para a autora, o desaparecimento torna-se uma morte que não é, na medida em que não é possível realizar as obrigações morais e rituais relacionados ao corpo e ao lugar de sepultura. A privação do corpo é vivida como uma privação da própria morte, uma morte inconclusa (CATELA, 2011) por meio da qual o desapare-cido segue existindo. Sua presença passa a ser auferida em outros locais de rememoração, como monumentos, placas comemorativas, museus e recordatórios, mas também nos documentos ofi-ciais e nos registros públicos que, ao manter os nomes dos desaparecidos entre os vivos, não dão a questão por encerrada. A autora cita como exemplo a prática de manter seus nomes nos regis-tros das listas eleitorais, simbolizando a continuidade de sua existência como cidadãos. Para ela, na sociedade argentina, o “desaparecido” existe como uma noção de pessoa.

As representações sociais sobre o “desaparecido político” no Brasil percorreram ou-tros caminhos. A caracterização da Ditadura como “terrorismo de Estado”, sustentada pelo Movimento pela Anistia, não logrou expressão social. Ao mesmo tempo, tanto as formas de acusar e perseguir certas identidades políticas, protagonizadas pela Ditadura, quanto as formas de denunciar tal perseguição e de reivindicar tais identidades, protagonizadas pelos militantes, levaram à conformação de diferenciações categóricas duráveis, sedimentando fronteiras entre a comunidade de “perseguidos políticos” e aqueles que nela não se enquadravam. Fronteiras essas que se cristalizam nas leis indenizatórias (Art. 8º ADCT, Lei Nº 9.140/95 e Lei Nº 10.559/02) que reconhecem apenas os perseguidos, presos, mortos e desaparecidos por “razões políticas” como “atingidos” pela Ditadura. Tais termos trazem, na designação “político” que os comple-menta, a ideia de um fenômeno restrito àqueles a quem se podia atribuir uma “militância”. Se a repressão da Ditadura foi considerada incomparável a de regimes anteriores em termos de

65 Foram elas: Ley de Punto Final (1986), Ley de Obediencia Debida (1987) e indultos concedidos às principais autoridades militares (1989 e 1990).

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organização e violência, por outro lado, não foi compreendida como uma prática social extensiva com objetivo de normatizar a sociedade de conjunto.

Tendo como referência essas representações, o “desaparecimento político” estabele-cido legalmente no Brasil se aproxima mas não se confunde com a categoria internacional “de-saparecimento forçado”, seja porque não configura um tipo penal, seja porque não foi entendido como uma ofensa que demandava a reparação de direitos fundamentais, ou ainda por equipa-rar-se à morte. A inimputabilidade dos agentes públicos e a visão do desaparecimento como um “crime político” (segundo a “Lei de Anistia”, crime equiparável aos cometidos por militantes)66 sempre foram rejeitadas de uma maneira unânime pelo movimento de familiares. Já a definição dos desaparecidos como mortos gerou opiniões variadas, havendo familiares que se colocaram contra e aqueles que aceitaram tal medida. Todavia, podemos dizer que, da mesma forma que para os familiares argentinos, a ausência do corpo foi experimentada como uma morte inconclusa, que dificultava o processo de luto e a própria vida. Dessa ausência, o movimento de familiares também fez o substrato de suas buscas, demandas e denúncias. Uma luta contra o apagamento que o desaparecimento representa e que, ainda hoje, se faz ao afirmar a memória e a presença dos mortos e desaparecidos, como Victória nos mostrou no relato do início do capítulo.

Ao longo da pesquisa, presenciei inúmeros momentos em que os familiares relata-ram (a mim ou em eventos públicos) a experiência de vivenciar uma morte sem corpo, que, por mais presumível que possa ser devido ao contexto em que ocorreu, carece de materialidade. Não apenas a materialidade conferida pelo corpo, mas, no sentido jurídico do termo, aquela conferida pelo conjunto de circunstâncias e elementos que evidenciam a existência de um crime por trás de um fato específico. Se “o desaparecido” – sujeito homogêneo fabricado pelas narrativas, pela lei e pela causa política – estaria, sem dúvida, morto, um desaparecido em específico não poderia estar escondido? Não poderia ter perdido a memória? Estar preso ou internado em local inaces-sível? Durante anos, essas angústias acompanharam familiares, levando alguns a manter seus números de telefones e endereços na esperança, ainda que remota, de um reaparecimento. Com essas incertezas e esperanças também jogaram ex-agentes do regime. São inúmeros os casos em que eles fizeram chegar aos familiares, através de telefonemas anônimos, cartas e até dos jornais, notícias sobre a possibilidade de um ou outro desaparecido seguir vivo.

66 Além da lei de anistia, outros impedimentos legais internos dificultam a punição dos agentes do Estado envolvidos em violações de direitos humanos. O primeiro é a irretroatividade da lei penal para prejudicar o réu. Segundo ela, os agentes da Ditadura não poderiam ser acusados de tortura ou desa-parecimento, visto que tais ações não estavam previstas como crime à época. O segundo impedimento se refere aos prazos de prescrição que tornariam inimputáveis hoje os crimes de maus tratos, homicídio ou sequestro, previstos à época. A estratégia jurídica têm sido argumentar que os prazos do crime de sequestro não começaram a ser contados, visto que o corpo não foi localizado e a vítima poderia seguir viva. Nesse contexto, a Lei 9.140/95 passa a ser mobilizada como empecilho, já que ela os declara mortos para “todos os efeitos legais”. Tais processos só têm encontrado seguimento quando o juiz se pauta pelas leis internacionais. No entanto, nenhuma condenação penal foi até hoje efetivada.

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A lei e cada um dos atestados a partir dela emitidos inscreveram esses corpos au-sentes nos registros públicos que se destinam à contabilidade dos mortos da população brasileira (FERREIRA, 2007), onde emblemas, carimbos, assinaturas e fés públicas substituem o corpo ausente na autenticação da morte. Mas, o que parece satisfatório para a burocracia, não soa su-ficiente para todos os familiares. Apesar de ter reconhecido o “desaparecimento político” como um problema social específico, a gestão que se seguiu a esse reconhecimento não diminuiu o abismo existente entre esses dois universos. A emissão de um atestado não impediu, portanto, que familiares seguissem aguardando a volta, desejando ter informações e encontrar os corpos. Não impediu que seguissem buscando e investigando por conta própria, por vezes, tendo que se confrontar com situações em que a morte do desaparecido era posta em dúvida. Há o caso, por exemplo, da esposa que recebeu um telefonema do marido desaparecido, na ocasião da sanção da lei Nº 9.140, dizendo-lhe que não pedisse a indenização, porque ele estava vivo. O marido jamais voltou a se comunicar com ela. Há também os casos dos esforços recentes de duas famílias por reverter os processos de demissão de seus parentes desaparecidos por abandono de emprego.67

Estas experiências, e outras mais cotidianas, como o recebimento periódico de cartas de banco que Bernardo Kucinski narra na abertura de K., continuariam a trazer o desaparecido para o mundo dos vivos, não deixando que se saiba que eles efetivamente restam no registro dos mortos. Esse processo os coloca numa situação de liminaridade no sentido que Turner (2005) dá ao termo: uma figura ambígua, invisível, não classificada em nenhum dos dois estados, nem vivo, nem morto, ou vivo e morto. Os desaparecidos não são (re)conhecidos como mortos por todos, mas também não têm seu lugar assegurado entre os vivos como os desaparecidos argen-tinos, cuja presença na esfera pública é inegável. Nas palavras de Bernardo Kucinski (2014), sua permanência no rol dos vivos é, na verdade, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos. Para ele, em parte, isso se deve à forma de gerir o problema do desapareci-mento, cujo resultado seria:

Enterrar os casos sem enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investi-gação. Manobra sutil que tenta fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a história. O “totalitarismo institucio-nal” exige que a culpa, alimentada pela dúvida e a opacidade dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada so-brevivente como drama pessoal e familiar e não como tragédia coletiva que foi e continua sendo, meio século depois (KUCINSKI, 2014: 168).

67 Uma dessas histórias é a demissão da desaparecida Ana Rosa Kucinski do Instituto de Química da USP. A despeito de ter conhecimento de que o desaparecimento resultava muito provavelmente de prisão, o Instituto rescindiu seu contrato por “abandono de função”. Esse episódio está relatado no livro K. A possibilidade insólita de um desaparecido que volta é o tema da peça de teatro Prova Contrária de Fernando Bonassi (2003). Na história, o marido desaparecido volta no dia em que sua esposa se muda para o apartamento recém-comprado com a indenização do governo. Em 2011, a obra foi adaptada para o cinema, no filme Hoje, de Tata Amaral.

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Uma vez constituídos como categorias jurídico-normativas e admitidos como objeto de procedimentos burocráticos, “os mortos e desaparecidos” tornavam-se também um problema de gestão. Para o autor, o esclarecimento dos casos aliviaria a culpa carregada por cada um dos sobreviventes que vivem em eterna dúvida se, caso eles mesmos tivessem feito algo diferente, a tragédia vivida por seu familiar poderia ter sido evitada. Em suas palavras, a tentativa de encer-rar as demandas apenas com as indenizações (que muitos dizem, como ele, ter sido uma tentativa de “cala-boca”) e o reconhecimento das mortes antes de se realizar qualquer tipo de investigação oficial sistemática denota uma visão do problema como um “drama familiar”. Se por um lado, isso concedia uma valorização política e moral dos “mortos e desaparecidos” e dos “familiares”, na medida em que são categorizados oficialmente como atingidos, por outro lado, fazia com que as soluções passassem por procedimentos administrativos que visavam apenas a garantia de di-reitos pessoais (a indenização e aqueles proporcionados pelo atestado: casamento, sucessão, etc.).

Por mais que as denúncias contra a Ditadura tenham sido inscritas, desde seu pri-meiro momento, na gramática dos Direitos Humanos, e ainda que a Lei Nº 9.140/95 tenha sido elaborada pela então Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça – cujos quadros principais eram atores historicamente ligados a essas denúncias e à defesa dos Direitos Humanos na transição entre regimes –, as soluções apresentadas pela lei para o “problema” não tiveram como foco a garantia de direitos civis fundamentais (como direito à informação, à integridade psíquica e moral e à justiça). Nesse sentido, é interessante notar que a questão não integrou o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-1). Na sessão, “Direitos Humanos, direitos de todos”, o PNDH-1 reconhece direitos específicos de grupos como crianças e adoles-centes, mulheres, população negra, sociedades indígenas, estrangeiros, refugiados e migrantes brasileiros, terceira idade e pessoas portadoras de deficiência (BRASIL, 1996), mas não dos sobreviventes e familiares de mortos e desaparecidos.68

68 Como mostra Silva (2014) – em um texto em que procura discutir as razões pelas quais a comunidade LGBT ficou fora do programa –, a produção do PNHD-1, dirigida pela Secretaria de Direitos Humanos, contou com a contribuição de diversos setores da sociedade. A sua frente estiveram atores com trajetória de militância pelos Direitos Humanos desde a Ditadura, então vinculados a três entidades principais: a Comissão de Justiça e Paz (CJP), a Comissão Teotônio Vilela (CTV) e o NEV/USP. O NEV (criado em 1987) teria seu surgimento vinculado à CTV. Fundada em 1982, por atores que vinham do MDB, do Movimento pela Anistia e das CJP, a CTV se debruçou principalmente sobre as violências contra presos comuns e contra novos atores vulneráveis da Democracia. Para a autora (SILVA, 2014), os Direitos Hu-manos teriam, assim, passado de uma tática de resistência à Ditadura para um meio de defesa de outros setores vulneráveis. Discutindo a mesma questão, Caldeira (2000) argumenta que a Anistia fez com que os vários dos movimentos que defendiam presos políticos, ao lado de novos grupos que surgiam com a Abertura, passassem a se dedicar preferencialmente às violências da Democracia. Para a autora, essa mudança de foco diferenciaria o Brasil das experiências de outros países do Cone Sul “onde os debates sobre direitos humanos continuam ligados às atividades dos regimes autoritários depostos” (CALDEIRA, Op. Cit.:345), fazendo inclusive com que, no Brasil, os Direitos Humanos ficassem estigmatizados como “defesa de bandido”. Creio que houve, na realidade, uma separação entre as atividades de grupos que atuam em questões da democracia e grupos que atuam em questões da Ditadura (embora essa disso-

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Usando como exemplo de análise as políticas para as populações negras e indígenas, Silva (2014) argumenta que o PNDH-1 tinha o objetivo de promover políticas de reconhecimento, nos sentidos propostos por Taylor (1998), ou seja, políticas definidas pela afirmação de digni-dade a identidades coletivas consideradas minoritárias inseridas em comunidade englobantes. Assumir a defesa de direitos diferenciados para tais grupos significava afirmar as diferenças e a condição de injustiça em que esses setores viviam na sociedade, com o objetivo de promover o fim, não da diferença, mas das desigualdades, através da valorização desses grupos como partes integrantes da Nação. Se o reconhecimento de direitos específicos relaciona-se ao processo de formação do Estado e da comunidade nacional, o ato de reivindicá-los torna-se a exigência de inscrição nessa comunidade que se pensa negada.

“O reconhecimento, a promoção e a proteção da diferença no I PNDH foram estendidos a grupos cujas identidades eram consensualmente reconhecidas como legítimas entre as forças políticas que, ao longo do tempo, alçaram os direitos humanos como um mobilizador político no espaço público nacional” (SILVA, 2014: 53). Assim como o caso LGBT, estudado pela autora, que enfrentaria a resistência de setores religiosos conservadores ao reconhecimento de suas identidades, os “fa-miliares de mortos e desaparecidos” sofriam o confronto aberto de setores militares. Porém, seu autorreconhecimento como comunidade política organizada em torno das demandas por direitos diferenciados lhes gerava percepções de exclusão, não apenas como a não inclusão de suas deman-das entre aquelas que a rubrica dos Direitos Humanos legitimava como de “interesse geral”, mas como uma exclusão deles mesmo (e dos mortos e desaparecidos) da comunidade nacional. Daí que mobilizem termos como silenciamento e esquecimento para manifestar o que acreditam ser o apagamento de seus direitos, mas também de sua condição de oprimidos no interior da sociedade.

O estabelecimento da “Lei de Mortos e Desaparecidos”, antes do que arrefecer essas percepções, tornou-se o foco principal das críticas.69 Por “enterrar os casos, sem enterrar os mortos”, a afirmação coletiva da morte foi sendo compreendida como insuficiente e desrespeitosa. Um insulto moral à identidade cultivada por esses atores e uma forma de tratamento desumano. E foi assim entendido não apenas pelo movimento de familiares, mas igualmente pelo campo

ciação não seja absoluta pelo trabalho dos grupos Tortura Nunca Mais discutido no próximo capítulo). Nesse processo, a noção de Direitos Humanos ficou mais associada aos primeiros.

69 Isso ocorria também porque, antes mesmo do início da elaboração do PNDH, o movimento de fami-liares havia se envolvido na reivindicação de um projeto de lei para o reconhecimento das responsabili-dades do Estado pelas mortes. Segundo o texto de introdução para uma das edições do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos (publicada em 1996 pela Imprensa Oficial do Estado de SP), a Comissão de Familiares, vários grupos Tortura Nunca Mais e a Comissão de Busca dos Desaparecidos da Câmara elaboraram um projeto de lei, em 1993, que foi entregue ao Ministro da Justiça. A proposta seria a criação de uma comissão de inves-tigação caso a caso a partir das informações já acumuladas no Dossiê, reunindo representantes de todos os poderes mais a “sociedade civil”. Em 1994, foi lançada uma “carta compromisso” aos candidatos à eleição presidencial, insistindo na proposta. Contudo, a proposta elaborada pelo Ministério da Justiça, no ano seguinte, conforme já discutido, não seguiu essas expectativas (COMISSÃO DE FAMILIARES, 2001).

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transnacional dos Direitos Humanos. Em um seminário organizado na USP, em 1997, o re-presentante da Humans Wrights Watch no Brasil (e representante da ação proposta em nome dos familiares de desaparecidos no Araguaia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1995) argumentaria que, apesar de sua importância, a lei não contempla os parâmetros internacionais, pois inverte os passos do processo de reparação, já que “os fatos devem ser deter-minados primeiro. A responsabilidade há que ser apurada, e somente quando forem tomados todos esses passos, se poderá determinar os termos da compensação pela violação” (CAVALLARO, 2001: 201). Anos depois, em 2010, a sentença dessa ação argumentaria que “o procedimento administrativo instaurado por essa lei [Nº 9.140/95] não é capaz de satisfazer a pretensão dos autores, pois cuida-se de uma postulação muito mais abrangente, que abarca direitos fundamentalíssimos” (CIDH, 2013: 78).70

Desde os primeiros momentos de sua formação, o movimento de familiares bus-cou construir a ideia de que os “terroristas” mortos em tiroteios e suicídios eram, na realidade, “mortos e desaparecidos políticos”, produzindo uma memória global da resistência à Ditadura. Desejavam sedimentar, no plano coletivo, narrativas sobre “porque eles morreram” e “pelo que viveram”. Em uma acepção mais heroica, pelo que “deram suas vidas”. Ao reconhecer as vio-lências e categorizar os familiares como atores autorizados a reivindicar, a lei teve relevância na construção dos “mortos e desaparecidos” como causa política. Por outro lado, ela deixou mal coberta a dimensão da individualização, em que compreender a “verdade” é recuperar a história e a identidade de cada um dos mortos e desaparecidos e reconhecê-las pelo simbolismo dos arte-fatos burocráticos que, outrora, compuseram as falsas versões. Não por acaso que, com o tempo, os atestados fornecidos pela lei aos familiares de desaparecidos, e os atestados concedidos aos familiares dos mortos pela Ditadura, estes baseados em laudos periciais forjados, começam a ser também questionados, somando às demandas da luta a exigência de que fossem retificados de forma a constar corretamente elementos como a data e a causa das mortes.

As críticas do movimento de familiares à lei podem ser, então, resumidas nos se-guintes pontos: ela exime “o Estado” da obrigação de investigar, encontrar e identificar corpos e responsabilizar culpados, deixa para o familiar o “ônus da prova” do “desaparecimento político”, concede atestados de óbito vagos e restringe o pedido de reconhecimento aos familiares. Em resu-mo, trata “a questão dos mortos e desaparecidos unicamente como uma “questão familiar” e não como uma

70 A sentença da Corte Interamericana no caso Araguaia valoriza as iniciativas da Lei Nº 9.140, mas as considera insuficientes. “A Corte considera que a violação do direito à integridade dos familiares se deve também à falta de investigações efetivas para o esclarecimento dos fatos, à falta de informação a respeito dos fatos e, em geral, a respeito da impunidade em que permanece o caso, que neles provocou sentimento de frustração, impotência e angústia.” (CIDH, 2013: 91). Segundo a sentença, não apenas os mortos e desaparecidos são “vítimas”, como seus familiares tiveram violados os direitos à garantia judicial, informação, integridade pessoal, psíquica e moral, tendo recebido, em virtude das omissões acima citadas, um tratamento cruel e desumano. A sentença ainda afirma que se não há controvérsias em relação aos fatos, já que a lei os reconhece, a negação em contemplar os direitos fundamentais torna-se contraditória.

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exigência e um direito de toda a sociedade” (COMISSÃO DE FAMILIARES, 2001: 182). Na visão do movimento, essa associação, apesar da legitimidade que confere a suas vozes, teria como as-pecto negativo a manutenção do isolamento político dos familiares e do desinteresse da sociedade.

Memória, Verdade e Justiça

Em maio de 2013, o portal de notícias R7 publicou matéria sobre uma lei recém-sancionada pela Prefeitura de São Paulo.71 Segundo a reportagem, a nova lei começa a fazer com que uma questão até então irrelevante para muitos moradores da cidade, o nome da rua em que residem, se tornasse tema de “discussão na reunião de condomínio e passasse a fazer parte de conversas à beira do portão”. Seria esse o caso dos moradores da rua Doutor Sérgio Fleury, na zona oeste da capital. A homenagem feita ao delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo à época da Ditadura pode levar a rua a se tornar a primeira a ter seu nome alterado com base na lei municipal que permite a mudança na nomeação de vias públicas batizadas por “autoridades que cometeram graves violações de direitos humanos”.

A reportagem segue explorando o posicionamento dos moradores. Eduardo Rodrigues, comerciante de 46 anos, defende a mudança, argumentando que “algumas pessoas não deveriam ser lembradas nem pelo mal que fizeram”. Outro residente, Sandro Furquim, consultor financeiro de 32 anos, concorda. Ele acredita que os vizinhos contrários à ideia não estão bem informados. Os dois apoiariam a proposta do autor do projeto de lei de rebatizar a rua com o nome de Frei Tito.72 Segundo um deles, “Nem todo mundo sabe quem foi Fleury, nem pelo que Frei Tito passou. Eu sabia quem o Fleury era, mas fui buscar mais informações. Levo na minha rua o nome de um monstro?” Contudo, nem todos compartilham a opinião. A reportagem pondera que, para Luiz Felipe Fabi, médico de 36 anos, “mudar nome de rua não é uma das prioridades dos nossos problemas. Se fosse uma rua homônima, por exemplo, e eu deixasse de receber minha correspondência por isso, tudo bem. Mas a gente não tem um problema”. Consultado, o vereador teria dito que muitos moradores não conhecem a história, razão pela qual a discussão é importante para esclarecê-los. “É uma agressão à democracia você ter uma pessoa que se vangloriava de torturar gente batizando um espaço público na cidade de

71 Cf. Record Notícias, 13/05/13, “Tem pessoas que devem ser esquecidas, diz morador da rua Sérgio Fleury” em: http://noticias.r7.com/sao-paulo/tem-pessoas-que-devem-ser-esquecidas-diz-morador-da--rua-sergio-fleury-13052013 (Acesso em 02/10/13).

72 Frei Tito participou do movimento estudantil e do grupo de frades dominicanos que apoiaram a luta contra a Ditadura em São Paulo. Pela proximidade com a ALN, organização que atuava na chamada luta armada, os frades foram perseguidos, presos e torturados. Tito foi um dos 70 presos políticos trocado pelo embaixador suíço, sequestrado em 1971. No exílio viveu abalado pelas torturas e acreditando ser perseguido por Fleury. Suicidou-se em 1974, no mosteiro em que morava na França. É considerado um dos “mortos e desaparecidos políticos”. Sua história está relatada no livro de Frei Beto e no filme, homônimo, Batismo de sangue.

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São Paulo. Nosso objetivo não é apenas trocar um nome por outro. É estimular uma reflexão na cidade de São Paulo sobre a democracia e direitos humanos”.

As homenagens aos ditadores, ex-agentes ou colaboradores da Ditadura não se limi-tam à rua Fleury. Observando atentamente as ruas da cidade de São Paulo, podemos encontrar o Elevado Costa e Silva, a Avenida Presidente Castelo Branco ou a Rua Henning Boilesen, por exemplo.73 Já, no Rio de Janeiro, é possível passear pela Praça Garrastazu Médici, con-templar a estátua de Castelo Branco no Forte do Leme ou ter uma visão privilegiada da Bahia de Guanabara atravessando a Ponte Costa e Silva (Rio-Niterói), umas das mais imponentes e conhecidas vias da cidade. A situação é a mesma por todo o país. Segundo a periodização mais aceita por historiadores, a Ditadura durou 21 anos. Desde seu fim, 28 anos se passaram sem que gestões mais consistentes para alterar os mapas urbanos dos lugares de memória (NORA, 1997) fossem feitas. Ao contrário do que Verdery (1999) nos mostra sobre a transição política nos paí-ses soviéticos e no Leste Europeu, no Brasil as “estátuas caindo de seus pedestais” não foram os primeiros, mas os mais recentes sinais da mudança de regime feita há quase três décadas.

As primeiras ações relacionadas à nomeação de ruas remetem aos anos 1980, e par-tiram de organizações do movimento de familiares. Tomando os “mortos e desaparecidos políti-cos” como uma categoria chave de suas narrativas sobre o período, e compreendendo sua atuação como uma militância contra o “esquecimento” e uma disputa pela “memória” da sociedade, eles tomaram as homenagens como parte essencial da consolidação das biografias tanto dos mortos e desaparecidos, quanto pessoais. Ao longo dos anos, ruas em todo o país receberam nomes de “mortos e desaparecidos”: Rua Antônio Carlos Bicalho Lana em Belo Horizonte, Rua Carlos Marighella em São Paulo, Avenida André Grabois no Rio de Janeiro, por exemplo. Em geral, foi um processo realizado em ruas sem nome de bairros recém-formados. A dedicação a esse empreendimento levou o GTNM/RJ a nomear todo um conjunto de ruas nos bairros de Bangu e Recreio dos Bandeirantes. Nesse período, foram construídos também monumentos em Recife (o Monumento Tortura Nunca Mais) e junto à vala clandestina encontrada no cemitério de Perus. Recentemente, outras iniciativas começaram a surgir. Organizações mais jovens, como o Levante Popular da Juventude ou o coletivo Lembrar é (re)existir, passaram a realizar atos e inser-ções sobre lugares de memória das cidades brasileiras, como placas para marcar os locais públicos onde foram sequestrados “mortos e desaparecidos” ou a substituição dos nomes de logradouros públicos que homenageiam os generais ditadores.

73 Henning Albert Boilesen era o presidente da empresa Ultragás. Tinha estreita relação com os militares no poder. Entre suas atividades de colaboração destaca-se a mobilização do empresariado paulista para apoiar ma-terialmente o aparelhamento do sistema repressivo. Sobreviventes o acusam de ter assistido a sessões de tortura e mesmo de ter criado um instrumento, a “Pianola Boilesen”. O empresário foi assassinado por guerrilheiros em 1971. O filme Cidadão Boilesen, de 2009, relata essa história.

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Praça Presidente Médici em Feira de Santana/Ba recebe o nome da “morta” Iara Iavelberg. A arte é atribuída ao coletivo Levante Popular da Juventude, foto sem autoria determinada.

Placa Lembrar é (re)existir instalada em Ipanema, no local em que Antônio Joaquim de Souza Machado e Carlos Alberto Soares de Freitas, “desaparecidos”, foram vistos pela última vez em 1971. Foto: Felipe Nin.

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Porém, modificar “oficialmente” nomes de logradouros públicos, como ocorre hoje com a Rua Fleury, é mais complexo do que nomear ruas novas sem designação. Um processo burocrático que demanda a participação de outros atores, mas que nos últimos anos tem des-pontado em muitos lugares. Para ficar apenas com alguns exemplos, os “mortos e desaparecidos” substituíram homenagens a atores do regime em uma rodovia estadual em Santa Catarina (2011), uma escola no Rio de Janeiro (2012), uma rua em Belo Horizonte (2012), através de proces-sos tramitados em Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas. Em 2012, no Rio de Janeiro também entrou em tramitação na Assembleia, e tornou-se alvo de uma ação pública do MPF, a mudança de nome da Ponte Rio-Niterói. No mesmo ano, a Prefeitura de Porto Alegre adotou um projeto para identificar com placas os locais de “repressão” e “resistência” na cidade. Em 2013,

Conjunto de ruas no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro, nomeadas por iniciativa do GTNM/RJ. São homenageados os “desaparecidos”: Eduardo Collier Filho, Guilherme Gomes Lund, Fernando Santa Cruz, André Grabois, Iuri Xavier Pereira, Paulo Botelho Massa, Mário Alves, Ísis Dias de Oliveira, Flávio de Carvalho Molina, Gilberto Olímpio Maria, Ivan Mota Dias, Ramires Maranhão do Valle, Sônia Angel

Jones, Honestino Guimarães e Carlos Alberto Soares de Freitas.

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a Câmara Municipal de São Paulo, em conjunto com sua comissão da verdade, aprovou lei que transformou uma praça nas suas imediações em Praça e Memorial Vlado Herzog. A Prefeitura da cidade inaugurou um memorial aos “mortos e desaparecidos” no Parque Ibirapuera em 2014. Em relação ao ex-presidente João Goulart coube a ação mais audaciosa. Na tentativa de investigar antigas suspeitas de que ele teria sido envenenado, uma articulação entre a CNV, a SDH, o MJ, a Polícia Federal (PF), o MPF e os familiares do ex-presidente iniciou um processo de exumação de seus restos mortais, seguida do translado para Brasília, onde foi recebido com honras de Chefe de Estado, e sua posterior devolução à cidade natal, onde foi enterrado com um cerimonial equiva-lente. Nesse contexto, o Congresso realizou a devolução simbólica de seu mandato presidencial.

Tomadas isoladamente essas iniciativas teriam pouco significado, mas chamam atenção quando se percebe que foram, em grande medida, articuladas e estão inseridas em um quadro mais amplo de ações. Um movimento em que a disputa pela memória tem adentrado de maneira diversificada os espaços da administração pública, angariando novos adeptos para a ideia de que ter o nome de um “violador de direitos humanos” em uma via pública ou uma esco-la74 é uma questão a ser resolvida e que um novo olhar deve ser lançado para o passado, buscando

74 Segundo reportagem do jornal O Globo, em todo país há 3.135 escolas que homenageiam Presidentes. Quase um terço delas, 976 escolas, homenageia os ditadores militares. São 464 escolas Marechal Humberto Castelo Branco e 295 Presidente Costa e Silva. Há ainda escolas em homenagem a Getúlio Vargas e até mesmo a Filinto Müller, ex-senador e ex-chefe da truculenta polícia política da ditadura Vargas. A reportagem não informa quan-tas escolas Presidente João Goulart haveriam. Cf. O Globo, 2/09/13, “País tem quase mil escolas com nomes de

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os mortos que devem ser justamente imortalizados e reverenciados por estas homenagens. Essa proposta é defendida no Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Aprovado em 2010, sua formulação foi dirigida pela SDH a partir de um texto base construído por um grupo de trabalho composto por representantes de todos os poderes e de entidades de direitos hu-manos. Posteriormente, ele foi debatido em conferências abertas à sociedade. A participação de atores ligados à produção do primeiro programa (principalmente ao NEV/USP) aponta o caráter de continuidade destacado nos textos de apresentação do PNDH-3, assinados pelo Presidente e pelo Ministro dos Direitos Humanos. Para ambos, o programa atual seria um aperfeiçoamento dos anteriores pela incorporação dos tratados internacionais mais recentes dos sistemas ONU e OEA. Ainda segundo eles, o PNDH-3 finalmente traria para a agenda nacional dos Direitos Humanos as “políticas públicas” dedicadas a identificar e combater os reflexos do passado sobre as noções atuais de democracia, com intuito de estabelecer um “pacto de não repetição”.

A memória histórica é componente fundamental na construção da identida-de social e cultural de um povo e na formulação de pactos que assegurem a não-repetição de violações de Direitos Humanos, rotineiras em todas as ditaduras, de qualquer lugar do planeta. Nesse sentido, afirmar a importância da memória e da verdade como princípios históricos dos Direitos Humanos é o conteúdo central da proposta. Jogar luz sobre a repressão política do ciclo ditatorial, refletir com maturidade sobre as violações de Direitos Humanos e promover as necessárias reparações ocorridas durante aquele período são imperativos de um país que vem comprovando sua opção definitiva pela de-mocracia (BRASIL, 2010: 19).

“Direito à memória e à verdade”, o sexto e último eixo orientador do programa, é tratado em três diretrizes: o “reconhecimento desses direitos como direito humano da cidadania e dever do Estado” através da apuração e esclarecimento público das “violações”, sendo sua pro-posta objetiva a criação da CNV. A “preservação da memória histórica e a construção pública da verdade”, com a proposta de criar condições para localização e identificação de desaparecidos, criar centros de memória e de documentação, financiar pesquisas, tornar públicos os locais e instituições de repressão. E, por fim, a “modernização da legislação”, com a proposição de su-primir do ordenamento jurídico normas remanescentes da Ditadura que firam compromissos internacionais e princípios constitucionais, e fomentar debates no sentido de que logradouros públicos não recebam mais nomes de torturadores. Com essas propostas, o problema dos “mor-tos e desaparecidos” é inserido em um conjunto mais amplo de “violações de direitos humanos” que importa reconhecer e reparar. Medidas que deixam de estar circunscritas a comissões (a CEMDP para os mortos e desaparecidos e a CA para os sobreviventes) se dispersando por di-ferentes searas da administração pública, como ilustra o caso da nomeação de ruas.

presidentes da Ditadura”, em: http://oglobo.globo.com/educacao/pais temquase- mil-escolas-com-nomes-de-pre-sidentes-da-ditadura-9782672 (Acesso em 4/10/13).

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Longe de tecer comparações valorativas entre os dois planos, minha intenção aqui é, através deles, chamar atenção para a perspectiva de transformação que o novo programa tam-bém assume. Ao afirmar que “a vivência do sofrimento e das perdas não pode ser reduzida a conflito privado e subjetivo, uma vez que se inscreveu num contexto social, e não individual” (BRASIL, Op. Cit.: 170), o PNDH-3 se aproxima dos discursos críticos que acusavam a administração pública de manter a Ditadura como “uma questão familiar”. Assim fazendo, o programa tanto produz novas representações e práticas em relação ao passado, quanto expressa mudanças que lhe são anteriores. Essas mudanças se fundam em uma série de processos históricos complexos e sobrepostos que não possuem a mesma cronologia, alcance ou capacidade de produzir efeitos. Falamos de questões como: a progressiva consolidação dos direitos políticos e do sistema demo-crático no Brasil; a também gradual diminuição do papel político das FFAA na democracia; a atuação permanente do movimento de familiares; a crescente organização de “sobreviventes” em torno a demandas por reparação; o surgimento de novas normativas e o aperfeiçoamento dos debates sobre Justiça de Transição no campo transnacional dos Direitos Humanos; a crescente participação nesse campo de especialistas e profissionais brasileiros, pertencentes ou não à ad-ministração pública; as parcerias e projetos da administração pública com organismos e ONGs internacionais, assim como a mobilização desses atores pelos movimento sociais (do que resulta a condenação do Brasil pela corte da OEA); e a crescente participação do Brasil nos espaços de representação dos sistemas ONU e OEA com pretensões de novo status, portanto, mais suscetí-vel a pressões por adesão aos seus modelos de “desenvolvimento”.75 Apenas se for levado em con-ta o entrecruzamento desses diferentes processos é que podemos entender porque a percepção das violências da Ditadura como um problema de Direitos Humanos, advogada por diferentes atores sociais ao longo do processo de abertura e do período democrático, adquire agora maior visibilidade e novos desdobramentos.

Como bem notou Vianna (2013), ao ser responsabilizado como ente político, o Estado “afigura-se (…) como ponto limite e unificador de uma teia complexa de aparatos, redes e for-matos de gestão de indivíduos compreendidos como estando em situação especial” (VIANNA, Op.

75 O campo transnacional dos direitos humanos deve ser pensado como parte de um conjunto maior de ações, medidas e performances que conformam a chamada “cooperação para o desenvolvimento”. Como bem colocam Silva e Simião, a “cooperação internacional constitui um vasto campo de poder por meio do qual ideias-valores imaginados como universais ganham feições locais” (SIMIÃO e SILVA, 2007: 11). No caso dos Direitos Humanos, essas ideias-valores se disseminam não apenas através de tratados e compromis-sos adquiridos em comissões e cortes internacionais, mas principalmente pela construção de agendas, técnicas e metodologias comuns através de “projetos”, parcerias, pareceres e conferências. No Brasil, os projetos em parceria com o PNUD e ONGs internacionais especializadas em oferecer “soluções globais” em Justiça de Transição se multiplicam em diversas áreas da administração pública que hoje se voltam para o tema da Ditadura, como as comissões da verdade, o MJ, a SDH e o MPF. Os resultados dessas parcerias em termos de produção bibliográfica pode ser conferido, por exemplo, em: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, 2010; REÁTEGUI, 2011, GONZALES E HOWARD, 2013, MENDES e COVELLI, 2009.

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Cit.: 20), nesse caso como “vítimas da Ditadura”. O chamado acerto de contas com o passado (BORNEMAN, 2011; MEZZAROBA, 2003, 2008; TORPEY, 2006) surge como nova “cau-sa” em torno da qual diferentes atores se comprometem e nova fonte de “problemas sociais” a serem solucionados. Os debates através dos quais são constituídos tais problemas e soluções participam do contínuo processo de produção dos limites e fronteiras do Estado, antropomorfi-camente representado como agente portador de “responsabilidades”, e da construção de sujeitos sociais como “vítimas” e “perpetradores”. Mas não só. Eles servem, ao mesmo tempo, à recon-figuração de determinadas bases sobres as quais se assentam a comunidade nacional, quando as narrativas históricas podem ser reorganizadas, elegendo outros mortos a serem manipulados e reverenciados como símbolos políticos, aos quais novos valores podem ser atribuídos. Como aponta Verdery (1999), processos caracterizados como acertos de conta com regimes passados envolvem a afirmação não apenas de novas leis e aparatos políticos, mas todo um reordenamen-to moral e simbólico, com a construção de valores, categorias e sensibilidades que passam a ser considerados moralmente superiores aos que compunham o ordenamento anterior.

Segundo os atores envolvidos em tal processo, adentramos recentemente um mo-mento em que podemos viver nosso acerto de contas com o passado. Isso significa que o “desa-parecimento político” deve habitar um rol mais amplo de políticas de enfrentamento ao “legado autoritário”. Ele deixa seu vínculo exclusivo com uma esfera da administração, a CEMDP, para se tornar um problema também de outros órgãos, como a Comissão de Anistia (alvo sobretu-do em suas medidas de reparação e memória), comissões interministeriais (como o Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), criado em 2009 para buscar corpos naquela região), o MPF (que possui hoje dois grupos de trabalho sobre a questão, o GT Justiça de Transição, que atua na área criminal, e o GT Memória e Verdade, na civil), a PF (que participa como auxiliar em investiga-ções e processos de identificação) e as comissões da verdade, espalhadas por instâncias variadas do legislativo e do executivo (prefeituras, câmaras municipais, governos de estado, assembleias legislativas e universidades). Nessas instituições, a questão é tratada de duas maneiras principais: através de procedimentos que visam a busca, investigação e identificação dos casos, geralmente sigilosos, e através de eventos públicos de caráter “pedagógico” que procuram mostrar a “verda-de” acerca dos acontecimentos passados para fomentar uma memória sobre a Ditadura. Minha circulação, conforme anteriormente mencionado, foi restrita a estes últimos.

Para conhecer os casos de “mortes e desaparecimentos políticos” não é necessário recorrer aos processos que foram levados à justiça, nem aos processos administrativos estabele-cidos na CEMDP, basta consultar o Dossiê Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), produzido e publicado desde os anos 1980 pelo movimento de familiares. A edição mais recente, publicada em 2009 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, está atualizada pelas informações

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coletadas durante os trabalhos da CEMDP.76 Esta comissão, por sua vez, embora tenha realiza-do seus trabalhos em “procedimentos internos”, publicou em 2007 os resultados no livro relató-rio Direito à verdade e à memória. Seguindo o mesmo padrão narrativo nos dois documentos, os casos apresentam a trajetória biográfica e militante de cada pessoa, seguida da narrativa sobre seu desaparecimento e a busca realizada, reunindo referências de toda a documentação e testemu-nho recolhidos ao longo dos anos sobre cada morto ou desaparecido. É a partir delas que segue a maior parte das investigações realizadas hoje, notadamente pelas comissões da verdade e pelo MPF, procurando reunir outras evidências através de novos testemunhos, diligências, análises periciais e novas documentações que possam ser encontradas.77 Esse aspecto das comissões da verdade aproxima sua atividade da policial, na medida em que ambas devem apontar indícios de “materialidade” e “autoria” para casos em que ainda não existe acusação legal, mas, uma vez levados ao tribunal e submetidos ao contraditório, podem converter-se em provas. Tais procedi-mentos, descritos por Lowenkron (2011) como parte do processo de identificação e acusação da conduta criminosa no Brasil, são responsáveis pela construção da verdade dos fatos como verdade jurídica, conforme o uso que a autora faz de Geertz (1997).

Dessa maneira, como instrumentos de ordenação da verdade, os procedimen-tos estabelecidos nas comissões são uma forma de saber-poder similar ao inquérito policial (FOUCAULT, 2003). Essa associação foi explicitamente feita por um procurador duran-te o Workshop Comissão da Verdade: desafios e possibilidades, um dos primeiros eventos públicos

76 A CEMDP continua em funcionamento, entretanto, aquilo que chama de sua “primeira fase” a análise de requerimentos de pedido de reconhecimento foi encerrada. No total, ela recebeu 475 requerimento e 353 pessoas foram reconhecidas como mortas ou desaparecidas por razões política (SDH, 2007). O Dossiê trabalha com o número de 436 pessoas, sendo 396 mortas e 159 desaparecidos, mas incluem também 30 pessoas mortas no exterior, incluindo casos de sequela e suicídio e 10 pessoas mortas antes de 1964 (ALMEIDA et all., 2009).

77 Necessário destacar que grande quantidade de documentação produzida pelo Sistema de Segurança e In-formação se encontra disponível em arquivos estaduais e no Arquivo Nacional. Embora esteja muito aquém do que foi efetivamente produzido, o Brasil é o país do Cone Sul com o maior número de documentos da re-pressão abertos, abrangendo as polícias políticas, o SNI e as agências de informação internas aos ministérios, autarquias e universidades (para entender o funcionamento do Sistema, ver: Fico, 2001). A principal lacuna se refere aos documentos produzidos pelas FFAA. É para eles que se dirigem as demandas pela “abertura dos arquivos da repressão”, com a esperança de neles seja possível encontrar informações sobre os mortos e desaparecidos. Estão disponíveis ainda os arquivos da Justiça Militar, reunido através do projeto Brasil Nun-ca Mais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985), uma farta documentação produzida pela própria esquerda, além dos documentos produzidos pela CA e a CEMDP. Por fim, há não menos extensa docu-mentação produzida pelas organizações de familiares e ex-presos políticos ao longo do período democrático, como resultado das investigações que realizaram desde os finais da Ditadura sobre os casos levantados. Estes documentos têm sido entregues a Comissões da verdade na forma de dossiês desde os primeiros meses de trabalho. A maior parte dessa documentação está disponível em arquivos públicos, embora dispersos entre diferentes instituições. Em outra oportunidade debati mais extensamente as políticas de acesso até o advento da nova lei de acesso à informação, Lei nº 12.527/11 (AZEVEDO, 2011). As comissões da verdade e o MPF precisam, portanto, acessar documentos que permanecem classificados, ou seja, que não foram retirados do seu local de produção e arquivamento e enviados aos arquivos públicos.

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realizados pela Comissão da Verdade Rubens Paiva. Segundo ele, as comissões da verdade seriam responsáveis por indiciar, isto é, produzir indícios a partir dos quais o MPF oferecerá denúncias à justiça. Talvez a explicação para o sigilo das atividades investigativas das comissões da verda-de, dado o tempo transcorrido, esteja não tanto nas razões práticas que o justificam na atividade policial – evitar que o criminoso cesse a conduta ou apague provas –, mas na obtenção da mesma eficácia simbólica, considerando que o segredo é parte fundamental do processo de produção da verdade jurídica no Brasil (LOWENKRON, 2011; KANT DE LIMA, 1999).78

As comissões da verdade possuem também uma dimensão pública. Além de inves-tigações, elas organizam eventos abertos, destinados à coleta de testemunhos, eventualmente à apresentação do andamento de certas investigações, a homenagens e outras atividades visando a construção da memória. Suas atividades se somam a uma série de eventos análogos (seminário, audiências, reuniões e grupos de trabalho), articulados no intuito de manter uma discussão con-tinuada e forjar um campo de atuação pela construção de políticas de Memória, Verdade e Justiça. São eventos híbridos, no sentido de reunir representantes da administração do Estado e dos movimentos sociais que compartilham saberes, metodologias e terminologias específicas, mo-bilizadas por atores (considerados ou autodenominados) “especialistas”, geralmente vinculados à administração do Estado e/ou ao campo acadêmico. Compartilham também métodos, experiên-cias e saberes desenvolvidos historicamente por atores vinculados ao movimento social, autode-nominados “militantes”, entre os quais se destacam os “sobreviventes” e os “familiares de mortos e desaparecidos”. Como essas metodologias e saberes nem sempre parecem plenamente compatíveis aos olhos dos atores sociais, uma série de disputas se estabelece em relação às formas de elaborar, gestar e avaliar as políticas que resultam desses debates, diferenças que servem à delimitação de fronteiras entre “Estado” e “sociedade”. Antes de adentrar esse último tema, que será melhor de-batido no quarto capítulo, finalizarei esta seção apresentando os pressupostos e enunciados que, ao serem transmitidos e compartilhados, forjam percepções de unidade entre tais atores em torno da construção de um campo de atuação política, o campo MVJ, e uma memória sobre a Ditadura.

Em primeiro lugar, cabe destacar que como objeto de pronunciamentos público nes-ses espaços, “os mortos e desaparecidos” são tomados tanto como casos específicos, quanto como um fenômeno geral que integra o conjunto mais amplo de violências e legados autoritários que

78 Conforme aponta Kant de Lima, o inquérito policial é “um procedimento do Estado contra tudo e con-tra todos para apurar a verdade dos fatos”. Assim, o inquérito policial é um procedimento no qual quem detém a iniciativa é um Estado imaginário, todo poderoso, onipresente e onisciente, sempre em sua busca incansável da verdade, representado pela autoridade policial” (KANT DE LIMA, Op. Cit: 30). Ele pode ser inqui-sitorial, sem ser contraditório, porque antecede a acusação. A mesma lógica norteia as comissões que investigam crimes anistiados e que, para transformarem-se em processos judiciais, dependem de uma série de disputas políticas e jurídicas. O mesmo procurador, no mencionado evento, disse que as comis-sões poderiam se beneficiar da prerrogativa de não precisar garantir o contraditório, como os inquéritos policiais. Foi justamente alegando a necessidade de “sigilo das investigações” que o ofício 384/2012 da CNV indeferiu meu pedido de pesquisa.

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precisam receber reconhecimento e publicidade, assim como medidas de prevenção contra seus “resquícios” ou “ameaças de retorno”. A ideia de legado é central para a articulação dos atores so-ciais em torno ao campo MVJ. Através dela relacionam peremptoriamente os casos de violência e violações de direitos civis e cidadania persistentes no presente à impunidade dos torturadores da Ditadura, à ausência de investigações sobre os casos e a não reformulação de instituições herdadas daquele período, como a Polícia Militar.79 “O destino da tortura está ligado ao destino do torturador”, assegura uma das frases lapidares mais repetidas nesses espaços. As falas que esta-belecem essas conexões também tomam como premissa o entendimento de que a Ditadura e o conjunto de violências que a compõe são fenômenos pouco conhecidos dos brasileiros e que não encontram espaço de visibilidade compatível com a relevância que possuem como problemas da atualidade. Daí, a própria importância das atividades realizadas em torno da questão e o valor dos atores sociais engajados na sua construção. Através deles, passa-se a afirmar que o direito à verdade (o reconhecimento por parte da administração pública de que o esclarecimento dos fatos por trás das mortes e desaparecimentos são direitos das famílias e da sociedade) e à justiça (iden-tificação e julgamento dos responsáveis) são passos necessários para a verdadeira democratização do Estado e para a garantia dos direitos civis de toda a população.

Para seguir, tomarei como exemplo, um dos eventos ao qual compareci durante a pesquisa em que essa perspectiva se expressou de uma maneira muito clara. Tratou-se do se-minário Direito à Verdade: Informação, Memória e Cidadania, realizado em São Paulo por uma parceria entre o Núcleo Memória, o Memorial da Resistência, a Alesp e o Arquivo Público do Estado/SP. Apresentado como um curso de formação aberto a interessados, o seminário teria sido cria-do para debater as “fontes” das comissões da verdade e familiarizar as pessoas com conceitos como direito à verdade, à memória e à informação. A proposta de debater fontes para investigar o passado, assim como o envolvimento de alguns Arquivos na organização do evento, atraiu pesquisadores, estudantes e profissionais arquivistas. Ao longo dos três dias de evento, ouvi diversos palestrantes atribuírem a importância daquele seminário ao desconhecimento da socie-dade brasileira em relação ao seu passado. Alguns chegaram a destacar uma certa “dívida” que a academia teria com o tema. Segundo um deles, estaríamos vivendo hoje um “momento ótimo” para a produção das “memórias dos crimes de Estado” que deveria ser realizada em espaços como aquele, amplos e conscientizadores, numa perspectiva distinta das pesquisas acadêmicas que manteriam documentos “escondidos”, acreditando que o produto final da pesquisa (livros, teses e dissertações) seria mais importante do que a sociedade obter as informações.

79 Nesse sentido, vale destacar que as comissões da verdade têm a prerrogativa não apenas de investi-gar casos e construir uma narrativa histórica com status de verdade, como produzir recomendações a serem cumpridas posteriormente por diferentes órgãos da administração pública. Os “desaparecimentos políticos” são aproximados dos casos de desaparecimento resultante de violência urbana da atualidade, geralmente resultante de violência polícia, milícias e crime organizado dos quais fala Araújo (2012). A tipificação do crime de “desaparecimento forçado” seria uma das medidas nesse esforço preventivo.

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O estranhamento causado por essas falas me fez reagir em espelho atribuindo-as, inicialmente, também a um desconhecimento. Seja em relação à extensa e crescente produção, sobretudo historiográfica, feita no Brasil e fora dele acerca da Ditadura, seja em relação ao teor dessa produção, cujo objetivo não seria propriamente descobrir e apresentar documentos reve-ladores de verdades em si, mas de construir e oferecer narrativas e interpretações à sociedade. Estas ponderações me pareceram necessárias de partida, ainda que eu visse (e ainda veja) como pertinentes reflexões sobre o alcance social da produção acadêmica. Porém, a recorrência dessas colocações no espaço MVJ me alertou para a importância de levar a sério tal crítica e discuti-la. Para tanto, me parece importante afastar da análise a oposição global e apriorística entre um conhecimento “acadêmico” e outro “militante”, tomando-o como um dado etnográfico a ser pensado a partir de duas questões: o que tal crítica revela acerca da “verdade” que está sendo co-mumente buscada no interior do campo MVJ? Reflexão que será feita em sequência. E quais são os efeitos políticos da mobilização dessa distinção entre tipos de conhecimento? Questão apenas apontada aqui e retomada ao longo dos capítulos 3 e 4, que dará visibilidade aos processos de imaginação de fronteiras entre pessoas coletivas no campo.

Voltando à narrativa, no momento em que a palavra foi aberta aos participantes, algumas colocações me ajudaram a compreender a crítica que ali se desenhava. Nas várias fa-las que se seguiram, “ouvintes” puderam elencar uma quantidade impressionante de episódios históricos “não conhecidos”, inúmeras e variadas fontes e arquivos considerados “inexplorados” que precisavam ser pesquisados e reconhecidos. Tal consenso em relação à ausência de conhe-cimento me fez perceber que a crítica não revelava um desconhecimento em relação à produção acadêmica, mas sim um descontentamento com uma produção que, tomada genericamente, não responde ao que aqueles atores desejam saber (e lembrar) sobre o período. Mais do que isso, revela um consenso em torno da ideia de que as variadas violências operadas pela Ditadura não recebem uma atenção pública que faça jus a sua importância. Ainda assim, a gravidade e a ur-gência que pareciam percorrer aquelas falas, um acordo inquestionável sobre a necessidade de “esclarecer” (mais do que conhecer) “toda” a história, permaneceu me causando desconforto. No caderno de campo, registrei da seguinte maneira esse sentimento:

É como se pudessem dar conta de sistematizar tudo isso agora, no contexto de um empreendimento nacional em torno da CNV. Como se fosse possível analisar tudo. Como se apenas uma análise (a verdade) fosse possível. Como se nunca antes ninguém houvesse refletido sobre essas questões. Como se a história da Ditadura no Brasil não fosse uma seara de hipóteses, disputas e desentendimentos indissolúveis. Como se o consenso, o apaziguamento do espírito com um “foi assim que aconteceu” fosse desejável. As pessoas dizem “a CNV deve responder porque aconteceu o Golpe”, mas é tentando responder a isso que se dá o debate entre Dreyfuss, Figueredo, Fico, Gaspari, Ferreira, Aarão, D’Araújo e Toledo, só para citar os mais conhecidos. É desejável uma fixação feita pela CNV ou por qualquer um? O fim do debate é o que se dese-ja? (Caderno de campo 1, 15/06/12)

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Em diversas outras situações vividas em campo percebi que o interesse acadêmico, tomado assim genericamente, ao mesmo tempo em que era considerado bem-vindo por seu po-tencial de afastar silêncios, podia ser visto também com desconfiança, pairando sempre dúvidas sobre a possibilidade do produto final desse interesse revelar alguma eficácia simbólica como co-nhecimento comprometido com as causas políticas e a memória que os atores desejam construir e em relação as quais demandam fidelidade. Por outro lado, embora haja críticas à “academia” ou aos “especialistas”, a presença de pesquisadores, acadêmicos e profissionais no campo não é (nem poderia ser) evitada, o que acaba por motivar debates acerca da pertinência do conhecimento trazido por aqueles atores. Nesses debates, muitas vezes, tal distinção restaria marcada pela valorização de alguns aspectos do “conhecimento especializado”. Menos as metodologias de pesquisa ou a busca pela desconstrução de paradigmas (característica tão marcante das ciências humanas e que nos gera tantas acusações de “relativismo” politicamente irresponsável), e mais a possibilidade de trazer para o repertório discursivo “militante” certos conceitos (sociológicos, políticos, psicológicos ou jurídicos) que possam ser aplicados à realidade, lhes permitindo olhar para o passado segundo valores e sensibilidades atuais.

Em distintos campos de debate acadêmico acerca da memória – desde clássicos de diferentes áreas, como Benjamin (1987); Halbwachs (1990); Nietzsche (s.d); ou Freud (2003) – a possibilidade de uma memória total está confrontada pelo entendimento crítico de que o ato de lembrar é seletivo, social e reordenado pelo presente. Em outras palavras, prenhe de es-quecimentos. Por certo, a totalidade a que os esforços coletivos dizem aspirar no campo também é seletiva, embora muitas vezes não seja pensada como tal. Trazendo para o centro do debate categorias provenientes do léxico dos Direitos Humanos, pretende-se lembrar “todas as viola-ções” ocorridas na Ditadura, identificar “todas as vítimas” e “todos os responsáveis”. Ainda que possamos argumentar que mesmo essa totalidade restrita não seja realmente atingível, parece mais relevante percebê-la como uma lógica classificatória marcada, de um lado, por uma defi-nição de quem são as “vítimas”, de outro, pela noção de “direitos”. Uma lógica que está presente na produção acadêmica sobre a temática da Justiça de Transição, área de conhecimento que vem sendo crescentemente valorizada no campo.

De maneira similar ao que postulou Sarti (2011), é a partir da noção prévia de di-reitos e de quem é a vítima que se reconhece o ato violento e lhe é dada atenção. Algo que Ross (2003) define como “using rights to mesure wrongs”. Ambas as autoras chamam atenção para o fato de que, se a construção da vítima dá visibilidade à violência, ela também a oculta. No caso em presença, a recente mobilização desse termo permitiria em tese ampliar a contabilidade ini-cial dos afetados, na medida em que, fazendo referência a certos sujeitos universais dos direitos humanos (como trabalhadores, indígenas, crianças, mulheres, LGBTs, negros, etc.) dá visibi-lidade a violências antes apagadas pela lógica que fazia da “razão política” a única motivação

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repressiva da Ditadura.80 No entanto, ao associar certas vítimas a certos tipos de violência, por exemplo as mulheres à violência sexual, ocorre não somente a hierarquização das violências so-fridas por mulheres, como a exclusão dos homens do hall de vítimas de violência sexual.81 Por outro lado, pessoas atingidas em atentados a bomba, justiçamentos ou assassinatos durante ações guerrilheiras, por exemplo, não encontram abertura nesses espaços para suas reivindicações de “direitos”. O “esclarecimento” do passado não pressupõe a busca da “verdade” sobre muitos des-ses casos até hoje não esclarecidos. Ainda mais impensável, até moralmente escandaloso, seria uma tentativa de compreender os sentidos e as representações mobilizadas pelos ex-agentes do Estado para justificar aquilo que consideram ter sido a “luta contra a subversão”, um conheci-mento que um empreendimento acadêmico em ciências sociais ou história não teriam problemas em buscar (por exemplo: SALVI, 2008; D’ARAÚJO et all: 1994).82

As narrativas sobre a violência construídas nos espaços MVJ parecem, portanto, muito próximas daquilo que Caldeira (2000) chamou de falas do crime: narrativas que engendram um tipo específico de conhecimento e, ao mesmo tempo, de (des)reconhecimento. Conforme argumenta a autora, ao recontar a violência passada, essas narrativas têm o intuito de ordenar, dar sentido e significado a uma experiência que foi profundamente desorganizadora. Dessa for-ma, elas não se ocupam de dar uma descrição de tais eventos que os capture em suas contradi-ções, mas antes em classificá-los e organizá-los a partir de categorias estáveis, legitimadas como provenientes de um padrão de moralidade considerado mais adequado, mesmo que possam parecer simplistas aos olhares acadêmicos. A centralidade de categorias como “violações de di-reitos humanos” ou os binômios opositivos “vítimas” x “torturadores”, “ditadura” x “democracia”,

80 Há que notar que o termo “vítima” está ausente de toda a legislação reparatória até o PNDH-3, aparecendo pela primeira vez nesse documento e na lei que cria a CNV. No movimento social ela tam-bém só começa a ser usada recentemente, encontrando ainda algumas resistências. Desde o Movimento pela Anistia, passando pelo projeto BNM, até o movimento dos familiares a categoria prioritariamente utilizada nas denúncias era “atingido”, “sobrevivente” ou “presos, perseguidos, mortos e desaparecidos políticos”, sendo “vítima” um termo muito residual.

81 Em suas etnografias, Sarti, no setor de emergência de um hospital brasileiro, e Ross, na Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, notaram essa exclusão prévia do homem como vítima de violência sexual. A mesma associação entre violência sexual e mulheres ocorreu na CNV, apesar da existência de relatos masculinos.

82 Creio que os professores Carlos Fico e Maria Celina D’Araújo não se importarão se eu mencionar a forma negativa como suas falas foram recebidas durante uma audiência pública da CNV no Rio de Janeiro. Elas foram proferidas em um momento da audiência destinado justamente à fala de “especialis-tas”. Os professores, que deveriam discutir o Golpe de 1964, desagradaram a audiência em vários mo-mentos, seja por tentar questionar as reflexões sobre o período que se prendem ao binômio colaboração x resistência, seja por tentar explicar a visão dos militares acerca do Golpe. Nesse último caso, a mobiliza-ção de certas categorias nativas por parte da professora durante sua fala fez com que os ouvintes acredi-tassem que se tratava de suas categorias analíticas, o que gerou alguma animosidade, além de acusações de “relativismo” e “ justificação”. Nesse dia, lembro-me de ter gastado algum tempo tentando convencer alguns militantes de que estavam errados em sua percepção. Caderno de campo 1, 13/08/2012.

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“colaboração” x “resistência” criam formas de diferenciação e regras de exclusão que apontam marcos de ordem política e moral para a reflexão. A partir delas, a “denúncia” torna-se a prin-cipal forma de conhecer/(des)reconhecer o passado, a partir da qual responsabilidades e direitos são determinados e atribuídos.83

83 Com isso, espero ter deixado claro que as falas “de vítimas”, “de autoridades” e “de especialistas” alcan-çam legitimidade na medida em que são reconhecidas como discursos confluentes, marcados pela denúncia como forma de conhecer. Contudo, e sem contradições, estas falas também podem ser percebidas como distintas por emanarem de uma ou outra dessas categorias de atores ou pessoas coletivas. Por certo, a se-paração entre os domínios da ciência/técnica e da emoção é um dos fatores que alimenta essas distinções. Se essa separação implica quase sempre em processos de valorização de um desses domínios em detri-mento do outro, é preciso considerar que tais processos não estão pré-determinados e que são dinâmicos. Conforme bem apontou Lutz (1998), no “pensamento ocidental”, a emoção costuma a ser tomada como negativa quando oposta ao pensamento, elemento que atribuímos ao domínio da ciência e da técnica. Por outro lado, quando oposta ao distanciamento, outro elemento associado àquele domínio, ela encontra con-dições para ser valorada positivamente. De maneira semelhante, os debates estabelecidos no campo fazem despontar diferentes maneiras de valorizar os aspectos emocionais e científicos/técnicos dos discursos. Por essa razão, pude observar ideias e termos que vinculamos aprioristicamente a certos domínios e pessoas coletivas (a emoção para as vítimas e a técnica para os especialistas), serem mobilizados indistintamente no campo. Mobilizando-as, as categorias de atores se definem e se identificam, constroem discursos, demar-

Cartazes de audiências públicas: “Casa da Morte de Petrópolis”, “Violações de Direitos indígenas”, “Ato sindical unitário” e “Caso Rubens Paiva”, realizadas pela CNV. “Caso Mário Alves”, “Militares perseguidos pela Ditadura” e “33 anos da Carta-bomba à OAB”, realizadas pela CNV com a Comissão de Verdade do Rio. “Verdade e gênero,

realizada pela CNV com a CVRP. “Memória e Verdade”, realizada pelo MPF. Curso “Direito à verdade, informação, memória e cidadania”, citado acima.

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Quando falamos em denúncia, torna-se mais evidente o fato de que essas narrati-vas têm o objetivo de debater “violações” não apenas de uma perspectiva geral, como também de destrinchar os detalhes de episódios históricos e casos específicos. Dois movimentos que se mostram complementares. A exemplo de outros temas, a questão dos “mortos e desaparecidos” é tratada tanto em eventos inteiramente destinados à denúncia de casos particulares, quanto é evo-cada como fenômeno geral durante debates mais amplos, em que apenas a menção de um caso, citando o nome do morto ou do desaparecido, alude ao referencial de conhecimentos comuns aos atores presentes. Dessa maneira, são organizadas audiências para discutir: a “violência contra militares”, “indígenas”, “sindicalistas”, “mulheres”, “homossexuais”; mas também para debater episódios específicos, como “o massacre de Ipatinga”, “a bomba na OAB” ou “a casa da morte”; assim como para apresentar descobertas no “caso Mário Alves” ou no “caso Rubens Paiva”.

Testemunhas relacionadas a esses casos comparecem nos diferentes espaços criados pelo campo MVJ para prestar depoimentos, através dos quais estabelecem constantes trânsitos entre as informações relacionadas aos acontecimentos em pauta e suas reflexões sobre o caráter da Ditadura e as continuidades autoritárias que afetam a democracia. As falas consecutivas, muitas vezes consensuais e redundantes, oscilam entre fornecer dados, referendar demandas e distribuir responsabilidades. Estabelecidas nesses espaços, as denúncias (e as exigências de justi-ça) fazem a passagem entre as particularidades dos acontecimentos (e dos sofrimentos pessoais) e o reconhecimento da causa coletiva (BOLTANSKI, 1990) em relação a qual se estrutura o campo MVJ. Nesse sentido, a “verdade” nasce da combinação entre a fixação de um panorama de ideias sobre a Ditadura – um “conjunto de ideias fortes”, como disse certa vez uma integrante da CNV – e a multiplicação dos casos rumo a uma ideal extenuação. Para aprofundar a “verda-de”, multiplicam-se mais os casos do que as indagações.84

cam posições estruturais e estabelecem disputas. Esse tema será retomado, conforme já dito, mais adiante, quando me concentrarei em discutir as maneiras pelas quais, no interior do campo, os familiares procuram se afirmar como vozes mais autorizadas a falar do passado. Para além da emotividade, eles procuram pro-duzir falas que possam ser reconhecidas como enunciados de saberes (BOLTANSKI, 2004), equivalentes em valor àquelas proferidas por “especialistas” e “autoridades” do Estado, embora possam se distinguir em conteúdo. Quando isso ocorre, têm lugar as disputas em torno a qual dessas vozes é a mais autorizada.

84 Sob este aspecto, notei no decorrer do trabalho de campo que haviam poucas diferenças de conteúdo entre as audiências públicas e outros tipos de reunião travadas por tais atores, como aquelas estabelecidas entre as comissões da verdade e “entidades da sociedade civil”. Para oferecer um exemplo, a audiência pública da CNV em Belo Horizonte, ocorrida em 22/10/12, foi sucedida por uma “reunião da CNV com a sociedade civil” no dia seguinte, na sede da OAB-MG. No caderno de campo, apontei surpresa ao constatar a semelhança de conteúdo entre as duas reuniões: “Fiquei com uma sensação estranha durante a reunião, no mínimo de frustração de expectativa, pois esperava uma reunião de trabalho, com decisões e encaminhamentos mais objetivos, mas foi semelhante a outras reuniões públicas que vi. A CNV se dis-põe a escutar falas que são uma mistura de depoimentos com sugestões e orientações. Depois responde perguntas feitas e dá justificativas. (…) A reunião, mantendo o mesmo caráter da audiência, foi marcada pela obsessão de cada fala em demarcar pontos ignorados (ou assim considerados) que devem se tornar objeto de investigação, sob pena de comprometer a “revelação” de “toda a verdade”. No entanto, essa

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Semelhante ao que Fassin e Rechtman (2009) postulam sobre os usos contemporâneos da noção de trauma, a mobilização comum da linguagem da denúncia estruturada em categorias dos Direitos Humanos erige uma verdade sobre o passado que é “produto de um novo relacionamen-to com o tempo e a memória, o sofrimento e as obrigações, o infortúnio e os desafortunados” (FASSIN e RECHTMAN, 2009). Ao mobilizar tais categorias para descrever a realidade passada, os atores sociais transformam a relação que estabelecem com ela, dando-lhe nova configuração. Para ficar com outras metáforas frequentemente mobilizadas no campo, as violências da Ditadura passaram de “página virada” para “feridas abertas”, fenômenos com traços no presente que requerem inter-venção imediata sob riscos de comprometer o futuro. Para tais autores, o compartilhamento de enunciados sobre as memórias dolorosas denotam (constroem e partem de) um ethos de compaixão característico da contemporaneidade, uma nova economia moral que reestrutura as relações com o passado. A empatia atua alargando a comunidade dos que sofrem e constroem ações políticas em face do sofrimento, produzindo sentidos de unidade em torno de uma causa política que, para eles, ainda exige esforços de visibilidade social, seja porque encontra opositores na sociedade, como os setores militares, setores do judiciário apegados à jurisprudência que não dá andamento às causas, atores sociais simpáticos e/ou ex-beneficiários do Regime, alguns dos quais atuam na institucionalidade, seja porque precisa enfrentar uma grande indiferença.

Em face desse alargamento da comunidade de “vítimas” e da própria noção de vio-lência, o movimento de familiares passa a reivindicar com maior afinco o seu papel precursor, encarando o processo atual como uma legitimação de sua luta histórica, conforme argumentou o familiar, Ivan Seixas, durante um Sábado Resiste em que estive presente:

Há três, quatro anos atrás, nós éramos os terroristas revanchistas. Hoje não dá pra falar que o Sérgio Suiama [MPF] seja um terrorista revanchista. Não dá pra falar que os jovens do Levante Popular da Juventude sejam terroristas revanchistas. É a sociedade que se levanta e quer fazer justiça. Aí a gente tem que estar sempre dando... sempre dando ouvidos aos ex-presos, aos familiares de desaparecidos por um motivo muito simples: se não fosse a luta dos familia-res dos mortos e desaparecidos políticos a gente não tinha chegado hoje ao que nós estamos fazendo aqui. Ao longo dos anos aquelas loucas, aquelas velhinhas chatas sendo empurradas de dentro do Palácio do Planalto, mantiveram sem-

ideia de toda a verdade me parece estar sustentada em três pontos específicos: o reconhecimento (de uma vítima, grupo de vítimas, dor, perda, etc.) a reparação e a responsabilização. Nesse sentido, é um interes-se que, embora obsessivo com a reconstrução da história “sem omissões”, não se interessa por qualquer questão. Não há interesse em buscar a perspectiva dos militares golpistas, nem pelo colaboracionismo (a não ser de empresas e empresários), nem pela ofensividade da esquerda. Então, é um interesse cen-trado nesse pilar, considerando que não se pode deixar escapar nenhum tipo de vítima ou sofrimento, de perda ou forma de ter sido afetado, que não se pode deixar de reparar nenhum caso e que se deve encontrar os responsáveis por todos. Nesse eixo, os casos se multiplicam mais do que as indagações. A forma de aprofundar a verdade, sob essa lógica, seria a extenuação dos casos. É desse ponto de vista que os atingidos e os movimentos sociais procuram fornecer depoimentos e documentos à CNV, esperando o reconhecimento do Estado para seus casos” (caderno de campo2, 23/10/2012).

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pre essa questão. (…) Os desaparecidos políticos não deixaram de ser lembra-dos um dia sequer (…) pela força dos familiares que sempre... sempre estiveram presentes denunciando os crimes da Ditadura (Sábado Resistente, 26/05/12).

Interpretando tais palavras nos termos propostos por Boltanski (1990), os familiares precisaram, ao longo dos anos, construir acusações e estruturar casos com intuito de dessingu-larizar essas experiências de tortura, prisão, morte e desaparecimento, mostrando que elas não diziam respeito apenas às suas trajetórias individuais, mas a um padrão de injustiças ou a uma injustiça estrutural que, por se referirem à história e ao futuro do país, devem ser abraçadas como causa política. Para os atores sociais vinculados ao movimento de familiares parece claro que as causas políticas coletivas “das menores às maiores, das mais estranhas à primeira vista às mais evidentemente legítimas para nosso sentido de justiça tiveram que ser elaboradas, construídas, estabele-cidas e provadas em algum momento” (BOLTANSKI, Op. Cit.: 25). O sucesso dessa empreitada estaria no fato de que os “revanchistas” de outrora podem hoje se apresentar como protagonistas de um processo em que “a sociedade se levanta para pedir justiça”.

* * *

Ao explicitar certos elementos que permearam os debates públicos acerca da Ditadura no espaço nacional ao longo dos anos, especialmente o contraste entre o esquecimento atribuído ao conjunto da sociedade e o ativismo permanente reivindicado pelo movimento de familiares, procurei enfatizar o jogo de disputas e classificações em relação à definição das violências cometidas no passado como uma “questão familiar” ou um “problema social”. A atual forma de associar tais debates a um léxico específico dos Direitos Humanos para processos de acerto de contas com o passado tem ampliado não apenas a comunidade de atores sociais que se sentem afetados moralmente pela impunidade e o esquecimento de tais violências, como aquilo que se concebe como a comunidade de afetados diretos. Dando sequência à reflexão, olharemos mais detidamente para o movimento de familiares, através sobretudo das organizações a partir das quais a pesquisa empírica foi realizada, o GTNM/RJ e a Comissão de Familiares, procurando observar os elementos que constituem sua unidade e suas fronteiras e as formas e categorias através das quais eles se inserem nessas arenas de debates políticos, onde procuram sustentar a centralidade de suas reivindicações e a condição de vozes mais autorizadas a falar sobre o passado.

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2.“Tudo começou com a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos”

“Hei de vê-lo voltar, ela dizia Meu doce consolo, o meu filhinho

Passam-se anos e o véu do esquecimento, baixando sobre as coisas tudo apaga

Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração lhe esmaga.”

Nós procuramos ainda no começo, pensando que era uma prisão assim, que ele ia voltar, mas depois perdi a esperança. Sabia que não ia encontrar. Ele fazia política estudantil. Era gente sonhadora.

Eu, quando falo, parece que estou vivendo aqueles dias tão tristes da minha vida. Eu acho que uma mãe nunca esquece um filho.

Eu sou Fernando Santa Cruz, líder estudantil. Fui preso em fevereiro de 1974 numa rua do Rio de Janeiro e levado para São Paulo. Minha família nunca mais soube de mim.

Será que essa tortura nunca vai acabar?

Os textos em epígrafe remontam a duas propagandas transmitidas na televisão poucos anos atrás. O primeiro reconstitui a fala de Dona Elzita Santa Cruz, mãe do desaparecido político Fernando Santa Cruz, em um vídeo produzido, em 2009, como parte da campanha institucional de lançamento do Projeto Memórias Reveladas do Arquivo Nacional (AN). O segundo texto é dito pelo ator Mauro Mendonça, ao interpretar Fernando, em uma das vinhetas produzidas, em 2010, para divulgar o abaixo-assinado “pelo direito à memória e à verdade dos desaparecidos políticos” da OAB/RJ. Dirigido aos poderes Executivo e Legislativo, tal abaixo-assinado pedia a abertura dos arquivos da repressão política sob o lema “as famílias têm esse direito”.85

85 A campanha do Arquivo Nacional conta com 3 vinhetas nesse padrão. Além da citada, há Marcelo Rubens Paiva falando sobre seu pai, Rubens Paiva, e Diva Santana falando de sua irmã, Dinaelza Santa-na Coqueiro. Elas podem ser vistas em: https://www.youtube.com/watch?v=9v8uX-b3RB0 Acesso em: 24/09/2014. A campanha conta também com cartazes (um deles apresentado na introdução) e vinhetas em outros padrões, também focadas nos mortos e desaparecidos. A campanha da OAB conta com 6 vi-nhetas em que um ator interpreta um desaparecido político, contando rapidamente seu desaparecimento e mencionando a dor da família. Além da peça citada, há: Osmar Prado como Maurício Grabois, José Mayer como David Capistrano, Glória Pires como Heleni Guariba, Fernanda Montenegro como Sônia de Moraes Angel Jones e Eliane Giardini como Ana Rosa Kucinski. Elas podem ser vistas em: https://www.youtube.com/watch?v=b_lrjkAWAZk&index=1&list=PL558B1A889425AD36. Acesso em: 24/09/2014.

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A princípio, nenhuma das duas campanhas abordava diretamente a questão dos de-saparecidos, mas outra demanda histórica de pesquisadores e dos movimentos sociais, a “abertu-ra dos arquivos da repressão”. Em um sentido restrito, este termo se refere à documentação pro-duzida pela Ditadura com o objetivo de espionar, controlar e reprimir a sociedade.86 Nos anos 1990, a documentação proveniente das polícias políticas foram as primeiras a serem enviadas aos arquivos estaduais. O processo foi se ampliando com o gradual envio de documentos do extinto Sistema Nacional de Informação, de alguns Ministérios, autarquias, universidades e outros órgãos detentores de documentos sensíveis. Hoje, apesar da significativa quantidade de documentação aberta, sobretudo se comparado aos demais países do Cone Sul (CATELA e JELIN, 2002), ainda há muito material indisponível ao arquivamento controle e consulta públicos. Faltam, sobretudo, aqueles produzidos pelos órgãos de espionagem e repressão das FFAA, cuja exis-tência é corriqueiramente negada por seus comandantes, mesmo diante de solicitações oficiais. Os defensores de tal demanda sustentam que a relevância desses acervos está na sua capacidade de promover direitos que são, a um só tempo, individuais e coletivos: o esclarecimento dos cri-mes cometidos no passado, o reconhecimento e reparação das violências, a pesquisa científica, a reconstrução do passado, a produção de memórias, e iniciativas de caráter pedagógico para gerações futuras (CATELA, 2002; AZEVEDO, 2011).

Conforme já pontuado, a propaganda governamental está relacionada a um projeto coordenado pelo AN que visa à expansão e a unificação do acesso aos acervos relativos ao perío-do da Ditadura, hoje dispersos entre distintos arquivos. Talvez com maior intenção de divulgar o projeto do que efetivamente aumentar esses acervos, a propaganda é composta por uma série de vídeos, dirigidos a um expectador genérico, que solicita a colaboração com informações ou documentação que possa ajudar a esclarecer os casos de mortes e desaparecimentos políticos. Apesar de contar centralmente com a participação de familiares, ou principalmente por essa razão, a campanha sofreu críticas por parte de diversas organizações de Direitos Humanos que a consideraram uma forma de “transferência de responsabilidade”. Como se, por meio dela, o “Estado” estivesse repassando a terceiros o dever de providenciar tais documentos e aos fami-liares a tarefa de vir a público ressaltar sua importância, como se se tratasse apenas de interesses privados.87 Contrastivamente, a campanha da OAB foi avaliada de maneira positiva pelos mes-

86 A documentação sobre o período ditatorial engloba um conjunto muito mais amplo de documentos que incluí não apenas os produzidos pela Ditadura, mas também aqueles produzidos pelos próprios movimentos sociais na construção de denúncias, nas tentativas de desvendar os crimes cometidos, e constituir suportes de memória. Assim, como são produzidos pelo trabalho das comissões de reparação (futuramente os das comissões da verdade) e de pesquisas e empreendimentos que lidam com a história oral e tem produzido acervos de testemunhos. Esses arquivos estão, portanto, em contínua produção. Porém, a demanda por abertura volta-se para aqueles materiais que ainda se mantém fora de acesso que são, justamente, os produzidos pela repressão.

87 No vídeo citado na nota 1, correspondente à fala de Suzana Lisboa, é possível assistir sua crítica a essa campanha.

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mos grupos, interpretada como uma forma de apontar os verdadeiros responsáveis por alimentar os arquivos públicos: as instituições outrora implicadas na repressão e na espionagem e que ainda retém documentos relevantes. O envio desses materiais aos arquivos demandaria enfrentamen-tos e “vontade política” das autoridades, daí que o abaixo-assinado a elas se dirija.

O curioso é que esse jogo de responsabilidades trocadas e de disputas em torno da função pública ou privada dos arquivos não impediu que as campanhas, na tentativa de mobili-zar a população, seja para contribuir com documentos, seja para assinar a petição, privilegiassem apenas uma das funções dos acervos da Ditadura, o esclarecimento das incertezas que envolvem as mortes e os desaparecimentos. Ao fazê-lo, ambas optam por mobilizar os dramas pessoais e a figura simbólica dos “mortos e desaparecidos” como recursos empáticos. Para apresentar os desaparecimentos como eventos excepcionais que demandam ações institucionais de enfren-tamento, elas acionam representações sociais sobre o parentesco, notadamente aquelas que o apontam como ordem de relações que encerra os laços naturais, como o espaço do afeto autên-tico e das obrigações inescapáveis, onde o desaparecimento produziria efeitos prolongados sobre sujeitos sociais concretos. O sofrimento como resultado do rompimento desses laços, tanto mais se ocorrer por meio da violência, é assumido como dado. Desse modo, trazer à esfera pública a dor dos familiares significaria lançar sobre a iniciativa a mesma insuspeição e legitimidade que recobririam as relações de parentesco. Quando as campanhas mostram que o desaparecimento não acaba porque perdura para os familiares como tortura cotidiana – deixando perguntas sem respostas, memórias latentes, compromissos suspensos e desejos de justiça – o caráter desinte-ressado, durável e autêntico atribuído a esses laços possuem um apelo emocional e moral que se transfigura em legitimidade das demandas e de seus defensores na esfera política.

Nesse sentido, as campanhas (e as polêmicas em torno delas) iluminam as formas pelas quais certas diferenciações que conformam nossas representações sociais sobre o Estado Nacional muitas vezes se esfumaçam em processos cotidianos. Refiro-me a diferenciações entre o interes-se público e o privado, entre a eficácia administrativa e a esfera das emoções, entre o secular e o sagrado, entre o parentesco e a política, entre outras dicotomias que embasam visões dos Estados modernos como entes comprometidos com a racionalidade técnica, a secularização, o cientificis-mo, a responsabilidade e o “bem comum”, bastante marcados pela centralidade da burocracia, tal como a definiu Weber (1963). Diversos antropólogos debruçados sobre o simbolismo político ar-gumentam que a construção do nacional, assim como dos macroprocessos políticos que envolvem a (re)produção/transformação do Estado estão relacionados à mobilização de certos símbolos cujo potencial político está justamente na capacidade de provocar emoções, adentrando o campo do sa-grado, das intimidades e moralidades. Como mostram esses autores, certos símbolos que parecem negar a própria condição simbólica, isto é, que aparentam ser dados naturais, óbvios e objetivos da existência humana, tais como o parentesco (CARSTEN, 2004), o sangue (HERZFELD, 1992; SCHNEIDER, 1977) ou os mortos (VERDERY, 1999) mostram-se extremamente poderosos.

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Segundo Herzfeld (Op. Cit.), enquanto a modernidade é definida por um compro-misso com a racionalidade administrativa e com a isenção da máquina estatal frente aos interes-ses familiares, a retórica do Estado e da nacionalidade está flagrantemente permeada pelas me-táforas de parentesco. No caso em tela, vemos a legitimidade política de uma demanda relativa à gestão pública de arquivos ser retirada exatamente da força desses vínculos sociais, tomados como os mais íntimos e afetivos e, precisamente por essa razão, capazes de gerar identificação e solidariedade entre os sujeitos sociais que talvez não reconhecessem na demanda pela abertura dos arquivos um direito da sociedade ou um “bem comum”. Como bem notou Carsten (2004), a força simbólica do parentesco está no seu enraizamento nas relações concretas, afetos e circuns-tâncias do cotidiano dos sujeitos sociais, o que faz com que sua eficácia política esteja ancorada não na percepção do parentesco apenas como uma metáfora, mas como algo literal, emoção emanada das experiências diárias e dos afetos concretos.Finalmente, as propagandas mostram que o parentesco com os mortos é o elemento primordial a partir do qual uma comunidade passa a ser reconhecida nas arenas dedicadas ao debate de políticas públicas. Os “familiares de mortos e desaparecidos políticos” são identificados como principal comunidade interessada nas políticas que envolvem o reconhecimento das violências passadas, transformados em seus maiores bene-ficiários, e também em seus fiadores morais.

Tendo isso em vista, esse capítulo aproxima o olhar para o movimento de familia-res. Frente ao recorrente postulado de que “tudo começou com a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos”, repetido em diversas arenas onde se estabelecem debates sobre a Ditadura, minha intenção é desvelar ao que estes atores sociais se referem quando falam dessa “luta”. Guia-me a seguinte pergunta: quais são os elementos mobilizados pelos que se afirmam “familiares de mortos e desparecidos políticos” para identificar tal comunidade e afirmar seu protagonismo político? Partindo da pesquisa empírica, mas fazendo uso de outras fontes, discu-to como estes atores conformam uma comunidade política e moral a partir das palavras e ações por meio das quais eles se projetam nas esferas públicas.

Estado e Violência: a militância do GTNM/RJ

A primeira vez que fui à sede do GTNM/RJ pretendia apenas entrevistar Victória Grabois. Para favorecer o encontro, em meio a sua atribulada agenda, Victória marcou a entrevista no local, onde, em poucas horas, ela teria uma reunião. A sede fica na sobreloja de uma floricultura, defronte a uma das entradas do cemitério São João Batista em Botafogo, Rio de Janeiro. Sem placas ou indicações, é um local muito discreto. Para entrar, é preciso atravessar um alto portão de ferro e um segundo portão gradeado, alcançando acesso a uma escala comprida, no topo da qual se pode ler a placa “Alameda Marighella”.

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Na sobreloja, o espaço se resume a uma antessala, duas salas pequenas, corredor, cozinha e banheiros. A secretaria ocupa uma dessas salas. Ela recebe o nome João Luís de Moraes, em homenagem a um fundador do grupo, hoje falecido, o pai da desaparecida Sônia de Moraes Angel Jones. Além de duas mesas e arquivos, ela abriga uma estante que cobre por inteiro uma das paredes com variados livros sobre a Ditadura, os mortos e desaparecidos e a luta das famílias. Na parede lateral, estão expostos certificados, prêmios e honrarias recebidas pelo Grupo ao longo dos anos. Provas de seu reconhecimento nacional e internacional como organização de Direitos Humanos. A segunda sala recebe o nome de Abigail Paranhos, ex-presa política também já falecida, que foi integrante do CBA/RJ e fundadora do Grupo. O cômodo serve às reuniões, mas também abriga estantes, armários e dois grandes arquivos, onde estão depositados o material sobre os mortos e desaparecidos coligido ao longo dos anos de buscas. No exíguo espaço da antessala e do corredor que nos leva à cozinha, mais estantes e pastas guardam centenas de documentos e recortes de jornal arquivados. Em todo o ambiente, os símbolos e artefatos constituídos no decorrer de uma trajetória política são visíveis. Nas paredes, quadros com referência a movimentos políticos: antigos cartazes dos CBAs, quadros com temática política, cartazes de campanhas nacionais de Direitos Humanos, materiais de grupos de familiares e sobreviventes da Argentina e do Chile, além de uma foto do “Arco da maldade”, projeto feito por Niemeyer para um monumento nunca construído, hoje símbolo do grupo. Na sala de reuniões, dois enormes murais com fotografias de desaparecidos presenciam os debates.

Paredes da sala Abigail Paranhos: um dos murais dos Mortos e desaparecidos.

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Paredes da sala Abigail Paranhos: cadeiras empilhadas antes da reunião e quadros do CBA e movimentos do Chile e Argentina.

Escultura “Arco da Maldade” sobre a mesa de reunião na sala Abigail Paranhos.

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A entrevista com Victória transcorreu bem, embora interrompida algumas vezes por militantes que precisavam consultá-la sobre encaminhamentos e questões relacionadas à reunião que viria em sequência. Ao final da conversa, se mostrando receptiva ao meu interesse, minha entrevistada sugeriu que eu ficasse para o encontro. Enquanto eu aguardava a “reunião de diretoria” que antecede a reunião geral,88 aproveitei para conversar com a secretária e outros militantes que, aos poucos, iam chegando. Terminada essa primeira etapa, a porta da sala foi aberta para nossa entrada. Seguindo uma dinâmica que se repete todas as semanas, o ambiente começou a ser preparado para a reunião mais ampla, com a disposição de mais cadeiras ao redor da pequena mesa redonda, organizadas em um círculo amplo, ocupando todo o espaço da sala. A reunião tem início com a instalação de uma coordenação composta por dois diretores, um en-carregado de confeccionar a “ata” e outro de coordenar as “inscrições” e marcar o tempo de cada fala. O primeiro “ponto de pauta” são sempre os “informes”: momento em que são comunicadas as atividades da semana, assim como as notícias sobre assuntos julgados de interesse comum. Também são avaliados os convites para atividades enviados todos os dias por outros grupos políticos e “parceiros”. Eventualmente, decide-se se o Grupo aceitará algum convite recebido, e quem o representará. Em seguida, se estabelecem os “pontos de pauta” do dia, dando início aos debates propriamente ditos.

88 Em geral, ocorrem duas reuniões. A primeira é exclusiva da diretoria e excluí os demais militantes, a segunda é aberta a qualquer interessado.

Uma fotografia da mesma escultura tirada na janela com miniaturas para simular o monumento nunca construído. Abaixo dela, um pañuelo das Madres da Plaza de Mayo -Línea Fundadora emoldurado.

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Na primeira vez em que se visita o espaço, é preciso se apresentar. Nesse meu pri-meiro dia, falei sobre minha pesquisa, justificando meu interesse em ouvir o grupo por sua “importância histórica”. Acostumados com pesquisadores que vem e vão, minha presença e meu interesse não geraram qualquer estranhamento, desconforto ou questionamento. Naquele dia, outro pesquisador também participava pela primeira vez da reunião: um estudante de gradua-ção em direito, interessado em pesquisar a CNV. Além de nós, o grupo recebia a visita de três irmãos, filhos de um desaparecido político. Também eles precisaram se apresentar. Os dois mais jovens falaram sobre a ausência do pai, contando muito pesarosamente que sequer tinham lem-branças de sua presença. O mais velho, que parecia já ter frequentado o local outras vezes, fez questão de falar sobre a importância do Grupo para a construção do caso de seu pai, já que a úni-ca testemunha de sua prisão era Cecília Coimbra, ex-presa política, professora da Universidade Federal Fluminense e militante fundadora. Cruzaram-se em um dos órgãos da repressão, o DOI-CODI/RJ, quando um entrava e outro saía da “sala roxa”, a sala de torturas. Antes disso, não havia testemunhas da prisão. Depois, ele nunca mais foi visto.

Os irmãos foram levados ao Grupo pelo mesmo assunto que nós: a comissão da ver-dade. Diziam terem sido procurados, dias antes, por um deputado da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro que, na ocasião, tentava articular uma comissão da verdade no âmbito dessa instituição. Eles tinham esperanças em relação a essa possibilidade, mas queriam conhecer a opinião do Grupo sobre a questão. A conversa que se seguiu me deixou bastante tensa, sensação que eu experimentaria outras vezes em função do forte conteúdo emocional dos debates.

Embora a necessidade de se apresentar na reunião tenha deixado claro que os irmãos não frequentavam o local assiduamente, percebi que havia um afeto especial em relação a eles. Era como se o reconhecimento de algo em comum permitisse uma identificação imediata e per-manente, que resistia ao afastamento no cotidiano. A saudação especialmente feita a eles como “familiares” e as menções feitas ao caso do pai tornavam evidente que esse “algo em comum” eram as memórias das experiências de perda e busca, consideradas comuns entre os familiares. Ao serem mencionados detalhes mais concretos, como Cecília ter possivelmente presenciado os últimos momentos de vida do pai, esta memória comum fez emergir emoções de uma forma muito intensa, contagiando a nós todos. Não durou mais do que alguns momentos, mas era possível senti-la no silêncio consternado, nos olhares trocados, nos gestos, toque e afagos ca-rinhosos dirigidos aos irmãos. Nesse momento, todos pareciam saber que o sofrimento não se restringia à perda de um parente ou amigo ao qual se estava pessoalmente ligado. Foi um dos irmãos quem melhor definiu a questão, dizendo: “é a dor que sinto por meu pai e também por seus companheiros”. Ainda que cada sobrevivente não tenha conhecido cada um dos mortos em vida, tampouco que todos os mortos tivessem um efetivo relacionamento entre si no passado, “companheiro” me pareceu ser o termo que encerra a relação de compromisso e afeto que en-volve os sobreviventes através da relação que cada um estabelece com o conjunto dos mortos.

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A inscrição de cada ausência nessa perda coletiva estava materializada no painel acima de nós, onde os presentes podiam apontar orgulhosos a fotografia de seu parente (e embora não haja espaço para todos, lá estava a fotografia do pai dos três irmãos). Em conjunto, eles convertiam-se em símbolos de uma luta passada e presente, “pessoas idealistas e generosas que deram suas vidas na resistência à Ditadura”. Na relação de parentesco, amizade ou companheirismo com os “mortos e desaparecidos”, uma memória comum se revelava, servindo de base para a socialidade.

Contudo, a questão levada pelos irmãos rapidamente revelaria também aspectos de diferenciação. O estabelecimento das comissões da verdade mostrava-se um tema complexo, capaz de gerar diferentes opiniões sobre como proceder diante delas. Os militantes do GTNM nutriam uma posição de precaução, a partir da qual sentiam-se impulsionados a alertar os ir-mãos. Falaram intransigentemente das limitações dessas iniciativas e do quanto eram céticos em relação aos resultados. Insistiam no protagonismo das famílias e na necessidade de inde-pendência do movimento social em relação ao “Estado” que, segundo eles, não apenas matou seus parentes no passado, como passou anos e anos dificultando a apuração das mortes e a obtenção de justiça. Para eles, a criação da CNV é resultado da condenação do Brasil na Corte Interamericana da OEA, mas está limitada pela falta de interesse real dos governos em resolver a questão. Enquanto revezavam suas falas, sobretudo entre as lideranças mais destacadas, eu alimentava dúvidas sobre o quanto aqueles discursos seriam direcionados não apenas aos irmãos, mas também a mim e ao outro pesquisador. A diferença que fora estabelecida inicialmente entre nós e os irmãos parecia agora desfeita. Tanto quanto nós, eles eram agora vistos como atores mais jovens, não militantes, para quem era necessário transmitir certos conhecimentos, a me-mória da busca coletiva e a história do movimento. Cabe notar que os irmãos, e antes deles ou-tros parentes, têm buscado e reivindicado a memória do pai. Contudo, pelo que pude perceber, a família não participou mais diretamente dos fatos reivindicados como formadores da história coletiva do movimento de familiares. Embora os irmãos compreendessem e, em grande medida, concordassem com a argumentação dos militantes, senti que ficaram surpresos e um pouco per-plexos diante de um prognóstico tão duro. Eles traziam esperanças de encontrar respostas para o desaparecimento do pai, mas se a comissão da verdade seria apenas mais uma medida entre muitas outras já tomadas, provavelmente incapaz de resolver a questão, como todas as anteriores, o que eles deveriam fazer? Continuar buscando, denunciando e exigindo do “Estado” a verdade, a responsabilidade e o reconhecimento, responderam os militantes. A necessidade imperativa de solução requerida pelos irmãos era contrastada à resiliência e o sentido de coletividade forjada pelos anos de militância.89

89 Na primeira audiência pública da CNV realizada no Rio de Janeiro, em 13/08/12, esse mesmo irmão mais velho falou ao público sobre a história de seu pai, mencionando Cecília como única testemunha e disse esperar da comissão uma solução, uma resposta para o que ocorreu. Uma questão bastante especí-fica para a qual a CNV, de fato, não teve resposta ao seu término.

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Embora eu já conhecesse as posições do Grupo por meio das falas de seus militantes em eventos públicos, aquele confronto de percepções me revelou a profundida de seu ceticismo e o quanto ele era compartilhado pelo conjunto da militância. Naquele dia, fui embora tensa e com vários questionamentos. Como se produziu e como se sustenta essa desconfiança em relação ao “Estado”? Como se relacionam as histórias, os desejos e os anseios subjetivos por “solução” para cada caso (e aquilo que cada família ou indivíduo considera ser uma solução satisfatória) e o conjunto de demandas coletivas estabelecidas como fruto do movimento de familiares? Ao observar aquela situação, se ficava claro para mim que o parentesco associado ao sofrimento e contrastado a essa figura poderosa, violenta e homogênea do Estado eram símbolos mobilizados para demarcar a unidade entre aqueles que reivindicam os “mortos e desaparecidos políticos” como perdas pessoais, também percebi a relevância de um terceiro elemento na construção de contornos dessa comunidade: a militância política. De que maneira, então, esses elementos se associam criando limites, coesão e diferenciação em torno do movimento de familiares? Uma vez que meu olhar para essas questões foi, em grande medida, guiado pela etnografia, seguirei por meio dela para tentar estabelecer algumas reflexões sobre a relação entre parentesco, sofri-mento, violência, Estado e trajetória política na atuação do movimento de familiares, preocu-pando-me com os significados estabelecidos por aqueles que dele participam.

* * *

As reuniões no GTNM ocorrem há quase três décadas, todas as segundas-feiras à noite. A partir desse primeiro dia, em maio de 2012, comecei a participar dessa rotina e conhecer as histórias e as memórias que, nesse espaço, tornam os eventos críticos do passado parte importante da realidade cotidiana dos militantes. Inicialmente, para além das reuniões, eu encontrava sistematicamente com eles nas atividades, atos, audiências e outros eventos públicos realizados para debater a Ditadura, os quais vinham se tornando cada mais frequentes em virtude das comissões da verdade. Em pouco tempo de participação nas reuniões, encontrá-los nesses espaços já era algo programado, muitas vezes na própria reunião anterior ao evento, em que se debatia a ida do Grupo e minha presença era consultada. Uma vez nos locais dos eventos, sentar-nos próximos, trocar impressões e conversar nos intervalos era certo. Esta companhia muitas vezes se prolongava no almoço, na hora de ir embora, outras, na própria ida à atividade.

Para além das reuniões, minha presença na sede também aumentou. Interessada em realizar uma pesquisa nos arquivos, tive a oportunidade de passar mais tempo no local e tomar contato com sua dinâmica cotidiana. Durante esse período, realizei uma série de atividades com intuito de retribuir de alguma maneira a gentileza dos militantes. Ajudei um deles, um estu-dante de arquivologia, na tarefa de organizar, limpar e catalogar os arquivos. Auxiliei em aten-dimentos às inúmeras visitas e ligações de jornalistas e pesquisadores, brasileiros e estrangeiros,

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interessados em declarações, entrevistas, filmagens ou documentos. Pude ajudar na confecção coletiva de alguns documentos escritos pelo Grupo, como uma nota pública sobre a misteriosa invasão e furto ocorridos na sede alguns meses depois da minha chegada. Uma ação que eles consideraram politicamente motivada, tendo em vista uma ligação ameaçadora ocorrida dias antes do fato. Disseram ser mais uma das inúmeras ameaças que sofreram ao longo dos anos. Presenciei também a aproximação e o afastamento de sujeitos variados que, por breves períodos, frequentaram as reuniões: pesquisadores dos mais diversos temas; estudantes de graduação e se-cundaristas enviados por professores para preparar trabalhos sobre a Ditadura; pessoas em busca de orientação sobre seus direitos à reparação; além de representantes de variadas organizações políticas parceiras e de membros de duas comissões da verdade (dois assessores da nacional para uma conversa com Victória, e o presidente da estadual para a reunião coletiva).

No decurso dessa convivência, me aproximei bastante de vários militantes com os quais debati a política nacional e a dinâmica mais ampla dos movimentos sociais (dos quais o GTNM se considera parte), assim como os temas que nos interessavam mais especificamente, como a Ditadura, a comissão da verdade e os mortos e desaparecidos políticos. Dialogamos também sobre temas mais íntimos como nossas trajetórias de vida, militância, projetos, inte-resses pessoais e questões familiares. No fim do ano, fui convidada com minha família para a confraternização, realizada na casa de um amigo do Grupo. Apesar das muitas conversas nesses momentos, e do rápido entrosamento que eu experimentava, nas primeiras reuniões eu procurei ficar calada, temendo atrapalhar ou me intrometer nos debates. Considerava aquele momento como muito importante para a militância, quando, reunida de conjunto, podia tomar decisões e aprofundar posições sobre os temas de interesse comum. No entanto, meu interesse pela comis-são da verdade e o fato de eu acompanhar meticulosamente os primeiros passos que conduziram à instalação e ao início dos trabalhos, chamou a atenção de alguns para as informações que eu acumulava. A partir de um determinado momento, minha fala passou a ser requerida nas reu-niões e, em pouco tempo, não havia mais encontro em que não fosse esperado o meu “informe” sobre as atividades da CNV na semana ou, no caso de eventos aos quais eu tivesse comparecido, que eu compartilhasse um relato e uma avaliação sobre eles. Ainda que a participação nas reu-niões fosse aberta a qualquer interessado, havia algo no ato de participar continuadamente delas que aproximava as pessoas, construindo suas ações como parte de uma militância coletiva.

Refletindo sobre o papel das reuniões para organizações de trabalhadores rurais, Comerford (2002) notou que, mais do que a função instrumental de tomar decisões coletivas, elas cumprem um papel importante no processo de criação de um universo social. Para o autor, a reunião:

contribui para a consolidação das redes de relações que atravessam a estrutura formal das organizações, estabelecem alguns dos parâmetros e mecanismos para as disputas pelo poder, possuem uma dimensão de construção rituali-zada de símbolos coletivos e colocam em ação múltiplas concepções relativas à natureza das organizações de trabalhadores e ao papel de seus dirigentes e

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membros, bem como sobre a natureza da categoria que essas organizações se propõem a representar (COMERFORD, Op. Cit.: 149).

Conforme sua argumentação, as reuniões são eventos especiais inseridos em uma série temporal de ações que compõem o mundo social das organizações e movimentos políticos. Apresentando várias formas de funcionamento, diversos tipos de objetivo, reunindo atores de um mesmo coletivo ou de diferentes comunidades políticas, possuindo caráter amplo ou mais restrito, estrutura igualitária ou hierarquizada, as reuniões possuem em comum o fato de serem eventos ritualizados, em que certos comportamentos e formalidades estão prescritos. Elas assu-mem um papel particularmente importante na reunião de atores sociais em torno de visões de mundo e regras de conduta, assim como estimulam a ação social no campo de atividades e na di-nâmica processual nas quais a organização está inserida, criando uma vivência da comunidade.

A análise das reuniões como eventos rituais feita pelo autor me pareceu particu-larmente pertinente a partir da pesquisa empírica. Seguindo essa mesma linha, e inspirada também pelas proposições teóricas de Turner (2005, 2008), chamou-me atenção as distintas maneiras pelas quais as reuniões demarcam a coesão sobre as diferenças, tanto as explicitamente debatidas, quanto as mais veladas, reunindo os atores em prol de símbolos e demandas, mas também de valores, expectativas, formas de conduta e de conhecer. As reuniões do Grupo con-figuram-se momentos especiais para os militantes, quando é possível: reafirmar e significar os símbolos que movem a ação política, apreender os modelos de funcionamento interno e as for-malidades que definem espaços e relações igualitárias e os diferenciam daqueles marcados pela hierarquia e pela liderança; compartilhar categorias, vocabulários, conhecimentos e consensos acumulados nos debates continuados através dos encontros, muitos deles inconclusivos, mas que também demarcam um sentido de temporalidade; tornar público os sentimentos e pensamentos pessoais; estreitar os laços e os afetos que delimitam uma rede de relações pela convivência e pela ação, tanto de se posicionar nos debates (nesse momento em que falar é também agir, ou “o dito é também feito” (PEIRANO, 2001: 11)), quanto de assumir a realização de encargos coletivos, demonstrando a solidariedade ativa que, nos termos militantes, define o “companheirismo”.

O fato das reuniões fazerem parte do cotidiano não as torna menos especiais. Pelo contrário, frequentá-las continuadamente implica na possibilidade de se revelar (e ser percebido como) militante, pois no seu decorrer se fazem “visível, audível e tangível crenças, ideias, valores, sentimentos e disposições psicológicas que não podem ser percebidas diretamente. O processo de tornar pú-blico o que é privado, ou tornar social o que é pessoal, está associado ao processo de revelar o desconhecido, o invisível ou o oculto.” (TURNER, 2005: 84). Nas reuniões, não somente se aprende, embora elas sejam vistas também como espaços de aprendizagem, nem apenas se definem posições fren-te a questões pragmáticas postas pela dinâmica social, mas também se revelam dilemas morais, dores, dúvidas, medos e desejos pessoais que levam ao mútuo reconhecimento entre os militan-tes. A visibilidade para sentimentos como cansaço e desânimo, comuns após anos de frustrações,

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mas que são temas evitados em espaços mais públicos, encontra acolhida entre falas de estímulo e compreensão. São momentos importantes na conversão do que, muitas vezes, pode parecer uma pesada obrigação em força moral, desejo de luta e convicção. A trama de significados per-meada de estímulos emocionais, no dizer de Turner (Op. Cit.), satura e enobrece o dever com os mortos, valoriza os sacrifícios e as dificuldades pessoais na medida em que se tornam direito e virtude como parte de uma causa comum.90 Como bem colocou Durham, trata-se da constitui-ção de pessoas na esfera pública (e da construção de si, eu acrescentaria), quando “basicamente, elas tornam coletivas (e com isso integram) as experiências individuais e fragmentadas, encerradas nos limites da vida privada.” (DURHAM, 2004: 290). São momentos centrais, portanto, no exercí-cio cotidiano de construção de passagens do obrigatório ao desejável, do particular ao coletivo e de constituir novas formas de ser e viver após o drama.

Daí que, como participante frequente desse ritual, eu fosse chamada também a me pronunciar. E, uma vez colocadas minhas dificuldades de pesquisa com a CNV, por exemplo, elas fossem compreendidas na mesma lógica das dificuldades que eles também enfrentavam com o sigilo. Instrumento mobilizado pela comissão e que não lhes permitia acompanhar e fiscalizar as investigações conforme desejavam. Em uma reunião em que discutíamos esse tema, uma militante argumentou: “como pode o Estado pagar e impedir a sua pesquisa? Vamos denunciar!”. Surgiu en-tão a ideia de incluir, em uma nota crítica que estavam produzindo sobre o assunto, o exemplo do pedido de pesquisa que me foi negado. Após algum debate, a ideia foi descartada, mas interpretei tanto a proposta, quanto o respeito ao fato de eu ter dela declinado, como formas de solidariedade. Algo que me pareceu associado à maneira como viam minha relação com o Grupo, considerando a possibilidade de que eu pudesse também me revelar militante, operando uma passagem do meu caso particular (o indeferimento da pesquisa) para a causa defendida (o fim do sigilo na CNV).

Dessa forma, ao partilhar aquele universo social através das reuniões, atos e outras atividades, as fronteiras entre a pesquisadora solidária e a militante que eu poderia me revelar estavam abertas, sendo constantemente atravessadas. Para lidar com isso, eu estava sempre cons-truído pequenos atos demarcadores desses limites. Com essa preocupação, me neguei a fazer relatorias das reuniões, uma tarefa geralmente atribuída a diretores, mas para a qual fui inúme-ras vezes solicitada. Lembrava sempre que possível, inclusive em reuniões, a minha condição de

90 No clássico “A expressão obrigatória de sentimentos”, Mauss (1979) chamava atenção para a dimen-são social das emoções. Para o autor, mais do que uma manifestação psicológica, a expressão dos senti-mentos possui valor moral e força obrigatória. Mais do que uma manifestação individual, ela seria um modo apropriado de manifestar-se, uma linguagem, ação simbólica por excelência. O que, para o autor, não prejudica, mas intensifica os sentimentos. Seguindo por essa linha, Turner (2005) define os rituais como mecanismos capazes de converter o obrigatório no desejável. “Na sua trama de significados, o símbolo dominante põem as normas éticas e jurídicas da sociedade em contato íntimo com fortes estímulos emocionais. (…) Normas e valores, de um lado, saturam-se de emoção, ao passo que emoções básicas e grosseiras se enobrecem pelo contato com os valores sociais. O fastio da repressão moral transforma-se no “amor da virtude” (61).

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pesquisadora, evitava usar camisas com retratos de mortos e desaparecidos, ou segurar cartazes em atos públicos. Ainda assim, os militantes estavam sempre dispostos a me ensinar sobre a história do Grupo, chamar minha atenção quando eu cometia erros ou confundia iniciativas, e elogiar quando eu demonstrava conhecimentos adquiridos, sobretudo em relação aos “mortos e desaparecidos”.91 Toda essa abertura para que eu, uma não familiar, me revelasse militante ilumina certas características do Grupo, seu posicionamento em relação ao movimento de fami-liares, mas também sobre como o parentesco é combinado com outras categorias na construção de sua legitimidade militante.

Nas arenas públicas nas quais se insere, o GTNM/RJ é reconhecido como parte importante do movimento que impulsionou historicamente a “luta dos familiares”. Porém, é preciso destacar que a organização não é integrada exclusivamente por parentes de vítimas da Ditadura. Atualmente, posso inclusive dizer que, no seu dia a dia, tais familiares são minoria. Ao apresentar publicamente o GTNM, os militantes costumam caracterizá-lo como um “movi-mento suprapartidário, fundado por ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, que luta pelos Direitos Humanos e pela memória da Ditadura”. Com o primeiro elemento, pretendem chamar atenção para sua independência em relação aos governos e para a pluralidade interna que tornou possível reunir, ao longo dos anos, atores vinculados a outros movimentos sociais e partidos políticos, mas que puseram de lado suas diferenças em prol daquilo que os une. Com o segundo elemento, querem destacar que, embora a fundação tenha sido feita por “ex-pre-sos” e “familiares”, houve adesão posterior de sujeitos que não possuem vivência pessoal desse passado, mas que se aproximaram em função da militância em movimentos sociais mais am-plos, de terem parentes vitimados já na democracia, ou por possuírem militância/interesse em Direitos Humanos. O terceiro elemento se expressa no próprio nome da organização, Tortura Nunca Mais, que embora faça referência ao projeto de investigação sobre os crimes da Ditadura (o Grupo foi criado no ano do lançamento do BNM), não limita o movimento à defesa das víti-mas daquele período, mas estabelece continuidade entre as violências de ontem e de hoje. Sobre a história e os contornos do Grupo, Victória me fez o seguinte relato durante sua entrevista:

Tinha o Comitê Brasileiro pela Anistia. Ele foi fundado em vários estados do Brasil. E, quando veio as eleições de 82... Já haviam fundado o PT e o PDT. Foi todo mundo pro PT, um outro grupo foi pro PDT. Nós, os familiares de mortos e desaparecidos, ficamos soltos no mundo. Aí os familiares do Araguaia entraram com o processo em 82. Eram 22 autores para saber o para-deiro de 25 guerrilheiros. Quando chegou em 85, em pleno governo Brizola, o mais democrático desse Estado, o Brizola nomeou para secretário da defesa civil o coronel Jacarandá. Aí um grupo de ex-presos políticos foi fazer uma

91 Lembro-me particularmente de uma reunião em que uma militante tentava se recordar do nome de um desaparecido. Sem êxito, nos deu uma pista para ajudá-la, mencionando o nome da militante que havia sido presa junto com ele. Como ninguém sabia, eu respondi corretamente, o que provocou a ad-miração coletiva: “ já está conhecendo a nossa história!”.

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pesquisa nesse livro Brasil Nunca Mais sobre quem era o coronel Jacarandá. Descobriram que (…) tinha sido um torturador, aí fizeram pressão e ele de-mitiu. Como as pessoas estavam reunidas, decidiram fundar o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Foi aí que fundou o Grupo Tortura Nunca Mais. E o primeiro momento do Grupo Tortura Nunca Mais era, claro, or-ganizar as famílias e começar a fazer pesquisa para saber as circunstâncias das mortes e a localização dos brasileiros mortos. Foi a primeira grande atuação. Lutamos muito pela abertura dos arquivos. Foi aberto o arquivo do Dops aqui, em 1990. Depois no Instituto Médico Legal e foi descoberto... Fizeram uma pesquisa no Instituto Médico Legal que descobriram que 14 opositores do regime tinham sido enterrados no cemitério de Ricardo de Albuquerque (Entrevista Victória Grabois, Rio de Janeiro, 28 de maio 2012).

Em sua narrativa, Victória reconstrói a muito reivindicada ligação do GTNM com o Movimento pela Anistia, através dos CBAs. Segundo essa narrativa, os comitês, que abrigavam “familiares” ao lado de outros atores sociais, foram gradualmente enfraquecidos pela aprovação da Lei de Anistia e pela formação dos novos partidos, a partir de 1979. Com essa dispersão, muitos familiares não teriam se sentido apoiados em sua luta específica pelos partidos políticos que surgiam, mesmo aqueles familiares que passaram a integrá-los. De acordo com essa perspec-tiva, não apenas o GTNM/RJ, mas uma série de organizações de Direitos Humanos focadas no passado ditatorial (muitas delas compartilhando a denominação Tortura Nunca Mais, embora fossem organizações autônomas entre si) surgiriam nessa espécie de vácuo político deixado pelos CBAs e não preenchido pelos partidos ou demais movimentos sociais, com o intuito de conferir visibilidade a essa “dor esquecida”. Essas organizações viriam a reunir familiares, sobreviventes envolvidos desde o Movimento pela Anistia com Memória, Verdade e Justiça e atores que come-çavam a se engajar na luta por Direitos Humanos na democracia. No caso específico do Grupo, como narra Victória, a motivação inicial foi denunciar a nomeação de um torturador para um cargo na área de segurança pública do governo Leonel Brizola, eleito em 1982, nos estertores da Ditadura. O sucesso da denúncia fez com que estes atores vislumbrassem a possibilidade de se organizar de maneira permanente. No documentário, Memórias para uso diário, sobre a história do Grupo, Cecília Coimbra e Flora Abreu, que foi a primeira presidente da organização, repas-sam a mesma história contada por Victória.

Cecília: como a gente começou a se articular?Flora: Governo do Estado do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. Governo nacio-nalista, progressista. E, de repente, o secretário de defesa civil...Cecília: José Halfred...Flora: nomeia para sub-comandante....Cecília: não, para comandante do Corpo de Bombeiros: o Walter Jacarandá!Flora: Pois é, o Jacarandá, que havia torturado uma boa parcela de presos po-líticos da época. É o iniciozinho, é abril de 1985. E começa uma grande reper-cussão. Aí juntamos umas pessoas, quatro, cinco pessoas, e vimos o seguinte, não basta fazer denúncia de que tem um torturador num cargo público, a gente precisa começar a chamar pessoas e fazer uma coisa mais constante.

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A gente disse, com o Halfred presente, as entidades se retiram. E o Halfred nunca mais pode entrar no Conselho [Estadual em defesa dos Direitos Hu-manos] e sentar. Cecília: no início ficou muito em cima da questão da denúncia, de repente a gente começou de abril... abril, maio, junho, a gente discutindo toda segunda-feira, a gente começou a perceber que havia um claro em termos de sociedade brasileira em que essas questões não eram faladas (MEMÓRIAS, 2007: 6 min.).

Atuantes em sindicatos, partidos e movimentos sociais, boa parte dos atores que se reuniram para fazer tal denúncia mantinham militância política desde a Ditadura, ou pelo menos desde a luta pela Anistia. Compartilhando as denúncias que começaram a ser produzidas naque-le contexto, tais militantes não tiveram dificuldade em descobrir que não apenas o indicado para o comando do Corpo de Bombeiros, mas o próprio Secretário de Defesa Civil teria vinculações com a repressão, protestando também contra sua permanência no Conselho de Defesa dos Direitos Humanos do Estado. Uma vez fundado, o Grupo colocou as demandas coletivas dos “familiares” e “ex-presos políticos”, que estavam entre seus fundadores, entre suas principais bandeiras.

No documentário, a conversa de Cecília e Flora é entremeada por tomadas do en-contro realizado entre duas outras fundadoras, hoje falecidas. Pertencentes a uma geração ante-rior, Maria Dolores Perez Gonzalez, a Lola, iniciou sua militância política já no Movimento pela Anistia no CBA/SP; Cléa Moraes iniciou sua luta na busca pela filha Sônia de Moraes Angel Jones. Nos dois diálogos, é interessante notar como a memória coletiva vai sendo tecida em seus usos diários, como sugere o nome do documentário, através do aporte entre as narrativas individuais que se completam. Tal como Victória comenta em sua entrevista, as duas ex-presas políticas, a militante engajada na luta pela anistia e a mãe de desaparecida apresentam a história fundacional do Grupo, nos mostrando as muitas origens dos integrantes e as diferentes formas pelas quais elas se tornaram militantes. Ao longo de todo o filme, as narrativas de diferentes mi-litantes são convocadas para dar um panorama das atividades do Grupo, mostrando como, desde as primeiras iniciativas, eles se colocaram perante a sociedade como portadores da memória dos desaparecidos, engajando-se em processos coletivos, como: a nomeação de ruas, a denúncia da nomeação de militares e médicos torturadores para cargos públicos, a localização de centros clandestinos de tortura, a abertura dos arquivos do DOPS e do IML, a localização de uma vala clandestina no cemitério de Ricardo de Albuquerque, entre outros movimentos cujos passos estão detalhadamente preservados nos arquivos da sede.

Por outro lado, Cecília menciona que a motivação para a fundação veio também da percepção de que existia um espaço na sociedade brasileira, e carioca em especial, para falar da violência, percebê-la enquanto uma “violação de Direitos Humanos” e construir formas de de-núncia. Nesse sentido, a mobilização de atores em torno de uma causa muito pessoal, a morte e o desaparecimento de seus familiares e amigos, se inseria em questões mais amplas que diziam

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respeito ao momento então vivido pela sociedade. O início da mobilização desses militantes circunscrevia-se no contexto dos anos 1980, quando a reconstrução dos partidos políticos e o renascimento dos movimentos sociais era parte da emergência de novas instituições, leis e valores que configurariam a democracia. Esse momento, anterior ao surgimento da chamada constituição cidadã de 1988, estava marcado justamente pelas disputas por mútuo reconheci-mento entre os movimentos sociais, que apontavam a mobilização política como única forma de fazer visíveis suas demandas, e esse novo Estado que deveria deixar o autoritarismo. Nesse con-texto, em que a expansão econômica dos anos de Ditadura tinha deixado como legado um país urbanizado e industrializado, mas com uma enorme desigualdade social e de distribuição de renda (CALDEIRA, 2000), os movimentos sociais passam a ter como estratégia preponderante apontar as inúmeras necessidades e carências de variados setores marginalizados da população e, se apoiando nas promessas de uma vida melhor colocadas pelo desenvolvimento, exigir reco-nhecimento, estabelecendo reivindicações por meio da afirmação de direitos.

Nesse processo, Estado e sociedade civil ou movimentos sociais se constituem en-quanto dois polos. Surgindo nos discursos destes como uma entidade homogênea a qual se contrapõem, o Estado é tomado idealmente como um agente produtor de direitos, com quem a interação política resvala em uma dinâmica de disputas pela redefinição dos espaços da cida-dania. Essa dinâmica se volta, como aponta Durham (2004), para a avaliação da legitimidade desse agente, medida por sua capacidade de responder e respeitar direitos que a população e os movimentos sociais se atribuíam. Dessa forma, a ética do enfrentamento e da resistência, estabe-lecida durante a Ditadura, perdia espaço para uma ética da desconfiança, em que as instituições democráticas são percebidas como promotoras de direitos, mas sua capacidade/disposição para fazê-lo está sob constante avaliação, decorrendo dela sua legitimidade.

No que se refere à violência, faz-se relevante notar que o renascimento da democracia foi marcado por um crescimento do crime em todo o país, acompanhado, como aponta Caldeira (2000), pelo aumento da sensação de insegurança, do descrédito das instituições policial e judi-ciária, da privatização da segurança e da segregação social e territorial nas cidades. Um cenário que, para a autora, revelava o caráter disjuntivo da democracia brasileira, em que a crescente ex-pansão dos direitos políticos – eleições livres, fim da censura, livre organização política, funcio-namento regular das instituições democráticas, liberdade de expressão – vinha acompanhada da progressiva deslegitimação dos direitos civis, tão valorizados durante a luta pelo fim da Ditadura. “Em outras palavras, no Brasil, a democracia política não trouxe consigo o respeito pelos direitos, pela jus-tiça e pela vida humana, mas, sim, exatamente o seu oposto” (CALDEIRA, Op. Cit.: 56). Conforme notou Singer (2003), em meios aos processos que trouxeram o país da Ditadura à democracia, as denúncias de torturas e demais arbitrariedades da repressão ditatorial foram se somando aos novos casos de violência decorrentes do “crescimento da criminalidade”. Aos poucos, uma lingua-gem da violência urbana (MACHADO DA SILVA, 2014) focada na identificação do “problema

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da segurança pública” (MACHADO DA SILVA; LEITE; FRIDMAN, 2005) se eleva ao rol das maiores preocupações dos brasileiros, suplantando os debates sobre a violência na Ditadura.

Frente a esse processo, duas ordens de discurso surgiram com força na sociedade: a que atribuía a violência à ausência de poder repressor, visão que reunia muitos saudosos da “paz” vivida na Ditadura, e aquela que via nas desigualdades sociais sua origem (CALDEIRA, 2000; SINGER, 2003). A primeira delas tornava a ordem pública, nas palavras de Machado da Silva, um “enclave de significado em relação à linguagem dos direitos” (2014: 30). Conforme pontua o autor, esse destaque alcançado pela temática da violência urbana fazia com que as instituições estatais passassem a ser criticadas por sua incapacidade de manutenção da ordem, sobretudo nas favelas e comunidades consideradas áreas produtoras de criminalidade e associadas ao crescente tráfico de drogas. A segunda, em torno da qual se reuniam os movimentos sociais e os grupos defensores dos Direitos Humanos, caracterizava as instituições estatais ora como principais produtoras da violência, ora como omissas diante do quadro de desigualdades que produzia tal violência. Seriam omissas, portanto, frente à tarefa de garantia e proteção dos direitos dos setores vulneráveis da sociedade, condenadas por sua contínua prática de desvirtuar-se desse caminho. O crescimento dessa violência estatal colocava a necessidade de que a luta por direitos sociais se aproximasse da luta pelos Direitos Humanos, que precisaria se desenvolver para além de um olhar para o passado autoritário recém-superado. Nos debates mais globais sobre a violência no Brasil, mantinha-se, dessa maneira, a mesma secundarização das denúncias sobre a Ditadura ocorridas durante a luta pela Anistia, quando a necessidade premente de conquista de direitos políticos tomou frente.

A centralidade e a polarização causadas por esse debate se expressaram de ma-neira muito clara nos governos estaduais eleitos em 1982. Notadamente nos governos Franco Montoro, em São Paulo, e Brizola, no Rio de Janeiro, marcados pela construção de (polêmicas) políticas públicas inspiradas nos Direitos Humanos para a área da segurança, com a defesa da população carcerária, a recusa da militarização da intervenção nas favelas e o estreitamento dos canais de comunicação e participação da sociedade na gestão da segurança (MACHADO DA SILVA; LEITE; FRIDMAN, 2005; CALDEIRA, 2000; GALDEANO, 2009). Muito ques-tionadas por diversos setores da sociedade, no contexto seguinte, a posição desses governadores sofreria progressivamente um revés. O aumento dos discursos focados na (in)segurança e no medo, sustentados cada vez mais sobre metáforas de guerra e percepções segregadoras das cida-des, fortalecia as soluções militarizadas, quase sempre voltadas para a estigmatização das regiões mais pobres, culpabilizadas pela violência associada ao crime e ao tráfico de drogas. No Rio de Janeiro, os confrontos com o tráfico, o movimento de militarização da “segurança pública” e a emergência de grupos de extermínio consolidavam um caso exemplar de cidade partida pela vio-lência urbana no imaginário nacional (MACHADO DA SILVA; LEITE; FRIDMAN, 2005; BRIMAN e LEITE, 2004).

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Esse contexto em que a luta por direitos dos movimentos sociais se aproxima da defesa dos Direitos Humanos marcaria o surgimento dos grupos Tortura Nunca Mais, primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo, Bahia, Recife, entre outros estados. Sua luta principal por Memória, Verdade e Justiça seria imediatamente associada à articulação que vinha se cons-truindo mais amplamente entre movimentos sociais, ONGs e grupos que discutiam a violência urbana opondo-se à lógica segregacionista que orientava as políticas de segurança, pautando uma corrente de opinião no debate público. Em meio à variedade de posições que compunham essa corrente, eles se aliavam àqueles que entendiam ser necessário fiscalizar e denunciar o des-virtuamento das instituições estatais de seu papel protetor dos direitos.92 Para os militantes do Grupo, a permanência da “violência institucional” não permitia que seu trabalho pudesse se focar apenas no passado, como conta Victória:

E o importante do Grupo é que a violência no Rio de Janeiro... no Brasil não cessou. E outra coisa. Em 1994, o Grupo... como tinha a Cecília, que é uma das fundadoras, que é psicóloga. Ela se juntou com outras psicólogas amigas dela e conseguiram fazer um projeto nas Nações Unidas para atender as pessoas, os ex-presos políticos. E atender também as famílias dos ex-presos políticos que tem problemas psicológicos e psíquicos muito fortes, né? Porque a Ditadura afetou não só aquele familiar que morreu ou aquele que é familiar de alguém que morreu, ela afetou a família inteira, gerações. (...) O nosso tra-balho tem outra característica que é importante. (…) A violência é tão grande que tiveram aquelas chacinas emblemáticas Vigário Geral, Candelária, Acari.

92 Essa corrente de opinião reunia atores sociais bastante diversos na cidade do Rio de Janeiro. O GTNM, dada a visão de mundo marxista de grande parte de seus militantes, sua ligação com a es-querda e com os movimentos sociais, estava mais próximo dos sindicatos e associações profissionais, como a OAB e ABI, dos movimentos de familiares de vítimas de áreas marginalizadas da cidade, e das ONGs que consideram ter um perfil mais “combativo”, como o Justiça Global. É importante notar que o GTNM/RJ rejeita efusivamente a classificação de ONG: “nós somos movimento social!”, dizem sempre os militantes. Para além desses atores, deve-se notar a participação nesse debate das entidades identifi-cadas com uma luta pela “paz” mais genérica, como as ONGs Viva Rio e Iser que se tornaram conhecidas por promover atos, projetos sociais, campanhas de desarmamento, ações de cidadania, campanhas como os movimentos “Reage Rio”, “Basta, eu quero paz” e o “Mural da Dor”, entre outros eventos destrin-chados na coletânea organizada por Birman e Leite (2004). Em seu artigo, Leite argumenta que essas iniciativas possuíam um caráter mais reconciliador e proativo, pretendendo se afirmar acima de conflitos de classe ou de diferenças entre violência institucional e crimes comuns, na medida em que associava todo o tipo de morte dramática na mesma categoria difusa da “violência urbana”. Por essa razão, esses movimentos não possuíam um ator específico a quem reivindicar ou atribuir responsabilidade, apenas manifestava o desejo de espalhar a solidariedade e rejeitar a violência, cada um “fazendo a sua parte”. Em outro artigo da coletânea, Birman afirma que o Viva Rio, desde sua fundação, tem o objetivo decla-rado de substituir a lógica classista dos movimentos sociais por um humanismo filantrópico, com um arco de alianças que iria para além de distinções ideológicas. Apesar de se sentirem mais distantes desse grupo de entidades, o discurso do GTNM/RJ também é marcado por uma opção pelas estratégias não violentas, ou de recusa da violência, como simboliza sua principal palavra de ordem: “Pela vida e pela paz, tortura nunca mais!”. Mas, ao contrário do foco no perdão, mostrado por Leite, o GTNM/RJ sus-tenta a bandeira da justiça. A consigna “ni olvido, ni perdón”, que embala a luta das Madres argentinas por Verdade e Justiça (CATELA, 2001), inspira o Grupo.

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Depois eu trabalhei na UFRJ em uma pesquisa em que a gente fez um nexo entre as mães da ditadura e as mães das chacinas, achando que tudo ia se re-solver, mas depois veio a chacina do Caju, do Borel, esse pessoal de Benfica... várias chacinas. E essas pessoas são desamparadas pelo poder público. Onde elas vem parar? Aqui. Então, nós temos dois advogados, que não podem advo-gar para elas, mas orientam. Orientam para ir para a defensoria pública, para o Ministério Público do estado, para o Ministério Público Federal. Nós orien-tamos essas pessoas e muitas delas precisam de apoio psicológico. Uma mãe que vê seu filho de 13, 14 anos ser assassinado! Elas são atendidas pelo projeto. Nós atendemos essas pessoas, mas quem teria que atender essas pessoas? Era o Estado. Mas não pode ser um psicólogo qualquer atender uma vítima da violência da polícia militar e nem da Ditadura. Porque isso é consequência. É nisso que a gente bate, a impunidade que hoje tem nesse país, em especial no Rio de Janeiro, porque (a Ditadura) tem uma série de consequências, mas uma é a impunidade. (…) O aparato de estado da Ditadura não foi desmantelado, ele continua vigorando no nosso país. (Entrevista Victória Grabois, Rio de Janeiro, 28 de maio 2012).

No desenvolvimento desse processo ao longo dos anos 1990, a polarização entre es-sas duas visões sobre a violência foi se firmando, enquanto a “segurança pública” se consolidava como uma questão de Estado para a qual se voltavam governantes, policiais e especialistas de todo o tipo. Conforme Victória seguiu me explicando, contrapondo-se à centralidade atribuída ao crime violento, destacadamente ao tráfico, os defensores de Direitos Humanos apontavam a “violência de Estado” como o verdadeiro problema social que afligia a sociedade brasileira. Problema que conectava o passado ao presente na medida em que ligava os diferentes dramas pessoais às tragédias coletivas, e associava as diferentes tragédias com um contínuo histórico que não cessou com o fim da Ditadura. Para os militantes do Grupo, tratava-se de identificar um tipo específico de violência (a “violência institucional”) entre a variedade de conflitos trágicos vividos no meio urbano, apontando o conflito entre um poderoso agente produtor, o Estado, e parcelas da população que, na relação com ele, encontram-se em uma condição de vulnerabilidade.

Essa relação específica entre Estado repressor e população especialmente suscetível – ou mais especificamente a relação entre as instituições de “segurança pública” e os margina-lizados no presente, e entre as instituições de “segurança nacional” e os militantes políticos no passado – é o que diferenciaria tal “violência institucional”, concedendo-lhe um caráter político que perdurou no tempo, apesar das transformações vividas no país. Se, no momento presente, os familiares de vítimas da violência policial se percebem, nessa relação, como população ma-tável (FARIAS, 2011), sujeitos localizados em um ponto de margem onde se tornam alvo de qualquer tipo de ação discricionária (VIANNA, 2013) em função de sua condição social e do local que habitam na cidade partida, sem encontrar condições propícias para o reconhecimento de sua dor (ARAÚJO, 2012), os militantes do Grupo observam da mesma maneira sua própria situação. No passado, a atuação política de seus familiares (e não sua classe ou seu endereço) se tornou condição para a mesma exclusão violenta; no presente, sua dor segue sem encontrar

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reconhecimento. Por essa razão, os militantes sempre dizem que: “se no passado nós éramos rotulados como terroristas para sermos mortos, hoje isso ocorre com os jovens pobres e negros, rotulados como traficantes e bandidos”.93

Parte dos que passaram a se reunir nos grupos Tortura Nunca Mais já traziam consi-go experiências de militância. Não apenas aquela contra a Ditadura em seu auge – caracterizada mais pelo enfrentamento, muitas vezes armado, e por uma visão da morte em uma perspectiva mais heroica – 94 mas sobretudo aquela desenvolvida no Movimento pela Anistia e redemocra-tização, quando a denúncia das violências da repressão, com foco na injustiça sobre os “atingi-dos” e na dor dos familiares, se tornou uma importante forma de atuação política da oposição. Conectando-se agora às novas demandas colocadas pelo processo democrático, os militantes puderam ampliar os sentidos atribuídos à persistência da luta. Acreditando que só a permanente mobilização é capaz de reverter a “violência de Estado”, eles se ligaram a novas organizações políticas, com quem o diálogo sobre métodos de investigação e denúncias, expertises profis-sionais (jurídico, psicológico, legista) resultaram em uma adoção cada vez maior da linguagem dos Direitos Humanos. No caso do GTNM/RJ, falamos do contato e da militância ao lado de ONGs nacionais e internacionais, como a Anistia Internacional, o Justiça Global, o Human Rights Watch, o Cejil e a Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF), de organizações formadas por familiares de vítimas da violência policial - por exemplo, os movimentos Mães de Acari, Movimento Moleque, Posso me identificar?,95 atualmente denominado Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência – e variados centros e grupos de Direitos Humanos existentes na cidade, alguns dos quais ligados a estruturas religiosas, além da inserção em coalizões in-

93 Lembro aqui que o mito fundacional do Comando Vermelho, o primeiro grupo no Brasil a ser con-siderado “organizado” em torno ao tráfico de drogas, remete justamente ao contato entre “presos co-muns” e “presos políticos” em presídios como o de Ilha Grande, nos anos 1970. Eram presos igualmente condenados pela Lei de Segurança Nacional, embora tratados com status distintos pela Ditadura, pela sociedade e pelos próprios presos políticos, conforme mencionei anteriormente. Diz-se que, inaspira-dos nas formas de atuação dos presos políticos, presos comuns passaram a se organizar para manter a sobrevivência nas prisões, encerrando as disputas entre os próprios detentos, defender seus direitos e forjar estruturas de solidariedade entre integrantes presos e livres. Essa organização seria levada para a realização de uma série de atividades criminosas no Rio de Janeiro, a partir dos anos 1980. Filmes como Quase dois Irmãos, de Lúcia Murat, e 400 contra 1, de Caco Souza, contam essa história.

94 Conforme procura definir Todorov (1995) nas situações em que a maioria das pessoas acredita não ter escolhas e se dobra às circunstâncias, o herói seria aquele que se insurge, acreditando no poder de seu ideal e na força de sua vontade. No heroísmo, portanto, o ideal teria maior valor que o real, a morte mais valor que a vida. Sobre o heroísmo e outros temas relativos à esquerda na Ditadura, ver, por exemplo, FERREIRA, 1996a e b; FERREIRA, 2004; RIDENTI e REIS FILHO, 2002, 2007; GOREN-DER, 1999; REIS, 1990; REIS FILHO e MORAES, 1998; RIDENTI, 2010.

95 O Movimento Posso me Identificar? foi criado após a Chacina do Borel, em 2004. O trabalho de Ju-liana Farias (2007) analisa a atuação desse movimento. No documentário Memórias para uso diário, uma mãe do movimento dá seu testemunho, assim como a mãe de uma vítima da violência policial atendida pelo projeto clínico do Grupo.

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ternacionais de movimentos, como a Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares de Detenidos-Desaparecidos (FEDEFAM), através da qual mantém contato com associações de víti-mas da Ditadura dos países vizinhos.96 Com o financiamento da ONU, puderam, para além da construção de denúncias e ações de reivindicação frente ao poder público, construir um projeto clínico-psicológico e uma assessoria jurídica (esta desarticulada por falta de verbas) para atender vítimas de violência institucional.

É relevante destacar que, nesse processo, os grupos Tortura Nunca Mais e a Comissão de Familiares acumularam experiências na construção de casos e denúncias, passando a integrar diversos espaços de participação sobre Direitos Humanos criados pelas instituições estatais ao longo do período democrático, como por exemplo: a CEMDP, as comissões estaduais de in-denização dos sobreviventes, conselhos de Direitos Humanos estaduais, etc. Seus militantes se envolveram em diferentes lutas políticas, com destaque para o movimento feminista, os movi-mentos na área da saúde e da segurança pública, construindo carreiras militantes para si e para suas organizações, passando a ser assim reconhecidos de uma maneira mais ampla como mili-tantes dos movimentos sociais urbanos e como representantes da causa dos familiares de mortos e desaparecidos. Vozes autorizadas a falar sobre o tema em distintos espaços públicos, sejam do movimento social ou da institucionalidade.

Uma comunidade de sofrimento: a luta e a Comissão de familiares

Se tio Cilon nunca mais ia existir, porque continuava existindo além da carne, doendo além da dor – por que o sangue que não corria mais em suas veias continuava se coagulando nos veios da família?

E porque – porquê? – eu não parava de procurá-lo em todas as mínimas e absurdas coisas, como quando era criança?

(Liniane Brum, Antes do passado)

A abertura do regime também permitiu que, em todo o país, “familiares” tivessem mais liberdade para levar adiante atividades direcionadas aos casos específicos de seus parentes, entre os quais podemos citar: esforços pela localização e identificação dos corpos, pela construção das mortes e desaparecimentos como assassinatos, pela responsabilização dos culpados e por reparação.

96 O amplo conjunto de organizações e ativistas parceiros do GTNM pode ser mapeado através das ho-menagens realizadas por meio da Medalha Chico Mendes que, ao longo dos anos, contemplou cada uma dessas organizações e militantes. Essa relação com o quadro mais amplo de organizações de direitos hu-manos se repete nas experiências dos outros estados. No caso do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e da Comissão de Familiares é importante destacar a relação com os mesmos grupos internacionais, além da Comissão de Justiça e Paz, o NEV/USP e organizações de vítimas da violência policial na cidade, como as Mães de Maio ou o Movimento 2 de Outubro, entre outros.

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Tiveram mais liberdade também para articular empreendimentos coletivos. Essa movimentação mantinha contato, recebia colaboração e compartilhava atores com a formação dos grupos Tortura Nunca Mais e demais organizações políticas dedicadas ao período da Ditadura, mas não se confundia completamente com elas, conforme veremos com mais vagar.

Ainda durante a Ditadura, uma série de estratégias individuais e coletivas foram mobilizadas, em geral, por mães e pais (dada a juventude de boa parte dos mortos), mas também esposas e maridos em busca dos desaparecidos ou da elucidação das mortes cujas circunstâncias relatadas pelas forças de segurança pareciam suspeitas. Os primeiros movimentos, mais soli-tários, começavam logo que os familiares eram informados da prisão/sequestro ou notavam o desaparecimento. Elas consistiram em buscas por quartéis, delegacias e hospitais, contatos com os advogados que faziam defesa de presos políticos e impetração de habeas corpus (mesmo depois de suspenso pelo AI-5). Com o passar dos dias, as estratégias iam se diversificando. Muitos foram aqueles que escreveram cartas para distintas autoridades; publicaram notícias de desa-parecimento em jornais; frequentaram as Auditorias Militares (onde os “crimes políticos” eram julgados); movimentaram contatos pessoais, seja com autoridades, com membros das FFAA ou com outras vítimas e seus familiares; buscaram apoio em igrejas e junto a autoridades religiosas, especialmente junto às Comissões de Justiça e Paz (CJP). Nesses espaços, puderam conhecer ou-tras famílias na mesma situação. A Cúria Metropolitana de São Paulo, sob o apoio de D. Paulo Evaristo Arns, serviu de espaço para as primeiras reuniões entre famílias. Pelas mãos do cardeal, dossiês preparados pela família de 22 desaparecidos foram entregues ao Chefe da Casa Civil em uma reunião na CNBB em Brasília, em 1974. Tal fato provocou a primeira declaração pública da Ditadura sobre os desaparecidos (tratando-os como foragidos) e a primeira tentativa de articu-lação de uma CPI dos Direitos Humanos, a partir de contatos com deputados do MDB. Nesse contexto, familiares também deram início a processos judiciais, fizeram denúncias no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e outras esferas institucionais. Uma rede solidária come-çou a ser estabelecida entre familiares de mortos e desaparecidos e de presos políticos. Um dos primeiros resultados organizativos foi a formação do Movimento Feminino pela Anistia, em 1975.

Durante a democratização, as iniciativas coletivas continuaram a ser executadas tan-to sob a bandeira dos MFPAs e dos CBAs, criados a partir de 1978, como por fora delas. No interior dos CBAs, assim como nos congressos e encontros nacionais do Movimento pela Anistia, organizavam-se núcleos temáticos diversos, onde levantamentos e denúncias eram realizados. Havia, por exemplo, núcleos para avaliar a situação jurídica e possibilidade de volta dos exila-dos; para articular denúncias sobre tipos e locais de torturas, nomes de torturadores, condições, locais de prisão e acompanhamento dos casos particulares de presos políticos; para denúncias sobre profissionais de saúde (médicos, psiquiatras, legistas) envolvidos em torturas e na produção de laudos falsos; entre outros. Os familiares passaram a se organizar em um desses núcleos: a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, responsável por fazer levantamentos de

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nomes e das circunstâncias que envolviam os casos. Seus membros procuravam sensibilizar os de-mais atores envolvidos no Movimento pela Anistia em torno de suas demandas específicas, como aponta a moção escrita pela Comissão e aprovada na plenária Final do I Congresso pela Anistia:

(…) A luta pela anistia é necessária na medida em que todos os setores da po-pulação foram atingidos por lei e atos de exceção, pela ação repressiva de uma ditadura militar que perseguiu, torturou e assassinou milhares de brasileiros Torna-se necessário a denúncia política de todos os crimes do regime militar, lutar pelo esclarecimento das circunstâncias da morte e desaparecimento de todos aqueles que estavam empenhados na luta contra a opressão em todas as suas manifestações e por uma sociedade mais justa e livre. A existência desses crimes contra a humanidade, faz com que seja necessário lutar e exigir comple-ta elucidação, apuração e responsabilização dos responsáveis que praticaram esses crimes que hoje são escamoteados pela repressão ou apresentadas ver-sões inteiramente falsas, sempre com o objetivo de enganar o povo. Os mor-tos e desaparecidos não precisam mais de anistia, mas suas famílias, amigos e companheiros, sim. Precisam de anistia para suas angústias, sofrimentos e incertezas. Precisam de anistia para garantir que outros não passem pelo que passam tantos companheiros. Nesse sentido, é fundamental a formação de uma campanha nacional pelos mortos e desaparecidos. Continuamos exi-gindo que o governo responda onde estão os desaparecidos, que esclareça as circunstâncias verdadeiras de todas as mortes, devolva os corpos aos fami-liares, também exigimos a relação de todos os mortos e onde estão enterrados os corpos das pessoas envolvidas em embates no Araguaia. Utilizaremos todas as formas e meios, organizemos nacionalmente um amplo movimento sobre os mortos e desaparecidos. Basta de tanto sofrimento e violência. Exigimos o fim das torturas e o desmantelamento dos aparelhos repressivos. Pelo fim do regime de arbítrio e repressão. Pela anistia ampla, geral e irrestrita. (Carta da Comissão de Trabalho Desaparecidos e Mortos. I Congresso Nacional pela Anistia. São Paulo, Novembro, 1978. AEL/Fundo CBA, pasta 64).

O fim dos CBAs, a partir de 1980, não implicou na desarticulação dos membros da Comissão de Familiares. Aqueles concentrados em São Paulo seguiram suas atividades utilizando o mesmo nome e reivindicando sua origem no CBA. No Rio de Janeiro, familiares migraram para o GTNM/RJ, reivindicando essa mesma origem, processo semelhante ao ocorrido em outros estados. Talvez a maior relevância das atividades durante o Movimento pela Anistia tenha sido a possibilidade de ampliação tanto da articulação nacional em rede de familiares em torno das demandas resumidas na carta acima, quanto das listas de mortos e desaparecidos que se tornariam base para a construção do Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos no Brasil, publicado pela primeira vez em 1984 pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Uma vez que a Anistia não atendeu suas reivindicações, familiares seguiriam rea-lizando atividades coletivas como passeatas, protestos e outras formas de manifestação pública que produzissem visibilidade à causa. Se dedicariam ao desenvolvimento da listagem de mortos e desaparecidos e à produção de um caso em torno a cada uma dessas mortes/desaparecimentos, estabelecendo buscas que estimularam a abertura dos primeiros arquivos da repressão, levaram

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à descoberta de valas clandestinas, dos corpos de alguns desaparecidos e informações acerca de diversas mortes. Destaca-se também a realização de uma Caravana à região da Guerrilha do Araguaia, assim como a abertura de um processo civil coletivo pelos familiares dos guerrilheiros desaparecidos na região, conforme nos conta mais uma vez Victória:

Na história da Corte [Interamericana de Direitos Humanos]... da sentença da Corte, foi a luta das famílias que começou, lá em 1982. Foram os pais e as mães que já morreram. Foram os pais e as mães que começaram. Porque essa ação, eles entraram em 79, e não conseguiram. Tentaram entrar em 80, não conseguiram (...) Aí conseguimos entrar só em 82, porque eles diziam que não existia Guerrilha do Araguaia, que isso era invenção nossa, era da cabeça nossa. Mas os partidos políticos, o PCdoB no qual eu militei (….) Esses partidos nunca nos deram apoio para nada. Nada. No início, em 80, os partidos, quando a gente foi em caravana para o Araguaia, em 80, os deputa-dos e alguns senadores do PMDB, nos deram dinheiro para a gente organizar a caravana, mas eram eles individualmente, não era o PMDB (…). Com a história da corte, veio à tona novamente a questão dos mortos e desaparecidos. Então, agora como a comissão da verdade está na mídia, ficam os partidos (...) aparecendo com seus dirigentes (Entrevista Victória Grabois, Rio de Janeiro, 28 de maio 2012).

Esse processo coletivo iniciado pelos pais e mães de alguns guerrilheiros em 1982 transitou em julgado na Justiça Federal em 2007, quando muitos dos autores já estavam mortos. A demora no avanço da contenda na justiça bra-sileira levou o GTNM/RJ e a Comissão de Familiares, com o aporte jurídico do Human Rights Wacth, e depois do Cejil, a apresentarem o caso à Comissão

Quatro listas datilografadas de mortos e desaparecidos do CBA/RJ (AEL, acervo CBA, pasta 6). O padrão constituído por essas listas é o mesmo mantido até hoje na versão mais recente do Dossiê (ALMEIDA, 2009).

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Interamericana de Direitos Humanos, nos anos 1990. Os militantes das duas organizações se orgulham muito de explicar que a sentença condenatória pro-ferida pela Corte, em 2010, “abrange todos os casos de mortos e desaparecidos, e não somente os do processo original”.

A história narrada (de forma extremamente resumida) até aqui pôde ser reconstruí-da a partir de inúmeras fontes: o Dossiê; os diversos filmes e livros biográficos, documentais e ficcionais sobre as buscas (ou produzidos no esforço de busca) de algumas famílias;97 os sites e os materiais produzidos pela Comissão de Familiares e grupos Tortura Nunca Mais; as narrativas que escutei ao longo da pesquisa; e por fim, a dissertação de Janaína Teles (2005) – um dos poucos trabalhos específicos sobre a “luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos” no Brasil – que reconstrói com muitos detalhes a história dessas iniciativas, desde uma posição privilegiada de engajamento da autora na Comissão de Familiares.

Todos esses (e outros) artefatos operam como catalisadores de uma memória comum, fazem parte de um movimento de coletivização dos diferentes casos em uma mesma denúncia,

97 Listados nos pontos 3 e 4 da bibliografia.

À esquerda, cartaz da campanha nacional pelos mortos e desaparecidos do CBA. O texto diz: “Eles foram presos, sequestrados e torturados. Eram pais de família. Encontram-se desaparecidos e talvez mortos”.À direita, cartaz

semelhante utilizado pelo Grupo Tortura Nunca Mais/SP, em 1989.

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das distintas buscas em uma mesma luta, mesmo que nem todas as histórias de busca dos fami-liares se confundam ou possam ser capturadas em sua complexidade e singularidade pelo traço dessa narrativa coletiva. A exposição temporária Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim: mortos e desaparecidos políticos percursos pela verdade e justiça, organizada no Memorial da Resistência em meados de 2014 materializava de forma muito contundente essa narrativa coleti-va. Dividida em 5 módulos, a exposição apresentava o rol dos “mortos e desaparecidos” em dois grandes painéis que reuniam suas fotos e nomes, além de gráficos que mostravam o perfil social das vítimas. O foco central da exposição recaía, contudo, sobre os “familiares”. Apresentados como autores das denúncias, são eles que possuem a prerrogativa moral de falar pelos mortos. Legitimados pelo sofrimento e pela militância, a exposição os definia como portadores de “uma dor que não passa” e protagonistas de “uma luta que não tem fim”. O destaque da exposição era justamente para os principais fatos e artefatos que compõem a luta: cartas de familiares às au-toridades, cartazes de atos, fotografias de protestos, exumações e funerais, anúncios públicos de enterros e missas, e atestados de óbito. Painéis cronológicos e temáticos traçavam o percurso feito por “familiares” e suas organizações políticas na luta por Verdade e Justiça, pontuando os principais eventos que a construíram, como a descoberta da vala de Perus,98 os processos da Guerrilha do Araguaia, as políticas MVJ, e as tentativas de responsabilização. Ao final, “os familiares que lutaram e continuarão lutando” surgiam nominalmente listados, fixando um mapa dos atores considerados mais engajados nos processos que orientam a construção dessa narrativa coletiva, disseminada sobretudo pelas organizações políticas integradas por familiares.

Olhando mais detalhadamente os processos narrados em todos esses meios – e le-vando em conta o peso da experiência argentina no imaginário coletivo e nos estudos acerca desse tema –, me parece importante destacar a dificuldade de se falar em “organizações de fa-miliares” no Brasil. Isso ocorre porque, na prática, por aqui se formou apenas uma organiza-ção, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, que atrela sua composição e sua

98 Ao longo de sua luta, o movimento de familiares localizou militantes enterrados em cemitérios va-riados, além de valas comuns clandestinas em cemitérios públicos no Rio de Janeiro, em Recife e em São Paulo. A mais famosa dessas valas é a do cemitério Don Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo. Familiares que buscavam seus mortos ouviam rumores de sua existência desde meados dos anos 1970, mas ela somente foi aberta em 1990, após ter sua existência denunciada por um funcionário ao jornalista Caco Barcelos que fazia pesquisa para o livro Rota 66, sobre assassinatos cometidos pela polícia. A pre-feita Luíza Erundina realizou a abertura da vala e foi responsável pela instauração de uma CPI sobre o caso. Barcelos fez uma reportagem especial sobre a vala para o Globo Repórter, censurada na época, mas que foi ao ar em 1995, por ocasião da Lei de Mortos e Desaparecidos. Além dessa grande repercussão, a vala também é um marco importante no processo de construção de narrativas sobre a indiferença das instituições do Estado. As quase 1.500 ossadas encontradas no local transitaram entre uma série de ins-tituições, entre elas duas Universidades Estaduais, na tentativa de identificação. Após algumas poucas identificações feitas ainda nos anos 1990, as ossadas foram deixadas de lado em péssimas condições de armazenamento. O último episódio dessa história ocorreu em 2014, quando foi assinado um convênio para que as ossadas sejam analisadas na Unifesp.

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caracterização (expressa no próprio nome) a figuras que representam laços primordiais (CATELA, 2001). Cunhada por Geertz, esta categoria procura definir certos vínculos (como os de sangue ou de nacionalidade) que são experimentados pelos atores sociais como “ inefáveis, vigorosos e obrigatórios em si mesmos” (1978: 221). Conforme lembra o autor, embora o tipo e a força desses laços variem histórica e contextualmente, o que os caracteriza é serem sempre percebidos como decorrentes de uma afinidade que reside mais no plano da naturalidade ou da espiritualidade do que das relações sociais. Analisando, a partir dessa ideia, a formação das organizações de fami-liares argentinas, Catela (2001) argumenta que essa naturalidade tornou sobretudo os “laços de sangue” meios emotivos e símbolos eficazes em processos de construção de identidade, marcando de maneira contundente limites de exclusão e inclusão na formação das organizações políticas.

Ao contrário da Argentina, onde as Madres, Abulas, Hijos e Familiares dariam nome às principais organizações de Direitos Humanos surgidas a partir da Ditadura, 99 no Brasil have-ria uma grande pluralidade na formação de organizações de Direitos Humanos que estabelecem demandas referentes ao período autoritário.100 Entre elas, os familiares iriam se dispersar, alguns

99 Refiro-me às organizações: Asociación Madres de Plaza de Mayo, Madres de Plaza de Mayo-Línea Fun-dadora, Abuelas de Plaza de Mayo, Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas e H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio). Para entender o campo de atuação política desses grupos, ver: Sanjurjo, 2013.

100 É preciso notar também que houve diferentes momentos na formação dessas organizações. Os anos 1980 foi marcado pela fundação dos grupos Tortura Nunca Mais (e similares, como o MJDH/RS),

Em frente aos murais da exposição Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim, alguns dos atores sociais reconhecidos por esta prerrogativa, os militantes da Comissão de Familiares: Ivan Seixas, César Teles, Janaína Teles,

Amelinha Teles e Denise Crispim.

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deles vinculando-se a mais de uma. Contudo, além de concorrer com a referência nacional con-quistada pela Comissão de Familiares (cabe lembrar que essa organização representava “os familia-res” na CEMDP e é a responsável por editar o Dossiê), essa dispersão nunca impediu a evocação dos “familiares” ou das “famílias” como uma comunidade imaginada a partir dos laços morais e emocionais que ligam os vivos aos mortos, da injustiça e do sofrimento vividos em comum, mas também das ações e conquistas construídas pela “luta”, como nos falou Victória. Daí que, em vez de falar em organizações de familiares, eu opte por me referir a campo de atuação ou movimento de familiares. A distinção que enfatizo é semelhante àquela que procura demarcar Facchini (2012) ao analisar o movimento LGBT. Estou chamando de comunidade o mesmo tipo de delimitação que a autora denominou de arena: a coletividade formada por “todos(as) aqueles(as) que poderiam se reconhecer ou ser reconhecidos(as) a partir das categorias enunciadas no sujeito político do movimento” (FACCHINI, 2012: 9) independente de estarem ou não envolvidos no cotidiano da militância. Já quando falo de movimento, me refiro à militância exercida por familiares dispersos entre dife-rentes organizações políticas atuantes junto ao campo de debates, espaços e políticas de MVJ, onde “estariam todos os atores sociais diretamente envolvidos em seu cotidiano, como as organizações ativistas, as agências estatais e poderes públicos com os quais se relaciona” (FACCHINI, 2012: 9).

Entre a comunidade e o movimento – isso é, entre os identificados como familiares e os que se mobilizam como tal – há processos de distinção contextuais e muito tênues, mas que fazem sempre referência à categoria “luta”. Para seguir explorando esse tema, creio que um para-lelo com a reflexão desenvolvida por Vianna (2013) sobre familiares de pessoas mortas em con-textos de violência institucional na democracia seja iluminadora. Ao observar as inúmeras falas desses familiares em ambientes diversos aos quais os acompanhou, a antropóloga chama atenção para a centralidade que estes atores atribuem ao trabalho pessoal e coletivo de transformar as

além da Comissão de familiares. A partir de 2001, a articulação de setores profissionais e de trabalha-dores que perderam seus empregos ou benefícios trabalhistas em virtude das cassações e perseguições políticas, deram início à luta por reparações. Nesse contexto, em que é aprovada a Lei 10.559/02 e leis similares nos estados, todas versando sobre a reparação econômica, surgem uma série de associações, como: Associação 64/68 do Estado do Ceará, a Associação dos Anistiados do Estado de Goiás, o Fórum dos Ex-presos Políticos do Estado de São Paulo, a Associação Brasileira de Anistiados Políticos (Abap), a Associação Democrática Nacionalista de Militares (Adnam), a Coordenação Nacional de Anistiados Políticos (Conap), entre várias outras (ABRÃO, 2010:108). Em um terceiro momento, mais atual, surgem novas organi-zações com pautas mais amplas que envolvem a preservação da memória, a punição dos torturadores e a defesa das comissões da verdade, sustentadas por grupos como o Núcleo Memória, nascido do Fórum dos Ex-presos, e diversos Comitês ou Coletivos Memória, Verdade e Justiça. A partir de 2011, eles surgiram em praticamente todos os estados e em diversas cidades do país. Algumas dessas organizações receberam apoio de familiares. Os relatórios de monitoramento da CNV produzidos pelo ISER trazem pesquisas realizadas com esses grupos que possibilitam ter uma ideia de sua expressividade numérica, assim como da recorrência do termo MVJ em suas denominações (ISER, 2012, 2013a, 2013b, 2014). Mais recen-temente, observa-se também a formação de institutos, estruturados nos moldes de ONGs, a partir da iniciativa de determinadas famílias, cujos objetivos também estão fincados na dupla memória e Direitos Humanos, tais como o Instituto Vladimir Herzog e o Instituto João Goulart, por exemplo.

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mortes de seus parentes em homicídios formalmente reconhecidos, através de esforços por le-var os responsáveis a julgamento. São casos, em geral, de mortes em regiões de conflito com o tráfico de drogas, em que os mortos são considerados “traficantes” ou “bandidos” e suas mortes enquadradas como “autos de resistência”, isto é, resultado da “legítima defesa” de policiais em situações de “confronto”.101 No caso dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos”, tenta-tivas de reconstruções semelhantes definem o que eles entendem por “luta”. Embora sua atuação se limite a julgamentos civis, dado que a Lei de Anistia tem impedido até o momento os proces-sos criminais, ela abarca também outras movimentações no âmbito da institucionalidade, como pedidos de reconhecimento e/ou reparação em comissões (CEMDP, comissões de reparação estaduais, CA e comissões da verdade), além dos trabalhos de localização e identificação de cor-pos, a descoberta da verdade acerca das mortes, atividades que foram estabelecidas tanto a partir dos processos judiciais civis, quanto da atuação dessas comissões institucionais.

Conforme pontua Vianna (Op. Cit.), ao falar das mortes nesses contextos institu-cionais – ou em outros, como atos e manifestações públicas, por exemplo – os atores movimen-tam leituras sobre o ocorrido, pontuando responsabilidades e reconhecimentos esperados, assim como estabelecem cursos morais, afetivos e políticos frente as dores experimentadas no decorrer de um processo dramático que foi apenas iniciado pela morte, mas que continua no presente e se projeta sobre o futuro. Nos últimos anos, diversos estudos sobre outros grupos de “familiares ou mães de vítimas” no Brasil (LEITE, 2004; ARAÚJO, 2007, 2012; LACERDA, 2012; FARIAS, 2014; VIANNA e FARIAS, 2011, FREIRE, 2011), em que pesem suas especifici-dades etnográficas, mostram que a dor pela morte é apenas uma primeira dimensão da violência sofrida. No decorrer dos anos, ao longo dos quais esses familiares se engajam em tentativas de esclarecê-las, nasce o sentimento de estar submetido também a uma violência moral contínua, resultante da falta de reconhecimento, reparação e justiça. Isso significa que o sentimento de in-justiça vivido por esses atores deriva não apenas da morte, mas também da percepção de que ela foi destituída de dignidade e de que a memória dos mortos está sendo desrespeitada (BIRMAN e LEITE, 2004), seja porque corpos foram vilipendiados ou desaparecidos, seja porque acu-sações consideradas falsas são lançadas sobre eles, ou pela impunidade dos responsáveis. No dizer de Birman e Leite (2004), são percepções que dão contornos de intolerável ao sofrimento e que aumentam à medida que vão sendo confrontadas por variadas iniciativas de busca (por informações, por justiça, pelos corpos, etc). Dessa forma, a despeito das diferenças contextuais, os familiares interlocutores de todas essas pesquisas, ao se comprometerem com a produção de justiça para os mortos, relatam um choque contra o que as autoras definiram como “um muro de proporções difíceis de mensurar”, quando descobrem:

101 O auto de resistência foi criado pela Ditadura Militar e, conforme já foi dito, corresponde a uma das três explicações mais recorrentemente apresentadas pela Ditadura para a morte de opositores. São elas: resistência, suicídio e atropelamento.

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(…) um submundo opaco, intrincado, onde a responsabilidade, a cumplici-dade, a indiferença, o compromisso e o descompromisso de cada funcionário do Estado individualmente contatado se fazem e se desfazem sem que as de-mandas essenciais e de uma simplicidade espantosa consigam encontrar um caminho eficaz no interior da gestão kafkiana dos inquéritos e procedimentos em curso (BIRMAN e LEITE: Op. Cit.: 11).

Nesse processo de movimentação em torno das mais variadas demandas, os atores percebem inúmeras outras formas de gestão violenta da vida, para além daquelas que causaram as mortes, na medida em que barreiras “se interpõem, todas igualmente identificadas a essa imagem mais ampla do “Estado” e de suas múltiplas institucionalidades” (VIANNA, 2013: 221). Voltando ao trabalho de Vianna, a autora argumenta que essa atuação de militantes e familiares em diferen-tes arenas da institucionalidade cria zonas de significação sobre noções como “Estado”, “violência” e “gênero”. São polos semânticos e de ação a partir dos quais derivam uma variedade de catego-rias – ou palavras-atos, conforme a conceitualização adotada pela autora – que compõem um lé-xico movimentado na tarefa de dignificar as mortes. Em meio à necessidade de reconstruí-las de modo a repor a verdade dos acontecimentos e a condição moral dos mortos, os atores “articulam palavras-atos que podem funcionar como instrumentos de acusação, de compreensão, de solidariedade e de luto, reconstruindo-se social e subjetivamente nesse processo” (VIANNA, 2013: 2010).102 Apesar da similaridade entre dados apresentados pela autora e aqueles que eu observei em campo (o que estimula essa aproximação com sua reflexão), no caso dos “familiares de mortos e desaparecidos” seria “parentesco” o terceiro polo forte dessa composição, conforme veremos adiante.103 A autora afirma que a evocação dessas palavras-atos nas cenas públicas contém múltiplas dimensões: elas descrevem situações dispersas na temporalidade, entre passado, o presente e os desejos de futu-ro; fazem parte da construção objetiva e subjetiva dos próprios atores; compõem mapas morais a partir dos quais é possível traçar limites entre semelhantes, aliados e antagonistas; organizam posições políticas que coletivizam o que fora inicialmente experimentado como dor doméstica.

102 Vianna dá exemplo de palavras-atos como: “Governo”, “polícia”, “assassinato”, “matar/mataram”, “desrespeito”, “mães”, “mulheres”, “nossos filhos”, “útero”, “covardia”, “pobres”, “bandidos”, “trabalhado-res”, entre outros. No caso dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos” observamos da mesma maneira uma série de palavras-atos relacionadas à dignificação das mortes, dos mortos e dos vivos que os reivindicam, podemos citar: “Ditadura”, “resistência”, “militantes”, “lutaram pela democracia”, “heróis”, “deram suas vidas”, “ jovens idealistas”, “torturadores”, “milicos”, “golpistas”, “covardes”, “barbaramente torturados”, “tortura”, “nossos familiares”, “mães”, “mortos e desaparecidos políticos”, entre outros.

103 As questões referentes ao parentesco passam, no caso etnográfico descortinado pela autora, pela zona de significação mais fortemente orientada pelo gênero, na medida em que são as mães que assu-mem o papel de protagonista tanto na luta, quanto nas narrativas acerca dela. No contexto em tela, a ausência das mães, a maioria falecida ou muito idosa, faz com que o parentesco de forma mais geral, e menos a maternidade, constitua uma zona de significação de onde derivam as palavras-atos que com-põem a luta. Nesse caso, os elementos relativos ao gênero estariam relacionados a essa zona mais ampla composta pelo parentesco.

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Discutindo a inserção do GTNM/RJ no movimento de Direitos Humanos, procu-rei indicar como os debates que articulam “violência” e “Estado” organizam alianças e sentidos de coletividade mais amplos que aquele estabelecido entre os “mortos e desaparecidos” e seus “familiares”. Contudo, ao longo da pesquisa, pude perceber que os familiares constituem outras redes sobre classificações e limites que atravessam, restringindo essa identificação mais ampla. Em primeiro lugar, eles parecem entender que, a partir do parentesco, derivam certas ações relativas à construção dos casos, como a construção dos enredos narrativos que contextualizam as ausências como “desaparecimentos políticos”, exercício que se opera na abertura de processos judiciais, na preparação de dossiês para comissões, mobilizando exumações, laudos, exames pe-riciais para designar a causa mortis, por exemplo. Essas atividades que envolveriam mais direta-mente e aproximariam aqueles que possuem familiares mortos ou desaparecidos. Essa percepção se sustenta a despeito dos sujeitos sociais movedores dessas ações agirem mobilizando apenas relações de seu próprio grupo familiar (em processos individuais, por exemplo), em conjunto com outras famílias, ou mobilizando as organizações políticas (como na produção do Dossiê). Por vezes, esses diferentes processos são identificados por observadores como fruto da atuação de uma única organização, a Comissão de Familiares, cuja dinâmica de funcionamento e partici-pação, até onde pude auferir durante minha convivência com seus militantes na CVRP, é restrita àqueles que podem ser reconhecidos como tais (ao contrário dos grupos Tortura Nunca Mais). No entanto, essas ações delimitadoras daquilo que se entende por “luta dos familiares” excedem aquelas constituídas no âmbito da Comissão de Familiares, envolvendo tanto as movimentações de familiares articulados em outras organizações, quanto daqueles que não se vinculam direta-mente a nenhuma delas. Nesse sentido amplo, qualquer ação protagonizada por um ator reco-nhecido como familiar é potencialmente parte da “luta” comum.

É preciso destacar que esse entendimento produz dinâmicas de diferenciação no interior das organizações políticas em que os familiares se fazem presentes. Diferenciações, em geral, vistas com naturalidade. Citarei apenas um exemplo, mas que me parece interessante por contrastar com as já descritas estratégias de enredamento movimentadas pelos militantes do Grupo em relação a minha participação nas suas atividades. No final do ano de 2012, quando minha presença no GTNM/RJ me parecia bem consolidada, foi convocada uma reunião entre representantes de alguns Ministérios do Governo Federal e representantes dos familiares autores do processo do Araguaia. O objetivo era debater a execução da sentença, transitada em julgado, cinco anos antes, na Justiça Federal. Entre os militantes do Grupo, apenas Victória e Elizabeth Silveira e Silva, a Beth, compareceriam. Animada, perguntei-lhes sobre a possibilidade de as-sistir à reunião, embora receosa de que os atores institucionais pudessem criar obstáculos à mi-nha presença. De pronto, as duas concordaram que não havia esse risco, já que, nesse caso, eu entraria junto com elas e não haveria questionamentos,104 mas não recomendavam que eu fosse,

104 Isso de fato ocorreu vários meses depois, quando as duas foram a uma audiência reservada, em que

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pois minha presença poderia incomodar outros familiares, já que eu não era uma. Com essa preocupação, elas me revelavam fronteiras que os “não familiares” têm dificuldade de ultrapas-sar, mesmo quando engajados nas organizações políticas (ou considerados “confiáveis” por elas, como parecia ser meu caso).

Segundo elas, algumas informações delicadas poderiam surgir durante a reunião e nem todos os familiares estariam dispostos a vê-las compartilhadas com desconhecidos, cuja autenticidade do interesse podem questionar justamente em função da ausência de vínculos fa-miliares. Nesse sentido, é preciso notar que o parentesco forja não apenas uma unidade de ação, mas nexos mais amplos de identidade atrelados a processos de legitimação. Ele surge como um poderoso unificador, a partir do qual desconfianças arrefecem, marcadores identitários poten-cialmente diferenciadores (como a classe, por exemplo) e atritos resultantes da atuação coletiva (referentes a desentendimentos pessoais ou a divergências políticas) tendem a ser minimizados. Esses elementos são efetivamente apagados nas inúmeras vezes em que se evoca tal coletivo pu-blicamente com o intuito de igualar a todos por seus direitos e suas dores, vistos como resultado de uma mesma injustiça vivida e um mesmo desejo por justiça.

No entanto, esse movimento de unificação não deve ser visto apenas como uma estratégia de legitimação política em espaços públicos. Em primeiro lugar, porque apesar da legitimidade conferida pelo parentesco, nem sempre a unificação em relação a essa categoria im-plica em efeitos considerados positivos pelos atores sociais mais engajados. Para muitos deles, a eficácia política do parentesco sofre constantes riscos de ser abalada pelas discordâncias internas ao movimento. Nas ocasiões em que as diferenças surgem, teme-se tanto que a exposição das fissuras crie dúvidas em relação à coesão e força política da comunidade, quanto que seu ocul-tamento permita que atores considerados antagônicos mobilizem o parentesco a seu favor. Mais especificamente, que eles utilizem manifestações de apoio individuais de alguns familiares para legitimar medidas consideradas polêmicas no interior da comunidade.

Uma interlocutora me relatou um episódio bastante representativo desses riscos re-lacionados a mobilização política do parentesco. Ao participar de uma série de reuniões, con-vocadas para decidir se “os familiares” permaneceriam em uma comissão institucional na qual possuíam representação, ela se colocou entre aqueles que defendiam deixar aquele espaço de modo a não referendar um trabalho que lhes parecia propositalmente incompetente. Após nar-rar o enorme desgaste pessoal vivido ao longo do forte atrito estabelecido entre familiares du-rante os debates, ela desabafou: “brigar com o Governo é fácil, difícil é brigar com familiar”. A meu ver, sua assertiva alude principalmente ao aspecto moral e afetivo da questão. A unidade

a CNV tomaria o depoimento de um agente envolvido na morte do irmão de uma militante da Comissão de Familiares. Convidadas pela própria, que não fazia questão da restrição, Victória e Beth me levaram junto com elas, sem que houvesse qualquer questionamento em relação a minha presença. O depoente, entretanto, não compareceu.

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entre familiares, desde um ponto de vista político, é uma maneira de garantir a força e a legi-timidade necessárias para um embate considerado assimétrico (e, portanto, difícil em termos políticos) com o Governo. A centralidade do parentesco se torna relevante não apenas porque ser familiar é aquilo que em última medida os une, mas porque permite construir uma espécie de contra-assimetria. Os familiares, enquanto atores sociais em busca de justiça, podem se ver em superioridade moral em relação àqueles que acusam de dificultar o alcance de suas demandas. Este aspecto, sem dúvida, adquire relevância política nas disputas mais cotidianas. Mas, o en-tendimento da questão não pode se restringir a este ponto. Brigar com familiar também é difícil porque movimentar o parentesco não possui apenas uma funcionalidade política pragmática.

Como bem apontou Butler (2009), falar de direitos implica, muitas vezes, em pen-sá-los como pertences de sujeitos sociais autônomos. Em contextos reivindicatórios, torna-se importante para a construção de legitimidade frente aos aparatos legais apropriar-se de uma linguagem que afirme a comunidade política como uma associação de indivíduos com traços e direitos compartilhados. No entanto, essa definição restrita deixa de considerar como esses atores estão ligados por mais do que interesses (e direitos) comuns. Processos reivindicatórios são compostos também por fortes tramas emocionais, em que a paixão, o sofrimento, a raiva e inúmeros outros sentimentos atuam estabelecendo laços que, no dizer de Butler, são capazes de nos arrancar de nós mesmos, “nos liga a outros, nos transporta, nos desintegra, nos envolvem em vidas que não são as nossas” (BUTLER, Op. Cit.: 51). Para a autora, ao contrário de constituir uma situação solitária e despolitizante, a dor permite elaborar em muitos e complexos sentidos uma comunidade política. Ela faz com que os sujeitos sociais se percebam não apenas como seres autônomos, mas também como seres dependentes e vulneráveis, pois “se meu destino não é original, nem finalmente separável do teu, então o “nós” está atravessado por uma correlatividade a qual não podemos nos opor com facilidade” (BUTLER, Op. Cit.: 49).

Trata-se de pensar as relações não como algo que os atores possuem, mas que os constituem e por meio das quais são despossuídos. Sob este aspecto, as perdas ensinam que os laços constituem o que somos. Privilegiando-o, podemos olhar para a comunidade imagina-da entre familiares não apenas como um ator coletivo que se afirma politicamente em arenas públicas, mas como redes de relações de compromisso, solidariedade e companheirismo que permitem variadas e profundas formas de envolvimento e identificação cotidianas. As conquis-tas e dificuldades de cada um, por menores que sejam, são assumidas como de todos. Elas aproximam, emocionam e motivam. Uma comunidade composta pelas conexões entre vivos e mortos que evocam afetos e memórias domésticas, percepções sobre o sagrado e a religiosidade, entre outros elementos que dizem respeito às múltiplas suscetibilidades dos atores envolvidos. É através do parentesco (e da dor a ele associada) que se desenham variadas formas de passar do plano mais individual para o coletivo e vice-versa, em uma espécie de tecitura diária das relações entre vivos e mortos que sustentam os sentidos de comunidade, mas também definem espaços

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de sofrimento, arbítrio e direito percebidos como de cada família/familiar, e que precisam ser respeitados. Voltando à reflexão de Butler (2009), o que observamos é uma luta por direitos (individuais, familiares), mas também por uma concepção do familiar como pessoa integrante dessa comunidade, cotidianamente afetado e capaz de afetar os demais de formas que não se pode controlar, daí o sofrimento moral embutido no ato de “brigar com familiar”. Os familiares se veem como comunidade não apenas porque sofrem separadamente a mesma dor, mas também porque se afirmam capazes de sofrer uns as dores dos outros.

Essa reflexão me recorda o mal-estar manifestado por Victória diante do cartaz de divulgação de um evento que trazia, em meio a um conjunto de fotografias de mortos e desapa-recidos, algumas fotos cadavéricas. São imagens provenientes dos IMLs ou dos extintos órgãos de segurança, encontradas ao longo de pesquisas feitas nos arquivos da repressão. Algumas delas podem ser vistas no anexo final do Dossiê dos mortos e desaparecidos. Por serem extremamente impactantes, trazendo a nu corpos machucados, rostos deformados, e marcas evidentes de tor-tura, estas imagens não costumam ser usadas em materiais de divulgação e atividades públicas. Na maioria das vezes, eles servem às perícias, realizadas todas as vezes em que o andamento dos casos em processos e comissões parece exigir. Estão associadas, portanto, à necessidade de comprovação das atrocidades do passado. O uso das imagens de mortos e desaparecidos para divulgação da luta e sensibilização da sociedade geralmente se apoia naquilo que Leite (2004) denominou de fotos-símbolo. Fotografias selecionadas e fornecidas pelas famílias em um deter-minado momento da luta e que passaram a constar reiteradamente nos cartazes e materiais de divulgação. Através desse recurso, os mortos e desaparecidos possuem suas imagens associadas a uma mesma fotografia (ou uma variação de duas ou três imagens) escolhida pela família e que ressaltam determinadas características valorizadas na construção da figura da vítima (be-leza, juventude, liderança, seriedade, etc.). Como bem coloca Sontag (2003), a despeito de ser tomada como um registro do real, a fotografia objetifica, transformando uma pessoa em algo que se pode possuir e sua aparência em algo controlável. Se nesse processo embelezar é uma função clássica da fotografia, completa a autora, enfear é resultado de um uso mais moderno das imagens. Muitas vezes relacionadas a objetivos pedagógicos, elas pretendem denunciar, chocar, sensibilizar e, preferencialmente, provocar uma reação. Porém, Victória ficou surpresa diante do que considerou ser um uso inapropriado, comentando que, sob nenhum propósito, elas pode-riam ser mobilizadas sem a autorização das famílias, por respeito ao seu sofrimento.

Aproveitando o ensejo de seu comentário, lhe contei sobre uma situação que havia vivenciado algumas semanas antes, em Belo Horizonte. Chegando à sede de uma organização política da cidade em companhia da irmã de um desaparecido, nos deparamos logo na entrada com um enorme painel preto que reproduzia as fotografias do anexo final do Dossiê. Conhecendo bem aquelas imagens, eu as reconheci de longe e, procurando me defender do confronto com elas, passei desviando o olhar. Porém, logo tive que voltar para observá-las, quando a familiar

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anunciou que procuraria por seu irmão entre as fotografias. Ela logo conseguiu nos mostrar não apenas seu irmão, como sua cunhada. Poucos minutos depois, começou a passar mal e deixou o local da reunião. Mesmo admitindo que as imagens chocantes tenham uma função pedagógica que justifique sua exposição como parte da construção da causa, as pessoas possuem meios de se defender do que perturba, conforme argumenta Sontag (Op. Cit.). Se habituam ao horror ou evitam olhá-lo, como eu mesma fiz. Mas, para alguns, “a repetida exposição àquilo que choca, entristece, consterna não esgota a capacidade de reação compassiva” (SONTAG, 2003: 70). Ergue-se então um dilema ético entre a importância de se construir uma memória das atrocidades, usando as imagens como rotas de referência sobre o que a sociedade escolhe pensar (SONTAG, Op. Cit.), e a impossibilidade de que aqueles que querem chorar tais mortes banalizem essas imagens. No centro desse dilema resta a oposição entre “familiares” e “os outros”, em que os primeiros observam o sentimento de perda como base para a constituição de uma comunidade. A partir dele, tornam o luto uma forma pública de assumir sua própria vulnerabilidade, conver-tendo-a em responsabilidade coletiva pelas vidas uns dos outros (BUTLER, 2009).

O conjunto das etnografias sobre “familiares de vítimas” citadas acima argumenta que são as mães aquelas que encarnam, em muita oportunidades, essa ideia de sofrimento re-sistente à elaboração que seria caracterizador do familiar. Considerado o mais significativo e estreito entre os laços primordiais, seja pelos próprios familiares envolvidos, seja pela sociedade de forma geral, o recurso à maternidade movimentaria pressupostos arraigados na cultura ju-daico-cristã (LEITE, 2004), sobretudo nossa percepção da relação mãe-filho como uma díade inseparável (VIANNA, 2013). Algo que se expressa no amplo consenso sobre a superioridade do sofrimento materno que, segundo bem chamou atenção Lacerda (2012), contrasta com a opacidade (ou mesmo a dispensabilidade) de explicações sobre como essa dor motiva o enga-jamento político. Como a autora salienta, quando questionadas sobre o envolvimento na busca por justiça, as respostas das “mães de vítimas” costumam girar em torno da ideia de que “luta-se porque é mãe”. Se os familiares são identificados pela dor, por esta mesma via as mães parecem se sobrepor aos demais, evocando, com legitimidade ímpar, os mortos como capital simbólico. A morte dos filhos permite que essas mães construam novas subjetividades, como se tornar mili-tantes, passando não apenas a buscar o filho, mas a defender seus ideais e sua trajetória política. Zuzu Angel, mãe do desaparecido Stuart Edgar Angel Jones, em seu depoimento inacabado “Minha maneira de morrer”, declara ter iniciado uma militância tardia:105

105 Não por acaso, Zuzu Angel se tornou a mais conhecida “mãe de desaparecido político” no Brasil. Estilista no Rio de Janeiro, ela possuía sua própria marca de roupas que atendia mulheres ricas da cidade e também fazia sucesso no exterior. Após o sequestro de seu filho, em 1971, Zuzu se dedicou a denunciar a Ditadura dentro e fora do país, mobilizando seu nome, seus contatos e a cidadania norte-americana de seu filho. A esti-lista foi assassinada em 1976, em um acidente forjado por agentes da Ditadura, ocorrido na saída do túnel que hoje leva seu nome, no Rio de Janeiro. Além dessa homenagem, a história de Zuzu foi retratada em diferentes meios, como na música Angélica, de Chico Buarque; no filme Zuzu Angel, de Sérgio Rezende; e no livro Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho, que traz, na íntegra, o depoimento que escrevia quando foi assassinada.

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Agora tenho que entrar nessa política e virar militante. Que jeito? A procura do meu filho, e depois dos filhos das outras, me envolveu completamente. (…) E a dúvida, a incerteza. A tortura era isso também. A incerteza. Vivo e morto ao mesmo tempo. Qualquer pista que davam eu seguia em frente, procura-va pessoas estranhas, parentes de presos, querendo saber mais. Sofrer mais (VALLI, 1987:31).

Em outra frase atribuída a Zuzu, o engajamento materno é explicado da seguinte maneira: “coragem tinha meu filho, eu tenho legitimidade”.106 Como chamam atenção Vianna e Farias (2011), tamanha legitimidade motivaria a constituição de um mandato simbólico mater-no, reivindicado mesmo nos casos em que as mães não se fazem presentes. Atualmente, este mandato parece especialmente importante para os “familiares de mortos e desaparecidos”, na medida em que os ascendentes das vítimas, falecidos ou com idade bastante avançada, estão praticamente ausentes da cena pública. Hoje, são prioritariamente as viúvas (viúvos em menor quantidade), irmãos, filhos, primos e sobrinhos que levam adiante a luta, declarando-se muitas vezes “herdeiros” ou compromissados com os pais e mães considerados iniciadores da luta. Essa ausência talvez explique a homogeneização da figura do familiar nesse contexto, na maior parte das vezes, tratado em igualdade, independentemente de ser mulher ou homem, de sua relação com o morto ser por consanguinidade ou afinidade, direta ou colateral.

Voltando ao filme Memória para uso diário, uma série de cenas são exemplares dessa evocação do sofrimento materno, tanto protagonizadas por parentes de vítimas da Ditadura, quanto da violência policial.107 Para ficarmos com os primeiros, o documentário mostra os ca-sos de Romildo Maranhão do Vale, irmão do desaparecido Ramires Maranhão do Vale, e de Gilberto Molina, irmão do desaparecido Flávio Molina. A história da participação dos dois como os membros mais ativos de suas respectivas famílias na busca por seus irmãos e na locali-zação de ambos os corpos – o primeiro na vala de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, e o segundo na vala de Perus, em São Paulo – é contada sem esquecer o destaque para a figura de suas mães. Filmados no cemitério de Ricardo de Albuquerque, em frente à vala clandestina,

106 A frase, dita em uma cena do filme Zuzu Angel, aparece em inúmeras referências como algo efe-tivamente dito por Zuzu em vida.

107 As duas mães de vítimas da violência policial que aparecem no filme – uma delas integrante do então movimento Posso me identificar?, mãe de uma das vítimas da Chacina do Borel, evento que deu surgimento ao grupo (FARIAS, 2011) - mobilizam igualmente a dor materna como legitimador moral e elemento que explica sua mobilização. Em suas palavras: “se eu sempre briguei por eles vivos, porque que depois que morre eu vou deixar de lutar? Eu quero justiça!”. E ainda: “Quando a gente tem um fi-lho, eu acho que não tem coisa que se compare. Agora, quando você perde, você é amputada, você fica amputada, então alguma coisa você tem que fazer pra compensar. Eu acho que essa luta que compensa, a gente tem que transformar a dor em luta”. Tal como argumenta Vianna, o recurso gramático, simbólico e visual à maternidade “aparece como linguagem não apenas da perda insuportável, mas também dos processos de reinscrição de si no mundo e do próprio mundo como algo que agora precisa ganhar novo sentido e que passa a ser lido e descrito em outros termos” (2013: 232).

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Cecília Coimbra e Romildo têm o seguinte diálogo a respeito do momento da descoberta da vala e do nome do Ramires entre os arquivos do IML, indicando seu sepultamento no local:

Romildo: a gente entrou no IML uma sexta-feira à noite. Eu liguei pros meus pais e minha mãe acabou vindo a falecer naquele mesmo final de semana de um AVC inexplicável. Ela era uma pessoa saudável. Eu acho que a emoção.... mamãe era... papai não, papai era comuna antigo, né? Sindicalista, materialis-ta, meio stalinista até hoje, né? Mamãe não, mamãe era uma pessoa muito... como eu diria? Religiosa... aquela coisa toda. Eu acho que no fundo, no fundo, minha mãe, ela... apesar de todas as evidências que nós tínhamos e tal, eu acho que no fundo ela guardava uma esperança secreta, totalmente... não tinha base real nenhuma ela ter essa esperança. Mas, ela guardava a esperança de que o filho estivesse vivo ainda.Cecília: como todas as mães, né?Romildo: aquele negócio de não ver o corpo, né? Acho que é um negócio muito de mãe, esse negócio, né? De ver o corpo, tem que enterrar, tem que ver o corpo.Cecília: é aquela coisa, a invenção da figura do desaparecido político que foi feita pela Ditadura brasileira e exportada para as outras ditaduras latino-a-mericanas, isso é de uma perversidade atroz, né Romildo? A gente que lida... você é familiar, eu que não sou familiar, sou ex-presa, mas que lido com os familiares, é uma coisa de uma perversidade, porque você continua torturando o cara até a morte, o familiar (MEMÓRIAS, 2007: 53 min.).

Essa ligação “muito de mãe”, irracional porque contra todas as evidências acumu-ladas durante a busca, teria levado a mãe de Romildo à morte quando houve a confirmação do destino de seu filho. Dois movimentos chamam atenção nesse diálogo: por um lado, a visão do sofrimento (aqui associado ao parentesco e, especialmente à maternidade) como algo profun-damente singular, por outro, como elemento capaz de construir pontes para a generalização. O aspecto inacessível da dor familiar se condensa na imagem da mãe que morre a mesma morte do filho, torturada pela dor. Imagem extrema em que a morte muitas vezes assumida metaforica-mente pelos vivos como mortificação, conforme bem colocou Lacerda (2012), adquire literalida-de. A esperança escondida e infundada, a morte súbita e inexplicável apontam, por um lado, essa profunda intimidade da dor que é vivida e suportada de formas distintas e muito peculiares pelos indivíduos e parece inacessível por outro meio que não a própria experiência. Nesse caso, nem mesmo Cecília, histórica militante da causa, ex-presa torturada que perdeu inúmeros amigos nesse processo, sente-se autorizada a igualar sua dor a de um familiar. Por outro lado, a partir dessa visão mais ampla sobre a existência de uma dor de “todas as mãe” é possível falar sobre a perversidade, nas palavras de Cecília, de todas as ausências que compõem um padrão de violência específica, uma tecnologia exportável, uma injustiça histórica que se torna sua tarefa denunciar.

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Na cena seguinte do documentário, Gilberto aparece ao lado de Suzana Lisboa, Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, e sua irmã, Criméia Schmidt de Almeida,108 todas conhecidas integrantes da Comissão de Familiares, em uma reunião com o Ministério Público por ocasião da identificação da ossada de Flávio pela perícia antropológica, ocorrida em 2005, quin-ze anos depois da abertura da vala. Tal identificação até hoje não ocorreu no caso de Ramires. Ao falar sobre o fato, Gilberto o classifica como “o fim de um sofrimento que vem torturando a família” desde o desaparecimento de Flávio. Na cena seguinte, Gilberto aparece ao lado de Victória, durante uma visita feita por familiares a um conjunto de ruas batizadas com nomes de desaparecidos no Rio de Janeiro, em que conversam sobre a saúde de sua mãe. Os comentários de Gilberto vão no sentido de assegurar que a mãe se enfraqueceu no desgaste provocado pelos 34 anos em que a família aguardou a localização e identificação do filho. Enquanto fala, o do-cumentário mostra cenas de sua mãe, muito idosa, durante a aguardada cerimônia de enterro da ossada de Flávio.109 Nesse caso, trata-se de representar a mãe ainda viva, que já não pode agir pela debilidade que o próprio sofrimento construiu, mas cuja dor sustenta a obrigação de conti-nuar atuando. Obrigação advinda de ligações morais e emocionais que perduram mesmo após a morte da mãe, como no caso de Romildo ou de Beth, que me contou ainda manter em casa o mesmo número de telefone usado na época em que o irmão desapareceu, em respeito ao desejo da mãe quando viva.

Todas essas histórias apontam a complexidade de entender como se forja uma co-munidade a partir dos laços constituídos pela dor. Argumentando nesse sentido, Butler (2009) questiona a perspectiva freudiana de que superar signifique ser capaz de esquecer, substituindo por outros os laços perdidos. A autora sugere que elaborar a dor talvez consista em aceitar que a perda sofrida implica em uma transformação, cujo resultado não se pode conhecer antecipa-damente. Algo semelhante à proposição de Das (2007) sobre encontrar novas formas de estar no mundo. Reconhecer a correlatividade entre familiares, identificar-se profundamente com o sofrimento, admitir a própria vulnerabilidade e a perda como condição objetiva e subjetiva para o reconhecimento de uma comunidade entre familiares, revelar-se militante são elementos que podem fazer parte desse processo.110 Contudo, ele não impede a percepção de que há diferen-

108 Suzana e Criméia são viúvas de desaparecidos. A primeira localizou seu companheiro, Luís Eurico Tejera Lisboa, na vala de Perus. Amelinha tem como parente desaparecido o cunhado que nunca che-gou a conhecer, André Grabois, companheiro que Criméia conheceu durante a Guerrilha do Araguaia. André é irmão de Victória que possuí também o pai e o primeiro marido desaparecidos na Guerrilha. A mãe de Victória, Alzira Grabois, foi militante da luta dos familiares até sua morte. Segundo Victória, no livro que escreveu recentemente sobre a trajetória de seu pai (GRABOIS, 2012), Alzira teve grande importância na construção de laços afetivos e militantes entre as famílias Teles e Grabois, pontes que também se estendem entre a Comissão de Familiares e o GTNM/RJ, como veremos no Capítulo 5.

109 Na entrevista que me concedeu, Victória comenta que a mãe de Flávio teria morrido 4 meses depois de enterrar o filho. Em sua interpretação, ela estaria apenas esperando por isso para “morrer em paz”.

110 Aqui lembro-me do filme Que bom te ver viva!, em que a cineasta Lúcia Murat discute a sobrevi-

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ciações entre as formas como cada familiar/família se reinscreve no mundo a partir da tragédia, nem é contraditório com a hierarquização das diferentes formas de constituir o luto.

Em um debate sobre a comissão da verdade ocorrido no Sindicato dos Professores no Rio de Janeiro, uma representante da CNV foi convidada a falar na mesma mesa em que Victória. Sua fala consistiu em uma explanação sobre o funcionamento da comissão, procu-rando também enfrentar algumas das críticas que, já naquele momento inicial dos trabalhos, vinham sendo feitas. O debate aconteceu algumas semanas após a primeira audiência pública da comissão na cidade, ecoando os desentendimentos e confrontos ocorridos naquela ocasião. Recuperando a fala de outro membro da CNV durante esta audiência, a comissionada argu-mentou que seria preciso superar “as questões pequenas para não fazer da comissão apenas um choro amargo sobre nossas perdas”. Embora seu objetivo fosse conclamar a comissão como órgão capaz de construir uma narrativa global sobre a Ditadura que adquirisse status de verdade autorizada frente à sociedade, Victória, como outros familiares na audiência anterior, ficou muito incomo-dada com aquela colocação. Em sua resposta pública, argumentou que a CNV é resultado da luta dos familiares, completando:

Quando você fala em chorar, eu já chorei muito, hoje não choro mais. Eu deveria chorar mais, às vezes fico com raiva de mim por isso. Mas, eu não fico em casa chorando, eu sou do GTNM/RJ, eu sou presidente do grupo, eu estou na luta pela memória dos desaparecidos, na frente da luta por Memória, Verdade e Justiça! (caderno de campo 1, 24/08/12). 111

O repúdio de Victória à afirmação, que compreendeu como uma desvalorização do luto por sua associação à inação, ilumina uma das formas mais recorrentes por meio da qual a comunidade de familiares é entrecortada: quando é identificada com o grupo mais restrito dos “familiares que lutam”. A própria existência das organizações é um elemento central na

vência de mulheres que militaram contra a Ditadura partindo de sua própria história e de suas amigas (AZEVEDO, 2013b). Ao falar sobre a morte de seu companheiro, Juarez Brito, Maria do Carmo Brito faz uma distinção entre dizer “eu sofro” e “eu sou o sofrimento”. No primeiro caso, estaríamos diante de uma postura individualista, em que a pessoa olha apenas para sua própria experiência, no segundo caso, de alguém disposto a perceber que sua dor é igual de muitas outras pessoas que sofreram e sofrem in-justiças no mundo, capaz, portanto, de transcender sua experiência a partir dessa identificação profunda com o sofrimento.

111 Ouvi mais de uma vez Victória se queixar de seu pranto esgotado e, de fato, não me lembro de tê-la visto chorar em nenhum momento durante a pesquisa. Surpreendi-me, então, ao vê-la chorando, extre-mamente comovida, no documentário Memórias para uso Diário, durante o enterro de Flávio Molina. Talvez chorando a dor de outra família, Victória tenha se permitido chorar a sua própria. Outra situação semelhante aconteceu com ela durante um evento ocorrido no período da minha pesquisa de campo, mas ao qual eu não estive presente. Victória me contou que durante a cerimônia de reparação à família de Carmem Lapoente (integrante do GTNM/RJ e mãe do Cadete Lapoente, morto por violência e negligência durante treinamento militar na Academia Militar de Agulhas Negras, em 1990), ela se emo-cionou muito, conseguindo mais uma vez chorar.

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produção dessa diferenciação que tem como consequência mais evidente o apagamento dos fa-miliares que não lutam, como também observou Lacerda (2012) em sua etnografia. No interior das organizações, ser familiar é imediatamente entendido como possuir uma trajetória de sofri-mento, privações e perda de direitos, como exemplifica o caso dos irmãos citados no início do capítulo, que estabelece laços e lhes reserva um lugar a priori entre os que lutam. Contudo, em um processo que, contando desde a Anistia, se estende por mais de três décadas, nem todos os familiares que se engajaram nessas organizações em um determinado momento, mantiveram essa atuação ao longo do tempo. Muitos interromperam a participação nas organizações, outros começaram mais tardiamente, muitos nunca a exerceram constantemente, embora, em virtude de seus casos particulares tenham permanecido em contato com elas, outros nunca tiveram qualquer relação. Apesar disso, é comum que, ao adentrar a cena pública para falar sobre o tema, um familiar reivindique a Comissão de Familiares, os Tortura Nunca Mais ou a “luta dos familia-res” como sua, mesmo que isso não se expresse em uma participação pessoal desse familiar nes-sas organizações.112 É comum também ver familiares atribuírem a condição de “representantes da causa” àqueles que são reconhecidos por uma trajetória de engajamento nas narrativas sobre a luta constituídas hegemonicamente ao longo dos anos, tal como aponta a lista de “familiares que lutam” na exposição já citada.113

112 Durante a 61ª Caravana de Anistia, realizada na PUC do Rio de Janeiro, presenciei uma situação em que uma familiar demonstrou seu incômodo com estas classificações. Conforme já mencionei, as carava-nas são realizadas pela CA para julgar pedidos de anistia política. Como de costume, essa sessão iniciou com um vídeo institucional sobre a anistia no Brasil. Assim que a transmissão foi encerrada, a jornalista Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel, se levantou nas primeiras fileiras do auditório e, extremamente emocionada, acusou a CA de fazer “uso político da morte”. Para a jornalista, o vídeo não tratava todos os personagens importantes para aquela história, mas apenas aqueles que hoje tem projeção política. Sua mágoa era sobretudo com o fato de sua mãe, a quem considera pessoa fundamental no início da luta por MVJ, não ter sido citada. Considerava que o fato dela nunca ter participado de nenhuma organização (ela foi assassinada em 1976) a tornava uma pessoa incompreendida. Em meio a sua revolta, disse: “os militantes nunca compreenderam a luta da minha mãe”. Contudo, após se recuperar desse primeiro impacto, ela pediu a palavra para se retratar, dizendo que havia sido em alguma medida injusta, pois o GTNM/RJ havia ajudado na busca por seu irmão e respeitava a memória de sua mãe. De fato, Zuzu é considerada pelo movimento de familiares como uma pessoa importante na história da luta, mas por sua morte prematura e militância independente, Hidelgard parecia se ressentir de uma valorização aquém de sua expectativa (caderno de campo 1, 17/06/12).

113 Outro exemplo dessa nomeação dos “familiares que lutam” está na “Carta Aberta à CNV” entregue aos membros da comissão por ocasião da primeira de duas reuniões realizada entre o órgão e “os fami-liares de mortos e desaparecidos políticos”, durante o período de seu funcionamento. A carta, assinada por cerca de 40 familiares, apresentava as demandas do movimento e atribuía a existência da comissão da verdade no Brasil à persistência dos familiares iniciadores da luta, hoje falecidos, dentre os quais cerca de 20 aparecem nominalmente citados. Estou ciente de que a própria estratégia adotada durante a escrita dessa tese, de ocultar nomes de familiares menos expostos, reproduz essa hierarquização que torna alguns familiares mais visíveis do que outros, conforme mencionei na introdução.

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Nesse contexto, a trajetória política se torna também um capital simbólico. Uma dinâmica de apagamento se expressa na redução da ideia de que “luta-se porque é familiar” para a firmação de que “familiar é quem luta” (LACERDA, Op. Cit.). De fato, cheguei a ob-servar algumas situações de questionamento da reivindicação pública da condição de familiar por parte de certos atores que não eram reconhecidos por seu engajamento no movimento. Nesses comentários, nunca públicos, sempre realizados em conversas paralelas e cenários mais restritos, chegar a dizer que um sujeito “não é familiar” não significa necessariamente ques-tionar seus laços de parentesco com o morto, nem mesmo sua dor, mas apresentar restrições à sua apresentação pública enquanto tal, assumindo uma representação como porta-voz do mo-vimento. Se não é um “familiar que luta” seria inapto a falar por todo o movimento. Segundo esse entendimento, estes atores não teriam o mesmo domínio sobre os conhecimentos e habi-lidades acumulado pelos militantes mais envolvidos com aquilo que é percebido como a luta coletiva. Essa experiência, em contrapartida, autorizaria os “familiares que lutam” a reivindi-car todos os mortos e desaparecidos, inclusive aqueles que não tomam como seus familiares. Em uma sessão da CVRP sobre o caso de um desaparecido, o deputado Adriano Diogo, que presidia os trabalhos, perguntou a um dos depoentes, amigo do desaparecido, sobre os fami-liares que não estavam presentes na sessão. O deputado queria saber se havia parentes vivos e se eles tinham “consciência política”. Ante a resposta que girava em torno da pouca disposição dos familiares em reivindicar publicamente a memória do desaparecido, Amelinha pediu a palavra, assegurando:

O caso não foi esquecido. A Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos sempre recuperou sua história e divulgou denúncias do que houve com ele. Ele estava na Vala de Perus e as famílias sempre buscaram. Pode não ter sido a família dele, mas a Comissão de Familiares sim. Ele foi identi-ficado graças a nossa luta. Nós que fomos buscar nos arquivos do IML e do Dops. Ele foi recuperado e enterrado na sua terra em 1991. Então, eu quero que isso fique registrado (caderno de campo 2, 21/02/13).

Aqui a sobreposição entre parentesco e trajetória política configuram sentidos es-pecíficos para as noções associadas a esses domínios. Ao mesmo tempo em que “familiar” se constitui como uma categoria do sistema de classificação da militância de direitos huma-nos, os sujeitos vinculados aos mortos e desaparecidos por reconhecidos laços de parentesco também podem a ser diferenciados em função de sua “militância” e “consciência política”. A percepção dessas diferenças, contudo, não contradizem o reconhecimento da comunidade política e moral forjada entre familiares que, conforme afirmei anteriormente, é imaginada a partir da delicada tecitura entre os laços e emoções creditados ao parentesco, percebidos como naturais e atemporais, e as relações e afetos traçados pelo fazer cotidiano da luta. Tecitura que se faz também na passagem de cada enredo específico de morte, dor familiar, busca e luto para a conformação da causa dos “mortos e desaparecidos políticos” a partir da qual os

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familiares passam a ser reconhecidos nas arenas públicas como atores políticos e, de conjunto, como uma comunidade “que luta” e é beneficiária de direitos. Tal como argumenta Vianna (2013), é no trânsito constante entre os casos e dilemas particulares, a causa, as narrativas e as trajetórias coletiva que a comunidade por vezes se concentra na figura das organizações e seus representantes, atores que se destacam pela experiência no desvendamento da opacidade da trama das instituições da administração pública. Nesse processo também as narrativas sobre a imperatividade da solução específica para os casos se mistura a outras sobre a resiliência daqueles que veem na luta uma missão, um compromisso com a comunidade tão permanente e durável quanto os laços que a constituem.

Ao me lembrar do sofrimento do filho de desaparecido que conheci no meu pri-meiro dia no GTNM/RJ, recordando também sua fala na primeira audiência da CNV no Rio de Janeiro, em que ele pedia a localização e o esclarecimento da morte do pai (a tão esperada “solução” que colocaria um ponto final na “tortura da incerteza” e que, encerrados os trabalhos da CNV, ele ainda não teve), penso também nas sensações que experimentei ao pesquisar as pastas que arquivam notícias de jornal sobre os mortos e desaparecidos no Grupo. Manuseando as reportagens minuciosamente catalogadas em pastas com folhas de plástico, era possível acompanhar a repercussão e a noticiação dos casos ao longo dos anos, histórias por vezes expostas nos seus mais terríveis detalhes. Avançar naquelas pastas era como me embre-nhar em duas temporalidades. Uma era progressiva, marcada pela passagem dos dias e anos impressas nos jornais, apontando um grande acúmulo de iniciativas: localização de cemitérios, tentativas de identificação, recuperação de biografias, entrevistas com familiares e testemu-nhas, ações institucionais de reconhecimento e reparação, além de inúmeros “depoimentos exclusivos” de agentes do regime, “documentos inéditos” e outros elementos, muitas vezes, apontados como aqueles que vinham para “resolver o caso” ou “desmentir a versão oficial da Ditadura”. Outra temporalidade era cíclica, parecia marcada pela grossa camada de pó que encobria aquelas pastas, sujando meus dedos. Ela simbolizava a sensação de um tempo que acumula, mas não avança. A repetição das iniciativas, dos dados, dos documentos inéditos e das declarações exclusivas, fazia-me voltar para conferir a sensação de que já os havia visto antes. Ante as muitas repetições, as tais soluções mostravam-se provisórias, questionáveis, fazendo com que eu mesma me questionasse quantas vezes as tais “versões oficiais” precisa-riam ser desmentidas para que fossem socialmente relevantes. Iniciativas constantemente se repetindo sem avanços que apontassem a resolução efetiva dos casos. Os familiares têm razão. É impossível não se angustiar.

Como contraste, lembrei-me da relativa serenidade com que Amelinha me explicou que, independente daquilo que possa ser percebido como solução para um caso ou outro, “os fa-miliares” se manterão sempre em luta: “não tenho ilusões que isso vá resolver, depois das comissões da

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verdade nossa luta continua. Foi o que aprendemos com as Madres argentinas, a única luta que se perde é aquela que se abandona”.114 Resistência que, evidentemente, não excluí o sofrimento, conforme pretendo aprofundar no último capítulo da tese.

* * *

Até esse ponto, procurei contextualizar o movimento dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos” a partir de sua inserção nos debates públicos acerca da Ditadura no Brasil. Com isso, tentei mostrar como noções associadas ao parentesco se somam a outras relacionadas ao sofrimento e à militância política para compor um sistema simbólico a partir do qual as diferentes experiências de perda ganham sentido comum, levando os atores a se percebem como uma comunidade política e moral. Na próxima seção, aprofundo esse tema, me voltando para os processos de construção de certas mortes e desaparecimentos como casos, visando analisar a transformação de “os mortos e desaparecidos” em um tema “de Estado” e discutir como as disputas que esse processo acarreta corroboram para forjar as inúmeras percepções de antagonismo político entre “os familiares” e o “Estado”.

114 Caderno de campo 3, 28/08/13.

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3.“Os nossos mortos e desaparecidos”

Mas os mortos não pesam todos o mesmo, está claro. (Jorge Semprún, A Longa Viagem)

Era por volta de 9 horas quando estacionamos o carro nas imediações do cemitério de Ricardo de Albuquerque, Zona Norte do Rio de Janeiro. Eu, Victória e outro militante do Grupo chegávamos para participar do culto ecumênico em homenagem aos “mortos e desaparecidos políticos”. A movimentação na entrada do cemitério já era intensa. Além do fluxo de carros estacionando e desembarcando passageiros nas proximidades do portão principal, uma grande quantidade de barracas e vendedores ambulantes de flores, velas, lanches, bebidas e outros produtos ocupavam toda a calçada, disputando a atenção dos muitos visitantes que compareceriam naquele Dia de Finados.

Ao nos aproximarmos das barracas, encontramos dois religiosos anglicanos que es-tiveram envolvidos na organização e convocação do evento. Um deles eu havia conhecido dias antes na sede do GTNM, quando acertaram detalhes da cerimônia.115 Enquanto conversávamos,

115 A cerimônia é organizada anualmente em alguns dos cemitérios onde foram localizadas valas comuns que abrigam desaparecidos políticos no país. A iniciativa vem de entidades religiosas ecumênicas, como o Conselho Latino-americano de Igrejas, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, o Koinonia, além de grupos de direitos humanos e familiares de vítimas da Ditadura e da democracia. Em geral, comparecem familiares de mortos e desapareci-dos, da violência policial atual, ex-presos políticos e grupos religiosos católicos, protestantes, espíritas, budistas e de matriz afro-brasileiras. Esse é possivelmente o único evento periodicamente realizado em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos que incorpora com centralidade elementos e atores religiosos. Ao contrário de algumas etnografias sobre familiares de vítimas citadas nessa tese (por exemplo, Leite e Birman, 2004; Lacerda, 2012), as manifestações coletivas relativas aos mortos e desaparecidos políticos são laicas, não privilegiando ele-mentos mais diretamente identificados à religiosidade, o que não implica afirmar que nas narrativas e percepções particulares de familiares sobre tais mortes, as questões religiosas estejam ausentes. No entanto é possível afirmar que os militantes mais ativos do movimento de familiares sejam, em boa parte, adeptos de uma visão de mundo ateia, o que não contraria o seu desejo de cultuar os mortos. Conforme lembra Ariès (2012), o culto dos mortos se tornou “a única manifestação religiosa comum aos crentes e aos descrestes de todas as confissões” (p. 203). Para o autor, no Ocidente, o culto dos mortos, tal como o conhecemos hoje, um culto do túmulo, do corpo e das lembranças, é um fenômeno moderno, fruto de uma mudança no sistema de atitudes diante da morte. Tanto Ariès, quanto Elias (2001) destacam que estas mudanças, por um lado, estão relacionadas a um processo de laicização (que passa, por exemplo, pelo fim dos enterros no interior e na circunscrição das igrejas ou pela diminuição do sistema de crenças sobrenaturais contra os perigos do morto e da morte) e, por outro, por uma progressiva expulsão da morte e do luto da vida cotidiana. Percebida como tabu (Ariès, Op. Cit.) ou como perigo (Elias, Op. Cit.), a visão da morte seria ameaçadora da ideia de que ela se tornou um evento controlado pelas sociedades modernas. A morte se tor-naria, assim, fonte de incômodos para os vivos, uma obrigação restrita aos enlutados. O cemitério, local laico e afastado, onde se vai especialmente para prestar isoladamente as homenagens, seria o maior símbolo dessa atitude

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Victória sacou de sua bolsa um artefato fundamental para estas ocasiões: as camisas estampadas com as fotos-símbolo dos mortos e desaparecidos. A sua era especialmente confeccionada com duas imagens, as de Maurício Grabois e Gilberto Olímpio, respectivamente seu pai e seu primeiro marido. Após vesti-la ali mesmo por cima da camisa que usava, Victória nos ofereceu as que havia levado (e sempre leva) estrategicamente para seus acompanhantes. Caminhamos em seguida para o interior do cemitério, cruzando na entrada com um grupo da Rede Ecumênica da Juventude que orientavam quanto ao local em que seria realizado o culto, próximo ao muro dos fundos.

Andando nessa direção, eu, que pouco frequentei cemitérios na vida, me admi-rava com o grande número de pessoas presentes. Algumas solitárias, outras acompanhando famílias inteiras. Diversas autoridades religiosas apoiavam grupos de pessoas ligadas pela fé. Observando-as, eu procurava adivinhar, em cada olhar ou atitude, os vínculos de afeto e as rela-ções que motivavam suas visitas. Entre si, elas trocavam palavras de consolo, conduziam orações e cânticos, pregações, batuques e danças. Toda aquela cena me parecia um desafio às visões mais melancólicas acerca da morte. Ainda que eu tenha visto pessoas desconsoladas com suas perdas, em demonstrações públicas de sofrimento, o cemitério me parecia, à sua maneira, em festa. O efervescente comércio em todo o entorno, a grande quantidade de flores, os meninos correndo a toda volta para oferecer serviços de limpeza de túmulos, os cantos e danças ao pé das covas. Tudo parecia apontar aqueles variados cultos como rituais capazes de construir uma dimensão mais confortadora da morte. Menos solenes, evasivos e distanciadores do que as práticas modernas descritas por Elias (2001) e Ariès (2012), tais cultos me sugeriam que as atitudes descritas pelos atores convivem com outras possibilidades de manutenção de familiaridades entre vivos e mortos.

Esse caminhar também me permitiu observar mais detidamente as diferenças e de-sigualdades que subsistem à morte, mantendo categorizações e hierarquias, como na vida, entre sujeitos mais e menos visíveis. Primeiro, passamos por jazigos vistosos, localizados no início do cemitério, nos melhores pontos. Em seguida, vimos túmulos mais modestos, feitos de cimen-to e com lápides mais simples. Depois de passá-los, chegávamos às covas rasas, onde apenas cruzes diretamente colocadas sobre a terra batida, umas ao lado das outras, marcam o local de cada sepultamento. Margeando as gavetas verticais, alcançamos finalmente o muro dos fundos. Bem aos seus pés, estava ela. Pela primeira vez, eu me encontrava com a famosa vala comum de Ricardo de Albuquerque.

Inequivocamente às margens na disposição sócioterritorial do cemitério, a vala é o destino coletivo dos corpos “não-identificados”, popularmente conhecidos como “indigentes”. Corpos que foram assim classificados pelos processos de identificação do serviço funerário. Ao

moderna diante da morte. Para Elias, a exclusão da morte estaria relacionada ao impulso mais amplo de controle e banimento de aspectos elementares da vida humana considerados perigosos para a coletividade operado no curso do processo civilizador.

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contrário do que se supõem, essa classificação não é estabelecida apenas nos casos em que as identidades dos cadáveres não puderam ser efetivamente conhecidas, mas também nos casos em que o sepultamento é assumido pelo Estado, mediante a falta daqueles que reivindiquem prantear o corpo, oferecendo-lhe uma sepultura privada e cultos de homenagem (FERREIRA, 2007).116 É sobretudo nesse sentido que a vala comum é vista como o abrigo da irrelevância e das mortes sem valor. Mais do que o ponto inferior da escala socioeconômica que sustenta a distri-buição dos corpos no cemitério, ela é o local onde os mortos não seriam reivindicados e os cultos não teriam vez. Contrastivamente, a vala de Ricardo de Albuquerque, com seus cerca de dois mil “não-identificados”, passaria a ter sua relevância exaltada após a localização de informações que indicavam ser ela o destino final de pelo menos 14 “desaparecidos políticos”. A partir daí,

116 Em sua pesquisa sobre o processo de identificação de cadáveres não identificados no IML do Rio de Janeiro entre 1942 e 1960, Ferreira (2007) argumenta que a vala comum serve ao enterro dos “não-iden-tificados”, sujeitos pouco visíveis socialmente, que muitas vezes chegam a ser conhecidos em termos de sua identidade (e nesse sentido são “identificados”), mas cujas mortes foram registradas como situação de abandono e vulnerabilidade e os corpos não foram reivindicados, retirados do IML e velados por pessoas que assumissem a responsabilidade pelo registro de óbito e sepultamento. Para a autora, a assun-ção de responsabilidade pelo enterro por parte do Estado nesses casos denota não somente uma postura assistencialista, mas também policialesca, no sentido de afirmar o controle sobre cadáveres classificados como desviantes, porque avessos a um modelo de vida envolta em laços duradouros e de morte prantea-da em âmbito privado. Ainda segundo sua argumentação, as tecnologias de identificação de corpos não identificados visam engendrar conhecimento, controle e totalização da população brasileira, ao mesmo tempo em que promove categorizações e uma inscrição hierarquizada de cada cadáver nessa população, marcando certas desigualdades e um lugar social.

Vista geral do monumento erguido sobre a antiga vala comum de Ricardo de Albuquerque. No canto esquerdo, dois familiares de mortos e desaparecidos políticos conversam antes do início do culto ecumênico.

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ela se torna não apenas uma prova das denúncias construídas por “familiares” ao longo dos anos, como um local de afirmação da relevância social dessas mortes.

Com este intuito, o GTNM idealizou a construção de um monumento sobre o local da vala. Em 2011, conseguiram que a Prefeitura elaborasse e executasse um belo projeto. Nele, quatorze espelhos, cada um trazendo o nome de um dos desaparecidos, são lápides para as quais lançar o olhar significa ver a si mesmo. Há neles um inquietante “ jogo de pontos de vista”117. Ao se transformarem em lápides de quem os olha, os espelhos sugerem que qualquer um poderia ser uma vítima da Ditadura. Em meio a eles, uma grande urna preta abriga todas as ossadas encontradas na vala. Sua inscrição, entretanto, registra apenas os nomes, organizações políticas e datas de morte/desaparecimento dos 14 homenageados, além do emblema do Grupo.

Em seu conjunto, o monumento nos deixa entrever operações muito comuns nos esforços pela afirmação da causa dos “mortos e desaparecidos políticos”. De um lado, a sensibili-zação do “outro” passa por desvelar a Ditadura como um sistema de violências amplas. Violência que acometia não apenas as vozes dissonantes, mas era mobilizada como meio de controle social, como o simbolismo dos espelhos sugere. Em tese, portanto, esse sistema poderia ter causado a morte de diversas pessoas encontradas na vala.118 De outro lado, a demarcação dos nomes e organizações políticas dos homenageados é um ato que individualiza e distingue, definindo uma violência específica sobre a qual se está pedindo especial atenção, aquela estabelecida contra mi-litantes. Esse jogo de aproximações e distanciamentos define diferentes “tipos” de morte violenta e “tipos” de vítima, fazendo parte de um processo em que os atores sociais pretendem demarcar um universo dramático específico. Durante o culto, foi possível observar como esse jogo opera também em relação às violências do presente.

Naquele dia, nos reunimos em torno ao monumento não mais do que 40 pessoas, en-tre representantes católicos, protestantes, de religiões afro-brasileiras, organizações de Direitos Humanos e organizações políticas de familiares de vítimas da “violência de Estado” de ontem e de hoje. Na celebração que entrelaçou músicas, orações e falas políticas, muitos se emocionaram entre as recordações de seus mortos e a reafirmação de suas exigências de justiça. Em comum, familiares de mortos na Ditadura e na democracia aproveitaram o espaço para lembrar que a violência do Estado persiste, produzindo novos mortos e desaparecidos e mantendo renovadas

117 Expressão de Jorge Semprún ao descrever o quadro As Meninas, de Velásquez, em Saudações de Frederico Sanchez.

118 No monumento construído sobre a Vala de Perus, é essa visão mais ampla das violências que so-bressai. É um monumento mais simples, apenas um muro com a seguinte inscrição “Aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência policial dos esquadrões da morte e sobretudo os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.” Texto assinado pela Prefeita Luíza Erundina e pela Comissão de Familiares.

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dificuldades para que as lutas de todos os familiares alcancem justiça. Por outro lado, os fami-liares de vítimas da democracia revelavam pesar com o fato de que essa aproximação não se expressa na classificação de todas essas mortes como “políticas”. Suas falas marcavam de forma ainda mais contundente que a vigência da democracia não afastou a lógica do “inimigo inter-no” através da qual a violência se torna forma de governo e controle de populações, implicando mais diretamente na exclusão de certos setores sociais considerados “perigosos” da comunidade política e, consequentemente, na negativa de seus direitos. O fato dessa violência atual não ser socialmente reconhecida como “política” estaria relacionado ao processo de inscrição das mortes desses atores em uma zona de indiferença (muitas vezes de legitimidade) e das vítimas em um espaço de desimportância.119 Com isso, ficava claro que se diferentes “tipos” de violência (passa-da ou presente) são, em dados momentos, aproximadas e associadas como “práticas de Estado”, à violência cometida contra um “tipo” de vítima (os militantes) são atribuídos contornos sociais, dramáticos e simbólicos que fazem com que seja percebida como um fenômeno específico.120 Algo que tem reflexo em termos da construção dessas mortes como problemas sociais distintos.

119 Diversos autores têm discutido que, para construir a relevância social de suas mortes, os familiares de vítimas da violência atual precisam afirmar que seus mortos não são “bandidos” ou “traficantes”, per-sonagens sociais cuja alta estigmatização está diretamente vinculada à justificação da perda de direitos. Dessa forma, afirmar a condição de “estudante”, “trabalhador/a”, “pai/mãe de família”, “honesto/a” seria parte de um processo de limpeza moral (LEITE, 2008) que procura construir a ilegitimidade dessas mortes. Com o objetivo de enfatizar o caráter político ou sistemático dessas mortes, certas organizações (como a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência (RJ), as Mães de Maio (SP), o Reaja ou será morto, Reaja ou será morta (BA), entre outros) procuram demarcar o critério racial, de classe ou territorial de uma violência que precisa ser vista como estrutural. No caso das vítimas da Ditadura, creio que os esforços dos familiares pela afirmação de suas mortes como “políticas” operam nessa mesma dinâmica de limpeza moral. Eles serviram no passado (e ainda servem) para afastar as acusações de “terrorismo” lançadas pela Ditadura. A noção de violência “política” operava também diferenciando os militantes da-queles que eram reprimidos pela Ditadura pela prática de “crimes comuns”. A partir dessa diferenciação, a construção daquilo que Vianna (2014) chamou de uma carreira moral para os mortos passa não apenas por sua classificação como “vítimas inocentes” de um regime de violências sistemáticas, mas por sua caracterização como “heróis” que se sacrificaram (“deram generosamente suas vidas”) ao ousar enfrentar tal regime. É interessante notar que, no primeiro caso, a ideia de que a vítima agiu/agia conscientemente contra a lei deve ser rechaçada por seus familiares, na medida em que é mobilizada para responsabilizar o morto por sua própria morte e legitimá-la. No segundo caso, a atuação contra a lei (ditatorial) se torna uma forma de valorização moral do morto e de construção da ilegitimidade de sua morte.

120 Observando o mesmo tipo de jogo de aproximação e distanciamento entre “tipos de violência” ou de identidade e alteridade entre “tipos de vítima”, estabelecidos entre familiares de vítimas da violência atual, Viana (2014) os define como uma dinâmica de produção de tensões em torno ao par “natureza das vítimas/natureza da violência”. Como também ponderam Sanjurjo e Feltram (2015), esses jogos implicam em um reconhecimento desigual da dor: “Se é pelo adjetivo “política” que se define a violência de Estado per-petrada durante a ditadura, é porque se entende que essa violência se dirige àqueles que, de alguma forma, ainda são reconhecidos como atores políticos em referência a uma comunidade nacional. Quando um problema político como a violência de Estado no Brasil, ao contrário, é tratada nas páginas policiais, produz-se uma “massa de inúteis do mundo” nas dimensões internas às fronteiras nacionais que, em todas as épocas, impediu qualquer democracia substantiva” (SANJURJO e FELTRAN, 2015: 44).

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Como, então, se define uma morte ou desaparecimento como “político”? Esta foi a principal questão para a qual a ida ao cemitério de Ricardo de Albuquerque chamou minha atenção naquele dia. Ela orientará a discussão desse capítulo. Tal questão, que rondou meus pen-samentos durante dias, foi provocada não apenas pelos episódios acima relatados, mas também por um inesperado acontecimento após o fim do culto.

Enquanto aguardava Victória para irmos embora, eu rodeava o monumento em bus-ca de melhores fotos. Foi quando uma senhora me abordou, perguntando o que fazíamos ali. Uma breve explicação bastou para que ela iniciasse um relato sobre sua própria história. Sem sequer me dizer seu nome, a senhora me mostrou o túmulo de sua mãe, que fora enterrada nas covas rasas, bem defronte à vala, na semana anterior. Naquela ocasião – ela me disse – a emoção não permitiu que percebesse o monumento, para o qual nossa presença agora chamara sua aten-ção. Contou-me, então, que seu pai havia participado de manifestações contra o Golpe, manten-do sempre um discurso crítico ao regime dentro de casa, embora o aumento da repressão tenha o inibido a realizar atividades de oposição. Seu primo mais velho, entretanto, “se meteu em política”. Em certo momento, saiu de casa, sem nunca mais retornar, nem enviar notícias. Disse-me ainda que a existência do monumento a deixava feliz, pois a proximidade com o túmulo de sua mãe, que gostava tanto do sobrinho, fazia com que agora eles estivessem juntos de alguma maneira. Daquele dia em diante – concluiu – ela cuidaria e levaria flores também para eles.

Enquanto ela falava, eu mal podia disfarçar minha inquietação. Sua história me intrigava. Sobremaneira, o fato da senhora relacionar simbolicamente o monumento ao primo ausente sem, contudo, reivindicar-lhe a condição de “desaparecido político”. Na realidade, ela ignorou, ou simplesmente não entendeu, quando eu indaguei se ele era um “desaparecido po-lítico” e se havia sido assim reconhecido em algum espaço político ou institucional. Insistindo na questão, perguntei o nome do primo. Frente a sua resposta – Virgílio! – tive a impressão (confirmada ao chegar em casa) de que só havia um Virgílio no Dossiê. Fiz outras perguntas, me assegurando de que o famoso militante envolvido no sequestro do embaixador americano não era seu primo. Tratava-se de outra pessoa. Fiquei perturbada com a possibilidade de estar diante de um “novo caso” e tentei convencê-la a falar com Victória. Mas, ela não demonstrou interesse. Quis ir embora em seguida, sem falar com mais ninguém.121

Sozinha diante do monumento, comecei a reparar na lista dos desaparecidos enter-rados e nas datas de suas mortes: três pessoas mortas em 1971, cinco em 1972 e seis em 1973. Seria possível que eles fossem os únicos entre os assassinados pela repressão na cidade a serem enterrados ali naqueles anos? O que fazia com que, de um lado, somente 14 corpos (entre 2

121 Caderno de campo 2, 2/11/12. Refiro-me a Virgílio Gomes da Silva, desaparecido após envolvimento no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. É o primeiro caso de desaparecimento político de que se tem registro.

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mil) fossem considerados pertencentes a “mortos e desaparecidos políticos” e, de outro, o primo Virgílio, rapaz que realizava atividades de oposição à Ditadura e desapareceu sem deixar pistas para a família, não tenha o mesmo reconhecimento?

Os casos e a causa

“Sendo político o motivo da prisão ou sequestro, cumpre, inicialmente, apurar se foi efetuada por auto-ridades civis ou militares (…). Em seguida, cabe descobrir em que cárcere o desaparecido foi recolhido,

a saber, civil ou militar. Antes, porém, deve a família fazer um levantamento, quanto possível comple-to, da atividade deste no período anterior à sua prisão ou sequestro (…). Esses dois aspectos, o político

e o policial, são de suma importância porque é através dele que se pode recolher os elementos que irão permitir a abertura de inquérito perante a administração civil ou militar, com finalidade de apontar os responsáveis pelo desaparecimento. (…) Para ter êxito em suas atividades, quer no aspecto político,

quer no aspecto policial, quer no jurídico, não basta a família pedir a colaboração de um advogado experimentado. Precisa recorrer às organizações existentes no país, que se dedicam às investigações de

todo o gênero (políticas e policiais) para que elas forneçam os dados necessários” (Sobral Pinto IN: CABRAL E LAPA, 1979).

A visita ao cemitério de Ricardo de Albuquerque me provocou sentimentos ambíguos. De um lado, parecia tentador olhar para ela como uma espécie de confirmação empírica da validade de certas assertivas da literatura antropológica, tais como a continuidade das relações e obrigações entre vivos e mortos em nossa sociedade (DAMATTA, 1997) ou a ideia de que a impossibilidade de realização dos ritos funerários implica na vivência de uma morte inconclusa (CATELA, 2001) por parte dos sobreviventes. De outro lado, eram os aspectos inesperados e desconcertantes impressos no encontro com a prima de Virgílio que atraiam meus pensamentos. Passados os dias, eu me perguntava a razão de ter me surpreendido tanto com a sua narrativa. Se o desaparecimento é um fenômeno caracterizado justamente pela ausência de informações, então deveria parecer normal a falta de domínio sobre o universo total de pessoas desaparecidas e, consequentemente, a descoberta de novos casos. Minha surpresa me fez perceber que essa não é a percepção mais comum sobre o “desaparecimento político” no Brasil.

Ao contrário da Argentina, onde as cifras de “mortos e desaparecidos” costumam ser anunciadas como estimativas, sugerindo não apenas a amplitude, mas o caráter incompleto das informações disponíveis, no Brasil as cifras conhecidas são comumente tratadas como nú-meros precisos e exaustivos, indicando um fenômeno não apenas restrito, como já apreendido

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em sua totalidade e nas individualidades que o constituem.122 Se há distintas verdades acerca do desaparecimento nas diferentes sociedades em que tal fenômeno é identificado, me parece importante entender os processos a partir dos quais tais verdades se estabeleceram, em vez de tomá-las como dados.

Ao discutir o relatório do cônsul britânico Roger Casement sobre a exploração vio-lenta do trabalho indígena pelas companhias de borracha nos seringais de Putumayo, Taussig (1995) critica a própria possibilidade de se compreender em termos estritamente racionais e utilitários os usos da violência e do terror. Segundo o autor, esta atividade compete aos relatores, atores sociais que – como Casement ou como os membros das atuais comissões de verdade – pretendem construir uma compreensão sistematizada da violência, explicá-la à sociedade e, por fim, combater os discursos (e silêncios) que fundamentariam uma cultura do terror. Tendo isso em vista, Taussig sugere como abordagem alternativa refletir para além do conteúdo desses dis-cursos, observando também as formas que eles assumem para “fazer sentido” e adquirir efeitos de verdade (FOUCAULT, 2007). Ao buscar as raízes do meu incômodo, percebi justamente a importância de colocar em perspectiva a visão do “desaparecimento político” partilhada pelos que denunciam a violência da Ditadura. Isso significaria, principalmente, deixar de observá-lo como condição existente em uma realidade histórica dada (e que poderia ser dela objetivamente auferida), para tomá-lo como uma categoria produzida em (e produtora de) um campo social, um ponto de convergência de debates e ações de distintos atores e instituições que se consti-tuem ao constituir um regime de verdade (FOUCAULT, Op. Cit.). Nesse capítulo, procuro mostrar os tipos de discurso que funcionam como verdadeiros acerca do “desaparecimento político” no Brasil, evidenciando métodos, procedimentos, instâncias e disputas por meio dos quais eles são sancionados enquanto tais.

Conforme argumentei no primeiro capítulo, diferentes estudos sobre o “desapare-cimento” na atualidade destacam as ambiguidades inerentes ao reconhecimento e gestão desses fenômenos como “problemas sociais”. Nas palavras de Ferreira, que tem como objeto de sua tese

122 Apesar da existência de uma listagem nominal oficial na Argentina, que conta 9.334 desaparecidos, é cor-rente o entendimento de que ela expressa apenas os casos denunciados. Para dar conta dessa perspectiva, as orga-nizações de direitos humanos tornaram popular a cifra de 30 mil desaparecidos, que se baseia justamente em uma projeção de casos não denunciados. Esta perspectiva, mais interessada em apontar a totalidade do fenômeno do que se apegar às suas particularidades, se expressa também na lógica que orientou as atividades da CONADEP, comissão responsável por iniciar tal contabilidade oficial. Conforme mostra Crenzel (2008), apesar de trazer à luz informações sobre casos particulares, a CONADEP procurou transcendê-los, orientando sua investigação no sentido de construir uma “verdade geral sobre os desaparecimentos”, descrevendo a organização de um “sistema de desaparição” e apontando seus responsáveis. No Brasil, como veremos a seguir, investigar os desaparecimen-tos têm implicado em trabalhar os casos particulares, que somariam 357 para a CEMDP ou 436 para o Dossiê. Quando digo que as cifras são tratadas como números exaustivos, não quero dizer que os atores sociais envolvidos em sua produção não acreditem em sua incompletude, mas que mobilizam publicamente apenas números exatos e casos “comprovados”. É interessante notar nesse sentido que não existe nenhuma enunciação pública de cifras que se baseiem em projeções ou estimativas.

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o amplo leque de fenômenos contemporaneamente comunicados como “desaparecimento” nas delegacias do Rio de Janeiro, “a própria classificação de um conjunto de fatos como desaparecimento carrega consigo mais incômodos que certezas. Mais do que isso, efetuada no decurso de uma cadeia de comunicações entre pessoas e instituições, a designação de fatos e experiências como desaparecimento é constituída por questionamentos e incertezas” (FERREIRA, 2011: 3). Atenta a esta questão, a au-tora demonstra, ao longo de um trabalho inspirador, como a diversidade de fatos que dão origem às ausências classificadas como desaparecimento (acidentes, perdas, fugas, doenças, sequestros, assassinatos, abandono de lar, etc.) faz com que os atores sociais responsáveis por assim classi-ficá-las – seja investigando as ausências comunicadas às delegacias, seja elaborando formas de gestão institucional e prevenção de novos casos em espaços mais amplos – questionem cotidia-namente: “o que é o desaparecimento de pessoas?”. Os incômodos e as incertezas aos quais se refere a autora surgem como parte do ato de classificar sob uma mesma categoria, considerada excessivamente genérica, acontecimentos tão distintos. Como consequência, as ambiguidades não se limitam a disputas em torno da atribuição de sentidos à categoria, mas torna-se parte do processo de construção do desaparecimento como um “problema social”, composto por uma série de questionamentos sobre responsabilidades, possibilidades de prevenção e gestão institucional.

Focado em um objeto mais restrito, Araújo (2012) trabalha apenas com os casos de desaparecimento que poderiam ser depreendidos como de origem criminosa, os chamados “desaparecimentos forçados”. Apesar disso, sua reflexão não deixa de iluminar como ambigui-dades e incertezas seguem perpassando os processos de classificação e constituição social de tal fenômeno. Para o autor, o tipo penal internacional “desaparecimento forçado”, ainda que não exista como figura no ordenamento jurídico nacional, constituí atualmente uma prática do repertório da linguagem da violência urbana. Ele deve ser entendido como uma ausência de uma pessoa e de informações acerca de seu destino, sendo que as poucas circunstâncias conhecidas permitem presumir a ocorrência de assassinato e ocultação de cadáver em sua origem. Sendo, mais recorrentemente, fruto das atividades e disputas estabelecidas entre policiais, milicianos e traficantes de drogas, seria possível afirmar (porque é afirmado por diversos atores sociais vol-tados também para sua problematização pública) que os “desaparecimentos forçados” incidem majoritariamente sobre os territórios de pobreza das grandes cidades. Apesar desses elementos desenharem contornos mais nítidos para tal categoria, o aspecto genérico de todas essas certezas se revela cotidianamente, quando a conceituação do fenômeno se desloca para as tentativas de enquadrar casos específicos nessa classificação. O autor mostra como, muitas vezes, esses casos acabam se dissolvendo no quadro mais amplo dos desaparecimentos que não podem ser tomados como crimes a priori. Se a tríade sequestro/homicídio/ocultação de cadáver é o que separa o “de-saparecimento forçado” da gama mais ampla de “desaparecimentos”, tornando-o uma categoria de contornos melhor definidos, são as incertezas sobre a presença desses elementos em casos concretos, materializadas especialmente pela ausência de um corpo, que constituem-no como um fenômeno em potencial. Na prática, o “desaparecimento forçado” é também definido por

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ausências e apagamentos, características que dificultam a obtenção das informações que permi-tiriam classificar certos casos particulares como “desaparecimento forçado”.

Nesse caso, as ambiguidades se deslocam do geral para o particular, mas não dei-xam de existir. O aspecto fugidio impresso na questão “o que é o desaparecimento de pessoas?” (FERREIRA, 2011) apenas parece se dissipar quando se estabelece uma definição mais especí-fica para o “desaparecimento forçado”, ligando-o necessariamente a um ato criminoso. Mas, isso ocorre apenas enquanto falamos dos fenômenos em um plano categórico. Caso particularizemos a questão – nos perguntando: “é este um caso de desaparecimento forçado?” – as incertezas mostram novamente sua força. Para Araújo, a dificuldade em definir casos específicos como “desaparecimento forçado” decorre tanto da ausência dessa figura no ordenamento jurídico (a não ser quando se fala do “desaparecimento político”), quanto ao fato de que as histórias que fundamentariam esses casos costumam a se localizar na região do rumor. São relatos incomple-tos, imprecisos e fragmentados pela incerteza e pelo medo. Dessa forma, os próprios esforços de distintos atores para constituir o “desaparecimento forçado” como um tipo de crime e um problema social específicos demonstram que o “desaparecido e desaparecimento são categorias em disputa, e seus significados estão diretamente associados à pluralidade de vozes que falam ou deixam de falar sobre o assunto, envolvendo familiares, autoridades, pesquisadores, movimentos sociais, mídia, entre outros tipos de organização” (ARAÚJO, 2012: 72).

É interessante notar que, ao longo de suas reflexões, ambos os autores chegam a mencionar o “desaparecimento político” como contraponto. Nos dois casos, a comparação pode passar a impressão (não necessariamente desejada pelos autores) de que este é um fenômeno menos ambíguo que aqueles, uma vez que possui um conjunto mais amplo e estabelecido de referências delimitadoras: marcos políticos, temporais, jurídicos e morais. Por um lado, creio que estas referências tendam de fato a constituir o “desaparecimento político” como uma categoria melhor delimitada, tanto que, ao contrário do que descreve Ferreira (2011) sobre um genérico “desaparecimento de pessoas”, ela é tomada na maioria das vezes, em distintas arenas, como se possuísse um sentido bem estabelecido. Por outro lado, me parece fundamental levantar o problema de até que ponto essas referências são capazes de excluir ambiguidades e incertezas, pensando também como essa categoria chegou a ser considerada “bem estabelecida”. Se “o que é o desaparecimento político” não parece, à primeira vista, ser alvo de polêmicas, o mesmo valeria para a questão “quem são os desaparecidos políticos”? O episódio em Ricardo de Albuquerque me sugeria pensar as formas pelas quais essas duas questões estão relacionadas.

Os marcos conferidos ao “desaparecimento político” em seus diversos usos cotidia-nos operam em variadas dimensões. Conforme já mencionei, a partir tanto dos debates políticos estabelecidos na sociedade ao longo dos anos, quanto da Lei de Mortos e Desaparecidos, notamos uma associação entre “desaparecimento político” e morte, em que as duas palavras, quase sempre indissociáveis, compõem um único termo: “mortos e desaparecidos políticos”. Indubitavelmente

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resultante de um ato criminoso, o “desaparecimento político” é um sequestro seguido de ho-micídio e ocultação de cadáver contra “pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos” (Art. 1º, Lei Nº 9.140/95). Sentença classificatória com pretensões de precisão, os parâmetros jurídicos definem não apenas o ato, como as vítimas, os vitimários e a temporalidade na qual se inscrevem. Na medida em que traz em si uma classificação da temporalidade, constituindo-se como referência para distinção entre presente e passado, a própria lei parece fixar ou ser reflexo de uma fixação do “desaparecimento político” como um episódio histórico encerrado.

Nesse sentido, para além do aspecto jurídico, o “desaparecimento político” é tam-bém uma categoria mnemônica, uma referência para processos mais amplos de constituição do memorável acerca da Ditadura. Dimensão a partir da qual ele também é significado. Cabe aqui recordar Candau (2011), em sua pertinente avaliação de que nem tudo o que é de fato memori-zável torna-se memorável. No dizer do autor, o estabelecimento de fronteiras entre memória e esquecimento passa por seleções e hierarquizações dos acontecimentos – matérias oferecidas pelo tempo ao pensamento – a partir de categorias e referências que definem aquilo que é digno de entrar na memória. Longe de um registro fixo do passado, falamos da constituição de um saber no presente, a produção de um campo do memorável que opera por reinterpretações permanentes, embora as variações sejam comumente obscurecidas por narrativas que sustentam um sentido de continuidade. Nesse processo, certas referências se tornam fundamentais para o que parece ser uma fixação de sentidos para o “desaparecimento político”. Números, narrativas, nomes, imagens e outras formas de registro mais particularizado surgem como dados que compõem o inven-tário de uma tragédia. Basta citar certos nomes, como Rubens Paiva, Stuart Angel ou Carlos Marighella, para aceder a histórias retratadas em livros, filmes, processos judiciais e homenagens políticas. Outros artefatos de memória, como cifras de vítimas, fotos-símbolos e narrativas sobre casos e sobre episódios da luta pela Verdade e Justiça compõem esse universo referencial.

O Dossiê dos Mortos e Desaparecidos políticos, no qual minha memória foi incontro-lavelmente buscar apoio para avaliar se Virgílio seria considerado um “desaparecido político”, é uma compilação dessas referências. Em conjunto, elas compõem um roteiro a partir do qual são conferidos significados tão específicos à categoria “mortos e desaparecidos políticos” que somos seduzidos a pensá-los, também pela via da memória, como processos encerrados, realidades dadas ao conhecimento mais do que por ele produzidas, matéria alheia aos debates, ambigui-dades e reinterpretações que constituem os processos de classificação social. Esse pensamento, me parece, não resiste a um olhar aproximado dos processos sociais em que estas categorias são colocadas em jogo. E, como já alertavam Durkheim e Mauss (2001), olhar para eles nos diz mais sobre a lógica dos atores sociais que operam tais classificações do que sobre uma possível natureza do que é classificado.

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Na Argentina, por exemplo, a conhecida consigna “30 mil detenidos-desaparecidos” alcança tal importância como marco da tragédia operada pela Ditadura que se tornou a própria definição daquilo que constituem os direitos humanos no país. “Siempre la misma fórmula, de-rechos humanos es igual a 30.000 desparecidos” (CATELA, 2008: 10), comentou criticamente um aluno de Ludmila Catela sobre a saturação do tema na esfera pública. A ampla aceitação social dessa bandeira nos faz esquecer o fato de que este número não passa de uma estimativa e não é enunciado sem disputas. São as organizações de Direitos Humanos que o defendem, consi-derando uma margem de casos que jamais teriam sido denunciados, a partir do pouco mais de 9 mil casos considerados “oficiais” pelos registros realizados durante a CONADEP. Segundo Sanjurjo (2013), para além das possibilidades de confirmação da cifra, o que importa para os atores que a mobilizam é sua força como símbolo do triunfo da memória sobre o “terrorismo de Estado” na esfera pública. Em paralelo a isso, entretanto, ocorrem inúmeros processos em que os “detenidos-desaparecidos”, as “víctimas del terrorismo de Estado” e até mesmo esta cifra tão simbólica são objetos de disputas. É o que mostra a etnografia de Vecchioli (2001) sobre a cons-trução do Monumento a las víctimas del terrorismo de Estado no Parque da Memoria em Buenos Aires. O objetivo da obra – tirar os assassinados da condição de anonimato conferida pelos nú-meros, fixando em placas de granito seus nomes, datas e dados biográficos – opera uma descida ao particular que exige discutir quem são precisamente essas “vítimas do terrorismo de Estado”.

Nesse processo, a autora mostra como o fato de um conjunto de atores sociais (os membros da Comissão Pro-Monumento) terem acordo sobre a relevância de honrar as memórias dessas vítimas não significa que atribuam o mesmo sentido à categoria e, consequentemente, que tenham acordo em relação a quem são as “vítimas”. Seriam elas apenas os desaparecidos ou tam-bém os mortos e os sobreviventes? Os que tiveram seus corpos localizados devem ser incluídos ou apenas os que seguem desaparecidos? São vítimas apenas aqueles mortos no contexto pós-golpe ou também no contexto imediatamente anterior? Quais critérios e listas das muitas exis-tentes serão usadas para referenciar os nomes que serão gravados? Tais debates confrontavam-se ainda com a posição de algumas organizações de familiares que sustentavam a necessidade de manter as demandas em torno à cifra 30 mil, sem identificações e diferenciações. Problemas que se colocaram no decurso do processo de (literalmente) materializar a categoria em um monu-mento, implicando em múltiplas formas de classificar e distinguir que, quando postas em jogo, evidenciam seu caráter ambíguo e de permanente construção social. Para a autora, prescrever-lhe um sentido a priori impossibilitaria perceber a inexistência de uma relação necessária entre o desaparecimento de um indivíduo e sua classificação como “vítima do terrorismo”. A mesma questão que me pareceu evidente na história de Virgílio. Desse modo, assim como a autora, creio na “ impossibilidade de afirmar a existência de “vítimas” independentemente dos agentes que lhe dão existência social (…), assim como a impossibilidade de compreender o sentido dessa categoria por fora das lutas sociais que ditos agentes sustém com o propósito de outorga-lhe um sentido exclusivo.” (VECCHIOLI, 2001: 85).

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Todo esse debate sugere que as ambiguidades, ou mais especificamente a lida com elas (muitas vezes na tentativa de encerrá-las), são constituintes das diferentes formas de clas-sificar tais ausências, percebidas sempre como acontecimentos que desconcertam um universo social. Como deixam claro todos estes autores, as ambiguidades se tornam evidentes por meio das denúncias, comunicações e diferentes atos de reconhecimento estabelecidos entre as pes-soas que demandam/se dedicam e as instituições que têm por encargo operar tais classificações. Processos por meio dos quais os casos particulares se encontram com as categorizações acerca de um fenômeno geral, implicando em deslocamentos da peculiaridade dos fenômenos para a ge-neralidade dos procedimentos e linguagens conformadas tanto pelos movimentos sociais, quanto pelas instituições da administração pública, entre outros atores. Se as distintas etnografias mos-tram que o desaparecimento é uma ruptura do cotidiano – definida por Catela (2001) a partir da noção de situação-limite (POLLAK, 1990), e por Ferreira (2011) e Araújo (2012) como evento crítico (DAS, 1995) – elas também enfatizam, inspiradas em tais autores, como tal acontecimen-to extraordinário se desloca e se desdobra no cotidiano, na medida em que passa a fazer parte tanto da vida dos atores sociais em múltiplos sentidos (preenche os dias, motiva a ação, ocupa o pensamento e integra os sentidos que passam a ser atribuídos ao viver), quanto das rotinas bu-rocráticas em torno de sua classificação e gestão pública. Apesar dos diferentes enfoques dados pelos trabalhos citados, em todos eles (incluindo este) não é o extraordinário que se torna objeto das reflexões, mas as tentativas de domesticá-lo por práticas e gramáticas que têm por objetivo lhe conferir definições e sentidos, ainda que mantendo evidente, em alguma medida, a dimensão inefável do fenômeno. Nesse sentido, é importante ressaltar que a constituição do “desapareci-mento político” como categoria jurídica, política e mnemônica se dá na passagem permanente entre a construção de uma verdade global sobre as violências perpetradas pelo regime de exceção e as múltiplas formas pelas quais os fatos concretos e particulares são (ou não) enquadrados como tal. Essa passagem, como bem atenta Ferreira (2011), se dá em meio a processos em que os atores envolvidos em debates públicos precisam identificar um conjunto de acontecimentos, destacá-los do emaranhado de fatos da vida social e transformá-los em uma forma narrada: um caso.

Para pessoas com vínculos estabelecidos com os desaparecidos, a ausência pode fi-gurar como uma morte inconclusa (CATELA, 2011) não apenas porque não há certeza sobre ela, mas também porque mesmo para aqueles que estão convencidos sobre a possibilidade de morte, lhes foi dificultado o período de luto, quando a realização de obrigações e rituais condensam o tempo do sofrimento e da aceitação das transformações causadas pela perda. Sem notícias sobre a vida ou a morte, esses atores aguardam a volta por muitos anos, buscam informações sobre os detalhes do ocorrido, começam a convencer-se da prisão e da morte, lutam para reaver corpos, descobrir a verdade e obter justiça, constroem uma narrativa acerca do acontecimento que o qualifica enquanto um caso de morte/desaparecimento político a ser denunciado. Nesse processo, constituem-se rotinas de espera e de busca, temporalidades ao longo das quais cada ausência vai se tornando um caso, enquanto os “mortos e desaparecidos” vão se constituindo como categoria

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central da denúncia. Há procedimentos para que essas denúncias – feitas às instituições da ad-ministração do Estado criadas a fim de assegurar direitos – sejam aceitas.

Mas, é importante notar que nem todos aqueles que tiveram parentes desaparecidos durante os anos de Ditadura teriam participado nesse enredo, fazendo de sua ausência um caso. Na reunião do Grupo seguinte à cerimônia de Ricardo de Albuquerque, comentei a história de Virgílio durante a fala de “avaliação do ato” que me foi solicitada. Eu já havia comentado o as-sunto com Victória no cemitério e, assim como ela, os militantes não pareceram surpresos, nem tampouco afoitos, como eu fiquei. Pareciam ter a certeza de que os casos contabilizados são ape-nas aqueles que cumpriram determinados procedimentos para que fossem assim definidos frente a um universo mais amplo de possibilidades.123 Beth explicou que muitos familiares de pessoas que sumiram à época não conheciam as atividades políticas dos parentes e/ou o seu direito de buscar reconhecimento. Alguns assumiam a atmosfera do medo, outros as narrativas condena-tórias da ação política, entre outras possibilidades. Estas pessoas nunca vieram a qualificar como “políticos” os desaparecimentos de seus parentes. Ela mesma pôde observar de perto alguns desses casos, quando ocupou um cargo na Comissão de Reparação do Estado do Rio de Janeiro, representando o grupo. Lá, era muito comum apresentarem-se mulheres que nada sabiam para provar a militância de seus maridos. Um ônus do requerente, segundo as leis de reparação, ne-cessário ao reconhecimento do caso como “desaparecimento político”. Frente a certas perguntas (Onde militou? Com quem militou? Onde ia?), feitas com o intuito de ajudá-las a preencher os requisitos exigidos para o reconhecimento, muitas mulheres lhe respondiam: “não conhece os homens de antigamente não, minha filha? Isso não era coisa pra mulher saber!”.

Para Beth, esses casos, que acabaram sendo indeferidos, e outros, que nunca sequer chegaram às comissões, teriam ficado enquadrados na anedota “saiu pra comprar cigarros e nun-ca mais voltou”. Ou seja, estariam até hoje imersos em ambiguidades e incertezas semelhantes às descritas por Ferreira (2011) acerca do “desaparecimento de pessoas”. Se para aqueles que conheciam a militância de seus parentes, os agentes da Ditadura diziam “ele está clandestino”,

123 Mais uma vez chamo atenção para o fato de que ter essa percepção não implica em fazer uma defesa pública sistemática de que outros casos de mortes e desaparecimentos existem e devam ser des-cobertos ou em realizar campanhas de estímulo para que novos casos sejam denunciados. Na prática, o movimento de familiares acaba trabalhando com o número de mortos e desaparecidos estabelecido em seu Dossiê, os “nossos mortos e desaparecidos”, reivindicando reconhecimento e medidas de justiça para eles. O mesmo ocorre com as instituições governamentais que, nem mesmo durante o processo de funcionamento das comissões da verdade, realizou campanhas no sentido de estimular pessoas cujos parentes tenham desaparecidos durante a Ditadura e que desconfiam de motivação política procurassem as autoridades responsáveis. Como na campanha de 2009, cujo cartaz está na introdução dessa tese, é muito mais comum pedidos de informações sobre “os 140 desaparecidos que ainda existem no Brasil” do que de comunicação de novos casos. Daí a impressão de que o conjunto de desaparecidos já levantado é um universo totalizado. Nos eventos públicos em que as mortes e desaparecimentos são debatidos, é comum que os distintos atores, tanto familiares, quanto aqueles ligados à institucionalidade assumam que os mortos e desaparecidos já listados são “todos” os mortos e desaparecidos.

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Beth imagina, nesses casos, a pessoa comunicando o desaparecimento à polícia à época e rece-bendo a explicação de que provavelmente fora abandonada, abandonando ela mesma a busca.124 Sem provas ou certezas acerca da militância política de seu parente, esses familiares desistiram de (ou nunca chegaram a) reivindicar um status “político” para o desaparecimento.

A qualificação do desaparecimento de uma pessoa em particular como “político” passa, portanto, por sua comunicação em espaços onde ele possa ser assim reconhecido. Isso exige daquele que comunica um mínimo de informações, tanto aquelas que o permitam conhe-cer essa possibilidade, e os espaços onde realizar denúncias, quanto dados sobre o desaparecido em particular que o conectem a uma atividade política, inserindo-o na comunidade previamente definida como vítima dos crimes da repressão. Tal como orienta o texto citado em epígrafe nessa seção – escrito em 1979 por Sobral Pinto, famoso advogado de presos políticos – era necessário um levantamento de dados sobre a vida política e a prisão de cada desaparecido para estabelecer certos procedimentos que assegurassem, a partir da comprovação de sua “atividade política” e prisão ou sequestro por agentes ligados a uma unidade policial ou militar, sua condição distinta de um conjunto mais amplo de ausências, cuja razão não se podia precisar. Condição que só pode ser auferida em meio às conexões que inserem, simultaneamente, as vítimas e seus fami-liares em coletividades políticas.

Em um primeiro momento, esses espaços poderiam ser, de acordo novamente com o advogado, a polícia e as FFAA (para a abertura de inquéritos) e a justiça (para a abertura de processos). Em geral, esses procedimentos se mostraram pouco efetivos durante a Ditadura, e assim continuaram em alguma medida na democracia, em função da Lei de Anistia. Em paralelo a eles, haviam os espaços de solidariedade criados em torno ao movimento social, às igrejas e aos advogados especialistas. Eram os CBAs, as CJPs, os grupos Tortura Nunca Mais, a Comissão de Familiares entre outras organizações envolvidas na constituição de denúncias no período da Ditadura e anos iniciais da democracia. Uma vez que a última orientação de Sobral Pinto – buscar informações junto às instituições policiais e militares responsáveis pelo levanta-mento de dados sobre a vida política e as prisões – esbarrava sempre na negativa dessas mesmas instituições em fornecê-las, estas organizações políticas e solidárias fizeram da busca por esses dados sua tarefa principal, tornando-se referências nessa área.

As informações levantadas pelas organizações e por familiares possibilitavam a transformação de ausências repentinas e inexplicáveis em casos de “desaparecimento político”. De eventos singulares e dissociados, eles passavam a um conjunto de casos equivalentes apresentados como denúncias direcionadas a toda sorte de entidades disponíveis, tanto órgãos e entidades internacionais, quanto autoridades brasileiras (ministros e parlamentares) e estruturas da ad-ministração pública. Esses esforços deram origem a uma espécie de indexador central, o Dossiê

124 Caderno de campo 2, 5/11/12.

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Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos. Ele surge a partir da construção e do reconhecimento coletivos dos casos por essa rede de atores que se formava em torno às denúncias, em um momen-to em que o “desaparecimento político” não era objeto específico de gestão de nenhum órgão institucional permanente, nem era considerado uma categoria jurídica específica. Com a Lei de Mortos e Desaparecidos, os 136 casos de “desaparecimento político” que eram apontados naquele momento pelo Dossiê foram automaticamente reconhecidos (e denominados no anexo à lei). Em seguida, a CEMPD passou a cumprir os propósitos de reconhecimento dos casos de “mortos oficiais” e outros casos de desaparecidos ausentes da listagem, além de indenizar as famílias.125

A CEMDP não foi criada para investigar as denúncias, mas para conferir reconhe-cimentos, ou seja, classificar um caso particular de desaparecimento ou morte como “político”. Segundo os critérios legais, a comissão atuava mediante a apresentação de “requerimentos”, uma prerrogativa exclusiva de “familiares”, que seriam por ela avaliados. O “requerimento” consistia na construção de uma narrativa, um enredo no qual o “requerente” deveria comprovar duas questões: a militância política e a prisão/sequestro de seu parente por agentes ligados ao aparato repressivo. Essa narrativa teria mais chances de ser aceita caso se estruturasse em torno a um conjunto de “provas”, anexadas ao “requerimento”, que circunstanciassem os acontecimentos de maneira a convencer os membros da comissão de que se tratava de um caso de “desaparecimento político”. Uma vez recebido, esse material se convertia em um “processo” interno cuja análise era assumida por um “relator”. Este deveria oferecer seu “parecer” aos demais membros da comissão e o processo seria aberto a debate e votação, sendo “deferido” ou “indeferido”. Apesar do “ônus da prova” pesar sobre o requerente, os membros da CEMDP poderiam mobilizar suas possibi-lidades institucionais para buscar “provas” que ajudassem a fundamentar diversos casos.

A necessidade de produzir os casos provocou, ao mesmo tempo, uma articulação de familiares em torno a organizações como a Comissão de Familiares e os grupos Tortura Nunca Mais, que já reuniam alguma experiência (materializada no próprio Dossiê) não apenas em obter informações, como em articulá-las em um forma narrativa comum. Uma rede formada entre essas organizações e inúmeros apoiadores tomou a iniciativa de mobilizar o conjunto mais amplo dos familiares dos “mortos e desaparecidos” que constavam no Dossiê para que todos pudessem apresentar seus requerimentos dentro do prazo estabelecido pela lei. Segundo relatos dos mili-tantes, as organizações foram muito frequentadas por familiares nessa época.

125 A lei parte da diferença entre “desaparecidos” e “mortos oficiais” (vide nota 57) criada no contexto do Movimento pela Anistia, mas opera uma equivalência entre as categorias ao falar de “mortos e desa-parecidos políticos”. A lei reconhece 136 casos como “desaparecimento político” e cria a CEMDP para reconhecer como: “desaparecidos por razões políticas” os casos ausentes do anexo da lei/Dossiê, e como “mortos por razões políticas” os casos tomados como “mortos oficiais” pelo Dossiê, além de novos casos. Para obter indenização, todas as famílias de pessoas reconhecidas, mesmo as dos 136 contemplados pela lei, deveriam fazer requerimentos à comissão.

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Com a conclusão dos trabalhos da CEMDP, os casos desconhecidos que foram a ela apresentados, assim como as novas informações acumuladas durante a preparação dos “requeri-mentos” sobre casos já conhecidos pelo movimento de familiares, serviram para realimentar e com-plementar o Dossiê, que foi ampliado e reeditado, em 2009. A própria comissão teve sua listagem final de “mortos e desaparecidos” e seu relatório publicados no livro Direito à memória e à verdade, em 2007. Esta realimentação entre o Dossiê e os trabalhos da CEMDP pode ser constatada em uma breve consulta a estes livros. Está estampado em sua inegável semelhança, inclusive visual, o fato de partilharem uma mesma estrutura narrativa em torno a composição e apresentação dos casos. A diferença fica por conta do número de “mortos e desaparecidos” reconhecido por cada um, tema que será debatido na última seção desse capítulo. Por ora, pretendo apenas chamar atenção para os casos tanto como produtos da relação entre os “familiares” que denunciam e as instituições que reconhecem os “desaparecimentos políticos”, quanto como artefatos em torno aos quais passa a ser estruturada uma agenda e uma causa política em que variados atores sociais se envolvem.

Muito além de uma listagem, portanto, o Dossiê é uma compilação de casos. Eles são apresentados um após o outro em sequência cronológica, seccionados por ano. Duas ou mais mor-tes/desaparecimentos que tenham ocorrido em função de uma mesma prisão são apresentados con-juntamente. Ainda assim, cada indivíduo encerra um caso, singularizado por um nome, uma foto-grafia, dados biográficos, uma breve trajetória de militância política, assim como a reconstituição pormenorizada das informações levantadas ao longo das buscas, articuladas em uma narrativa que perfaz a sequência de acontecimentos por trás do desaparecimento/morte (como, quando e onde ele teve lugar) ou, quando isso não é possível, das buscas e informações que puderam ser levantadas

As três edições do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos. À esquerda, a primeira versão. Editada em 1984, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, ela foi produzida pelos CBAs. Ao centro, a segunda versão. Editada em

1995 pelo Governo de Pernambuco, foi atualizada pela Comissão de Familiares, GTNM/RJ e GTNM/PE. À direita, a terceira versão. Produzida pelas mesmas entidades, que a atualizaram após à conclusão dos trabalhos da CEMDP.

Foi editada em 2009, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

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e que sugerem esse destino. Essas informações são referenciadas nos mais diferentes artefatos que constituem “provas” - fotografias, inquéritos, laudos periciais, testemunhos, documentos da repres-são, investigações jornalísticas e livros – cuja existência varia caso a caso, procurando reduzir as in-certezas que os circunstanciam. Cada caso, portanto, é o produto final de buscas, provas e informa-ções articuladas em uma narrativa coerente e verossímil que liga um desaparecimento em particular ao fenômeno do “desaparecimento político”. Se algumas histórias possuem detalhes que beiram o absurdo, outras são tão desprovidas de informações que permitiriam supor qualquer desfecho. Os casos são uma forma de construir um roteiro seguro entre a singularidade (e as incertezas) do ocorrido com cada sujeito concreto e um mesmo destino (prisão, tortura, morte e desaparecimento) seguramente atribuído a um sujeito coletivo, os militantes políticos. Não é à toa que o Dossiê contém também um longo texto de apresentação que precede os casos, assim como vários textos menores que buscam contextualizar a Ditadura, bem como os passos, processos e ações que constituem a “luta dos familiares”. No decurso de sua leitura, a Ditadura surge como o agente perseguidor, os militantes como o alvo, e os familiares e sobreviventes como aqueles que assumiram o protagonis-mo das investigações, dominando o conjunto de informações e conhecimentos ali reunidos.126

A constituição dos casos e sua sustentação pública por uma rede de reconhecimento em torno à denúncia, mostrou-se fundamental para a admissibilidade de cada uma e do conjunto delas. Basta lembrarmos passagens anteriores dessa tese, em que os familiares relatam terem sido acusados de loucos, quando confrontavam as versões de suicídio, resistência ou atropelamento apresentadas pela Ditadura. Ou quando afirmavam terem sido sequestrados e desaparecidos militantes que a Ditadura declarava foragidos. Foram acusados ainda de inventarem episódios que jamais teriam existido, como a Guerrilha do Araguaia. Conforme aponta Boltanski (2000), além dos inúmeros obstáculos que se apresentam para a formulação de uma denúncia, muitos deles da ordem da violência, como a ameaça e o temor, existem regras que precisam ser obser-vadas para que e mesma seja considerada digna de ser examinada. A denúncia precisa parecer “normal”, antes do que fruto de condutas consideradas paranoicas. Um dos passos mais impor-tantes para essa aceitabilidade seria a capacidade do denunciante de des-singularizar o aconteci-mento, apresentando-o como manifestação particular de um problema mais amplo. Justamente o exercício inscrito na produção do caso como forma social e narrativa, como veremos a seguir.

Conforme argumenta o autor, as denúncias são fruto de ofensas aos sentidos de justiça dos atores sociais, mas se esse protesto não logra mobilizar uma quantidade importante de pessoas, nem compromete instituições reconhecidas socialmente, permanecerá sendo tratado como um evento puramente circunstancial ou de interesse pessoal. Mas,

126 Ciente da importância do Dossiê nesse processo de coletivização e particularização que forjam articuladamente os casos e a causa, uma das minhas primeiras providências foi adquirir meu próprio exemplar. O livro de 800 páginas permaneceu todo o tempo de pesquisa e escrita na minha mesa de trabalho, sendo constantemente consultado.

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se, ao contrário, seu protesto é escutado, se ela consegue que a sigam, se cer-tas instâncias autorizadas (…) estabelecem uma equivalência entre seu caso e outros considerados similares; se seu caso, definido então como exemplar, se utiliza a serviço de uma causa que passa a ser considerada geral, poderá em consequência ampliar-se, mobilizar um número importante de pessoas, aceder ao status de problema coletivo. (BOLTANSKI, Op. Cit.: 24).

Como consequência, o que é definido como singular ou coletivo, como desapa-recimento “comum” (que não constitui necessariamente um crime passível de ser atribuído à política repressiva da Ditadura) ou “político” (que se converte em denúncia e tem poder sensibilizador) é fruto das atividades dos atores sociais, de sua ação política ao longo dos anos na construção de uma causa coletiva. Eles o fizeram (e o fazem), as custas de disputas em que pretendem provar “a verdade” ou a “verdadeira face” de um fenômeno que deve ser problema-tizado socialmente, cujos opositores procuram mostrar serem “inventados”, “construídos” ou “inflados”. Nesse sentido, são comuns as argumentações de que as torturas foram frutos de excessos localizados, as acusações de ex-agentes do regime de que certos “desaparecidos” na realidade estariam vivos, e que as testemunhas dos casos são “sempre as mesmas pessoas”, em um intuito de desacreditá-las. Ou ainda, acusações de que suas pretensões de justiça traduzem ilegítimos desejos de vingança, o chamado “revanchismo”.

Tal como defende Boltanski (Op. Cit.), dispersar essas acusações, construir a plau-sibilidade das denúncias e a aceitabilidade de cada um dos casos passou por um processo de aproximá-las, tomando-as parte de um método, o desaparecimento político, desenvolvido por um sistema repressivo, a Ditadura, inserido em um contexto histórico preciso, a Guerra Fria, próximo de outros regimes característicos do século XX, os totalitarismos. Exercício que, de um lado, demanda um esforço de universalização da injustiça, inserindo-a na gramática dos Direitos Humanos e na moralidade prospectiva do Nunca Mais. Fazer dela uma causa que permita a identificação e a comoção pública, tornando o “desaparecimento político” um fenômeno geral e de interesse comum e, em um dado momento, uma figura do ordenamento jurídico. De outro lado, foi necessário a exposição da singularidade dos casos, a busca de informações, a reconstru-ção dos eventos particulares, permitindo que os acontecimentos sejam vistos como expressão de um fenômeno mais amplo a partir da junção de provas que garantem a veracidade das violências singulares que, associadas, iluminam um método. Assim como se mostrou relevante a recupe-ração das histórias dos sujeitos concretos e os dramas pessoais de seus familiares. Nesse sentido, a construção dos casos e da causa se tornaram um exercício combinado, estabelecendo transições constantes entre o particular e o geral. Processo que, no dizer do autor, contribuem para a cons-trução de pessoas coletivas.

Segundo a análise de Boltanski (2000), a denúncia instaura uma relação entre qua-tro atores: o que denuncia, aquele em favor de quem é a denúncia, aquele contra quem ela se estabelece e aquele a quem ela se dirige (denunciante, vítima, perseguidor e juiz). Esses atores

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se (re)definem constantemente e de maneira relacional, podendo ser identificados em um eixo gradual que vai do singular ao coletivo. No caso mais particular, um desaparecimento, envolven-do um ou mais agentes da repressão, é comunicado por uma família a uma agência institucio-nal (judiciário, MP, comissões, etc.). Os processos judiciais e os requerimentos administrativos enviados às comissões circunstanciam os elementos que fazem de cada ausência um caso de “desaparecimento político” e uma fonte de direitos particulares. Em um outro extremo, temos a comunidade dos “familiares” denunciando as mortes e desaparecimentos de militantes políti-cos operadas pela Ditadura ao conjunto da sociedade. Métodos variados, como atos e protestos políticos, livros, filmes, monumentos e comemorações investem na apreciação dos casos como manifestações de um problema concernente a todos, que inspira medidas de justiça e prevenção no interesse da sociedade.

Ao longo dessas associações e construção de denúncias, a definição do “desapareci-mento político” se mistura à definição de quem são os desaparecidos, apontando de forma mais particularizada uma categoria de vítimas dessa violência: os militantes. É o que podemos observar se voltarmos ao cemitério de Ricardo de Albuquerque, agora (e mais uma vez) com auxílio do filme Memórias para uso Diário. Retomando o ponto, narrado no capítulo anterior, em que Cecília e Romildo conversavam em frente à vala, vemos, na sequência da mesma cena, a dupla envolvida em um esforço por identificar pela memória as vítimas ali sepultadas.127 O diálogo assim se inicia:

Cecília: O Getúlio [de Oliveira Cabral] era....Romildo: um cara altamente capacitado. Pelo menos a história que eu sei dele: tinha curso de treinamento em Cuba. Era um quadro político importan-te do PCBR. Era uma figura importante.Cecília: Getúlio era operário, né?Romildo: é, ele era da Baixada [Fluminense]. De Caxias, né?Cecília: é, era isso mesmo.Romildo: tem um loteamento lá em Caxias com o nome dele. Aí, temos o Valdir Sales Sabóia...Cecília: Valdir Sales Sabóia....Romildo: que era um soldado da PM do Estado da Guanabara, não era isso? Ele tinha caído na clandestinidade. A Maria de Lourdes Wanderley, que era mulher do Paulo Pontes, preso político pelo PCBR em Salvador.Cecília: que foi morta também junto com o ….Romildo: com o Valdir Sales Sabóia lá em Bento Ribeiro, salvo engano.Cecília: isso, isso. Arrombaram a casa e...Romildo: eles criaram também essa coisa do enfrentamento, mas as fotos que a gente tem mostram claramente...Cecília: as marcas de tortura inclusive na Lourdinha.Romildo: isso, Lourdinha tá com marca de tortura! Além deles, nós temos dois nordestinos, que é o José Silton...Cecília: José Silton Pinheiro.

127 Na época das filmagens o monumento, que registra estes dados, ainda não havia sido cons-truído.

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Romildo: que é do Rio Grande do Norte, secundarista. E o José Bartolomeu, que eu não tô lembrado o ….Cecília: José Bartolomeu de Souza.Romildo: de Souza? Cecília: José Bartolomeu de Souza.Romildo: que era de Pernambuco. Secundarista também. Pelo PCBR, em 73, em outubro, tem a Ranúsia Alves Rodrigues...Cecília: que era uma enfermeira.Romildo: era uma enfermeira. Tem o Vitorino Alves Moitinho, que é um capixaba. Tinha o Almir Custódio de Lima.Cecília: Almir Custódio de Lima.Romildo: que era um secundarista também.Cecília: um estudante, é.Romildo: já era companheiro de meu irmão na época de lutas estudantis de Recife. Era secundarista. E meu irmão, o Ramires Maranhão do Vale, que caiu na clandestinidade em 69. Então, fora esse pessoal do PCBR...Cecília: esses são nove. Aí nós temos o Mário de Souza Prata, que era um estudante de engenharia da UFRJ.Romildo: qual era o partido? Cecília: o MR-8. Depois, temos aquele Wilton Ferreira da VAR.Romildo: era o mecânico?Cecília: era o mecânico. Gráfico!Romildo: na grande queda da VAR na Zona Norte.Cecília: isso, isso! Romildo: José Gomes Teixeira da VPR. Quem é que falta? Faltam dois.Cecília: dois que a gente não tá conseguindo identificar...Romildo: Guilhardini, não?Cecília: Luís Guilhardini!Romildo: do PCdoB.Cecília: liderança do PCdoB, era já de idade, era uma pessoa já.... era do Co-mitê Central do PCdoB! Luís Guilhardini, isso mesmo! A mulher foi presa, o filho menor foi preso quando ele foi morto, o menino inclusive foi torturado na frente da mãe.(...)Cecília: Merival tá aqui! É o que faltava! Gente, é o que faltava! Merival Araújo, um estudante da ALN...Romildo: isso, que foi torturado e falta...Cecília: falta pedaços dele! Tá aqui! É isso, Merival Araújo. Fechamos os 14.Romildo: nossa memória não tá tão mal assim! Isso fecha a vala de Ricardo de Albuquerque. A vala clandestina. A Santa Casa não gosta que a gente chame assim...Cecília: mas, é clandestina! Não consta em lugar nenhum! Mas, fecha três pontinhos, porque é possível que ainda hajam outros militantes enterrados aí dentro e nós não conseguimos identificar. (MEMÓRIAS, 2007: 65 min.)

No diálogo entre os dois militantes do GTNM/RJ ficam evidentes os critérios leva-dos em conta na definição de quem são as vítimas do “desaparecimento político”, nos oferecendo pistas para entender alguns motivos pelos quais, de um lado, seriam 14 os desaparecidos sepul-tados na vala e, de outro lado, Virgílio não seria contabilizado entre os “desaparecidos políticos”.

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Em primeiro lugar, fica claro que a rede de denunciantes que afirmei ser fundamental para a sustentação pública da causa dos “mortos e desaparecidos” se estruturou não em torno a todo ou qualquer familiar de pessoa desaparecida naquele período, mas sobretudo em torno aos que por distintas razões tinham ou puderam estabelecer contatos com a rede formada por sobreviventes das organizações reprimidas pela Ditadura e outros setores que reivindicaram para si de forma organizada a condição de “perseguidos políticos” (ou de defensores dos mesmos), pressionando instituições do Estado por reconhecimento.

Em segundo lugar, o diálogo ilumina a relevância desses “sobreviventes” nos proces-sos de construção dos casos. Não é à toa que, apesar do enorme conhecimento que demonstram acerca dos desaparecidos e das violências que sofreram (profissão, dados da biografia militante, situação da prisão, local de morte, marcas de tortura), Cecília e Romildo se guiam por uma espécie de mapa das organizações políticas para recuperar seus nomes. É preciso ainda destacar o fato de que ambos conheceram apenas alguns dos 14 desaparecidos em vida. A outros, eles foram apresentados a partir da morte. O que o diálogo demonstra, portanto, é o domínio dos atores que integram ou apoiam o movimento de familiares sobre os casos, assim como a centra-lidade da militância nas organizações de oposição à Ditadura para a construção do nexo entre esses casos singulares e o “desaparecimento político”. Um nexo que se baseia em percepções sobre identidade e pertencimento a uma comunidade militante. A possibilidade do grupo de “desapa-recidos políticos” enterrados na vala estar ainda incompleto é colocada ao fim do diálogo, mas chama atenção o fato de que eles não deixam de se referir ao universo daqueles que podem ser identificados como “militantes”, portadores de uma trajetória de participação em movimentos sociais ou organizações de oposição à Ditadura. Pertencentes às mesmas redes dos sobreviventes que também os reivindicam.128

Na entrevista que realizei com Beth, falamos novamente sobre Virgílio. Sua reflexão sobre sua ausência das listas de desaparecidos segue também nessa direção:

“poderia ser gente que era simpatizante de alguma organização e que, na rea-lidade, não era militante formal, mas alguém que dava apoio, né? Ou até al-guém que vai a uma manifestação e que não é organizado e, no meio disso tudo, foi preso e é desaparecido. E a família sequer... Porque a família sequer tinha conhecimento de que ele fazia alguma militância. Até porque, se você tá em um regime ditatorial onde tudo é segredo e onde a sua militância também tem que ser segredo, é bom que se diga, os vizinhos não podem saber, nin-guém pode saber, pra você sumir é um negócio fácil, né? Sumir em uma ma-

128 Nesse sentido, também é interessante notar que boa parte dos atores mais visíveis no movimento de fami-liares – os que se apresentam na maior parte dos eventos e reúnem contatos e informações que os colocam como representantes da causa aos olhos dos demais atores – se considera também sobrevivente. Eles são familiares, mas também foram militantes de organizações políticas durante a Ditadura e assim se afirmam publicamente. São os casos de Victória, Beth, Amelinha, Suzana, Criméia, Ivan e Romildo, para mencionar apenas os familiares citados até aqui.

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nifestação, sumir em alguma coisa é fácil. E quem vai resgatar? Quem vai ficar procurando pra denunciar que você sumiu? O que a gente tem conhecimento é das pessoas organizadas que, de alguma maneira, a própria organização, ela deu o mote do desaparecimento. Então, as pessoas que não eram formalmente organizadas, elas obviamente sumiram sem ninguém se dar conta. E a família de repente acha que ela vai procurar em... Hoje, por exemplo, vai tudo quanto é lugar, vai no cemitério, vai no hospital, vai a isso, vai àquilo e aí? Se for uma Ditadura, é aí que você não vai saber mesmo. Devem ter inúmeros casos nesse sentido nesse país, grande desse tamanho”. (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 2013).

Em um universo de militância clandestina, as organizações e seus militantes sobre-viventes seriam centrais para recuperar as informações sobre os desaparecimentos e as mortes que fundamentaram as primeiras denúncias. Eram as organizações políticas e seus militantes que, muitas vezes, informavam às famílias sobre as prisões ou sequestros e possuíam uma série de informações sobre a militância do desaparecido que o familiar não dispunha. Beth sugere, portanto, a relevância da inserção dos sujeitos sociais, tanto das vítimas, quanto daqueles que decidem buscá-las, em determinadas coletividades para que suas ausências sejam construídas socialmente como um “desaparecimento político”. Nesse ponto, não me parece temerário dizer que Virgílio não é um “desaparecido político” porque, por razões que não poderemos precisar, os eventos que provocaram sua ausência de seus círculos de relação e afeto não puderam ser enredados como um caso. Observando esses processos, chama atenção que a construção da causa e daquilo que constituí “o que é o desaparecimento político” no Brasil não se fez (e não se faz) separadamente da construção dos casos e da definição de “quem são os desaparecidos”. Símbolo disso é a própria Lei de Mortos e Desaparecidos trazendo como anexo a lista de casos particulares que recebiam essa classificação. É também essa relação estreitamente tecida que nos sugere uma ausência de ambiguidades no “desaparecimento político”.129

Conforme argumentei até aqui, os casos são produtos de certas relações sociais, atos políticos e trâmites burocráticos que constituíram, simultaneamente, a comunidade dos

129 Voltando ao trabalho de Ferreira (2011), podemos perceber que esse movimento combinado na definição de “o que é” e “quem são” os desaparecidos políticos é bastante distinto da separação que a autora observa na gestão do “desaparecimento de pessoas”. De um lado, ele é objeto policial, sendo as delegacias o espaço por excelência da construção dos casos. De outro, é objeto político da Rede Nacio-nal de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (Redesap), em eventos em que é debatido genericamente como causa e “problema social”, visando formas de prevenção. Conforme discute a autora, há uma diferença entre o registro de desaparecimentos nas delegacias como problemas menores, muitas vezes tratados como responsabilidade que não deveriam caber à polícia, e os eventos públicos em que eles são tratados como questões graves e de urgente resolução. Ademais, a constru-ção do “desaparecimento de pessoas” como problema social não passa pela evocação dos casos, mas se constituí ignorando-os. Essa forma de tratar o “problema” é, portanto, distinta da forma de construir o “desaparecimento político”. Mais uma razão pela qual, comparativamente, esse fenômeno parece menos ambíguo que aquele.

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“desaparecidos” e de seus “familiares” ao longo de um processo de luta por reconhecimento pú-blico e afirmação de direitos que passa, necessariamente, por sucessivos encontros com a trama de instituições que constituem o Estado. A CEMDP havia sido o principal espaço institucional destinado a esse reconhecimento. Porém, com o surgimento das comissões da verdade esses debates reacendem, nos permitindo observar empiricamente como certas ausências se tornam casos de “desaparecimento político” e como, através da construção desses casos, os “familiares” se inserem como ator coletivo na cena pública. Na próxima seção, me volto para as atividades da CVRP para explorar mais de perto essa questão, partindo de alguns exemplos, selecionados por mim, do amplo conjunto de casos debatidos nas audiências públicas.

A Comissão da Verdade Rubens Paiva

Caro leitor: Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.

(Bernardo Kucinski, K. Relato de uma busca)

Antes de passar aos casos, devo aproveitar a oportunidade para tecer algumas considerações sobre a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva (CVRP). Criada por uma resolução interna da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, para atuar no âmbito dessa casa, a CVRP teria como objetivo colaborar com a CNV, dedicando-se a esclarecer as “graves violações de direitos humanos” ocorridas no Estado de São Paulo ou praticadas por seus agentes públicos.130 A comissão foi instalada em março de 2012, em cerimônia realizada na própria Assembleia, quando foram empossados seus cinco membros, deputados de diferentes partidos. Foi nomeado como presidente do grupo o autor do projeto de resolução que a criou, o deputado Adriano Diogo, que é um ex-preso político.

130 A CNV foi criada pela Lei Nº 12.528 de 18 de novembro de 2011. Segundo seu Art. 3º, seus objetivos são: “I – esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos (...); II – promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; III – identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as insti-tuições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; IV – encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art.1º da Lei Nº 9140 de dezembro de 1995; V – colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos; VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e VII – promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações”. Segundo a Resolução Nº 879, de 10 DE FEVEREIRO DE 2012, a Comissão estadual possui exatamente os mesmos objetivos, mas tem seu campo de investigação restrito ao Estado de São Paulo.

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A comissão passou por um período de estruturação interna, nomeação de assessores, definição de tarefas, entre outras medidas organizativas, vindo a iniciar seus trabalhos públicos a partir de outubro daquele mesmo ano. Enquanto os deputados, membros efetivos, tinham a participação na comissão como mais uma de suas muitas tarefas como parlamentares, um grupo de assessores com dedicação exclusiva foi selecionado para levar adiante os trabalhos cotidianos, acompanhados de perto pelo presidente. O grupo foi instalado em uma sala nas dependências da Assembleia, um espaço coletivo em que foram dispostas mesas e computadores individuais para cada assessor, havendo apenas um pequeno gabinete separado para a coordenação das atividades. Entre os assessores, foram contratados dois militantes da Comissão de Familiares, Ivan Seixas e Maria Amélia de Almeida Teles, além de outros 5 jovens, entre os quais havia duas “familia-res”. Reunidos todos os dias, os assessores se dedicavam, sobretudo, a preparar as audiências públicas, que eram realizadas nos auditórios da Assembleia e transmitidas ao vivo pela Tv Alesp e pela internet.131 Ao final do processo, esse mesmo grupo, acrescido de mais alguns assessores contratados, foi responsável pela elaboração do relatório final, enviado à CNV com o intuito de colaborar com a feitura do relatório nacional. Processo que se repetiu com as outras comissões da verdade instaladas por todo o país.

É preciso alertar que o fato da maior parte das comissões estaduais vincularem seus trabalhos a um propósito de contribuição com a comissão nacional, não implicou em uma ho-mogeneidade metodológica entre elas. Apesar das tentativas de articulação dos trabalhos, não é possível dizer que houve um padrão comum para as investigações. Cada uma delas desenvolveu seu próprio método de trabalho, assim como definiu seus objetivos específicos frente ao propósi-to geral que lhes fora comumente atribuído pelas leis ou medidas administrativas que as criaram: “esclarecer as graves violações de direitos humanos” ocorridas no passado. Em outubro de 2012, a primeira audiência pública da CVRP celebrou a assinatura de um acordo de cooperação com a Comissão Nacional da Verdade. Durante a cerimônia, foi oficialmente divulgado o objeto espe-cífico das investigações e a metodologia de trabalho da comissão paulista. Segundo o acordo, a CVRP se dedicaria, a partir de então, a investigar prioritariamente os casos de pessoas desapare-cidas ou mortas em São Paulo ou que tenham nascido no estado, mesmo que desaparecidas ou mortas em outros locais. O documento trazia como anexo uma lista de 140 casos, selecionados do Dossiê, que seriam o objeto inicial das investigações.132

131 As audiências podem ser encontradas no Canal da CVRP no site You Tube (https://www.youtu-be.com/user/comissaodaverdadesp, acesso 16/12/14). Ou ainda, na plataforma virtual Verdade Aberta (http://verdadeaberta.org/, acesso em 12/03/15). A plataforma disponibiliza o relatório final, a descrição de todos os 168 casos trabalhados pela comissão, vídeos e transcrições de audiências entre outros docu-mentos. Todo o material referente às audiências citado nessa tese pode ser acessado nesta plataforma.

132 A opção por aprofundar a investigação sobre os casos conhecidos, em detrimento de buscar novos reforça a perspectiva de que os “mortos e desaparecidos” são um universo já totalizado. Isso não significa que adicionar novos casos aos já conhecidos tenha sido algo interdito, mas uma ação que demandava certos cuidados. Certo dia na sala da Comissão, presenciei uma assessora atender à ligação de uma pes-

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Ainda que tais casos não tenham limitado os trabalhos, eles se converteram no eixo temático principal das audiências públicas.133 Cabe notar que, desde o primeiro momento, as audiências foram declaradas como o espaço prioritário de realização dos trabalhos da CVRP, onde a coleta de testemunhos se mostrou a metodologia principal. Para além disso, como outros espaços MVJ descritos no capítulo 1, as audiências também se converteram em espaços de ho-menagem, de apresentação de resultados de pesquisas em fontes documentais, de divulgação de informações que, por solicitação de alguns depoentes, precisaram ser colhidas em sigilo, além de debates com o intuito de tecer diagnósticos sobre o estado atual das políticas de MVJ no Brasil e prescrever medidas para atacar os inúmeros “legados da Ditadura” identificados a partir desses diálogos. Ao longo de 2013 e 2014, foram realizadas diversas audiências por mês, a maioria delas sobre casos de “mortos e desaparecidos”.

Nas primeiras vezes em que participei das audiências, pude reencontrar entre os membros da comissão pessoas com quem já tivera um contato prévio em outras atividades da rede MVJ. Também conheci novos atores, como a antropóloga Amanda Brandão. Juntas, tro-camos ideias e acompanhamos os trabalhos da comissão. Frequentar as audiências com alguma assiduidade me permitiu um contato mais constante, sobretudo com os assessores (entre os quais, os membros da Comissão de Familiares), não somente no decurso das audiências, mas também em conversas nos intervalos, corredores, almoços e na própria sala da comissão, que se mostrava sempre aberta ao público mais interessado. Tal como ocorreu no Rio de Janeiro com os membros do GTNM, essa convivência permitiu que eu os reencontrasse ou os acompanhasse a outras atividades públicas relacionadas à Ditadura, exteriores à Assembleia, mantendo contatos e conversas constantes. Apesar disso, minha ida à CVRP esteve sempre condicionada à realiza-ção das audiências, as quais eu comparecia como parte do público interessado, ainda que uma

soa que denunciava a morte de um militante e pedia uma audiência para tratar do assunto. A assessora escutou, afirmando, em seguida, não conhecer tal caso, razão pela qual pediu que lhe fossem enviados documentos para análise. Logo após desligar o telefone, percebendo meu interesse, comentou comigo que estas precauções eram necessárias para não se correr o risco de fazer uma audiência e “alguém chegar e dizer que não tem nada a ver”. Segundo ela, isso desmoralizaria todo o trabalho da comissão. Essa preocupação em relação à credibilidade do empreendimento e a certificação dos dados apresenta-dos também aparece na pesquisa de Vecchioli (2001) sobre a construção do monumento às “vítimas do terrorismo de estado”.

133 Além das audiências sobre os casos de mortos e desaparecidos, a CVRP também realizou um con-junto de audiências sobre temas mais amplos, tais como: a vala de Perus; processos civis de familiares contra torturadores; violência de gênero na tortura; violência contra os filhos de militantes, em uma semana de audiência que receberam o nome de “Infância Roubada”; o funcionamento da repressão; a colaboração de empresários com o aparato repressivo, entre vários outros. Como a comissão paulista, a pernambucana também apostou nos casos como metodologia, embora tenha optado por tomar não apenas mortes e desaparecimentos, mas também situações de prisão e tortura envolvendo sobreviventes. Outras comissões, como a nacional e a carioca, optaram por realizar audiências sobre temáticas amplas, embora tenham feito, em menor quantidade, sobre casos particulares.

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condição diferenciada de pesquisadora me fosse atribuída pelos assessores.134

Antes de seguir, me parece importante apontar uma característica das audiências da CVRP que não surgirá em sua plenitude nesse ponto da análise, em função do conteúdo que pretendo por ora ressaltar. Tendo como principal metodologia de trabalho a coleta de tes-temunhos, as audiências eram estruturadas a partir de convites feitos a um número variável de depoentes, a depender do caso. Eles eram reunidos em uma mesma mesa e ouvidos sucessiva-mente. Em geral, poucas perguntas, interrupções ou gestões de condução eram feitas por parte dos membros da comissão. Os depoentes podiam ser pessoas com vínculos com o desaparecido, amigos, “companheiros de luta”, familiares e militantes; variados tipos de testemunhas; ou ainda profissionais informados sobre o caso, como jornalistas ou procuradores, por exemplo. Estive diante de atores dispostos a falar sobre temas como a vida, a militância ou a ausência de cada morto ou desaparecido e/ou compartilhar informações sobre o fatos que levaram a sua morte/desaparecimento. De atores que falavam sobre um fato pessoalmente testemunhado a outros que demonstravam domínio sobre o conjunto de eventos que compõem o caso.

Essa variabilidade de atores e de tipos de enunciados por eles transmitidos confe-riam um caráter errático às audiências. Algo que é, de certa forma, condizente com a centrali-dade dada ao testemunho, assim como com as diferenças e particularidades envolvidas em cada ausência. No entanto, a cada audiência, era possível perceber que essas diferenças iam sendo costuradas em uma estrutura narrativa similar, enredos capazes de conectar acontecimentos de modo a constituí-los como um caso de “morte e desaparecimento político”. De um lado, éramos expostos a testemunhos livres que podiam transitar entre emoções (o sofrimento, a saudade, a

134 Foram diversas as situações em que essa nossa condição (minha e de Amanda) foi ressaltada. Ape-sar de nossa constante presença nas audiências e alguma circulação pelos espaços de “bastidores” da comissão (que não eram exatamente fechados aos interessados, mas se contrapunham aos espaços das audiências, propriamente pensados para a participação pública), os assessores deixavam claro a existên-cia de uma diferença entre nós e o grupo de membros da comissão. De minha parte, posso dizer que algumas vezes fui apresentada como “antropóloga” ou como a “nossa antropóloga”, mas sempre através de declarações que expressavam a clareza de que eu não realizava um trabalho “para nós”, mas “sobre nós”. Exemplificam essa percepção advertências para que tivessem cuidado com o que diziam ao meu lado, porque eu “poderia colocar na tese”; pequenas piadas e questionamentos sobre o que eu escreveria sobre um ou outro ator específico; ou pedidos para que fornecêssemos nossos cadernos de campos como fonte para a escrita do relatório final. O tom sempre jocoso e amigável dessas declarações me deixavam perceber tanto uma intenção de marcar diferença entre o nosso trabalho e o deles e, consequentemente, a impossibilidade de que compartilhássemos todos os momentos ou todas as informações como parte daquele grupo, quanto de ressaltar os laços que, por outro lado, conseguíamos estabelecer como resul-tado do nosso interesse por seu trabalho. Ao contrário de perceber essas brincadeiras como ameaças ou formas de constrangimento, sentia-me tranquilizada, na medida em que demonstravam acolhimento, ao mesmo tempo em que revelavam clareza sobre os objetivos de minha participação naquele espaço. Na fase final dos trabalhos da Comissão, a escrita do relatório, Amanda foi contratada como assessora, al-cançando assim um outro tipo de inserção no campo. Sua pesquisa resultou em dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP (RIBEIRO, 2015).

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ansiedade e os sentimentos de injustiça) e reflexões sobre os sonhos, destinos e frustrações de um grupo que lutou contra a Ditadura ou de familiares que buscam Memória, Verdade e Justiça. Ir de temas como os elementos concretos que produziram uma ausência particular, impedem a identificação de um corpo ou a produção de um atestado de óbito aceitável até reflexões sobre a sistematicidade da violência como política da Ditadura ou sobre os esquecimentos e silêncios que mantém a impunidade e a injustiça no presente.

De outro lado, era impossível não notar os esforços estabelecidos para produzir um entrelaçamento entre essas distintas falas. O movimento mais evidente ficava por conta da lei-tura do chamado “memorial” como primeiro ato de cada sessão. Embora cansativa, nos explicou um assessor, a leitura seria “importante para documentar o que foi feito até agora”. O memorial consistia em um resumo do caso narrado no Dossiê. Geralmente projetado em um telão, no início da audiência, o memorial era lido por um assessor e antecipava uma visão geral dos acon-tecimentos e documentos que seriam expostos ao longo da audiência, assim como apresentava o enredo que fazia daquela ausência em particular um caso de “desaparecimento político”. Os casos surgiam assim como uma forma narrativa específica, um artefato politicamente manejável na construção do “desaparecimento político” como um problema social. Os dados e o encadea-mento narrativo exposto por meio do memorial seriam sustentados a despeito de incertezas, ambiguidades e eventuais discordâncias, como desejo mostrar na sequência.

A primeira audiência pública da CVRP tratou o caso Luiz Eurico Tejera Lisbôa, analisado a seguir. A leitura do memorial ainda não havia sido adotada como método, desse modo quem se ocupou de reconstruí-lo foi Suzana Lisbôa, testemunha naquele dia. O que se-gue é a minha reconstrução de seu depoimento, procurando respeitar os fatos destacados, assim como o encadeamento narrativo estabelecido. Na apresentação dos casos seguintes, acompanha-rei a metodologia das audiências, fazendo uso textual dos memoriais.

Luiz Eurico Tejera Lisbôa

Suzana e Luiz Eurico se conheceram em Porto Alegre, onde eram militantes do movimento estudantil. No decorrer da militância, ingressaram na Ação Libertadora Nacional (ALN). Casaram-se em 1969, ano em Luiz Eurico foi condenado a seis meses de prisão, em um Inquérito Policial Militar (IMP) que investigava sua participação no movimento estudantil. Com isso, o casal passou a viver clandestinamente. Em 1972, Suzana viaja sozinha a São Paulo para “cumprir tarefas” da organização.

Passado um tempo, sem notícias da esposa e temendo que ela tivesse sido presa, Luiz Eurico vai para São Paulo. O casal nunca chega a se encontrar novamente.

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Sem qualquer notícia do companheiro, Suzana vive clandestina até 1978, mas consegue denunciar seu completo desaparecimento como provável fruto de ação da repressão política. Por essa razão, seu nome passa figurar nas primeiras listas de desaparecidos que são confeccionadas e divulgadas ainda durante a Ditadura.

Em abril de 1979, Suzana é convidada a se reunir com outros “familiares de desaparecidos políticos”, pelo amigo e militante Sérgio Xavier Ferreira (primo do desaparecido Carlos Alberto Soares de Freitas), no Encontro pela Anistia, realizado no Rio de Janeiro. Nessa mesma ocasião, ela foi procurada por uma pessoa próxima a sua família que dizia ter uma relação pessoal com o chefe do SNI e se oferecia para buscar informações sobre Luiz Eurico. Em pouco tempo, a informação trazida pela conhecida foi a de que ele estaria novamente casado, vivendo clandestino em Montevidéu. Acreditando, Suzana foi ao Encontro pela Anistia disposta a retirar seu da lista de desaparecidos.

No evento, Suzana reencontrou Iara Xavier Pereira, ex-companheira de militância na ALN, que recém-retornava do exílio. Iara vivia situação semelhante. Seus dois irmãos, também militantes da ALN, haviam sido declarados mortos em “enfrentamentos com a polícia”, em 1972, mas seus corpos não foram entregues à família e estavam desaparecidos. Iara acabara de obter junto a uma tia que, desde então, vinha procurando os corpos dos irmãos, algumas pistas para a localização. Por ocasião do enterro de seu próprio marido no cemitério de Perus, a tia pediu para ver os livros desse cemitério, onde ainda não os havia buscado. Nele, encontrou o registro do enterro de um dos irmãos, Iuri Xavier Pereira, mas também de um homem identificado como João Maria de Freitas realizado no mesmo dia da morte do outro irmão, Alex de Paula Xavier Pereira. O nome lhe pareceu familiar. Com a nota oficial sobre a morte de Alex publicada nos jornais, a tia encontrou a informação de que, por ocasião da morte, ele portava a identidade de João Maria de Freitas. Dessa descoberta, concluía que a Ditadura enterrara o sobrinho sob o nome falso usado no momento da morte.

Findado o Encontro, Suzana e Iara foram para São Paulo dispostas a realizar uma pesquisa nos registros do cemitério de Perus. Neles, encontraram o enterro, no dia 3 de setembro de 1972, de um homem chamado Nélson B. Suzana acreditou ser Luiz Eurico, porque ele havia usado o nome Nélson Bueno algumas vezes durante o período de clandestinidade. De posse do laudo cadavérico, encontraram informações indicando que o corpo de Nélson Bueno havia sido removido de uma pensão no bairro da Liberdade, após cometer suicídio. Com o endereço em mãos, Suzana foi ao local, levando consigo uma fotografia de Luiz Eurico. Lá, conseguiu uma identificação positiva dos moradores da pensão. Segundo eles, o homem na fotografia era Nélson Bueno. A partir dessa confirmação, o movimento de familiares, em todo o Brasil, foi comunicado. Os envolvidos nas buscas formaram um “comitê de investigação” para tentar encontrar outros desaparecidos enterrados com nomes falsos. Dois corpos localizados em seguida em Perus, de Luiz Eurico e de Dênis Casemiro, foram denunciados publicamente no Congresso Nacional no dia da votação da Lei de Anistia e se tornaram um “marco no movimento de familiares”.

A possível localização do corpo de Luiz Eurico não resolvia, entretanto, o problema de saber como ele havia morrido. A versão de suicídio apresentada no inquérito policial feito à época, e registrada no laudo cadavérico, deixava Suzana em dúvida. Uma vez

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que ela era corroborada pelos moradores da pensão, Suzana pediu, na Justiça, a retificação do atestado de óbito, onde constava o nome falso. Para tanto, o juiz solicitou exumação e análise pericial do corpo. Os exames, entretanto, revelaram que as características da ossada enterrada no local indicado como sepultura de Nélson Bueno não condiziam com as informações do laudo cadavérico feito em 1972. Principalmente, o corpo não apresentava o tiro na cabeça com o qual Nélson Bueno, ou Luiz Eurico, teria se matado. Por essa razão, a justiça demandou a reabertura do inquérito policial e realização de diversas outras exumações, até que se encontrasse um corpo correspondente. Essa ossada foi transladada e enterrada pela família no Rio Grande do Sul.

Mesmo com a retificação do nome no atestado e a localização de um corpo, Suzana seguia com sua dúvida pessoal. Por mais que as fotos do inquérito mostrassem um corpo excessivamente arrumado sobre a cama, além de uma grande quantidade de perfurações de bala no quarto, sugerindo uma troca de tiros, ela temia que ele pudesse ter efetivamente se matado para não ser preso. O inquérito reaberto não trouxe elementos novos, sendo encerrado com a confirmação da versão de suicídio. Uma nova versão para o caso surgiria em 1990, quando o jornalista Caco Barcelos, que investigava os arquivos do IML para uma reportagem, descobriu entre os registros da instituição uma série de requisições de exame cadavérico marcadas com um T (que seria de terrorista) em vermelho. Nessa mesma ocasião, o administrador do cemitério denunciou ao repórter algo que já havia comunicado a alguns familiares, a existência de uma vala comum clandestina onde, ele afirmava, estariam enterrados presos políticos. A denúncia feita aos jornais possibilitou a comoção pública necessária para pressionar pela abertura da vala, que foi realizada pela prefeita Luiza Erundina. Foi através da documentação localizada por Caco que o movimento de familiares conseguiu identificar outros militantes (com seus nomes reais ou falsos) entre as mais de mil ossadas depositadas na vala ou em covas rasas. Por ocasião da abertura da vala, Caco Barcelos fez uma reportagem para o programa Globo Repórter, levando Suzana novamente à pensão. Foi então que uma nova versão para a morte de Luís Eurico foi enunciada. Durante as gravações, um morador disse saber, pela dona do estabelecimento, que o quarto de Luiz Eurico teria sido invadido na madrugada por dois homens que o mataram, exigindo depois cumplicidade dos moradores com a versão de suicídio.

Em 1995, o nome de Luiz Eurico entrou no anexo da Lei Nº 9.140, fazendo com que ele fosse automaticamente reconhecido como “desaparecido político”. Mais recentemente, Suzana pediu ao perito criminal Celso Nenevê, que trabalhou fazendo laudos periciais sobre os casos que chegavam à CEMDP, que analisasse o inquérito, as fotografias da cena e o laudo cadavérico referentes à morte de Luiz Eurico. O perito concluiu que faltavam várias informações, como a data precisa da morte, e exames, como a discriminação do calibre de bala que o matou, além de afirmar que a descrição da cena do crime era inconsistente com o que podia ser observado nas fotografias. Declarou, finalmente, que o inquérito era como um todo inconsistente e cheio de falhas técnicas, visto que a cena apresentava, a seu ver, características de homicídio, assim como a descrição do ferimento no laudo cadavérico não mencionava características de tiro a curta distância, como “zona de chama” ou “tatuagem” e descrições sobre “espargimento de massa encefálica ou sangue”.

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O auditório Teotônio Vilela foi o cenário da maior parte das audiências da CVRP. Sentada em sua comprida mesa, ao lado de Adriano Diogo e duas representantes da CNV, Suzana Lisbôa tinha diante de si duas pastas vermelhas grossas contendo papéis.135 No interior, o inquérito sobre a morte de Nélson Bueno, o processo judicial para a alteração do atestado de óbito do mesmo, o atestado de óbito de Luiz Eurico e o laudo da recente perícia feita nas fotos do corpo e da cena do crime do inquérito original. Reunidos os documentos revelavam não mais que informações desconexas. À medida que falava, dispondo sobre a mesa papéis e fotografias, Suzana dava sentido a cada um desses registros, acentuando a carga moral e afetiva por trás de sua conquista, ao passo em que os relacionava pacientemente. Dessa costura narrativa, emergia um enredo que não deixava dúvidas: Luiz Eurico é um “desaparecido político”.

Narradora e protagonista de tal relato, Suzana surge como esposa perplexa diante de um fenômeno desconcertante. Entre o desaparecimento de Luís Eurico e a localização do registro público que documenta o enterro e a morte de um tal Nélson Bueno, descortina-se uma realidade insólita em que as verdades certificadas pelas instituições contrastam com dúvidas e inquietações pessoais. Em um primeiro momento sem informação, sem morte, sem corpo, enganada por pessoas que tentaram desviá-la de sua busca, Suzana fala a partir de uma incom-preensão íntima provocada pelo sofrimento frente a ruptura abrupta de uma relação de afeto e cuidado, da culpa de saber que o companheiro desapareceu enquanto a procurava, e dos laços que mantém renovados os compromissos com sua memória. Mas, se a ausência de Luiz Eurico existe como um caso de “desaparecimento político” é porque a trama privada dos afetos e senti-mentos que o percebem como um evento disruptivo e excepcional – incomunicável em sua dor e enigmático em seu desenrolar – se associa, na demanda pública por Verdade e Justiça, com formas de compreendê-lo como parte de um fenômeno mais amplo. É na sobreposição entre os acontecimentos específicos na trajetória de Luiz Eurico e aquilo que se define como o fenômeno do “desaparecimento político” (sequestro, provável tortura, assassinato e ocultação de cadáver), entre processos íntimos que perfazem a lida com o sofrimento e a construção de uma manifesta-ção pública por reconhecimento que a perplexidade e a devastação iniciais de Suzana vão dando lugar a formas (coletivas) de se apropriar e entender/explicar a perda.

Conforme aponta Das (1995, 2007), há diferentes formas e estratégias a partir das quais os sujeitos sociais ocuparão os espaços de devastação abertos por eventos críticos, reinscre-vendo-se no mundo. A fala de Suzana nos deixa entrever como, no caso em tela, a narrativa testemunhal é uma estratégia essencial, capaz de conduzir um agenciamento coletivo que tanto produz espaços públicos para trabalhar a dor, quanto afirma formas comuns para expressão dos lamentos individuais. Tal como aponta Ortega,

135 1º audiência pública da CVRP, 12 de novembro de 2012, auditório Teotônio Vilela. Caderno de Campo 2, 12/11/12.

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o modo narrativo integra diversos elementos da trama, potencializa sua capa-cidade significativa, produz coerência social e conduz ou sugere uma resolução dos conflitos elaborados. A modalidade narrativa é a forma discursiva primor-dial com a qual moralizamos a realidade, o que explica porque frequentemen-te lhe atribuem faculdades terapêuticas (ORTEGA, 2008: 44).

Dialogando com o trabalho de Das, o autor afirma que a produção de narrativas é uma forma de ordenar e moralizar a realidade e, ao mesmo tempo, estabelecer relações. Ela de-pende de uma pragmática que a considere um ato social, um processo aberto, contínuo e cotidia-no em que se modelam formas coletivas a partir das quais os discursos sobre a violência podem se fazer ouvir na esfera pública, negociando as fronteiras entre o eu e a coletividade. Ainda que os sujeitos sociais não se expressem exclusivamente através dessas formas coletivas, elas podem se tornam maneiras importantes de se apropriar privadamente da dor e, ao mesmo tempo, co-municá-la ao outro. Fazer do lamento uma demanda pública é uma das formas possíveis para se romper os bloqueios à compreensão e à comunicabilidade dos eventos críticos.

De fato, operando no interior de uma prática coletiva, o testemunho de Suzana pa-rece passar menos pela demarcação dos aspectos incompreensíveis embutidos na ausência de seu marido, embora essa dimensão esteja também presente, do que por um esforço para construir uma narrativa que lhe confira um sentido preciso.136 No enredar dos acontecimentos que procu-ram expressar “quando”, “como” e “onde” Luiz Eurico se tornou um desaparecido, Suzana vai se afirmando não somente como sua viúva, mas também como representante das demandas e ini-ciativas de um coletivo. Como militante da Comissão de Familiares, por 10 anos a representante dos “familiares” na CEMDP, ela toma para si e para o coletivo que integra o protagonismo das investigações que afirmam uma resposta certa para essas perguntas: Luiz Eurico foi morto em uma pensão e enterrado com nome falso em Perus, segundo o método aplicado pela Ditadura contra militantes políticos. Suzana demanda (e recebe) voz não apenas pela legitimidade de familiar que reclama a ausência de um ente querido, mas por sua competência para explicá-la na plenitude de seus detalhes, das particularidades às generalidades que o fixam como um caso de “desaparecimento político”. Nesse sentido, chama atenção a semelhança entre seu relato e as narrativas do caso presentes no Dossiê e no relatório da CEMDP, no que pese seu relato investir em um maior detalhamento da trajetória afetiva do casal. Fato que não tem importância menor.

O testemunho se desenvolveu por cerca de uma hora. Ao longo dele, podemos notar um encadeamento de fatos que se dispersam por mais de quarenta anos, mas que surgem em uma forma sintética, notavelmente objetiva em vista do profundo sofrimento que podemos imaginar

136 Em outro contexto etnográfico, o movimento LGBT, Efrem Filho também observa o esforço por tornar a violência algo compreensível. Em suas palavras, “o domínio do inexplicável perde espaço para as investidas políticas do movimento” (2013:15). Vianna (2014) também observa entre seus interlocutores a construção de uma “sociologia da injustiça estrutural” que os ajuda a domesticar o impacto desnorteador da violência.

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perpassar esses anos de busca. Entre as duas temporalidades que mencionei no final do capítulo 2, a progressiva e a cíclica, Suzana procura estruturar sua fala segundo a primeira. Ela recons-trói, pela sobreposição cronológica das descobertas, não propriamente os eventos que levaram Luiz Eurico à morte, na medida em que eles permanecem recobertos de incertezas, perdidos em meio a pluralidade de “versões” existentes até os dias de hoje, mas os eventos e registros buro-cráticos que permitem afirmar que seu misterioso sumiço durante uma viagem em 1972 foi um “desaparecimento político”. A produção desse encadeamento, a despeito da possibilidade de se chegar a uma conclusão definitiva sobre o ocorrido, afasta a perspectiva enigmática que costuma acompanhar aqueles que comunicam um desaparecimento (FERREIRA, 2011), levando a uma interpretação dessa ausência como evento decifrável dentro de um quadro restrito de hipóteses.

O primeiro elemento da constituição dessa trama decifrável é afirmar a militância política da vítima. A falta de comunicação por parte de alguém que sabidamente seguiu em uma viagem não é, podemos imaginar, um acontecimento incomum. Mesmo adicionando a passa-gem dos anos, não há nada nesse acontecimento que nos permita supor necessariamente uma motivação trágica (ou “política”) por trás do não retorno ou comunicação do ausente. A princípio, portanto, o desaparecimento de Luiz Eurico está inserido em uma ampla gama de possibilidades que dificulta conclusões sobre o que lhe teria ocorrido. É com isso, inclusive, que jogam aqueles que se dispuseram a dizer que ele estava vivo em outro país. Não seria propriamente o tempo, mas o conhecimento de Suzana acerca das atividades políticas de seu marido, assim como sua inserção nas mesmas redes de militância e no regime de vida próprio da clandestinidade que a permitiu desconfiar que algo de errado havia ocorrido, assim como observar essa ausência como uma quebra de rotina, associando-a ao destino que, em 1972, já era percebido como um risco entre os militantes engajados na luta contra a Ditadura: a prisão sem comunicabilidade ou o sequestro por agentes de segurança.137 Daí que, frente a ausência prolongada de notícias no uni-verso da militância, o nome de Luiz Eurico seja incluído já na primeira lista de desaparecidos, confeccionada ainda na Ditadura, referendado por Suzana e outros militantes.

O segundo elemento que orienta o enredo do “desaparecimento político” é a parti-cipação de certas instituições do Estado nos acontecimentos e a indiferença de outras tantas em relação às tentativas de desvendá-los. A comunicação do caso nas redes de solidariedade e defesa

137 É importante notar que a clandestinidade já consistia em uma quebra de rotina que inaugurava uma nova rotina. Para o militante clandestino, a vida está circunscrita pela errância entre “aparelhos” e não pela fixação em lares. É marcada não por encontros, mas por contatos em “pontos”. A quebra de rotina se configura, portanto, na ausência do militante desses novos espaços e não dos anteriores (lar, emprego, amigos). Isso ocorre porque o militante se afasta de seu universo de relações anteriores, construindo em relação a ele uma nova rotina, em que longas ausências e falta de informações sobre seu cotidiano se torna o “normal”, influenciando, portanto, a temporalidade e os critérios a partir dos quais os familiares e amigos que não integram esse mesmo universo militante perceberão essa ausência como uma nova quebra de rotina. Sobre o tema, ver: RIBEIRO, 2015; FERREIRA, 1996; DELLAMORE, 2012.

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dos “perseguidos políticos” era a contrapartida lógica do descarte da possibilidade de procurar a polícia para comunicar o “desaparecimento” de alguém que já vinha sendo por ela procurado e vivia clandestino. A ausência de qualquer notícia sobre uma possível prisão também impossibili-tava medidas judiciais em sua defesa. Quase certa da participação das instituições repressivas no desaparecimento do marido, Suzana, ela mesma clandestina, se colocou a esperar. Seria apenas com a abertura política e o início de uma vida legal que passaria a procurar Luiz Eurico ati-vamente, desde o primeiro momento, inserindo-se na comunidade dos “familiares de mortos e desaparecidos políticos”. Essa busca vai constituir uma rotina em que o confronto com uma série de instituições do Estado – a polícia, a justiça, o serviço funerário, a CEMDP – redundaria em registros burocráticos que vão produzindo status de verdade para o que antes eram incertezas. A maioria delas, entretanto, é acusada de impor impedimentos aos anseios de Suzana, seja por regis-trarem fatos tidos como falsos (participando das chamadas “versões da Ditadura” para as mortes e desaparecimentos), tais como o registro de óbito em nome de Nélson Bueno e o inquérito policial que classifica sua morte como suicídio; seja por ignorarem ou não terem a pretensão de descobrir a “verdade dos fatos”, como a justiça, que altera o atestado de óbito mantendo a causa mortis duvido-sa, ou o processo de Luiz Eurico na CEMP, para o qual o suicídio na iminência de uma prisão ou o homicídio é indiferente no que se refere a sua atribuição, conferir status “político” para a morte.

Estes registros, por outro lado, puderam ser convertidos em “provas” que permitem, aos poucos, recompor os detalhes que desenlaçam o destino de Luiz Eurico da amplíssima gama de possibilidades iniciais nas quais um desaparecimento está inscrito. Se essa recomposi-ção, que se sedimenta no caso, é o caminho mais seguro entre uma ausência sobre a qual ainda pesam muitas dúvidas e o “desaparecimento político”, também é um repositório de angústias e insatisfações, resignação e esperança. Apesar das dúvidas, ou tomando-as como parte do enredo constitutivo do caso, Suzana pode confrontar as insuficiências das instituições, culpá-las pela permanência dessas incertezas, por seus desejos de verdade e justiça não alcançados, assim como apontar injustiças propositalmente cometidas, acusando atores institucionais do passado e do presente de forjar versões, encobrir crimes ou simplesmente serem indiferentes, em um processo em que são constantemente renovadas as representações sobre o antagonismo entre a memória dos familiares e o esquecimento de uma sociedade indiferente ao seu passado ditatorial. Nesse sentido, a impossibilidade de afirmar exatamente o ocorrido com Luiz Eurico não inviabiliza a existência do caso. Na verdade, esta impossibilidade é constitutiva de um enredamento que pre-tende trazer em si a denúncia do descaso, aferrando a necessidade de desvelar aquilo que Birman e Leite (2004) bem definiram como o submundo opaco das instituições.

Revela-se aqui a ética da desconfiança nutrida pelos “familiares”. Ela determina que o conhecimento acerca de documentos, como inquéritos, perícias e laudos; a mobilização de jargões e termos técnicos; a capacidade de confrontar os registros chancelados pela oficialida-de; entre outras habilidades sejam parte essencial de sua atuação na esfera pública. Tanto para

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demonstrar competência e domínio sobre os códigos e a linguagem do terreno institucional em que os casos são apresentados e podem gerar direitos, autorizando assim suas vozes entre as de outros “especialistas” e “autoridades”, quanto para provocar novas ações que os movimentem, permitindo que sigam adiante em busca da sempre esperada “solução”.138 A fala de Suzana nos sugere ainda que o processo de aprendizado dos códigos burocráticos e de formação de uma linguagem reivindicativa própria da “luta” só pode se dar em meio à construção de relações, seja entre Suzana e outros “familiares”, seja entre os eventos ocorridos com Luiz Eurico e aqueles ocorridos com outros militantes desaparecidos. Tanto o surgimento da hipótese do enterro com nome falso, quanto a localização do corpo, e mesmo as desconfianças de Suzana em relação a versão de suicídio não podem ser separadas na narrativa do processo de desvendamento coletivo pelos familiares dos métodos a partir dos quais a Ditadura matava e se desfazia dos corpos de seus oponentes e/ou camuflava seus assassinatos.

Tomada individualmente a morte de Luís Eurico continua a carregar uma série de incertezas, seja pela falta, seja pela pluralidade de informações: seu corpo teria sido realmente enterrado no lugar de Nélson Bueno? O corpo entregue à família, buscado no cemitério a partir da descrição do laudo de um inquérito considerado forjado, seria mesmo o dele? Ele foi morto ou se matou para não ser preso? Chama atenção que o afastamento dessas incertezas seja neces-sariamente relativo. Por um lado, a produção de um enredo que una os fragmentos conhecidos precisa oferecer uma versão única e verdadeira: a de que o desaparecimento de Luiz Eurico tem como origem seu assassinato pelo sistema repressivo da Ditadura. Para tanto, a associação com outros casos se torna fundamental, tanto para preencher as lacunas e matizar as incertezas, quanto para desmontar a incredulidade gerada pela história que está sendo proposta: a de que Luiz Eurico fora assassinado por policiais após ser emboscado em um quarto de pensão, teve o inquérito sob sua morte forjado como suicídio com a anuência de agentes institucionais e de testemunhas, e seu corpo enterrado propositalmente sob nome falso. Por outro lado, vemos que a fragmentação e a dúvida não são excluídos da narrativa, mas nutridos como base dos reclames por Verdade e das acusações às instituições que teriam por responsabilidade produzi-la.

Nesse sentido, o caso é algo bem capturado pela expressão “ é tudo invenção, mas quase tudo aconteceu”. Esta advertência é lançada por Bernardo Kucinski como epígrafe de K., narrativa

138 Vianna (2014) argumenta que, ao se dedicarem, ao processo de desvelamento da opacidade das instituições, os familiares, ainda que tomem antagonicamente o Estado como entidade homogênea, acabam por destacar seu contínuo processo de fabricação, evidenciando sua existência, simultaneamente como ideia e complexo de aparatos em disputa. Para a autora, ao denunciar uma atuação eminentemente política e estruturada em desigualdades duráveis, evidenciam o Estado como fazer-se. “Processo esse que envolve a construção dos territórios, as práticas discricionárias e arbitrárias presentes em todo o complexo policial-judicial, a natureza socialmente comprometida dos artífices e artefatos técnicos, como boletins de ocorrência, laudos ou autorizações para exumação, bem como dos responsáveis por eles e, sobretudo, a não neutralidade de toda a administração” (VIANNA, Op. Cit.: 225).

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literária sobre o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa. Em ambos os casos, inventar não é o mesmo que mentir ou criar farsas. É se movimentar em meio à dúvida, ou movimentá-la de modo a torná-la parte de uma demanda política, incorporando-a à forma narrativa a partir da qual se produz ordem e sentido para os acontecimentos, sustentando um efeito de verdade. Nas palavras de Ortega (2008), trata-se de ficcionar, “ induzir efeitos de verdade através do uso de prá-ticas discursivas cujos referentes estão em disputa” (ORTEGA, Op. Cit: 61). Fazê-lo de tal maneira que esse discurso fabrique algo que ainda não existia, uma nova forma de conhecer.139 Mas é preciso notar que, ao constituir relações de verdade, a produção dos casos também se mostra capaz de iluminar moralidades, emoções e categorias que orientam os atores sociais no exercício de ordenar e dar sentidos a seus dramas pessoais. Nesse sentido, os casos são também aquilo que Araújo (2012) belamente definiu como pequenos mapas da dor. Eles revelam saberes com-partilhados e novos sujeitos do conhecimento que são produzidos no processo de conversão da peregrinação pessoal em ação coletiva. A partir dessa ação e desse saber comum (“a luta”) é que os familiares irão se afirmar como vozes mais autorizadas a falar sobre as violências do passado. Algo que também pode ser visto nos casos Sônia e Antônio Carlos, narrados a seguir.

139 Sobre a advertência em K., Renato Lessa afirma: “Desfaz-se, nessa bela formulação, a oposição entre “realidade” e “ficção”, e a complementariedade entre ambas acaba por ser admitida. Há, com efeito, muitas for-mas possíveis de fixação de verdades. Uma delas pode ser a combinação entre fato e ficção. Uma combinação que não se dá por justaposição – caso no qual a ausência de dados é completada pela imaginação –, mas por funda necessidade recíproca: a própria força do fato exige o trabalho da imaginação; imaginação cujos efeitos tornam-se tangíveis e significativos para o leitor por meio de operações formais precisas e experimentos textuais” (LESSA, 2014: 184).

Sônia de Moraes Angel Jones Data de nascimento: 09/11/1946 Local de Nascimento: Santiago do Boqueirão (RS) Organização política: ALN

Antônio Carlos Bicalho Lana Data de nascimento: 02/03/1949 Local de nascimento: Ouro Preto (MG) Organização política: ALN

Dados biográficos: Filha de João Luís Moraes e Cléa Lopes de Moraes. Sônia estudou no Colégio de Aplicação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e depois na Faculdade de Economia e Administração da UFRJ, não chegou a se formar sendo desligada pela portaria nº 53 de 24 de setembro de 1969. No Rio de Janeiro, trabalhava como professora de português. Casou-se com Stuart Edgar Angel Jones, militante do MR-8, mais tarde desaparecido e procurado incansavelmente pela mãe, a estilista Zuzu Angel, também morta. Em 01/05/1969, Sônia já tinha sido presa quando participava de manifestação de rua na Praça Tiradentes, sendo levada para o DOPS e, posteriormente, para o

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Presídio Feminino São Judas Tadeu. Sua libertação só aconteceu em 6 de agosto daquele ano. Visada pelos órgãos de segurança depois desse episódio, teve de se manter na clandestinidade. Em maio de 1970, exilou-se na França, onde passou a estudar na Universidade de Vincennes. Para sustentar-se, lecionava português na Escola de Línguas Berlitz, em Paris. Ao saber da prisão e desaparecimento de Stuart, Sônia decidiu voltar ao Brasil para retomar a luta de resistência. Ingressou então na ALN e morou um tempo no Chile, onde trabalhava como fotógrafa. Em maio de 1973, retornou clandestinamente ao Brasil, estabelecendo-se em São Vicente, onde foi viver com Lana.

Filho de Adolfo Bicalho Lana e Adalgisa Gomes de Lana, Antônio Carlos cursou o primário no Grupo Escolar Dom Pedro II e o ginasial na Escola Municipal Marília de Dirceu, em Ouro Preto (MG), sua terra natal, onde iniciou o científico, não concluído. Começou a atuar no Movimento Estudantil na década de 60, em um grupo de militantes formado por secundaristas, universitários e operários. Depois de se filiar à Corrente, transferiu-se para Belo Horizonte, onde participou de algumas ações armadas. Quando essa organização se incorporou à ALN viajou para Cuba, onde fez treinamento de guerrilha, e retornou ao Brasil, sendo inicialmente deslocado para uma curta permanência no Ceará, em 1970. No início de 1971 já atuava em São Paulo, onde se tornaria dirigente da ALN. Em junho de 1972, mesmo ferido com três tiros, foi o único sobrevivente do cerco formado por agentes do DOI-CODI/SP, no restaurante Varella, na Mooca, quando morreram Yuri Xavier Pereira, Marcos Nonato da Fonseca e Ana Maria Nacinovic Corrêa.

Dados sobre a prisão e morte: O casal foi preso em novembro de 1973 em um posto rodoviário no Canal 1, em Santos, onde foram agredidos, segundo testemunhas. A versão oficial, divulgada em 1 de dezembro de 1973 pelos jornais Folha de São Paulo e O Globo, falava de mortes após troca de tiros com a polícia na cidade de São Paulo. A prisão, entretanto, teria ocorrido sem possibilidades de resistência, depois de ser detalhadamente planejada. Segundo investigações feitas pela família, agentes de segurança vinham observando o casal e chegaram a se fazer passar por funcionários do prédio em que moravam. No dia da prisão, o casal pegou um ônibus de viagem em São Vicente/SP. No interior dele já haveriam agentes de segurança. O ônibus deveria parar em uma agência da empresa em Santos para que os passageiros que, como o casal, subiram no meio do percurso pagassem suas passagens. Quando Lana desceu para adquiri-las, encontrou uma agência já cercada. Ele foi preso no interior da agência, após alguma luta corporal, e ela no interior do ônibus. Existem duas versões sobre a tortura e morte do casal. A primeira foi relatada pelo primo do pai de Sônia, coronel do exército e ex-comandante do DOI-CODI de Brasília. A segunda, pelo ex-agente do DOI-CODI/SP, Marival Chaves. Na primeira versão, o casal teria sido levado para o DOI-CODI/SP. Sônia foi enviada para o DOI-CODI/RJ, onde foi torturada, estuprada com um cassetete e enviada de volta para o primeiro órgão já exangue. Em São Paulo, eles teriam sido finalmente mortos a tiros. Na segunda, eles teriam sido levados para um centro de tortura clandestino em São Paulo, onde ficaram de 5 a 10 dias sendo torturados, sendo posteriormente mortos a tiros, e devolvidos ao DOI-CODI/SP. Até hoje não se sabe a data da morte, apenas a da prisão. Apesar de identificada, Sônia foi enterrada sob o nome falso de Esmeralda Siqueira de Aguiar no cemitério de Perus. Lana foi enterrado no mesmo local, identificado por sua identidade original. Eles foram autopsiados pelos legistas Harry Shibata e Paulo Augusto de Queiroz Rocha. A troca do nome de Sônia foi proposital. Os registros do enterro de ambos foram localizados por ocasião das pesquisas dos familiares no cemitério. Em 1981, a família de Sônia entrou na justiça para retificar o atestado de óbito, fez a exumação do corpo identificado como sendo o de Sônia nos registros, providenciando seu translado para o Rio de Janeiro. Além disso, abriu um processo contra o legista Harry Shibata. Em função desse processo, os ossos de Sônia foram novamente analisados,

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A audiência pública dos casos Sônia e Lana foi iniciada pela leitura de seus memo-riais.140 A sessão também contaria com uma única depoente. Mais uma vez Suzana Lisbôa. Sem poder ser considerada testemunha direta dos fatos, nem vítima como no caso anterior, Suzana era agora convocada em virtude de seus conhecimentos sobre os casos. Algo expresso no destaque dado pelo memorial à sua condição de relatora dos mesmos na CEMDP.

A introdução da audiência a partir da leitura do memorial torna mais tangível a ideia de que o caso expressa uma forma narrativa. Tal como o encadeamento que fora constituído pelo testemunho de Suzana para os eventos que envolvem a ausência de Luiz Eurico, o memorial mostra um enredo que se divide entre a afirmação de uma biografia política para as vítimas e a apresentação dos acontecimentos que circunstanciam sua ausência como uma violência de-corrente da ação do sistema repressivo. De forma bastante direta, o memorial procura mostrar que Sônia e Lana, dois experimentados militantes políticos, desapareceram após sofrerem um cerco da repressão. Embora a Ditadura tenha divulgado suas mortes à época através dos jornais, declarando-as resultado de resistência à prisão, os corpos não foram entregues às famílias. Tal como no caso anterior, um conjunto de “provas” (testemunhos, registros funerários, laudos e foto-grafias), reunidos ao longo dos anos, será mobilizado para desmontar essa “versão” e apresentar outra, a de que o casal foi preso com vida, torturado e assassinado em órgãos repressivos, sendo posteriormente enterrado, um deles propositalmente sob nome falso, no cemitério de Perus. A narrativa, aparentemente menos cercada de incertezas que a anterior, não excluí as dúvidas e versões do enredo.

140 44º Audiência Pública da CVRP, 21 de maio de 2013, auditório Paulo Kobayashi. Caderno de campo 3, 21/05/2013

chegando-se a conclusão de que pertenciam a um homem negro de 30 anos. Novas exumações tiveram que ser realizadas para encontrar o corpo de Sônia. Como o corpo identificado à época como sendo o dela não possuía o corte no crânio descrito no laudo como parte da perícia, a família acreditou ser um novo engano e não o aceitou. Já o laudo necroscópico de Lana apenas descrevia um tiro como causa da morte. Fotos posteriormente encontradas no IML pelo movimento de familiares mostravam seu rosto deformado pela tortura. Durante a CPI sobre a vala clandestina de Perus, realizada em 1990 em São Paulo, Harry Shibata declarou que as descrições feitas no laudo eram apenas uma questão de praxe e não correspondiam necessariamente à realidade. Em 1991, os corpos dos dois militantes foram exumados, identificados pela UNICAMP, transladados e enterrados em suas cidades natais. Os pais de Sônia se tornaram fundadores do GTNM/RJ. Na CEMDP, os dois casos tiveram Suzana Lisbôa como relatora, tendo sido aprovados por unanimidade.

Fonte: Informações tiradas do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985. (IEVE- Instituto de Estudos Sobre Violência do Estado e Imprensa Oficial, São Paulo, 2009).

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É possível presumir que os assessores da comissão, ao convidarem Suzana, espera-vam um testemunho que viesse a corroborar com a narrativa apresentada no memorial. E, de fato, foi o que ocorreu. Contudo, da mesma maneira que no caso anterior, podemos perceber que ao se dedicar ao esclarecimento circunstanciado do processo de formação da versão alternativa à “oficial” para as mortes, Suzana ilumina elementos que extravasam aquele padrão narrativo mais formal. Melhor argumentando, creio que estes elementos mostram que o caso é mais do que apenas uma forma narrativa, mas também um instrumento através do qual é possível dar sentido a dramas pessoais, enlaçá-los em projetos coletivos que permitem tornar públicas memórias que circulariam apenas em circuitos mais estreitos. Vemos que Suzana se debruça sobre a construção de um enredo coerente e uma explicação objetiva para o terror vivido pelo casal, para que assim possam ser compreendido e reconhecido pela sociedade. Mas, ao fazê-lo, ela se volta para temas do cotidiano, como o envolvimento emocional e político entre os familiares dedicados a esta tarefa, dando lugar à história da luta na qual ela também se inscreve. Tomando emprestada as pa-lavras de Vianna (2014), parece-me que, em sua pluralidade de sentidos, os casos funcionam “como instrumentos de acusação, de compreensão, de solidariedade e de luto” (VIANNA, Op. Cit.: 210).

O processo de inserção e reconhecimento de mortes violentas no espaço público são, como bem notou Freire (2011), um movimento político e cognitivo. Ele entrelaça e confunde duas dimensões de engajamento, uma singular, o engajamento do sujeito social em relação à sua própria perda, e uma geral, seu engajamento em uma causa coletiva. Nesse sentido, e tal como já observamos com Luiz Eurico, a apresentação do caso, narrativa padrão através da qual as mortes alcançam sentido na esfera pública, proporciona também uma abertura para descortinar a rede de solidariedade que se estrutura em torno da denúncia e ao sofrimento reconhecido como co-mum aos familiares, servindo como afirmação política da comunidade que vem a público reivin-dicar voz. Ao mesmo tempo, o caso permite falar do caráter transformador que o engajamento no processo de denúncia pode representar para cada sujeito envolvido. Não por acaso que, além de toda documentação que figura como “prova” nos casos Sônia e Lana, Suzana tenha mobilizado também um material de caráter mais íntimo para fortalecer seu depoimento: o livro O calvário de Sônia Angel, escrito pelo pai de Sônia.141 E é justamente pelo aspecto transformador do enga-jamento político desse pai que Suzana inicia seu testemunho:

141 À semelhança de K, o livro se localiza em algum lugar entre a denúncia e uma autobiografia de pai focada na vivência da supressão (LESSA, 2014). A diferença formal entre uma narrativa que se declara ficcional e outra que assume um caráter documental não é suficiente para impedir a percepção de seme-lhanças entre os textos. Ambos os livros parecem partir da construção da denúncia para refletir sobre como a trajetória de um pai é atravessada pelo desaparecimento. O universo moral e mental dilacerado pela dor, a angústia da busca e o sentimento de paternidade não encerrado pela morte são temas centrais de ambos os relatos. No caso de K, é o recurso ficcional que permite que o autor, irmão da desaparecida, conduza a narrativa pela perspectiva do pai. Mas, em ambos os casos, a busca pelo corpo e pelas circuns-tâncias da morte tem uma agência transformadora sobre a trajetória individual, ao longo de uma busca que não é apenas pela morte, mas por compreender a vida da filha, seus sonhos e suas escolhas.

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Mais uma vez, eu só posso agradecer a esta comissão a oportunidade de mais essa denúncia. É muito emocionante porque o Moraes e a Cléa [pais de Sônia] foram familiares de muita força dentro do movimento dos familiares. Nós ficamos comentando o que estaria acontecendo hoje se o Moraes fosse vivo e tivesse assistindo a tudo que está acontecendo. Ele era coronel do exército brasileiro, ele levou a Sônia e a Ângela [suas filhas] pra participar da Marcha [da Família com Deus pela Liberdade] em 1964 no Rio de Janeiro e ele tinha convicção de que aquela era uma realidade excelente pro país. Quando a Sônia foi presa em 1969, na época das manifestações de 1º de maio no Rio de Janei-ro, foi o primeiro baque que ele começou a ter com o que tava acontecendo.142

Apesar de tratar-se de um casal envolvido na busca da filha, é Moraes quem protago-niza a maior parte do relato de Suzana. Narrativa focada na “troca de valores” que o militar teria vivenciado, na medida em que passa a investigar a vida e a morte da filha. Tal transformação é relacionada por Suzana tanto aos profundos sentimentos de cuidado e compromisso com a filha, articulados pelo parentesco, quanto ao confronto que ele passa a estabelecer com as instituições do Estado, sobretudo com o Exército, no processo de tentar compreender sua morte. Por essa razão, para adentrar os casos, Suzana vê-se impelida a trazer a público a densidade dessa relação, fazendo com que a história da morte de Sônia começasse a ser contada a partir da saga do pai que, pela força moral de seu afeto, deixa de lado a lealdade militar para apoiar um casal de guerrilhei-ros. Apoiada no livro e nas memórias de sua convivência com os Moraes, como era chamado o casal formado por João e Cléa, seu testemunho envereda pelos detalhes de como, após a primeira prisão da filha, os pais apoiam incondicionalmente a entrada de Sônia e Stuart, seu primeiro companheiro, na vida clandestina. Posteriormente, a saída da filha para o exílio e a vida clandes-tina do genro no Brasil até sua prisão e desaparecimento, em 1971. Suzana se emocionou muito ao ler algumas passagens do livro, dizendo se lembrar de como elas lhe haviam sido contadas pelo próprio Moraes. Para ela, alguns desses relatos expressariam a profunda relação de identi-dade entre a filha e os pais. Como a descoberta quase intuitiva de que Sônia voltaria ao Brasil após a morte de Stuart. O que levou os Moraes a se deslocarem a Santiago do Chile, apenas por supor que seria este o país a partir do qual Sônia entraria clandestina no Brasil. Uma vez no país, (inacreditavelmente) puderam localizar Sônia andando nas ruas, pois não tinham qualquer in-formação de onde ela pudesse estar. Apesar de contrários à sua volta ao Brasil, os pais acabaram mais uma vez por apoiá-la, alugando inclusive o apartamento no qual morava quando foi morta.

Trazer à cena pública esses fragmentos da vida familiar – peculiares emocionantes quando ordinárias ou extraordinárias – significa exaltar as ligações e os compromissos priva-dos, forjados pela convivência, o cotidiano e o amor. Esse movimento, como disse, extravasa os limites mais formais que encerram o caso em torno dos acontecimentos que precisam ser

142 Trecho retirado da transcrição da audiência, disponível em: http://verdadeaberta.org/mortos-de-saparecidos, acesso 15/03/2015. Na época da audiência, D. Cléa encontrava-se seriamente doente. Ela veio a falecer meses depois, ainda durante o período da pesquisa.

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reconhecimentos na esfera pública, porém tem efeitos em termos de legitimação daqueles que falam. A exposição dos sentimentos adquire um forte efeito moral no contraste com o terror e com os inúmeros exemplos de indiferença que vão ser narrados na sequência. Algo que torna a família o sujeito de um sofrimento persistente e genuíno. Porém, caso ampliemos o olhar para além dessa dimensão, sem dúvida extremamente impactante, vai ficando claro que a exposição do sofrimento não é a única estratégia através da qual os “familiares” demandam sua inscrição nas arenas políticas. A capacidade de se transformar a partir da dor e de transformá-la em ação política – essa espécie de caminhar do individual ao coletivo que os leva do luto à luta, nas pala-vras de Araújo (2012) - é outro importante elemento valorizado nessa inscrição na medida em que os carateriza como portadores de conhecimentos tanto quanto de sofrimentos.

Suzana é categórica nesse sentido: mais do que pais, os Moraes foram aqueles cujo trabalho “permitiu descobrir o que aconteceu com a Sônia”. A história dessas descobertas remete ao cemitério de Perus, em 1979, quando o destino dos Moraes se cruza com o da Comissão de Familiares (ainda vinculada ao CBA/SP). A primeira verificação dos registros funerários de Perus revelou para os militantes da Comissão o local de óbito de alguns desaparecidos, entre eles: Luiz Eurico, Antônio Carlos Bicalho Lana e Esmeralda Siqueira de Aguiar, que “nós já sabíamos ser a Sônia”. Esse “nós” incluía os pais da militante que conheciam o nome usado pela filha na clandestinidade. Por essa razão, iniciaram sua busca tão logo a morte em tiroteio de Esmeralda foi noticiada nos jornais, em 1973. Eles chegaram ao mesmo cemitério por outros meios. Suzana relata que os Moraes se dirigiram ao apartamento de São Vicente no mesmo dia em que foi no-ticiada a morte. Lá encontraram agentes de segurança que os trataram com violência. Moraes foi ao DOI-CODI/SP tentar identificar o corpo da filha, mas foi impedido. Como alternativa, começou a mobilizar alguns de seus contatos pessoais nas FFAA, razão pela qual foi preso por quatro dias pelo chefe do II Exército. Uma vez solto, Moraes foi informado de que a filha já ha-via sido enterrada. Apenas em 1978, e após muitas movimentações, a família viria a receber do Exército um atestado de óbito em nome de Esmeralda Siqueira de Aguiar. Com o documento em mãos, eles obtinham pela primeira vez uma informação sobre o local de sepultamento de Sônia, assim como a primeira prova de que ela havia sido enterrada propositalmente com nome falso.

Segundo Suzana, durante muitos anos, o casal acreditou na versão de morte em tiroteio, mas após conhecer os membros da Comissão de Familiares, souberam que esta era “uma das versões mais comuns da Ditadura para mortes sob tortura”, decidindo iniciar uma investi-gação. Para saber o que de fato teria ocorrido, Suzana procurou antigos militantes da ALN até chegar à informação de que o casal havia sido abordado pela repressão não em São Paulo, como a Ditadura divulgara, mas em Santos, no Canal 1. A partir daí Suzana e os Moraes empreenderam diversas idas à cidade. Descobriram, em um primeiro momento, que havia um restaurante em frente ao local da abordagem. O dono desse restaurante seria a primeira testemunha ocular loca-lizada a contar que o casal fora preso com vida. Posteriormente, conseguiriam localizar também

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um bilheteiro e o motorista do ônibus que os conduzia. Seus depoimentos, que confirmavam o anterior, foram colhidos em São Paulo, na presença dos advogados Belisário dos Santos Jr. e José Carlos Dias. A continuidade das buscas deu lugar às duas versões existentes sobre as mortes. Uma vinda dos contatos pessoais de Moraes no Exército, outra de Marival Chaves, ex-funcio-nário do DOI-CODI conhecido por fazer, nos anos 1990, uma série de denúncias sobre as ações do órgão. Ambas, apesar das divergências, atestavam a violenta tortura e assassinato do casal.

Além dos testemunhos, as pesquisas em arquivo e a primeira exumação do corpo indi-cado como sendo o de Sônia, em 1981, por iniciativa da família, possibilitou a produção e a locali-zação de uma série de outros documentos, cuja participação na conformação do enredo seria enfa-tizada no decorrer da audiência. Durante a sessão, tais documentos iam sendo projetados no telão, enquanto Suzana, nesse momento auxiliada por Ivan Seixas, conduzia a plateia por uma leitura do conjunto. Ivan apontou como os laudos de necrópsia de Sônia e Lana assinados por Harry Shibata, então diretor do IML de São Paulo, continham apenas a descrição dos tiros que confirmavam a versão de morte em tiroteio. Enfatizou a escassez de detalhamento dos documentos, acentuando a resposta negativa do legista no quesito do laudo que questiona sobre a ocorrência de tortura ou meio cruel na morte. A estes documentos, foram contrapostos outros: como o testemunho dado por Shibata, durante a CPI da Vala da Perus (da qual Ivan, Amelinha e Suzana eram assessores), quando afirmou que os métodos legistas descritos no laudo, como o cerramento de crânio, não eram necessariamente realizados pelos peritos à época. O que para os familiares configuraria uma admissão da prática de forjar laudos. Foram apresentadas ainda as fotografias de Sônia e Lana, localizadas pelo movimento de familiares nos arquivos do IML. Exibidas no telão, elas revelavam evidentes fraturas e marcas de violência não descritas no laudo. Ivan apontou também o estranho fato dos laudos datarem de 1974, um ano depois das mortes terem ocorrido. Mostrou ainda a guia de requisição de laudo enviada junto com o corpo de Lana ao IML marcada com a famosa letra T (simbolizando a palavra terrorista). Por fim, foram exibidos os laudos de identificação dos dois cor-pos produzidos pela UNICAMP em 1991, ação realizada após a CPI da Vala de Perus, e o processo de cassação do registro de Harry Shibata no Conselho Regional de Medicina.

De forma semelhante ao caso Luiz Eurico, a construção dos casos Sônia e Lana tan-to oferece elementos para que os familiares componham um quadro geral acerca do fenômeno “desaparecimento político”, quanto se utiliza dos recursos, práticas e tecnologias aprendidos e compartilhados no processo de composição desse quadro geral para desvendar os acontecimen-tos singulares envolvidos nessas duas mortes. Para ficarmos com um exemplo: a confecção de atestados de óbito a partir da identidade clandestina do militante, que ocorreu em inúmeros casos, poderia ser atribuía ao desconhecimento dos órgãos repressivos em relação à identida-de verdadeira do morto, mas revela sem sobra de dúvidas seu lado intencional no caso Sônia, quando o atestado com nome falso é enviado à família certa. Já a desconfiança em relação aos acontecimentos que levaram à morte de Sônia e Lana partem do conhecimento em relação a um

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conjunto de outros casos semelhantes, cuja aproximação permitiu concluir que a Ditadura forjava versões para mortes sob tortura e execuções ocorridas no interior de órgãos de repressão.

A partir do engajamento coletivo, a busca pelo destino de cada desaparecido propor-cionou ao movimento de familiares informações sobre a presença de dados recorrentes envol-vendo suas mortes ou desaparecimentos, como: as versões de suicídio, atropelamento e tiroteio; os laudos sucintos; as guias de requisição de laudo marcadas pela letra “T”; os enterros clandes-tinos; os atestados com nome falso. Comparados e associados, os dados sobre distintas mortes e desaparecimentos deram base material e quantitativa à produção de enunciados mais gerais sobre o funcionamento de uma burocracia da morte e do desaparecimento e seus métodos. Com isso, torna-se parte das competências políticas dos “familiares” a capacidade de operar o trânsito entre os eventos particulares e tal conhecimento acumulado, assim como mobilizar e contrastar os diversos documentos que compõem a “versão oficial” para operar sua desautorização e, por fim, culpabilizar um conjunto de instituições pelo “desaparecimento político” e outras tantas pela “impunidade” dos responsáveis. Para usar mais uma vez termos de Boltanski (2004), seus discursos mobilizam tanto enunciados de opinião, aqueles baseados em experiências particulares e inseparáveis do ponto de vista daqueles que as enunciam, quanto enunciados de saberes, aqueles que se baseiam em proposições categóricas, cuja validade seria geral e verificável, equivalentes àqueles acumulados pelos “especialistas”. Sua força parece estar justamente na competência para estabelecer um frequente trânsito entre eles.

No decorrer do movimento narrativo de Suzana, as paixões relacionadas ao desejo de justiça, assim como os sofrimentos impregnados em cada um dos atos particulares de busca mencionados deixavam claro que a emoção era uma dimensão explícita e valorizada da atuação naquele contexto. Tal como vêm observando diversos autores, a exposição pública da trama das emoções e das relações pessoais tem sido um recurso importante da atuação política de familia-res de vítimas da violência. Na esteira interpretativa de Mauss (1979), a emoção tem sido com-preendida como uma linguagem a partir da qual esses familiares se expressam na esfera pública (VIANNA e FARIAS, 2011; FREIRE, 2011; ARAÚJO, 2012; JIMENO, 2010). Para Freire (2011), o recurso emotivo seria a última possibilidade de familiares serem ouvidos pelos represen-tantes das instituições do Estado e pela sociedade de maneira geral. No entanto, e referindo-me à experiência em tela, não me parece possível ignorar nem a intensão dos “familiares” de enunciar saberes, nem sua concentração para não recair em um discurso considerado excessivamente emo-tivo ou idiossincrático que possa desviar aquele propósito e, de alguma maneira, desqualificar a denúncia. Concentração declarada por Suzana quando afirmou, em determinado ponto de seu relato sobre Luiz Eurico, estar se esforçando para “não chorar e não esquecer de nada” ou, no relato sobre Sônia e Lana, esperar “ter conseguido trazer essa história, apesar da emoção”.

À semelhança do que pontuam Vianna e Farias (2011), creio que o recurso emotivo – de certo a face mais surpreendente e contagiante dos relatos de familiares nas primeiras vezes

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em que tomamos contato com eles – deva ser encarado como um dos elementos que compõem um repertório mais sofisticado, a partir do qual os familiares de vítima pensam sua inscrição como atores políticos em cenas públicas. Repertório que, como afirmam as autoras, deriva de um aprendizado em que o domínio e o acionamento de recursos distintos (das emoções e do parentesco, mas também dos recursos burocráticos, dos termos e códigos de conduta operantes nas diferentes arenas políticas pelas quais circulam) se torna parte desse processo de fazer-se ouvir em que o que está em jogo é decifrar os elementos que constituem uma ausência específica, construindo-a como parte de um problema político mais amplo.

Essa preocupação com a conduta excessivamente emotiva não é nutrida apenas por Suzana. Foi essa mesma visão que expressou Victória, quando suspeitou que a designação dos “familiares” como sujeitos que “choram suas pequenas e isoladas dores” seria uma forma de des-qualificá-los como atores políticos nos espaços de debate acerca da Ditadura (situação narrada no capítulo anterior). O mesmo demonstrou outra viúva, Denise Crispim, durante a audiência sobre o caso Eduardo Collen Leite, quando acreditou ser necessário parar seu depoimento para conter a crise de choro que lhe dificultava a fala. Momentos depois, pôde retomar a palavra e se justificar, dizendo: “eu tive um momento muito difícil, mas agora eu já me recuperei bem. Estou perfeitamente lúcida e consciente da tarefa que eu tenho aqui”. Tarefa que desempenhou participan-do contundentemente da inquirição de um militar, única testemunha conhecida do assassinato de seu marido. Mobilizando os elementos que domina sobre o caso, tentou extrair dele novas informações.143 Também Ivan Seixas, antes de iniciar sua explanação sobre os documentos dos casos Sônia e Lana, pediu desculpas pela emoção, alegando que Lana era um amigo de militân-cia, cuja morte o atingia pessoalmente. Os exemplos se multiplicam. Ao contrário de acredi-tar na dor como algo que despolitiza, os “familiares” parecem perceber seu potencial político, tanto de retirar cada sujeito de si mesmo, forjando uma comunidade solidária, como demarca Butler (2009), quanto como uma das estratégias políticas de engradecimento e generalização da denúncia de que nos fala Boltanski (2000), capaz de gerar nos “outros” emoções permeadas de moralidade, sentimentos de justiça, compaixão e solidariedade. Contudo, também parecem saber que se a emoção legitima, outras vezes é elemento a ser dosado, sob risco de colocar em dúvida a “normalidade” do denunciante, sobretudo em um universo social em que, mesmo com a emergência do discurso humanitário, emoção e razão são tomados como elementos distintos, o primeiro considerado mais apropriado às esferas privadas e o último à política.144

143 2º Audiência Pública da CVRP, 12 de novembro de 2012, auditório Teotônio Vilela. Caderno de Campo 2, 12/11/12.

144 Como destacam Goodwin, Jasper e Polleta (2008), a afirmação da emoção como algo pessoal, idiossincrático e irracional, ausente ou desimportante no campo da política, caracterizou os estudos voltados para os movimentos sociais durante muito tempo. Desde os trabalhos que, até os anos 1960, negavam caráter político a processo que envolviam turbas e multidões, consideradas irracionais e movi-das pelo ódio, àqueles que, nos anos 1970, procuravam afirmar o caráter político aos movimentos sociais

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Como bem apontam Das e Kleinman (2000), processos como estes, em que está em jogo o reconhecimento de violências e feridas passadas, as memórias mais particulares e afetivas (que os autores designam como sensoriais) entram em relação com as representações coletivas, buscando imprimir sobre elas uma verdade distinta. No esforço por criar um ambiente em que as violências e as dores das vítimas sejam visibilizadas, emoção e parentesco alcançam um status ambíguo. Se eles trazem em si noções como “sinceridade” e “autenticidade” que parecem legiti-mar o direito de demandar publicamente, por si mesmos não autorizariam os “familiares” a se apresentarem como enunciadores de saberes acerca das violências que os atingiram e das soluções para a construção de um novo futuro. Daí que eles procurem afirmar essa condição demonstran-do amplos domínios sobre os casos e ressaltando as múltiplas funções que desempenham e a partir das quais podem ser reconhecidos: são parentes dos mortos, mas são também militantes de uma causa e, em alguns casos como os de Suzana, Amelinha e Ivan, ocupantes de cargos institucionais.

Como ainda argumentam Das e Kleinman (Op. Cit.), a relação entre as memórias sensoriais e os padrões de compreensão coletivos é paradoxa. Se estas memórias, para se torna-rem públicas, se inscrevem ou procuram se expressar por meio desses padrões, ao mesmo tempo, elas os excedem, fazendo com que sejam múltiplas as linhas de conexão e exclusão estabelecidas entre aquilo que se pode construir como memória pública e as memórias individuais. É em meio a essas disjunções que vai se desenhando, na esfera pública, o reconhecimento dos “familiares” como um ator político coletivo. Com isso, nas arenas públicas dedicadas ao tema dos “mortos e desaparecidos”, o termo “familiar” passa a se referir não apenas às relações de parentesco, mas também a uma posição no interior desse campo de debates. Nele, “familiar” passa a ser visto menos como uma categoria produzida pelo desaparecimento em si do que pela busca, pois é ela que os transforma em enunciadores de saberes, portadores de um conhecimento comum forjado na construção dos casos e demonstrado da exposição de um amplo domínio acerca dos elementos que o constituem, como veremos também com o caso Denis Casemiro a seguir.

Antes de nos movermos para ele, cabe ressaltar o quanto a própria concentração da narrativa de Suzana na trajetória dos pais de Sônia é um sinal dessa designação que, em grande medida, leva a uma sobreposição entre as noções de “familiares” e “familiares que lutam”, em que a segunda eclipsa a primeira. A família de Lana, em nenhum momento referida no depoimento

obliterando de seus estudos a esfera das emoções. Essa visão da política como reino da racionalidade começa a se alterar apenas nos anos 1980, quando diversos autores passaram a destacar múltiplos níveis nos quais as emoções operam na política: faz com que atores se engajem em certas causas, fazem parte do repertório ativista, legitimam motivações e ações. Para os autores, as emoções são usadas estrategi-camente para afirmar identidades e alteridades, forjar moralidades e laços sociais a motivar a ação polí-tica. Para Bailey (1983), toda a ação política, na medida em que implica propósitos e metas, movimenta emoções, tão responsáveis quanto os processos racionais, por defini-las e motivar sua perseguição. Não falamos, portanto, de dimensões antagônicas, embora elas sejam, muitas vezes, percebidas ou afirmadas socialmente como tais.

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espontâneo de Suzana, surgiu apenas através de uma pergunta feita por Adriano Diogo. Frente a ela, Suzana soube responder apenas que a mãe de Lana se encontrava viva em Ouro preto, onde também vivem alguns de seus irmãos. Porém, considerou que eles não conseguiriam recuperar a história de Lana justamente por nunca terem convivido com o militante que seu filho/irmão vi-ria se tornar quando deixa o convívio familiar. O não envolvimento dos parentes no movimento de familiares também se tornava fator determinante dessa alegada impossibilidade. Já, sobre a família de Sônia, Suzana diz em suas palavras finais:

Com essa descoberta deles da vida e da militância da Sônia, eles acabaram se engajando na luta não só pelo esclarecimento da morte da Sônia, mas pelo de todos. Então, o Moraes foi presidente do GTNM/RJ, a Cléa foi secretária do GTNM/RJ, tanto um quanto o outro enquanto teve vida atuou no GTNM/RJ e fez da sua vida uma busca constante por justiça, que era só o que eles queriam. A Cléa diz isso no final do depoimento dela no livro, a úncia coisa que eu busco é justiça. E nós continuamos buscando por eles.

É, portanto, por meio dessa busca constante por Verdade e Justiça que “os familiares” se afirmam em torno de uma autoridade de dizer, como também mostra nosso próximo caso.

Denis Casemiro

Data de nascimento: 9 dezembro de 1942 Local de nascimento: Votuporanga (SP) - Brasil Organização Política: Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)

Dados biográficos: Nasceu em Votuporanga, interior de São Paulo, no dia 9 de dezembro de 1942. Filho de Antônio Casemiro e Maria Casemiro. Em sua cidade natal foi pedreiro e trabalhador rural. Frequentava o Sindicato dos Lavradores de Votuporanga. A partir de 1967, vai para São Bernardo do Campo trabalhar na Volkswagen. Nesse período travou contato com Devanir José de Carvalho, também assassinado pelo

aparato repressivo do regime militar, e seus irmãos Jairo e Daniel, este, hoje, faz parte da lista dos desaparecidos políticos. Denis passa, então, a fazer oposição à ditadura, quando entra para Ala Vermelha e posteriormente à VPR. Desloca-se para o sul do Pará e depois vai cuidar de um sítio perto de Imperatriz (MA). Nesse local estava em seu horizonte de expectativa levar a termo um trabalho de alcance político e militar no meio rural.

Dados sobre sua prisão e desaparecimento: Em abril de 1971, foi localizado e preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, que o trouxe para o Dops/sp, onde seria torturado durante quase um mês e assassinado pelo próprio Sérgio Fleury. A infâmia e flagelo a que foi submetido assim encontra-se relatado no Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985): “[No Dops/sp] onde permaneceu sendo torturado por quase um mês. Durante esse período era sempre transportado pelos corredores daquele órgão policial com um capuz cobrindo seu rosto

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Após a leitura do memorial, a audiência teve sequência com a composição da mesa. Conduzindo os trabalhos, Adriano Diogo convidou a assessora Amelinha e Waldemar Andreu, apresentado no memorial como testemunha da prisão e conterrâneo de Denis, com quem teve relação próxima de militância e amizade.145 Após a instalação, a palavra foi imediatamente pas-sada para Andreu. De partida, ele me pareceu um pouco confuso e hesitante. Mas, logo percebi que se tratava de certa apreensão em relação ao que pretendia dizer na sequência. Sem maiores rodeios, Andreu foi direto à questão que o incomodava. Para ele, havia uma série de incorreções nos eventos elencados no memorial como causadores da morte de Denis.

Para se fazer entender, contou rapidamente sobre sua relação com os irmãos Denis e Dimas Casemiro, os quais conhecia desde a infância na cidade de Votuporanga. A partir de 1964, os três militaram juntos na organização política Ala Vermelha. Na dinâmica militante, convive-ra com Denis até 1969, quando este deixou a organização. A partir daí, eles perdem o contato, voltando a se encontrar somente no Dops, em 1971, quando ambos foram presos. Apesar desse encontro ter sido breve, apenas uma visão de Denis passando encapuzado pelo corredor entre as celas, Andreu disse tê-lo reconhecido por seu porte físico e jeito de andar. Naquele momen-to, o que sabia sobre Denis era apenas que ele havia se mudado para um sítio no norte do país, onde, acreditava, o amigo havia deixado a militância para viver do cultivo da terra. Por acreditar que ele se afastara das atividades políticas é que Andreu duvidava da versão de que a equipe de Fleury havia se deslocado ao Maranhão para prendê-lo. Para ele, a morte teria relação com a do irmão, ocorrida cerca de um mês antes, como parte da vingança empreendida pela repressão

145 7º Audiência Pública da CVRP, 21 de fevereiro de 2013, auditório Teotônio Vilela. Caderno de campo2, 21/02/15.

para impossibilitar sua identificação pelos demais presos. Um deles, Waldemar Andreu, conterrâneo de Denis, chegou a conversar com ele por alguns minutos. Ele estava confiante de que a retirada do capuz era um sinal de que as torturas acabariam e que o perigo de ser assassinado havia passado”, no entanto, Denis foi fuzilado em 18 de maio de 1971 pelo delegado Fleury, tendo sido enterrado como indigente, além de seus dados serem alterados para não possibilitar sua identificação. No livro de registro do cemitério onde encontrava-se seu corpo, consta que teria 40 anos, quando na verdade, à época, tinha 28 anos. A elucidação de sua prisão, tortura e morte começou a ser esclarecida em 1979, durante a campanha da Anistia. Seus restos mortais foram finalmente encontrados na vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo (SP). Seu nome consta na lista de desaparecidos políticos do anexo 1, da lei 9.140/95.

Fonte: Informações tiradas do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985. (IEVE- Instituto de Estudos Sobre Violência do Estado e Imprensa Oficial, São Paulo, 2009).

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contra os envolvidos no “justiçamento” do presidente da Ultragás, Henning Albert Boilensen.146 Informado da morte de Dimas, Denis teria se dirigido à casa da família, em São Paulo, onde foi capturado, preso e assassinado pela equipe do delegado Fleury, ainda como parte da mesma ven-deta. No entanto, Andreu nega que Denis tenha sido torturado, pois “andava normalmente”, não aparentando ter sofrido violência durante os três dias, e não um mês, que o viu no Dops.

Enquanto a testemunha falava, era visível a surpresa e a inquietação dos assessores que se entreolhavam como se pensassem a melhor forma de agir. A primeira a se pronunciar foi Amelinha. Fazendo algumas rápidas perguntas à testemunha, questionou, por fim, se não seria mais correto dizer que não viu Denis ser torturado, ou que imagina que ele não tenha sido, do que afirmar que não foi. Antes que Andreu pudesse elaborar uma resposta mais alongada, Ivan, até então sentado junto à plateia, juntou-se à mesa, pedindo a palavra. Com dois documentos nas mãos, o depoimento dado por Denis no Dops e o relatório do delegado Fleury sobre sua morte, ambos encontrados nos arquivos do extinto Dops, Ivan passa a explicar o enredo propos-to pelo memorial. Vale a pena acompanhar suas palavras:

Isso que o Waldemar Andreu fala, obviamente que é uma conclusão, uma impressão que ele tem. O Dimas era da Ala Vermelha, como o próprio Denis foi, como o Waldemar também foi, e houve uma dissidência da Ala Vermelha, que no ano de 1969 deu no que se chama MRT, Movimento Revolucionário Tiradentes. O Dimas sai da Ala um tempo depois da primeira dissidência e vai para o MRT. A ligação entre as duas mortes, entre o Dimas e o Denis, não se dá em momento algum (...). O Dimas foi morto dois dias depois da morte do Boilesen, do justiçamento do Boilesen, como o Waldemar apontou, mas o Denis é capturado no dia 15 de maio, 12 de maio, em Imperatriz, porque ele era ligado ao comando nacional da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária]. E sei disso porque o Carlos Lamarca morou na minha casa durante alguns meses e o Denis ia lá para se reunir com Carlos Lamarca. Ele tinha uma liga-ção direta com Carlos Lamarca. (…) tinha como orientação que o Denis cui-dasse de uma área de implantação de guerrilha rural na região de Imperatriz, e uma outra área que tinha no Paraná, duas áreas que estavam sendo criadas a mando do comando nacional pelo Denis Casemiro. Então, quando o Denis foi capturado, porque um camponês que era de São Paulo tem a tarefa de ir junto com o Denis fazer a implantação dessa área em Imperatriz, ele queria ficar com a área e aí ele se entregou para a repressão e negociou as informações em troca de ficar com a área. (…) o Denis volta para a área onde ele morava, aí ele é preso lá pela equipe do Fleury, trazido para São Paulo (…). Ele é inter-rogado, é de supor que foi torturado, porque o contato que ele tinha era com o comando nacional da VPR, Vanguarda Popular Revolucionária. Isso está aqui escrito no depoimento do Denis, que ele dá para o DOPS, em que ele relata tudo isso. (…). Quando ele é capturado, ele está se reportando, obviamente,

146 Sobre Boilesen, ver nota 72. O caso Dimas Casemiro foi tratado na 35º audiência pública. Como ocorre com o irmão, Dimas teria sido preso, torturado e, posteriormente, executado. A versão oficial, entretanto, dá conta de uma morte em tiroteio por resistência à prisão. Foi enterrado como indigente no cemitério de Perus.

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ao comando da VPR, e aí as perguntas que fazem aqui nesse depoimento são todas com foco na VPR (...). Por isso que ele fala dos pontos que ele teve com a Inês Itiene Romeu lá no Rio de Janeiro, com a conversa que ele teve lá no Rio de Janeiro com o Carlos Lamarca, ele cita inclusive em determinado momento a conversa que ele teve na minha casa com Carlos Lamarca, e aqui tem inclu-sive as fotos do sítio em Imperatriz, no Maranhão, tem a cidade, tem o local onde era o sítio, todas as informações estão aqui. Ele fica dentro do DOPS, o Waldemar, por ser conhecido dele de Votuporanga reconhece essa história que ele conta aqui, mas ele está o tempo todo sendo interrogado para entregar pontos com o pessoal do comando nacional. E há aqui, e gostaria de ler, um relatório confidencial escrito pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury que relata a morte do Denis.147

Em resumo, o relatório de Fleury, lido por Ivan na sequência, reportava ao delegado titular do Dops/SP que, voltando de uma diligência na cidade do Rio de Janeiro, o preso Denis Casemiro havia tentado fugir, durante uma pausa na estrada. Após pular uma ribanceira, Denis teria sido alvejado por tiros desferidos por diversos membros da equipe. Recapturado, Denis te-ria sido levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos, morrendo a caminho. Ivan concluiu a leitura dizendo que “esta é a farsa montada para justificar a morte de Denis”.

É de chamar atenção que Ivan inicie sua fala considerando que as colocações de Andreu refletem uma opinião. Em suas palavras, “uma impressão que ele tem”. Em contraposi-ção, Ivan pretende propor enunciados de saberes, mobilizando artefatos que conferem autoridade à sua fala: os documentos que traz em mãos, mas também seus conhecimentos sobre o fun-cionamento da esquerda e da repressão a partir dos quais irá interpretá-los. Nesse movimento, aponta limitações nas afirmações de Andreu, atribuindo-as ao fato de estarem baseadas em nada mais que sua própria experiência, além de prejudicadas por uma falta de contato mais recente com Denis. Ainda que Ivan também mencione sua convivência pessoal com o mili-tante (o que lhe permitiria saber melhor que Andreu detalhes de seu envolvimento político), para fortalecer a versão que defende, acionará o depoimento dado pelo próprio Denis no Dops. Conforme Ivan explica, neste documento está registrada tanto a sua prisão em Imperatriz, quanto sua militância na VPR e seus contatos diretos com o comando nacional dessa organi-zação, então dirigida por Carlos Lamarca, um dos militantes mais procurados pelo Regime. Se estas informações eram conhecidas da repressão, sendo admitidas por Denis no Dops, era de “se supor” que ele fora torturado para revelá-las e, além disso, para “entregar” o comando. Ainda que não haja testemunhas ou outros artefatos comprobatórios da tortura, Ivan acredita poder supô-la na medida em que esse era o método de interrogatório dispensado pela Ditadura aos presos políticos, assim como pode supor que Denis foi morto por negar colaboração, pois essa solução “era de praxe na época”.

147 Trecho retirado da transcrição da audiência, disponível em http://verdadeaberta.org/mortos-desa-parecidos, acesso em 25/03/2015.

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É interessante notar mais uma vez que, aos olhos do movimento de familiares, as dúvidas e a consequente necessidade de trabalhar com suposições não abalam a veracidade do enredo, nem tornam suas conclusões uma questão de opinião. Na medida em que se baseiam naquilo que vai sendo descrito como uma metodologia repressiva, identificada com a ação de policiais e militares que torturam e matam, legistas que encobrem e agentes funerários que legalizam o sumiço dos corpos, essas suposições são inscritas no antagonismo político e mili-tar outrora estabelecido entre esquerdas e Ditadura. Com isso, passam a ser apreendidas mais como probabilidades do que suposições, isto é, como algo que se identifica mais no campo dos enunciados que se pensam objetivos do que no daqueles que assumem a marca da subjetividade. Por trás dessa percepção, resta a ideia de que, na Ditadura, a tortura e o assassinato eram possi-bilidades previamente inscritas no destino militante. Ao ser tomada como dado, a ideia se torna crucial não apenas para lidar com as ambiguidades e dúvidas e construir enredos coerentes para os casos, como também pode se tornar elemento que, em última instância, define se uma morte/desaparecimento específica é “política”, como veremos a seguir com o caso Abílio Clemente Filho. Mas não apenas a morte estava inscrita nesse destino. Conforme Amelinha fez questão de pontuar, após a morte, todo um dispositivo institucional seria acionado para desaparecer com o corpo ou escondê-lo dos familiares, dificultando assim que fossem provadas as violências des-feridas contra os militantes. O fato do cadáver de Denis ter sido escondido da família, enterrado em vala clandestina, além de terem sido alterados dados de seu atestado de óbito, seria mais uma evidência de que seu destino trágico não escapara das formas rotineiras pelas quais operava a repressão, conforme argumenta:

Quer dizer, de um modo geral a repressão política buscou ocultar os cadáveres que eram vítimas de tortura. Eles faziam isso, torturavam, matavam. Essa é uma prática da repressão política, e o Denis me parece que foi um deles, porque o corpo foi ocultado e só foi encontrado com muita luta dos familiares, da comissão de familiares (…). A gente colocava isso em todos os documen-tos, inclusive na CPI da Vala de Perus, que é a Comissão Parlamentar de Inquérito, está lá na documentação pelo menos seis cadáveres ocultados pela repressão que estariam ali na vala, de presos políticos. E o Denis era um deles e o Denis foi identificado graças ao trabalho dos familiares. É bom pensar nisso, porque se a gente não tivesse ido lá no Instituto Médico Legal, buscado levantar informação e no arquivo do DOPS, que na época foi aberto graças a essa luta, foi aberto tanto o arquivo do IML quanto do DOPS, nós buscamos toda essa documentação e aí nós construímos, nós familiares, construímos essa história do Denis, e o Denis passou a ter um corpo, uma história, e foi entregue aos familiares [dele], foi enterrado inclusive com honras na cidade de Votuporanga, que é a cidade natal dele.148

148 Idem.

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A própria descoberta dessa rotina é apresentada como resultado de uma outra, aque-la constituída pelos “familiares” através de visitas a cemitérios, IMLs, arquivos e da atuação em comissões institucionais como a CPI de Perus ou a CVRP, onde novos “encaminhamentos” são propostos, direcionando outras buscas possíveis. O domínio de ambas as rotinas, a da repressão e a da investigação, permite que os membros do movimento de familiares se declarem (e sejam vistos) como enunciadores de saberes, responsáveis pela “construção” sem a qual os mortos e de-saparecidos não teriam corpo ou história. Como pontua Amelinha, a autoridade de sua fala é conferida por essa construção, forjada na luta e nos saberes acumulados por meio dela.

Abílio Clemente Filho

Data de nascimento: 17 de abril de 1949 Local de nascimento: São Paulo (SP) Organização Política: Ação Popular

Dados biográficos: Filho de Maria Helena Correa e Abílio Clemente. Estudou na Escola Estadual Fernão Dias Paes, na cidade de São Paulo. Quando desapareceu, cursava o 4º ano de Ciências Sociais da Unesp e era ativista do movimento estudantil, em Rio Claro (SP). Desapareceu quando estava com um amigo na praia de José Menino, em Santos (SP). Naquele ano, foi o homenageado dos formandos do seu curso.

Dados sobre a prisão e desaparecimento: No processo analisado pela CEMDP está anexado um relato de Maria Amélia de Almeida Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, informando ter encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, entre os documentos do extinto DOPS/SP, uma ficha escolar de Abílio Clemente Filho da época em que cursava o colegial, na Escola Estadual Fernão Dias Paes, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. De acordo com os registros policiais, essa ficha teria sido encontrada na residência de Ishiro Nagami, militante da ALN morto juntamente com Sérgio Corrêa, em 4 de setembro de 1969, em consequência da explosão do carro em que ambos trafegavam na rua da Consolação, na capital paulista. Joana D’Arc Contijo relatou a Maria Amélia, ambas presas no DOI-CODI/SP à época, que chegou a denunciar ter ouvido gritos de um homem jovem durante toda a noite, na mesma data da prisão de Abílio. Joana acredita que o jovem parou de gritar porque morreu. Ela tentou descobrir a identidade da vítima daquelas torturas, mas não obteve sucesso. Maria Amélia afirmou ter sido procurada pela irmã de Abílio, em meados dos anos 1990, para denunciar o seu desaparecimento quando ainda não havia legislação que estabelecesse indenização por tortura, morte ou desaparecimento. O caso de Abílio foi inicialmente examinado pela Comissão de Indenização dos Presos Políticos de São Paulo, por meio do conselheiro e deputado Renato Simões, sendo deferido. Considerou aquela comissão que, com base no conjunto dos indícios apresentados e no conhecimento acumulado sobre os procedimentos dos órgãos de repressão política, era possível concluir pelo desaparecimento de Abílio Clemente Filho por razões políticas. O relator do caso (057/02) na CEMDP, Belisário dos Santos Júnior, votou favoravelmente ao deferimento do requerimento, agregando: Também, nesta instância federal, bem considerados todos os elementos de prova colhidos, entendo que Abílio, que tinha militância política, que teve documento apreendido em domicílio de pessoa vinculada

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A audiência do caso Abílio Clemente Filho, a última a ser analisada aqui, iniciou como de costume com a leitura do memorial.149 A mesa composta por Adriano Diogo reunia, mais uma vez, pessoas previamente citadas no memorial, o deputado estadual, Antônio Mentor e Amelinha, dessa vez não na condição de assessora, pontuou Adriano, mas de testemunha. Tal como Suzana nos casos Lana e Sônia, Amelinha não é testemunha dos eventos que levam ao de-saparecimento em si, mas daqueles que levam ao seu reconhecimento como “político”, processo do qual participou ativamente. Vejamos.

O primeiro a prestar depoimento foi Antônio Mentor. Colegas desde o período em que eram secundaristas em São Paulo, Antônio e Abílio militaram no movimento estudantil e prestaram vestibular juntos, entrando ambos para o curso de Ciências Sociais da (hoje) Unesp de Rio Claro, onde seguiram militância no movimento estudantil universitário e chegaram a morar juntos. Ao longo de seu depoimento, Mentor dedicou um tempo a explicar o funcionamento do movimento estudantil à época e as dificuldades encontradas por aqueles que se dedicavam a esta tarefa, então ilegal. Ponderou que a participação dos militantes em organizações políticas, também ilegais, era atividade protegida por uma série de segredos. Mesmo aqueles que milita-vam juntos no movimento estudantil não tinham o costume de revelar suas atividades políticas partidárias, que corriam de certa forma em paralelo e cercadas por maior ou menor grau de clan-destinidade. Daí que Mentor, apesar da relação pessoal com Abílio, diga não poder assegurar, apenas desconfie pelas posições sustentadas no movimento estudantil, que ele estava vinculado à organização política Ação Popular (AP). Mentor teve que deixar a cidade e entrar na clandesti-nidade em 1970, mas Abílio continuou em Rio Claro militando com vida legal. No entanto, em 1971, durante uma viagem a Santos, ele desapareceu na praia de José Menino.

O caso Abílio está entre aqueles que são mais cercados de mistérios, uma vez que não há nenhuma informação além do próprio desaparecimento. Nem anúncio de morte em jornais,

149 8ª Audiência Pública da CVRP, 25 de fevereiro de 2013, auditório Teotônio Vilela. Caderno de campo 2, 25/02/2013

a ações armadas, que desapareceu num dia determinado e cujos amigos e família sempre denunciaram como sendo mais uma das vítimas da polícia política, pode e deve ser reconhecido como pessoa desaparecida por motivos políticos. Exigir mais provas, seria desconhecer a história da repressão no Brasil. O deputado estadual de São Paulo, Antônio Mentor, também apresentou depoimento à CEMDP, no qual confirmou seu desaparecimento e sua militância em organização clandestina durante a ditadura. O caso foi aprovado por unanimidade em 2 de agosto de 2006.

Fonte: Informações tiradas do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil 1964-1985. (IEVE- Instituto de Estudos Sobre Violência do Estado e Imprensa Oficial, São Paulo, 2009)

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como os casos Sônia e Lana, nem a localização do corpo, como os casos Luiz Eurico e Denis. Em 43 anos, nada foi possível saber sobre seu destino após a viagem realizada a Santos. A família, à épo-ca, empreendeu buscas, solicitando a ajuda de Mentor. Segundo ele, a primeira possibilidade era de que ele pudesse ter sido vítima de afogamento, pois “ele não gostava da nadar e tinha ido para lá por razões políticas”. Buscaram no IML, bombeiros, hospitais e polícia sem sucesso. Passaram a levar em conta, então, a possibilidade de um ato da repressão, “como vinha acontecendo no período”. Levaram a busca a locais como Dops e DOI-CODI, sem obter qualquer informação.

Embora poucas, as informações compartilhadas por Antônio Mentor, todas relativas à comprovação da militância política de Abílio, adquiriram uma importância central para que o desaparecimento se tornasse um caso, algo que será melhor contextualizado pelo depoimento de Amelinha, na sequência. Ela inicia sua fala ponderando que não conheceu Abílio e sim o caso Abílio Clemente Filho, em 1990, por ocasião da abertura da Vala de Perus. Segundo ela, o grande impacto midiático que a abertura rendeu na época, a partir da farta exposição pública de reportagens e imagens da vala e das ossadas, colocou em evidencia nacional e internacional os “mortos e desaparecidos políticos” e seus “familiares”. Nesse contexto, o trio formado por Amelinha, Ivan e Suzana ficou especialmente exposto uma vez que, como assessores, eles parti-ciparam ativamente das investigações da CPI, instalada na Câmara de Vereadores ainda naquele ano. Amelinha explicou que, para além desse evento, sua relação com o movimento de familia-res se deve ao fato de que ela é testemunha ocular do assassinato de Carlos Nicolau Danielli sob torturas na OBAN e do desaparecimento de Edgar de Aquino Duarte no Dops, além de possuir três familiares desaparecidos, André e Maurício Grabois e Gilberto Olímpio.150 Apresentou-se, portanto, como alguém, desde o início, envolvida na “luta dos familiares”.

Todo esse envolvimento contrastaria com o afastamento dos familiares de Abílio dessas mesmas esferas de construção do “desaparecimento político”. Algo que só seria superado com a divulgação pública do trabalho da Comissão de Familiares, a partir da abertura da vala de Perus. Nesse contexto, Amelinha é procurada pela irmã de Abílio. Ela conta:

Ela [irmã de Abílio] não tinha atividade política, não sabia nada de política. Então, isso dificultou buscar forças para denunciar esse desaparecimento, uma articulação maior para que o caso tivesse repercussão. Porque o caso Abílio Clemente Filho foi muito desconhecido para nós. Eu falo nós que vinhamos daquele luta no Comitê Brasileiro pela Anistia desde 1977, 78, 79. Quando ela me procurou, contou que ele estudava na Unesp, em Rio Claro, e que tinha ido para Santos. (…) Ele e outro colega foram pra praia, e ele desapareceu,

150 Conforme mencionado anteriormente, André Grabois (irmão de Victória) foi companheiro da irmã de Amelinha, Criméia, durante o período da Guerrilha do Araguaia, onde se conheceram e engravida-ram do único filho de ambos. Maurício Grabois era, portanto, sogro de sua irmã e Gilberto, primeiro marido de Victória, era concunhado de sua irmã. Criméia também é militante ativa do movimento de familiares. Amelinha também é muito conhecida entre os movimentos sociais da cidade de São Paulo por sua militância feminista.

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em 10 de abril de 1971, na praia de José Menino em Santos. Quando ela me contou, eu fiquei espantada com essa história. Eu falei: gente, eu lido com isso o tempo todo e não conhecia esse caso! Aí falei pra ela: mas você tem alguém que possa ser uma referência de informação? Foi aí que ela falou do Antônio Mentor. Foi aí que eu te procurei. Na época, eu também procurei o arquivo público que tinha a documentação do Dops, quando ele abriu. Em 1990, foi a abertura da vala de Perus, aquilo foi um fenômeno político muito importante, um impacto muito importante e que mobilizou vários setores da sociedade, não só em São Paulo, mas no Brasil e no mundo (…) E o arquivo tava fechado pra nós. Aliás, o Dops fechou em 1983 com a posse do Montoro e ninguém explicava onde estavam esses arquivos. E nós conseguimos descobrir. Foi uma luta muito grande, com apoio de algumas autoridades que nos deram muita força, tanto a prefeita Luíza Erundina, quanto o governador, Orestes Quércia. (…) Nós conseguimos transferir esses arquivos (…) que foram lá pra Mooca, ficaram lá nos armazéns, e lá que nós fizemos a pesquisa. Quando abriu a vala de Perus muita gente nos procurou, inclusive o número de desaparecidos no Brasil é muito grande, porque não é só os políticos, tem muita gente desapare-cida e as pessoas achavam que nós íamos resolver todos os casos, então era uma multidão mesmo. (…). Lá, nós vimos a fichinha escolar de Abílio (…) e esta ficha tinha uma observação de que foi encontrada no aparelho (..) de Ishiro Nagami. O Ishiro Nagami e o Sérgio Correia são militantes da ALN, por-tanto da luta armada, que são mortos (…). Então, eu tinha o dado da fichinha, tinha o dado de que o Antônio conhecia o Abílio e outro, que me impressio-nou muito, é que a família me trouxe o convite da formatura da turma dele, porque ele desapareceu, mas a turma se formou, e tinha uma homenagem pra ele ali. Eu nem lembro as palavras, mas eu senti ali o desaparecimento de um militante político (…) Ele tinha uma força política, porque aglutinava toda a turma (…). Em função disso, eu comecei a considerar e convenci meus compa-nheiros e companheiras da militância de que ele era um desaparecido político. (…) Então, o Abílio Clemente foi desaparecido pela ditadura, foi vítima de desaparecimento forçado, mas também ficou desaparecido dentro da esquerda. Então, eu acho que nós, da Comissão de Familiares, tivemos um papel impor-tante de recuperar. Nós trouxemos ele pro Dossiê, depois ele foi pro livro da Secretaria de Direitos Humanos, porque ele foi reconhecido. Primeiro ele foi reconhecido aqui em São Paulo pela Comissão de indenização dos ex-presos políticos, e depois foi reconhecido na Comissão Especial [CEMDP] em Bra-sília. Esse é o nosso trabalho, a gente fez isso com vários outros.151

A surpresa de Amelinha ao ouvir falar pela primeira vez do caso Abílio não é dife-rente daquela que eu mesma tive no cemitério de Ricardo de Albuquerque. Algo que, como já discuti, parece denotar uma percepção do desaparecimento político como uma realidade bem apreendida pela rede social constituída em torno desta tarefa. Daí que Amelinha se espante com o fato dessa rede (“nós que vinhamos da luta nos CBAs”) desconhecer o episódio. A surpresa também reflete a certeza de que a autoridade de sua fala está baseada nos saberes acumulados pelo movimento dos familiares sobre a repressão política e suas vítimas. Saberes específicos e

151 Transcrição da audiência, disponível em http://verdadeaberta.org/mortos-desaparecidos, acesso em 25/03/2015.

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gerais que associados pretendem se sobrepor inclusive àqueles que uma testemunha ocular pode dispor, como vimos no caso anterior.

Ela demonstra ao mesmo tempo conhecimento de que é grande o número de pes-soas que buscam desaparecidos no Brasil. Contando, inclusive, que muitas delas recorreram à Comissão de Familiares na época da abertura da vala na esperança de ajuda para encontrar aqueles que buscavam. Todavia, ela descarta a possibilidade de que a Comissão de Familiares pudesse ajudar em relação a esses casos, na medida em que eles eram percebidos como “não políticos”, a despeito da variedade de acontecimentos que pudessem estar encerrados sob essa classificação. Acreditando, portanto, na existência de diferentes “tipos” de desaparecimento, a Comissão de Familiares atuava estabelecendo uma diferenciação dos casos “políticos” de uma gama mais geral e heterogênea de casos, sendo apenas os primeiros aqueles aos quais se dedica. Ainda que, nesse movimento, os outros casos não fossem propriamente afirmados como irrelevantes, aos olhos do movimento de familiares eles constituiriam um outro problema. Algo que se encontrava fora da alçada de sua luta pelo reconhecimento de setores mais amplos da sociedade, incluindo as instituições que teriam o poder de nomeá-los oficialmente.152 Sob este aspecto, a diferenciação estabelecida não deixa de hierarquizar os diferentes “tipos” de desaparecimentos, na medida em que uns passam a ser considerados resultado de violências passíveis de indenização e reco-nhecimento, enquanto outros restam imersos na ampla seara de eventos ambíguos que não se constituem em objetos de interesse público ou reparação.

O caso Abílio – sobretudo quando temos a história de Virgílio que não se tornou caso como contraponto – mostra, entretanto, que as fronteiras entre esses “tipos” de desaparecimento não são tão nítidas nas situações empíricas quanto são em termos categóricos. Em ambos os casos, falamos de pessoas com alegado histórico de militância política que desapareceram em circunstâncias desconhecidas para nunca mais retornar ou dar notícias a seus parentes. Porém, apenas uma delas viria a ser reconhecida como “desaparecido político”. O não reconhecimento de Virgílio passa, conforme já mencionado, por sua impossibilidade de alcançar os atores sociais e instituições que operam tal reconhecimento. A narrativa de Amelinha sobre como o caso Abílio quase permaneceu nessa zona de não reconhecimento mostra como “os familiares” acreditam que o primeiro desses atores, senão o mais importante, é o próprio movimento de familiares.

152 Essa exclusão me remete à diferenciação que Todorov (1995) tenta estabelecer entre cuidado, ca-ridade, generosidade e solidariedade. Para o autor, enquanto o cuidado teria como beneficiários pes-soas individuais, a solidariedade seria dirigida mais comumente a grupos. No interior de um grupo, a solidariedade significa que me sinto atingido por tudo que ocorrer com seus membros, mas não pelas necessidades dos que não pertencem a ele. A solidariedade com os meus significa, portanto, a exclusão dos outros. Nesse sentido, “agir por solidariedade com um grupo é um ato político, não moral: não há livre escolha e o julgamento é particularizado, em lugar de universalizar-se” (Op. Cit.: 96). Para o autor, a genero-sidade e a caridade é que seriam gestos incontestavelmente morais, no sentido de serem universais, isto é, dirigirem-se a todos.

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O caso Abílio é o único entre os tratados até aqui que não foi reconhecido direta-mente pela Lei Nº 9.140. Seu nome não constava no anexo 1, assim como não se fazia presente no Dossiê, documento a partir tal anexo foi elaborado. Segundo a explanação de Amelinha, sem “atividade política” os familiares de Abílio não teriam encontrado apoio para transportar sua denúncia particular para a causa, por outro lado, a organização política a qual o militante estaria vinculado também não atuou nesse sentido. Como resultado, Abílio ficou “desapareci-do na esquerda”, isto é, desconhecido pelo grupo solidário que se voltou à tarefa de definir o “desaparecimento político” e denominar suas vítimas. Uma vez procurada pela irmã de Abílio, Amelinha moveu os mesmos métodos e rotinas de pesquisa desenvolvidos pelo movimento para encontrar “provas” do “desaparecimento político”, mas não sem saber se podia admiti-lo como um caso, certificando-se junto a outros militantes de que Abílio também pertenceu aos quadros “da esquerda”. Nesse ponto, algo que me pareceu presente em todos os casos analisados, salta aos olhos. A principal condição para que o movimento de familiares considere uma denúncia admis-sível, nos termos de Boltanski (2000), é a militância política da vítima. Uma vez comprovada, o movimento de familiares dispõem-se a tomar o caso (LUGONES, 2009),153 considerando o “desaparecimento político” uma questão de probabilidade.

Esse entendimento, como é possível observar nas conclusões do relator do caso na CEMDP citadas no memorial, não se limitam ao movimento de familiares, mas regis-tram um marco compartilhado também pelas instituições responsáveis pelo reconhecimento. Entendimento compartido também pelo relator na Comissão Estadual de Ex-presos Políticos, que assim defendeu sua posição pelo reconhecimento do caso Abílio Clemente Filho:

Ainda que não existam provas da prisão e tortura de Abílio por órgãos de repressão em São Paulo, é evidente que na experiência acumulada por essa co-missão especial e por todas as demais instituídas pela União e outros Estados aponta para fato de que o desaparecimento de militantes políticos durante a Ditadura militar sistematicamente era precedido pela prisão ilegal e tortura desses militantes.154

153 Em sua etnografia sobre o poder administrativo judicial dos tribunais de menores da cidade de Córdoba, na Argentina, Lugones (2009) descreve e analisa o processo por meio do qual determinadas situações ali denunciadas se tornam ou não processos judiciais. Frente as diferentes denúncias que se apresentam, as administradoras precisam decidir aquelas que “se tomam” e que “não se tomam”, isto é, aquelas que levarão ou não à condição de processo. Estabelecer essa definição passa por colocar em prática o que elas chamam de “critérios do tribunal”, algo que a autora define como marcos ou chaves interpretativas compartilhados e a partir dos quais os atos dos administrados são interpretados e valora-dos. Para estabelecer esses “critérios” haviam uma série de variáveis e combinações possíveis entre elas a cada situação, embora fossem percebidos como fixos. No caso em presença, embora os critérios também sejam variáveis, há uma predominância da militância política nos marcos interpretativos do movimento de familiares, sem ela não pode haver “desaparecimento político” e, eventualmente, apenas ela o garante.

154 Documento disponível em: http://verdadeaberta.org/upload/001-abilio-clemente.pdf, acesso em 27/03/15.

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Se nos primeiros casos, o “desaparecimento político” parecia ser definido pelo par natureza da violência/natureza da vítima (VIANNA, 2014), no caso Abílio – a exemplo de ou-tros em que nenhuma informação a respeito da participação da Ditadura no desaparecimento pôde ser levantada – o segundo elemento parece ser suficiente. Isto é, é a própria natureza da vítima que define a existência da violência e sua natureza. Refletindo a respeito de seu próprio campo de pesquisa, Vianna (Op. Cit.) argumenta que certas violências são definidas como um tipo específico não apenas pela percepção de que guardam uma relação com o “Estado”, mas principalmente pela natureza antagônica dessa relação. No caso apreendido pela autora, é a territorialidade, aliada a aspectos de classe e raça, que tornariam os moradores de comunidades cariocas inimigos em potencial aos olhos de certas instituições estatais, que tomam estas áreas como espaços de confronto. Aos seus próprios olhos, esses moradores são sujeitos potencialmen-te vulneráveis, cuja morte violenta, quando ocorre, é tomada como algo previamente inscrito em seu horizonte de possibilidades.

Creio que algo semelhante ocorra no processo de delimitação do universo dos atin-gidos por motivação “política” na Ditadura. Na medida em que a Ditadura é definida como um sistema em que o uso da violência se tornou a norma geral de resolução de conflitos e controle da população, é preciso reconhecer que uma grande variedade de sujeitos sociais as sofreram, independente de opor-se ou não a esse sistema. Nesse sentido, muitos poderiam ser os desapa-recimentos que, de uma forma ou outra, tiveram sua origem em uma ação ou omissão de atores vinculados às instituições do Estado. Por outro lado, a noção de violência especificamente “po-lítica” segue se limitando ao antagonismo constituído entre o Regime e as esquerdas – oposição radical que só se dissolveria pela exclusão de uma das posições em conflito, conforme argumen-tei em outro momento (AZEVEDO, 2013) - a tortura, a morte e o desaparecimento se tornam eventos preanunciados no próprio pertencimento a este setor político.

A análise desse conjunto de caso me chama atenção para como o ato de afirmar a militância política conecta estreitamente as noções de luta e de vulnerabilidade, não apenas no que se refere aos “mortos e desaparecidos”, mas também aos “familiares”. No processo de construção das “mortes e desaparecimentos políticos”, a afirmação da militância nesse seu du-plo aspecto vai se mostrando um dos meios mais recorrentes através dos quais os “familiares” pleitearão reconhecimento público, tanto da relevância de certas mortes – a dos “nossos mortos” - como aquelas que, entre todas as provocadas ou permitidas pelo contexto violento do Regime, devem ser especialmente lamentadas, quanto de sua própria inscrição como atores cujo saberes e dores precisam ser levados em conta na esfera pública.

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Quem são os mortos e desaparecidos políticos?

Nós, durante esses anos todos, os familiares, juntamos provas, documentos, provas e docu-mentos e de certa forma isso nunca foi tão verdade como vai ser agora a partir do trabalho da comissão

da verdade. Então, pra nós é fundamental esse trabalho, mas é fundamental que se lembre que estas denúncias estão sendo feitas nesses anos todos por nós

(Suzana Lisboa, 44ª Audiência Pública da CVRP).

O debate realizado até aqui me leva a concordar com Ferreira, quando diz que o desaparecimento é objeto de enunciados que “compõem um jogo de forças em que responsabilidades são distribuídas” (FERREIRA, 2011: 198). De maneira semelhante ao que discute a autora, em torno do “desaparecimento político” são construídas arenas variadas e inter-relacionadas – públicas e privadas, grandes e pequenas, de debates e de homenagens – onde distintos atores se inserem e se pronunciam, delimitando contornos para o fenômeno. Em meio às semelhantes e diferentes perspectivas, os debates enunciativos desenham jogos de força em que responsabilidades e direitos são apontados, competências e autoridades são afirmadas ou questionadas.

Ao longo do capítulo procurei mostrar como a construção da noção de “morte e desaparecimento político” no Brasil passa pela atuação dos movimentos sociais articulados em torno de dar visibilidade às violências do passado ditatorial, especialmente o movimento de fa-miliares. Através da denúncia, materializada nos casos, esse movimento logrou mostrar que os acontecimentos políticos da época afetaram e deram novos rumos a vidas de sujeitos sociais es-pecíficos, para além da ordem política e social do país. Mais do que isso, entrelaçando estas duas dimensões, eles procuraram afirmar que a violência institucional em sua capacidade de romper (e dar fim a) trajetórias pessoais foi o acontecimento político mais relevante do período. Ao falar publicamente de suas perdas, tais atores desejam mobilizar instituições capazes de reconhecer seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, provocar uma reflexão crítica mais abrangente acerca das formas como a sociedade lida com a violência passada. Nesse sentido, suas percep-ções e enunciados acerca do “desaparecimento político” implicam em dois outros movimentos: a distribuição de responsabilidades e direitos a sujeitos sociais específicos e a produção de uma narrativa histórica que defina esses mesmos sujeitos como seus personagens principais.

Os “mortos e desaparecidos políticos” sempre foram personagens importantes das narrativas sobre a Ditadura. Como bem sugeriu Verdery (1999), essa relevância advém das am-plas possibilidades simbólicas oferecidas pela simultânea concretude e ambiguidade dos mor-tos. Para além da possibilidade de reinterpretar e dar novos sentidos para suas ações e palavras quando vivos, manejar seus corpos – honrados nos cemitérios, desenterrados para análises e identificação, reenterrados com honras e cerimoniais, convertidos em bustos e monumentos, homenageados em exposições, nomes de ruas ou de escolas – é, para a autora, uma experiência

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que por sua qualidade visual e visceral parece oferecer um acesso verdadeiro ao passado nacional. Reivindicando uma agência pioneira desse manejo, e legítima porque marcada pela afetividade e o parentesco, os “familiares” arrogam para si não apenas certos direitos relativos aos mortos, como também uma autoridade enunciativa sobre seus corpos, vidas e mortes no espaço público, baseados no papel de testemunhas e produtores de conhecimentos que acreditam desempenhar. Papel que se afirma, é preciso destacar, em contraposição ao Estado, agente que responsabili-zam de forma personificada ou por meio de suas instituições, não apenas pelo desaparecimento, como pela ausência de Memória, Verdade e Justiça no presente.

Contudo, a atuação das comissões da verdade mostra que diversos outros agentes participam dos esforços pela delimitação do “desaparecimento político” e sua transformação em uma questão pública. Antes delas, as comissões de indenização estaduais e nacionais – a CEMDP, mas também a Comissão de Anistia155 – levaram agentes institucionais, advogados e profissionais de diferentes áreas a se posicionarem sobre a questão, produzindo outros enuncia-dos que, da mesma maneira, apontam responsabilidades e competências. Enquanto tomam para si a competência de reconhecer direitos e, consequentemente, de nomear oficialmente, a cada caso reconhecido, quem é um morto ou desaparecido político, as comissões delegam aos familiares a responsabilidade de requerer essa nomeação, assim como de apresentar as provas necessárias.

Ao ser afirmado a partir do reconhecimento de direitos particulares (dos requeren-tes), definidos pela inserção das vítimas no grupo identitário reclamado pelo movimento de fa-miliares (dos militantes), as concepções sobre o fenômeno do desaparecimento político restaram marcadas por uma definição bastante particularizada. Algo que, como vimos, acaba por excluir de antemão aqueles que não conseguem ser admitidos em tal identidade ou acessar tais comis-sões. Desse ponto de vista, em grande medida convergente entre “familiares” e atores institucio-nais, decorrem, entretanto, percepções sobre responsabilidades e competências antagônicas, das quais resta uma distinção entre posições e as pessoas (coletivas) que as ocupam. Em resumo, se em geral há um consenso entre instituições e movimento de familiares em relação a “o que é o desaparecimento político”, entre eles coloca-se em disputa a autoridade de enunciar “quem é um desaparecido político”. Algo que se materializa na diferença entre as listas nominais sustentadas pelo Dossiê e pela CEMDP e, mais recentemente, no processo de configuração de uma terceira lista, a da CNV. A produção de pessoas coletivas antagônicas a partir dessas disputas será tema no próximo capítulo. Por ora, e para caminhar nessa direção, encerrando a discussão proposta aqui, me parecem necessárias algumas palavras sobre essa última lista, ainda que ela tenha sido concluída durante o processo de escrita dessa tese, impedindo uma análise mais ambiciosa.

155 Criada pela Lei 10.559 de 2002, a Comissão de Anistia também confere título de “anistiado político” para mortos e desaparecidos políticos. Tal título, conferido mais comumente a sobreviventes, implica no reconheci-mento da perseguição estatal sofrida, o que pode render, além dessa “reparação moral”, uma indenização, caso assim solicite, e um pedido de “desculpas por parte do Estado”. Sobre a Comissão de Anistia, ver: Rosito, 2011.

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Antes, é preciso dizer que um estudo do processo de construção do “desaparecimento político” na CEMDP ainda está por ser realizado. A partir dele, poderíamos entender, por exem-plo, os critérios levados em conta para que 118 dos 475 requerimentos enviados a esta comissão tenham sido indeferidos. No total, a CEMDP reconheceu 357 casos de “mortos e desaparecidos políticos”, enquanto o Dossiê sustenta a existência de 436 casos.156 Importante lembrar que, quanto aos casos reconhecidos por ambos, não há pluralidade de versões, mas uma narrativa comum ins-taurada pela realimentação entre os trabalhos do movimento de familiares e da CEMDP.

Diferente das comissões de indenização, as comissões da verdade tinham por res-ponsabilidade legal “investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” e promover um esclarecimento circunstanciado de “torturas, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres”, independente de serem acionadas por particulares. Seu objetivo era assegurar o chamado “direito à verdade” da sociedade mais do que direitos particulares de vítimas e seus familiares como faziam as comissões anteriormente criadas. Desde esse objetivo mais amplo, seu relatório final (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014) investiu em tecer uma caracterização geral do regime, para além de evidenciar casos particulares de violações. Ele o fez definindo a Ditadura como um “regime de ataque sistemático e generalizado contra a popu-lação civil” em que foram perseguidos os opositores políticos e todos aqueles que pudessem ser percebidos como inimigos, entre os quais poderiam surgir outros grupos sociais para além dos militantes. A prisão arbitrária e ilegal e a tortura teriam sido políticas de Estado, ampla e siste-maticamente empregadas como método de obtenção de informações ou confissões e como forma de disseminar o medo. A tortura teria evoluído de um método empregado corriqueiramente

156 O relatório Direito à memória e à verdade afirma que a não comprovação de militância política é um desses critérios. “Desse total, 118 foram indeferidos. Alguns, mesmo tendo comprovada a militância política de oposição ao regime militar, esbarraram em outros quesitos exigidos pela lei” (SECRETADIA DE DIREI-TOS HUMANOS, 2007: 48). A CEMDP teve duas fases de análise de requerimentos. Na primeira, entre 1996 e 1998, ela já contava com 136 casos aprovados pela lei e recebeu mais 234 casos para análise. Desses, 166 já constavam no Dossiê e 68 eram “novos” casos. Entre os primeiros, aprovou 130 e rejeitou 36. Entre os segundos, aprovou 18 e rejeitou 50. Essa desproporção sugere um alto grau de compar-tilhamento de marcos interpretativos e valorativos entre o movimento dos familiares e a CEMDP na definição de um caso como “desaparecimento político”. A negativa de alguns processos também estava relacionada a restrições iniciais da lei que excluía, por exemplo, casos de suicídio ou mortes fora de ins-talações estatais, como em passeatas, que eram considerados “políticos” pelos “familiares”. Em 2004, modificações foram introduzidas à lei e reaberto o período de recebimento de requerimentos. Nessa segunda fase, foram protocolados 107 casos, dos quais 73 foram aprovados e 34 indeferidos. No total das duas fases, 47 “novos” casos aprovados pela CEMDP foram introduzidos ao Dossiê. Mas, não pude saber quantos casos “novos” indeferidos pela CEMDP foram aceitos no Dossiê. O Dossiê também possui casos nunca apresentados à CEMDP, seja por ausência de familiares que pudessem ou tivessem interesse em fazê-lo, seja por tratarem-se de casos não contemplados pela lei, como alguns casos de acidentes e mortes por doenças, como ataque cardíaco e câncer, cuja a ligação com a repressão sofrida nunca foi aventada pelos familiares ou comprovada aos olhos da CEMDP.

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contra “presos comuns” em um período anterior para se tornar a base de um sistema repressivo sofisticado e organizado sob controle militar.

Frente a esta caracterização, os desaparecimentos e as mortes foram consideradas parte dessa política sistemática, embora aplicada mais diretamente contra os opositores políticos. A ocultação de cadáveres, tal como os familiares proclamam, foi considerada uma estratégia para ocultar mortes e torturas, em que cooperavam diferentes organismos públicos: forças da repressão, funcionários do IML, médicos legistas, as administrações de cemitérios e setores do Judiciário. Nesses termos, o “desaparecimento político” foi visto como um crime praticado contra organizações políticas, em sua maioria urbanas, apontadas nominalmente no relatório. Seguindo, portanto, a mesma lógica do movimento de familiares e das comissões de indeniza-ção, a CNV também optou por apresentar uma lista nominal de “mortos e desaparecidos polí-ticos” que, segundo o relatório, foi construída a partir de critérios abrangentes e contextuais de comprovação, conforme parâmetros internacionais:

Nesse sentido, reconhecendo a enorme dificuldade de se produzir provas sobre o desaparecimento de uma pessoa, a Corte IDH determina que a configu-ração desse crime possa ser demonstrada por meio de provas indiretas e cir-cunstanciais, assim como indícios ou presunções razoáveis, devendo ainda ser outorgado um alto valor probatório aos testemunhos que possam esclarecer o caso. A análise deve levar em consideração o contexto histórico-social no qual se encontra inserida a prática do desaparecimento, bem como o seu modus operandi em determinado Estado (o qual inclui, por exemplo, o critério de seleção da vítima, o número de pessoas desaparecidas, o padrão sistemático da conduta e a forma de atuação das forças de segurança). Em outras palavras, o desaparecimento forçado não deve ser analisado de forma isolada, mas inse-rido na realidade concreta, para que se possam estabelecer as consequências jurídicas relativas tanto à natureza das violações de direitos observadas como às eventuais reparações. A necessidade de se estabelecer uma forma particular de investigação fica ainda mais evidente quando a prática de desaparecimento forçado é levada a cabo em um padrão sistemático de violações de direitos humanos, promovido ou tolerado pelo Estado, contra uma população civil, configurando um crime contra a humanidade. (CNV, 2014a: 295)

Apesar disso, a CNV baseou seu trabalho de investigação sobre mortes e desapare-cimentos em duas fontes centrais, o relatório da CEMDP e o Dossiê. Essa opção fez com que a comissão mantivesse as referências já consolidadas por estes documentos para definir o “critério de seleção de vítimas” que teria orientado a repressão na prática dos crimes de morte e desapa-recimento. Consequentemente, manteve seus marcos interpretativos (e valorativos) para definir uma dada morte ou desaparecimento como “político”. A lista nominal da CNV admitiu todos os nomes constantes no relatório da CEMDP e quase todos os nomes do Dossiê que excediam aquele documento, com exceção de 9 casos. A esse total, acrescentou apenas 6 “novos” casos que não constavam em nenhum dos dois documentos. Ao final, 434 casos de “mortos e desapare-cidos políticos” foram nominalmente listados. Mesmo trazendo a afirmação de que, “por sua

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natureza”, tal lista se encontra aberta a investigações futuras, declarações de descontentamento com este resultado partiram não apenas dos “familiares”, que interessam centralmente nessa tese, mas de diversos outros atores e pontos de conexão constituídos no interior do campo MVJ.

Tal como procurei discutir no Capítulo 1, a formação das comissões da verdade permitiu uma ampliação da comunidade daqueles que, sentido-se afetados pela violência da Ditadura, seja diretamente ou por solidariedade, passaram a reivindicar a inserção de outras experiências de violência e sofrimento no conjunto de crimes que eram apontados como co-metidos pelo regime. Violências que, desde este ponto de vista, vinham sendo ignoradas por uma percepção restrita acerca da “razão política” que guiava a repressão. Com isso, diversos movimentos sociais organizados em torno de suas pautas específicas se aproximaram das comis-sões da verdade, apresentando demandas. Entre estes movimentos, alguns lograram estabelecer grupos de trabalho internos ou associados à CNV (e outras comissões) fazendo com que certas “violências específicas” fossem contempladas pelo relatório final. Como resultado, “militares”, “trabalhadores e sindicatos”, “camponeses”, “igrejas cristãs”, “povos indígenas”, “universidades” e “homossexualidades” figuraram como universos específicos contemplados por um conjunto de “textos temáticos” que deu corpo ao Volume II do relatório final.157

157 A partir da minha circulação pelo campo MVJ, acredito que a participação desses temas no rela-tório tem profunda relação com o interesse e capacidade desses movimentos sociais de se articularem em torno às comissões e encontrarem apoiadores, seja nos meios institucionais, seja em meio a ativistas mais antigos no movimento de denúncias das violências da Ditadura. Ainda que não seja o caso de discutir esse tema aqui – considerando também que pesquisas etnográficas voltadas para as gestões desses movimentos sociais junto às comissões da verdade foram realizadas, como é o caso do trabalho de Garcia (2015) sobre a questão indígena – creio ser possível afirmar que a atuação dos movimentos sociais é um melhor caminho para entender a inclusão dessas “temáticas” no relatório do que considerar apenas uma preocupação voluntária das próprias comissões em contemplar certos sujeitos universais dos Direitos Humanos. Nesse sentido, chama atenção a ausência de textos específicos sobre “mulheres” ou “negros”. Ainda que a “violência de gênero” tenha sido contemplada como parte destacável das técnicas de tortura, violências específicas contra “mulheres” - de que poderia ser um exemplo a conhecida prática de esterilização de mulheres pobres pela Ditadura (DAMASCO, MAIO e MONTEIRO, 2012) - não foram consideradas pelo relatório. Ainda que o tema tenha sido fundamental durante a conformação do movimento feminista negro no Brasil, até onde pude observar, não ocorreram mobilizações em torno a esta ou qualquer outra demanda específica do movimento feminista ou do movimento negro junto à CNV. Apesar disso, a ausência desses temas no relatório, não deixaram de ser notadas e criticadas por atores ligados a tais movimentos e outros agentes circulantes no campo MVJ. Umas das ausências mais criticadas, sobretudo por sua ligação com práticas de violação de direitos humanos ocorridas no presen-te, foram as violências cometidas contra as favelas e sua população, mais especificamente nas práticas de remoção forçada e repressão a movimentos e líderes comunitários (PEDRETTI, 2015). Os grupos organizados em torno a esta questão estiveram igualmente ausentes do campo MVJ. Entre as reflexões críticas sobre essas ausências têm se destacado também aquelas realizadas na academia, incluindo auto-res que escrevem a partir de diversos tipos de experiência de assessoramento de comissões da verdade. Sobre essa questão, é interessante verificar a edição “População Marginalizada no centro da repressão” da Re-vista (ISER, 2015). A publicação, organizada pela equipe do Iser que esteve monitorando a CNV, reúne uma série de textos produzidos por ex-assessores das comissões da verdade provenientes de di-

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Tais “textos temáticos” foram considerados importantes para marcar a abrangência e a diversidade da violência praticada pela Ditadura, especificando a ideia de que a Ditadura foi um regime de “ataques sistemáticos contra a população civil”. Serviu também para mostrar a existência de outras experiências de repressão e resistência, isto é, de confronto político, para além daquela vivida por organizações políticas urbanas que se opuseram ao regime com ou sem armas na mão. Nesse sentido, foram incorporadas as violências decorrentes das lutas para de-fender direitos trabalhistas na cidade e no campo, assim como os inúmeros conflitos fundiários ocorridos no período, boa parte deles envolvendo a violência de milícias particulares ligadas a grandes proprietários de terra, em que o Estado participou diretamente ou se omitiu, além de diversos tipos de gestões violentas sobre territórios e populações indígenas, muitas delas decor-rentes dos chamados projetos de desenvolvimento e integração nacional. Ao tratar de conflitos que apresentam um longa duração no Brasil, se estendendo por uma temporalidade que nos alcança no presente, o relatório cuidou de apontar os contornos que tais violências assumiram sob um regime ditatorial que esgotava as possibilidades de reação solidária por parte de outras parcelas da população, aparelhava e militarizava órgãos estatais de proteção, como foi o caso da FUNAI, além de ter à disposição a estrutura e os métodos repressivos criados para o combate ao “terrorismo”. Nesse sentido, o relatório afirma que torturas, prisões arbitrárias, mortes e desaparecimentos se abateram sobre todos os setores sociais que de alguma maneira se contra-puseram aos interesses do governo ditatorial, “mesmo aqueles em que os enfrentamentos se deram por motivações políticas, contextos e formas de resistência distintos das situações vividas pelas organizações de esquerda urbanas e rurais” (CNV, 2014b: 203).

Tendo em vista essa compreensão, chama atenção que – mesmo após afirmar que atores sociais não relacionados às “organizações políticas urbanas e rurais” foram enquadrados como “terroristas” e “inimigos da nação”, muitas vezes combatidos por crimes contra a “seguran-ça nacional”, e que apesar dos “textos temáticos” trazerem levantamentos sobre torturas, prisões, mortes e desaparecimentos ocorridos nesses “universos sociais específicos” - estes casos não tenham sido narrados como casos de “mortes e desaparecimentos políticos”, nem tenham sido adicionados à contabilidade ou à lista nominal que compõem o Volume III do relatório. Cabe destacar que os camponeses listados entre os 434 nomes são, em sua maioria, sujeitos vincula-dos a experiências de guerrilhas e movimentos rurais organizados. Já em relação aos indígenas, nenhuma das 8.350 mortes e desaparecimentos estimadas pela CNV – e consideradas uma pequena fração do total ocorrido, referente apenas aos casos estudados – foram acrescentadas à lista dos “mortos e desaparecidos políticos”.

Conforme mencionei, não me importa aqui discutir as motivações envolvidas na decisão tomada pela CNV, entre outras razões, por falta de elementos empíricos provenientes

versas áreas de pesquisa acadêmica. Por fim, há que se destacar (como exceção) a inclusão de capítulos, ainda que breves, sobre repressão a mulheres e a populações negras no relatório da CVRP.

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do trabalho de campo que permitam dar folego a esta abordagem. Respeitando, portanto, os limites da minha pesquisa, me interessa apontar como as críticas realizadas pelos atores sociais envolvidos nos debates sobre o “desaparecimento político” implicam na demarcação de posições, na distribuição de competências e responsabilidades e na disputa por autoridades, desvelando jogos e correlações de força. Antes da divulgação do relatório final da CNV, as críticas à sua lista de nomes já circulavam através de notas e dos jornais, meios muitas vezes eleitos para tornar públicas as divergências e reequilibrar relações consideradas desfavoráveis quando circunscritas às arenas menos visíveis (como reuniões, encontros pessoais, e-mails ou telefonemas). Se a co-missão nacional tinha a prerrogativa legal de nomear os “mortos e desaparecidos políticos”, na medida em que atuavam para tanto, ficava claro que esse exercício implicava também em posi-cionar-se em relação a outros atores, cujas competências poderiam, nesse mesmo movimento, ser colocadas em jogo. Uma primeira crítica que interessa chamar atenção é a da CEMDP que, cerca de um mês antes do lançamento do relatório, divulgou uma nota em que se manifestava sobre a questão. Lembrando seu papel pioneiro como primeira comissão com atribuição de re-conhecer “mortos e desaparecidos políticos”, afirmou, em suma, que:

O resultado das investigações conduzidas pela CNV, por diversas Comissões de Verdade e por pesquisas acadêmicas vem mostrando que esse conceito de morto e desaparecido político não é suficiente para abarcar outras categorias de vítimas que foram assassinadas e desaparecidas por agentes do Estado di-tatorial, pessoas que, sem participarem de atividades políticas nem, tampouco, de ações de resistência organizada à ditadura, também foram vítimas fatais da violência do regime de exceção. Tal é o caso dos povos indígenas, das comuni-dades tradicionais, das minorias étnicas, de gênero e religiosas, dos campone-ses, dos habitantes das periferias, para ficarmos apenas com alguns exemplos, alvos privilegiados de um projeto político autoritário.158

Dessa inadequação do conceito, vinha o pedido para que a CNV recomendasse al-terações na Lei Nº 9.140/95, de modo a ampliar as competências da CEMDP, permitindo que ela mesma possa reconhecer a condição “política” também dessas mortes e desaparecimentos. Também se referem ao reconhecimento de sua própria competência, as críticas produzidas pelos “familiares” à lista da CNV. Ainda que elas tenham se voltado para uma questão mais pontual, a não incorporação de 21 dos nomes constantes no Dossiê. Na mesma ocasião, uma nota assinada pelo presidente da CVRP reverberava o posicionamento dos “familiares” que em torno dessa comissão se organizavam. Assim, apresentavam sua queixa:

Esclarecemos que nossa discordância se deve ao fato de que, desde 2009, quando houve a publicação do já mencionado Dossiê Ditadura, produzido por esforço e empenho exclusivamente dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, sem nenhuma ajuda do Estado, seu conteúdo nunca foi contestado

158 Nota da CEMDP, disponível em: http://www.cev-rio.org.br/noticias/comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos-entrega-recomendacoes-a-cnv/. Acesso em 21/04/15.

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por nenhum órgão estatal ou da sociedade civil e nem sequer por qualquer agente da repressão citado no livro. É inadmissível que caiba à Comissão Na-cional da Verdade, criada com o objetivo de esclarecer as graves violações de direitos humanos e colaborar com o processo de reparação às famílias, o papel de ser a primeira a questionar e a descartar, ao invés de investigar profunda-mente, os casos relatados e descobertos com grandes sacrifícios pelo movi-mento de familiares em nosso país.159

Ao discordar dos critérios eleitos pela CNV para apurar tal listagem, a CVRP a acusa de optar por uma visão “judicial e estrita do processo de construção da verdade”, pois a exclusão de tais nomes era atribuída à ausência de provas de que as mortes tivessem relação com a repressão. A nota ainda ressalta que o “compromisso” da CNV com a comissão estadual e a Comissão de Familiares foi partir do Dossiê (aceitando todos os seus nomes) para ampliar a cate-goria de vítimas, tirando dos familiares o “ônus da prova”. Um ônus que, por outro lado, se con-verte na autoridade enunciativa que é reclamada pelos “familiares”, algo que os levou a produzir informações com “grandes sacrifícios” e “sem nenhuma ajuda do Estado”. É interessante notar que, pelo menos nessa situação, a autoridade familiar se mostrou mais efetiva do que a institu-cional, na medida em que os nomes, em um primeiro momento, descartados pela CNV foram quase integralmente incorporados ao relatório após tais queixas (excluindo-se apenas 9 casos em que as mortes foram consideradas “acidentes” ou “causas naturais”), enquanto as solicitações da CEMDP ficaram fora das recomendações do relatório final.

Com esses breves exemplo, quero apenas chamar atenção para as disputas pela com-petência enunciativa que surgem junto às negociações que pretendem apontar quem são os “mor-tos e desaparecidos políticos”. Nessa disputa, “Estado” e “familiares” surgem como domínios distintos que se (re)afirmam um em relação ao outro em diferentes situações. Se “os familiares” reconhecem o Estado por seu poder de nomeação – como parece apontar a fala de Suzana em epígrafe nessa sessão, tal Estado se afirma, a contraponto, nos atos de reconhecimento da iden-tidade familiar, de seus “direitos” e seus meios de existir publicamente. Por outro lado, algumas das situações brevemente descritas acima – tais como as trocas de críticas e exigências públicas entre instituições que igualmente desfrutam a oficialidade, alusões a certos “compromissos” fir-mados em espaços menos visíveis e discursos que confundem como um mesmo ator uma comis-são institucional e as organizações de familiares – sugerem que olhemos com mais cuidado essa polarização e, sobretudo, ideia de que o Estado é o lócus enunciativo da nomeação da verdade.

É sobre a densa trama de relações políticas, institucionais e pessoais que enredam tais domínios que lançarei o olhar no próximo capítulo, procurando pensar as estratégias e os processos a partir dos quais os limites do Estado e da família vão sendo (re)definidos.

159 Nota da CVRP, disponível em: http://www.adrianodiogo.com.br/noticias/internas/id/2529/nota-da-sobre-a-listagem-de-mortos-e-desaparecidos-da-cnv/. Acesso em 21/04/15.

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4.“Nós não somos o Estado”

Quando se trata do Estado, nunca duvidamos demais (Pierre Bourdieu, Espíritos de Estado)

Estávamos em agosto de 2012. A Comissão Nacional da Verdade iniciava suas tão aguardadas atividades públicas, mobilizando expectativas entre setores dos movimentos sociais, do campo dos Direitos Humanos, da academia e outros agentes envolvidos nos debates sobre Memória, Verdade e Justiça. Há alguns dias, havia sido confirmada sua primeira audiência pública no Rio de Janeiro.160 Segundo a agenda da comissão, o evento seria precedido por uma série de reuniões preparatórias com grupos integrantes da “sociedade civil organizada” em torno da disputa pela memória da Ditadura. Entre esses grupos, estavam o Coletivo RJ MVJ e a Ordem dos Advogados do Brasil – RJ, que sediaria o evento.

Quatro dias antes da audiência, eu chegava à sede do GTNM/RJ, onde havia combinado um encontro com Victória. Fui recebida por ela no portão com a notícia de que uma visita inesperada estava para chegar. Enquanto me conduzia para dentro, Victória contou rapidamente que uma assessora da CNV ligara, pedindo um encontro para falar sobre a au-diência. Encontro este que não estava previsto na agenda oficial da comissão, nem havia sido previamente marcado com o Grupo. Surpresa como eu, Victória só teve tempo de dizer que estava contente que eu estivesse ali para presenciá-lo. Mal terminada a frase, vimos a assessora chegar em companhia de outro colega.

A comissão havia sido recém-instalada, mas Victória e a assessora eram antigas co-nhecidas. Proveniente dos quadros da SDH, ela esteve envolvida até então nos assuntos existentes entre a secretaria e os familiares. No curto tempo em que eu frequentava o Grupo, já havia pre-senciado (e ainda presenciaria) ligações desta assessora para o telefone particular de Victória para comunicá-la sobre diferentes assuntos relativos aos “mortos e desaparecidos”, marcar reuniões, entre outras questões. Se não se pode dizer que havia uma intimidade entre elas, era flagrante

160 Após ser instalada a comissão, em maio de 2012, os membros e primeiros assessores nomeados da CNV tiveram uma série de reuniões com Ministros de Estado e presidentes de comissões e instituições administrativas relacionadas ao tema. Em seguida, procederam em São Paulo uma reunião fechada com cerca de 50 familiares de mortos e desaparecidos de todo o país. Apenas depois desses encontros é que se iniciaram as atividades abertas. A primeira delas, realizada no final de julho em Brasília, reuniu os coletivos e comitês MVJ e outras organizações da “sociedade civil”. Embora convidado para este evento, o GTNM/RJ declinou. Em agosto, foram realizadas a primeira audiência pública, em Goiás, e a segun-da, no Rio de janeiro.

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a existência de um trato antigo, mediado pelo pertencimento da assessora ao staff institucional. Esse trato se tornou evidente tão logo entramos na sede. Enquanto Victória nos deixou de lado para atender uma ligação telefônica, a assessora fez as “honras da casa”, assumindo a tarefa de apresentar o lugar para o colega de comissão, mostrando-se confortável e ambientada naquele es-paço. Victória, ao se juntar a nós, assumiu a mesma postura desembaraçada com a assessora. Sem maiores cerimônias, passou direto ao que seria o tema do encontro, listando uma série de críticas à programação da audiência, assim como ao fato da CNV tê-la elaborado antes das reuniões com a “sociedade civil”, ainda que uma reunião com o Grupo nunca tenha sido acordada.

Eu não saberia dizer ao certo por quanto tempo a conversa permaneceu nesse tema, pois chamou muito mais minha atenção a agilidade e a naturalidade com que os três passeavam de um assunto ao outro em movimentos cíclicos. Se começaram discutindo a audiência, logo falavam de temas alheios à esfera de atuação da CNV, voltando eventualmente ao primeiro as-sunto. Inicialmente, os assessores ouviram atentamente as críticas de Victória à programação do evento, na maior parte do tempo manifesta como sendo a visão dos familiares. Apesar disso, ja-mais esboçaram menções de que tentariam modificá-la. Contra o argumento posto por Victória de que as mesas com historiadores previstas para ocorrer na parte da tarde eram inócuas, porque os “ familiares não querem saber de teoria”, o assessor retrucou que o problema era que muitos só “querem saber quem deu o último tiro em seu parente”. A afirmação deixou-a visivelmente exaspera-da com o que considerou um desrespeito com a luta dos familiares. Talvez tenha sido a tensão desse momento que os fez mudar a primeira vez de assunto, talvez não. O que pude registrar na memória e, posteriormente, no caderno de campo foi que, logo em seguida, o assunto já muda-ra. Eles falaram dos desaparecidos, da busca de corpos no Araguaia, de declarações polêmicas feitas por ex-repressores e, finalmente, das recentes rusgas entre o Grupo e a SDH em função da execução da sentença da Justiça Federal no caso Araguaia.161

Se a conversa parece ter caminhado por assuntos variados (e pontuados desacordos), também podemos perceber que ela girou em torno de um único tema mais geral: as demandas dos familiares. Elas foram levadas por uma impressionante disposição de cobrança de Victória, que de maneira nenhuma se limitava àquilo que pudesse ser tomado como responsabilidade direta de seus interlocutores. Se a sentença judicial opunha como litigantes um conjunto de

161 Refiro-me à sentença da 1ª Vara Federal de Brasília no processo ajuizado em 1982 pelos familiares de desaparecidos no Araguaia. Cerca de dez dias antes do encontro em questão, ocorrera uma reunião em Brasília entre representantes dos familiares, dos Ministérios da Justiça, da Defesa e da SDH com a juíza Solange Salgado para discutir a execução da sentença proferida por ela em 2003 (e transitada em julgado em 2007). Em pauta, as buscas na região e a atuação do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) criado em 2009 para proceder uma das determinações da sentença: a localização das ossadas dos guerrilheiros desapare-cidos. Extremamente insatisfeitos com as buscas, os familiares fizeram uma série de críticas públicas ao GTA. Elas foram rebatidas, na sequência, por uma nota, também pública, assinada pelos três Ministérios (que coordenam conjuntamente o GTA). Havia, portanto, uma tensão em torno desta questão naquele momento. Algumas semanas depois, os familiares decidiram deixar sua representação oficial no GTA.

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familiares e o Estado, aos olhos de Victória não havia dúvidas que os assessores ali presentes eram parte deste mesmo Estado que deveria ser cobrado por suas responsabilidades. As frontei-ras lhe pareciam bem claras. Era observando-as que Victória se colocava no diálogo.

Pouco mais de uma hora depois de terem chegado, os assessores se despediram, não sem se asseguraram de que nos veriam na audiência pública. Enquanto observava as despedidas, eu guardava comigo algumas dúvidas. Como disse, durante a reunião chamara minha atenção a maneira como os assuntos pareciam se encadear de maneira bastante informal, como em uma conversar despretensiosa, ainda que marcada por desacordos. Daí que eu me perguntasse qual seria o objetivo (pragmático) daquilo tudo. Os assessores deslocaram-se até ali, mas não toma-ram qualquer decisão conjunta com Victória, também não se comprometeram a realizar nenhum rearranjo na programação criticada, muito menos negociaram ou encaminharam nada. Por que, então, haviam ido até a sede do Grupo? Apenas quando me vi a sós com Victória, pude lhe fazer esta pergunta. Sua resposta me levou a deixar de lado meus anseios por pragmatismo, lembran-do-me dos aspectos rituais e performáticos das reuniões (COMERFORD, 2002).

A dinâmica da reunião se daria mais ou menos da seguinte maneira: ao procurar o Grupo, a CNV demonstrava deferência, afirmando reconhecer sua importância no campo político em que passaria a atuar. Afinal de contas, não existia atividade no campo MVJ em que a chegada de um militante do GTNM/RJ não fosse anunciada publicamente. Muitas vezes, conforme eu mesma testemunhei, não havendo lugar previsto para o Grupo na mesa de debates de um evento, providenciava-se um na hora em que um militante era reconhecido, principalmente se familiar. Ao acompanhar esse reconhecimento, a CNV se afirmava como um órgão forjado no diálogo com a “sociedade civil”, algo que seus membros vinham sempre defendendo em pronunciamentos públicos. Essa atitude se fazia, assim, um indício da forma como a própria comissão se colocaria e seria percebida por seus pares no campo. Já Victória, retribuía o gesto e acompanhava o movimento ao recebê-los. A CNV era sem sombra de dú-vidas um interlocutor relevante, apesar de novo, a quem ignorar também traria consequências em termos de percepções externas. A partir daquele momento, a CNV também seria referen-ciada com deferência nos espaços públicos. Não à toa, a posição extremamente crítica à CNV expressa pelo Grupo já vinha gerando desconforto entre outras organizações políticas mais inclinadas a apoiar a comissão. Por serem reconhecidos por essa posição crítica é que Victória considerou complicado recebê-los na sede. Era nesse sentido que minha presença a agradava. Eu podia garantir que tal postura crítica havia se mantido também naquela esfera. O seu ra-ciocínio, sobretudo essa última preocupação, me fez entender aquela reunião também como um espaço em que suspeições e reputações eram postas em jogo, evidenciando contornos não apenas políticos, mas também morais da dissidência posta.162

162 Caderno de campo 1, 09/08/2012.

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Pela densidade das questões envolvidas, essa inesperada reunião (que apenas por sorte presenciei) foi uma situação delicada, mas de forma alguma singular. Pelo contrário, ela me parece inserida em uma dinâmica de interações entre familiares e atores institucionais que ocorrem ora em ambientes administrativos, ora em ambientes dos movimentos sociais, tanto em eventos teatralizados e midiáticos, quanto em contatos cotidianos e encontros ordinários. Em qualquer desses casos, falamos de espaços e situações que podem ser mais ou menos públicos. Descrevê-las em sua totalidade seria tarefa impossível. Nesse capítulo, pretendo reunir exem-plos empíricos de algumas dessas situações. Meu intuito é argumentar que, em que pesem as idiossincrasias, essas interações restam marcadas pela dissenção entre quem demanda e quem é demandado. Todavia, se tal contraste costuma colocar, de um lado, “os familiares” e, de outro, “o Estado”, a rigidez dessa contraposição não resiste a um olhar mais aproximado que nos permita acessar as múltiplas facetas assumidas por essas relações, mas que não são evidenciadas apenas pelos termos contrastivos que assim a encerram. Como sugere o episódio descrito, há algo nelas que escorrega entre a frieza da institucionalidade e o comprometimento do trato pessoal, que transitam entre o interesse comum que aproxima os atores concretos e as suspeições e divergên-cias que os separam, entre as percepções de sujeição em relação ao Estado e a possibilidade de intervenção nas suas formas de gestão e de poder.

No capítulo anterior, a descrição dos processos de construção dos casos de “morte e desaparecimento político” e sua conversão em causa ofereceu um panorama inicial do processo por meio do qual o movimento de familiares passou a se ver como antagonista de um Estado que deveria ser o responsável por reconhecer os crimes cometidos no passado, oferecendo Verdade e Justiça como reparação. Nesse capítulo, minha intenção é mostrar que esse antagonismo é, de fato, parte central da atuação pública do movimento de familiares. Um posicionamento e um sentimento reatualizados cotidianamente ao longo de processos entre os quais, não contra-ditoriamente, os familiares também dialogam, negociam e adentram as fronteiras do Estado. Pensar a delimitação e o atravessamento de domínios como processos simultâneos (ou pensar a mobilidade de tais fronteiras) a partir dos quais a questão dos “mortos e desaparecidos” é gerida me permitirá discutir os contornos de uma economia moral da dependência, suspeição e ressen-timento entre os agentes que classificam uns aos outros como Estado e familiares.

* * *

Quatro dias depois deste episódio na sede do Grupo, tínhamos um novo encontro com a CNV. No horário marcado, cheguei sozinha à sede da OAB para participar da minha primeira audiência pública. Ao entrar no edifício, uma fila no hall dos elevadores já me indicava a movimentação do dia. Era prudente aguardar ali, pois eu me dirigia, como a maioria das pessoas, ao auditório do último andar. Olhando ao redor, comecei a reconhecer alguns rostos. Com ao menos uma das

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pessoas naquela fila, eu havia me encontrado na semana anterior e no mesmo auditório para o qual mais uma vez nos dirigíamos. Ocorrera então uma reunião para discutir a campanha pelo tombamento dos locais de repressão que a OAB tentava encabeçar. A maior parte dos presentes daquele dia viriam hoje renovar seus compromissos com MVJ.

Após algum tempo de espera, consegui chegar ao último andar. Ao sair do eleva-dor, me deparo com um amplo salão que, conforme esperava, estava repleto. Um rápido olhar por entre as várias “rodas” de conversa e já pude reconhecer novos rostos. Inevitavelmente, meu caminho até o auditório se deu entre cumprimentos e algumas pausas para conversas. Troquei palavras com uma militante do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça, um pesquisador do Iser, um membro da diretoria da OAB. Alguém comentou que mais uma vez nos (re)encontrávamos “as pessoas de sempre”: militantes por MVJ, “familiares”, “sobreviventes”, estudantes, pesquisa-dores, ONGs de Direitos Humanos, alguns deputados, vários advogados e, finalmente, alguns representantes de instituições de Direitos Humanos dos Governos do Estado e Federal. Nessa afirmação residia a ideia de que, entre trânsitos e reencontros, o campo MVJ ia sendo desenhado dia a dia, envolvendo variados atores em diferentes espaços e oportunidades para trocar infor-mações, discutir interesses comuns e articular iniciativas. Mesmo que a audiência parecesse apenas mais um entre os inúmeros eventos do campo, era possível perceber uma expectativa especial em relação àquele primeiro diálogo com a CNV. Havia uma flagrante agitação no ar. Todos queriam ouvir, mas principalmente serem ouvidos.

Encontrei os militantes do GTNM/RJ já acomodados no interior do auditório, dis-persos em conversas com antigos “companheiros”. Cumprimentei a maioria com acenos de lon-ge, mas me sentei em um lugar disponível ao lado de um deles. Dali, pude ver os membros da CNV acomodados na comprida mesa postada em uma espécie de palco, um pouco acima do pavimento, de onde tentavam dar início à audiência. O auditório tomado em suas cadeiras e cor-redores teve dificuldade de fazer silêncio para ouvir os primeiros oradores. Na mesa, cinco dos sete membros da CNV se faziam presentes, acompanhados pelo presidente da OAB.163 Além

163 A CNV foi composta inicialmente por sete membros (os comissionados) indicados pela Presidente, são eles: Rosa Cardoso, Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Paulo Sérgio Pinheiro e Maria Rita Kehl. Segundo as informações do site da CNV, Dipp é ministro do STJ e exerceu diversos cargos na Justiça Federal. Foi afastado por licença médica durante o período de atuação da comissão. Dias é advogado, defen-deu presos políticos e exerceu diversos cargos públicos, entre os quais o de Ministro da Justiça no governo FHC e Secretário de Justiça do Governo Montoro. Cavalcanti é advogado, ocupou cargos públicos, entre os quais Secretá-rio-geral no Ministério da Justiça no Governo Sarney. Kehl é doutora em psicanálise e escritora. Pinheiro é doutor em Ciência Política, pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP, foi Secretário de Direitos Humanos no governo FHC, teve cargos na OEA e, atualmente, na ONU. Fonteles foi procurador federal. Ele renunciou seu cargo na CNV em meados de 2013, sendo substituído por Pedro Dallari. Ele é advogado, doutor em direito internacional, professor da USP, ocupou cargos legislativos e participou da gestão de Erundina na Prefeitura de São Paulo. Cardoso é advogada, doutora em ciência política, defendeu presos políticos na Ditadura, ocupou car-gos públicos no Estado do Rio de Janeiro, é professora da UFF. Além dos comissionados, a CNV contou com uma ampla equipe, formada ao longo dos dois anos de funcionamento. Foi composta por assessores, peritos, consultores,

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dele, três dos (chamados) comissionados tiveram direito a proceder breves palavras iniciais, após as quais o microfone foi aberto para “inscrições” livres da audiência, cada orador recebendo cinco minutos para sua fala. Nas palavras de abertura, os comissionados procuraram esclarecer o “mandato legal” da comissão e defender suas potencialidades, explicando seus “poderes” e a importância de tê-la conquistado, apesar das pressões contrárias.

Quando foi aberto o microfone à plateia, o número de “inscrições” não decepcionou. Muitas pessoas e praticamente todas as organizações políticas queriam se pronunciar, marcando de uma forma ativa sua presença. Entre as diferentes colocações feitas, parecem ter sobressaído, ao menos no que diz respeito ao impacto sobre os comissionados, as ponderações manifestas, em sua maioria, pelos movimentos sociais, notadamente por “familiares” e “sobreviventes”. Em uma tentativa de mapeá-las, é possível dizer que giravam em torno de três ordens de questão: cobranças (por “participação” da “sociedade” nos trabalhos da CNV, pelo compartilhamento constante das informações obtidas, pela independência da comissão em relação ao governo e pelo acesso aos arquivos das FFAA); críticas (ao sigilo e aos “limites políticos”164 da comissão); e queixas (direcionadas à atuação de outras instituições do Estado). Em meio a elas, a audiência adquiriu ares tensos em certos momentos. Naquele que me pareceu o mais agudo deles, um “so-brevivente” bastante idoso, após relatar as torturas sofridas por ele, sua esposa e sua filha (então

pesquisadores, colaboradores e estagiários. Essa equipe foi constituída tanto por servidores públicos nomeados para a CNV, quanto cedidos de outros órgãos da administração, além de pesquisadores contratados através do PNUD. A equipe completa está disponível no relatório final (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014a).

164 Ao falar em “limites políticos” da CNV, os críticos se referem diretamente ao longo processo de ne-gociações que levou a lei aprovada pelo Congresso Nacional, em 2011. A proposta de criação da CNV pas-sou por diversos estágios de negociação política após o primeiro espaço em que foi proposta e aprovada, a Conferência Nacional de Direitos Humanos de 2008, que deu origem ao PNDH-3. Não apenas a proposta da CNV, mas todo o programa passou por uma série de reformulações e adaptações às diferentes pres-sões políticas constituídas à época até chegar ao formato definitivamente aprovado. Dessa maneira, se de um lado houve a Conferência como espaço de interação entre atores institucionais e movimentos sociais, onde a criação de uma comissão da verdade foi proposta e aprovada segundo critérios e entendimentos acordados com esses movimentos; de outro lado, houve um conjunto de reformulações estabelecidas em espaços inacessíveis aos movimentos sociais. Desde as negociações de gabinete envolvendo os Minis-tros dos Direitos Humanos e da Defesa (que pelo seu conteúdo de confronto, acabam públicas através dos jornais), até as negociações entre os partidos em torno da aprovação da lei no Congresso Nacional, passando por acordos realizados no Grupo de Trabalho Interministerial que elaborou o projeto de lei. Por considerarem-se alijados de todos estes espaços (pois, apesar de o GT contar com um “representante da sociedade civil”, os grupos organizados se queixam de não terem sido recebidos por tal representante), as alterações assim construídas foram vistas como derrotas pelos movimentos sociais. Mudanças que constituiriam, assim, “limites” aos poderes inicialmente imaginados por eles para essa comissão. Entre as críticas formuladas à época estão: a não garantia de um representante eleito pelas vítimas na comis-são, a ampliação da data de abrangência de investigação para o período de 1946 a 1988, a retirada das expressões “repressão política” e “ justiça” do texto original e a inclusão de outras como “reconciliação nacional”, a vinculação da comissão ao Governo Federal, o pequeno número de membros, a indicação dos mesmos pela Presidente, entre outros. Para uma discussão mais aprofundada dessas críticas, ver por exemplo: Coimbra, 2012; Teles e Quinalha, 2013.

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adolescente), dirigiu-se aos membros da comissão, dizendo-lhes:

Companheiros, eu quando tava torturado, eu ficava pensando à noite como é que aqueles torturadores podiam se olhar na frente dos espelhos, como é que aqueles torturadores podiam olhar nos olhos dos seus filhos e das suas mulhe-res. E isso vai acontecer com os senhores, se não tomarem as providências que o povo brasileiro espera dos senhores. Como vão se olhar no espelho e olhar nos olhos dos seus filhos? É isso que eu tenho que falar aqui.

Em um primeiro momento não me atentei para sua crítica. A fala me impressio-nou pela forte emoção. A imagem daquele senhor tremendo, em prantos, amparado pelo famoso advogado de presos políticos que o defendeu à época, me comoveu, como a todo o auditório. A atenção para sua crítica veio em um segundo momento, quando percebi o estranhamento que sua fala também provocou. Sua comparação, além de aproximar uma concreta ação passada a uma hipotética omissão futura, igualara em termos de responsabilidade os que cometem crimes e os que falham/se omitem na tarefa de apurá-los. Isso causou desconforto e perplexidade sobretudo naqueles que estavam sendo comparados a torturadores. Mas, ao mesmo tempo, foi interessante notar que, embora melindrados, os comissionados não tiveram dificuldade para identificar o fator que permitia e sustentava essa comparação. Agentes repressivos e comissionados, ainda que se-parados por inumeráveis características e funções, estariam sendo vistos como atores igualmente pertencentes à trama institucional que convencionamos chamar Estado. Tomando, portanto, a fala daquele senhor como a manifestação mais exaltada de um sentimento duradouro de desconfiança, os comissionados dedicaram parte de suas palavras finais a tentar dissuadir aqueles que voltavam esse sentimento para a comissão. É o que mostra os trechos abaixo, extraídos da fala de três deles:

Às vezes parece um pouco chocante ouvir de companheiros da mesma luta, às vezes em tom acusatório, como se o nosso sigilo fosse – gente que sofreu evidentemente naquele período por sigilos fraudulentos, crimes ocultados – mas, como se o sigilo necessário para uma investigação fosse da mesma ordem de quem tá escondendo coisa feia, vergonhosa, etc. Não estou dizendo que as pessoas confundem isso, evidentemente as pessoas não confundem, mas no emocional parece que ao invés de companheiros de barco, as vezes com um pouco de diferença de método, é como se nós tivéssemos um pouco contra a parede... nós somos representantes deles, né? Nós estamos aqui e não so-mos.... mesmo na condição de Estado, é outro Estado.

Achar que o relatório publicado pela comissão da verdade não vai ter conse-quências, eu não vou elaborar sobre isso, mas aproveitemos essa caminhada. Se a comissão nacional dos mortos e desparecidos não foi um sonho, aprovei-temos essa oportunidade. Então, em vez de ficar nos transformando no tom acusatório... nós estamos do mesmo lado, apesar de ter sido nomeados pelo Estado, não somos o Estado brasileiro! Não somos o Estado brasileiro! En-tão, evidentemente que nós temos uma autonomia enorme, um poder imenso, utilizem isso, em vez de que ficarem nos colocando no muro da acusação. Me impressionou muito ouvir todos esses relatos, todos esses depoimentos. Eu quero dizer ao companheiro que nos desafiou (…): nós vamos enfrentar!

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Nós vamos nos olhar! Porque, eu digo uma coisa ao senhor, e a vocês todos, não é em vão que estamos nessa luta. Como advogado de presos políticos que sou e de centenas de criaturas humanas tive a honra e a dor de defender, em nome disso, eu pessoalmente não ia aceitar esse desafio de participar da Comissão Nacional da Verdade se não fosse para dar continuidade a essa luta que participei quando ainda era jovem.165

A fala dos comissionados não foi menos emotiva, devo constar antes de tudo. Para eles, esse incômodo estar “contra a parede” seria fruto de desconfianças múltiplas que teriam como verdadeiro alvo o Estado. Impressionou-me notar também que, ao contrário de questionar essas desconfianças, eles passaram a argumentar como se as compartilhassem. O que suas falas indicavam como inapropriado não era a desconfiança em si, mas a percepção dos fatos que con-siderava a CNV e o Estado como termos equivalentes. Se falamos de um Estado que reprimiu e tendo o dever de apurar, esclarecer, julgar e se desculpar, não o fez, um mesmo Estado portanto, então: “nós não somos o Estado!”. Porém, se é inegável que pertencemos à trama institucional: então somos um “outro Estado”.

A multiplicidade de sentidos atribuíveis à noção de Estado faz com que não seja fácil alinhavar tudo o que está sendo negado (e dito) por meio de afirmações que, como estas, lhe pres-supõem um sentido único. Sem a pretensão de ser exaustiva, tentarei levantar alguns dos elementos que parecem estar por trás dessas assertivas, considerando o contexto em que foram mobilizadas. Em primeiro lugar, creio que elas revelam menos o entendimento de que uma pessoa (ou um con-junto delas) possa(m) assim encarnar o Estado, do que um senso comum que vê no Estado mesmo uma entidade autônoma e poderosa. Considerando-o como um dado inscrito nas “evidências da ex-periência comum” (BOURDIEU, 2011a: 92), nos acostumamos a falar sobre o Estado como “aquele que faz; que deve fazer; que pode realizar ou escolher não realizar” (VIANNA e FARIAS, 2011: 93). Como figura retórica, portanto, o Estado é uma agência política apartada da sociedade e capaz de intervir sobre ela. Uma entidade que penetra o cotidiano, se fazendo presente concretamente nas vidas dos sujeitos sociais ao mesmo tempo em que permanece distante e evasiva (DAS, 2007).

Se os atores sociais dirigem a essa entidade suas demandas, também a tomam por alvo de suas frustrações e acusações. Algo que decorre da percepção de que a vida transcorre em um universo de iniquidades que caberiam a ninguém menos que o próprio Estado solucionar. Dessa maneira, referindo-se ora à ação (ou omissão) dos sujeitos concretamente postados nas instituições administrativas, ora às normativas ou aos artefatos através dos quais elas tomam forma social, os atores revelam aquilo que Vianna (2013) bem definiu como uma crença com-partilhada no Estado como unidade idealizada. Uma entidade coesa (onipresente, onisciente e atemporal), mas que nem por isso deixa de ser vista como um projeto sempre inacabado, para

165 Caderno de campo 1, 13/08/12. Todas as falas citadas em discurso direto foram transcritas a partir de gravação pessoal feita durante a audiência da CNV.

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o qual se voltam percepções sobre o “justo” e o “correto”, assim como estratégias de busca por reconhecimento que, como a autora aponta, marcam o horizonte de como o Estado “deve ser”.

Quando afirmam não serem “o Estado” ou serem um “outro Estado”, os comissiona-dos nos remetem a certos questionamentos. Então, o que é o Estado? Quem faz parte dele? Quais são seus limites? Assim, se a primeira vista suas afirmações partem daquela visão unidimensional e naturalizada do Estado, em um segundo momento, elas chamam nossa atenção para a multipli-cidade de dimensões que se atravessam quando se torna necessário (ou conveniente) apresentar-lhe definições mais precisas. Ao se diferenciarem do Estado, os comissionados falam não somente sobre si, mas também sobre aquilo que negam ser. Sendo assim, fazem apontamentos, ainda que sem pretensões exaustivas, sobre os domínios do Estado, colocando em jogo representações sobre o passado, o presente e o futuro; o material e o simbólico; o interno e o externo; o atual e o potencial.

Essas múltiplas dimensões me parecem ainda mais evidentes na ideia de que os comissionados representam um “outro Estado”. Voltando à fala em questão, encontramos uma preocupação com a possibilidade de que “nós” estivéssemos sendo tomados como “represen-tantes deles”. Enquanto, o “nós” se refere aos membros da CNV, o “eles” permanece em uma zona de ambiguidades. Alguns contrastes poderiam nos ajudar a iluminá-la. O primeiro seria orientado pelo tempo. Na oposição entre o Estado autoritário de outrora e o democrático do presente, “eles” seria a Ditadura e as forças que estiveram à frente (ou ao lado) da repressão. Essa é uma contraposição importante porque seus interesses, ainda vivos na política atual, te-riam se manifestado nas negociações em torno da construção da comissão da verdade. Algo que foi mencionado no decorrer da audiência como limitador de alguns dos poderes desejados para a comissão.166 Uma segunda contraposição seria entre o Estado atual em que vivemos uma democracia disjuntiva (CALDEIRA, 2000) e um Estado virtual mais respeitador dos Direitos Humanos e Civis. Aqui, “eles” seriam os setores não comprometidos com esse horizonte do “correto” e do “justo”. A terceira contraposição poderia estar na distinção entre o interno e o externo ao Estado, a separação entre Estado e sociedade. Nesse caso, “eles” seriam os agentes e as tramas institucionais, enquanto os membros da CNV se perceberiam como representantes da “sociedade civil” em seu interesse de “investigar e esclarecer as violações de Direitos Humanos”

166 Conforme a nota 156. O Ministério da Defesa seria uma dessas forças, por ter levado para as ne-gociações as preocupações manifestas pelos comandantes das FFAA. As desconfianças em relação a ambos decorrem do fato de que, como instituição, as FFAA nunca manifestaram (nem mesmo após a entrega do relatório final da CNV) arrependimento ou um pedido de desculpas pela violência exercida durante a Ditadura (tal como ocorreu, por exemplo, na Argentina). Afora a instituição e o Ministério que a encerra, alguns políticos que participaram da negociação do projeto no Congresso Nacional são identificados como ex-apoiadores do Regime. É preciso lembrar que, à exceção dos poucos políticos que permanecem se manifestando na defesa da Ditadura, o projeto de lei foi aprovado pela grande maioria dos congressistas e pela totalidade dos partidos. Isso exigiu uma ampla negociação para que fosse que-brada a resistência de parlamentares que, embora não se comprometam hoje com a defesa da Ditadura, a apoiaram no passado ou que representam uma base eleitoral conservadora.

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perpetradas pelo Estado. Nessa interpretação, a própria comissão é ressaltada como instituição temporária, por excelência crítica ao Estado e protetora dos direitos das “vítimas”. Nesse sentido, ela seria híbrida ou liminar. Uma instituição que não poderia ser localizada completamente nem dentro, nem fora do mesmo. Daí a tentativa de precisar essa situação, afirmando que apesar de um mandato estatal lhes emprestar oficialidade, nós “não somos o Estado”.

Em comum, todas as oposições representam um movimento de afastamento dos comissionados desse lugar onde residiria a responsabilidade pelo atual estado de coisas, se apro-ximando dos sujeitos que, insatisfeitos, desejam mudá-lo. Ao lidar com o Estado como represen-tação, suas afirmações sugerem que o Estado é esse lugar: a realidade homogênea, mas obscura e inacessível, onde as decisões são tomadas e onde reside a responsabilidade. Uma espécie de backs-tage onde figuraria verdadeiramente o poder político (ABRAMS, 2006). Por outro lado, quando evocamos os possíveis contrastes que nos ajudem a precisar esse “eles” que seria o Estado, se evidencia uma visão multifacetada do mesmo. Ao jogar o foco sobre os atores sociais, surgem as forças antagônicas que se embatem no interior das instituições e seus limites em relação à socie-dade não são tão facilmente identificados. Nesses discursos, portanto, o que se está tomando por Estado transita entre a coerência correspondente àquilo que Abrams (2006) caracterizou como Estado-ideia, uma representação ou uma força ideológica, e o plano das instituições que, em-bora materialmente identificável em objetos, práticas, lugares e pessoas, se mostra mais difuso. Isso porque elas correspondem ao Estado-sistema, o conjunto de estruturas imbricadas e práticas institucionalizadas que, apesar de centrado nos governos e nas instituições, quando observamos sua atuação, percebemos um funcionamento muitas vezes errático e ambíguo, além de limites nebulosos e instáveis167. É também disso que nos falam os comissionados quando negam serem o Estado com o qual os atores que se pensam “fora” os identificam, por contraste, na lida cotidiana.

Tal como aponta Mitchell (2006) estar dentro ou fora do Estado não é uma questão que possa ser identificada com precisão conceitual. Nesse sentido, o autor afirma que o Estado-sistema e o Estado-ideia devem ser tomados como dois aspectos do mesmo processo que vai

167 Para Abrams, o Estado-ideia seria uma reificação do Estado-sistema, que se torna cada vez mais dissociada do mesmo. Essa dissociação seria a responsável pela crença no Estado como essa realidade escondida por trás da prá-tica política. Esse poder que acreditamos existir e que resiste à identificação. Para o autor, ao contrário, o Estado não estaria mascarado, mas seria a própria máscara que nos impede de ver a prática política. Essa é a razão pela qual a separação entre esses dois objetos de estudo, ideia e sistema, seria fundamental para qualquer análise que de-seje fugir da reificação. Nesse sentido, sua preocupação se aproxima daquela posta por Bourdieu (2011a), quando defende a necessidade de se colocar em relação ao Estado uma dúvida radical. Para Bourdieu, essa máscara posta pelo Estado estaria em sua representação como o lugar da universalidade, da racionalidade e do interesse geral. Para desarticulá-la, o autor também identifica dois fenômenos distintos que se desenvolvem de forma associada. Ele recupera a gênese de um campo burocrático e do processo de concentração de diferentes tipos de capitais que dotaram esse mesmo campo de um capital simbólico objetivado, que é característico do Estado moderno tal como o percebemos. Desse capital simbólico objetivado decorre o poder de nomear e oficializar, atos cuja lógica se asseme-lharia à da magia. O efeito do Estado se expressa nessa dimensão simbólica, no poder de padronizar, codificar, unificar e criar. Um poder que cria também estruturas mentais, categorias de percepção e de pensamento.

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compondo e reposicionando as fronteiras delimitadoras do Estado. Nesse movimento, gera-se um efeito de Estado produzido na relação contrastiva com um outro que é, muitas vezes, a socie-dade.168 Através dessa reflexão, o autor não está nos sugerindo ignorar tais fronteiras, mas levar extremamente a sério sua existência instável, constituindo análises que considerem tanto sua permeabilidade, quanto os significados políticos de evidenciá-las. Para ele, “o fato das fronteiras do Estado nunca marcarem um exterior nos dá pistas de porque elas parecem indefinidas e instáveis. Mas, isso não significa que elas sejam ilusórias. (…) produzir e manter as distinções entre Estado e sociedade é em si mesmo um mecanismo que gera recursos de poder” (MITCHELL, Op. Cit: 175). Foi o que eu pude perceber ao longo da pesquisa empírica travada em meio a essa articulação que chamei de campo MVJ. A interação entre os diferentes atores sociais evidencia que nem a ordem política e o poder (em sua abstração), nem a produção de normas, decisões e políticas (em sua concretude) se limitam à esfera daquilo que chamamos Estado. No interior do campo, tanto se reconhece a uni-dade entre atores postados dentro e fora das instituições, e refiro-me às conexões, redes de relação e fluxos de debates que produzem artefatos materiais e simbólicos (planos, programas, leis, nor-mas, relatórios, ideias); quanto se enfatiza a existência de diferentes “papéis”, termo que se refere genericamente a processos de distinção de responsabilidades, competências, hierarquias, práticas e reputações que produzem visões do Estado e da sociedade (e dos familiares, numa acepção mais específica) como distintas pessoas coletivas, homogêneas e autônomas uma em relação a outra.

Na audiência da CNV, as demandas por participação, as exigências de independên-cia em relação aos governos e os diferentes movimentos de inclusão e exclusão de certos atores sociais da “luta” ou do Estado evidenciam a coexistência desses dois movimentos, sugerindo que essas fronteiras vão sendo negociadas pelos atores a partir da produção e do “manejo contextual de identidades” (FACCHINI, 2012). Da mesma maneira que podemos ver um ator institucional negando esta condição em um contexto específico, algo que não se mantém necessariamente em todas as arenas nas quais ele se faz presente, um militante identificado com os movimentos sociais também pode acionar a condição institucional que eventualmente ocupe em espaços em que tal acionamento seja conveniente. Falamos, portanto, de contextos em que diferentes dese-nhos de alianças e oposições entre os atores sociais são possíveis, atravessando e reposicionando essas fronteiras, muito embora esses diferentes desenhos lidem com representações sobre a esta-bilidade das distinções que configuram Estado e sociedade como domínios apartados. O Estado como representação é, assim, mais um elemento de um jogo de forças que se funda em discursos técnicos, mas também em fortes contornos morais e emocionais, como vimos nos exemplos da reunião no Grupo e da audiência pública, quando o que está em tela são os processos de vitimi-zação e de luta por reconhecimento vocalizados pelo movimento de familiares.

168 O autor ressalta as fronteiras produzidas em relação à sociedade e à economia, mas podemos levar em conta outros contrastes como aqueles estabelecidos em relação aos familiares no caso em tela.

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Para dar seguimento ao debate, na próxima seção discuto a condenação do Brasil pela CIDH no caso Gomes Lund e outros. Opondo um conjunto de familiares, tomados coleti-vamente como vítima, ao Estado, personificado com réu, esse evento singular na história do movimento de familiares nos permite tanto observar a condensação do conflito em torno dessa oposição, e a consequente reificação de seus antagonistas, quanto abre nossa visão para um am-plo e intrincado conjunto de tensões cotidianas e atravessamento de fronteiras que compõem a gestão da questão dos mortos e desaparecidos no Brasil.

O Estado no banco dos réus

Como já fora dito aqui, em uma primeira instância, o Estado disse que as operações no Araguaia não haviam existido. Depois, disse que as operações, sim, haviam existido, mas as informa-

ções não existiam. Depois, disse que as informações haviam existido, mas haviam sido incineradas. E, finalmente, em 2001 e em 2007, em alegações internas à procuradoria e os juízes brasileiros, o

Estado alegou que se tratava de informações reservadas. (Representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos)

Esse é um momento histórico em que o Estado brasileiro reafirma suas responsabilidades pelo trágico episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia.

(Representante do Brasil)

A comissão valora que o Estado tenha reconhecido sua responsabilidade pelos crimes a que se refere este caso, mas considera que o Estado não assumiu na plenitude

as medidas necessárias para uma confrontação desses crimes. (…) Não se trata de uma espécie de menu em que se pode escolher alguns pratos, ou algumas medidas,

há que se fazer uma confrontação de caráter integral que, no caso do Brasil, não teve lugar”. (Representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos)169

Durante os dias 20 e 21 de maio de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos recebeu “os familiares” e “o Estado brasileiro” para uma audiência pública sobre o caso Gomes Lund e outros, mais conhecido no Brasil como caso Guerrilha do Araguaia. Realizada em San José, na Costa Rica, essa audiência seria a última etapa do processo que se iniciou em 1995 com o envio de uma

169 Trechos extraídos das alegações finais das partes durante a audiência pública do caso Gomes Lund e outros na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A transcrição (e tradução do espanhol para o por-tuguês no primeiro e no terceiro excertos) foram feitas por mim a partir da gravação oficial da audiência, cuja cópia me foi oferecida pelo GTNM/RJ. Outras citações referentes a audiência possuem esta mesma origem. O nome do caso faz referência a Guilherme Gomes Lund, um dos 70 guerrilheiros desapareci-dos no Araguaia, e sua mãe, Júlia Gomes Lund, uma dos familiares representados na demanda.

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petição à Comissão Interamericana, firmada pelo Cejil e o Humans Wrights Watch, em nome de setenta desaparecidos no Araguaia e seus familiares. Posteriormente, a Comissão de Familiares e o GTNM/RJ se somariam como co-peticionários. Após quinze anos, tal petição resultou na quarta condenação do Brasil na CIDH, a primeira relativa a episódios ocorridos durante a Ditadura.

Caminhando quase tão lentamente no Sistema Interamericano quanto na justiça in-terna,170 o caso seria admitido pela Comissão apenas em 2001. Mais sete anos foram necessários para que ela se pronunciasse através de um relatório de recomendações ao Estado brasileiro. A ausência de respostas consideradas satisfatórias a este relatório dentro de dois prazos estabele-cidos levou a Comissão a apresentar à Corte uma demanda contra o Estado brasileiro, em 2009. Através dessa demanda, a Comissão acusava a responsabilidade do Estado pela detenção, tor-tura e desaparecimento de 70 pessoas, como resultado das ações do Exército brasileiro contra a Guerrilha do Araguaia. Mas não se encerrava aí. Ela acusava também sua responsabilidade por sobretudo duas omissões: a não investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelos crimes e a não execução de medidas internas com o fim de fornecer informações aos familiares, incluindo a localização dos corpos. Finalmente, apontava sua responsabilidade por ter instituí-do medidas legislativas e administrativas (incluindo a Lei de Anistia) que restringem o acesso à informação. Para a Comissão Interamericana, todos esses fatos afetaram a integridade pessoal não apenas dos desaparecidos, como de seus familiares. Sendo ambos vítimas de um Estado que viola os seguintes direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à integridade pessoal, à vida, à liberdade pessoal, a garantias judiciais, à liberdade de pensamento e expressão e à proteção judicial.

No processo instalado na CIDH, assim como naquele que correra na Justiça Federal entre 1982 e 2007 e ainda se encontra em fase de execução de sentença, o Estado responde como réu. Para tanto, assume personalidade jurídica, a partir da qual é visto como portador de direitos e obrigações. Segundo dispõem a Constituição Federal e o Código Civil, a União é pessoa jurí-dica de direito público interno (ao lado dos Estados, Municípios e do Distrito Federal), enquanto a República Federativa do Brasil (complexo constituído pela soma dessas personalidades, mas representado pela União) é a pessoa jurídica de direito externo.171 Frente à Corte Interamericana,

170 Refiro-me mais uma vez ao processo aberto em 1982 pelos mesmos familiares na Justiça brasileira. O caso caminhou 15 anos no Sistema Interamericano e 21 anos na Justiça Federal. Os dois processos estão relacionados, pois é apenas o esgotamento dos mecanismos internos de resolução dos conflitos que per-mite que um caso acesse o Sistema Interamericano. Em 2009, quando o caso é enviado à Corte, a sentença favorável aos familiares no processo interna está transitada em julgado há dois anos. A ausência de cumprimento é, portanto, um fator de agravamento da situação do Brasil perante a Corte e os familiares. É importante notar que este não foi o único processo aberto e ganho pelos familiares em esfera civil contra a União, mas tornou-se o mais importante do ponto de vista simbólico para a luta dos familiares justamente por ter chegado à CIDH, produzindo uma condenação internacional.

171 Art. 14 do Código Civil e art. 21 da Constituição Federal.

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portanto, será a República Federativa do Brasil – tratada nos documentos referentes ao caso como “a União”, “o Estado” ou “o Brasil” - quem responderá pelas denúncias apresentadas. Tal como exemplificam os trechos citados em epígrafe, em torno dessa personalidade jurídica, o Estado é personificado como uma das partes de um processo, tornando-se um ator social que “afirma”, “assume” ou “escolhe em um menu”. Os representantes que falam em seu nome se referem a um ator que “entende”, “assegura”, “promove”, “reconhece”, entre outros comportamentos que ates-tam sua agência política. No âmbito do processo, portanto, as políticas construídas por distintos governos na diacronia e pelas diferentes instituições administrativas envolvidas sincronicamente na gestão do problema dos “mortos e desaparecidos políticos” não serão considerados nessa plu-ralidade. A noção de Estado torna-se um ponto de fixação em que essa multiplicidade se torna um todo do qual se espera coerência. Contudo, essa fixação não é estável. Como bem argumen-ta Bourdieu, podemos “escolher atribuir o nome de Estado ao último (ou ao primeiro) anel da longa cadeia dos atos oficiais de consagração” (2011a: 113). Conforme veremos a seguir, a oficialidade igualmente consagrada às mais distintas e, por vezes, conflitantes formas de gestão do mesmo problema tornam o Estado este ator de atitudes incoerentes que nos sugere a primeira declaração em epígrafe, proferida por uma representante da Comissão Interamericana.

A audiência pública em San José foi o momento final de um processo que mobilizou um conjunto de provas testemunhais e periciais. Esse momento serviu para que o Tribunal, composto por oito juízes, ouvisse pessoalmente as alegações das partes, assim como os depoi-mentos de algumas das vítimas (familiares), além de testemunhas e peritos propostos pelas par-tes e pela Comissão. Foi também esse o momento em que, em sua defesa, “o Estado” apresentou três “exceções preliminares” a partir das quais contestava a demanda da Comissão e solicitava à Corte o encerramento do caso.172 Dessa maneira, não obstante o Estado “assumisse responsabilida-de” pelos crimes “ocorridos não só no trágico episódio da Guerrilha do Araguaia, mas também ao longo de todo o regime militar”, como afirmou um de seus representantes, alegava ser aquele tribunal incompetente para julgá-lo e as vítimas desprovidas de “interesse processual” no caso, já que “as medidas já adotadas [pelo Estado], somadas às que estão em implementação, atendem a integralidade de seus pedidos” (CIDH, 2013: 11).

Interessante notar que essa postura é semelhante àquela articulada pelo Estado no caso Damião Ximenes, o primeiro no qual foi condenado pela Corte. A exemplo de Silva (2008) em sua análise deste processo, não pretendo adentrar aqui por entre os meandros da audiência ou da sentença condenatória do presente caso. Porém, assim como o autor, me interessa ressaltar o “conjunto de acusações mútuas” (SILVA, op. Cit.: 12) que transparece nesse caso com o intuito

172 O Estado apresentava dois argumentos em relação ao procedimento (incompetência temporal do Tribunal para julgar o caso e falta de esgotamento dos recursos internos) e um em relação ao mérito (falta de interesse processual das vítimas). Para compreendê-los em sua extensão e as razões pelas quais foram rejeitados, ver: CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2013.

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de pensar as maneiras pelas quais elas ora ocultam, ora iluminam os múltiplos atores, práticas e contraposições que vão compondo aquilo que está sendo tomado como “o Estado”.

Como vimos, o processo na CIDH se dá em torno da sedimentação de obrigações e responsabilidades. Por meio delas, “o Estado” é definido como aquele que responde por um amplo conjunto de ações concretas tomadas no interior de variadas instituições que compõem o aparato administrativo. Não estão em jogo apenas as ações do Exército brasileiro no Araguaia, mas também do legislativo e do executivo que produziram a Lei de Anistia; do STF que, em oportunidade de reinterpretá-la (no julgamento da ADPF 153), não o fez; dos diferentes juízes que rejeitaram e procuradores que se recusaram a levar adiante as denúncias criminais contra agentes repressivos em respeito à mesma lei;173 do GTA que não consegue encontrar e identificar com efetividades os desaparecidos, entre outras atividades que foram pormenorizadamente deba-tidas na audiência. Por outro lado, e no intuito de demonstrar para a Corte medidas que concre-tizam a responsabilidade alegadamente assumida, “o Estado” é também aquele que empreendeu ações de reparação material e imaterial, produzidas no interior de instituições como a CEMDP e a CA. Ações de proteção do direito à memória e à verdade, como o projeto Memórias Reveladas a cargo do Arquivo Nacional, bem como recentes esforços pela criação da CNV e de uma nova Lei de Acesso à Informação, cujas normas (Leis Nº 12.528 e 12.527/11) haviam sido recém-enviadas pelo Governo Federal ao Congresso Nacional por ocasião do julgamento, entre outras. No contexto das acusações, defesas e contra-acusações, o Estado surge tão concreto quanto essas instituições e medidas. Como réu, ele não é apenas uma força ideológica ou uma crença subjetiva, mas um fenômeno empírico, sólido e discernível aos olhos dos atores sociais (MITCHELL, 2006).

A apresentação do Brasil réu diante da Corte Interamericana dá lugar a uma intrinca-da sobreposição entre os domínios simbólico e empíricos que constituem o Estado, contribuindo para que percepções sobre sua incoerência sejam forjadas. Como evento vivenciado na luta dos familiares, o processo fornece solo empírico para as representações de antagonismo nutridas não em relação a uma instituição ou outra do aparato administrativo, mas em relação a esse Estado réu. Foi “o Estado” que matou e desapareceu com seus familiares e agora, dizendo assumir a res-ponsabilidade por estes atos, tenta se esquivar da condenação que o responsabilizaria por décadas

173 A Lei de Anistia é propositalmente ambígua em sua redação, razão pela qual ela segue gerando debates jurídicos até os dias de hoje. Conforme anteriormente discutido, em uma feita, ela “perdoa” os “crimes políticos” cometidos no período, sem especificar por quais agentes. Isso faz com que a mesma lei que encerrou as perseguições aos opositores do regime, impeça a responsabilização de seus persegui-dores. Mais do que propor uma nova lei, a maioria dos debatedores “especialistas” defende que a lei seja “corretamente interpretada”, respeitando os padrões internacionais em Direitos Humanos, bem como as convenções e tratados assinados pelo país que não permitem anistia para “crimes de lesa-humanidade”. A construção da ADPF 153 tinha justamente esse objetivo: que o STF produzisse uma jurisprudência que encorajasse os juízes das instâncias inferiores a interpretarem a lei segundo os padrões internacio-nais. Esse objetivo, como já sabemos, foi frustrado, gerando o efeito contrário, um impedimento para juízes de instâncias inferiores que, agora, não podem decidir em contradição com o tribunal superior.

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de omissão. O mesmo Estado que dizendo-lhes reconhecer suas dores, procurou encerrar os mecanismos arduamente mobilizados para assegurar os direitos reclamados, em vez de atendê--los. É ainda o mesmo Estado que, tentando defender-se perante a CIDH, elegeu um membro do Ministério da Defesa para falar em seu nome (e não da SDH, como “deveria ser”). Em uma audiência em que, ademais, defendeu a Lei de Anistia em vez se comprometer a modificá-la.174

A (re)produção dessas e outras queixas são parte da rotina dos familiares engajados na luta. Fazem parte de um constante recontar o longo e doloroso processo que levou o Estado às duas condenações. E os inúmeros episódios que envolvem o (não) cumprimento de suas corres-pondentes sentenças. Nesse trabalho narrativo, sedimentam a visão de um Estado em constante contradição e, portanto, não confiável. A partir da posição de vítimas que ocupam nessas de-núncias, mobilizando pedidos de reparação e de punição nunca inteiramente atendidos, nutrem sentimentos de indignação que reforçam em tons morais essa identificação do Estado como permanente perpetrador. Um trecho da fala de Beth, durante a entrevista que realizamos em sua casa, é elucidativo dessa visão. Beth também esteve na audiência em San José, onde deu seu depoimento à Corte. Relacionando um momento anterior à condenação, quando no contexto da CEMDP foi possível retificar as versões oficiais da Ditadura para os casos de mortes e de-saparecimentos, ao momento atual de funcionamento das comissões da verdade, ela reconstrói elementos fundamentais dessa desconfiança que se prolonga no tempo:

174 A posição apresentada pelo Estado no Tribunal em relação aos debates que envolvem a Lei de Anistia foi aquela defendida pelo relator da ADPF 153 no STF, o Ministro Eros Grau. A saber, que a Lei representou, a seu tempo, o “acordo que possibilitou a volta do país à democracia”. Fruto das mo-bilizações sociais da época, ela “não foi uma autoanistia” porque “seu destinatário é indeterminado”. Argumentando a existência de um caráter específico da transição política no Brasil, baseado no “espírito de reconciliação nacional”, o representante do Estado na audiência da Corte defendeu, com as seguintes palavras, a manutenção da interpretação atualmente dada à lei: “pode um pacto nacional tão arduamente alcançado ser revogado e desconsiderado? É possível negar a própria gênese do processo de redemocra-tização brasileiro? O Estado entende que não, inabalavelmente entende que não!” Nesse sentido, muito embora haja no Brasil uma extensa controvérsia sobre a Lei de Anistia, iniciada no processo de gestão da Lei, no final dos 1970, e ainda existente; apesar de atores institucionais relevantes, como o ex-Minis-tro da Justiça Tarso Genro e o atual Presidente da CA Paulo Abrão (para ficar apenas na esfera do alto executivo) defenderem abertamente sua revisão, o Estado foi apresentado na Corte como favorável à atual interpretação da Lei. O representante do Estado ainda questionou o direito da CIDH de contestar uma decisão legal, legítima e soberana do STF e afirmou que uma sentença que obrigasse o Estado a proces-sar os agentes repressivos não era factível de ser cumprida. Toda uma longa narrativa foi feita sobre as especificidades da transição brasileira, mas não impressionou a Corte. Os juízes concluíram que a anistia brasileira é uma “autoanistia” enquanto ela impedir a punição dos “crimes de lesa-humanidade”. Crimes que, no entendimento do Sistema Interamericano, não são anistiáveis. Ainda assim, o debate sobre a lei tomou na Corte, como tem tomado no Brasil, considerável tempo de discussão. Não apenas o represen-tante brasileiro se pronunciou sobre o tema, como alguns peritos convocados pelo Estado, pelos familia-res e pela Comissão. Para mais detalhes sobre os debates em torno da Lei de Anistia e as possibilidades de punição de crimes cometidos durante a Ditadura (que esbarram em outras limitações jurídicas, como a irretroatividade da lei para prejudicar o réu e a prescrição) ver, por exemplo, as coletâneas: SOARES e KISHI, 2009; TELES, 2001; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011.

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Então, [na CEMDP] essa história [as versões oficiais da Ditadura] desmonta-se para que o Estado reconheça nesses casos, que ele dizia que não era respon-sabilidade dele, a culpa dele, né? Então, eu acho que isso aí a gente avançou na Lei 9.140. Foi um avanço que a gente teve, um avanço significativo de você contar essa história. Mas, cujo esforço e cuja pesquisa foi feita pelas entidades de direitos humanos e por familiares, não foi o Estado que apresentou isso pra gente. Nós fomos buscar, a gente tava com a Suzana lá como representante dos familiares e a gente municiou a Suzana com esses dados para que, então, nas sessões da comissão se apresentasse isso como prova de que as pessoas foram assassinadas pelo Estado, para que a Comissão aceitasse essa situação. Então eu acho que é um avanço, mas um é avanço... a gente não vai dizer assim: “ah, foi o Estado [que teve a iniciativa]” Ele foi forçado a reconhecer! Você que não detém os arquivos, você não matou ninguém, você não desapareceu com ninguém! No entanto, você, familiar, entidade ou seja lá quem for, é que apre-senta as provas que o Estado tem. Você que apresenta: “olha aqui o que você tem! Olha o que você fez!” Para ele admitir em cima daquilo que eu apresento. O que tá tudo inverso! Tá tudo inverso! O Estado é que tem que apresentar as provas que eu não tenho. Eu não tenho nenhuma prova, na medida em que não fui eu que fiz. Ele que tem que apresentar. A obrigação moral, ética, o que for é dele! (...) Mas as entidades saberem não é o mesmo que o Estado dizer quem foi. O que as entidades sabem pode bastar pra mim, mas não basta para a sociedade. A sociedade precisa ter o Estado dizendo formalmente que aquele Sr. Fulano de tal... ele tem que dizer formalmente para todo mundo ouvir que o Curió e o Lício são torturadores. Que ele, como Estado, atesta que fizeram. Não sou eu que tem que dizer isso, porque eu já sei. Porque, o que eu digo, nem sempre.... [é a verdade], mas o que ele diz não, o que o Estado diz não. (...) Se não, ele se faz de morto, ele faz como se não fosse ele que tivesse feito. (…) Quero que você [Estado] me fale. Que vá buscar, seja lá como essas informações que eu preciso saber: quem eram eles? Onde atuaram? O que fi-zeram? Quando foi? Detalhes a gente não sabe! Sabe o geralzão, mas não sabe detalhe. Eu quero detalhe: que dia foi? Que horas foi? Pra onde foi? De onde veio? Quem era? Quem não era? Quem deu a ordem? Quem tem isso? Não sou eu! Por mais que eu busque, isso eu não vou ter. Posso ter oficiosamente, mas eu quero oficialmente, porque oficiosamente sempre fica aquela dúvida: será que tá falando a verdade? Tem que ter o aval de alguém, Ministro da Justiça, Presidente da República... (...) Meu papel é fazê-los andar, é fazê-los falar, é diferente. Eu tenho que cutucar, mas quem vai responder são eles. Eu espero, mas eu acho que tá cada vez mais difícil (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 dezembro de 2013).

Explicando as razões pelas quais as medidas tomadas até o momento não podem ser consideradas satisfatórias e as questões que precisariam ser respondidas pelas comissões da verdade (e não mais pelos próprios familiares), Beth faz aflorar um antagonismo que se reveste de profundos contornos morais. Eles são visíveis não apenas na indignação que transparece em sua fala, mesmo quando escrita, mas nos pares opositivos que são formulados para evidenciar esse antagonismo e estão fundados em diferenças de poder (entre quem tem e quem não tem acesso à informação; entre quem pode ou não dizer a verdade) e de dever (entre a vítima e o culpado). O foco nessa desigualdade entre os que se embatem convoca para a cena um universo

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moral a partir do qual pautam-se julgamentos das “posturas estatais” mediante suas obrigações e responsabilidades. Orientando, inclusive, considerações sobre a boa ou a má-fé que estariam por trás das ações institucionais. O surgimento de informações “oficiosas” sem que nenhuma autoridade se comprometa em dar-lhes “oficialidade”; os familiares se organizando para buscar informações em arquivos, enquanto outras tantas restam indisponíveis, sob a guarda sigilosa das instituições; as comissões de reconhecimento e reparação aguardando que as próprias vítimas provem a violência que sofreram, são algumas das imagens convocadas por Beth para compor um quadro de contrastes em que a angústia mobilizada dos familiares se opõem à indiferença passiva do Estado. Daí que as conquistas não devam ser atribuídas à espontaneidade do Estado (“não vou dizer que foi o Estado”), mas à luta dos familiares (“eles foram obrigados”).

Estão postos aqui os elementos para a reificação cotidiana do antagonismo a par-tir do qual o Estado passa a ser acreditado como essa realidade homogênea que interfere (de forma ora inadequada, ora insuficiente) na vida dos familiares: ele mata, desaparece, retém in-formações e depois “ faz como se não fosse ele que tivesse feito”. Contudo, é preciso notar que, ao se debruçarem sobre as responsabilidades e as medidas que permitiriam ao Estado atingir essa responsabilidade coerente almejada pelos familiares (e também pela CIDH), os debates também convocam os atores, as instâncias e as práticas que estão envolvidas na gestão do “problema dos mortos e desaparecidos” no Brasil. E trazem, ao fazê-lo, imagens da pluralidade do aparato esta-tal, bem como das fissuras e trânsitos que permitem a construção de alianças entre atores que se consideram postados dentro e fora do mesmo. Estas duas imagens, por assim dizer, não são con-traditórias, conforme também apontam diversos autores, a partir de etnografias realizadas em contexto brasileiro, tais como as reunidas em Souza Lima (2002) ou Vianna (2013). Para ficar com as palavras dessa autora, “a reiteração contínua da unidade e da idealização que a cerca e sustenta não estaria em contradição, desse modo, com as denúncias constantes sobre o mal proceder e desajuste de suas partes” (VIANNA, Op. Cit.: 18). E junto com essas denúncias surgem as possibilidades de alianças situacionais com outras “partes”, algo que não invalida, senão reforça a visão do Estado como unidade e idealização (de quem se espera uma responsabilidade coerente).

Voltando à audiência na Corte, podemos perceber que se o Estado era ali identifi-cado como aquele “sentado no banco dos réus”, por outro lado, haviam agentes vinculados ao aparato administrativo “sentados” nas mais distintas posições processuais. Além dos envolvidos na performance de réu – cuja representação foi assumida pelo Ministério das Relações Exteriores (na pessoa do embaixador brasileiro na Costa Rica), pelo advogado do Ministério da Defesa e pela Advocacia-Geral da União –, outros atores institucionais também se fizeram presentes como “pe-ritos” e “testemunhas” apresentados ao longo de todo o processo. Entre os que foram ouvidos na audiência, um ex-Ministro dos Direitos Humanos e um Ministro do Superior Tribunal de Justiça foram propostos pelo Estado, respectivamente, como testemunha e perito, enquanto um inte-grante da CEMDP e um Procurador da República foram testemunhas a favor dos familiares.

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Ao longo dos depoimentos desses atores, menções ao Estado como representação e como aparato se alternavam constantemente e de forma complementar. Nesse sentido, se a Lei Nº 9.140 e a CEMDP foram caracterizadas pelo Ministro como medidas relevantes através das quais o Estado assumiu sua responsabilidade pelas “mortes e desaparecimentos políticos”, conferindo reparações materiais e imateriais a seus familiares, o depoimento do membro da CEMDP, sem discordar dessa avaliação, discorreu sobre todas as dificuldades encontradas por esta Comissão para dar concretude às reparações prescritas pela lei. Dificuldades variadas entre as quais destacou a de acessar informações. Solicitadas por diversas vezes às FFAA, à PF e à Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a existência de documentos não abertos nos arquivos públicos foi sempre negada. Uma posição sustentada não apenas nos ofícios e documentos oficiais de comunicação entre essas instituições, mas também em processos judiciais nos quais a União foi citada e, finalmente, em posicionamentos públicos de sucessivos Ministros da Defesa. Segundo eles, toda documentação das FFAA referente a repressão foi incinerada. Mesmo destino que teria sido conferido às atas que documentam tais incinerações. Nesse contexto de desentendimento entre as instituições, os familiares foram definidos pelo depoente como os principais produtores e mantenedores das informações que possibilitaram a execução do trabalho da CEMDP.

Ao longo dos anos, eles as teriam pesquisado em arquivos públicos, reunindo e associando -a pesquisa a outros documentos advindos de arquivos privados e fontes testemu-nhais. Em sua visão, o bloqueio de acesso aos documentos produzidos pelas FFAA na repressão (que no caso da Guerrilha do Araguaia é praticamente total) seria também o maior responsável pelas dificuldades encontradas por outro órgão do qual a CEMDP faz parte, o GTA. Na fala do depoente, a ineficiência do grupo de trabalho, constantemente denunciada pelos familiares (gastos excessivos para poucos resultados práticos), dava lugar a relatos que atestavam não a falta de competência dos peritos, especialistas e das várias instituições reunidas no grupo sob a coor-denação de três ministérios, mas a diferença de visões entre essas instituições sobre como gerir a questão. Diferenças que apontavam para disputas políticas e disposições contrárias em relação ao encargo partilhado.175

175 Isso não significa que não existam acusações de incompetência e má-fé contra atores e instituições envolvidos nesses processos. Sobre o GTA, entre 2009 e 2014, foram realizadas 23 expedições de busca na região ao longo das quais foram resgatados 27 restos mortais, nenhum deles identificado. As equipes contam com peritos em arqueologia, geologia e antropologia forense, além de apoio técnico do Exército, da PF e do IML. É coordenado pelos ministérios dos Direitos Humanos, Defesa e Justiça, contan-do também com seus funcionários, além de pesquisadores independentes, representantes dos familiares (mesmo depois da retirada oficial do movimento de familiares, alguns familiares continuam a acompa-nhar os trabalhos de maneira considerada não representativa pelo movimento) e da CEMDP. Expedições realizadas por outros órgãos e pelos familiares foram realizadas antes da existência do GTA. Nos anos 1990, elas localizaram as duas únicas ossadas até hoje identificadas. Encontrada em 1991 pelos familiares, a CJP e uma equipe de legistas da Unicamp, Maria Lúcia Petit estava enterrada em um cemitério local, envolta em um paraquedas militar, o que facilitou seu resgate como corpo de um possível guerrilheiro. Ela foi identificada na Unicamp (no mesmo período em que foram identificados alguns corpos da vala de

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O depoimento em questão, como os demais realizados na audiência, foi conduzido na forma de um interrogatório em que tanto as partes, quanto os juízes podiam elaborar per-guntas. Em certo momento desse interrogatório, ao ser questionado pela AGU (representando o Estado) sobre a importância da CEMDP, o depoente mais uma vez a ressaltou, acrescentando, entretanto, sua insuficiência, já que “nós, o Estado brasileiro, ainda ficamos devendo aos familiares in-formações”. Em seguida, ele deu prosseguimento à polêmica, argumentando que se faltam infor-mações sobre os locais de sepultamento dos corpos, então não seria correto pressupor (ou aceitar a simples declaração de) que os documentos foram queimados, mas trabalhar com a hipótese de que eles existem em arquivos privados ou públicos e envidar todos os esforços para encontrá--los. Reforçando a visão de que havia disposições distintas em relação à questão no interior do Estado, queixou-se de um desprestígio ao qual a CEMDP teria sido submetida no interior do GTA durante um primeiro momento de seu funcionamento, quando as atividades estavam mui-to concentradas nas mãos do Exército. Nessa questão, os membros da CEMDP se viam apoiados pelos familiares que sempre se disseram preocupados com a concentração das buscas nas mãos da instituição que no passado produzira os desaparecimentos e no presente não abria seus arquivos.

Diante daquela inusitada e, em alguma medida, teatral recomposição dos debates travados cotidianamente no interior do aparato estatal, uma das juízas questionou o depoente sobre “a verdadeira razão” pela qual essa documentação se mostrava tão inacessível e se ele acre-ditava na possibilidade de algum dia os documentos serem encontrados. Toda a fala da juíza parecia perpassada por incredulidade e certa indignação moral. O que justificaria tanta incapa-cidade de levar adiante responsabilidades tão evidentes, senão a existência de um verdadeiro e oculto poder, uma verdadeira vontade do Estado de inviabilizar as buscas? A juíza complemen-tou seu questionamento permitindo-se afirmar que, em sua visão, “não existia autoridade civil sobre as FFAA do país”. A estas assertivas, o depoente devolveu um entendimento mais matizado sobre o funcionamento da política e do aparato de Estado, argumentando:

O estado brasileiro não é algo monolítico: ele quer ou ele não quer! Há setores que querem o aparecimento das informações e outros que resistem ao apareci-mento das informações, há debates públicos entre ministros do estado, vem um e diz que a informação tem que aparecer e outro que diz que elas foram incinera-das. Não é uma matéria muito fácil. Eu entendo que existem esses documentos.

Perus levados para os legistas da universidade) pela arcada dentária e pelo surgimento anônimo de uma fotografia de seu corpo morto, que permitiu a identificação de objetos e roupas encontrados com ela. Uma segunda ossada foi localizada junto com Maria Lúcia, mas nunca identificada. A segunda ossada identi-ficada é a de Bergson Gurjão, localizada na região em 1996, por uma expedição dos familiares com a Co-missão Externa sobre Mortos e Desaparecidos (criada em 1991, na Câmara dos Deputados). Ela foi identificada pela CEMDP apenas em 2009, através de exames de DNA encomendados de laboratórios particulares no Brasil. Na região, há denúncias de que, entre os anos 1990 e o início dos trabalhos do GTA, foi reali-zada uma “operação limpeza”, quando as ossadas foram retiradas dos locais inicialmente enterrados para serem novamente desaparecidas. O caso foi denunciado à Corte como uma ação do Exército.

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Se os documentos existem – e nisso acreditam todos os envolvidos no campo MVJ, estejam eles dentro ou fora do Estado – garantir o acesso seria uma questão de enfrentar as re-sistências existentes no interior das próprias instituições, seja as que têm sua guarda, seja as que têm o poder de buscá-los onde quer que estejam. Para o depoente, era preciso desfazer aquela visão do Estado monolítico para compreender a existência de disputas e sua própria necessidade de nelas se posicionar. Apenas através dessa visão (uma formulação alternativa que nos aproxima da ideia de “outro Estado”) é que o membro da CEMDP, visto como aliado pelos familiares, podia se encaixar nessa engrenagem. Dentro do Estado haviam debates em que “lados” surgiam e era preciso escolher um. Mas essa imagem se desfaz e se refaz a todo momento. Nas palavras de uma representante da Comissão Interamericana durante a audiência, a disposição do Estado deve ser tal que se os documentos “estiverem nos bolsos dos militares, vamos buscar em seus bolsos”. Se os familiares não depositam confiança em que o Estado o fará, creem na sua tarefa de pressionar, como disse Beth, podendo contar situacionalmente com algumas instituições estatais e certos agentes que atuam em seu interior. Contar com estes e desconfiar de outros significa movimen-tar as linhas que separam aliados e opositores.

Atuando na questão dos “mortos e desaparecidos” desde 2001, quando presidiu um inquérito civil público sobre o Araguaia, aberto a pedido da Comissão de Familiares, o Procurador que testemunhou a favor dos familiares é outro agente que “escolheu um lado”. Através de seu de-poimento, acompanhamos também polêmicas e tensões que atravessam as instituições do Estado, ao passo em que iluminam situações de colaboração, agora entre o MPF e os familiares.176

Em seu depoimento, o Procurador abordou dois temas principais, as razões pelas quais não se consegue realizar a persecução penal dos responsáveis pelos crimes no Araguaia e

176 O membro da CEMDP é advogado ex-defensor de presos políticos. Razão pela qual também foi perseguido pela Ditadura. Ele integra a comissão desde 2002, quando foi escolhido como “representan-te da sociedade civil”. Segundo a Lei N 9.140, a CEMDP é formada por sete membros indicados pela Presidência. Quatro deles devem ser escolhidos entre os membros: da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, do MPF, do MD e dos familiares. Os três restantes são de escolha livres e, embora a lei assim não diga, costumam ser caracterizados como “representantes da sociedade ci-vil”. Interessante notar que, nessas condições, o advogado não possuí outra conexão com o Estado além do pertencimento à CEMDP. Representa a sociedade sem remuneração. Ainda assim, ele se posiciona como um membro do Estado na audiência, como revela sua já mencionada fala. Já o Procurador presidiu o inquérito civil público, aberto em 2001, com objetivo de buscar corpos de desaparecidos no Araguaia e promover a verdade acerca dos fatos lá ocorridos. Em 2011, ele fez parte da criação dos GTs “Direito à memória e à verdade” e “Justiça de Transição” no interior do MPF, que reúnem procuradores dedicados a estudar e articular no âmbito da instituição mecanismos que possibilitem a implementação da sentença da CIDH (MPF, 2013). Ambos os atores são muito respeitados como aliados pelos familiares. Uma no-ção que carrega significados políticos, mas também aponta para a construção de laços pessoais, calcados em sentimentos como o respeito, a compaixão e o afeto. Eles receberam do GTNM/RJ a Medalha Chico Mendes. Atualmente, a presidência da CEMDP é exercida pela representante do MPF na comissão. Ela também integra o mencionado grupo de procuradores e foi homenageada com a Medalha Chico Mendes.

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o inquérito civil conduzido pelo MPF em 2001. Em relação ao primeiro tema, além de discor-rer sobre um conjunto de impedimentos de ordem jurídica (principalmente, mas não apenas a Lei de Anistia, a prescrição dos crimes e a inexistência do crime de desaparecimento forçado no ordenamento interno), o depoente apontou que a ausência de informações oficiais sobre as operações militares no Araguaia torna difícil a identificação dos envolvidos e de suas posições funcionais no Exército e, portanto, definir as autorias dos crimes. Empenhados em levar adiante a responsabilização, o MPF abriu um inquérito civil público, em 2001, dando lugar a inves-tigações que constataram in loco a continuidade da presença do Exército em toda a região da guerrilha. Conforme denúncias que já vinham sendo feitas pelos familiares desde a primeira vez em que estiveram na região, na Caravana dos anos 1980, o MPF apurou que atividades se-guiam sendo realizadas à sombra da oficialidade, já que não admitidas pelas corporações locais. Entre cestas básicas, armas de fogo e munição, uma série de dádivas vinham sendo distribuídas pelo Exército sobretudo aos antigos “mateiros”. Civis selecionados em meio à população local para auxiliar a movimentação das tropas na mata durante os combates. Esses benefícios foram considerados pelo MPF uma forma de manter o silêncio da população pelo comprometimento e pela ameaça, representada pela presença de civis armados e consagrados como autoridades pelo Exército, mesmo que não oficialmente. É importante ressaltar que grande parte das informações conhecidas sobre os desaparecidos na região vem de depoimentos de moradores.

Nesse quadro local, uma série de dificuldades foram interpostas aos objetivos do MPF durante o inquérito. Documentos não foram localizados e moradores convocados a tes-temunhar alegaram temer represálias. A situação levou o MPF a abrir uma ação civil pública com o objetivo de obter judicialmente a documentação procurada e obstar a ação do Exército na região. A ação pedia acesso a todo e qualquer documento concernente às ações na região, que poderiam ser examinadas à luz dos testemunhos colhidos pelo MPF, pelos familiares e outras instituições ao longo dos anos. Na primeira instância, a ação obteve uma liminar, determinando que a documentação fosse apresentada pelo Exército em uma audiência sigilosa perante o magis-trado. Porém, essa decisão trouxe mais uma instituição para a cena. A AGU entrou com recurso para a suspensão da audiência, fazendo o mesmo por mais duas vezes diante da sentença final favorável ao MPF, o que levou a contenda até o STF. Mas, a disputa não se encerraria por aí.

Em paralelo, o contato entre os agentes do MPF e do Exército, durante as inves-tigações do inquérito, deram origem a outras contentas judiciais e administrativas. Diante da negativa dos agentes flagrados distribuído benefícios na região em relação a seu pertencimento ao Exército (e, portanto, de que aquela seria uma atividade “do Estado”), o MPF empreendeu investigações que localizaram o imóvel que servia como base para as atividades. Sem conseguir confirmações sobre a propriedade do local, pediram uma audiência ao General chefe do servi-ço de inteligência do país que, apesar de se comprometer, nunca lhes deu explicações. Diante disso, requisitaram uma busca e apreensão no imóvel. Com uma ordem judicial, conseguiram

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entrar no local, onde confirmaram seu pertencimento ao Exército, apreendendo documentos e materiais. No entanto, foram surpreendidos novamente por outro recurso da AGU que os obrigou a devolver tudo. Além disso, foram abertos um procedimento penal militar contra os Procuradores envolvidos, além de uma representação disciplinar no âmbito interno do MPF, a pedido do Advogado-Geral da União e do Comandante do Exército.

A polêmica descrita pelo Procurador – longa mesmo que apenas parcialmente con-tada – me compele a dar razão ao integrante da CEMDP, quando se refere ao Estado como algo muito mais complexo de ser pensado.

Em primeiro lugar, a polêmica revela um cenário de interações conflituosas envol-vendo uma quantidade razoável de instituições. Algo que já relevara o depoimento anterior.177 O envolvimento da CEMDP, do GTA, do MPF, da AGU, do Exército, do MD, da SDH, da PF, da ABIN, do STF, da Justiça Federal e da Justiça Militar em suas diversas ramificações, algumas delas observando distintos posicionamentos entre seus agentes internos, nos mostra também o quanto o Estado se faz presente em uma questão que é muitas vezes referida como “esquecida” pela sociedade e “ignorada” pelo poder público. Ainda que algumas dessas instituições estejam sendo acusadas de tentar silenciar os familiares através de sua atuação, o fato é que há um am-plo conjunto de atores estatais voltados para o problema dos “mortos e desaparecidos políticos”. Questão em relação a qual mobilizam distintas formas de compreensão e gestão.178 Buscar a loca-

177 O caso Araguaia não é o único exemplo de disputas institucionais em torno a gestão do problema dos mortos e desaparecidos, em especial na questão da localização e identificação de ossadas. Outro caso contencioso muito importante é o das ossadas retiradas da Vala de Perus. Em um primeiro momento de mobilização provocada pela CPI sobre a Vala foi possível identificar algumas ossadas a partir de um convênio firmado com a Unicamp. Pouco depois, o trabalho de identificação foi abandonado pelo perito responsável. Em péssima situação de conservação, as ossadas chegaram a sofrer infiltrações durante uma enchente. Em 2001, foram transferidas para o Cemitério Araça, onde ficaram sob responsabilidade de um professor da USP e perito do IML. No entanto, as identificações não foram retomadas e as ossadas continuaram em más condições de armazenamento. O MPF acabou por voltar-se contra a SDH, entran-do com um processo por improbidade administrativa, o que denota, inclusive, o caráter situacional das alianças entre aqueles que se afirmam “do lado dos familiares”. Em 2014, os trabalhos foram retomados. Para visibilizar os atravessamentos de domínios, é importante ressaltar que essa retomada teve início com a iniciativa da Associação Brasileira dos Anistiados Políticos (ABAP) de oferecer uma verba à Comissão de familiares. Estes mobilizaram seu importante aliado, o MPF, para requisitar as ossadas e trouxeram a EAAF ao Brasil para fazer um primeiro trabalho de diagnóstico da situação, limpeza e recomposição das ossadas. Só a partir daí é que outras instituições foram se articulando em torno a esta iniciativa. A SDH, a CEMDP, a Secretaria de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo e a UNIFESP, com apoio da CNV e da CVRP, se reuniram para proceder as identificações. A intenção é, no decurso dos esforços de identificação, operar também a formação de uma equipe brasileira de antropologia forense. Inicialmente, contava-se com o apoio da EAAF que, nos anos 1990, por razões pouco claras, havia sido impedida de participar da identificação realizado na Unicamp. Porém, o grupo veio a deixar os trabalhos por discordar das metodologias. Ao que parece, as disputas institucionais seguem seu caminho. Para mais detalhes, ver: Ribeiro (2015), Almeida (2009), Instituto Macuco (2012) e Teles (2012).

178 Essa pluralidade de instituições está evidente também na sentença da Corte. As distintas medi-

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lização de corpos diretamente no campo ou primeiro nos documentos? Envidar todos os esforços para encontrar documentos ou aceitar que foram destruídos? Enviar as ossadas localizadas para serem identificadas fora do país ou mantê-las não identificadas até que (e para que) o país adquira tecnologia de identificação? Mobilizar reflexões e recursos jurídicos para processar os responsá-veis pelos crimes ou considerar que estão anistiados e/ou seus crimes prescritos? Seguir a juris-prudência dos tribunais brasileiros ou recorrer aos debates e acordos internacionais em Direitos Humanos para fundamentar decisões? Cumprir as sentenças judiciais favoráveis aos familiares por respeito aos Direitos Humanos ou impetrar recursos até a última instância como é de praxe em processos contra o Estado? Em relação a estas e outras questões os atores que integram o aparato estatal acionam posicionamentos distintos a partir não apenas de suas consciências e es-colhas pessoais, mas também de elementos tão diferentes quanto as competências de seus cargos; seus compromissos pragmáticos, conhecimentos especializados e alinhamentos teóricos; as hie-rarquias, as subordinações e os constrangimentos relativos a cada fazer profissional ou situação política; as alianças e visões políticas que movimentam, entre outros. Desde esse ponto de vista, interações pessoais, políticas e profissionais formam um jogo de posições e interesses bastante intrincado que extravasam o aparato estatal, demarcando mais do que “dois lados”.

Um segundo aspecto problematizado pela polêmica é a noção de Estado como racio-nalidade. Noção compartilhada entre os que cobram uma (única e coerente) política estatal para enfrentar a violência ditatorial e os que tentam assegurar que essa política já existe. Contudo, essa noção se enfraquece diante da narrativa do Procurador e de outras situações curiosas de-corridas na audiência. Como o momento em que o representante do Ministério da Defesa, depois de um longo esforço por deslegitimar as ações de responsabilização criminal levadas adiante por alguns procuradores do MPF, passou a reivindicá-las como “ações do Estado”. “Você diria que o MPF é um órgão do Estado?” Perguntou ao Procurador em dado momento do interrogatório,

das atribuídas à responsabilidade estatal evocam as competências de uma considerável variedade delas. Entre elas, estão: remover os obstáculos jurídicos à investigação e à sanção das violações e realizar julgamentos na justiça interna (competência do legislativo, do STF, dos juízes e do MPF); localizar o paradeiro das vítimas e devolver seus restos mortais (GTA, PF e MPF); busca, sistematização e divul-gação de informações e criação de políticas de memória e verdade, (comissões da verdade, CEMDP, CA, AN, executivo e legislativo em esferas estaduais e municipais); tipificar o desaparecimento forçado (legislativo federal); pagar indenizações (executivos); tratamento psicológico para os familiares. Esse último não existe na saúde pública como um atendimento específico para vítimas de violência política. Por isso, recentemente, foram criadas as Clínicas do Testemunho. Elas recebem recursos por meio do edi-tal Marcas da Memória da CA, que oferece financiamento para (os mais variados) projetos da “sociedade civil”. A maioria dos projetos clínicos contemplados está ligado a grupos de psicólogos militantes em organizações de Direitos Humanos. Alguns deles, foram pioneiros no atendimento coletivo a vítimas de violência política no Brasil. A equipe que venceu o edital no Rio de Janeiro, por exemplo, é formada por psicólogos que fizeram parte da introdução desse projeto no GTNM/RJ, nos anos 1980. Embora o projeto siga existindo no Grupo, ele não concorreu ao edital. Os psicólogos que compõem a Clínica do testemunho carioca deixaram o GTNM há alguns anos e hoje fazem parte do Coletivo RJ MVJ.

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argumentando para a Corte que o Estado também fazia esforços pela efetivação da Justiça.179 Dessa maneira, para admitir que há uma política para a questão dos “mortos e desaparecidos” no Brasil, precisamos levar em conta o que nos revelam as polêmicas institucionais.

A pluralidade de iniciativas e sua coexistência estão fundadas não apenas nas nor-mativas (existentes ou não), mas também nas maneiras como os agentes públicos as concretizam no cotidiano. Este cotidiano – para onde quiseram nos levar os relatos apresentados na audiência – permite vislumbrar o Estado se fazendo presente na vida dos sujeitos sociais à mesma medida que constrói a si. Não como aparato burocrático gerido pela aplicação fidedigna de normas legais claras e providas de único sentido, mas como conjunto de práticas e linguagens que extravasam esse aparato, são disputadas por diversos atores sociais, estão muitas vezes imersas em incom-preensão e opacidade, ou suspensas entre o legal e o ilegal. Em acepção semelhante à sugerida por Veena Das (2007). No Araguaia, um ex-guia se sente confuso ao tentar explicar às autori-dades do MPF sua situação de autoridade local e o fato de estar armado sem possuir um porte de arma. Ele pede aos procuradores que questionem diretamente as autoridades do Exército que o alçaram a uma condição que não pode compreender em termos legais. Por terem encontrado documentos relevantes para o esclarecimento de crimes do passado, um grupo de Procuradores torna-se réu de um processo criminal na Justiça Militar. Algo que não deveria acontecer porque os procuradores têm prerrogativas de foro civil. O processo administrativo ocorrido na sequên-cia, em tese, também desafia a “independência funcional” de seus cargos.

As leis e os aparatos institucionais mobilizados para punir os que buscam transpa-rência, ao passo em que a obscuridade, a ilegalidade e o sigilo vão sendo reivindicados como garantia da ordem pública. Essas e outras cenas aludem à ilegibilidade do Estado de que nos fala Das (2007). Entre a incompreensão dos atores, a obscuridade das leis e os trânsitos entre o legal e o ilegal no fazer institucional, as fronteiras entre a construção da chamada Justiça de Transição e a produção de novas violações vão perdendo a nitidez. Como argumenta a autora, a oscilação

179 No julgamento da ADPF 153, o MPF não tinha uma posição única a respeito da anistia no Brasil. Enquanto os procuradores favoráveis à responsabilização criminal dos torturadores se uniram aos pro-positores de Ação, o Procurador-Geral da República deu um parecer que corroborava com as teses do juiz relator sobre a validade da anistia. Esse fato foi usado pelo arguidor do MD para deslegitimar as ações do Procurador. Três anos depois, durante uma audiência da CVRP sobre a sentença da CIDH no caso Araguaia, o Procurador explicou que, após a sentença da CIDH, o MPF discutiu e chegou a uma “posição única”. O órgão defende que há obrigatoriedade de respeitar os tratados internacionais assina-dos pelo país na formulação de decisões nacionais, inclusive para o STF, já que a Constituição possui dispositivos que regulamentam essa vinculação como princípio. Juridicamente, seria preciso demonstrar a inconstitucionalidade do tratado para rejeitar sua aplicação. A partir desse entendimento, o MPF está cumprindo o que lhe compete a sentença da CIDH. “O MPF não discute mais essa questão, monta as investigações”. Em seguida, o Procurador queixou-se do fato que a CIDH reconhece as movimentações do MPF como “movimentações do Estado” que vê como positivas. Algo que considera paradoxo, pois o MPF agiria “contra o executivo e o judiciário e contra a falta de vontade política do Estado brasileiro”. Caderno de campo 3, 10/06/2013.

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entre modos racionais e obscuros (mágicos, em seus termos) de atuação estatal no cotidiano não acusa, como pode parecer a princípio, uma vulnerabilidade do Estado. Ao contrário, acusa os modos através dos quais o seu poder é produzido e exercido. Os familiares frequentemente per-cebem e denunciam essas ambiguidades e práticas incoerentes como um mecanismo de poder. Mas se elas os atingem, é também por meio delas que eles encontram recursos para ver o Estado, simultaneamente, como ameaça e garantia (POOLE, 2004).

Para se defender das acusações, o Estado contra-acusou os familiares de postular algo que já está sendo providenciado. Para tanto, reivindicou ações de instituições como a CNV, a CEMDP e a CA, trazendo-as para dentro de seus limites, em uma demonstração de sua dis-posição favorável à MVJ. Com isso, provoca impressões ambíguas no movimento de familiares. De um lado, reforça a noção de que, embora participem dos projetos construídos no campo MVJ, essas instituições são partícipes de ações que vão de encontro aos seus desejos. Elas tomariam parte, portanto, em um empreendimento do Estado para preservar o mito de sua racionalidade (DAS, 2007). Porém, se os familiares identificam nessa ambiguidade o Estado (in)coerente em relação ao qual nutrem desconfianças, isso não significa que o vejam exclusivamente como uma totalidade a qual devem se opor. A um só tempo, também são capazes de percebê-lo como esse aparato cheio de fissuras que, se na maioria das vezes são acionadas contra seus interesses, even-tualmente podem agir a seu favor. Dentro do aparato há muitos lados e saber mover-se por entre as fissuras, construindo relações (que podem se escorar em múltiplos domínios, o político ou o pessoal, por exemplo) se torna uma estratégia tão importante quanto enfatizar o antagonismo ao Estado. Uma competência exercida em benefício da difícil tarefa de fazer-se ouvir.

O Estado, este outro

Pensar como os familiares equilibram essas duas estratégias políticas, guardar o antagonismo e lidar com os setores institucionais nos traz de volta ao dilema de Victória em relação à CNV, com o qual iniciamos o capítulo. Agora com mais elementos para explorá-lo. Apresentada na audiência da Corte como uma das medidas que, por já estarem sendo tomadas pelo Estado, esvaziariam o “interesse processual” dos familiares, a CNV nascia sob alguns olhares de desconfiança. Em que pesem os esforços empreendidos pelo movimento de familiares para garantir a inclusão de uma comissão da verdade no PNDH-3, durante a Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2008. É que entre um evento e outro a sentença condenatória da CIDH surgiu recomendando medidas mais afins aos desejos dos familiares, não uma comissão de verdade, mas um amplo processo de investigação e processamento judicial dos responsáveis pelos crimes. Medidas que, no seu entender, uniam a descoberta da verdade (a que se limitariam as comissões) à possibilidade de se fazer Justiça. Sendo assim, em um contexto em que o cumprimento da sentença se faz pendente, a comissão da verdade surge aos olhos de uma parcela do movimento de familiares como uma

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medida “para a OEA ver”, como eu ouviria diversas vezes. Ou seja, não necessariamente como uma forma de dar cumprimento à sentença, mas de se esquivar de seus pontos mais espinhosos, sem deixar de demonstrar mobilização perante compromissos internacionais. Aos olhos do GTNM/RJ isso fazia da CNV, antes mesmo de sua implantação, uma “comissão do possível” (quando “nós queremos o impossível”, diriam alguns). É o que argumenta o excerto abaixo, extraído de um texto escrito por Cecília Coimbra e publicado em abril de 2012 no jornal do Grupo. Portanto, um mês antes da cerimonia de posse da CNV.

Atravessada por todas essas tensões e acordos políticos firmados [desde a Lei de Anistia e seguindo seus pressupostos], a Comissão Nacional da Verdade foi votada como “aquilo que é o possível hoje”, como o que nos permitem e consentem fazer. Há que lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Inte-ramericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do de-saparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão contra a Guer-rilha do Araguaia. Estendeu essa sentença aos cerca de 500 mortos e desapa-recidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano. Até hoje nada foi feito. E é no bojo de tais questões que foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão consentida. (...) Os crimes cometidos pela ditadura civil-militar que controlou o Brasil por mais de 20 anos permaneceram, em parte, desconhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os tes-temunhos daqueles que cometeram tais crimes. Queremos sim uma Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça onde todos os arquivos da ditadura sejam abertos e publicados; onde o período de terrorismo de Estado (1964-1985) seja efetivamente investigado, esclarecido e publicado. Queremos, sim, que nossa história recente possa ser conhecida por todos, e que os agentes do Estado terrorista possam ser execrados socialmente e responsabilizados por seus bárbaros atos (COIMBRA, 2012).

Antes de dar seguimento à análise, gostaria de ressaltar que, no decorrer do pe-ríodo de funcionamento das comissões da verdade, assim como no atual contexto, posterior à divulgação dos relatórios finais, foram muitas e variadas as críticas direcionadas a este projeto, construídas por atores sociais estabelecidos no Estado, na academia, nos movimentos sociais e, até mesmo, nas próprias comissões. No interior delas e entre elas, ocorreram disputas de varia-das ordens acerca dos rumos tomados. Muitas delas divulgadas pela mídia no decorrer de todo o processo. Da mesma maneira, foram múltiplas as opiniões elogiosas que identificaram avanços e ganhos relevantes a partir desses empreendimentos para a luta por Memória, Verdade e Justiça. Tendo em vista essa diversidade e, principalmente, a quantidade de opiniões circulantes sobre o processo, não tenho a intenção de ensaiar aqui uma descrição pormenorizada das disputas e posições que marcaram a existência das comissões da verdade. Um exercício que, por exceder os objetivos e interesses dessa tese, sairia necessariamente aquém de suas possibilidades e mesmo de

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sua importância. Deixo-o, portanto, como sugestão para outras pesquisas. Entendendo que me cabe olhar para as posições publicizadas pelo movimento de familiares. Não pretendo, contudo, fazer delas um inventário. Igualmente nesse caso, há uma multiplicidade de entendimentos in-dividuais e coletivos constituídos entre familiares ao longo de um processo em que ocorreram muitas inflexões políticas e no qual as organizações (e os familiares individualmente) atuaram de forma a preservar sua independência, conforme as características do movimento discutidas no capítulo 2. Evito, portanto, um exercício que seria mais cansativo do que relevante para a análise, trazendo à tona apenas algumas polêmicas. Aquelas que me permitam pensar de forma global as maneiras pelas quais o movimento de familiares busca construir uma atuação política.

Feita essa ressalva, voltemos ao texto de Cecília. Refletindo a posição dos militan-tes do GTNM/RJ, seus argumentos alertam para desconfianças difundidas no movimento de familiares. Elas estão presentes também entre outros atores do campo MVJ, embora não majo-ritariamente. Em função de suas desconfianças e críticas, presenciei muitas vezes o Grupo (em especial) e os familiares (de uma forma mais difusa) serem referidos como atores excessivamente refratários ao Estado e às possibilidades de ganhos simbólicos que poderiam advir da realização das comissões da verdade. Mesmo desconfiando que os arquivos (especificamente os das FFAA) não seriam abertos e que os repressores não seriam constrangidos a comparecer às comissões em quantidade, grande parte dos atores sociais envolvidos no processo viam como positiva a possi-bilidade de aproveitar essa oportunidade para “criar memória”. Mas não somente isso. Em sua visão, a concessão de espaços públicos para que as vítimas revelassem a “sua verdade” à sociedade permitiria que essas narrativas fossem consagradas pelas instituições como “verdades oficiais”. Algo que seria visto como uma importante forma de reparação simbólica e de ganho político.

Em contraposição, os militantes do Grupo entendiam que as vítimas “já disseram tudo o que sabiam”. Informações que, ademais, seriam muito limitadas frente a tudo o que foi feito pela Ditadura e ainda era preciso conhecer. Era chegada a hora, portanto, de o Estado dizer, abrindo todos os arquivos. Mas é preciso notar que essa postura, considerada intransigente pelos que não a compartilhavam, não impediu os militantes do Grupo de comparecerem aos espaços MVJ criados pela institucionalidade (embora não a todos, a bem da verdade), nem de dialogar com atores estatais, como mostram os exemplos iniciais do capítulo. No caso da Comissão de Familiares, críticas bastante semelhantes não os impediram nem mesmo de participar dessas iniciativas, integrando comissões da verdade, como bem exemplifica sua atuação como assessores na CVRP.180 Em ambos os casos, é possível dizer que os militantes participavam desses espaços

180 A CVRP não é o único caso em que familiares integraram diretamente ou colaboraram com os trabalhos de comissões da verdade (estaduais, municipais e até mesmo de universidades). Já em relação à CNV, o contato foi sempre ambíguo, como continuarei descrevendo. Durante alguns meses, Criméia Almeida e Suzana Lisboa realizaram pesquisas como colaboradoras nos arquivos em que trabalhava a CNV, com a intenção de apoiar as investigações sobre os mortos e desaparecidos. Esse trabalho não teve seguimento por razões que não me foram bem esclarecidas.

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seja porque também reconheciam neles a possibilidade de ganhos simbólicos, seja porque os viam como oportunidade de expressar insatisfação com (apenas) estes ganhos e exigir medidas mais apropriadas. Nessa lógica, se a CNV era criticada de um lado, não deixava de ser reivindicada de outro. Mais precisamente, ela não deixava de ser referida como fruto da atuação do movimento de familiares. Nesse sentido, muitos familiares defendem que “se a CNV existe hoje é por causa da nossa luta”. Referência semelhante, aliás, a que já faziam a outros empreendimentos, como a CEMDP.

Essa interação conflituosa nos coloca diante da capacidade do Estado de atrair para seu campo até mesmo os atores sociais que guardam com ele uma relação combativa, que pos-suem evidências de sua criminalidade ou de sua ação às margens da legalidade, como apontaria Das (2007). Ao chamar nossa atenção para essa “ força gravitacional” do Estado, a autora discu-te como os dramas humanos são forçosamente atravessados pelos procedimentos burocráticos. Entrecruzando os universos da vida e dos papéis, uma constante demanda por documentos com-probatórios das situações vividas tornam-se condição para o reconhecimento de carências, prer-rogativas e direitos dos atores nas sociedades nacionais. Mas, esse tema não encerra a questão. A opção dos atores por organizarem-se em movimento social marca seus laços com a burocracia e as instituições, lançando outras questões sobre essa relação. O que me impele a considerar processos que não se limitam aos vividos especificamente por estes sujeitos políticos. Com a intenção de entendê-los de maneira contextualizada, primeiro abrirei o foco da análise para em seguida fechá-lo sobre outra situação vivida durante a pesquisa empírica.

Conforme vem sendo discutido pelas ciências sociais, cujo interesse pelo tema cres-ceu junto com os movimentos sociais a partir dos finais dos anos 1970, o processo de Abertura instaurou novas formas de constituir em campo democrático os conflitos políticos e sociais que vinham sendo desenhados no país. As transformações envoltas no ressurgimento dos movimen-tos sociais e a diversificação dos sujeitos políticos por eles representados marcaram a enunciação de uma “cultura democrática” (FELTRAN, 2003) na qual, entre outras questões, as carências e as insatisfações tornaram-se demandas direcionadas a um Estado (CALDEIRA, 2000) cuja legitimidade seria a partir de então auferida por sua capacidade de assegurar direitos à população (DURHAM, 2004). A partir do marco institucional da Constituição de 1988, estas transfor-mações seriam acompanhadas da crescente criação de espaços destinados ao engajamento desses novos atores nas decisões institucionais. Processo que logo seria entendido como um alargamen-to do Estado por meio da “participação da sociedade civil” (DAGNINO, 2004). A perspectiva de trânsito entre domínios até então entendidos como delimitados por uma relação hierárquica e violenta não poderia deixar de ser vista positivamente. Um ganho que, em grande medida, passou a ser relacionado à emergência dos movimentos sociais e dos novos grupos/organizações/partidos políticos e suas novas formas de atuação na esfera pública. Nas palavras de Dagnino:

o confronto e o antagonismo que tinham marcado profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas anteriores cederam lugar a uma

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aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democráti-co. Essa aposta deve ser entendida num contexto onde o princípio de participa-ção da sociedade se tornou central como característica distintiva desse projeto, subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos onde o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade (DAGNINO, 2004: 96).

É dessa maneira que os anos 1990 verão a participação popular se consolidar como marca da nova democracia, ao mesmo tempo em que se afirma entre as práticas e métodos de atuação política dos movimentos sociais. Mas, essa não seria a única via de estímulo à abertura de espaços institucionais na sociedade civil. Diversos autores chamam atenção para como a emergência do projeto neoliberal naquele contexto reforçava positivamente essa participação, ainda que na intenção reversa a dos movimentos sociais: diminuir o papel do Estado na garantia de direitos civis e sociais, transferindo para a sociedade as responsabilidades que vinham sendo dele demandadas. Para dar conta de como essa ambiguidade impacta a relação entre Estado e movimentos sociais, Danigno fala de uma “confluência perversa” entre projetos que, embora apontem para objetivos antagônicos, demandam igualmente uma sociedade ativa. Sob essa con-fluência, surgiria uma aparência de igualdade de objetivos, estimulada também pelo estabeleci-mento de campos discursivos comuns a partir dos quais os debates seriam travados – expressos no compartilhamento de terminologias como cidadania, participação, democracia e sociedade civil – que levavam a disputa entre projetos políticos distintos a se deslocar para uma luta por significados. Essa confluência seria perversa, porque o deslizamento de sentidos daria contornos sutis à disputa e obscureceria em muitos aspectos sua existência, esfumaçando as fronteiras entre conquistar direitos e assumir responsabilidades que seriam do Estado. Daí que a prática política, aos olhos dos atores sociais, vá se constituir “num terreno minado, onde qualquer passo em falso nos leva ao campo adversário” (DAGNINO, 2004: 97).181

Perversa ou não, a perspectiva de que todos os conflitos poderiam ser institucionali-zados e resolvidos por dentro do Estado só fez se consolidar com o passar dos anos. Os primei-ros espaços de participação se diversificaram, multiplicando e entrecruzando diferentes arenas, onde novos atores seriam projetados. Em geral, desconectados da tradição dos movimentos so-ciais e não identificáveis como os sujeitos políticos alvos das políticas institucionais, esses novos atores viriam a complexificar o cenário de interações entre Estado e sociedade civil. São ONGs, entidades comunitárias, associações culturais, associações empresariais, entidades filantrópicas, organizações de assessorias aos movimentos sociais, entre outros grupos, cuja atuação, ademais, não está necessariamente contida ao território nacional. Conforme Souza Lima e Castro (2008) argumentam, variados espaços de interseção entre esses diferentes atores servirão à formulação

181 Não posso deixar de notar que observei diversas vezes em campo o uso do termo “perversidade”, usado por Dagnino (2004) para se referir precisamente à percepção de que os espaços de diálogo entre Estado e sociedade civil pressupõem o consenso, constrangem o dissenso e restringem as margens de manobra dos movimentos.

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de planos, ações e tecnologias de governo, que não podem ser vistas como redutíveis a espaços e organizações estritamente vinculados à administração do Estado. A produção de políticas públi-cas (ou governamentais, como os autores preferem) implica no reconhecimento e na nomeação de um conjunto de relações sociais como matéria de intervenção dos governos, bem como a construção de programas, estratégias e práticas de ação para tal intervenção. Mas, são elabora-das a partir da mobilização de redes sociais muito abrangentes, agentes, agências, princípios e práticas que trespassam as fronteiras do Estado nacional, formas sociais variadas e conteúdos simbólicos distintos (SOUZA LIMA e CASTRO, 2008).

Apoiando-me no que pude observar durante a pesquisa empírica, decorre da cha-mada “participação da sociedade civil” no gestar e gerir (SOUZA LIMA, 2002) das políticas dos governos uma ampliação das redes de relações estabelecidas entre os movimentos sociais, esses novos atores e os agentes institucionais; a consolidação de novos campos discursivos a partir dos quais as demandas dos movimentos passam a ser debatidas em termos de respostas racionais para os “problemas sociais” por elas indicados; a legitimação da intervenção profissional e, con-sequentemente, da profissionalização de ativistas, já que as prerrogativas do conhecimento e do domínio de técnicas de gestão forjam desigualdades e hierarquias entre atores;182 e, finalmente, um crescente trânsito de atores sociais entre as organizações da sociedade civil, os espaços de participação e a assunção de cargos no aparato estatal, não apenas passando de um a outro, mas também como presença simultânea.

Em meio a estas transformações, as percepções dos atores envolvidos no movimento de familiares parecem transitar entre duas visões (interessantemente) próximas às duas correntes mais gerais identificadas por Feltran (2003) entre as análises produzidas pelas ciências sociais acerca da relação entre Estado e sociedade na democracia.183 Elas estariam entre enfatizar como essa relação pode atuar ampliando o domínio do político ao retirá-lo do monopólio estatal e conferir novas oportunidades de construção e legitimação das lutas por parte dos movimentos sociais, ainda que desde uma posição mais desfavorável em face da pluralidade de atores; e ver na situação uma reconfiguração do espaço público como o domínio da técnica e da gestão, es-vaziando o político e desgastando o caráter transformador dos movimentos sociais que perdem em poder de pressão o que não ganham em poder de negociação pragmática. Exemplo dessa

182 Tal como discutem Souza Lima e Castro, do ponto de vista instrumental a partir do qual são mane-jadas pelo aparato estatal, políticas públicas consistem na identificação de um problema e na construção de respostas racionais. “Dentro dessa visão, para ser implementada uma política pública necessita não apenas de um saber específico (com seus modelos e aparatos metodológicos e teóricos próprios), mas também de profissionais específicos” (SOUZA LIMA CASTRO, 2008: 359).

183 Uma proximidade que não é exclusiva do movimento de familiares e que nos chama atenção para a participação da academia e dos atores acadêmicos nos distintos campos de debate gestados pelos mo-vimentos sociais e em torno da formulação de políticas públicas. Algo que também contextualiza as críticas feitas à academia para a qual chamei atenção no capítulo 1.

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dupla visão é a avaliação do movimento de familiares sobre as comissões da verdade: trata-se de um saldo positivo de suas lutas por direitos e por espaços políticos que pode contribuir para potencializá-la, mas também uma forma do Estado protelar, transferir ou se esquivar de parte das responsabilidades que lhe são imputadas, portanto, um ganho inferior ao vislumbrado como “justo”. Da mesma maneira que os atores sociais compõem seus pontos de vista entremeando es-sas duas visões, não creio que seja o caso de escolhermos uma delas para qualificar a situação de sua relação com o Estado, mas entender, de um lado, como lidam com essa dupla perspectiva em seu cotidiano de militância e, de outro, como essa ambiguidade deriva para um debate sobre as identidades dos atores sociais envolvidos, como observamos na polêmica sobre não ser o Estado.

Esta polêmica me sugere que a produção de identidades é um elemento importante desse processo de definição de limites entre Estado e sociedade. Por serem contextuais, as iden-tidades apontam para a mobilidade desses limites sobre a qual venho falando. Nesse sentido, é interessante notar que as avaliações dos movimentos sociais sobre as políticas institucionais muitas vezes vão compor um processo de autorreflexão para o qual eles têm se voltado ao longo de sua trajetória de “inserção institucional” (FELTRAN, 2003). Em meio a ela, alguns grupos se colocam constantes questionamentos sobre suas próprias formas de atuação, que são de dife-rentes maneiras expostos em suas avaliações acerca do processo político (DAGNINO, 2004).

É disso que se trata o dilema de Victória ao receber a CNV na sede. Um questio-namento acerca do papel político cumprido pelo movimento, informado por esse contexto de transformações no qual os militantes se percebem. Um dilema que pode ser resumido por uma das perguntas apontadas por Dagnino: “que projeto estamos fortalecendo [com nossa presença nesses espaços]?” (2004: 6). Em um contexto em que esses espaços aumentam, atuar por den-tro ou por fora das instituições torna-se um problema de presença constante. Preocupação de que a participação reforce a autoridade estatal, em vez de compartilhá-la com os movimentos, legitimando um discurso em detrimento do outro. As sucessivas vitórias eleitorais de partidos e atores políticos nascidos nos movimentos sociais complexificam a questão, na medida em que entremeiam ainda mais as redes sociais dos movimentos e dos atores institucionais, apro-fundando o receio de que a participação, que abrira as fronteiras entre o Estado e a sociedade, conduza também ao atravessamento das fronteiras entre os diferentes projetos de sociedade existentes. Receios de que os ativistas estejam cada vez mais aptos a lidar com o Estado e me-nos com suas “bases” (FACCHINI, 2012). Ou que o acúmulo das condições de “autoridade” e “militante” por alguns atores, assim como os laços políticos, morais e afetivos que os conectam ao movimento, gerem confusões entre papéis que no plano ideal seriam claros, aumentando o risco de que assumam projetos de poder partidários como se fossem do movimento. Falamos, portanto, de diversos tipos de riscos e poluições que colocam reputações em jogo, levando os debates sobre as políticas de governos propriamente ditas a se reproduzirem a partir de

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debates sobre a identidade daqueles que as elaboram.184

Para dar seguimento a esta reflexão, creio que seja o momento de olhar mais espe-cificamente para como esses processos se estabelecem no campo de atuação do movimento de familiares. Analisando o impacto das transformações gerais da prática política no movimento LGBT, Facchini (2012, 2009) chamou atenção para como um fenômeno específico, a entrada dessa pauta na agenda dos Direitos Humanos nos anos 2000, contribuiu no processo de recon-figuração do campo de atuação desse movimento. Menciono isso, porque creio que um proces-so semelhante possui especial importância para o movimento de familiares. Conforme discuti no capítulo 1, a questão dos “mortos e desaparecidos”, embora tomada pela SDH desde 1995 (portanto, antes da secretaria receber o status de ministério), foi incorporada ao Plano Nacional de Direitos Humanos apenas em sua terceira versão, em 2010. A partir dos debates ocorridos em um importante espaço de participação da sociedade civil, a Conferência Nacional de Direitos Humanos. Essa entrada na pauta mais geral dos Direitos Humanos teve consideráveis impactos sobre o campo de atuação do movimento de familiares com consequências semelhantes àquelas descritas por Facchini sobre o movimento LGBT. No caso em tela, ela significou não apenas o aumento quantitativo de políticas relativas ao período Ditatorial, como sua diversificação, inse-rindo os problemas sociais até então identificados como merecedores de atenção – as mortes, os desaparecimentos e as perseguições políticas – em um conjunto muito mais amplo de problemas a serem enfrentados. Reunidas sob a noção de “direito à memória e à verdade”, novas medidas visam atingir uma política global (como cobra a CIDH) segundo parâmetros internacionais de “acerto de contas com o passado”, a chamada Justiça de Transição.

Essa institucionalização não apenas consolidou a assimilação de atores internacio-nais a um debate que, até pouco tempo, era tratado exclusivamente a partir de parâmetros inter-nos (ROSITO, 2010), como atraiu para este campo “novos atores” da sociedade civil. Ao mesmo tempo, assistimos ao surgimento de diversas novas organizações políticas, entre as quais pode-mos citar, como exemplo, tanto aquelas compostas por jovens que trouxeram para o Brasil os escraches como modalidade de protesto, quanto a criação dos chamados Comitês MVJ por todo o país. Estes comitês possuem formação variada, mas têm como característica comum integrar “sobreviventes” e familiares (estes em menor número) a atores mais jovens com interesse profis-sional e/ou político pelo tema. O estímulo para sua criação partiu reconhecidamente da SDH, com o intuito de conferir base de apoio à criação e atuação das comissões da verdade.185 Notável

184 Estes riscos que envolvem reputações estão previstos em categorias acusatórias disseminadas nos movimentos sociais, tais como “pelego” ou “governista”.

185 Embora não seja frequentemente referido pelos integrantes dos comitês, esse estímulo institucional é reivindicado pela SDH. De outro lado, ele é alvo de críticas por parte das organizações que acreditam na necessidade da separação entre os movimentos e o Estado. Na audiência da CNV em Porto Alegre, a Ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário falou sobre esse processo, argumentando que, quando se fala em Ditadura, sempre se lembra da importância dos familiares, mas que seria preciso

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também é a crescente articulação entre as novas e as mais antigas organizações em de redes de ativismo que buscam adquirir amplitude nacional, entre as quais se destaca, por sua consciente tentativa de assim se organizar, a Rede Brasil MVJ. Simultaneamente, temos observado uma reconfiguração do “circuito institucional” (FACCHINI, 2012) estabelecida a partir de maiores e mais ativas conexões entre ministros, gestores, técnicos e os variados grupos da sociedade civil, que participam ativamente da execução (e não mais apenas da elaboração) de iniciativas insti-tucionais, seja atendendo a editais voltados para a sociedade civil, seja realizando assessorias, voluntárias ou remuneradas. É, portanto, a partir da institucionalização do “direito à memória e à verdade” que os atores se multiplicam, as redes se expandem e se conectam de forma muito mais ativa, dando corpo àquilo que tenho chamado de campo MVJ.

Inseridos nesse campo tanto como representantes de uma comunidade, quanto das organizações políticas das quais fazem parte, os familiares têm se percebido envoltos por esse ambiente que os extrapola, seja em termos de formas de militância possíveis e de demandas formuladas, seja no que se refere aos repertórios disponíveis para elaborar demandas que vão se tornando cada vez mais amplas e variadas em relação a suas fórmulas mais tradicionais. Foi esse o sentimento descrito por um familiar, filho e neto de desaparecidos, durante uma audiência da CVRP, quando contou que apenas recentemente, em meio a uma reunião entre familiares, um prefeito, a ministra de Direitos Humanos e outros atores, que se deu conta surpreso de que “nós viramos alvo de políticas públicas!”. Não mais apenas atores de demandas ao Estado, mas objeto de políticas elaboradas não apenas como resultado de sua relação com a institucionalidade, mas de uma interação complexa entre um conjunto amplo de agentes. Nesse contexto, muitos parecem temer que essas políticas possuam uma maior capacidade de gerar concepções utilitárias do so-frimento, de lhes impor uma certa linguagem reivindicativa (FASSIN e RECHTMAN, 2009), ou ainda de lhes retirar a voz, legitimando um Estado ao qual se opõem. Em suma, que o novo discurso “especializado” distorça seu mundo moral (DAS, 1995) mais do que proporcione a ain-da aguardada Justiça. Eis aqui outros componentes que complexificam o dilema de Victória.186

reconhecer também a importância de pessoas como José Gregori, Gilberto Sabóia, Paulo Sérgio Pi-nheiro, Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi (ministros que ocuparam a pasta antes dela), em seguida reivindicou o papel da SDH no estímulo inicial à criação dos comitês MVJ. Suas colocações sugerem o quanto, no contexto desse debate político, a institucionalidade associada a um ator social pode poluir sua reputação como militante da causa. Legitimidade que precisaria ser, então, reivindicada. Caderno de campo 2, 18/03/2013.

186 A queixa desse familiar me pareceu interessantemente circunstanciada pela forma como ele mesmo tentava fugir das perguntas de caráter pessoal (sobre trajetória e sentimentos) que lhe eram insistente-mente feitas na audiência. Eu não o conhecia pessoalmente, mas as vezes em que o havia visto falar em público tinham sido suficientes para que eu percebesse a forma como ele evitava assuntos que conside-rava pessoais, preferindo falar do ponto de vista do movimento, tecendo análises políticas e discutindo questões gerais. Nesse sentido, qualquer discussão sobre o aspecto político ou terapêutico da exposição de experiências pessoais através de testemunhos, impresso na noção de “dar voz às vítimas” que guia as comissões da verdade, parecia ser, para ele, opressor. Para muitos sobreviventes e familiares, colocar-

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Até aqui, me pareceu importante mostrar que o dilema com o qual iniciei o capí-tulo não é apenas de Victória, mas se faz presente, em maior ou menor medida, entre diversos movimentos sociais na democracia. São desconfianças, riscos e medos de contornos políticos e morais, definidos segundo as nuances de cada processo político em seus diferentes contextos. Eles servem aos exercícios de separação entre Estado e sociedade, embora convivam com um denso entrelaçamento de relações entre estes domínios na prática política cotidiana. Sociedade e Estado são definidos por meio de performances em que são identificados com certos atores ou instituições e os papéis e responsabilidades a eles atribuídos. Por outro lado, me parece impor-tante mostrar como as complexidades e os múltiplos pertencimentos desses atores e instituições geram movimentos de sobreposição em que esses papéis deixam de ser tão claros, dificultando precisar os limites que, entretanto, estão sempre sendo apontados. Trago como exemplo, as ob-servações que pude fazer durante dois eventos: o Encontro Nacional da Sociedade Civil e a Reunião da CNV com os comitês da sociedade civil.

Ocorrido no fim de semana dos dias 27 e 28 de abril de 2013, o Encontro Nacional da Sociedade Civil começou a ser preparado após o agendamento de uma reunião entre a CNV e os “comitês da sociedade civil”. A intenção era criar um espaço anterior de debates entre tais comitês, onde os militantes pudessem realizar uma avaliação coletiva do primeiro ano de atuação da comissão, elaborar propostas de correção de rumos, e definir um conjunto de de-mandas. O resultado desses debates seria, então, levado ao conhecimento da CNV em reunião a ser realizada no dia 29 de abril. Os militantes desejavam, a partir do primeiro encontro, de-finir uma pauta comum que mostrasse a força e a unidade “da sociedade civil” para fazer valer seus interesses e visões diante de um processo que se recusavam a pensar como exclusivamente institucional. Imaginado, portanto, segundo a lógica que separa o Estado da sociedade civil, o encontro serviria para “afinar” o discurso entre os atores iguais e fortalecer uma posição comum entre eles frente à outro ator, que tinha o poder de acolher ou não suas colocações. A percepção de desigualdade na relação entre sociedade civil e institucionalidade colocaria a ne-cessidade de resguardar suas distintas dinâmicas de atuação pela separação espacial, temporal e ritual entre as duas reuniões.

se publicamente como vítimas ainda parece ser contraditório com o papel de militantes que querem afirmar, embora, essa não seja uma postura generalizada. Caderno de campo 3, 09/05/2013. O mesmo observou Ross, em sua análise da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul. Diz a autora: “O entendimento de que o Apartheid foi uma forma de violação de direitos, e que essa violência produziu vítimas, em vez de, por exemplo, heróis, criou profundos dilemas morais para alguns ativistas políticos. Essa formulação da Comissão oferecia duas posições possíveis: “ falar”, tornando conhecida uma experiência de violação e de-mandando ativamente a condição subjetiva de vítima; ou permanecer em silêncio. Muitos ativistas, homens e mulheres, escolheram a segunda, oferecendo uma série de motivos para isso. Entre outras questões, incluem uma antipatia pelo foco centrado nos indivíduos dos trabalhos da Comissão; um incomodo de ser classificado como ví-tima ou falar publicamente das humilhações sofridas; um desejo de “deixar o passado pra trás”; e uma insatisfação com os acordos políticos que produziram a Comissão” (ROSS, 2003: 172).

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Eu soube da realização dos dois eventos, a partir de notícias que começaram a cir-cular no campo. Interessada, comecei a mobilizar contatos, procurando viabilizar minha parti-cipação. Nesse processo, fui informada de que a ideia não era realizar um evento amplo para atrair novos participantes, mas reunir as 45 entidades já “cadastradas” na Rede Brasil MVJ (em sua maioria comitês e coletivos MVJ), que deviam enviar dois representantes cada. Contudo, ao longo do processo, organizações externas à Rede foram sendo convidadas, expandindo as dimensões iniciais do encontro. Sabendo que o GTNM/RJ não participaria e em dúvidas sobre a participação da Comissão de Familiares, acionei membros do Coletivo RJ MVJ,187 os quais eu havia conhecido no decorrer da pesquisa. Mediante seu apoio, pedi e recebi um consentimento da organização do encontro em relação a minha presença como observadora.

A partir desses contatos pude acompanhar um pouco os impasses e dificuldades envolvidos em sua realização. O aumento do número de organizações interessadas em parti-cipar gerou, inicialmente, algumas dificuldades logísticas, que foram contornadas com a ajuda das redes de relações dos militantes e organizações envolvidos. Logrando apoio da CUT e dos Sindicatos dos Químicos, dos Jornalistas, dos Bancários e dos Metalúrgicos de São Paulo, o Comitê Paulista conseguiu reservar o Instituto Cajamar para sediar o evento. O instituto é um espaço próximo à cidade de São Paulo (localizado na Rodovia Anhaguera), criado na década de 1980 pela CUT para servir como centro de formação e capacitação de lideranças políticas. Nessa escolha, chama atenção o fato de a localização afastada não tenha sido percebida como um problema, ou tenha sido vista como um problema menor diante da possibilidade oferecida pelas instalações do instituto de conter a dispersão dos militantes. Entre sábado e domingo, todos poderiam pernoitar e se alimentar no local, com seus gastos custeados pelas entidades sindicais parceiras, assim como o translado de ida e volta à cidade de São Paulo. Essa opção nos dá indícios sobre o caráter mais restrito do evento, conforme comentei anteriormente. Mesmo com a ampliação dos horizontes iniciais, tratava-se de um evento para militantes, isto é, para atores sociais que já se reconheciam como partícipes de um debate. Mas se toda essa infraestru-tura foi proporcionada no âmbito dos movimento sociais, em outra ponta, militantes decidiram mobilizar a própria CNV para custear as passagens necessárias aos participantes que viriam de todo o país. Ao final de uma (in)tensa negociação, que não transcorreu sem a discordância de alguns militantes em relação à pertinência desse pedido, apenas metade do volume solicitado foi atendido. Outra parte das passagens tiveram seus custos cobertos pelos participantes ou por suas organizações, com o apoio de outras entidades, a depender das redes de contatos caso a caso.

187 Por suas divergências em relação a como atuar em relação à CNV, o GTNM/RJ não costuma articular inicia-tivas com os comitês. Mas, em relação a este evento em específico, não sei precisar as razões pelas quais o Grupo não se fez presente. O Coletivo é formado por militantes independentes e entidades políticas sediadas no Estado do Rio de Janeiro, entre as quais as já citadas nesse tese, Iser, Cejil e a comissão de direitos humanos da OAB. Ao longo da pesquisa, tive um convívio relativo com seus militantes. No início, cheguei a considerar a possibilidade de frequentar suas reuniões semanais, o que se mostrou impossível pela coincidência de dia e horário com as reuniões do Grupo.

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Todos esses arranjos foram encaminhados a partir de debates travados por meio de uma lista de e-mails da Rede. Além das questões logísticas, foram também previamente acorda-das as formalidades que comporiam a estrutura do encontro. Sendo assim, no sábado, quando militantes de todo o Brasil se reuniram em Cajamar, uma plenária foi instaurada para dar início aos trabalhos. Nesse momento, foram eleitas uma mesa diretora e uma comissão de redação, foi discutido e aprovado um regimento interno, e realizado o credenciamento dos participantes, divididos em delegados, representantes das entidades cadastradas à Rede com direito a voto, e observadores, sem esse direito. No domingo, os participantes foram separados entre os seis gru-pos temáticos definidos durante a plenária, onde deveriam discutir dois pontos: uma avaliação global do primeiro ano de atuação da CNV e definir um conjunto de propostas relacionadas ao tema específico do GT. Uma ata com o resumo dessas discussões seria, então, levada à comissão de redação e, em seguida, à plenária final para que fosse construído e aprovado um relatório con-sensual. Tais formalidades são práticas comuns dos movimentos sociais em congressos e outros tipos de reunião de caráter deliberativo. Nesse caso, o objetivo declarado era tentar fornecer às disputas, já previstas, um caminho para atingir o “consenso” que se desejava.

Por não ter hospedagem garantida, eu cheguei ao encontro apenas no domingo de manhã, no momento em que os grupos de discussão se formavam. Não cheguei a escolher um grupo, pois atendi a um pedido para que me dirigisse a um deles. Ao longo do dia, tanto no grupo, quanto durante o almoço e na plenária final, fui reencontrando e sendo apresentada a vários participantes. Transitar em meio a eles munida de conhecimentos prévios acerca das trajetórias políticas e das posições ocupadas por diversos deles no campo me chamou a atenção para a variedade escondida sobre a ideia de que ali se reuniria “a sociedade civil”. Além de in-tegrantes de organizações políticas, como os comitês, a Comissão de Familiares, o GTNM/SP, o Núcleo Memória, o Levante Popular, algumas ONGs, como o Iser e o Cejil, estavam presentes também dois deputados, diversos membros de comissões da verdade e um integrante da SDH. Essa descrição, entretanto, não faz jus ao fato de que poucos entre os atores presentes poderiam ser enquadrados em apenas uma dessas categorias. Militantes dos comitês e de quase todas as organizações citadas, assim como os deputados presentes participavam de alguma maneira de comissões da verdade, seja como membro, assessor ou colaborador. Ali percebi que o caso da CVRP não é exceção. Um militante do Fórum Paranaense pela Verdade comentou que esta “orga-nização da sociedade civil” ocupa seis das sete vagas da Comissão Estadual da Verdade do Paraná. Em dinâmicas menos formais, militantes do GTNM/SP e do Comitê Paulista MVJ, por exem-plo, integram ou colaboram ativamente com grupos de trabalho criados no âmbito da CNV. Os integrantes de ONGs ali presentes também eram membros de comitês. Por fim, o integrante da SDH é ex-preso político, membro de um comitê e participou do esforço da SDH pela criação de diversos deles. Estava evidente que a tal “sociedade civil” reunida no encontro era formada por vários atores que transitavam pela institucionalidade, incluindo a própria CNV.

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É curioso notar que a presença no encontro colocava todos esses atores como mi-litantes aos olhos uns dos outros. Participes de um mesmo debate e de uma mesma luta. Mas isso não significava que não houvesse diferenças, disputas ou desconfianças entre eles que, ao se expressaram, mobilizavam os múltiplos vínculos de cada um. É quando as questões da crítica e do consenso entram em cena. Conforme dito anteriormente, já estava previsto que inúmeras críticas e disputas percorressem o encontro. As críticas se voltaram para vários pontos da atuação da CNV: a forma das audiências; os métodos de pesquisa; a falta de respostas e diálogo sobre os documentos e relatórios que iam sendo fornecidos à CNV pelos comitês, pesquisadores e grupos de trabalho; a falta de relatórios periódicos da CNV que disponibilizassem as informações por ela obtidas; a pouca convocação de ex-agentes do regime para esclarecimentos; a falta de acú-mulo de informações sobre o tema por parte de alguns integrantes da comissão, considerados “neófitos”. As audiências eram criticadas, por um lado, por não oferecer espaço de valorização apropriada para os testemunhos, que acabavam sendo curtos e superficiais. Por outro, por serem a audiência e o testemunho o único espaço e a única forma de participação disponível. Os mili-tantes queriam acesso a espaços de decisões políticas e metodológicas.

Havia, enfim, um conjunto bastante robusto de críticas que se mostravam, em gran-de medida, consensuais. No entanto, problemas surgiam porque as maneiras de colocá-las eram, muitas vezes, lidas como manifestações de adesão ou de rechaço de um ou outro ator à CNV e ao Estado. Os debates passavam, então, a pautar diretamente a imaginação de fronteiras entre Estado e sociedade, sendo explicitados por meio de jogos de reputação em que o manejo das identidades se tornava central. Explicando mais especificamente: se as críticas levavam à conclu-são de que era preciso desconfiar das intenções e possibilidades de avanço da CNV, eram con-sideradas fruto de uma postura “sectária”. Mas, se evitavam completamente a crítica, corriam o risco de terem suas atitudes rotuladas como “pelegas” e “governistas”. Mais do que as críticas e as propostas de “correção de rumos”, era a forma de se posicionar em relação à CNV (e ao Estado) que estimulava desacordos entre os participantes.188

Dos grupos de trabalho à plenária final, a formulação de qualquer crítica passava por uma constante preocupação em relação ao consenso. Isso porque grande parte dos atores envol-vidos no encontro acreditavam na necessidade de realizar um movimento de “morde e assopra”, como definiria um participante. As críticas precisavam ser “construtivas”, equilibradas com a “vi-são correta de quem é o adversário”. Seria importante não “reforçar a posição dos contrários à verdade” com críticas excessivas a uma comissão que “ é nossa aliada”, mas era preciso também mantê-las em alguma medida para não “mostrar fraqueza diante da CNV”. Só assim teriam suas demandas atendidas. Esse último argumento também seria lançado à plenária final, após a leitura dos

188 Conforme notaram os membros da comissão no início do capítulo, a CNV e as instituições de maneira geral eram muitas vezes tomadas como metonímia para “o Estado”, confundindo suas acepções como sistema e como ideia.

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relatórios de todos os grupos de trabalho, para convencer os participantes da importância de chegar a um texto final único que pudesse ser apresentado à comissão. Para tanto, seria necessá-rio suprimir as diferenças e desacordos entre os documentos elaborados por cada um dos grupos e que, como no interior do grupo em que eu estive, girou mais em torno do tom em que eram feitas as críticas. Horas de debate não foram suficientes para a produção do desejado consenso. No dia seguinte, os participantes seguiriam para a reunião sem um texto comum.

O trajeto até São Paulo foi feito em ônibus fretado que os deixou à porta de um hotel elegante, onde os reencontrei. Ali, a Presidência da República havia alugado dois andares à disposição da reunião, além de buffet completo para o café da manhã e o almoço de todos os presentes. A reunião foi realizada em uma sala de conferências, coordenada por uma mesa, cuja composição passou por outro tipo de formalidade. Aquela que dava à promotora do evento a prerrogativa de compô-la com todos os seus membros presentes e apenas um representante da Rede. A imprensa que compareceu ao evento foi autorizada a ficar apenas nos 10 minutos ini-ciais, depois foi convidada a se retirar, pois os debates subsequentes teriam um “caráter interno”. O evento durou o dia todo e passou por dois momentos. No primeiro, tiveram voz um represen-tante de cada entidade presente e, depois, um representante de cada grupo temático que deveria ler os documentos elaborados. Nesse formato, portanto, a palavra não estava mais à disposição de todos os participantes, conforme ocorrera no encontro. A Comissão de Familiares teve direito à fala, momento em que aproveitou para relatar a situação das ossadas de Perus e pedir a parti-cipação da CNV nas articulações que, mais uma vez, tentavam sua identificação.

No segundo momento, após o almoço, a CNV dedicou-se a elaborar uma resposta às demandas apresentadas. Fizeram parte dela uma autocrítica em relação ao distanciamento da sociedade civil e outros pontos criticados pelos comitês, “prestaram contas” ponto a ponto aos vários dos questionamentos feitos, encerrando com um apelo ao “consenso”, pois “sem as pressões e os trabalhos coletivos a CNV não conseguirá fazer seu trabalho”. Nas palavras de um comissionado,

É decisivo que estas críticas, cobranças e reivindicações sejam feitas, que o contraditório esteja instalado, mas é importante nós nos tratarmos como companheiros na mesma luta (…) para que o pacto para emperrar a verdade não venha à tona. Acho que nós temos que fazer um esforço de transparência na nossa comunicação para não darmos o espetáculo para a sociedade brasileira do dilaceramento mútuo entre a sociedade civil – das organizações e dos comitês que querem os objetivos da comissão da verdade – e a comissão da verdade. É o pior que poderia acontecer. Eu não quero lembrar a tantos militantes que estão aqui o que são as regras de diversos partidos. Nós discutimos tudo dentro, nos estraçalhamos na crítica, na cobrança, na reivindicação, mas nós temos que mostrar pra fora uma face... não é pra dentro que eu não quero que critiquem. Eu acho que tem que haver toda a critica, sem nenhum limite, implacável. Agora, é preciso lembrar o que a Ministra Maria do Rosário disse, não creiam que a sociedade brasileira inteira está querendo a verdade. E nós darmos este

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espetáculo da divisão e do dilaceramento é o que poderia haver de melhor para estas pessoas que não querem a verdade.189

Apesar das inúmeras divergências, é mais uma vez a noção de consenso que dá o tom do diálogo. Para entender de onde parte e o que significa essa categoria, é preciso primeiro destacar que o diálogo entre os participantes das duas reuniões só se fez possível porque ambas estavam fundadas na ideia de que a sociedade civil tem o direito de demandar e colaborar com a busca da verdade, enquanto a Comissão possui o dever de lhe “prestar contas” e se servir de suas contribuições. A bem da verdade, falamos de valores compartilhados muito além das duas reuniões. A noção de “participação” com sua importância fundada na própria caracterização da nova democracia brasileira, conforme discuti anteriormente, se une aqui à noção de “transpa-rência” (ou mais precisamente à noção de “accountability”) como princípios a partir dos quais o próprio empreendimento das comissões da verdade seria imaginado.190 Um acordo se desenha: Estado e sociedade civil (ou as parcelas do Estado e da sociedade civil comprometidas com a questão) devem se unir em torno do objetivo comum, embora tenham distintos papéis.

Apesar de todo esse entendimento comum, consenso não é algo que se possa pressu-por. Nem mesmo entre atores que se dizem voltados para um horizonte comum. Em um contex-to mais amplo, consenso é uma categoria mobilizada tanto por movimentos sociais, quanto por gestores públicos, referindo-se aos esforços por meios dos quais os atores sociais sobrepõem um ponto de vista aos demais existentes. Sua incidência, entretanto, varia contextualmente porque, como bem lembra Vecchioli (2001), o termo não deixa de ser um eufemismo para a noção de disputa. Sua eficiência reside na capacidade de ocultar a forma pacífica (negociada e não impos-ta) com que um ponto de vista sobressai aos demais. Dessa forma, é preciso entender as razões pelas quais em um dado contexto, o consenso é mais valorizado que a disputa.

Para responder a esta questão, chamo atenção novamente para o fato de que nenhum dos dois eventos foram propriamente abertos a qualquer interessado. Algo bem simbolizado pela exclusão da imprensa. Fechados sobre si mesmos, eles se constituíram em espaços de per-formances das conexões que constituem o campo através de formalidades que sinalizavam tanto as relações de igualdade, quanto as hierarquias por ele encerradas. De um lado, a percepção de que o campo era dividido entre os que demandam e os que são demandados estava presente na

189 Caderno de campo 3, 28 e 29/04/2013. Trecho transcrito a partir de gravação pessoal da Reunião da CNV.

190 Transparência, responsabilidade e prestação de contas são alguns dos termos por meio dos quais a noção de accountability será traduzida no Brasil. Ela está relacionada à busca pela gestão eficiente e democrática do Estado. Daí também o simbolismo de sancionar a nova Lei de Acesso à Informação e a Lei que cria a CNV na mesma cerimônia. A noção alcança centralidade nas teorias da Justiça de Transição, em que seria tomada, sobretudo, como princípio. É observando-o que o Estado assume sua responsabilidade em face das violações de Direitos Humanos cometidas, colocando o foco de suas ações reparatórias nos direitos e nas necessidades das vítimas (MEZZAROBA, 2004).

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certeza de que era preciso batalhar um espaço de escuta. Era preciso fazer-se ouvir de forma a garantir não apenas que a CNV recebesse as contribuições da “sociedade civil”, mas que suas demandas passassem pela “caneta vermelha” que conferia à CNV o poder de escrutiná-las e selecionar aquilo que lhe parecesse apropriado para entrar em seu relatório, conforme expressão de um participante do encontro. De outro lado, uma visão bem disseminada de que ambos os espaços são ocupados por pessoas com histórias de vida e compromisso pessoal com a causa dos Direitos Humanos no Brasil e que, nesse sentido, se encontram “no mesmo barco”, “do mesmo lado” ou na “mesma luta”. A proximidade de ideias e a parceria de ação designaria assim o ponto de confluência em que todos, dentro ou fora das instituições, se tornam iguais: “companheiros”. Essa ideia me parece muito relevante de ser pensada mais aprofundadamente porque sugere outras proximidades. O fato dos presentes reconhecerem uns aos outros como atores legítimos dentro do campo MVJ decorre tanto das formas pelas quais o campo tem moldado e assemelhado as formas de atuação da militância e dos gestores, quanto da história pregressa de muitos dos agentes e das maneiras pelas quais elas se tocam em muitos pontos.

Começando com esta última questão, podemos retornar às recém-mencionadas fa-las do início do capítulo para lembrar como o pedido de confiança de um comissionado ao sobrevivente que o “desafiava” fiava-se em sua trajetória política pessoal que se iniciou com a defesa de presos políticos. Essa menção de forma alguma é um caso isolado. Ao contrário, é um recurso muito comum de legitimação da palavra de atores sociais, sobretudo quando vinculados à institucionalidade. Ela, portanto, nos alerta para o fato que quando falamos de “sobreviventes”, “familiares” e agentes institucionais que atuam no campo não podemos esquecer o fato de que, muitas vezes, estas identidades não são excludentes, nem necessariamente vistas como contra-ditórias. Tais percepções resultam dos jogos de força nos quais os atores se engajam, mobilizando categorias identitárias. Mas, é importante perceber, tal como pontou Vecchioli (2001) a respeito do campo dos Direitos Humanos na Argentina, que falamos de atores que compartilham uma propriedade social. Eles não apenas pertencem, em maioria, a um mesmo estrato social (classe média), como ingressaram na política em meio a variadas modalidades de lutas de oposição à Ditadura. Não somente familiares e sobreviventes se converteram, ao longo dos anos, em pro-fissionais dos Direitos Humanos, ou são assim reconhecidos por sua luta, mesmo quando não compõem a institucionalidade, como também diversos políticos e gestores alçaram esta posição na democracia desde uma reconhecida carreira de oposição ao regime autoritário.

Os contatos entre muitos dos atores do campo remontam, portanto, a uma tempo-ralidade. Refere-se a um momento em que estavam todos “na luta” (pelos presos políticos, pela Anistia, pelas Diretas Já, pela democracia) e segue nos momentos posteriores em que diversos deles se tornarão políticos, parlamentares, chefes de executivo ou gestores. Entre muitos de-les, há portanto, outros compromissos e laços – políticos, partidários, afetivos, morais – muito mais amplos do que os constituídos pela prática na qual estão inseridos e que as influenciam

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de formas variadas, não previamente estabelecidas.191 Sob este aspecto, podemos dizer que, por mais que familiares se recintam de que seja atribuída aos “mortos e desaparecidos” uma relevân-cia menor do que seria merecida, sua situação de inserção e escuta institucional (e mesmo social) é distinta daquela experimentada pelos familiares de vítimas da violência policial na democracia que, como nos mostram diversos autores, falam desde uma posição subalterna, vivem sob a ameaça de sofrer a mesma violência que seus familiares, precisam enfrentar o estigma da cri-minalização que vitimou seus entes para que possam ser ouvidos e, por fim, enfrentar discursos flagrantemente negacionistas ou justificadores da violência sofrida (VIANNA, 2014, FARIAS e VIANNA, 2011, ARAÚJO, 2012, FARIAS, 2014).

Uma segunda questão impressa nesse “estar no mesmo barco” é a profissionalização do campo MVJ. Tal como argumenta Facchini (2012), o processo de institucionalização das entidades exigiu um novo perfil dos ativistas, colocado-os em uma posição de maior proximida-de com os gestores e técnicos, tornando-se capazes de lhes criticar a partir desse viés.192 Souza Lima e Castro (2008) sugerem que uma das características mais significativas nos processos de elaboração de políticas públicas é a construção dos debates a partir da convergência de discur-sos, gerando uma homogeneidade linguística e retórica. O horizonte de signos compartilhados seria mobilizado para se sobrepor aos conflitos de interesse e de significados, na medida em que carregam um conjunto de valores (e de cargas emotivas) a eles associados e que passam a vei-cular. Conforme argumenta Lugones (2009), esses valores “ultrapassam os âmbitos específicos do direito ou da política para se converterem em uma linguagem moral que define os contornos dentro dos

191 Podem significar um apoio reconhecido como amplo a ponto de considerá-los “companheiros”, não no passado, mas na luta atual; pode significar apenas uma maior facilidade de acesso a autoridades em comparação com outras experiências de relacionamento mais distante, principalmente quando se tem um amigo próximo entre os quadros institucionais; ou pode significar ainda uma relação mais transpa-rente. Como ouvi certa vez de uma familiar, seria preferível a relação com certa autoridade “sobreviven-te”, porque “pelo menos não mente para nós”, nos diz quando sabe que não tem poderes para fazer valer certas posições dos familiares com as quais diz concordar, no interior do governo. Em contrapartida, podem significar também todos os riscos de poluição da luta já mencionados.

192 Nesse sentido, vimos no capítulo anterior, a dedicação dos familiares à formulação de discursos que pudessem ser reconhecidos como saberes. As críticas metodológicas ou de desajuste das práticas da CNV em relação a certas convenções no campo internacional dos Direitos Humanos também surgiram no encontro e em diversos outros momentos da pesquisa. Por exemplo, o fato da CNV querer trabalhar com “casos exemplares” no caso das violações aos direitos humanos dos povos indígenas foi criticado por um militante do GTNM/SP que se dedicava a pesquisar este tema e havia se aproximado do GT da CNV sobre questões indígenas. Segundo ele, a ideia de casos exemplares seria “inaceitável para viola-ções de direitos humanos”. Críticas relativas aos resultados específicos apresentados pela comissão para diversos temas e casos estudados também foram elaboradas, algumas vezes atribuídas à inexperiência com pesquisa em arquivo ou a equívocos metodológicos, como chegar a conclusões baseando-se em um único documento encontrado. Em outros casos, como as mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, houve desacordo em relação às conclusões dos peritos da CNV. Nesses casos, a CVRP e a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo apoiaram os grupos de pesquisadores que produziram pericias opostas à da comissão nacional.

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quais se pode falar” (LUGONES, 2009: 36). Trata-se da formação daquilo que a autora chama de vulgata, um conjunto não apenas de signos e termos, mas também de valores que orientam formas de pensar, o que pensar e o que não pensar. Pensar Memória, Verdade e Justiça como vulgata se aproxima da ideia de que a Verdade passa pela denúncia como forma de conhecer. Um conhecimento que também é um (des)reconhecimento, conforme discutido no capítulo 1. O compartilhamento dessa linguagem moral faz com que os atores sociais acreditem desejar as mesmas conquistas contra aqueles que não as compartilham e que lhes impõem derrotas no âmbito da disputa política mais geral no Estado e na sociedade. O campo é pensado justamente como o espaço da produção dessa vulgata, de novos paradigmas que devem ser disputados em espaços mais amplos, consensos que permitiriam unificar e depurar as contribuições acadêmicas e profissionais (jurídicas, sociológicas, historiográficas, etc.) para aprimorar discursos, sustentar a construção de políticas públicas. Por isso, conforme bem argumentou Dagnino (2004), as per-cepções de opacidade das instituições também podem surgir dessa mobilização de linguagem comum. Compartilhamento que, muitas vezes, podem ser experimentados como formas de obstrução dos dissensos e disputas.

Todos estes fatores complexificam as visões dos atores sociais em relação ao Estado, fazendo com que tenham maior conhecimento do funcionamento de seu sistema e da intrincada rede de relações que liga, por variados laços, atores postados “dentro” e “fora” dele, igualando-os como produtores de razões e técnicas de governamentalidade (FOUCAULT, 2007). A rede de relações que compõem o campo e a vulgata concorrem para a produção de binarismos alterna-tivos ao estabelecido entre Estado e sociedade, recortando estes dois domínios, onde aliados e adversários da MVJ podem ser identificados. Contudo, os limites entre a institucionalidade e a militância continuam a ser mobilizados como parte dos jogos de forças estabelecidos entre ato-res individuais e coletivos. Nessas disputas, os discursos do movimento de familiares seguem mobilizando o Estado como representação, associando-o ora à indiferença e desinteresse, ora ao uso interessado para atingir fins outros, ora à recusa da responsabilidade, simbolizada pelo Estado réu. A força dessas representações pesa na conta da institucionalidade, engrossando as percepções sobre sua capacidade de poluir os que a elas se associam. Daí que, em certos mo-mentos, possamos ver atores institucionais enredando narrativas para legitimar a si mesmos e as instituições que representam como partícipes da luta por MVJ. Em outros, ainda que pareça contraditório, os vemos manejar suas múltiplas identidades e pertencimentos para identificar “o Estado” como o outro. Já os militantes precisam tornar a desconfiança uma postura compatível com suas diferentes formas de estar em espaços institucionais aos quais, na maior parte das ve-zes, seguem atribuindo alteridade.

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Dependência, suspeição, ressentimento

Conforme procurei mostrar, as comissões da verdade trouxeram novos elementos para o dilema vivido pelo movimento de familiares, marcando a existência de um problema político da maior importância. Movendo e sendo informado por uma variedade bastante ampla de questões, o ato de criticar as comissões era necessário, mas estava cercado por uma série de cuidados, encontrando seu limite (político e moral) no acordo em torno da necessidade de revelar a Verdade, falar sobre as violências e trazer à tona a memória das vítimas. Ainda que as representações do Estado restassem envoltas em uma carga negativa, menosprezar tais questões podia significar romper os limites para o campo adversário.

Ao longo da pesquisa, presenciei diversas situações em que as críticas consideradas mais radicais, sobretudo aquelas baseadas na suspeição de que as comissões pudessem servir ao sentido contrário daquele enunciado, foram motivos de graça ou de ironia. Contudo, não creio que elas possam ser simplesmente descartadas como fruto de delírios paranoicos, como vi acon-tecer. Digo isso, porque críticas aproximadas têm sido feitas às instituições criadas para assistir vítimas ao redor do mundo, produzidas não apenas por atores envolvidos nesses empreendi-mentos, mas também por cientistas sociais. Considerando-as, ainda que rapidamente, trarei os últimos elementos que me parecem relevantes para entender um pouco melhor a relação que se revela no dilema do movimento de familiares.

Lançando o olhar sobre a intervenção humanitária que considera ser a “mão esquerda do Império”, Michel Agier é um dos autores que se dedica a ressaltar ambiguidades. Para ele, a geopolítica mundial supõem que as intervenções humanitárias não apenas acompanhem as guer-ras, como estruturem formas de compreensão que despolitizam o olhar sobre elas. Sobre a ban-deira do cuidado, o autor acredita que elas acionem também práticas de controle, dando seguimen-to a tecnologias de gestão dos indesejáveis no sistema mundial. Entre elas, se destacam os campos de refugiados, “dispositivos policiais, alimentares e sanitários eficazes para o tratamento das massas vulneráveis” (AGIER, 2006: 198) que dificilmente serão aceitas fora dessas zonas de controle.

As ambiguidades são também objeto dos olhares críticos de Fassin e Rechtman (2009) em seus estudos sobre a emergência da vítima e do trauma como categorias políticas contemporâneas. Para os autores, o surgimento não apenas de um novo vocabulário, mas de todo um novo sistema de atitudes diante da violência estruturaria uma recente economia moral baseada na compaixão. A partir de alguns estudos de casos, em que estão em jogo medidas de reparação, a produção de políticas de testemunho e processos de concessão de asilo, eles também identificam como consequência dessa nova linguagem uma despolitização das diferentes formas e causas do sofrer, produzida pelo afastamento da política, do contexto histórico e mesmo da experiência particular dos sujeitos sociais que, nos processos de assistência ao seu sofrimento, precisam assumir uma subjetividade de vítimas para serem ouvidos. Essa vinculação necessária

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entre a vítima e um sofrimento universal homogeneizaria as diferentes experiências, mas, pa-radoxalmente, conviveria com técnicas de governo dos indivíduos e de coesão das coletividades que não estão igualmente distribuídos. Sendo assim, a perspectiva de proteger certas coletivida-des vulneráveis impõem aos sujeitos sociais a obrigação de testemunhar, implicando em formas de sujeição diante daqueles que lhes oferecem ou aos quais demandam socorro. Para os autores, a relação erigida aí seria irremediavelmente hierárquica.

As formas apresentadas por estes três autores de ver o problema são apenas exemplos de um conjunto muito mais amplo de análises críticas que se voltam mais para a questão do poder do que da cultura. Ou seja, reflexões sobre relativismo e universalismo em face de tudo aquilo que se abriga sob o guarda-chuva dos Direitos Humanos. Como notou Wilson (2003), mas tam-bém Fonseca e Maricato (2013), os estudos sobre o poder têm se tornado cada vez mais comuns, inclusive entre os antropólogos dedicados ao tema. Diferentes formas de criticar a propensão dos direitos a fixar categorias sociais permeáveis ou a descontextualizar os atos sociais voltam o olhar para domínios como a legalidade, a burocracia, as práticas disciplinares e as formas de governa-mentalidade. Nesse sentido, estas reflexões se aproximam do viés crítico proposto pelos familia-res, tanto por olharem para o Estado, quanto pelo peso posto nos mecanismos de dominação. Seguem nessa mesma linha, muitas análises que tomam por objeto as comissões da verdade.

Em sua etnografia sobre a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, Wilson (2001) descreve as decisões políticas e as tecnologias envolvidas no processo de produção da ver-dade que, a seu ver, estariam ocultas nas divulgações feitas pela imprensa e por certas análises acadêmicas. Segundo o autor, como parte fundamental dos projetos de construção do Estado democrático, e a despeito das inúmeras disputas que engendrou, a produção da verdade teria fi-cado subordinada ao objetivo maior de reconciliação nacional. Algo que foi apontado e criticado à época por atores e autores. A opção por métodos de investigação dos Direitos Humanos, que denominou legalistas e estatísticos, teria produzido, mais uma vez, uma verdade descontextua-lizada. Ademais, a ausência de um método único e a independência investigativa dos grupos de trabalho da comissão uns em relação aos outros teriam produzido um conhecimento frag-mentado e moralizante. De um lado, haviam critérios forenses guiando o que era aceito como “verdade dos fatos” e, de outro, haviam os testemunhos e as experiências, valorizados em sua dimensão emocional e catártica, mas excluídos enquanto fatores explicativos. Ademais, ao focar o olhar sobre eventos extremos, a comissão teria ignorado os abusos cotidianos e burocráticos do regime, definindo-o não como um sistema dedicado à violência em si, mas produtor de certos padrões de abusos. Estes seriam classificados segundo 48 tipos de violações, a partir das quais eram definidos três tipos de pessoas: as vítimas, as testemunhas e os perpetradores. Para cada uma delas, havia uma política diferente, concebida em função do projeto de reconciliação.

Essa forma de perceber a violência será definida por Ross (2003) como “using rights to mesure wrongs”. Como outros críticos, a autora considera que usar a noção de

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violação de direitos humanos como parâmetro para definir os danos levou a comissão a secundarizar padrões estruturais de violência, até mesmo o racismo, na medida em que o reconhecimento de cada violação estava atrelado à necessidade de identificar uma vítima e um perpetrador. Nos casos em que estes últimos confessavam, recebiam anistia, ajudando a encaminhar o país para a reconciliação, enquanto aqueles precisavam relatar experiências de violência que pudessem ser enquadradas em um dos tipos definidos pela comissão para que fossem reconhecidos como vítimas. Nesse sentido, a comissão colocava-se na posição de apontar aquilo que efetivamente contava como violência, segundo critérios que nem sempre correspondiam aos mobilizados pelos atores sociais que nela buscavam apoio. Uma das consequências dessas escolhas seria a produção de uma espécie de hierarquia entre os diferentes danos sofridos. Hierarquização que acabou por se estender para as distintas formas que foram mobilizadas para enfrentar o Apartheid. Para a autora, a imposição de buscar tais instâncias para ter a violência sofrida reconhecida, assim como as obrigações de testemunhar e de satisfazer os critérios estabelecidos seriam alguns dos constrangimentos que tornavam o critério “violação de direitos humanos” pouco refinado, seja para produzir uma verdade acerca do Apartheid, seja para tirar os sujeitos sociais da condição de vulnera-bilidade na qual a violência os teria colocado. Suas subjetividades continuavam, desde este ponto de vista, geridas por processos burocráticos que os excediam e exerceriam sobre eles formas de dominação.

Estes são apenas exemplos de pesquisas que expõem a aliança entre proteção, cuidado e controle, ressaltando as ambiguidades e paradoxos presentes nas tecnologias e gestões de Direitos Humanos. Análises que destacam a existência de “um vínculo entre a subjetivização acionada por técnicas de governo e a subjugação” (FONSECA e MARICATO, 2013: 257).193 Os mesmos aspectos que são ressaltados pelo movimento de familiares e outros atores presentes no campo. Porém, o próprio fato dos atores sociais acionarem es-tas percepções nos leva à importância de matizar a ideia de sujeição. Tal como destacam Fonseca e Maricato (Op. Cit.), Jimeno (2010), Vianna e Farias (2011), entre outros autores, é preciso levar em conta que os movimentos sociais mobilizam categorias criadas no âmbito da institucionalidade para fins diversos, atribuindo-lhes significados não previstos. E ainda, que os procedimentos obrigatórios para alcançar direitos individuais também podem servir de oportunidade à constituição de laços e comunidades morais, agenciamentos e formas de luta. Os dados dessa pesquisa apontam nesse sentido. Se há relações assimétricas, hierar-quias e percepções de processos de sujeição; se, por vezes, as categorias emergentes nos pro-cedimentos estatais parecem falar menos das próprias vítimas do que daqueles que desejam reconhecê-las como tais, isso não significa que assimetrias não possam ser situacionalmente

193 É bom que se diga que tais pesquisas tratam de contextos e mecanismos muito diversos e que não se resumem ao aspecto aqui ressaltado.

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invertidas, que a suspeita de sujeição não possa dar lugar a novos agenciamentos e que as categorias não possam ser ressignificadas para outros fins, sejam eles pragmáticos ou não.

As categorias “vítima”, “sofrimento”, “violação de direitos humanos” e “trauma” têm se mostrado centrais para os debates estabelecidos no interior do campo. Elas são, em certa me-dida, novidades postas pelas transformações que venho descrevendo ao longo da tese, vindo a conviver com termos cunhados no início dos movimentos contra a Ditadura, como “repressão”, “atingidos”, “presos políticos”, “sobreviventes”, entre outros. A ambiguidade desse novo vocabu-lário é sem dúvida um elemento com o qual os movimentos sociais lidam nesse constante re-pensar de sua relação com as instituições. Isso porque os atores guardam com a noção de vítima (e aquelas que a acompanham) uma relação paradoxa. De um lado, reivindicam a ideia de vul-nerabilidade nela impressa, de outro, rejeitam a de passividade.194 Essa rejeição está relacionada com a percepção de que a militância política (de hoje e de outrora) pode ser conflitante com uma forma de denunciar a violência que recaia naquilo que, mesmo com todas as transformações re-centes, ainda é pejorativamente taxado como “vitimização”. No que diz respeito à militância do passado, a questão faz referência a todo um debate ainda polêmico dentro das esquerdas brasilei-ras a respeito do caráter da militância contra a Ditadura e seus infindáveis “balanços” a respeito das formas de atuação, dos objetivos e dos resultados daquele enfrentamento. Um debate que a bibliografia acadêmica, sobretudo na área de história, acompanha e discute. Sobre a militância do presente, de familiares e sobreviventes, voltamos às desconfianças de que a posição de vítima os desvalorize enquanto produtores de conhecimentos baseados não apenas em suas experiências e opiniões, como vimos no capítulo anterior, mas na produção de saberes.

Porém, isso não significa que eles não mobilizem a categoria. Lembro-me da pri-meira vez em que vi Victória, anos antes de iniciar essa pesquisa, em um debate realizado na Unicamp. Nessa ocasião, uma historiadora apresentava sua pesquisa sobre a trajetória de uma ex-presa política, argumentando, em meio à exposição, que não deveríamos vê-la como vítima. Me pareceu que ela estivesse preocupada justamente com a possibilidade de que essa classifica-ção retirasse a agência da ex-presa, soando mal aos ouvidos de suas parceiras de mesa. A sobri-nha de Victória, a historiadora Janaína Teles, entretanto, fez uma defesa muito enfática de que “somos sim vítima da Ditadura” e isso em nada abalaria suas condições de militantes. Tratava-se, portanto, de reinscrever a militância a partir do reconhecimento do sofrimento e da vulnerabi-lidade, mobilizando o que lhes confere legitimidade para transformá-los em resistência e luta.

194 Os dois aspectos transparecem em parte das definições apontadas pelo dicionário. [Do lat. victima.] S. f. 1. Homem ou animal imolado em holocausto aos deuses. 2. Pessoa arbitrariamente condenada à morte, ou torturada, violentada. 3. Pessoa sacrificada aos interesses ou paixões alheias. 4. Pessoa ferida ou assassinada. 5. Pessoa que sofre algum infortúnio, ou que sucumbe a uma desgraça, ou morre num acidente, epidemia, catástrofe, guerra, revolta, etc. 6. Tudo quanto sofre qualquer dano. 7. Jur. Sujeito passivo do ilícito penal; paciente. 8. Jur. Pessoa contra quem se comete crime ou contravenção. [Cf. vi-tima, do v. Vitimar.]. Dicionário Aurélio eletrônico século XXI, 1999.

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Esse tema será discutido no próximo capítulo. Por ora, quero apenas chamar atenção para o fato de que estes são termos ambíguos, objeto de disputas e múltiplas significações, que não estão dadas a priori. São categorias em tensão, tal como os espaços em que são disputadas.195

* * *

Desde minha primeira incursão nos espaços de debate sobre MVJ, eu vi “o Estado” e “a sociedade”. Vi autoridades e familiares que, assim denominando uns aos outros, organizavam certas categorias fundamentais da disputa política nas quais estavam envolvidos. Mas, para além dessa suposta ordem, eu vi tensões, ambiguidades e hibridismos que me chamaram atenção, parecendo-me igualmente centrais para entender o que se passava. No convívio com os familiares, percebi que essas ambiguidades estavam incorporadas no dilema acerca da crítica e da participação. Ele me intrigava e, tentando entendê-lo, não pude mais ver a gestão do problema dos “mortos e desaparecidos políticos” como uma questão exclusivamente institucional, nem tampouco reduzir a questão a um processo de sujeição dos familiares pelo Estado. Para mim estava claro que eles eram muito mais do que isso.

É nesse sentido que compartilho a argumentação desenvolvida por autoras como Vianna (2002), Lugones (2009) e Farias (2014). Reconhecer a imensa assimetria das relações entre a institucionalidade e a ordem familiar não deveria implicar em olhá-las apenas como polarização, antagonismo ou controle, ainda que estes aspectos estejam presentes. Em face do que foi discutido, as ideias de complementariedade, coextensão ou cessão de poder entre estes domínios fazem mais sentido. Vianna e Lugones – que trabalham com a gestão da menoridade, respectivamente no Brasil e na Argentina – chamam atenção para o fato de que tal cessão de poder, em vez de fragilizar a autoridade ou a capacidade de ação das instituições, como poderia parecer, na realidade as aumenta. Isso porque ela engendra outros recursos para que o Estado assuma responsabilidades das quais não pode se esquivar, muitas vezes decorrentes de compro-missos internacionais, mas que, por diferentes motivos, também não consegue assumir através

195 Nesse sentido, reconhecer que agências humanitárias e instituições estatais tornam as vítimas objetos de gestão, atribuindo-as danos e vulnerabilidades classificáveis, calculáveis e hierarquizáveis, não deveria implicar em encarar estes processos como negação da política. É isso também que, no fim das contas, quer mostrar Agier (2006) ao polemizar com Agamben sobre sua ideia de campo como um vazio no plano so-ciológico. Como lugar da sobrevivência, e não da vida, do biopoder absoluto, os campos seriam antagônico às cidades. Contra essa perspectiva, Agier defende que a política pode emergir nos espaços mais impro-váveis. Constituindo relações, agindo, tomando a palavra nos campos, os refugiados recusam a vulnera-bilidade, ao mesmo tempo, em que se inscrevem nos espaços em que ela se funda. É a “política da vida que resiste”. “Os deslocados e refugiados cessam de sê-lo não quando retornam “para suas casas”, mas quando lutam como tais por seu corpo, sua saúde, sua socialização: cessam então de ser as vítimas que a cena humanitária implica para se tornarem os sujeitos de uma cena democrática que eles improvisam nos lugares onde estão. Na melhor das hipóteses, portanto, os sítios humanitários só podem ser espaços em tensão. (AGIER, Op. Cit.: 213).

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de suas instituições. Nas palavras de Vianna, essa coextensão serve para “minimizar o paradoxo de um Estado que não pode fugir daquilo que também não consegue realizar” (Vianna, 2002: 237).

Através de etnografia realizada nos juizados de menores de Córdoba, Lugones (2009) mostra esse compartilhamento através do que ela chama de fórmulas de compromisso. Conselhos dados pelos funcionários do juizado às famílias e respondidos através de certos compromissos por elas assumidos. As obrigações de fazer ou não fazer algo, acordadas com as funcionárias, vinham a ser cristalizadas nos autos dos processos, estabelecendo soluções para os problemas que passavam pela gestão familiar. Com isso, as famílias eram inscritas no poder de gestão dos menores atribuí-dos aos tribunais, sem prejuízo dos princípios legais ou do próprio poder dos juizados.

Processos semelhantes podem ser observados no caso dos familiares de mortos e desa-parecidos brasileiro, a começar pela própria lei, que cristaliza certas obrigações familiares (requerer e provar) absolutamente fundamentais para que o Estado levasse adiante sua responsabilidade de reconhecer os casos. Algo que é fonte de queixas, mas também de poder dos familiares, conforme já afirmei anteriormente. As comissões da verdade teriam sido criadas para reverter essa situação, passando das mãos das vítimas para a do Estado o dever de investigar e provar. Contudo, em nenhum momento passou pela cabeça dos movimentos sociais se sentar e aguardar os resultados. Quando criadas, as comissões vieram a se inserir em uma rede de articulações em que os domínios institucional e familiar estão profundamente embaralhados. Espero ter conseguido mostrar que esse embaralhamento se dá não somente pelo trânsito dos atores sociais por entre estruturas pen-sadas como essencialmente distintas, mas também porque as instituições (comissões da verdade, CEMDP, CA, MPF e outros) se viam envoltas pelo comprometimento dos movimentos sociais.

A partir desse comprometimento, as instituições aumentam sua capacidade de inter-face com familiares e vítimas em geral, aproximados pela confiança que estes atores depositam naqueles que tomam por representantes do movimento. Ademais, passam a delegar tarefas aos movimentos, confiando nesse compromisso, e esperando que eles os alimentem com pesquisas e informações. Assim transcorreram os trabalhos das comissões da verdade, como das demais instituições voltadas para a questão dos “mortos e desaparecidos”, potencializados pela comple-mentariedade entre as ações institucionais, dos movimentos e das famílias. Algo que ampliou a capacidade de ação institucional, sem prejudicar seu poder. Em alguns casos, esses compro-missos também chegaram a ser cristalizados através de instrumentos mais formais, como “acor-dos de cooperação” e a criação de grupos de trabalho colaboradores nas franjas das comissões. Finalmente, as comissões da verdade puderam gozar de mais legitimidade ao mobilizar certos símbolos e emoções ligadas ao parentesco na medida em que, perante a sociedade, podiam falar em nome ou em defesa dos familiares, como antes delas fizeram outras instituições.

Analisando os casos de familiares de vítima da violência policial, com foco no que chama de gestão das mortes, Farias (2014) considera que esse tipo de articulação, que também

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identificou em seu campo, se configura como uma imbricação Estado-família, em que os dis-tintos domínios se apropriam das autoridades e potencialidades uns dos outros, em arranjos que podem ser feitos e desfeitos situacionalmente, mantendo, portanto, as representações em torno de sua independência. Essa imbricação permite, nesse sentido, um acionamento dessas poten-cialidades em mão dupla. De um lado, o Estado precisa das famílias para fazer sua gestão, de outro, os familiares desenvolvem habilidades para transitar na malha institucional, se aproprian-do do poder que lhe é conferido pela institucionalidade para tensioná-la a convergir para seus interesses. Se nesse processo de cessão mútua de autoridade podemos observar tensões é porque as relações, inegavelmente assimétricas, passam por inversões hierárquicas e reacomodações em permanentes jogos de forças.

Como se viu, o Estado foi tornado o polo contrastivo a partir do qual o movi-mento de familiares passou a demarcar sua existência e organizar sua atuação pública. Tratado como antagonista mesmo quando suas instituições são acessadas, suas práticas e linguagens são compartilhadas e, em meios às suas fileiras, aliados são identificados. Sua dimensão represen-tacional é, portanto, parte ativa do jogo político, estando marcada por suas responsabilidades. No entanto, as ambiguidades desse antagonismo vão ficando nítidas na medida em que vemos todas as imbricações entre as ordens da família e do Estado que se apropriam – conforme pro-curei mostrar ao longo de todo o texto – das práticas, linguagens e legitimidades uma da outra. Convocando as palavras de Butler (2001) em sua reflexão sobre Antígona, “não somente o estado pressupõe o parentesco e o parentesco pressupõe o estado, mas também os atos realizados em nome de um e do outro são articulados no idioma um do outro, desta forma a distinção entre ambos se confunde em nível retórico pondo em jogo a estabilidade da distinção conceitual entre ambos” (BUTLER, 2001: 27). Daí os riscos de poluição revelados e zelados pelo dilema. Ele indica não somente que a gestão compartilhada do problema dos “mortos e desaparecidos” embaralha situacionalmente domínios tidos como distintos, mas também que tentar estabilizar diferenças, apontando separações segue tendo efeitos em termos de poder. Reflete-se na autoridade de dizer.

O que me intrigou no dilema dos familiares foi perceber que todas as hipóteses leva-vam a um mesmo lugar. Os familiares acusam a indiferença e demandam que o Estado assuma suas responsabilidades, mas quando as instituições o fazem, eles suspeitam de suas capacidades e de suas vontades, assim como se ressentem da desvalorização de seu protagonismo. Exigem sua presença e participação naquilo que dizem que o Estado deveria assumir só. Mas é importante no-tar que o mesmo pode ser dito a respeito dos atores institucionais. Eles manifestam a necessidade de participação dos familiares na gestão do problema e conhecem sua relevância para o sucesso das iniciativas estatais, mas batalham o reconhecimento de seu próprio protagonismo e suspeitam que a autoridade dos familiares possa desvalorizar as suas próprias, e disso também se ressentem.

As suspeições deitam raízes na disputa por protagonismo no processo político que coloca tais atores em relação, gerando ressentimentos de parte a parte; ainda que esse sentimento

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possa e deva ser diferenciado, não como uma manifestação subjetiva de cada ator, mas como pro-cessos políticos e morais de subjetivação, conforme bem apontou Fassin (2013). Sempre preo-cupado com os lastros históricos e políticos que contextualizam os sentimentos morais, o autor faz uso dos conceitos de ressentiment e ressentment, que vai buscar nos debates entre filósofos da moral, para diferenciar dois tipos ideais de subjetivação. O primeiro seria uma forma de reagir a iniquidades historicamente estruturadas que, exigindo reconhecimento e justiça, não podem ser esquecidas, nem tampouco perdoadas. Trata-se de uma condição antropológica imposta pela opressão direta ou indireta. O segundo não seria fruto de uma opressão a qual os atores sociais estão submetidos, mas de um mal-estar que decorre de sua posição relacional. Rancor relativo a conflitos ou a uma forma de serem vistos por outros atores sociais que constituem um estado de coisas presente que lhes parece insatisfatório.

Durante a pesquisa, esses diferentes tipos de ressentimento me foram dados a co-nhecer não apenas por meio do relacionamento e das conversas pessoais com familiares e, even-tualmente, com atores institucionais, mas também através dos subsequentes conflitos (ora mais, ora menos públicos) que ocorriam no campo, e dos rumores. Piadas reveladas em circuitos restri-tos, intrigas elaboradas no formato “ouvi dizer”, observações sussurradas ao pé dos ouvidos eram ocorrências constantemente observadas. Assim como os comentários que davam conta dos com-portamentos e das falas dos atores sociais e que controlavam as presenças e as ausências em cada um dos eventos que frequentei. Tais elementos eram usualmente interpretados à luz das disputas e suspeitas, revelando os ressentimentos existentes. Esses sentimentos atribuíam à reconhecida complementariedade entre Estado e famílias uma carga negativa que trazia, muitas vezes, a hipótese da sujeição. Daí que, do ponto de vista dos atores sociais, a complementariedade fosse muitas vezes traduzida como dependência.

No plano denso das relações entre os atores sociais, tal complementariedade na lida cotidiana com o problema dos “mortos e desaparecidos políticos” dá lugar a essa economia moral da dependência, suspeição e ressentimento a partir da qual os atores se identificam, se relacionam e fazem da mobilização de sentimentos de identidade e alteridade elementos cen-trais de seus jogos políticos.

* * *

“No fim do dia, eu estava tão cansada! Eles estão querendo nos vencer pelo cansaço! Eu nunca me senti tão atingida!”. Estas foram as últimas palavras que anotei de uma reunião no Grupo. Em meu caderno de campo, após o desabafo feito por Victória, registrei apenas uma confirmação de que aquela havia sido “uma reunião muito difícil”. Naquele dia, os militantes haviam gasto muitas energias na produção da avaliação coletiva de duas atividades importantes ocorridas na semana anterior. Na segunda-feira, a audiência pública da CNV havia envolvido toda a militância.

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Na sexta, uma Caravana da Anistia contara com a participação minha e de Victória. A este último evento, ela havia comparecido para acompanhar um primo cujo pedido de anistia política seria julgado. Mas essa não seria sua única tarefa. A CA também a havia convidado para representar seu pai no recebimento de uma homenagem. Maurício Grabois seria um dos vários militantes perseguidos pela Ditadura prestigiados no dia. A Caravana começou pela manhã e terminou apenas no final da tarde, transcorrendo sem intervalos.

Como a maior parte dos que assistiram ao evento, eu saí algumas vezes do auditório, seja para me alimentar, seja para “esticar as pernas” ou para “desanuviar a mente”. Pequenas pau-sas para um necessário relaxamento físico e mental, diante da exposição a narrativas tão dramá-ticas e emoções tão intensas. Mas Victória não sentiu que podia. Impelida a prestigiar todas as homenagens e, depois, todos os julgamentos do dia, ela sequer almoçou. Como poderia? Todos os envolvidos eram “familiares”, “companheiros” ou amigos próximos, incluindo dois “mortos e desaparecidos políticos” cujas anistias também foram julgadas. No dia da reunião, já na semana seguinte, Victória ainda se sentia física, emocional e moralmente esgotada. E voltava para o Estado o seu ressentimento. De seu ponto de vista, o excesso de atividades era acompanhado pela escassez de resultados. Assim, sentia que, qualquer dia, seriam vencidos pelo cansaço.196

Esse desabafo foi um dos vários momentos durante a pesquisa em que a figura do militante deixava de lado sua fortaleza para mostrar toda sua vulnerabilidade. Esses momentos chamaram minha atenção para as conexões tecidas pelo sofrimento entre a resistência e a vul-nerabilidade. Até esse momento, o olhar lançado para o engajamento e a atuação em arenas de disputa política privilegiaram o movimento através do qual os familiares vão “do luto à luta”, transformando sofrimento em ação política, dor pessoal em causa coletiva. Mas esse seria um movimento de superação no sentido de substituição? Isto é, a luta faria com que os familiares deixassem de lado o luto? A resistência excluiria sua vulnerabilidade? Há mesmo uma trans-formação ou falamos de um reino de ambiguidades em que estas duas dimensões se informam mutuamente operando juntas?

Ao longo dos anos, envolvidos na publicização de suas dores através de mecanismos políticos, administrativos, jurídicos, artísticos, etc, os familiares passaram a ser reconhecidos pela ação, pelo protagonismo em lutas que, mesmo quando pareciam pequenas e locais, tendiam a ganhar projeção nacional. Retratadas em jornais, livros e filmes, documentais ou ficcionais, as trajetórias dos familiares, como as dos desaparecidos, foram sendo cristalizadas, repetidas a partir do destaque para os mesmos fatos e os mesmos sentimentos. Aos poucos, eles se tornam personagens de histórias de luta e coragem conhecidas e repetidas, sempre de forma muito se-melhante, em diferentes suportes de memória. Eles se tornaram personagens da história recente. Contudo, em momentos como o desabafo narrado acima, em que os familiares faziam surgir

196 Caderno de campo1, 20/08/2012.

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seu lado mais vulnerável, me surpreendi ao notar como essas narrativas de domínio público fo-ram, muitas vezes, também tudo o que eu pude saber sobre estes familiares. Talvez esteja aí um resultado negativo das minhas opções por não ter feito entrevistas em profundida, assim como dos meus esforços por não ter explodido as fronteiras entre a pesquisadora solidária e a militante. Se eu me preocupei em desvendar o universo de militância do movimento de familiares, as ex-periências e vivências mais diversas e particulares dos indivíduos, os múltiplos mundos sobre os quais se debruçam autores como Catela (2001) ou Araújo (2012), só me foram dados a conhecer aos poucos e fragmentariamente. Quando o foram.

No próximo capítulo, como forma de encerrar esse trabalho, me proponho o desa-fio de retomar algumas dessas histórias, procurando garimpar narrativas articuladas em dife-rentes episódios, juntar fragmentos, observar os desabafos e momentos em que os sentimentos e os detalhes mais íntimos puderam me alcançar. Se eles não foram capazes de conferir mais cores e detalhes aos dramas narrativos já disponibilizados pelos depoimentos prestados pe-los familiares nos diferentes suportes de memória existentes, talvez nos ajudem a pensar as maneiras pelas quais o sofrimento constrói uma dobra entre a resistência e a vulnerabilidade. Algo que, no meu entender, perpassa suas subjetividades, construindo formas de se inscrever no mundo após o desaparecimento.

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5. “O sofrimento dele já foi. Já acabou. Ele agora é seu”

Todos estão calados e sombrios. Ivan Ilitch sente que lhes inspirou esse humor sombrio e que não pode dissipá-lo. Eles jantam e dispersam-se, e Ivan Ilitch fica sozinho,

com a consciência de que sua vida está envenenada, que ela envenena a vida dos demais e que este veneno não se enfraquece, mas penetra cada vez mais todo o seu ser.

(Tolstói, A morte de Ivan Ilicth)

… a morte não faz esquecer, mas faz tudo lembrar (Mário Quintana)

Fazia alguns meses que eu encerrara o trabalho de campo no Grupo. Mas naquela semana eu estava no Rio de Janeiro e decidi aproveitar a oportunidade para visitá-los. Na segunda-feira, cheguei cedo à sede na expectativa de que tivéssemos tempo para colocar a conversa em dia. Muitas coisas haviam acontecido comigo e, eu imaginava, com eles. Minha intenção era mesmo a de me fazer presente e matar as saudades.

Assim que entrei na sede, percebi que havia uma estranha movimentação. A dire-toria estava quase toda reunida, o que não era comum naquele horário. Eu não havia avisado da visita e, assim que me viram, todos se mostraram surpresos e felizes. Trocamos afagos e breves notícias sobre minha pesquisa, a militância deles, nossas vidas e, claro, nossas famílias. Mas foram conversas muito breves. A cada momento, alguém com quem eu falava era solicitado. Victória, Cecília, Beth e outros militantes transitavam atarefados de uma sala a outra, discu-tindo intensamente um assunto que me parecia muito específico, embora eu ainda não tivesse percebido o que era. Pediam documentos, faziam ligações e indicavam tarefas uns aos outros. Fiquei um pouco confusa, mas percebi que algo de importante acontecera. Logo desconfiei que teria relação com alguma nova denúncia. Assim que consegui me inteirar da situação, decidi aguardar o início da reunião geral e não atrapalhar. O assunto era grave.

Quando a reunião iniciou, Victória se pôs a detalhar o ocorrido. Há cerca de uma se-mana, a CNV havia anunciado em uma coletiva de imprensa a localização de informações sobre dois desaparecidos, Joel Vasconcelos dos Santos e Paulo Torres Gonçalves. Na coletiva, a comis-são explicou que fichas datiloscópicas de indigentes enterrados no Rio de Janeiro haviam sido localizadas e cruzadas com dados e digitais de desaparecidos políticos. Enterrados com nome falso, o primeiro no cemitério de Ricardo de Albuquerque e o segundo no cemitério da Cacuia, os dois desaparecidos eram os primeiros (e até o momento os únicos) resultados positivos desse

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cruzamento. O anúncio foi feito em um clima positivo, ventilado como um importante resultado dos trabalhos da CNV. Porém, havia uma questão para qual a comissão não dera a atenção de-vida: a família dos desaparecidos. Justamente a questão que agora movimentava o GTNM/RJ.

A irmã de Joel, Altair Veloso, estaria presente na reunião especialmente por esse motivo. Victória explicou que a mãe deles, D. Elza Joana, fora fundadora do Grupo e militante do movimento de familiares desde os tempos do CBA. Ela faleceu em 1994, como muitas mães e pais, sem nem mesmo ver o reconhecimento de seu filho como “desaparecido político”.

Eu não conhecia Altair. Naquele dia, ela vinha direto de seu trabalho, chegando um pouco atrasada. A leve agitação de sua pressa não podia esconder, contudo, sua comoção. Acomodando-se entre nós, ela começou a contar com amargor que soube das novas informações sobre a localização de seu irmão, como todos nós, pelos telejornais. Para nos sensibilizar, pediu que imaginássemos uma família, a nossa família, reunida na sala para jantar ou simplesmente para assistir ao noticiário e, em meio aos diversos assuntos do dia, fosse surpreendida por uma notícia de cunho tão pessoal (e surreal). A família se sentiu atingida. Tão céticos quanto aterro-rizados eles foram confrontados, sem aviso ou preparação, com o surgimento de indícios sobre a localização de Joel depois de 40 anos de buscas. Sentiram sua dor desrespeitada. Enquanto Altair falava, acredito que eu a olhasse muito fixamente. Tentava captar a profundidade dos sentimentos exalados por cada uma de suas palavras e, de fato, me sentia hipnotizada. Atraída e atordoada por aquela história. De repente, ela olhou diretamente nos meus olhos e, como se eu transparecesse confusão ou como se ela precisasse se explicar, me disse: “décadas passadas não importam para uma dor que é nutrida a cada dia na família”. E completou: “durante anos, nos envolvemos em uma busca inglória, em que buscamos sem querer achar. Achar é se assegurar da morte. Quando, finalmente, chega uma notícia como esta, ela emociona e move toda a família”. Durante os anos de busca, eles haviam encontrado provas da prisão, mas este seria o primeiro documento a confirmar a morte de Joel. Aquilo que buscavam e não queriam encontrar.

Mesmo não podendo participar do dia a dia da organização, Altair assegurou que conta com o Grupo e o Grupo pode contar sempre com ela. Foi esse sentimento de compromisso e cuidado mútuo que a moveu instintivamente até os militantes assim que soube da notícia. O mesmo compromisso moveu Altair e Victória, agora juntas, até a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, onde surpreenderam-se, frustradas, ao saber que ali não havia nenhuma informação adicional sobre o caso. As notícias existentes eram apenas a de que a CNV ainda faria diligências e buscas nos livros do cemitério para obter a localização precisa do corpo de Joel. Mas, ainda naquela semana, antes que qualquer informação oficial chegasse, o Grupo foi procurado por uma jornalista que disse ter ido ao cemitério, encontrando, nos livros de registro, a localização exata da cova de Joel. Essa informação, contudo, não havia animado Altair. Ela pensava que muitos anos haviam passado e, certamente, se o irmão está no cemitério, deve ter sido enviado à vala comum. Seu destino não seria, portanto, separável do de outros corpos que, até hoje, restam sem identificação.

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A expressão de sentimentos de culpa em relação a não localização anterior desses registros foi inevitável. Cecília confessou que chorou e que tem se culpado muito por isso. Um clima pesado e triste se estabelecera. Como não encontraram essa informação antes? Em meio aos lamentos coletivos, Victória lembrou que, no passado, eles tiveram acesso aos livros do IML e não aos do cemitério. Mas, muitas vezes, o que explica não consola.

Somente após mais alguns dias Altair fora finalmente contatada pela CEMDP e convidada para uma reunião, em São Paulo, do Grupo de Trabalho Perus (criado para identificar as ossadas da vala paulista) junto com outros familiares, a Ministra dos Direitos Humanos e outras autoridades. Ela nos contara que lá, mais uma vez, a imprensa foi retirada da sala para que, entre eles, “ lavassem a roupa suja”. Entre outras questões postas por familiares, Altair se queixou de não ter sido procurada antes da divulgação pública das informações sobre seu irmão e da sua desagradável surpresa de ser informada pela televisão. Experiência que, inclusive, remete à época da Ditadura, quando muitos souberam da morte de seus familiares por notícias sobre “confrontos entre terroristas e a polícia”. Ao contrário das visões mais críticas do Grupo, Altair nos contara que vira positivamente esse encontro e os compromissos que teriam sido assumidos pessoalmente pela Ministra. Essa divergência de entendimento político de maneira nenhuma se tornou motivo de debates. Naquele dia, o importante era pensar formas de agir e fazer com que as responsabilidades de localizar e identificar o corpo de Joel fossem assumidas pelo Estado. Uma forma de incluí-lo no monumento também precisaria ser pensada.

Ao fim da reunião, João, Victória e Luíza me ofereceram uma carona. Nos despe-dimos de Altair e saímos da sede conversando sobre a tristeza e o desconserto daquela situação. Lamentar a dor de Altair passava também por transportar sua situação para outros exemplos que atestavam, multiplicando em casos e números, aquilo que todos concordamos ser uma falta de respeito com as famílias. Como conclusão, a certeza de que “ é assim que eles fazem com a gen-te”. Uma condição de vulnerabilidade é percebida como impressa diariamente em eventos que atualizam uma relação de opressão e desrespeito historicamente estruturada.

No caminho, seguimos conversando. Como em outros momentos, a conversa acabou migrando para o meu trabalho e o interesse em saber como eu pensava a situação. Falávamos mais uma vez sobre o cemitério e eu os lembrei do caso de Virgílio. Disse que toda essa articu-lação em relação à definição de quem são os “mortos e desaparecidos políticos” me parecia uma questão relevante a ser pensada. E que também me importava pensar ao que serviria mantê-los como um pequeno número de militantes individualmente buscados. Victória se interessou por essa ideia, lembrando-se dos casos de João Goulart e de JK, excluídos pela CNV da lista oficial. E outros nomes, como o de Ângelo Pezzutti, ex-preso político morto em um acidente de carro no exílio, também não reconhecido, mas reivindicado pelos familiares. Eu quis ampliar a pers-pectiva e falei dos indígenas e dos camponeses. Esse era um debate que estava muito acirrado naquele momento, pois a comissão entregara há apenas cinco dias o seu relatório final, após uma

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série de disputas em torno da confecção de sua lista oficial de nomes, conforme narrei anterior-mente. Concordamos que definir quem eram os “mortos e desaparecidos” era uma questão de critério, uma questão sobretudo política. Concordamos também que eu deveria escrever sobre isso. E foi o que eu fiz.197

Uma ausência que os habita

Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim (Carlos Drummond de Andrade, Ausência)

Essa foi a última reunião do Grupo da qual participei. A essa altura do texto, talvez o leitor já tenha esquecido, mas entre ela e a minha primeira reunião há um ponto em comum. Ambas foram marcadas pela presença de familiares que não participavam do cotidiano da organização. Familiares que recorreram ao apoio do Grupo por força de um acontecimento gestado no plano institucional, envolvendo ou capaz de envolver seus casos. Ao notá-lo, minha sensação era a de que esta reunião fechava, de certa maneira, meu ciclo de pesquisa. Nesse sentido, toda a cena narrada acima me pareceu interessante por congregar o conjunto de questões que elegi para descrever e analisar até aqui. Retomemos.

Pensados como comunidade forjada no sofrimento, os familiares viveriam em co-mum um cotidiano em que a ausência dos desaparecidos é presença constante. Para expor pu-blicamente sua dor, eles se organizaram e fizeram da ação coletiva uma forma de transformar o luto em luta, seu “problema de família” em “problema social”. O sucesso dessa empreitada (sucesso apenas relativo na opinião deles) se desdobra em um conjunto de relações e gestões tecidas junto à institucionalidade em torno das tarefas de reconhecer, reparar, cuidar e inves-tigar a questão dos “mortos e desaparecidos políticos”. De tanto remarcar publicamente suas ausências, os familiares foram determinantes para que delas fosse gerada uma questão pública.

197 Caderno de campo 4, 15/12/2014.

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A partir daí, uma complementariedade entre suas ações e as institucionais se estabelece. O que não significa que eles não possam ser eventualmente surpreendidos por ações e medidas insti-tucionais que os excedem, mesmo quando participam de gestões nas quais elas estão inseridas. Bem ou mal estruturadas, essas medidas nos falam justamente da crescente presença dos desa-parecidos na esfera pública. Como fonte de interesses coletivos, os casos vão saindo do domínio exclusivo dos familiares e vão sendo alimentados também por informações provenientes de outros meios, ora “oficiais”, ora “oficiosos”.

Nessa lida com as instituições, nasceram muitos sentimentos de suspeição, fundados principalmente na assimetria dessa relação. As suspeitas levam os familiares a buscarem forças entre seus iguais, junto à comunidade e às organizações consideradas representativas de seu mo-vimento reivindicativo. E, também no sentido contrário, faz com que as organizações busquem força e apoio nas famílias, mobilizando-as quando casos específicos parecem tocá-las. Dessa relação, nasce tanto a legitimidade da palavra das organizações, quanto uma série de responsa-bilidades. É, portanto, em meio às imbricações entre os familiares, os “mortos e desaparecidos” e o Estado que, conforme venho argumentando, o campo de atuação política dos familiares se funda, escorregando por entre as fronteiras que, usualmente, erigimos entre o público e o priva-do, entre o parentesco e a política. Desde uma trama feita de afetos, disputas, responsabilidades e muitos nós, como procurei discutir ao longo da tese. Trama desenhada de forma tão triste pela encenação dramática que enlaça Joel, Altair, o Grupo e o Estado.

Ainda que a cena viesse a confirmar tais reflexões, mais uma vez, preferi deixar que ela me tomasse por aquilo que também podia acrescentar. Naquele momento, eu vinha consi-derando os esforços pela transformação do “problema de família” em “problema social”, do luto em luta, lançando meu olhar para a dimensão mais espetacular e performática da atuação dos familiares e para as questões colocadas pela gestão pública do problema, conforme demonstra meu diálogo com os militantes ao final da reunião. Contudo, a atualização do caso Joel apareceu para me lembrar que se a questão chegou a ser “social”, ela nunca deixou de ser “familiar”. Esta foi uma recordação importante, porque, antes da reunião, quando eu vi as notícias sobre Joel nos jornais, me inteirando em seguida do que havia sido adquirido como informação nova sobre o caso, eu não lhe dei atenção. Julgando a notícia pelo viés das responsabilidades depositadas sobre a comissão e das demandas mais amplas do movimento, acreditei que aquela informação seria considerada insuficiente pelos militantes. Afinal de contas, por si só ela não levaria, como ainda não levou, à efetiva localização, exumação e identificação do corpo. Para tanto, seriam necessárias outras gestões. Daí minha surpresa ao chegar ao Grupo e me deparar com toda a mobilização que a notícia, já esquecida por mim, havia provocado. Percebi que, de um lado, eu havia desprezado a relevância assumida por qualquer dado novo quando falamos de casos que se fundam na incerteza, de outro, muito mais grave, eu havia desconsiderado o impacto emocional e afetivo sobre “uma dor que é nutrida cotidianamente na família”.

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Se a questão nunca deixou de ser “familiar”, da mesma maneira, a luta nunca colocou de lado o luto. A luta nasceu da coletivização do luto, mas não parece se mover no sentido de trazer superação no plano das subjetividades. Desde o meu convívio com os familiares, pude ver a luta não como uma forma de superar os sofrimentos, mas como uma lida. Uma das formas por eles encontradas para viver com a consciência desses sofrimentos, conforme argumentarei ao lon-go desse capítulo. Sendo assim, a luta não fala de esforços por encerrar as dores ou substituir as ausências, mas por assumi-las em sua densidade, tomando-as como caminho para a resistência. Se falo de sofrimentos no plural, é porque já me dediquei a mostrar seu desdobramento pelos di-versos laços que perfazem a relação do sobrevivente com o mundo.198 Para os que têm seus fami-liares desaparecidos, há os sofrimentos que nascem com a ausência. Presentes tanto na saudade, quanto no insulto moral de não poder cumprir obrigações e honrar os mortos. Há também os sofrimentos produzidos na relação com os “outros”, a sociedade envolvente e o Estado. Presentes nos ressentimentos e nos dilemas surgidos na busca por reconhecimento, bem como no não aces-so a uma série de bens tão materiais quanto morais, como os documentos, os túmulos, as ossadas e outros artefatos que constituem a Verdade. E, finalmente, há os sofrimentos referenciados nos laços que unem a própria comunidade. Presentes nos desentendimentos, nas frustrações, nas cul-pas e outros sentimentos decorrentes da exposição moral e afetiva dos familiares uns aos outros. Novas formas e motivações do sofrer são geradas na busca por reconhecimento de um sofrimento original que vai, assim, se desdobrando em outras relações e em novas temporalidades.

Sendo assim, a “dor nutrida diariamente” por Altair me instigou a pensar sobre como os desaparecidos estão presentes na vida cotidiana dos familiares. Pensá-los não apenas em ter-mos de ausência, e no desaparecido não apenas como símbolo do esfacelamento de uma vida anterior, mas também em termos do que essas ausências e esses desaparecidos são capazes de produzir. Se o sofrimento é aquilo que, aos olhos de todos, separa os familiares como comuni-dade e, ao mesmo tempo, é aquilo que demanda, justifica e legitima todo o aparato gestado em torno dos “mortos e desaparecidos”, é chegada a hora de considerar como os familiares definem essa dor que lhes seria própria e como a articulam com a luta. Dando continuidade a discussões já delineadas no capítulo 2, nessa seção, tecerei considerações sobre como os atores sociais (aqueles que de diferentes formas estão articulados ao movimento) se apropriam do sofrimento para pen-sar a si mesmos em sua relação com o mundo, elaborar sua militância, inscrevê-la nas arenas pú-blicas e, ao mesmo tempo, produzir e elaborar afetos como forma de resistência cotidiana. Qual a importância do sofrimento na identificação da comunidade e na elaboração de uma visão de si mesmos como parte dela? Aos seus olhos, o que faz de uma pessoa um “familiar” e vice-versa?

198 Nesse capítulo, ao falar de sobrevivente não me refiro exclusivamente aos atores sociais perseguidos, mas não mortos pela Ditadura, isto é, àqueles que permaneceram vivos após a experiência traumática, conforme o uso político mais comum do termo, cuja aplicação está, em geral, marcada entre aspas nesse texto. Refiro-me àqueles que possuem uma ligação fundamental com os mortos e desaparecidos (fami-liares e outros atores sociais) e que permanecem vivos após sua perda.

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Para tentar perseguir estas questões, me debruçarei sobre narrativas e trajetórias selecionadas em meio àquelas que tive contato ao longo da pesquisa. Com estas histórias, não desejo traçar um quadro representativo de quem são os familiares. Até porque disso não seria capaz. Para além de servir de base empírica para as reflexões propostas, penso que elas servem à abertura de nossas percepções, principalmente as dos leitores não tão familiarizados com o tema, para a variedade de dramas humanos que são encerrados quando se classificam sujeitos sociais distintos como “familiares de desaparecido”. Prezo a necessidade de ter em mente que a categoria usada para sustentar um importante conjunto de demandas, ao mesmo tempo, pode obliterar a heterogeneidade das experiências vividas. Sendo assim, sem a pretensão de esgotar tal variedade, desejo apenas abrir caminhos para apresentar e discutir aspectos do desaparecimento ainda não explorados nesse texto.

Vamos nos embrenhar em histórias atravessadas por dramas intensos que tanto atin-giriam uma trama de relações, quanto inauguraram novas, levando os familiares a se abrirem para novos mundos possíveis. São histórias sobre laços que a morte não desfaz e sobre vidas que ela en-trelaça. Histórias belas e tristes que nos falam sobre crueldade e solidariedade, sobre terror e afeto.

Beth e René

Em dezembro de 2012, acompanhei o “escracho” ao coronel reformado do Exército Lício Augusto Maciel, no Rio de Janeiro. Comandante de algumas das operações de combate à Guerrilha do Araguaia, o coronel foi denunciado judicialmente pelo MPF por responsabilidade no desaparecimento de guerrilheiros na região. Devido aos seus presumíveis conhecimentos de comandante, também foi chamado pela Juíza Federal Solange Salgado, durante a fase de execução de sentença do processo do Araguaia, para que indicasse a localização das ossadas de desaparecidos. Seus depoimentos nunca esclareceram essa informação.

O escracho foi organizado pelo Levante Popular da Juventude e reuniu militantes do GTNM/RJ, do Coletivo MVJ/RJ e da Articulação Estadual por MV J. Ao todo não mais que trinta militantes. Nos dirigimos em grupo à residência do militar, onde foi realizada uma atividade bastante rápida. Assim que chegaram ao local, os militantes fixaram nas grades do edifício uma grande faixa com os dizeres “torturador encontrado”, além de cartazes com sua foto sob os mes-mos dizeres. Fixaram também uma loga faixa com os nomes de todos os mortos na Guerrilha. A performance foi acompanhada por um carro de som, em que cerca de oito militantes projeta-ram suas vozes para denunciar os crimes cometido por Lício, nomeando suas vítimas e pedindo justiça. No momento de falar “pelo GTNM/RJ”, Victória denunciou-o como responsável direto pela morte de seu irmão e de seu pai, além de outros “companheiros”. Nomeando-os um a um, relatou, ainda que brevemente, todas as informações que possuía sobre suas mortes.

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Após as falas, foram cantadas músicas elaboradas para a ocasião, acompanhadas pelo som dos tambores de lata dos rapazes e moças do Levante. Além de atrair olhares surpresos e vi-zinhos constrangidos às janelas, a intervenção causou certo desespero no porteiro que, sem saber como agir, repetia insistentemente que Lício não estava em casa. De fato, o militar não apareceu. Parecendo não se importarem com isso, os militantes distribuíram panfletos aos transeuntes, prevenindo-os em relação à existência de um “torturador” na vizinhança. Vestidos especialmente para a manifestação, eles trajavam camisetas de suas próprias organizações. Uma das moças usava uma camiseta que reconheci como sendo confeccionada pela organização argentina H.I.J.O.S. que trazia os dizeres “ juicio y castigo” sob a imagem de um chapéu de general. Muitos outros traziam lenços vermelhos com dizeres sobre a Guerrilha cobrindo seus rostos. Victória e Beth, as duas militantes do Grupo presentes no ato, também vestiam camisetas especiais, sacadas de suas bolsas antes do início da intervenção. A de Victória, já descrita aqui, traz as fotografias de Maurício Grabois e Gilberto Olímpio, lado a lado. A de Beth, seu irmão, Luiz René Silveira e Silva.

Trinta minutos depois, a manifestação estava encerrada. Coletivamente, fomos nos distanciamos da casa do militar. Como de costume, caminhei junto à Victória e Beth, conver-sando sobre assuntos diversos. Em certo momento, fiquei a sós com Beth e, não sei ao certo como, começamos a falar sobre seu irmão. Apesar do tempo de convívio, este era um assunto sobre o qual nós duas nunca havíamos conversado. Eu apenas a ouvira falar a respeito em mani-festações públicas ou nas reuniões do Grupo. Isso não aconteceu somente com ela. É curioso que, para mim, sempre tenha parecido difícil mencionar o assunto. Havia sempre um constrangi-mento. Nesse dia, entretanto, a conversa começou muito naturalmente. Um resumo foi relatado da seguinte maneira no meu caderno de campo:

Beth estava usando uma camisa com a foto do irmão. Uma foto de René com apenas 14 anos, mas parece ter apenas 10. É a foto de uma criança! Perguntei se ela não tinha uma foto dele mais velho e ela me disse que não. O partido mandou que ele destruísse todas antes de ir para a guerrilha e foi o que ele fez. As outras fotos que ela possui são dele ainda mais novo. Sua mãe tentou conseguir uma foto mais recente nos registros da escola de medicina que ele cursava antes de partir. Mas, a polícia esteve no local e recolheu a fotografia de seus documentos. A única coisa que conseguiu foi uma fotografia de René aos 18 anos com os colegas de faculdade em um sítio. É uma foto em que ele está com um amigo, em preto e branco e pouco nítida. Ela tem tentado melhorá-la, mas a qualidade do original não permite muita coisa. Beth foi me falando sobre como era lidar com esse sofrimento, com essa ausência sempre presente. Uma presença fantasmagórica, como ela definiu. Sua mãe morreu na esperança de que René ainda pudesse voltar, talvez estivesse sem memória em algum lugar da Amazônia, em um hospital, em uma Vila, mas poderia um dia lembrar da vida que deixou para trás e ligar para casa, tentar voltar. Por isso, ela morreu sem mudar o número de telefone de casa. Beth, em respeito à mãe, ainda o mantém. A mãe se foi há 20 anos, em 1993, sem acreditar na morte do filho. Beth me diz que, pelo menos, ela foi poupada das histórias que vieram depois: de que René morrera atirado de um helicóptero; ou não, que sua cabe-

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ça teria sido cortada; ou ainda que seu corpo fora despedaçado; ou, a história mais fantástica de todas, que ele estaria vivo, trabalhando em um banco ou numa repartição pública, levando outra vida com outra família e outro nome. Nenhuma dessas notícias nunca foi confirmada. São boatos que acredita serem lançados pelos militares. Sua mágoa com o governo, com o Estado brasileiro, é que eles poderiam ter entregado esses corpos para que fossem enterrados dignamente, além de explicar às famílias como essas pessoas morreram. Senão durante a Ditadura, logo nos primeiros governos democráticos isso poderia ter sido feito. Para Beth, a única forma de viver com isso é pensar, como lhe disse sua filha um dia: “você tem que pensar que isso já passou. O sofrimento dele já foi. Já acabou. Ele agora é seu” (Caderno de campo 2, 10/12/12).

René e Beth nasceram no Rio de Janeiro. Seu pai era um militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como outros, perseguido no momento do Golpe. Anos mais tarde, os dois irmãos participaram do movimento estudantil e se tornaram, cada um a seu tempo, mi-litantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Quando foi decidida sua participação no mo-vimento de guerrilha organizado pelo partido, em 1971, René contava 19 anos. Ele abandonou a faculdade de medicina, destruiu suas fotografias e partiu dizendo apenas que ia para o campo. O destino certo era informação que ele próprio ignorava no momento da partida. Beth sabia apenas que o irmão se juntava à guerrilha rural do partido. Ela não foi. Ficou no Rio de Janeiro, onde o companheiro com quem vivia, um dirigente do partido, veio a ser preso e assassinado sob tortura, em 1973. Na entrevista que realizamos dias depois do “escracho”, ela me contou ter escapado à prisão apenas porque ele não falou à polícia sobre o “aparelho” onde moravam. René partiu em uma viagem sem volta. A opção pela guerrilha e a brutalidade da repressão exigiam um rompimento tão radical com sua vida anterior que suprimiu até mesmo suas imagens do convívio familiar. Como símbolo do desaparecimento de seu corpo, a repressão sumiu também com a última possibilidade da mãe obter uma boa foto do rosto de seu filho jovem. O desapare-cimento, contudo, não cortaria os laços de afetos, nem apagaria a memória de sua ausência. René levou consigo os pensamentos e os sentimentos de cuidado da família.

As únicas informações recebidas após a partida vieram do companheiro de Beth. Antes de morrer, ele contou a localização da guerrilha e também que os guerrilheiros estavam sendo combatidos pelo Exército. A chegada de notícias sobre prisões e mortes foram sendo blo-queadas à medida que o avanço do cerco militar os isolava na selva.199 Com a morte do compa-

199 Os militantes começaram a se instalar na região em 1966, mas sua presença só foi identificada mais tarde. A repressão teve início em 1972 e terminou em 1974. Foram mobilizados cerca de 7 mil milita-res para reprimir uma guerrilha composta por 70 membros divididos em três destacamentos. A partir do início do cerco, as comunicações entre os guerrilheiros e o partido foram se tornando mais difíceis, dificultando também a comunicação com as famílias. No início da repressão foram capturados alguns guerrilheiros, cujas vidas foram poupadas, mas nas últimas campanhas a regra se tornou a eliminação. Entre os sobreviventes esteve Ângelo Arroyo. O dirigente do partido, que conseguiu deixar a região em janeiro de 1974, escreveu o chamado “Relatório Arroyo”, durante anos única fonte escrita de informa-ções sobre as mortes. Todavia, ele foi morto em 1976, no episódio conhecido como Chacina da Lapa.

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nheiro, Beth também ficou isolada do partido por cerca de dois anos e, consequentemente, da única forma de obter notícias sobre o irmão.200 Isso porque o tema Araguaia estavam censurado na imprensa. A censura durou até 1978. No entanto, nos anos seguintes, a Ditadura seguiu sus-tentando que a guerrilha “nunca existiu”. Sem notícias de nenhuma parte, os familiares temiam verbalizar denúncias que pudessem chamar a atenção das forças de segurança. Sobre o mistério quanto ao destino dos guerrilheiros pairava um enorme medo de que qualquer denúncia atuas-se, de alguma maneira, contra a segurança daqueles que os familiares queriam proteger. Nesse momento, portanto, o silêncio sobre o episódio veio de todas as partes e as buscas, quando feitas, eram discretas. Beth relata que mesmo para o restante de sua família a ausência do irmão era en-volta em segredo. Para eles, René teria ido estudar em Brasília e mandava notícias com frequên-cia. Beth diz que esse movimento de fechamento das famílias sobre si mesmas seria extremamen-te cruel, porque levou os familiares a se penitenciarem pelo resto de suas vidas por não terem feito algo antes. Ou seja, tomar para si uma culpa que não lhes pertencia. Sentimento muito mais forte nos pais e mães que teriam sempre a sensação de dever e de poder proteger os filhos. Essa difi-culdade de aceitar a impotência frente ao arbítrio faria parte do sofrimento dos pais e das mães.

Esse ambiente de medo e silêncio só vai se desfazendo em meio à coletivização da busca, movimento que, por sinal, é parte dos processos que levaram ao fim do próprio regime, conforme vimos anteriormente. Beth explica:

As pessoas ficavam meio apavoradas de botar a boca no trombone e aí... Só mesmo quando começa a se organizar em termos de Comitês pela Anistia, as pessoas visitarem as pessoas na prisão e se darem conta de... se encontrarem, né? As famílias que visitava fulano e aí tinha a informação de que junto com fulano estava beltrano e sicrano. Elas traziam isso para que você pudesse ter certeza que fulano tá preso. E aí: fulano morreu? Onde tá fulano? Pra você começar a sacar que esse pessoal [os desaparecidos] não estava em lugar ne-nhum. Esses não estavam em lugar nenhum! Ainda assim, ainda tinha aquela esperança de que eles pudessem ter saído do país, pela mata e tal. Poder podia tudo, né? Depende da sua fantasia e da sua vontade de acreditar. Muita gente acreditou nisso. Pai e mãe acreditou mesmo que isso era possível. Pai e mãe acredita em tudo que... acredita em papai-noel nessa hora! Acredita em tudo!

200 Lembrando que as organizações políticas atuavam clandestinamente de forma compartimentada. Grupos de militantes eram separados e entravam em contato através de encontros chamados “pontos”. Era uma forma de tentar minimizar as prisões, quando os militantes eram submetidos a interrogatórios mediante tortura, diminuin-do as possibilidades de que conseguissem reter informações sobre a organização. Não sem motivo, muitas prisões foram feitas justamente em “pontos”, aos quais a polícia muitas vezes levava um militante que havia sido preso (no caso dessa informação não ter chegado à organização) para tentar prender aquele com quem iria se encontrar. Muitas vezes, acontecia de militantes perderem o contato com um elo do partido e assim ficarem isolados da or-ganização durante períodos mais ou menos longos. Era comum que militantes da mesma organização sequer se conhecessem ou que se conhecessem como militantes, mas não soubessem os nomes de batismo e as histórias de vida uns dos outros. Por outro lado, outros tantos se conheciam de uma militância legal pregressa nos movimen-tos estudantil e sindical, de modo que as “medidas de segurança” adotadas em peso pelas organizações políticas clandestinas depois do AI-5 encontraram algumas dificuldades.

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Esperança é a última que morre! Só em 79, quando vem a Lei de Anistia e aí quem tá fora podia entrar e aí cai a ficha mesmo. Começa a cair a ficha de que esse pessoal não está em nenhum lugar. E aí começa um processo longo... difícil... de negação, negação, negação o tempo inteiro. Nega! Nega! Nega! E nessa necessidade de buscar e se fortalecer é que a gente vai se agrupando (En-trevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 dezembro de 2013).

Com a Anistia e o começo da Abertura, informações começam a ser colhidas com mais liberdade entre os presos, os sobreviventes e as famílias. Os poucos militantes da guerrilha que sobreviveram também puderam falar mais abertamente. Nesse contexto, há inclusive um encontro entre a militante que levava os guerrilheiros até a região, por sorte uma sobrevivente, e as diversas famílias de militantes do PCdoB que não tinham certeza sobre a presença de seus parentes na guerrilha. Essas famílias levaram fotos para que a sobrevivente reconhecesse e con-firmasse a presença de cada um. Luiz René (Beth já sabia) foi reconhecido. Ele era o guerrilheiro Duda. A possibilidade de reunir informações sobre as perseguições e o progressivo retorno dos exilados e dos clandestinos vão tornando mais remota a sobrevivência dos que, todavia, não apa-reciam. Somente então é que a morte dos guerrilheiros do Araguaia vai tomando contornos de realidade, processo no qual a passagem do tempo é determinante. Segundo Beth, nesse tempo ainda existia esperança na sobrevivência. Um tempo de “negação da realidade”, cujo enfrenta-mento passará pelo agrupamento e o fortalecimento mútuo entre familiares.

Mas que realidade é esta que está sendo buscada ou sendo negada? As histórias da Guerrilha do Araguaia – contadas pelos sobreviventes em um primeiro momento, depois pelos moradores da região às famílias que participaram da caravana de 1980 e, finalmente, por mi-litares e “mateiros” – são talvez os exemplos mais extremos do caráter fantástico das narrativas sobre a militância e a repressão durante a Ditadura. Aqueles jovens isolados na selva, enfren-tando um exército com poucas armas e muitos sonhos, têm sido desde então personagens que provocam estranhamento e fascínio. Movimentam histórias que falam de esperança e de horror. Na região, eles inspiram até hoje narrativas sobre seu “encantamento”. Camponeses contam que eles se transformavam em animais, desviavam-se de balas e ficavam invisíveis aos militares. Muitas dessas histórias, mesmo quando mencionadas em documentos oficiais, como o inquérito realizado pelo MPF em 2001, ou o processo movido pelo órgão contra Lício Maciel, foram sempre tratadas como fantasiosas. No entanto, as narrativas sobre a violência levada adiante pelas denúncias não parecem menos deslocadas daquilo que tomamos como razoável, que acei-tamos ou desejamos aceitar como congruentes com o real. Não são menos capazes, portanto, de despertar o ceticismo. Elas atestam o uso de napalm em bombardeios do Exército; a construção de campos de concentração com um controle brutal sobre a movimentação dos camponeses através de “guias de marcha”; o recrutamento violento de indígenas para “caçar” guerrilheiros; indescritíveis torturas e o uso de violência generalizada contra a população; o decepamento de mãos e cabeças de guerrilheiros e, finalmente, o desaparecimento de pelo menos 70 corpos que

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teriam sido incinerados, jogados de helicópteros nos rios, abandonados insepultos na floresta, desmembrados e, na hipótese mais digna, enterrados em covas rasas nos locais de tortura, ou como indigentes nos cemitérios da região.

A realidade buscada pelos familiares é composta por histórias fantásticas. Não por-que elas não tenham ocorrido, mas pelo mistério e, sobretudo, a violência excessiva que as en-volve. São narrativas elaboradas no limite entre aquilo que podemos distinguir como ficção e realidade. Ou que forçam esse limite ao esgarçamento. No dizer de Taussig (1993), narrativas como estas podem ser percebidas como “ forças sociais fantasmagóricas”. Em cenários de extrema brutalidade, espaços de morte como denomina o autor, essas forças elaboram e dão lugar a verda-deiras culturas do terror. Em que os mistérios, as fantasias e os medos gerados em torno da vio-lência vão sendo tecidos pelos silêncios e rumores em uma realidade surreal. Em suas palavras, são tecidos em “uma densa rede de realismo mágico” (TAUSSIG, 1993: 138). Como bem destaca o autor, isso ocorre porque nas sociedades dominadas pela cultura do terror a distinção entre rea-lidade e fantasia deixa de ser apenas um problema filosófico para se tornar um instrumento de poder. Absolutamente efetivo em termos de controle das populações porque provoca, na mesma medida, ceticismo e terror.

É frequente que, nas tentativas de se comunicar com o outro, as narrativas de so-breviventes de experiências limite se enfrentem com seu próprio aspecto fantasmagórico. Em Os sobreviventes e os afogados, Primo Levi (2004) inicia sua reflexão justamente argumentando que as primeiras notícias sobre o extermínio nazista “vagas, mas convergentes entre si” desenhavam um quadro de tamanha crueldade que “o público tendia a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo” (Op. Cit.:9). Esse bloqueio seria inclusive fantasiado por muitos sobreviventes em sonhos durante os quais, uma vez livres, chegavam aos seus lares e, ao contarem com paixão a experiência vivida a entes queridos, recebiam de volta a mais profunda indiferença. Para o autor, os perpetradores e as vítimas dividiam essa consciência do insondável. Os primeiros contavam com isso para levar o extermínio adiante, enquanto uma parte das vítimas sentia que precisava enfrentá-lo. Romper os silêncios, enfrentar os medos e revelar o terror para afastar a recorrência futura de novos pe-rigos – se não são as únicas, como nos mostra Veena Das – são algumas das formas pelas quais os sobreviventes atravessarão os espaços de morte e farão deles espaços de transformação, como argumenta Taussig (1993).201 Com o rompimento do silêncio dizem se comprometer, não apenas Primo Levi, mas sobreviventes em toda a parte. Como nos mostra Taussig (Op. Cit.), essa vonta-de de comunicar e obter reconhecimento se insere em um movimento mais amplo de construção de contra-discursos. Sejam eles relatórios comprometidos em descrever fatos e encontrar a racio-nalidade por trás do terror, sejam narrativas que enveredam pelo ficcional e/ou pela experiência

201 Em bela e inspiradora passagem, o autor diz: “O espaço da morte é preponderantemente um espaço de transformação: através da experiência da morte, vida; através do medo, o esfacelamento do eu e a conformação com a nova realidade; através do mal, o bem.” (TAUSSIG, 1993: 136).

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subjetiva. Como bem argumenta o autor, os espaços de morte deram origem a uma rica e longa cul-tura que, transitando por entre essas diferentes formas de narrar, nos lançam um questionamento fundamental: que “tipo de entendimento – que tipo de discurso, escrita e construção de significado por qualquer meio – pode lidar com eles e subvertê-los?” (TAUSSIG, 1993:139). Comunicar a dor, lidar com o terror e subvertê-lo são precisamente as questões que assombram os familiares.

Fantasmagórica também é a palavra escolhida por Beth para me falar a respeito de seu irmão desaparecido. Certamente, essa escolha não se dá ao acaso. Além da evidente referên-cia ao morto que se recusa a deixar a presença dos vivos, o termo traz em si as noções de assombro e afastamento do real. Nas buscas levadas adiante pelas famílias e pelo MPF, testemunhas ocu-lares ou “por ouvir dizer” apontaram situações díspares sobre seu irmão. Em comum, atestavam a prisão de Duda (não de René) com vida e também sua morte, mas em lugares distintos e de maneiras diferentes. O mistério que cerca a morte de Duda (que também remonta à própria duplicidade de René) contribui para fornecer à realidade buscada um caráter irremediavelmente absurdo. Nem vivo, nem comprovadamente morto, uma morte sem prova, sem circunstâncias, sem corpo e, portanto, inconclusa (CATELA, 2001). Por ele, a mãe esperou até o dia de sua mor-te. Em razão dele, Beth segue mantendo o mesmo número de telefone de 40 anos atrás. Com o passar dos anos, novas testemunhas vieram a público assegurar que ele morreu de várias novas e cruéis possibilidades, mas também que ele está vivo, tocando uma vida ordinária em uma reparti-ção pública, depois de ter se salvado delatando seus companheiros ao inimigo. Uma hipótese que, sendo a mais próxima de algo que gostaríamos de aceitar como real, a sobrevivência, é também a mais absurda e ofensiva de todas. Entre as notícias, que Beth amargamente coleciona e guarda em recortes de jornais, esta é a de maior crueldade. Sempre que fala disso, Beth expõe em ges-tos, tons e palavras o quanto se sente aviltada, afirmando sempre que “René tem família! Ele nos avisaria se estivesse vivo!”. Se nos deixarmos enredar por tantas possibilidades, como os familiares devem ter sido tentados a fazer em diferentes momentos, aquelas imaginadas pela mãe, em que o filho escaparia vivo, mas dignamente, não pareceria nem mais nem menos absurda.

Com isso, creio que dei algumas mostras do ambiente de surrealismo ao qual os fa-miliares parecem submersos pela cultura do terror. René segue presente na vida da família como reino de incertezas, fontes de histórias que os habitam, desafiando suas “ fantasias e vontades de acreditar”. Presença fantasmagórica, portanto, porque fonte de uma inquietude ambígua que move uma busca por realidade e domesticação da experiência, ao mesmo tempo em que nos impele a nutrir o absurdo. Tal como na família de Joel e o absurdo de buscar o que não se quer encontrar, ou meu absurdo constrangimento em perguntar sobre um assunto vivido pelos fami-liares todos os dias.

Refletindo sobre esse meu sentimento, percebi que, muitas vezes, a ausência de escuta e acolhimento pode significar um agravamento da percepção de isolamento dos familiares em um mundo de absurdos. Um mundo que parece surreal aos que dele não compartilham. Algo que

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me fez recordar uma fala do filme Que bom te ver viva!, de Lúcia Murat, em que a personagem acusa “os outros” – os não sobreviventes e os que não viveram as violências da Ditadura – de con-siderá-los “não humanos” e de pensá-los como diferentes “só pra fingir que nunca vão estar no lugar da gente” (1989: 8 minutos). E foi com palavras nesse sentido que Beth encerrou nossa entrevista:

Precisa desmistificar isso. E a gente só desmistifica, quando apresenta um fato concreto. Todo mundo fica com muita pena: “como é que sua mãe teve um fi-lho assim?”. E não se dão conta muito bem disso não, do que significou você.... primeiro que a minha mãe dizia assim: “não, se acham que ele fez alguma coisa errado, prendam ele. Julguem ele. Prendam”. Até aceita que prendam. É alguma regra. Mesmo que você não concorde, é uma regra. É isso. Mas, perdeu-se as regras todas, aí é uma loucura. E aí, eu tô aonde? As pessoas não se dão conta disso. Não se dão conta. Esse sentimento [de indiferença] na população é uma coisa muito séria, porque isso é um aval pra tudo. Quando eu digo que isso é uma luta longa, é que interiorizar a morte do meu irmão, o desaparecimento dele já tá interiorizado. Já tenho. Como morreu meu pai, morreu minha mãe, ele morreu... novo... isso já tá interiorizado. O que não está interiorizado é a revolta da forma como foi feito, disso perdurar e poder acontecer a qualquer momento com qualquer um de nós. Qualquer um de nós que eu digo é qualquer vivente. O que não tá internalizado é isso, é o senti-mento de revolta frente a gente não ter essa história esclarecida. É outra coisa. Em 40 anos, você sabe que... como todo mundo que morre, a gente sente saudade, essas coisas que todo mundo que morre, independente se é violento ou não. Não é essa a questão, a questão é mais séria. A questão é isso. O que faz com que as pessoas permaneçam nessa busca, porque é uma coisa que você não acredita que tenha acontecido ou que possa ter acontecido e que fique por nada. Que o tempo passe e fique por nada e possa se eternizar em outras si-tuações semelhantes. É o que dá mais medo, imaginar que alguém possa fazer isso tudo de novo numa boa (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 dezembro de 2013).

O discurso de Beth reflete um posicionamento político compartilhado no Grupo e que deriva na firme certeza de que o não enfrentamento da violência do passado se reflete na continuidade da prática de desaparecimento por parte do Estado no presente. Mas Beth tam-bém fala de sua experiência subjetiva como familiar, mostrando-nos que os dois campos estão, ademais, imbricados. Em sua experiência familiar, houve um período de negação da morte de René, relacionado à própria incapacidade de confirmá-la pela ausência do corpo. Contudo, o trabalho do tempo, atuando sobre a produção de conhecimentos por parte do movimento de familiares (a construção dos casos), criou condições para que a morte fosse percebida, aos poucos e pela maior parte dos familiares, como a única possibilidade. Resultado de processos de classificação e estabilização das indefinições criadas pelo desaparecimento que, no Brasil, diferentemente do caso argentino, como já vimos, passou pela associação do fenômeno com a morte. Do ponto de vista subjetivo, Beth denomina o processo como uma “interiorização da morte”. E é com relativa tranquilidade que a vemos considerar a esperança nutrida por sua mãe como uma “negação da realidade”.

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Contudo, se a morte pode ser interiorizada, Beth também adverte que o tempo não pode operar a “interiorização” do absurdo. E é o absurdo que, para os familiares, torna sua perda distinta de outras existentes. A revolta, absolutamente marcante em sua fala, nos remete à discussão de Catela (2001) sobre o desaparecimento como fenômeno que rompe com a possi-bilidade de encarar a morte com o distanciamento próprio das representações ocidentais acerca deste fenômeno. Distanciamento que Koury (2014) também identificou como sendo uma marca das posturas contemporâneas em relação à morte no Brasil. Considerando a morte como uma transição de status dentro da comunidade, uma exclusão do mundo dos vivos e integração no dos mortos, conforme a acepção de Hertz (1960), a implicação do grupo social do morto em um conjunto de obrigações morais e rituais para operar tal transição ganha centralidade nas elaborações da Catela sobre o desaparecimento. Na argumentação da autora, os rituais funerá-rios, geralmente articulados em torno do corpo e do túmulo, seriam capazes de provocar uma intensificação dos sentimentos e dos estados corporais, concentrando-os em um tempo-espaço muito denso, em que a morte e a dor são comunicadas publicamente e recebem reconhecimento social daqueles que não se sentem por ela diretamente atingidos. Trata-se do período de luto. Com o desaparecimento, esse processo se esfacela, pois a interdição dos ritos faz dispersar os sentimentos, misturando tais obrigações à vida cotidiana dos sobreviventes de modo a dilatar o tempo-espaço da dor.

Também pude observar em campo a importância dos rituais (ou de sua interdição). Seja porque a ausência de corpo é, de fato, percebida como a maior responsável por gerar in-certeza sobre a morte; porque a falta de túmulo priva os familiares de um espaço considerado apropriado para o corpo e para as homenagens, por vários deles fervorosamente desejado; seja, finalmente, porque a privação de determinadas referências comuns, como o próprio momento da morte, gera descompassos entre os membros da família que decidiriam, às vezes individualmen-te, quando “interiorizaram” a perda comum.202 Enfim, porque a não realização dos rituais man-tém em suspenso essas e outras obrigações, dificultando a domesticação da morte pelos vivos e a pacificação dos mortos, com sua definitiva “passagem” para seu mundo (VAN GENNEP, 1969; HERTZ, 1960). Daí também que eles sejam referidos como presenças fantasmagóricas.203

Seguindo esta linha reflexiva, Catela (Op. Cit.) faz um belo esforço no sentido de mapear a construção de espaços, práticas e símbolos pelos familiares argentinos em torno do

202 Por ocasião da sanção da Lei que cria a CNV, Vera Paiva, filha do ex-deputado desaparecido Rubens Paiva, concedeu uma entrevista, bastante divulgada à época, em que contou como apenas recentemente, em conversas familiares íntimas, os diferentes membros da família descobriram que, cada um em seu momento próprio, teve de decidir quando o pai teria morrido. Isto é, quando cada um pôde aceitar “in-ternamente”, como disse Beth, a morte de Rubens Paiva como um fato consumado.

203 Não se trata de uma percepção apenas de Beth. No livro K, por exemplo, Bernardo Kucinski faz referência ao carteiro que leva as cartas à sua irmã desaparecida como um Dybbuk, a alma insatisfeita que atormenta os vivos segundo a mitologia judaica.

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desaparecimento. Processos que constituiriam formas rituais alternativas, substitutivas dos cor-pos e das sepulturas como locais de cultuar, lamentar e honrar os desaparecidos. Segundo ela, o período de realização das obrigações e expressão dos sentimentos morais, que denomina período de luto, deveria ser uma transição, um período de liminaridade que precisaria ser concluído, mas que permanece em aberto pela ausência do corpo. De fato, a aflição prolongada dos familiares de desaparecidos não nos permite ligá-los aos processos de superação e “cura” associados por Catela aos ritos funerários. Contudo, além de entender, como Rosaldo (2004), que tais rituais são apenas uma parte dos processos a partir dos quais qualquer morte é domesticada, creio que sua impossi-bilidade não interdita o luto, nem o resolve somente pela criação de rituais alternativos, mas tam-bém em processos desenvolvidos em ambientes e configurações mais espontâneas e cotidianas.204

O luto diz respeito tanto aos laços existentes entre o ausente e os que sofrem a au-sência, laços que não podem ser desfeitos pela morte, quanto às relações entre a comunidade moral forjada em torno da perda, e, finalmente, entre esta comunidade e aqueles que dela to-mam conhecimento. Entre os enlutados, os laços afetivos da família e da comunidade podem fornecer os meios para que as ausências sejam “internalizadas” (consumidas, incorporadas) em um trabalho cotidiano do tempo, conforme argumenta Veena Das (Op. Cit.). Parece ser isso o que nos diz Beth. Nesse longo e arrastado processo de quarenta anos, seu afeto foi suporte para o envolvimento de sua mãe na luta. Fortalecendo-a, inclusive, com seu compromisso em assumir a luta materna após sua morte. Algo que, de certa maneira dificultou a integração de Beth em outros projetos de militância que lhe interessavam. Nesse sentido, exige-lhe alguns sacrifícios. A mesma relação parece se desdobrar hoje entre Beth e sua filha, que agora lhe fortalece e consola.

Comprometendo todo o círculo familiar, o sofrimento imaginado da morte de René é incorporado nestas relações sociais, uma evidência de como os laços e os afetos não apenas nos constituem enquanto sujeitos sociais, mas também nos despossuem (BUTLER, 2009). Conforme

204 Não estou afirmando que Catela teria desacordo com tal entendimento. Apenas destaco a centrali-dade dada pela autora à relação entre os ritos funerários e os processos de domesticação social da morte, na esteira de autores como Hertz (1960) e Van Gennep (1969). Para ambos os autores, o conjunto de atos que cercam os funerais são ritos de transição, exclusão ou separação do morto em relação a seu grupo social. Eles conformariam um período especial e transitório ao longo do qual o morto e os enlutados constituiriam um grupo social em uma situação de liminaridade, entre o mundo dos vivos e dos mortos. O conjunto de processos rituais então desencadeados seriam responsáveis por permitir que uns retornem e outros completem a viajem para seu próprio mundo. Para Van Gennep, esse processo representaria, in-clusive, um progressivo encerramento das relações sociais entre vivos e mortos. Frente a estas reflexões, concordo com a crítica de Renato Rosaldo quanto a isto que parece ser uma justaposição entre os rituais e o luto. Algo que me parece marcado nos três autores. Para Rosaldo, “rituais servem como veículos para processos que ocorrem antes e depois do período de sua performance. Rituais funerários, por exemplo, não contém todo o complexo processo de luto. Ritual e luto não deveriam ser tomados um pelo outro porque eles nem encapsu-lam nem explicam completamente um ao outro” (2004: 176). Dessa forma, os rituais funerários deveriam ser vistos como um dos passos (rituais e cotidianos) que envolvem o luto. Algo semelhante diz Favret-Saada (2005) sobre os rituais de desenfeitiçamento.

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argumenta Butler, o sofrimento pode se tornar uma forma de adquirir consciência de nossa cor-relatividade e de como ela nos torna vulneráveis uns aos outros. O sofrimento de René não é do tipo que possa ter fim. Não pode ser esquecido ou considerado desaparecido com ele. Não opera pela lógica “ele morreu e, portanto, acabou”. Não! Beth não pode viver negando esse sofrimen-to, apenas assumindo-o, ela mesma, em vida. O sofrimento dele acabou apenas porque agora é seu. Seu luto não é um processo de apaziguamento da dor, mas de uma tomada de consciência profunda a partir de seu compartilhamento. Algo que Beth diz ser central para sua “internali-zação da morte”. À medida que o desaparecimento se desdobra em sua militância, suas relações afetivas e de fortalecimento mútuo com a família e os companheiros de luta, o cotidiano se torna o tempo e o espaço de nutrir o sofrimento e de identificar-se com ele.

Em contraposição a isso, contudo, todo o processo se estabelece em relação a uma sociedade que, não apenas não cultiva uma memória da Ditadura, como os familiares acusam, mas também que vem construindo um distanciamento cada vez maior em relação à morte e aos sofrimentos que ela provoca. Como argumenta Koury (2014), no Brasil contemporâneo, a vivência do luto gera constrangimentos, por ser vista cada vez mais como algo que deve ser travado no plano subjetivo ou das relações íntimas, gerando, por um lado, pudores e descon-fortos naqueles que não se sentem diretamente parte desse processo e, por outro, maiores sofrimentos entre aqueles que tem expectativa de ver seu luto reconhecido. Ter sua tristeza, de certa forma, autorizada pela sociedade.

Tendo em vista estas questões, creio que a não naturalidade da morte nos casos de desaparecimento não derive somente da interdição de ritos que, por si só, pacificariam a nova situação entre vivos e mortos. A não naturalidade está nessa consciência do absurdo que nasce dessa “ identificação com o sofrimento mesmo” (Butler, 2009: 57) e de sua transformação em uma forma de conhecer a realidade, revelando a vulnerabilidade a qual estamos submetidos “quais-quer seres viventes”, como disse Beth. Ao mesmo tempo, percebi que o absurdo também está na atribuição de um caráter fantástico às suas experiências, na medida em que esta postura nega uma das percepções que se torna mais cara aos familiares: essa descoberta da nossa vulnerabi-lidade comum. Percepção construída tanto por meio da razão, quanto da emoção. Negar essa vulnerabilidade seria, como apontou Beth, uma forma de mistificação dos sujeitos, capaz de lhes retirar a humanidade, contribuindo para que o desaparecimento se eternize nessas e em outras situações. O absurdo está, portanto, não somente no sofrimento gerado pelo desaparecimento em si, mas nas possibilidades de comunicação e reconhecimento, que nos falam da construção de comunidades políticas e morais em torno do sofrimento.

Na convivência com os familiares, aprendi que há pessoas a tal ponto comprome-tidas com o sofrimento que, para elas, o absurdo pode ser cotidiano e vice-versa. Algo que eu sentia a cada vez que ouvia Beth falar. O tom permanentemente indignado de sua fala, mesmo após 40 anos da perda de seu irmão, sempre me comoveu e me provocou, me fazendo questionar

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até que ponto algo como o desaparecimento pode ser superado, ou mesmo ser compreendido de outra forma que não pelo sofrimento. Nutrir o sofrimento e o sentido do absurdo tornando-os cotidianos me pareceu, então, fundamental para que alguma “internalização” pudesse operar com o tempo. Algo como a compreensão de que seus parentes nunca voltarão por terem sido vítimas de mortes que, por outro lado, jamais poderão ser vistas como naturais.

Desejando avançar, retenho-me apenas para citar as belas palavras de Walter Benjamin, em um trecho de seu ensaio sobre o surrealismo, cuja validade para pensar o terror chamou a atenção de Taussig (1993). Como ele, concordo com Benjamin quando o autor diz que:

Em verdade, não nos levará muito longe sublinhar patética ou fanaticamente o lado enigmático do enigmático; penetramos muito mais o mistério, na medida em que o redescobrimos no cotidiano, por força de uma ótica dialética que intui o cotidiano como impenetrável, e o impenetrável como cotidiano (BENJAMIN, 1986: 113)

Tentemos, então, através de mais algumas histórias, descobrir como os familiares deixam que aquilo que nos parece absurdo e impenetrável lhes penetre o cotidiano.

Iara, Alex, Iuri e Arnaldo

Iara Xavier Pereira vive em Brasília e é militante da Comissão de Familiares. Carioca, “nascida e criada na Zona Sul”. Filha de classe média. Seus pais eram militantes e se conheceram no PCB. Envolvida desde pequena na esfera da militância partidária, conheceu e recebeu em sua casa “figuras lendárias do Partido”, como Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra e Mário Alves. Suas memórias de Carlos Marighella, o “inimigo número um da Ditadura”, que viria a ser seu dirigente mais tarde na Ação Libertadora Nacional (ALN), se mesclam às memórias afetivas de sua infância.

Iara tinha doze anos de idade quando se sentiu ameaçada pela primeira vez pela conjuntura política do país. O Golpe obrigou toda a sua família a se esconder das perseguições que, naquele momento, atingiram sindicalistas e militantes das esquerdas. Separaram-se por entre diferentes casas de amigos. Ela conta que, como caçula, tinha uma relação muito afetiva e de proteção com seus irmãos mais velhos, Alex e Iuri. O primeiro, o filho do meio, era expansi-vo, carinhoso e carismático. O segundo, o mais velho, era introspectivo e estudioso. Ainda que os tivesse separado momentaneamente, a militância seria percebida por Iara como um dos laços afetivos e de cumplicidade que uniam a família.

Passados os primeiros momentos mais tensos do Golpe, a família pôde se reunir novamente. Iara viveu no Rio de Janeiro uma adolescência em que a participação no movimento estudantil e a militância partidária foram passos “naturais”, parte de seu convívio familiar com seus pais e seus irmãos mais velhos, que também ingressaram no PCB, como o calor dos acon-tecimentos do país parecia impor. Ainda muito nova, ela só ingressaria na militância partidária

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mais tarde, após sua família participar do movimento de militantes que deixaram o PCB para formar a ALN. Sua entrada nessa organização foi “quase sem perceber”. Em meio aos afazeres cotidianos e relações afetivas da família, ela passou a ajudar sua mãe nas atividades de apoio e infraestrutura às ações do grupo coordenado pelo amigo Marighella. Com o AI-5, a família precisaria entrar na clandestinidade, fazendo com que sua militância amadurecesse e se inten-sificasse muito rapidamente. Iara, como seus irmãos, decidiu ir para Cuba fazer treinamento de guerrilha. A saída dos irmãos coincide com o momento em que Marighella é assassinado e a ALN passa a sofrer um cerco cada vez mais intenso da repressão. Iara veria seus companheiros de militância na ALN, jovens que, como ela, tinham cerca de vinte anos à época, serem mortos sucessivamente. Envoltos por um terrível ciclo de prisões e mortes ao qual ela assistiu impotente e do qual se considera uma “sobrevivente”.

De Cuba, é sua própria mãe quem prepara as voltas dos dois filhos mais velhos, treinados para formar os grupos armados da ALN. Quando a mãe retorna, é presa e torturada, mas sobrevive. Iara volta ao Brasil um pouco depois, em 1971, após treinamentos não milita-res, vetados para ela devido a problemas na coluna. É na organização, vivendo em regime de clandestinidade, que voltará a conviver com seus dois irmãos. Mas, isso duraria apenas um ano. Alex e Iuri seriam mortos em 1972. É durante esse curto período que Alex, atuando como ir-mão protetor que não gostava do namorado de Iara à época, apresentou-a a Arnaldo Cardoso Rocha, um militante da ALN de quem ele gostava muito. Em pouco tempo, Iara passaria a viver com Arnaldo. Também apenas por um curto espaço de tempo, mas suficiente para que o casal engravidasse. Morto em 1973, Arnaldo não veria o nascimento do filho que havia desejado imensamente. Apesar de todos os perigos, foi ele quem convenceu Iara a ter um filho, dizendo se recusar a deixar que a repressão dissesse como deviam conduzir suas vidas.

Iara esteve com Alex, Iuri e Arnaldo nos dias de suas mortes. Com Alex, esteve mi-nutos antes dele sair com outro militante, Gelson Reicher, para “cobrir um ponto”. Eles sairam para nunca mais voltar. As mortes dos dois jovens foram divulgadas pelos jornais como troca de tiros com agentes policiais. Seus corpos foram enterrados como indigentes sob nomes falsos no cemitério de Perus. Apenas a família de Gelson conseguiu recuperar o corpo naquele momento. A família de Iara, talvez porque estivesse toda clandestina, não teve a mesma sorte.

A morte de Alex foi em março. Três meses depois, seria a vez de Iuri. Morto no episódio que ficou conhecido como “cerco ao restaurante Varella”. Após almoçar com ou-tros três militantes – Ana Maria Nancinovic, Marcos Nonato da Fonseca e Antônio Carlos Bicalho Lana – o grupo sofreu um cerco da repressão na saída do restaurante. Apenas Lana sairia vivo, vindo a morrer com Sônia Moraes Angel Jones no ano seguinte, como vimos no capítulo 3. As mortes no restaurante foram divulgadas pelos jornais e dois dos corpos foram devolvidos às famílias em caixões lacrados, mas o de Iuri foi enterrado como indigente em Perus, com seu próprio nome.

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Iara teria que vivenciar ainda a morte de Arnaldo, em 1973. Seu companheiro ainda se recuperava de tiros que o atingiram em uma emboscada, quando decidiu comparecer a um “ponto” com outros dois militantes, Francisco Emanoel Penteado e Francisco Seiko Okama. Iara o viu sair de casa pra nunca mais. Arnaldo não escapou à segunda investida da repressão. As mortes dos três foram divulgadas pelos jornais, permitindo que a família de Arnaldo recuperasse seu corpo em caixão lacrado. Após a morte do companheiro, Iara saiu do país para ter seu filho e não teve mais condições de voltar. Exilada, voltou ao Brasil apenas em 1979, quando se integrou à Comissão de Familiares. Dedicou-se, com sucesso, a recuperar o corpo de seus dois irmãos. Começaria aí o “segundo capítulo” da sua militância. Sua luta por Verdade e Justiça segue até os dias de hoje.205

Encontrei Iara algumas vezes durante a pesquisa, mas não creio que ela se lembre de mim. Ela teve a oportunidade de recuperar a trajetória de sua família, tal como relatada acima, durante os dois depoimentos que prestou à CVRP em dois dias de audiências organi-zadas para discutir os oito casos de mortes de militantes da ALN ocorridas nas três embosca-das mencionadas acima. Como nas audiências trabalhadas no capítulo 3, estas também deram conta de reconstituir os casos através de diferentes artefatos, tais como depoimentos, perícias e documentos, na tentativa de reestabelecer a Verdade. Embora tenha recuperado os corpos de seus irmãos no passado, apenas agora Iara conseguira realizar uma perícia confirmando que as ossadas recuperadas são realmente as deles. Assim como um laudo sobre seus restos mortais e os de Arnaldo, em que maiores informações sobre as violências sofridas foram adquiridas. Na audiência, em meio à apresentação dos laudos, feitas pelos peritos responsáveis, e à reconsti-tuição dos dados conhecidos sobre os contextos das mortes, traçada por Iara, havia também uma predisposição coletiva, estimulada pelo presidente da CVRP, de converter a audiência em um espaço de testemunho.

Essa disposição permitiu que a narrativa de Iara se aproximasse da que me fora oferecida pessoalmente por Beth. Narrativas em que o terror surge como produtor de um espaço de devastação, capaz de interromper trajetórias, invadir a esfera familiar e desestruturar laços afetivos. Do intuito inicial de reconstrução dos casos como denúncia da criminalidade e injustiça estatais, a audiência se abriu para a lamentação. Isso porque Iara não testemunhou apenas sobre como métodos de crimes de Estado se expressavam em casos específicos, mas testemunhou pelos mortos, contrastando a sistematicidade dos crimes de Estado com a singularidade das vidas perdidas e a relevância especial de cada perda. Mesmo diante dos esforços que produziram uma das mais importantes conquistas para um familiar de desaparecido, a materialidade da morte (a localização e a chamada “confirmação de identidade” dos corpos), Iara segue sua lamentação. Seu luto permanece e se faz absolutamente visível.

205 Caderno de campo 4, 24 e 25/02/2014. Os trechos citados a seguir foram extraídos da transcrição da 108º Audiência Pública da CVRP.

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Durante as audiências, aquilo que poderia ser apreendido do testemunho de Iara surgia pra mim tanto no conteúdo de sua fala, quanto na maneira como ela falava, deixando-nos entrever um jogo entre palavra, corpo e sentimentos. Enquanto as palavras sinalizavam tenta-tivas de manter os sentimentos sob controle, dentro dela mesma, víamos estes mesmos senti-mentos escapando e transparecendo por toda sua postura corporal. Em situações como esta, era sempre o tom empregue às palavras que me atraia a atenção, me sugerindo a importância dos processos que Das (2007) definiu como transição entre a linguagem e o corpo na construção da dor e de seu reconhecimento público.

Sustentando as imagens de Alex, Iuri e Arnaldo na camisa colada ao corpo – de modelo idêntico ao usado por outros familiares –, Iara conduzia um tom de voz distinto do de Beth, mas igualmente inquietante. Sua fala bem pausada sugeria uma escolha cuidadosa de palavras. Esse processo de escolha talvez fosse o responsável por provocar a tensão que víamos escapar em seu piscar de olhos ritmado, seus constantes desvios de olhar e recorrentes contorções labiais. Iara mantinha sob controle um insistente marejar em seus olhos, mas o esforço impresso nessa tarefa podia ser visto em sua face levemente avermelhada. Se algumas vezes, esse marejar era afastado pela força da concentração nos dados da denúncia, outras vezes, ele transbordava. Como no momento em que Iara agradeceu aos outros familiares ali presentes, empenhados solidariamente em ouvir suas memórias dolorosas, e às testemunhas que traziam à tona duras memórias das câmaras de tortura para ajudá-la na busca da Verdade. Em outro momento, quando um ato falho fez com que trocasse o nome da amiga Laura Petit pelo de Maria Lúcia, sua irmã desaparecida, Iara fechou os olhos e abaixou o rosto em cons-trangimento. Sentimento que Laura contornou rápida e habilmente ao exclamar “Maria Lúcia Presente!”. Chave para que Iara respondesse: “agora e sempre!”. O marejar foi seguido de um sorriso cúmplice entre as duas mulheres.

A presença dos mortos e desaparecidos reivindicada por Laura era, com efeito, inegável. Era possível auferi-la na identificação, que me parecia visceral, dos sobreviventes com os mortos. Visceral porque enraizada nos seus corpos e em profundas emoções. Mas, ao mesmo tempo, essa identificação parecia capaz de despossuí-los, traçando conexões de um tipo extremamente emotivo entre os sobreviventes. As audiências, como oportunidades de ativar tais conexões, tornavam-se espaços em que parte das emoções contidas encontravam condições de emergir das profundezas individuais em meio à partilha estabelecida entre familiares. Dificilmente um caso era apresentado sem que familiares de outros casos se fizes-sem presentes para testemunhar os testemunhos. Entre eles, uma partilha era forjada em meio a orientações corporais, disposições emocionais, o manejo de fórmulas linguísticas e outras manifestações e formas compartilhadas de lamento por meio das quais os familiares se convertiam coletivamente em testemunhas das mortes. Sujeitos que zelam por seu reconhe-cimento social, convertendo os silêncios em discursos capazes de produzir uma boa morte,

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ou seja, uma morte lamentada de forma apropriada (DAS, 2007). Como guardiões dessas mortes, eles procuram, sem dúvida, imprimir em situações como estas as soluções rituais que lhes foram negadas.

Mas, é preciso notar mais uma vez que a dor e a perda causadas pela morte não são representadas como transitórias ou superáveis através dessas fórmulas e rituais. Pelo contrário, nas audiências (como em outras situações) era possível observar que a construção de performan-ces em torno da comunicação da dor e da expressão do luto tinham sempre em conta a perma-nência desse estado.206 Nelas, os familiares tentam nos falar de uma dor que não pode passar, porque é através dela que os ausentes os habitam, tomando seus pensamentos, dominando suas emoções e os afligindo. Uma densidade de sentimentos às vezes bastante difícil de ser descrita, não necessariamente (ou apenas) porque não seja possível colocar tais sentimentos em palavras. Muitos familiares de desaparecidos brasileiros possuem uma longa experiência nessa espécie de conversão da dor pessoal em discursos públicos, como vimos ao longo do trabalho. Mas, talvez, em certos momentos, as reações compassivas sejam as formas mais apropriadas de fazer aflorar determinadas questões. De um lado, é preciso pensar que o sofrimento também é uma forma de conhecer e se comunicar, um pensamento incorporado, como definiria Michelle Rosaldo (1984).207 De outro, estar atento à possibilidade de que os sujeitos sociais possam nos mostrar aquilo que não podem ou decidem não nos falar (DAS, 2007). Eles nos sugerem, com isso, que o ato de testemunhar, sobre o qual se debruçam, precisa ser pensado levando em consideração a tensa relação existente entre palavra e silêncio, entre o sentimento contido e aquilo que transborda por meio do corpo (DAS, Op. Cit.). É em meio a esse jogo entre corpo e linguagem que os “mortos e desaparecidos” se fazem “presente!” na cena pública. Podem ser vistos nos corpos e ouvidos nas vozes de seus familiares, ao ponto mesmo de poderem ser tomados uns pelos outros.

Ao refletir sobre o silêncio sob o qual suas interlocutoras encerravam as memórias das violências sofridas durante os eventos críticos da Partição, Veena Das contrasta essa atitude contida com a centralidade atribuída às mulheres nos ritos funerários e nos processos de la-mentação dos mortos na Índia. Para a autora, se os corpos e as fórmulas linguísticas produzidas pelas mulheres eram o lócus central do pranteamento e da construção de boas mortes, a violência

206 O mesmo observou Lacerda sobre os familiares dos “meninos de Altamira”, para quem “a ferida jamais será cicatrizada: ela está ali, aberta, exposta nunca fechará e assim será apresentada”. Ao sustentar que “suas próprias vidas não voltaram ao normal (nem tampouco voltarão)” (2014: 69), tais familiares frustram expectativas sociais de que uma “vida normal” deve ser “retomada” após um período legítimo de luto.

207 Conforme argumentou Michelle Rosaldo (1984), em texto referência para a antropologia das emo-ções, os sentimentos recebem forma pelo pensamento e os pensamentos estão carregados por sentidos emocionais. Desse modo, os sentimentos seriam como pensamentos incorporados, práticas sociais estru-turadas por formas de compreensão e nossas concepções sobre corpo, afeto e pessoa, mas que estão per-passados pelo envolvimento pessoal, razão pela qual são, de alguma forma, sentidos em processos que se assentam e se expressam no próprio corpo.

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sofrida durante tal evento, também inscrita em seus corpos, representou para elas um tipo de morte social, resultando no deslocamento do sofrimento da superfície corporal e suas disposições mais visíveis para o interior delas mesmas. Esse ambiente de pesados silêncios em torno de tal experiência violenta, com efeito, contrasta com as narrativas que podemos encontrar com maior facilidade sobre os casos de mortes e desaparecimentos no Brasil. Por aqui, é cada vez maior a valorização de atitudes que “rompem o silêncio”. Contudo, creio que a sensibilidade de Das para as maneiras pelas quais as memórias e os sofrimentos decorrentes da experiência violenta podem estar assim contidos nos sujeitos sociais como conhecimento venenoso nos ajuda a valorizar os múltiplos aspectos que conformam a experiência dos familiares brasileiros. Conforme aponta a autora, as memórias da violência eram comparadas pelas próprias mulheres a um veneno que, uma vez ingerido, passavam conter em seus corpos. Um enraizamento da dor que as levaria a assimilar tais experiências em meio a uma lida que não é catártica, mas que se desenrola na vida cotidiana. A ideia me parece bastante próxima daquilo que me disse Beth a respeito de tomar para si o sofrimento de seu irmão como forma de internalizar sua morte e, principalmente, de conseguir seguir vivendo. A metáfora usada por Beth não seria a mesma? Não basta participar de atos, construir denúncias e confrontar o Estado, ela também precisa sofrer a dor de seu ir-mão. A dor de não tê-lo, a dor da violência que sofreu e da justiça que não chega. Ela parece compartilhar com a autora, portanto, a perspectiva de que “apenas bebendo a dor é que a vida pode continuar” (DAS, 2007, 56).

Romper o silêncio, inclusive como forma alternativa de ritualizar a morte, não signi-fica, nesse sentido, que tudo possa ser dito, tampouco que o dizer seja um movimento suficiente para esgotar o sofrimento. É nesse sentido que a importância de falar (e do mostrar) com a qual os familiares me confrontaram não está relacionada a um processo de cura da dor, como venho argumentando, mas de construção do reconhecimento e da aceitação social de sua permanên-cia. Em outras palavras, construir “um mundo que os sobreviventes possam habitar com suas perdas” (DAS, Op. Cit.: 58). Nesse sentido, ao colocar-se na posição de testemunha das mortes, Iara não somente atestaria a singularidade das vidas perdidas, em um movimento que marcaria a pre-sença dos mortos, como memória, e do mundo que fora com eles perdido, como consciência do passado. A um só tempo, Iara nos fala de como a presença dos mortos molda sua própria singu-laridade como familiar e o cotidiano que tem sido possível construir a partir de uma consciência da perda que vai sendo assimilada em suas novas relações. Essa é uma dimensão fundamental do seu depoimento, conforme podemos ver ao longo dos trechos a seguir:

Eu conheci e convivi com os oito [militantes mortos]. Já se passaram mais de quarenta anos e eles continuam presentes. Continua para nós a aflição. Se nós temos os corpos, nós não encerramos o nosso luto. Continuamos em busca de nos aproximarmos da verdade. Antigamente, quando a gente era mais jovem, a gente tinha um pouco a crença que nós íamos conseguir saber a verdade. Hoje depois desses quarenta anos caminhando, eu sei que nós nun-

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ca vamos ter conhecimento pleno da verdade, das circunstâncias das mortes dos nossos companheiros, familiares e amigos. Mas, nós somos persistentes. Como diz o ditado, um pouco ufanista, brasileiro não desiste nunca. Nós fa-miliares não desistimos nunca. Mantemos sempre acesa a chama de que nós vamos conseguir recuperar, ainda que seja, um pouquinho da parcela da his-tória para que a sociedade brasileira conheça o que passou.

Passando direto pelos pontos já discutidos acerca do luto, gostaria de chamar aten-ção para como sua fala escorrega da ênfase na presença dos mortos para certas características que a constituiria como familiar. Essa subjetividade é definida na relação com a comunidade. Os verbos de Iara estão sempre no plural. A presença dos mortos marca um caminhar coletivo, en-raizando-se nas relações constituídas em razão das ausências. Ela também traz consigo a noção de persistência que, por sua vez, aparece diretamente associada ao conhecimento da impossibili-dade de alcançar o objetivo buscado. Como o buscar aquilo que não se quer encontrar, essa ideia nos remete mais uma vez à questão do absurdo. A luta de Iara é utópica e nisso se aproxima à de seus familiares ausentes. Mas se aproxima em um sentido que foi se tornando gradualmente distinto daquele que a utopia tinha para os desaparecidos e para ela mesma quando militante ao lado deles. Diferente do momento em que toda uma geração acreditava na consistência dos objetivos revolucionários, os familiares passam a reconhecer, pela ação do tempo, a provável inalcançabilidade de suas demandas, mas as perseguem a despeito disso. Sentem-se impelidos por uma aflição que não cessa, pelos mortos presentes em si. O trabalho do tempo constrói um tipo de resignação que tanto inspira paciência, quanto mantém firme o sentido de indignação. Não os move a desviar-se dos sofrimentos, mas a encará-los de frente e acumulá-los, na medida em que querer saber mais é querer sofrer mais.208 Persistência e resignação frente ao sofrimento assumido seriam os elementos a partir dos quais Iara se define como familiar.

A persistência, tal como se apresenta, também aponta para o reconhecimento de que há limites não apenas sobre o que pode ser descoberto e dito sobre suas mortes, como apontou acima, mas também sobre suas vidas, como complementaria mais adiante:

Uma coisa importante, Adriano, você sabe que é uma trajetória de 40 anos em busca, mais precisamente a partir de maio de 1979, quando retorno do exílio e eu já... Criméia está ali na ponta. Perdi as contas, não sei; Criméia que é mais nova que eu pode saber, quantos dossiês, processos, nós montamos ao longo desse tempo. Está a Amelinha aqui, Ivan está por ali, o pessoal do Rio... E nós concentramos muito na Lei 9140 a sistematização dos dossiês individuais por exigência da lei, que deixou a prova com os familiares. Nós é que tínha-mos que provar que eles morreram sob a guarda do Estado. A partir daí nós começamos a sistematizar o produto, trabalho das meninas aqui em São Pau-lo. Criméia se transferiu um tempo lá pra Brasília para que a gente pudesse

208 Aqui, lembro a passagem do testemunho inacabado de Zuzu Angel, citado no capítulo 2, em que a mãe do desaparecido Stuart Edgar Angel Jones diz que sua obsessão por seguir pistas sobre o filho era uma obsessão por “saber mais, sofrer mais” (VALLI, 1987:31).

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sistematizar, dar conta. (…) E aí, Adriano, naquela época, você diz que a gente aqui foca muito na morte; dizem que quem fuma cachimbo tem a boca torta... Nós realmente temos a nossa boca torta em cima das circunstâncias e a loca-lização. Mas naquela época eu tive uma preocupação de que a gente resgatasse e assim, como era o primeiro documento oficial sobre aquele período e assim (...) tivemos a preocupação, não sei se você teve oportunidade de já ver algum dossiê, eu realmente não trouxe porque meus dossiês eu cedi para os peritos montarem o estudo dos casos, de que a gente fizesse, além das circunstâncias da morte, né, Criméia, nós tivéssemos as biografias. Nós tivéssemos as fotos deles vivos. Mortos nós recuperamos algumas no IML daqui, já tinham sido produto de um dossiê da Comissão.

A obsessão com as mortes – que Iara credita a uma espécie de vício (a boca torta) instituído pelo trabalho de reconstrução da Verdade – é um segundo elemento que os carac-terizaria enquanto familiar, sobretudo como familiar integrante do movimento, atores sobre os quais eu falo prioritariamente. Não tanto no que se refere a seus irmãos, mas sobretudo aos demais militantes sobre os quais deve testemunhar, Iara sente que, com eles, desapareceu tam-bém uma vida desconectada de um antes e um depois. Maior exemplo, ou o mais venenoso, é a dificuldade encontrada por ela para reconstituir a vida de Arnaldo além da militância. Mesmo com a relação intensa e o filho em comum, há certos limites impostos não apenas pelo curto tempo de vivência conjunta com o companheiro, mas também pelo fato de que fora uma vida clandestina, protegida por segredos que não impediram, mas também não foram ultrapassados pelas relações afetivas tecidas entre os dois. Iara dedicou algum tempo de sua fala a lamentar sua dificuldade em se aprofundar na vida dos militantes mortos: “quem eram, o que faziam no dia a dia, o que gostavam, que livros liam e que músicas ouviam”.

Ao tomar estes aspectos, as violências vividas nos levam de volta à face desconstru-tora e devastadora que está irremediavelmente impressa na trajetória de Iara, tal como resumida acima. Forjada sobre uma sucessão contínua de perdas que se abateram sobre o conjunto mais amplo das relações sociais construtoras de suas experiências e de sua subjetividade. Iara fala sobre um modo de estar no mundo e compartilhá-lo com outros que simplesmente desapare-ceu. Todavia, ela nos fala também de pessoas com quem ainda sente ter profunda identificação. Algo que não reside apenas no plano da memória. Ao menos, não de uma memória tomada como fixada no passado, mas de um tipo de memória que se enraíza no seu dia a dia, nas novas maneiras que Iara encontrou para viver, se relacionar e compartilhar um mundo em que esse passado penetra e vive. É interessante notar, nesse sentido, que em sua narrativa as mortes de seus familiares não destroem sua trajetória, mas operam nela uma transformação adaptadora. Sua trajetória segue sendo militante, pois as mortes são inauguradoras de um “segundo capítulo” dessa militância. Nesse sentido, a morte e a consciência da morte, para além de seu inegável as-pecto desconstrutor, surgem também como tema que conecta e produz. Elas conduzem formas de identificação e estabelecem conexões simétricas entre sobreviventes e mortos de maneiras variadas e, por vezes, surpreendentes.

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Em primeiro lugar, podemos notar que o falar a respeito da morte não convoca para o discurso apenas os mortos, mas também os sobreviventes. Iara não consegue deixar de mencio-nar seus companheiros do movimento de familiares – Laura, Ivan, Amelinha, Criméia, Darci, o pessoal do Rio, etc. – aqueles que, como ela, tem na lida com a morte seu dia a dia. Essa prática se repete em todas as suas falas citadas aqui, como em todo o seu depoimento. Tanto o lidar com a morte, quanto a percepção de ter sobrevivido a ela são experiências do cotidiano partilhado entre estes atores, aproximando-os à medida que suas memórias se ancoram nos novos laços que vão sendo tecidos entre eles. Procurando refletir esse conjunto de elementos nutridos e partilhados (memórias, emoções e práticas comuns) em uma convivência que dá vida ao passado, é comum que tais atores refiram-se uns aos outros como família. Como se tudo aquilo o que circula e é compartilhado entre eles, as emoções e memórias referentes a seus afetos concretos, produzissem novas experiências de cuidado mútuo e apoio diário que fariam do movimento de familiares uma única família. Muito mais do que uma metáfora, o termo recupera o parentesco como experiência vivida (CARSTEN, 2004), conjunto de relações concretas em meio as quais é possível exercitar a memória e onde esse exercício expressa uma ética do cuidado (LAMBEK, 2007).

Mas, se a consciência da morte na vida cotidiana relaciona os sobreviventes, produ-zindo formas de cuidado entre eles, no dizer de Iara, essa consciência é também um dos elemen-tos a partir dos quais ela se identifica com os mortos. Como militantes no passado, todos em seu ciclo de relações conviviam com uma consciência da morte que, quando relatada aos que não compartilhavam aquele mundo, costuma parecer assustadora. Esse é um tema muito recorrente nos relatos daqueles que conviveram na militância com os mortos: o fato de todos saberem que morrer seria o mais provável. A despeito da morte ser a única certeza da vida, como diz a sabe-doria popular, Iara fala da incorporação dessa consciência no viver de militantes que tomavam a própria morte como algo presente, um provável resultado de escolhas conscientes, de caminhos dos quais não tinham a intenção de se desviar. Essa consciência é percebida pelos familiares também como elemento de estigmatização dos mortos. Estigmatização análoga àquela que seria sofrida pelos próprios familiares, de maneira similar, ao estruturarem toda uma nova forma de viver sobre a consciência da morte. Conhecimentos venenosos semelhantes e que os aproximam. Iara coloca da seguinte maneira esta questão:

Então são períodos assim que a gente... Às vezes quando eu relato, o Gilney fica me cobrando: “mas você não fala das coisas boas”. Lógico que nem tudo foi triste. Agora, vocês têm que entender, e eu acho que aí Criméia, Ivan e Amelinha vão entender muito bem, assim como a Darci, sobreviver não é fácil. Não que morrer tenha sido, não. Mas eu digo: a carga é nossa, que sobrevivemos, é muito pesada. Eu levei mais de 10 anos pra sentar num bar. Isso eu era carioca. O Alex... o Iuri não gostava. E ele cobrava. A gente ia para as sessões no Paissandu e saíamos para o Oklahoma, eu não bebia, como até hoje, bebo muito pouco. Eu tomava suco de laranja, coca-cola, Alex sim, e ele [Iuri] ficava: “você está parecendo essa esquerda festiva”. Porque a gente

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gostava de ir e reunir. O Iuri não, saía dali, se tinha um debate bem, se não, amém. Eu e Alex gostávamos. Eu levei mais de 10 anos para superar e achar que eu podia ter direito de sentar num bar. Então, a sobrevivência é muito difícil, muito difícil.

(…)

Eu não tive a experiência delas também, eu nunca fui presa. Nem do Ivan, nem do Gilney, que ficou quase 10 anos, não posso imaginar o que foi, por-que depois fui para o exílio no local que eu escolhi, com quem eu quis. Mas a sobrevivência te cobra muito. E ali nós temos oito. Tem, pelo menos, da ALN, mais de 15 companheiros, ou foram companheiros meus no Pedro II, ou dessa militância estudantil de 1967, 1968... Quer dizer, uma vivência que eu tive, que vieram conosco, ou que se formou ali, muito grande. Então você tem, além dos laços de militância, você tem laços afetivos. E todos eles, todos nós, tínhamos sonhos. Todos tínhamos. Agora, todos tínhamos muita consciência de que a nossa perspectiva de vida era muito curta.

O relato de Iara se repete entre familiares. No já citado Que bom te ver viva!, Rosalina Santa Cruz, irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, fala de sua dificuldade de se divertir. De, por exemplo, ir à praia sabendo que seu irmão estava desaparecido. Esta consciência da morte compõe o conjunto de percepções e sensações que levam mesmo aqueles que nunca foram presos a se considerarem sobreviventes. Uma definição de si que passa pela morte, apontando a certeza de que ela esteve à sua espreita e, em certo sentido, ainda está.209 A dificuldade da sobrevivência estaria na dificuldade mesma de processar a aceitação da vulnerabilidade e do sofrimento, deslocando as reflexões sobre a morte e o absurdo de um plano transcendente ou filosófico para as atividades diárias e as relações concretas dos sujeitos sociais. Como movimento caracterizador dos familiares, essas aceitações e deslocamentos, e as práticas públicas que elas engendram, seriam capazes de gerar estigmas sobre toda a comunidade, sobre os vivos e os mor-tos. Em determinado momento de seu relato, refletindo sobre o fato de todos os seus familiares terem deixado uma condição de proteção no exterior para vir morrer no Brasil e a incompreen-são que isto gerava nos “outros”, Iara afirma: “suicidas nós não éramos!”.210 Ela deixa a entender

209 Refletindo sobre relatos de sobreviventes de campo de concentração, Todorov identifica um conjun-to de sentimentos que perfazem uma espécie de culpa que se torna parte do sobrevivente. Apoiando-se nesse ponto sobretudo nas reflexões de Primo Levi, Todorov fala da vergonha por sobreviver, como se a sobrevivência tivesse ocorrido sempre no lugar das perdas. Sentimento que coloca para o sobrevivente uma questão central: se eu não era melhor que os mortos, por que eu viveria enquanto eles estão mortos? Para Primo Levi, “estar vivo não é um pecado, mas o sentimos como tal” (TODOROV, 1995: 290).

210 Ao longo do tempo de pesquisa, nunca presenciei um familiar questionar publicamente essa opção pela luta consciente dos riscos por parte dos mortos e desaparecidos, nem tampouco os vi criticar atitu-des voluntárias que interferiam na esfera familiar, como a clandestinidade e o afastamento da família, mesmo quando filhos e companheiros foram deixados em situações difíceis. Uma postura, a meu ver, muito difícil de ser mantida. O caso que me chamou mais atenção nesse sentido é o de Ñasaindi, filha de dois militantes que nunca conheceu, e que será visto mais adiante. Essa postura é válida mesmo nos

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que o complemento lógico de rotular as posturas de seus parentes como suicidas seria tomar as suas como masoquistas. Um estranhamento que lhes causa, muitas vezes, a sensação de incom-preensão. No depoimento com o qual abro a tese, Suzana se queixou dessa questão, dizendo que os familiares são muitas vezes “mal vistos, mal quistos e mal entendidos”. Como se essa obsessão com a morte, a partir de uma visão que não é redentora nem otimista os colocasse em perspecti-va em relação aos “outros” (incluindo “outros” que participam do campo MVJ), concedendo-lhes o ar de impertinência do qual se queixam, ao mesmo tempo em que se orgulham.

Nas falas de familiares em diferentes momentos desta tese, percebemos que en-frentar tais incompreensões é, para muitos deles, uma necessidade. Para além das necessidades diretamente articuladas em demandas e palavras de ordem, resta seu desejo por compreensão, por um mundo que possam habitar com a sua dor. E é aqui que memória e parentesco se ar-ticulam em um todo pouco discernível (CARSTEN, 2007; LAMBEK, 2007). Afirmar coti-dianamente as mortes, tanto quanto falar sobre a vida dos mortos, recuperando seus sonhos, trajetórias, gostos e particularidades é a maneira pela qual os sujeitos transformam a perda em compromisso partilhado entre aqueles que definem como família, fazendo com que o sofrimen-to prolongado não se disperse no tempo, mas se acumule nas relações sociais, frutificando entre as gerações, participando da composição das subjetividades e dando dimensões temporais aos laços familiares.

Victória, André e Criméia

Victória nasceu no Rio de Janeiro. Filha de “Maurício e Alzira Grabois, dois comunistas”. Seu pai foi deputado constituinte em 1946 pelo PCB, anos depois participou como liderança do racha que deu origem ao PCdoB e, ainda mais tarde, seria o comandante em chefe das forças guerrilheiras do Araguaia. Apesar do machismo da época, sua mãe foi também uma importante militante do partido. Por isso, Victória acredita participar da vida política do país “desde que fui gerada”. Seus pais moraram em diferentes lugares ao longo de vários períodos de clandestinidade. Muitos deles, períodos de dificuldades econômicas. Quando Victória tinha quinze anos, as disputas internas do PCB levaram a família a mudar-se para Niterói, onde ela

casos de familiares que não compartilhavam dos ideais militantes dos mortos no passado. Nesses casos, qualquer perplexidade que possam ter acaba por ficar encerrada na esfera do convívio familiar. Se Iara ainda busca junto aos parentes de Arnaldo (aos quais ainda chama pelas denominações de parentesco por afinidade: sogro, cunhada, etc.) compreender a vida pregressa e desconhecida de seu companheiro, estes tentam entender junto a ela essa opção de Arnaldo pelo risco da morte. Na esfera pública, costuma a reinar o consenso político de que quem provocou as mortes foi a Ditadura e apenas ela deve ser criticada. Esse consenso, por outro lado, não exclui debates políticos, geralmente estabelecidos entre ex-militantes, relativos não às posturas individuais, mas às posturas partidárias de seguir a luta mesmo no momento mais crítico da repressão, em vez de recuar e enviar seus militantes ao exílio ou outras formas de proteção.

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e seu irmão André passaram a estudar. Nesse período, entre 1959 e 1964, Victória se lembra de ser muito refratária às atividades estudantis, porque “ser filha de comunista era uma barra”. Nesse tempo, toda a família morava em um quarto e sala. O sonho adolescente de Victória era ter seu próprio quarto. Apesar disso, lembra-se positivamente dessa época como a primeira vez em que pôde morar com seus pais desde o seu nascimento. Morar como família nuclear. Isso porque nos períodos anteriores, em que o casal vivia na clandestinidade, Victória e André tiveram que viver com uma tia na Zona Sul, passando apenas as férias com os pais nos aparelhos do partido em que viviam nos subúrbios da cidade.

O Golpe pegou-a na faculdade, onde havia finalmente se engajado no movimen-to estudantil. Sua entrada no PCdoB é igualmente descrita como natural: “eu nunca pedi pra entrar”. Foi no partido, mais precisamento no jornal da organização, que Victória conheceu Gilberto Olímpio, seu marido, também filho de militantes. Casaram-se em 1964, depois do Golpe, quando toda a família teve que se mudar para São Paulo, entrando imediatamente para a clandestinidade. Para Victória e Alzira, essa viagem duraria 16 anos, para os homens, Maurício, André e Gilberto, ela não teria volta.

O casal Victória e Gilberto foi viver por um tempo no interior de Mato Grosso, onde deveriam fazer um levantamento para o partido que, à época, procurava um local para a implantação de sua guerrilha rural. Victória conta que foi nessa época que teve um insight. Se não tivesse um filho, talvez nunca mais pudesse tê-lo. Foi assim que ficou grávida de Igor. Por causa dele, e também de sua mãe, ela se recusou a ir para o Araguaia, quando a guerrilha foi finalmente implantada. A decisão lhes salvou as vidas. Victória e Alzira ficaram em São Paulo, mas sem deixar de ter funções no partido. A casa em que viviam era um aparelho, um impor-tante aporte logístico do PCdoB. Clandestina, foi como Teresa que Victória tirou sua carteira de motorista, o título de eleitor, fez um supletivo, entrou novamente na universidade, lecionou e até fez greve no final dos anos 1970.

Durante o período em que estiveram separados, os contatos com os guerrilheiros sempre foram difíceis. Apenas por meio de cartas, levadas por portadores, e algumas viagens que eles fizeram a São Paulo. Esses contatos viriam a se encerrar definitivamente em 1973, ano em que André, Maurício e Gilberto foram assassinados. Sobre a morte de André pouco se sabe, apenas que teria ocorrido em outubro. Maurício e Gilberto teriam morrido em dezembro, du-rante o mesmo episódio: um ataque do exército ocorrido no dia de natal, e que vitimou mais dois militantes. Nenhuma dessas informações foi confirmada e seus corpos nunca foram localizados.

Quando soube das mortes, em 1974, Victória escondeu o quanto pôde a informação de sua mãe. Daí viria também sua necessidade de controlar o pranto. Mas o terror vivido por elas não se encerraria por aí. Em 1976, as duas viveriam dias de verdadeiro pavor, durante o episódio conhecido como “queda ou chacina da Lapa”. Na ocasião, todos os dirigentes do PCdoB que se

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encontravam no Brasil reuniram-se em uma casa no bairro da Lapa para discutir um “balanço” da já derrotada Guerrilha do Araguaia. A reunião, porém, foi “delatada”. Diversos militantes foram presos e os principais dirigentes friamente assassinados. Uma das militantes presas nesse episódio conhecia o aparelho habitado por Victória e Alzira. Ao saberem das “quedas”, mãe e filha, desesperadas, deixaram Igor na casa de uma vizinha, alegando a necessidade de fazer uma viagem. Elas passaram a noite livrando-se de todo o material comprometedor existente na casa. Durante três dias, Victória diz ter vivido o pesadelo da espera pela repressão. Felizmente, ela nunca chegou. Ainda assim, esse é um momento muito duro, sobre o qual Victória sempre fala.

Mãe e filha nunca foram presas, nem torturadas pela repressão, mas após a queda da Lapa, estiveram presas e torturadas por uma clandestinidade absolutamente isolada até a Anistia. Sem poder chorar seus mortos, sem poder pedir justiça. Estiveram como que exiladas dentro do Brasil até o momento em que a Anistia permitiu que os militantes exilados e sobrevi-ventes começassem a retornar e retomar suas identidades. Foi apenas então que Victória procu-rou um famoso advogado de presos políticos e, depois de 16 anos, disse para outra pessoa e em voz alta seu verdadeiro nome. Iniciou assim os procedimentos legais para retomar sua vida e a de seu filho, começando pela recomposição das suas antigas identidades. Também para sua vizinha, a amiga em quem confiou deixar seu único filho no “momento de mais medo de sua vida”, ela pôde finalmente revelar sua trajetória. A militância de Victória no PCdoB durou até 1987. A partir de 1980, os familiares dos desaparecidos no Araguaia deram início a sua batalha coletiva com a realização da já mencionada caravana à região. Um movimento isolado do PCdoB, partido com o qual a maioria dos familiares foi se identificando cada vez menos. Na Comissão de Familiares, no GTNM/RJ e na luta ao lado dos familiares, Victória viu sua vida renascer em uma nova luta. Inesperadamente, também viu a possibilidade de construir uma nova família a partir do irmão desaparecido. Victória ainda não sabia, mas, no Araguaia, André se relacionara com Criméia Schmidt de Almeida, guerrilheira que deixara a região grávida do único filho do jovem casal.

Criméia nasceu em Santos, mas passou boa parte da infância e juventude em Minas Gerais. Seu pai era sindicalista. Diz ter recebido, ao lado da irmã Amelinha, uma criação liberal e contestadora. Começou sua militância em manifestações estudantis. Posteriormente, ingressou no PCdoB. Sua primeira experiência com o desaparecimento foi ainda no Golpe, quando seu pai saiu para trabalhar e desapareceu, levando a família a buscar por toda a cidade até localizá-lo preso. Para ela, esta foi sua primeira experiência de militância baseada na solidariedade entre familiares de desaparecidos, ainda que a maior parte deles estivesse viva. Como desdobramento do Golpe, sua família toda foi incluída em um Inquérito Policial Militar, inclusive ela, estudante secundarista e menor de idade. Para fugir da perseguição, se mudam para o Rio de Janeiro.

Na nova cidade, Criméia ingressa na faculdade de enfermagem e segue a militância no movimento estudantil. Como consequência, é presa no Congresso da UNE de 1968, em Ibiúna. Em 1969, após o advento do AI-5, já militando no PCdoB e fichada, decide ir para

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o Araguaia. Foi a primeira mulher jovem a chegar na região. Lá foi recebida por André, com quem logo passou a viver. À época, sequer conhecia seu verdadeiro nome ou sua história. Ela chamavam-se Alice. Ele José Carlos. Em 1972, tiveram início os confrontos com o Exército. Os guerrilheiros tiveram que se refugiar na mata e foram isolados dos membros do partido que viviam na cidade. Criméia foi escolhida para sair da região e refazer esses contatos. Diz que essa escolha teve relação com o fato de ser mulher e estar grávida, pois pensavam que assim seria mais fácil passar pela repressão sem levantar suspeitas. Ela foi para São Paulo e voltou a região algumas vezes, refazendo os contatos, mas com o adiantado da gestação, deveria permanecer em São Paulo para ter seu filho. Quando estava no sétimo mês de gravidez, foi presa.

Sua prisão não teve relação, a princípio, com o Araguaia, mas com a prisão de sua irmã, Amelinha, e seu cunhado, César, com os quais ela estava morando naquele momento. O casal era responsável pela imprensa do PCdoB e foi preso na rua, em um “ponto”. Criméia foi le-vada da casa onde moravam pela repressão, no dia seguinte. Junto com ela, foram levados os dois sobrinhos que estavam sob seus cuidados. Naquele dia, todos foram parar no DOI-CODI/SP. Janaína e Edson, os filhos de Amelinha, com 4 e 5 anos à época, ficaram por lá durante algum período. Em determinado momento, foram levados à sala de tortura, onde viram sua mãe nua, coberta de hematomas, vômito e outras secreções corporais resultantes da tortura. Visitaram ainda os pais na carceragem até finalmente serem levados para destino por eles desconhecido.

Portando documentos falsos, Criméia conseguiu esconder durante um tempo sua identidade. Mesmo grávida, foi muito torturada. Tal procedimento apenas obedeceu a certas recomendações médicas, como não ter espancada sua barriga, não ser colocada no pau de arara, nem sofrer choques na vagina. Com tal assessoria médica, sofreu violências físicas e psicológicas tanto sozinha, quanto junto com sua irmã e seu cunhado. Depois de um tempo, descoberta sua identidade e sua participação na Guerrilha do Araguaia, ela foi transferida para Brasília, onde ficou presa em condições precárias. Como era de se esperar, chegou o dia em que sua bolsa estourou. O rompimento ocorreu por volta das 22 horas, mas seu filho só foi nascer mais de 24 horas depois, após o médico se negar a levá-la ao hospital, dar-lhe um soro para retardar o parto e, finalmente, amarrá-la à cama. Quando o parto foi finalmente realizado, em uma sala guardada por um soldado portanto uma metralhadora, o médico sequer lhe mostrou a criança. Suturou-a com um material impróprio e sem anestesia. Ela só foi autorizada a ver o filho no dia seguinte. A mãe e o filho, João Carlos, ficaram 52 dias presos, período ao longo do qual foram mantidos afastados a maior parte do tempo. João Carlos perdeu um quilo em relação ao peso de nascido. Depois desse período, o bebê foi entregue a uma tia. Criméia continuou presa e voltou a ser interrogada. Foi durante estes interrogatórios em Brasília que ela diz ter sofrido a mais cruel de todas as torturas. Mantida em uma sala, foi obrigada a olhar slides de fotografias das opera-ções no Araguaia feitas pelo exército, entre as quais as de militares segurando cabeças cortadas de guerrilheiros. Seu choque foi tamanho que ela sequer lembra de seus rostos.

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Após tudo isso, Criméia foi solta da mesma maneira em que foi presa. Sem acusa-ção, nem processo (já que a Guerrilha do Araguaia nunca existiu). Até então, ela não tinha notí-cia “nem de vida, nem de morte” sobre André. Soube de sua morte apenas em 1974. Uma vez solta, não pôde recomeçar uma nova vida ao lado apenas do filho. Ela precisou também sair em busca dos filhos de Amelinha. Em mais uma cruel sucessão de violências abatidas sobre a família, as duas crianças estavam vivendo com um parente distante de César, um policial, em condições que a família considera serem as de um sequestro. Criméia teve um enorme trabalho, mas con-seguiu conquistar a guarda das duas crianças. Elas ainda esperariam alguns anos para voltar a conviver com seus pais, que sofreram processo por articular imprensa clandestina e cumpriram pena. Durante esse período, visitavam os pais na prisão, levados pela tia.211

Tal como Iara, que perdeu seus dois irmãos e seu companheiro, e Laura Petit, que perdeu três irmãos no Araguaia, Victória também carrega o lamento de três ausências. Hoje sem sua primeira companheira de infortúnio e lamentação, sua mãe. Para ela, a Ditadura ainda traz o sofrimento nas marcas causadas pelos anos de clandestinidade, de segredo e choro contido, de ter que se manter forte e muda, enquanto seu mundo se desfazia. No caso de Criméia, são outras, mas não menores as perdas. A inconcebível experiência da tortura em família, sua nova família interrompida antes de se unir, a maternidade nascida junto com a consciência da vulnerabilidade e da impotência. Em comum, nas duas trajetórias, as sequências de violências diversas. Ainda que tenham tentado, não puderam destruir tais famílias, nem desfazer os laços afetivos sobre os quais se abateram. Pelo contrário, estes laços se tornaram meios relevantes a partir dos quais tais violências, consumidas como veneno por cada um deles, são trabalhadas se transformando tanto em formas de conhecer, como de reconhecer os (e se reconhecer nos) sofrimentos uns dos outros

Victória, Alzira, Criméia, Amelinha e César, embora militantes do mesmo parti-do, não se conheceram durante a Ditadura. Suas vidas se cruzaram a partir não propriamente do início do relacionamento entre Criméia e André, mas do engajamento de todos na busca por Verdade e Justiça, em 1980, momento a partir do qual se conhecem e passam a conviver. Inicialmente, há a militância no CBA de São Paulo, cidade onde todos moram. Mais tarde, de volta ao Rio de Janeiro, Alzira e Victória se tornariam destacadas militantes do GTNM/RJ, enquanto Amelinha e Criméia marcariam seus nomes entre os mais conhecidos da Comissão de

211 As referências para construção dessas trajetórias foram colhidas em diferentes datas nos meus ca-dernos de campo. Elas provém de fontes diversas, como a convivência com Victória; a entrevista que fiz com ela; seu livro sobre o pai (GRABOIS, 2012); o filme 15 Filhos; a convivência com Amelinha na CVRP; as participações de Criméia em diferentes eventos da CVRP, sobretudo nas audiências sobre a Guerrilha do Araguaia (31ª Audiência, 12/04/13) e na audiência Verdade e Gênero (25ª Audiência, 25/03/13); além da participação de Igor Grabois Olímpio, Janaína de Almeida Teles, João Carlos Sch-midt de Almeida Grabois e Edson Luís de Almeida Teles em uma das audiências que compuseram o Seminário Infância Roubada da CVRP (08/05/13). Alguns detalhes sobre as prisões e suas experiências de tortura foram contadas pelos membros da família em tantos episódios, disponíveis em tão diversos meios, que chega a ser difícil determinar precisamente a origem de cada informação.

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Familiares. Para todos eles, encontrar formas de falar publicamente sobre o passado, formulando denúncias direcionadas à sociedade e ao Estado, foi uma necessidade sempre presente, que pas-sou pelo engajamento coletivo e pelas estratégias políticas e jurídicas desenvolvidas coletivamen-te pelo movimento de familiares. Além da militância articulada nos CBAs, Criméia, Victória e Alzira estão entre os autores dos processos interno e externo da Guerrilha do Araguaia. Paralelamente, Criméia é autora, junto com Amelinha, César, Janaína e Edson, de uma ação civil movida contra o comandante do DOI-CODI/SP, Carlos Alberto Brilhante Ustra. O pro-cesso é um dos movimentos a partir dos quais eles passariam a ser reconhecidos publicamente como “a família Almeida Teles”. Família que também inclui João Carlos, o filho de Criméia.

As relações entre o GTNM/RJ e a Comissão de Familiares, duas dentre as organi-zações consideradas centrais no movimento de familiares, são formadas também por relações entre as duas famílias.Ao longo dos anos, as famílias Almeida Teles e Grabois vêm tecendo laços que não podem ser facilmente discerníveis entre políticos ou afetivos. Aquilo que se iniciou como um romance perpassado por cumplicidades e afinidades políticas na guerrilha se desdo-brou no envolvimento de outros atores em uma série de movimentos políticos, impulsionados por sentimentos de justiça que se fundam em moralidades e afetos. Ao longo dos anos, a desco-berta dos laços de parentesco se aprofundou em uma convivência tanto política, quanto familiar.

Não conheço o tipo de relação que as irmãs possuíam antes da violência a qual foram submetidas, mas me parece razoável pensar que o evento crítico vivido em comum tenha impactado essa relação, ainda que de formas difíceis de precisar. Também não posso afirmar profundos conhecimentos sobre sua relação hoje, mas o que é visível a qualquer um que as observe, é a profunda ligação de solidariedade e cuidado existente entre elas. Algo que não se restringe às irmãs, mas envolve os demais membros da família. Procurando trazer elementos que eles mesmos apontam em suas falas públicas, procuro pensar aqui nas formas de envolvimento que puderam surgir a partir: da dor de conhecer o que cada uma passou durante as torturas; da segurança, nascida em meio a essa dor, de saber que a irmã buscou e ofereceu a proteção e o afeto que Amelinha não pôde dar a seus filhos apropriadamente enquanto presa; da confiança e do afeto estreitado por este resgate entre os sobrinhos e a tia; do convívio sob o mesmo teto que se seguiu entre os primos; da solidariedade entre os irmãos, que viveram tantas angústias juntos, e o primo, cuja dor em relação ao pai que nunca conheceu, eles viram nascer e crescer; da profunda dedicação da família ao movimento de familiares, especialmente de Amelinha, reivindicando-se sempre cunhada de um André Grabois que nunca sequer conheceu.

A memória e a privação da memória de André aparecem em muitas oportunida-des como um elo especial de ligação que faz das duas uma só família. No filme 15 filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, construído a partir de testemunhos de filhos de guerrilhei-ros, João Carlos, Edson e Janaína contam episódios das experiências violentas vividas ainda como crianças na Ditadura. Janaína aparece algumas vezes como porta-voz dos sentimentos

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de justiça que perpassam a família. Fala sobre a necessidade de justiça e de reparação do sofri-mento imposto a ela mesma, mas também sobre as marcas causadas pela supressão da figura de André, a quem chama de tio:

Agora, não tem ponto final. Como é que vai ter ponto final se a gente sabe, por exemplo, que provavelmente meu tio levou um tiro pelas costas na colu-na, ficou paralítico, levaram ele assim pra Brasília, torturaram não sei quanto tempo, e ele morreu assim? Como tem ponto final pra isso se não tem o corpo dele? Se só tem uma foto 3x4 dele? É isso que existe do André Grabois. E a memória da mãe dele, que daqui a pouco vai morrer, porque tá muito velhi-nha, e da irmã dele. E o Joca fica como? Então pra mim, pra mim não tem ponto final não. Pra mim e pra várias outras pessoas (15, 1996: 17 minutos).

Na fala de Janaína, a memória de Alzira e de Victória se contrapõem à ausência ou à busca pela memória de Joca. No filme, ele também fala sobre seu processo subjetivo de lida com a ausência e sua necessidade de construir a figura de um pai que lhe faltava mesmo em fotogra-fias. Janaína revela sua solidariedade à tristeza pela falta de André, alguém que não conheceu diretamente, mas cuja presença lhe surgiu cotidiana desde sua infância. Surgia, por exemplo, nas histórias engraçadas e de aventura que saltavam da memória de Criméia para embalar o sono das três crianças, transportando para o universo infantil episódios do período em que conviveu com André na floresta amazônica. Histórias que Joca tinha receio de ouvir, porque achava que sua mãe ia morrer no final. Nesse processo, sempre ambíguo, em que as crianças iam formando percepções sobre a Guerrilha e o que ali havia se passado, Janaína diz ter se familiarizado com essa história difícil e com sua família ainda desconhecida. Em sua fala transcrita acima, a ênfase vai para os conhecimentos e desconhecimentos a respeito de André (e sua morte) que, com o passar dos anos, passou a compartilhar com Alzira, o primo e as tias (como denomina tanto a irmã de sua mãe, quanto a irmã do companheiro dela). Janaína identifica os três, mais até do que a si mesma, como as pessoas diretamente atingidas pela ausência de André, mas cujos so-frimentos passa a assumir a partir dos afetos que nutre por e com eles. O questionamento de Janaína me parece forte e pertinente: como eu posso vislumbrar um ponto final, se para aqueles com quem convivo está tudo em aberto? Aqui, a memória não é apenas aquilo que manifesta um saber sobre o passado, mas também o que produz e igualmente manifesta um sofrimento capaz de produzir sentimentos e práticas como cumplicidade, partilha, cuidado e proteção, a partir dos quais os sujeitos sociais identificam os seus, isto é definem o que é para eles a família, e a ela se dedicam em meio a formas diversas de convivência.212

212 Aos sete anos de idade, Janaína escreveu um poema para dar de presente a seu pai, que enfrentava uma segunda prisão, devido a reabertura de seu processo por organizar imprensa clandestina. Nesse segundo momento, apenas César foi preso. Em um trecho muito comovente, e que me parece bastante revelador, tanto do sofrimento vivido em conjunto pela família, quanto de como a relação entre os su-jeitos sociais os torna vulneráveis uns aos outros, Janaína diz: “dói no peito chorar/dói nós chorar/dói os seus olhos chorarem/dói nós viver/dói a natureza chorar/dói gostar dos outros” (CVRP, 2014: 265).

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Vi o mesmo tipo de percepção ser expressa por Victória em algumas oportunidades durante nossa convivência. Assim como o seria por Alzira quando viva, conforme testemunham os que com ela conviveram. Para Victória, o amor nutrido pelo pai, o marido e o irmão é algo vivido em seu dia a dia, não apenas nos atos de militância que o compõe, mas também à medida que pôde ser exercido na relação solidária com sua mãe, sua cunhada, o sobrinho Joca, e seus dois filhos, Igor e Maurício. É o que ela nos relata em algumas passagens do livro que escreveu em homenagem ao pai, onde constam também relatos de Criméia, conforme os trechos abaixo:

A imagem de meu irmão que permanece até hoje em minha memória é de um rapaz de 18 anos, com um belo sorriso, brincalhão e cheio de vida. Muitas vezes confundo sua imagem com a dos meus dois filhos e do meu sobrinho. Quando meu filho mais velho, Igor, entrou na adolescência, passei a confundir os dois, pra mim Igor era André. O mesmo aconteceu com meu sobrinho, João Carlos, e com meu filho mais moço, Maurício. Os três são muito parecidos com André, são pessoas irônicas, brincalhonas e com o espírito crítico muito aguçado. Fisicamente todos se parecem: dentes grandes, sorriso constante e mesmo formato de rosto. (…) André estará sempre presente no meu cotidiano (GRABOIS, 2012: 30).

Nossa relação familiar era de solidariedade, muito carinho e respeito. Pode-se considerar minha mãe uma “mãezona”: como ela ficou órfã muito cedo, e não desfrutou do amor materno, dedicava-se plenamente aos filhos. Nos últimos anos de sua vida, Alzira dedicou-se inteiramente aos netos, tendo um carinho especial por “Joca”, filho de André e Criméia. O relacionamento com a nora era de muito respeito e carinho. Criméia conheceu Alzira através dos relatos de Maurício e André durante a Guerrilha. Tempos depois as duas conviveram juntas: “Maurício falava de sua companheira e de sua filha com muito carinho, sem nunca haver citado seus nomes. André também falava dela com muito carinho e dizia sentir muito a sua falta e dizia que se um dia eu viesse a conhecê-la concordaria com ele. Realmente conhecer Alzira foi encontrar uma grande amiga. Moramos juntas por um tempo e ela tinha pelo Joca um grande carinho e muitas vezes o chamava de André. O que mais marcou para mim na Alzira foi a solidariedade e o empenho com que se dedicou à busca dos desaparecidos. Ela era audaciosa nessa luta, enfrentava todas as agressões que sofríamos naquela época por parte dos provocadores policiais e dos políticos tradicionais. Alzira sabia o que cada um de nós, eu, o Joca, o Edson ou a Janaína gostávamos de comer e sempre preparava o prato predileto de cada um” (GRABOIS, 2012: 24).213

Publicado no centenário do nascimento de Maurício, o livro é descrito por Victória como uma biografia política interessada em resgatar a importância histórica de seu pai para o co-munismo brasileiro, assim como sua coerência revolucionária. Acompanhei de perto sua dedica-ção ao processo de escrita desse livro, que culminou na realização de uma homenagem a Maurício na Alerj, em outubro de 2012. Nesse dia, ambas as famílias se fizeram presentes. Todo o esforço material e emocional depositado nesses empreendimentos resulta de um sentimento que Victória

213 O trecho em itálico refere-se a fala de Criméia citada por Victória.

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muito comumente expressa em queixas públicas: sua decepção em relação a um reconhecimento que considera aquém da importância de seu pai pelas esquerdas brasileiras. Mas, como pode ser visto nos trechos acima, o livro vai muito além disso. Em grande medida, a intenção de Victória expressa um carinho e um cuidado com a construção da figura pública do pai (a figura mítica, como definiria seu filho Igor) que nos leva a mergulhar no entrelaçamento entre os espaços da política e do afeto. Ao longo da narrativa, o livro conta, desde a origem de Maurício em uma família judaica perseguida na Europa, um processo de incorporação da política não apenas como uma prática pública, mas também como valor familiar. Este valor seria expresso, sobretudo, no horror às injustiças. Algo que o exemplo de seu pai teria feito frutificar pelas gerações. Essa é a principal ideia que surge no capítulo dedicado à “nova família” de Maurício, referindo-se a seu casamento com Alzira, os filhos, os companheiros dos filhos e, finalmente, os netos.

A partir de sua narrativa, vemos uma noção de família ser proposta por Victória, fundando-se não apenas na descendência e na transmissão de certas características físicas que menciona, mas também na produção de certos traços de caráter comum, como o “espírito críti-co”, e o compartilhamento e aprendizado de valores, como o respeito, a solidariedade e a audácia política, em dinâmicas de coabitação e convívio que Victória, mas também Criméia, consideram baseadas em carinho, admiração e formas muito cotidianas de cuidado, como a alimentação, o conhecimento dos gostos pessoais, os gestos de gentileza. No convívio político, mas também nesse habitar conjunto (seja entre as irmãs Amelinha e Criméia e seus filhos, seja entre Criméia e sua sogra Alzira), diversas foram as maneiras a partir das quais os sobreviventes puderam apro-fundar suas relações, ao mesmo tempo em que faziam presentes os que já não estão. Nem tão ausentes, os desaparecidos podiam ser reconhecidos no corpo, nos gostos, nos gestos e nas ações dos sobreviventes, em especial dos descendentes, desenhando linhas de coerência e continuidade familiar. Reconhecimento, por vezes, marcado em traços mais permanentes e caracterizadores da individualidade, como seus nomes. Chamar o neto pelo nome do filho, antes do que uma indelicadeza ou uma gafe, era percebido como uma atitude através da qual Alzira concentrava a expressão de um duplo carinho sobre Joca. Com intenções provavelmente semelhantes, Igor veio a homenagear seu pai desaparecido dando o nome de Gilberto ao seu próprio filho, enquanto Maurício, filho do segundo casamento de Victória, leva em seu nome uma homenagem ao avô.

De uma forma desconcertante, me dou conta de que a violência da Ditadura e suas mortes não apenas não foram capazes de destruir laços afetivos, como, por meio de movimentos transgressores desenhados pelos familiares, foram convertidas em processos a partir dos quais família, cuidado e afeto seriam produzidos. Mais uma vez, as palavras de Venna Das (2007) me parecem extremamente pertinentes para dar conta de tal processo. De maneira semelhante a que a autora nos faz observar em sua etnografia, também aqui o passado é um mediador de novas for-mas de viver e estar com os outros, porque mesmo aqueles que escaparam à violência diretamente afligida sobre os corpos, ou dela pouco se lembram, encontram na família um espaço para viver

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o passado como atmosfera presente e como um conhecimento venenoso que compartilham nesse viver mais íntimo e cotidiano. Na família, o passado é incorporado nas relações sociais, partici-pando da composição de projetos afetivos comuns que são de diferentes maneiras associados a projetos de vida e de futuro.Crescendo em meio a esta atmosfera, as crianças acompanharam a busca pelos desaparecidos e a luta pela democratização de modo “natural”, porque na compa-nhia de suas mães e pais. Se engajam em uma tomada de consciência precoce sobre a morte, o sofrimento, os medos e os perigos vivenciados junto a eles. As percepções sobre as tensões que os rodeavam geraram para eles um ambiente em que a vida era, segundo definiu Igor, “preenchida por vazios e cercada por mistérios”.214 Nos trechos abaixo, retirados de suas manifestações durante o seminário Infância Roubada, realizado pela CVRP, Janaína e, em seguida, Igor se expressam a respeito desse tema e de como essa atmosfera desencadeia reflexões a respeito de si mesmos:

A recorrência dessa sensação gera um sentimento de impotência enorme. A melancolia envolve a vida e, embora ela prossiga e tenha momentos felizes, a sensação de cansaço parece uma herança muito pesada para carregar. As demandas dessa infância perdida sempre retornam, cobrando seu espaço em momentos onde nem o corpo e nem a mente podem mais dispor do tempo de criança.(CVRP, 2014: 264)

A outra coisa, é que também não tinha passado. Quem era o meu avô, meu bi-savô? Eu não tinha passado. Qual era a identidade familiar, qual era a identi-dade étnica? Também não tinha lugar. Era São Paulo, Rio, eu não tinha lugar, um local. Nasci no Rio, morava em São Paulo, mas o ar de provisoriedade dos lugares era muito grande. (CVRP, 2014: 295)

214 Enquanto Joca precisava construir a imagem de um pai, algo que entrelaçava seus processos sub-jetivos às gestões estatais de controle e mapeamento das identidades, na medida em que passava por incluir seu nome pai e adicionar seu sobrenome em sua certidão de nascimento, Igor lembrava-se muito bem do pai e procurava entender porque ele e seu avô nunca voltavam de seus estranhos empregos. As ausências repentinas deles, como a de João Amazonas, dirigente do partido que se exilou após a queda da Lapa, mas que frequentava muito sua casa e com quem teve muito convívio durante a primeira in-fância, lhe sugeria um ambiente de mistério que o fazia indagar o porquê de todas as suas referências familiares masculinas desaparecerem. Esses questionamentos, assim como os diversos momentos de medo presenciados em sua casa, a falta de um passado mais estruturado por narrativas familiares, ou o fato de sua mãe ter, repentinamente, trocado seu nome de Igor para Jorge só foram esclarecidos com a Anistia. Momento em que, já mais velho, Igor identificou seu avô e Amazonas em matérias de jornal e passou a questionar sua mãe. Janaína e Edson relatam situações semelhantes as quais foram submetidos, que passam pela clandestinidade, a prisão dos pais e seu sequestro. As paranoias relativas à segurança e os mistérios em relação as atividades dos pais, às ameaças vividas pela família, a perseguição policial, são elementos dificilmente compreendidos por uma criança e que marcaram as infâncias de Janaína, Edson e Joca. Ao falar sobre esses, apontavam para questões relativas à formação da identidade e da subjetividade: a incorporação do sofrimento conduzindo a formação de certos traços de personalidade e, eventualmente, a transtornos físicos ou psíquicos; questionamentos em relação a seu próprio lugar na história familiar; os impactos dessa história na sua própria formação, não apenas psicológica e emocio-nal, entender suas emoções e pensamentos, mas na construção de uma autoimagem e uma imagem de si mesmo para o mundo.

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As crianças cresceram e, cada a uma a sua maneira, se envolveram mais autono-mamente no movimento de familiares. Janaína e Edson também fizeram carreiras acadêmicas em torno do tema, refletindo e problematizando a violência e os temas relativos à Ditadura no Brasil. Igor é entre os netos o único que guarda lembrança de convivência com o avô. É também aquele que se dedica, mais até do que Victória, a recuperar não apenas a memória, mas também as reflexões e o legado político de Maurício, discutindo hoje questões políticas que o avô consi-derava importantes. Para João Carlos, como outros filhos de desaparecidos, a memória familiar parece ser também um meio de preencher certas lacunas relacionadas a não convivência com seu pai, recuperando sua figura. O mesmo papel que ela parece representar para Maurício, o mais moço. Surpreendendo até mesmo Victória, que me confessou considerá-lo o mais preservado (e reservado) em relação às tensões vividas em família, Maurício fez um dos mais emocionantes discursos durante a homenagem ao avô na ALERJ. Relatou a importância afetiva de descobrir a história do avô e de tentar entender como a Ditadura afetou suas relações familiares.

Se o engajamento com os mortos e o passado se tornou meio para que os familiares buscassem elementos para interpretar, dar sentido e coerência às suas próprias trajetórias, como já dito anteriormente, para os mais novos, esse engajamento também significou a descoberta e a recomposição de narrativas familiares que, até então, lhes haviam sido ocultadas ou contadas apenas parcialmente. Nesses termos, é preciso pensar que a busca, o luto e a luta, sendo vistos ou não por cada um como uma atividade política, referem-se também a complexos movimentos de produção de identidade e refazeres subjetivos vistos como processos em aberto.

Ñasaindy, Damaris, Soledad e José Maria

Ñasaindy Barret de Araújo tem 44 anos e faz parte “ da geração dos filhos”. Filha de José Maria Ferreira de Araújo e Soledad Barret Viedma. Ele, brasileiro, marinheiro, participou da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, cuja insurgência em março de 1964, episódio conhecido como “Revolta dos Marinheiros”, destacou-se entre o conjunto de movimentações políticas que antecederam o Golpe. Mais tarde, ele ingressou na luta armada contra a Ditadura. Como militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi fazer treinamento de guerrilha em Cuba. Lá conheceu Soledad, uma experiente militante paraguaia, filha de uma tradicional família de militantes daquele país, e que também estava em Cuba por motivos políticos.

Ñasaindy nasceu em 1969 da relação entre esses dois militantes. Ela nunca co-nheceu realmente os pais. Suas memórias são “sensitivas” e provém do “olhar de outras pessoas”. Quando tinha um ano e dois meses, em julho de 1970, seu pai partiu de Cuba para se reinte-gra à luta armada no Brasil. Sua mãe viria logo em seguida, em dezembro desse mesmo ano. José Maria desapareceria em São Paulo, em 1970. Preso e morto sob tortura no DOI-CODI, sabe-se que seu corpo foi enterrado sob nome falso no cemitério de Vila Formosa, embora não

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tenha sido até hoje localizado. Soledad encontrou o mesmo destino de José Maria, em 1973. Militando também pela VPR, ela foi uma dos seis militantes mortos no episódio conhecido como “Massacre da Chácara São Bento”, em Pernambuco. As mortes resultaram diretamente das ações de Cabo Anselmo, um dos mais conhecidos “agentes infiltrados” da repressão nas organizações de esquerda. Personagem talvez conhecido pelo leitor, Anselmo começou sua militância também durante uma participação na “Revolta dos Marinheiros”. Posteriormente, tornou-se um “informante” da repressão. Macabramente, o ex-marinheiro havia militado com José Maria nesse passado próximo e, no momento das mortes, vivia com Soledad, que morreu grávida de um filho seu.

Em cuba, Ñasaindy foi deixada aos cuidados de Damaris Lucena, outra militante da VPR que estava exilada no país, com quem Soledad conviveu durante um período. Considerada como mãe, Damaris criou Ñasaindy junto com seus próprios filhos, trazendo-a de volta ao Brasil, quando de seu retorno ao final do exílio. A “verdadeira história” de sua “origem” nunca lhe foi escondida, mas a verdade do que havia acontecido com seus pais, só pôde ser descoberta com a volta ao Brasil. Notícias chegavam a Cuba, mas eram sempre muito duvidosas. A chegada ao Brasil foi, para Ñasaindy, o começo de um conjunto de buscas. Inicialmente, ela teve dificul-dades de recuperar uma documentação que incluísse o nome de seus pais, já que possuía apenas uma certidão de nascimento cubana com um nome falso. Todo o processo burocrático foi muito complexo e só pode se desenrolar quando ela conseguiu, junto a uma irmã de Soledad, acesso à certidão verdadeira que sua mãe havia lhe feito em Cuba e deixado sob os cuidados dessa tia. Apesar disso, os contatos com a família de sua mãe, composta por militantes perseguidos e re-fugiados por vários locais da América Latina, sempre foram difíceis. O encontro com a família de seu pai foi também o encontro com a história dele e da verdade sobre sua morte. Paulo Maria Ferreira de Araújo, irmão de José Maria, procurava-o desde que ele, ainda nos anos 1960, entra-ra para a clandestinidade, cortando os laços com a família. Sua mãe, uma senhora idosa e muito religiosa sofria com a completa falta de informações sobre o filho. Foi por sua entrega dedicada a esta busca que Paulo veio a conhecer o movimento de familiares nos anos 1980. Participando do TNM/SP, conseguiu, aos poucos, acesso a informações que comprovaram a morte de José Maria. A mais contundente delas, uma fotografia do irmão morto, encontrada durante buscas nos arquivos do IML. É nesse contexto que Paulo entra em contato com Ariston Lucena, o mais velho dos irmãos adotivos de Ñasaindi. Ariston não esteve exilado em Cuba. Foi preso no Brasil aos 17 anos e condenado à prisão perpétua. Mais ou menos no mesmo período, seu pai seria assassinado a sangue frio na frente de Damaris, que seria presa, torturada e, poste-riormente, banida (com os dois filhos mais jovens), após serem trocados com outros presos pelo Cônsul Japonês sequestrado pela VPR. Ariston só conheceu a irmã adotiva na sua chegada ao Brasil, momento em que pôde lhe confirmar a morte de José Maria, ocorrida quando ele estava preso no DOI-CODI/SP. Também por meio desses encontros, Ñasaindi pôde conhecer Paulo,

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descobrindo toda uma nova família.215

Conheci Ñasaindy em meio aos encontros do campo MVJ. Troquei palavras com ela em algumas oportunidades e não tardei a descobrir, até pela semelhança física, ser ela a filha da mítica guerrilheira Soledad Barret. Contudo, só tive realmente acesso à sua narrativa quando ela teve a oportunidade de participar de duas audiências da CVRP: uma dedicada ao desaparecimento de seu pai e outra à sua própria história, no Seminário Infância Roubada. Desde o primeiro mo-mento, seu jeito calmo e gentil e seu olhar melancólico me chamaram atenção. Tais características também se revelavam em sua maneira de narrar, bem como de refletir sobre sua própria trajetória.

Na primeira audiência, vi Ñasaindy iniciar sua fala definindo-se como pertencente à “geração dos filhos”, para quem a busca pelos desaparecidos seria uma busca por si mesmo. Assumir sua imersão nessa condição de filha em busca de uma memória dos pais foi o primeiro passo de toda uma reflexão focada, ela mesma alertaria, muito mais em seus próprios processos dolorosos do que em informações, conforme a principal linha de interesse das audiências. Tais processos dolorosos, como ela nos dizia e nos mostrava, são fundados na ambiguidade de um pas-sado que é, a um só tempo, vivência intensa e realidade que escapa. Sigamos com suas palavras:

As minhas memórias vêm dos olhos das outras pessoas. Eu não tenho uma lembrança, a não ser sensitiva. Se eu me coloco e me imagino como um bebê, meu pai esteve perto de mim, próximo de mim até enquanto eu tinha um ano e dois meses. Se eu me locomovo assim mentalmente, psicologicamente, sen-sitivamente para aquele momento eu encontro um carinho, uma afetividade. Por quê? Porque eu sei que esse casal José Maria Ferreira de Araújo e Soledad Barret Viedma viveram juntos, foram casados, eu nasci, viveram juntos por mais de um ano nesse hotel em Cuba, então, houve esse ambiente familiar, isso é uma realidade que aconteceu, mesmo eu não lembrando diretamente. E isso é muito importante para mim. Porque mesmo nas minhas fantasias, porque as memórias, em si, dessa data, algumas pessoas conseguem acessar, mas eu acho que não tenho ainda essa capacidade, mas eu tenho capacidade de imaginar o que é o amor. Porque eu sei, porque eu sou mãe, porque eu já senti a importância e o valor que um bebê traz para uma família, para um casal que se ama, que se gosta e que está vivendo muitas questões juntos. Mas eu não lembro. E uma coisa que me chamava e me marcou muito a atenção, apenas.... só por um detalhe, para as pessoas terem um pouco dessa sensibilidade, da im-portância para nós como filhos, como a gente vivencia isso de verdade, é uma foto que tem os braços do meu pai, mas ela está cortada não tem a cabeça, e eu estou nos braços dele assim. Eu sei que essas ações eram feitas em função de segurança, mas eu ficava olhando aquela foto e eu via só os braços e nunca tive acesso. Assim, até os 10 anos de idade, mais ou menos, eu não tive nenhuma foto do meu pai, eu só tinha foto dos braços, e tinha uma outra que tinha um corpo sem cabeça também que eu sempre achei que era ele também, que aí

215 Caderno de campo 2, 26/02/2013. Os trechos citados a seguir, quando sem referência, são extraídos da transcrição da 13º Audiência Pública da CVRP. Adicionalmente, utilizo as transcrições do depoi-mento de Ñasaindi no Seminário Infância Roubada (CVRP, 2014).

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tinha um corpo maior. Mas para vocês terem uma ideia de como as coisas são fortes e intensas pra nós, a menos de uma semana, no dia 20 agora deste mês, eu me dei conta de que não podia ser ele, porque aquela criança lá não tem um ano e dois meses, sou eu, sou eu maior, era outro homem, mas até aquele momento eu sempre pensei que era ele. Então, você vê é muito forte, muito intenso, muito vivo dentro de nós esse processo constante de estar lidando com essas perdas que são insubstituíveis, que nunca serão...

Ñasaindy conhece a história. Porque lhe foi contado, ela sabe ter existido um casal, uma vida comum, um amor do qual é fruto. Mas, ela não se lembra. E esse não lembrar se reflete em sofrimentos. O acesso conferido pelo saber racional – embora esse saber esteja praticamente desprovido de referências mais concretas (escritos, lembranças, imagens) - não lhe é suficiente. Mais do que isso, a foto dos braços de seu pai, o único registro material desse cotidiano passado, parece atuar no sentido oposto ao da compreensão racional. Incompleta e restrita, a fotografia age ambiguamente. É tanto uma espécie de prova da intimidade e do carinho desfrutados nos braços de seu pai e no seio familiar, quanto um registro da impessoalidade (na ausência do rosto) e do distanciamento (na falta de lembranças próprias desse rosto) dos quais ela se ressente. A fotografia é não mais do que uma lembrança de um cotidiano que surge para ela impenetrável. Ao menos pela via racional. Ao se dispor a assumir as lacunas e zonas de completo desconheci-mento sobre a história que identifica como sua, Ñasaindy elege a emoção como via de acesso. A fotografia se torna base para uma regressão afetiva, imaginativa e sensitiva àquilo que, de outra forma, não pode ser apropriadamente apreendido. Afinal, de que serve a descoberta racional de que um daqueles corpos fotografados não seria efetivamente o de seu pai, a não ser lhe revelar o quanto esse impenetrável se tornou seu cotidiano? Um passado que vive intensamente dentro dela. Enquanto se esforça por imaginar o vivido, Ñasaindy sente saudade do que não viveu. Seu olhar para o mundo é marcado pela melancolia, sentimento que acredita ser caracterizador não apenas dela mesma, mas dos “filhos” de uma maneira geral: “É uma coisa dos filhos, eu acho assim, essa coisa da melancolia, a gente conseguir absorver e captar todas essas tristezas das faltas, das perdas”.

Em sua singularidade, a trajetória de Ñasaindy teria pontos de contato com a de inúmeros outros filhos de presos políticos ou de mortos e desaparecidos, cujas vivências de epi-sódios relacionados à clandestinidade, à prisão e à separação dos pais, ao sofrer ou presenciar violências físicas e, finalmente, à morte ou ao desaparecimento permitem a identificação de uma experiência comum. Ela sabe que, como ela, também pensam assim outros “filhos”. Resultado de processos de trocas e descobertas desenvolvidos entre muitos deles ao longo dos anos. A partir de seus olhares, adentramos uma forma muito diferente de refletir sobre as violências pas-sadas daquelas notabilizadas na esfera pública brasileira. Neles, a Ditadura surge como desestru-turadora de famílias mais do que de organizações políticas, como capaz de causar danos sobre subjetividades, mais do que sobre redes de resistência política. Ainda que uma perspectiva não se oponha, nem deseje se opor à outra. “Não há como medir a amplitude da forma pela qual a Ditadura invadiu as nossas vidas”, destaca Ñasaindy, trazendo as reflexões sobre a violência política para

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o plano das relações sociais em que estão articulados o parentesco, processos de construção de identidades e de formação de vínculos afetivos.

No filme 15 filhos podemos encontrar passagens bastante condensadoras de al-gumas das questões sobre a qual se voltariam em comum esses “filhos”. Questões que vários dos entrevistados no filme retomariam, vinte anos depois, no Seminário Infância Roubada.216 Transcrevendo algumas de suas falas a seguir, minha intenção é mostrar como o desapa-recimento e a ausência são inseridos por eles em relatos pessoais, onde os eventos passados demandam sentidos autobiográficos:

Eu tentar construir essa imagem, porque eu não sei nada. Eu não sei como meu pai era. Eu não sei as coisas mais banais. Eu sei o que ele fez e sempre na minha cabeça fica uma coisa grandiosa, de herói, porque afinal de contas, ele morreu por um ideal e ele tava disposto a isso, então fica aquela coisa gigan-tesca que até me oprime um pouco (Tessa Lacerda).

Essa lembrança do meu pai por muito tempo foi uma imagem fictícia na mi-nha cabeça. Não tinha uma imagem formada do rosto dele. Com sete, oito anos, eu ganhei uma foto dele com 16 anos. Aí, mais pra frente, com 16, eu arrumei uma foto dele com 3 anos de idade. Eu não conseguia formar uma imagem de um pai com 3 anos, um pai com 16 anos, você não consegue. É inconcebível você olhar para uma foto de um garoto de 3 anos ou 16 e imagi-nar que aquela pessoa é seu pai. Isso é muito difícil (João Carlos Schmidt de Almeida Grabois).

Eu fui atrás das pessoas que militaram com ele, eu tentei realmente reconsti-tuir um pai. Agora, isso não resolve. Isso não resolve. Eu tento isso porque é uma forma de eu me entender hoje. (Marta Nehring)

E até hoje é difícil você aceitar uma morte que não é material, que você não tem... mais que isso. Mais do que essa imaterialidade da morte, pra mim ain-da, a imaterialidade da vida, porque eu não tenho... eu não conheci, né? O meu pai. Então, é absolutamente pirante, você tentar, por um lado, imaginar como o seu pai era e, por outro, imaginar que isso que você imaginou morreu (Tessa Lacerda) (15, 1996: 14 a 17 minutos).

Não é, portanto, raro que os “filhos” manifestem essa vontade, identificada como algo trazido da infância, de melhor conhecer seus pais, de construir sua imagem física e sua per-sonalidade, de romper a figura mítica e heroica construída pelas narrativas de exaltação políticas (ou, ao contrário, de desejar, como forma de reparação estatal, que seus pais sejam declarados heróis, já que cresceram ouvindo em toda a parte declarações pejorativas sobre aqueles que tanto amavam e identificavam como fonte de carinho e proteção). Nem tampouco é raro que a admi-nistração desses desejos (alguns deles pouco negociáveis) e dessas memórias (em sua existência

216 O conjunto de seus depoimentos realizados no seminário foi publicado em livro homônimo pela CVRP (2014).

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ou em sua falta) se apoie, de um lado, em exercícios de imaginação afetiva e, de outro, em uma disposição para a lida com o sofrimento. Em um caso afetivamente próximo de Ñasaindy, o de sua irmã adotiva, Telma Lucena, não é a falta, mas o excesso de memória que causa tormento. Com três anos de idade, ela assistiu seu pai ser assassinado a sangue frio na frente de sua casa, foi arrancada dos braços de sua mãe, viu ali mesmo o início das agressões contra ela e, mais tarde, foi levada à sua presença deformada pela tortura. Ela se recorda de todos esses fatos, apesar da pouca idade, e é taxativa em relação a sua memória: “gostaria muito de poder apagar esse momento do assassinato do meu pai da minha vida. Mas eu não posso, eu não quero e eu não consigo. E eu não vou” (CVRP, 2014: 84). Além do momento da morte ser a única memória que possui de seu pai, Telma sempre sentiu que apagar essa memória seria apagar a história de sua família, apagar sua própria identidade. Visceral, conforme já dito, sua identificação com o pai morto está profunda-mente arraigada, participando de suas construções do eu.

Para Telma, era preciso assumir esse sofrimento e lidar com ele no seio familiar, onde Damaris nunca deixou de falar sobre este tema. Ñasaindy conviveu nesse mesmo ambiente. Cresceu sem memória dos pais, mas com a consciência da verdade que Damaris fazia questão de frisar. Sua história poderia ter sido diferente? Seus pais tinham consciência de que não mais volta-riam? Como e, sobretudo, quando a relação com Damaris e seus filhos se tornou um seio familiar alternativo ao que ela havia definitivamente perdido? Todas essas questões são de difícil resposta. Ñasaindy se debruça sobre elas, mas não tem certeza sobre as respostas: “eu fui ficando, ficando, ficando com a Damaris. Ela foi me assumindo como filha, eu fui assumindo ela como mãe, e os filhos dela como os meus irmãos. Essa afetividade foi se compondo e se fortalecendo. E meus pais nunca voltaram” (CVRP, 2014: 101). A afetividade com a família adotiva e o sofrimento pela ausência da “legítima” são dois movimentos que se entrelaçam, gerando receios na menina de que pudessem ser tomados como antagônicos. Ela temia que o desejo de “recuperar sua identidade” (como hoje define esse processo) pudesse ser entendido como uma rejeição da identidade e da afetividade já assumidas. Talvez por isso, ela diz, tenha demorado tanto a encarar essa busca e assumir esse sofrimento. Toda a dificuldade em obter uma documentação com o nome de seus pais reconhecida pelo Estado seria apenas uma face do processo. Os documentos, essa espécie de materialização de sua identidade, e o reconhecimento público que eles trazem consigo, comporiam com outros complexos movimentos, tanto internos quanto relacionais, aquilo que passaria a ser sua busca, cuja necessidade de articular, como no caso dos documentos, também parece ter sido exigida por sua chegada no país.

O Brasil a confrontou com a certeza sobre as mortes de seus pais, aquela que não se podia ter ou não se queria ter em Cuba. Confrontou-a também com a descoberta das primeiras informações sobre as circunstâncias dessas mortes e, pelo menos no que diz respeito a seu pai, o contato com aqueles que também sentiam a ausência e podiam falar-lhe sobre alguns aspectos de sua vida. No encontro com os familiares do pai, a avó, os tios e os primos, Ñasandy diz ter descoberto um seio familiar receptivo e extremamente carinhoso, ao qual se entregou e vem se

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envolvendo, agora já há muitos anos, em uma convivência contínua, sem deixar de lado a convi-vência com a família de Damaris. Não à toa, ela se diz filha de Soledad, José Maria e Damaris. O encontro com a família do pai parece ter sido tão importante para ela, quanto para eles. Ao menos, foi o que testemunharam os tios e os primos que a acompanharam à audiência. A família reunida fez questão de sentar-se à mesa com Ñasaindy e dissertar sobre a busca de Paulo pelo irmão. Nas lembranças dos dois filhos, Paulo era apenas um filho que, sem nenhuma motivação ideológica, apenas afeto, queria saber e dizer à mãe aflita onde estava o irmão. Emocionados pela dedicação do pai – de quem disseram não se lembrar sem estar a procura do irmão – os primos de Ñasaindy tomaram a palavra para expor e demonstrar sua afeição com a luta paterna, algo que se converteu em carinho pela prima encontrada. Ela seria um alento, um final feliz para um tipo de busca que costuma trazer apenas amargor. No ambiente extremamente sensível criado no decorrer da audiência, o acolhimento descrito por Ñasaindy se fazia, para nós, visível.

Ao mesmo tempo, esse final feliz possível conformado no encontro com a família não surge ao olhos de Ñasaindy como suficientes para que ela sinta que se encontrou e abraçou seu pai. Para ela, este é um processo que se desenrola no tempo, sem perspectiva de encerrar-se, desenvolvido tanto em seu interior, em processos de imaginação e reflexão que revolvem sua dor, por vezes denominados por ela “terapêuticos”; quanto na relação, nos encontros, nas trocas, nos pedaços da verdade que vão se compondo, permitindo e alimentando tal processo na mesma medida em que o expõe à sociedade.

Neste momento, agora, eu tenho certeza que já está havendo um crescimento, já está havendo uma influência do que são essas audiências, do que é a comis-são, na vida das pessoas, inclusive nós personagens que estamos convivendo com isso há quase 40 anos. É um dia atrás do outro, é um momento atrás de outro, é um encontro atrás do outro, é um pedacinho da verdade que vai se compondo a cada minuto, a cada busca, a cada encontro. E esses momen-tos aqui parecem que são mais intensos, porque eles têm um potencial muito maior por que eles têm muita informação. Numa conversa informal de um simples almoço, a cunhada, traz uma referência a um nome novo, alguém que ligava de madrugada e fala. Poxa, isso é muito importante. Muito importan-te pela oportunidade de estarmos intercambiando ideias e fazendo conexões. Finalmente, eu acho que a proposta do que é trazer para a população esses momentos, essa história, gerar a importância da memória, eu acho que isso acontece aqui já de cara, muito forte.

(...)

Então, são muitos processos que, com certeza, a partir do momento que a ver-dade vai se dando, tudo isso vai se acomodando dentro de nós mesmos e nós vamos conseguindo nos nutrir de informações reais, de fatos, de ocorrências, de uma pessoa de verdade.

(…)

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Todas essas questões, tudo isso faz parte dessa trajetória que deveria estar sendo amenizada, mas pessoas como Jorge [irmão de Soledad] estão, há mui-tos anos, tentando entrar em contato com esses momentos, porque por mais consciente que você esteja, por mais clara que esteja sua opção, sua escolha ideológica, suas ações, por mais que você consiga visualizar esse caminho de uma forma clara, esclarecida para você, a experiência, a convivência traz per-das fortes, ganhos fortes, e a gente vai guardando, vai acumulando e aquilo vai ficando. E chega um momento que só depois de muitos anos, de muito estar e repensar e pensar aquelas experiências e lembrar as pessoas e lembrar as situações, que a gente consegue, realmente, olhando um pouco de longe, avaliar. Eu penso assim. E para algumas pessoas falar inclusive sobre isso. Eu penso que você, que Jorge, todos nós, hoje, estamos fazendo justamente esse exercício de se encontrar com a verdade dentro de si, de tentar mostrar para as pessoas o que isso significa e torcer para que elas vejam alguma coisa.

Em seu texto sobre o luto no Brasil contemporâneo, partindo de dados obtidos em uma pesquisa quantitativa, Koury (2014) mostra que a maior parte de seus informantes esta-belece uma relação entre a perda e o sofrimento. Ainda que, para cada um, essa relação tenha diferentes nuances, em comum os informantes se refeririam à fragilidade na qual a pessoa se percebe quando toma consciência daquilo que perdeu. A relação estaria entre uma percepção objetivada da perda, em que o sofrimento é uma consequência quase natural, uma dor física e moral resultante da impotência diante da perda concreta, e uma percepção difusa, que traz sentimentos de nostalgia, de aniquilamento de si e de atemporalidade do sofrimento. Diante de uma sociabilidade brasileira contemporânea, segundo o autor, cada vez mais marcada pela individualidade e intimidade, a solidão e o refreamento das formas de solidariedade, o que se refletiria sobre as possibilidades de comunicação da perda, o sofrimento traria sensações de iso-lamento e conformismo ou ceticismo diante da incompreensão por parte daquele que sofre em relação a um mundo que não compartilha sua dor. Os atores sociais, assim, se envergonhariam de seus sentimentos e procurariam formas contidas de comportamento, como se sua dor pudesse contagiar os demais ou excluí-lo do social.

Todas estas percepções perpassam as visões dos familiares sobre seu luto e a forma como ele é recebido socialmente por uma sociedade que, ademais, teria problemas em confrontar seu passado ditatorial, gerando, conforme venho mencionando, uma série de ressentimentos. Por outro lado, no que tange à relação entre os familiares e os demais atores comprometidos com seu movimento, antes do que um processo envergonhadamente contido nos sujeitos sociais, o sofrimento é visto como um vínculo. Fruto de processos que se passam internamente e “se acomo-dam” em movimentos íntimos e individuais ao mesmo tempo em que produzem convivência (e são por ela produzidos). Nas relações, nos encontros e nas trocas criam-se vínculos de afeto mui-to profundos, vistos como relações que os constituem e os despossuem, e em meio as quais esse sofrimento se acumula e se desenvolve “um dia atrás do outro, um momento atrás do outro”, sem pretensões (nem urgência) de que deva encontrar um ponto final. Dai que Ñasaindy sinta que:

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Tão importante quanto estar aqui e quanto falar do meu pai é ter a presença de vocês, de a gente se encontrando nessa situação, nesse momento, todos nós carregamos essa... E eu sou vocês e vocês são eu.

Ao dizer essas palavras, Ñasaindy parecia se referir aos Araújo, aos Lucena e ao conjunto dos familiares ali presentes. Ela nos indica um sentido de comunhão. A identificação de uma comunidade em torno do sofrimento passa pela percepção do familiar como esse “eu” que existe com “vocês”. Ou, como define Butler (2009), do eu como parte de uma comunidade, como uma forma de ser para os outros ou por causa dos outros. Esse sentimento revelado por vários familiares ao longo da pesquisa é grande parte das vezes descrito a partir do idioma do paren-tesco. Como Amelinha que, ao falar de sua participação na localização da fotografia de José Maria Ferreira de Araújo no IML, disse: “entro para a família Ferreira Araújo com essa foto”. Ou como Suzana Lisboa que, na audiência sobre o caso Luís Eurico, disse: “de tudo que a Ditadura nos tirou, eu acho que a gente só consegue sobreviver porque tem Laura, tem Criméia, tem as irmãs que eu reencontrei no caminho. Nova família”. Do ponto de vista desses familiares, se diversas são as formas possíveis de enraizamento e engajamento com certos elementos que acreditam caracteri-zá-los (o sofrimento, a vulnerabilidade, a luta, a indignação, a consciência da morte, a identifica-ção visceral com os mortos), une-os a percepção de que toda as formas são não apenas produto, mas também produtoras de relações afetivas que denominam como familiares.

Mariluce, Gildo e Tessa

Mariluce Moura conheceu Gildo Macedo Lacerda em Salvador, em 1972. Mineiro, ele havia participado do movimento estudantil na UFMG, faculdade de onde foi expulso com base no Decreto-Lei Nº 477.217 Foi eleito vice-presidente da UNE na última gestão antes da desarticulação da entidade pela Ditadura. Como militante da Ação Popular Marxista – Leninista (APML) foi “deslocado” para Salvador, onde conheceu Mariluce, jornalista e militante da mesma organização. Viveram juntos por um ano, ela com vida legal e ele clandestino. Extremamente apaixonados e felizes, assim Mariluce os descreve. Mas em 22 de outubro de 1973, a história de amor se transforma em horror. Perseguido pela repressão, Gildo foi preso ao sair de sua casa. Por volta do mesmo horário, Mariluce foi presa em frente ao Elevador Lacerda. Estava grávida de um mês. Nesse dia, foram realizadas, ao todo, prisões de cinco militantes da APML. Encontraram-se todos na Superintendência da Polícia Federal. Foi a última vez que Mariluce e Gildo se viram. Dali foram levados em momentos distintos para o Quartel do Barbalho, onde atuava o DOI-CODI/BA, e torturados. Gildo e outro militante, José Carlos da Matta Machado, foram levados para o Recife. Acredita-se que tenham morrido no dia 28 de outubro.

217 Decreto de 1969, chamado o AI-5 das universidades, previa punições por atividades políticas a toda a comunidade universitária.

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Mariluce foi informada em 1º de dezembro. Um jornal que lhe foi mostrado noticiava as duas mortes em troca de tiros naquela cidade, durante uma diligência em que eles entregariam um companheiro à polícia. A versão é contestada pelo movimento de familiares. O corpo de José Carlos foi recuperado, mas Gildo nunca mais foi visto. Mariluce foi liberada 50 dias depois, atordoada, viúva, e ainda grávida, apesar das torturas sofridas no estágio inicial da gestação. A partir daí, Mariluce iniciou sua luta pela recuperação do corpo de Gildo. Apesar dos esforços empreendidos, ele nunca foi devolvido à família. Por meio de pesquisas realizadas pelo GTNM/PE, descobriu-se, em 1991, que o corpo havia sido necropsiado no cemitério de Santo Amaro, enterrado como indigente no cemitério da Várzea, depois transferidos para uma vala comum. De lá, teria sido transferido mais uma vez para uma vala comum no cemitério Parque das Flores, que abriga ossos desde 1945. Uma vala a céu aberto. Mariluce e sua filha, Tessa Lacerda, seguem clamando pelo direito de enterrar Gildo.218

Como Criméia, Mariluce passou pela vil experiência de ser torturada grávida. Algo que ela define como um terror inalcançável à inteligência. As formas pelas quais a tortura pôde ter afetado Tessa foi, desde aquele momento, uma preocupação constante em sua vida. Consultou médicos, realizou exames e esteve sempre atenta a esta questão. Contudo, nas vezes em que as escutei falar, me chamou atenção o fato de que, em geral, poucas são as palavras dedicadas por elas a essa experiência. Suas narrativas seguem sempre a trilha do desaparecimento de Gildo, expondo, principalmente, sua permanente perplexidade e sua gana de um dia poder enterrá-lo. Tessa chega a dizer que lhe dói mais não poder enterrar seu pai do que saber que foi de alguma maneira torturada dentro do corpo de sua mãe.

Como nas histórias anteriores, o desaparecimento de Gildo nos confronta com am-biguidades nem sempre fáceis de articular e absorver. Quando ouvimos Mariluce falar de sua perda brutal, por exemplo, não raro somos surpreendidos por seu trânsito intenso pelas temá-ticas da vida e do afeto. Eu diria que é, sobretudo, a forma ainda fervorosa como ela se refere a Gildo que chama atenção de todos e comove:

Embora hoje nós estejamos falando tanto de morte e lembrando momentos tão duros e dolorosos, eu também gostaria de falar brevemente um pouco, tra-zer um pouco de memória mais de vida, mais de alegria. Porque a minha vida com Gildo, nós vivemos juntos na mesma casa por um ano, foi um casamen-to curto e absolutamente intenso, teve também muitos momentos de muitas, muitas alegrias. Portanto nessas memórias mais pessoais, eu queria partilhar um pouco alguns retalhos que permanecem todo o tempo, e de alguma forma me estruturam também como pessoa. Assim ao lado daquele companheiro que era extremamente inteligente, estudioso, generoso, um militante disci-

218 Os trechos citados a seguir, quando sem referência, foram extraídos da transcrição da 90º Audiên-cia da CVRP, 25/10/2013. Adicionalmente, utilizo as transcrições do depoimento de Tessa Lacerda no Seminário Infância Roubada e o relato de Mariluce Moura para o livro que resultou desse seminário (CVRP, 2014).

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plinado, afora todas essas características que eu via em Gildo, eu via também um homem absolutamente apaixonante. (...) E de fato com toda a tensão que nós passamos foi uma vida, desse ponto de vista do afeto, extremamente feliz. Eu me lembro muito de Gildo entrando assim, eu adorava olhar ele entrando com os cabelos mais ou menos longos, e entrando no corredor antes de chegar a nossa casa, na Boa Viagem. Lembro todas as tarefas domésticas que nós dividíamos, ele então cozinhava bem melhor do que eu, porque eu era um desastre na época, hoje até sou uma boa cozinheira, mas na época era um horror. Lembro muito dele no carnaval de 1973 vestindo uma túnica linda (…). Então para concluir eu gostaria de dizer que, com todos os sofrimentos e com todas as dores, o legado de Gildo, para mim, pessoal, um legado assim da... Primeiro da extrema possibilidade das relações amorosas, eu acho que se constroem mundos assim extraordinários através das histórias amorosas; segundo é um legado de extrema generosidade, aquela generosidade que vai até o limite mesmo da vida. E o legado também é um belíssimo de um legado na forma de pessoas, da Tessa, minha filha, e que foi de fato estar grávida de Tessa me manteve viva, eu digo isso sempre.

Durante essa fala, realizada em audiência da CVRP, Mariluce nos conduziu por entre estes e outros fragmentos de memória, nos mostrando como conheceu e se apaixonou por Gildo. Contou-nos momentos da relação do jovem casal ainda muito estruturada no ápice da paixão e, pouquíssimo tempo antes da tragédia, estimulada também pelos planos e sonhos que envolviam a gestação de uma nova vida. Mas, conforme ela temia, a realidade política do país esfacelou toda essa vida por construir, deixando-a viúva aos 22 anos em uma condição de extre-ma dor. As experiências de compartilhar com Gildo o amor pela filha, as atenções e os cuidados com seu desenvolvimento e os preparativos para sua chegada ficaram por acontecer. Ela vivia “em paralelo à alegria de saber que o bebê seguia forte e saudável, a aridez extrema, a solidão infinita de um silêncio imposto e intransponível à partilha dessa alegria a quem ela mais de perto falaria e contagiaria” (CVRP, 2014: 290). Mariluce diz ter, nesse momento, condensado dentro de si dois processos simultâneos: um desesperado sentimento de morte em vida, e a possibilidade de se reencontrar com a vida na vida que crescia dentro dela. O amor de Gildo lhe criou um novo mundo que, ambiguamente, tanto a deixou vulnerável, quanto lhe deu condições de resistir. Tessa simbo-lizava seu amor. A vida se impondo contra o terror e a morte. Uma perspectiva de maneira nenhuma incomum entre sobreviventes, sobretudo, entre mulheres que passaram grávidas (ou temendo por seus filhos) pelos espaços de morte da Ditadura.219 Desde então, conceder ao amor

219 No filme Que bom te ver viva!, sobre mulheres sobreviventes da Ditadura, esse tema surge no de-poimento de várias delas. Em especial com Regina Toscano que, grávida quando presa, perdeu este que seria seu primeiro filho na tortura. Ela descreve da seguinte maneira seu sentimento em relação à maternidade: “quando eu fui presa, eu estava grávida, né? E perdi esse neném que seria o meu primeiro filho lá. E durante a cadeia toda, o que realmente me segurou era a vontade de ter um filho. A certeza que eu ia ter um filho. Isso representava pra mim vida, né? Se eles estavam querendo me matar, eu tinha que dar uma resposta de vida. E ter um filho pra mim simbolizava, simboliza até hoje, a resposta de que a coisa continua, que a vida tá aí, que as coisas não acabam. E a primeira coisa que eu fiz quando saí da cadeia, logo depois o Paulo, que era casado comigo na época, também saiu, foi engravidar, né? E o Daniel nasceu muito representando pra nós, pra

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e aos vínculos de dedicação e cuidado criados em torno dele um caráter político transgressor não deixou de ser declaradamente assumido como um ato de resistência. Não à toa Mariluce con-frontou seus torturadores no passado, dizendo-lhes que seu filho ia nascer e se chamaria Gildo. Ao dizer-lhes que se dedicaria a homenagear Gildo de todas as formas possíveis através de sua maternidade, convertia-a também em uma outra forma de confrontar a Ditadura. Tal como su-gere sua atitude, os processos desencadeados pelas mortes e desaparecimentos não apenas agem no sentido de fazer do íntimo um substrato para a atuação política, quando os familiares tor-nam públicas questões extremamente pessoais, como aquelas relativas à sua identificação visceral com os mortos, sua consciência da morte, e sua identificação profunda com o sofrimento, como também fazem da intimidade, do pessoal, dos sentimentos e do cotidiano lugares de resistências possíveis.

Como no caso de Damaris, Mariluce trouxe o desaparecimento de Gildo para a consciência de Tessa desde de sua primeira infância, com cerca de dois anos de idade. Ela não tardou a casar-se de novo, tendo posteriormente mais dois filhos. Nesse processo, Tessa viveu conflitos emocionais semelhantes aos descritos por Ñasaindy, que giravam em torno da confusão entre seus afetos e afinidades parentais. A menina passou a chamar seu padrasto de pai, nutrindo grande afeto por ele, mas à medida que ia tomando consciência da ausência de Gildo, o pai que conhecia sem conhecer, ela sofria. Em um dos episódios íntimos descritos por Mariluce, a meni-na deu vasão a tais sentimentos, transbordando-os em palavras, gestos e lágrimas que expunham sua confusão. Em meio ao choro, ela dizia querer que o padrasto fosse seu pai, mas também não querer, porque desejava que Gildo estivesse vivo. A partir de fragmentos de memória a respeito de suas frustrações infantis, conversas sobre o assunto com a mãe e situações vividas em família, Tessa narra sua trajetória como uma crescente tomada de consciência da perda definitiva do pai. Algo que começa em um momento anterior ao que ela possa se lembrar, passa por seus conflitos infantis com essa ausência, conflitos que caminhavam lado a lado com uma esperança na volta, que diz ter fantasiado até o fim da Ditadura. Esse fim coincide com o início de sua adolescência, quando também vem a luta por incluir o nome de seu pai na certidão de nascimento e, um pouco mais tarde, a descoberta seguida pela leitura ávida de toda a informação que vinha sendo reunida ao longo dos anos sobre a morte de seu pai.

O desaparecimento deu lugar a exercícios de lida com emoções por vezes extrema-mente contraditórias. O que dava certeza à sua mãe sobre a delicadeza da situação que se de-senrolava não apenas nas arenas públicas em que podiam articular uma demanda por seu corpo, mas também em um campo de batalha íntimo: “ jamais senti meus pés sobre um chão firme lidando com esse repertório tão complexo de emoções, as de Tessa e as minhas mesmo” (CVRP, 2014: 286). Nos

mim, a vida. E os outros filhos que eu tive depois, André e Cecília, continuaram fortalecendo esse símbolo, que eu acho que a coisa mais forte que eu tenho são as crianças. Se alguém um dia quis me matar por estar lutando, eu dei uma resposta com a vida, a vida dos meus filhos.” (QUE BOM, 1989: 38 minutos).

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cuidados com a filha, a certeza de que não seria fácil para ela perceber a repercussão da ausência nas formas como ela poderia “se exercer livre e vigorosamente como sujeito”, ou identificar que senti-mentos de alteridade a perda poderia acionar em sua filha. Compartilhando os resultados de um laudo psicológico, feito por ocasião de um processo contra o Estado, Tessa conta que os efeitos da ausência de seu pai estariam projetados em sua personalidade: insegurança, baixa autoesti-ma e medo. Um medo que a fez dormir de luz acessa durante toda sua vida. Se esse doloroso processo de lida com a ausência a permitiu, em algum momento, a “interiorização da morte”, também fez nascer em Tessa a indignação. Em uma das lembranças mas antigas que possui sobre os instrumentos que, como criança, podia mobilizar para reconstruir aquilo que chama de sua história, Tessa teria desenhado, por volta de 7 anos de idade, sua mãe grávida no enterro de seu pai. Mas “ isso nunca aconteceu” e provavelmente não acontecerá, visto que as informações coletadas até hoje sugerem a extrema dificuldade da tarefa:

Temos essa informação, mas mesmo assim é muito duro. Não sabemos se há a possibilidade de identificação por meio de exame de DNA. Inclusive, eu contribuí com uma amostra de sangue para o banco de DNA do governo federal. O que sabemos é que, por ser uma vala a céu aberto, a identificação da ossada é inviável. Sabemos disso. (Pelo menos é a informação que tínhamos na década de 1990). Mas esse saber racional não tira a dor daquela criança que queria falar: “Eu sei que não dá, mas eu quero enterrar meu pai”. Eu quero levar os meus filhos [ao cemitério] e dizer: “Olha, o seu avô está aqui”. É claro que eu enchi a parede de minha casa com fotos de todos os nossos familiares, dos pais, dos avós e bisavós dos meus filhos para que eles vejam e entendam e reconstruam, e saibam que, além dessas pessoas com quem eles convivem, têm um avô que eles nunca vão conhecer. Então, saber racionalmente que isso é impossível, não adianta. É muito duro. Eu fico pensando também nos meus avós, pais de Gildo, o quanto deve ter sido duro para eles, que morreram sem ter enterrado o filho. O máximo que eu posso fazer é dizer para mim mesma: “Está bem, o meu pai está morto”. Mas não dá para dizer “Você nunca vai ter o corpo, nem túmulo, nem jamais vai ter direito de fazer o luto de maneira decente”. Isso eu não aceito. Não dá. Por isso que eu não acho tão absurdo para uma criança de 9 anos imaginar: “Quem sabe o meu pai fugiu para fora do país”. E o mais difícil é saber que não dá mesmo. A sensação que fica é que, com todas as aspas, é uma história que não fecha. Não é justo. Não é justo com ele. Não é justo com os pais dele. Não é justo com a minha mãe. Não é justo comigo. Não é justo com os meus filhos. Não é justo com ninguém. Na Grécia Antiga, Sófocles escreveu a tragédia Antígona, que mostra toda a questão do corpo insepulto. É uma necessidade do ser humano de sepultar seus mortos, fazer o luto, fechar o ciclo em certo sentido. Jamais eu vou abandonar essa história, nem se eu quisesse eu poderia dar as costas para a história do meu pai, para a história do Brasil. Mas eu queria – e aí é a criança que está dizendo – enterrar o meu pai. Não adianta me explicar cientificamente que não dá. É muito doloroso (CVRP, 2014: 287).

É impossível passar somente através da transcrição dessas palavras a emoção que Tessa deixou aflorar nesse momento. As dores que vieram à tona sem freios atribuídas a seus

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desejos infantis nunca poderão ser articuladas nos limites do que parece possível à lógica de re-paração estatal. O que sente e tem a nos dizer e nos mostrar é visceral. Precisa ser articulado pelo sofrimento, em palavras e gestos corporais que dão vazão a desejos creditados à infância, mas que parecem só terem inflado com o passar dos anos. O absurdo mais uma vez não pode ser interio-rizado. Ela quer enterrar o pai, é justo que assim o faça e não importa o quanto lhe digam (e que racionalmente entenda) ser isso impossível. Diante do deslocamento sentido em relação a uma ordem de coisas que permite essa impossibilidade, Tessa diz se relacionar hoje de forma ambígua com essa perda. Acredita não encará-la sempre de frente – talvez como gostaria de fazer ou como pensa ser o ideal projetado pela atuação pública de outros familiares – dada a extrema dificuldade que diz encontrar para tocar no assunto. No entanto, ela toca e, quando o faz, levanta sua voz para clamar a ausência de seu pai como uma perda “digna de ser chorada” (BUTLER, 2001).

Filósofa que hoje é, Tessa nos relembra uma associação muito comumente feita entre as lutas de familiares de desaparecidos e a tragédia de Antígona.220 Por certo, não desejo aqui articular análise sobre uma obra que se abre a múltiplas possibilidades interpretativas, como testemunha a variedade de analistas que sobre ela vêm se debruçando ao longo dos anos. Mais modestamente, desejo apenas me servir de algumas das reflexões construídas por duas autoras mais recentemente dedicadas a discutir a obra, Das (2007) e Butler (2001) que, em comum, exploram o contraste entre as clássicas leituras constituídas por Hegel e Lacan.

Conforme lembra Das, a figura de Antígona proporciona, para a literatura oci-dental, uma espécie de mito fundacional da tomada de voz contra a violência de Estado. Daí a pertinência da associação feita por Tessa. Segundo mostra a autora, Hegel acredita que essa tomada de voz deva ser entendida a partir da ideia de conflito estrutural. De um lado, a ordem da família marca a esfera do privado e das redes afetivas que estabelecem obrigações dos sobrevi-ventes com os mortos (obrigações sagradas que seriam anteriores ao social) e tem seus interesses defendidos pela mulher; de outro, a ordem estatal marca a própria construção do social e da esfera pública que exige a submissão das individualidades e tem no homem o vocalizador de seus princípios. Assim, Creonte e Antígona se oporiam na história como um direito se opõe a outro. Ela colocaria seus compromissos com o irmão acima daqueles que compulsoriamente possui com a comunidade. Veena Das, assim como veremos com Butler mais adiante, desenvolve sua

220 A tragédia de Sófocles conta o destino irremediavelmente trágico da família de Édipo. Ao descobrir ter matado o pai e casado com a própria mãe, Édipo, rei de Tebas, atormentado, se exila de seu reino. Seus filhos Polinice e Etéocles, em desacordo sobre a descendência do trono, combinam dividir o reina-do a cada ano. A negativa de Etéocles em cumprir o acordo ao fim de seu período de poder leva Polinice a aliar-se com o rei de Argos e invadir Tebas, dando início a uma guerra civil. Um duelo entre os irmãos leva ambos à morte, deixando o poder ao seu tio Creonte. Como sua primeira decisão, o novo soberano mandou enterrar Etéocles com honras de chefe de Estado, ao passo em que proibiu a realização do se-pultamento de Polinice, considerado traidor. Antígona, irmã dos príncipes, revolta-se com a decisão e desafia publicamente Creonte, engajando-se na tarefa de enterrar o irmão. Presa quando tentava fazê-lo com as próprias mãos, é condenada a ser enterrada viva. Na tumba onde é confinada, tira a própria vida.

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reflexão chamando atenção para o contraste entre essa leitura e aquela proposta posteriormente por Lacan. Trazendo o olhar para o aspecto trágico da narrativa, este autor rechaça a ideia de que o clamor de Antígona reflita um conflito entre dois direitos. De maneira próxima ao que argumentou Tessa, o conflito exporia uma injustiça, chamando atenção para o que Das define como uma verdade intolerável acerca da própria natureza criminosa da lei. O conflito se referi-ria, portanto, a “um mal contra algo que não pode ser facilmente nomeado” (DAS, 2007: 60).

Ao depositar atenção sobre o discurso final de Antígona – quando, já enterrada e prestes a se matar, ela diz que não teria desafiado o soberano por um marido ou por um filho, pois estes poderiam ser substituídos, mas o fez por seu irmão que, sendo de mesmo pai e mesma mãe, não o poderia mais ser – Lacan dá segmento à sua reflexão em cima de dois aspectos principais. Em primeiro lugar, ele acredita que a fala de Antígona se dá não em nome dos direitos sagrados dos mortos ou da ordem familiar, mas da singularidade de seu irmão e de sua perda. Aquele que pela lei seria um criminoso, para Antígona era um ser único e amado. Em segundo lugar, Lacan ressalta o lugar de onde Antígona finalmente proclama tais palavras: lugar limite em que seu eu se separaria entre a destruição e a resistência. Esse limite configura-se como uma zona entre duas mortes, um limiar onde morte e vida se encontram. Para Das, o mérito da reflexão de Lacan está no destaque dado a essa zona entre duas mortes que seria o lugar onde o indizível, a natureza criminosa da lei, poderia ser finalmente dito. Reivindicar a singularidade de seu irmão permite que a legitimidade das leis e da própria ordem social possam ser questionadas e transgredidas.

Observando esse mesmo debate, Butler ressalta que, para Lacan, o tema de Antígona é a paixão que se dirige à autodestruição. O que, inquestionavelmente, traz para a obra questões relativas ao parentesco e suas restrições: o problema do incesto que envolveria não apenas Édipo e Jocasta, mas também Antígona e Polinice. No entanto, para Butler, Lacan se aproximaria da obra muito mais a partir daquilo que define como um impulso de morte da personagem que derivaria no masoquismo. Ela chama atenção para como Lacan acredita que a imagem de Antígona seja fascinante justamente por estar a serviço da morte. A metáfora de seu enterro viva e do discurso feito nesse limiar torna Antígona uma figura fantasmagórica, alguém que está morrendo em vida, já localizada entre os mortos antes de finalmente se matar. Mas, é justa-mente ao se sustentar nesse ponto limite que Antígona vive um tipo de expiação que não leva à restauração da calma, mas à continuidade de uma situação de irresolução. Nesse sentido, a ima-gem do enterro viva remete ao ponto limite, onde uma pessoa pode permanecer em um estado de sofrimento. Como se sua imagem fantasmagórica na zona entre duas mortes configurasse um duplo, um receptáculo do sofrimento que a torna inatingível à destruição, permitindo-a resistir.

Butler, da mesma maneira que Das, argumenta que Lacan não vê o discurso de Antígona como um confronto estrutural. A autora chama atenção para o quanto o grito de Antígona é, na realidade, ambíguo. Um discurso que apela, simultaneamente, às leis divinas e às estatais, oscilando entre ambas as esferas. A princípio, tudo se passa como se Antígona levasse o

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amor por seu irmão longe demais, além do social, do politico e do simbólico, entretanto, vemos sua reivindicação ser feita na esfera pública e, portanto, nos termos do simbólico e do político. Como Tessa, ela reivindicaria justiça a partir da noção de universalidade. Mas também desafia essa mesma universalidade, na medida em que reivindica a singularidade radical de seu irmão. É ape-gando-se a essa singularidade que Antígona se recusa a obedecer qualquer lei que não reconheça publicamente sua perda. Nesse sentido, para Butler, Antígona não rejeita, mas faz uma apropriação transgressiva dos símbolos e discursos estatais na (e, portanto, da própria) esfera pública. Ela o faz, trazendo o íntimo e o pessoal para o centro de um questionamento político à ordem. Como a au-tora nota, “o que tudo isso sugere é que ela não pode fazer sua reivindicação fora da linguagem do Estado, mas tampouco essa reivindicação que quer fazer pode ser assimilada plenamente pelo Estado” (BUTLER, 2001: 48); inclusive porque, como procurei mostrar ao longo do capítulo, suas demandas, ainda que radicais e utópicas em relação àquilo que seria razoável ao Estado, e mesmo que fossem inte-gralmente atendidas, não esgotam os dolorosos processos vividos pelos familiares.

A vivência cotidiana do passado, da morte e do absurdo, tal como mostram as nar-rativas articuladas ao longo do capítulo, move, não sem conflitos e ambiguidades, as fronteiras entre o privado e o político que teimamos em querer fixar. Fronteiras com as quais os próprios familiares jogam, em geral também desejando fixá-las, mas que, por fim, tensionam ao levar seus sofrimentos e cotidianos para as arenas públicas em eventos políticos extraordinários, como aqueles constituídos em torno das comissões da verdade. Nesse movimento, eles põem em ques-tionamento não apenas nossas noções sobre o público, o justo e o legal, mas também nossas percepções sobre os espaços em que essas noções são (e podem ser) questionadas.

Ao saírem em socorro de seus mortos, afirmando por meio do afeto sua singulari-dade radical e, com ela, o valor político de suas vidas e mortes, eles nos mostram que o contrá-rio também acontece. Seus mortos os socorrem, participam de suas vidas, produzindo família, compondo sentidos para suas trajetórias e identidades, mas também legitimando suas vozes nos espaços públicos. Suas “vidas e mortes, assim, acham-se dialeticamente comprometidas” (EFREM FILHO, 2013). Ao abraçar o sofrimento, os familiares podem ver o cotidiano como espaço do político. Teia de relações e desenrolar de atos e sentidos onde a vida encontra a morte, tecendo uma dobra entre o pessoal e o coletivo, entre a fragilidade emocional ao qual estão relacional-mente submetidos e sua força política, enlaçando o luto e a luta.

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Vulnerabilidade e resistência

so.frer (lat sufferere, corr de sufferre) 

vti e vint 1 Padecer dores físicas ou morais.  vtd 2 Aguentar, suportar, tolerar.

(Dicionário Michaelis)

Com as narrativas e trajetórias trabalhadas até aqui espero ter conseguido dar fundamento empírico ao argumento proposto no início do capítulo. Ir “do luto à luta” não significa caminhar em linha reta, desde um ponto de partida até outro de chegada, mas realizar um movimento elíptico, onde as idas e vindas são um só caminho. Não acredito ser necessário retomar as histórias para afirmar que todas elas enlaçam a vulnerabilidade e a resistência em um nó por onde fluem os trânsitos narrativos. As histórias contadas a nós pelos familiares tecem narrativas da vulnerabilidade tanto quanto narrativas da resistência.

Ainda que, à primeira vista, essa aproximação possa parecer estranha, creio que, nesse ponto do texto, o leitor não irá considerá-la exótica. Na verdade, a confluência entre vulne-rabilidade e resistência não chega a ser algo raro. Ela está presente na própria definição de sofrer apresentada pela maioria dos dicionários de português.221 Congregando os sentidos de padecer e de suportar, sofrer é ser submetido a algo, mas também suportar esse algo ao qual se está sendo submetido. A palavra não denota, portanto, somente passividade, mas também agência. Sugere a confluência entre dois movimentos que, coexistindo, compõem o mesmo processo. Essa coe-

221 Segundo o linguista Aldo Bizzocchi, o sentido básico dos “verbos sufferre e subire é o de suportar, sustentar, isto é, ficar embaixo de algo, resistindo para não deixar cair. A palavra “sofrer” chegou ao português por herança do latim sufferre, passando pelo estágio intermediário sufferere (ou sufferrere) no latim vulgar. Os dicionários registram basicamente duas acepções para essa palavra: padecer, ter dor física ou moral (“Meu avô sofreu muito antes de morrer; ele está sofrendo por amor”); e suportar, ser submetido a, passar por (“Meu avô sofreu uma cirurgia; meu time sofreu uma fragorosa derrota; os vírus sofrem mutação”). A primeira acepção é geralmente intransitiva e admite o substantivo deverbal “sofrimento”. A segunda é transitiva e não tem deverbal. Pode-se até pensar que quem sofre uma cirurgia ou uma derrota de alguma forma tem dor. Talvez por isso tal verbo, que em latim significava originalmente “sustentar”, tenha assumido também o sentido de “padecer”. (…) No entanto, o latim também tinha um terceiro verbo com o mesmo significado: subire, formado de  sub-e  ire  (ir para debaixo de, portanto, submeter-se ou ser submetido a), que também significa “subir”, sentido que passou ao português. Curiosamente, outras línguas europeias usam dois verbos diferentes para as acepções “padecer” e “submeter-se”, em geral empréstimos respectivamente de sufferre e subire. (…) O que se nota é que tanto sufferre quanto subire contêm o prefixo sub-, que significa “embaixo”. Assim, em ambos os casos há a ideia de rebaixamento, inferioridade, submissão. Metaforicamente, quem padece uma dor ou se submete a uma experiência está debaixo de algo. (…) Consequentemente, o sentido básico de ambos os ver-bos sufferre e subire é o de suportar, sustentar, isto é, ficar embaixo de algo, resistindo para não deixar cair.” BIZZOCCHI, Aldo. As duas maneiras de sofrer. [site] Aldo Bizzocchi, 29, março de 2008. Dispo-nível em: http://www.aldobizzocchi.com.br/artigo66.asp. Acesso em 17/09/2015.

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xistência, entretanto, não é sempre percebida ou admitida. Em nossa busca por compreender e ordenar o mundo em que vivemos, submetendo-o a processos classificatórios, muitas vezes nos sentimos perturbados pelas ambiguidades. Talvez seja justamente essa perturbação que inspira a dificuldade de alguns familiares e sobreviventes em considerar o sofrimento como parte dos processos de atuação política dos movimentos sociais. Ou ainda a dificuldade que alguns ob-servadores encontram em utilizar termos como “vítima” para se referir a atores que reclamam uma agência política, ao se incorporarem a estes movimentos. Segundo essa lógica, se os atores reivindicam voz, então deixaram de ser vulneráveis. Se agem, é porque colocaram de lado (su-peraram) o sofrimento. Não é isso que observamos com os familiares.

Há nessa lógica certa resistência à própria vulnerabilidade, como identificou Butler (2014), que pode ter diferentes fundamentos. Do ponto de vista das relações políticas, querer-se vulnerável pode ser visto como o mesmo que aceitar a sujeição a certos poderes e posturas institucionais temidas como paternalistas. Temendo ser com elas complacente e, por consequência, cúmplices de uma reificação de certos grupos como vulneráveis por defi-nição, tal como indicam as desconfianças colocadas pelo dilema do movimento de familiares abordado no capítulo anterior. Como vimos ali, a crítica às políticas institucionais inspiradas pela compaixão e pelo cuidado passam justamente pelas práticas de controle, apagamento, hierarquização e silenciamento que sob elas podem se esconder (AGIER, 2006; FASSIN e RECHTMAN, 2009; ROSS, 2003; WILSON, 2001). Todas estas críticas trazem um ponto importante e são legítimas. Porém, como apontei naquele momento, o fato dos próprios atores sociais mobilizarem estas noções (tanto categorias como vítima, sofrimento e vulnerabilidade, quanto o entendimento de que sua institucionalização pode escamotear práticas disciplinares) nos leva à importância de matizar a perspectiva da sujeição. Algumas questões habilmente propostas por Butler (2014) podem nos ajudar a pensar o problema. Questiona a autora: o dis-curso da vulnerabilidade descarta a agência? Assumi-lo significaria negar, em contrapartida, a vulnerabilidade daquilo ao que se está opondo, no caso, das instituições? Ao agir, confron-tando-se com as instituições, os vulneráveis deixariam de sê-lo?

Não apenas o sofrimento parece ser um bom caminho para pensar estas questões, como estas questões nos ajudam a entender a importância do sofrimento na elaboração, por par-te dos familiares, de uma visão de si como integrantes de uma comunidade política protagonista dos processos nos quais se insere. Para tanto, precisamos continuar a problematizar o sofrimen-to, pensando, da mesma maneira como fiz em relação ao parentesco, que ele não pode ser visto apenas como uma categoria do ponto de vista utilitário, ainda que também o seja. Mais do que isso. Ainda que, em seus usos políticos, o sofrimento exiba toda a sua polissemia e sua capacida-de de ser assimilado e mobilizado para vocalizar as demandas de distintos grupos sociais, além dos projetos da própria burocracia institucional e dos discursos profissionais que as informam. Sejam estes grupos considerados minorias em busca de direitos ou setores dominantes que, na

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tentativa de manter determinados privilégios, têm cada vez mais reivindicado a própria vulnera-bilidade em narrativas que também podem se articular em torno do sofrimento.222 Apesar disso, as narrativas trabalhadas ao longo do capítulo nos ajudam a entender que o sofrimento é muito mais do que um instrumento político e podem nos ajudar a pensar além.

Em sua reflexão sobre a dor, Le Breton (2013) inicia o debate chamando atenção para a complexidade desse fenômeno, tendo em vista, sobretudo, as ambivalências que carrega. Segundo o autor, a dor é íntima, mas está impregnada de relacional. Ela afeta o corpo como percepção sensorial e fisiológica, mas também se insere na consciência moral e na dimensão afe-tiva dos sujeitos, conformando-se em sofrimentos.223 Se sua existência torna o corpo vulnerável, o mesmo faria a sua completa ausência, na medida em que a dor nos alerta para os acidentes e perigos do mundo. Se por esse aspecto a dor pode ser entendida como uma defesa do corpo, ela também não pode ser resumida a essa função, pois muitas vezes ela é a própria doença, outras vezes ela dificulta a conformação de diagnósticos médicos, ou ainda pode só se revelar quan-do a doença já é fatal. A dor atinge as identidades dos sujeitos, mas também os arranca de si mesmos. Razão pela qual, ela pode ter certos usos sociais, nem sempre sendo evitada. Como o

222 Butler oferece como exemplo os casos de grupos organizados de brancos preocupados com sua perda de status, de homens com os avanços do feminismo ou de ex-Estados coloniais com a investida de imi-grantes sobre seu território. Em comum, todos estes casos dão lugar a mobilizações várias do discuso da vulnerabilidade por grupos que sentem que perdem seus direitos na medida em que direitos de minorias são articulados e construídos. No Brasil, podemos pensar em uma variedade de discursos semelhantes que têm alcançado os debates públicos. É o caso, por exemplo, dos grupos que se opõem às cotas nas universidades e concursos públicos, aos direitos da comunidade LGBT, que cunharam inclusive o termo “ditadura gay” para se referir pejorativamente a cada pequeno avanço dessa comunidade na conquista de direitos, ou aos que se opõem a conquista de direitos historicamente reivindicados pelo feminismo, como o aborto, ou à introdução de debate sobre gênero e sexualidade nas escolas, por exemplo.

223 Partindo de uma antropologia do corpo e de um diálogo com as ciências médicas, Le Breton mo-biliza ao mesmo tempo em que tensiona uma diferenciação entre a dor (física) e sofrimento (moral). O autor se dedica a tratar os aspectos físico e moral como duas dimensões inseparáveis do mesmo fenôme-no, perspectiva que não está afastada de todo um longo debate nas ciências sociais que, de variadas ma-neiras, procura pensar as relações entre a construção do corpo e dos sujeitos sociais. Considerando esta perspectiva, tomo a liberdade de dialogar com suas reflexões usando mais comumente o termo sofrimen-to, apesar de o autor mover mais centralmente o termo dor. Contudo, é importante notar que também no caso em tela estamos lidando com processos compostos intrinsecamente por estas duas dimensões. Seja porque a tortura, morte e toda a dor física sofrida pelos desaparecidos atua sobre a dimensão moral dos familiares, sendo este mais um ponto a partir do qual a conexão entre eles se estabelece em formas de correlatividade que transcendem os pressupostos de irredutibilidade e individualidade corporal, nos termos discutidos por Butler (2009), seja porque também, para os familiares, esse aspecto moral com alguma frequência se desloca para se manifestar como um sentido do corpo. Não são poucos os casos em que familiares queixam-se de dores físicas para além das psicológicas, atribuindo-as (diretamente ou não) às mortes e aos desaparecimentos de seus entes queridos. Fenômeno, aliás, já observado por outros autores (por exemplo, VIANNA, 2014; LACERDA, 2012; ARAÚJO, 2012). No caso mais extremo, como vimos no capítulo 2, a própria morte de uma mãe, fruto de um acidente vascular cerebral, foi atri-buída ao sofrimento pela descoberta da morte do filho.

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autor sustenta, a dor já teve e tem muitas finalidades: ela pode ser consentida, como expressão de amor ou devoção em alguns processos religiosos, por exemplo; pode marcar a transição ou a integração a um grupo social, como em certos ritos de passagem; pode significar aprimoramen-to corporal, como em práticas estéticas e esportivas; pode se dedicar a moldar mentes e forjar sujeitos, vista tanto como educação, quanto como punição; pode ter o objetivo de aniquilar um indivíduo, como na tortura; ou ser algo ao que o próprio indivíduo se apega para viver e ser percebido socialmente, entre outras possibilidades. Resumidamente, podemos dizer com o au-tor que a dor não se esgota em definições confortáveis, ela “ é desconcertante e não se satisfaz com nenhuma fórmula simples” (LE BRETON, 2013: 17).

Confirmando sua vocação para a ambiguidade, apesar de todo o desconcerto que nos causa, a dor e o sofrimento, assim como a morte (e a perda para os que ficam), são também fatos ordinários e cotidianos. Um destino certo do qual ninguém pode querer escapar. No de-correr da vida, podemos esperar ser submetidos a estes processos que, por outro lado, quando ocorrem conosco, se volvem extraordinários, nos confrontando com nossos limites. Por essa razão, Le Breton considera a dor e o sofrimento dados fundadores na constituição de um mundo humano. Nesse ponto, anunciado, porém não explorado pelo autor, vejo a possibilidade de pen-sar a dimensão política do sofrimento para além do aspecto utilitário já anunciado. Com apoio de reflexões que vêm sendo articuladas por Butler ao longo de alguns de seus últimos trabalhos (2014, 2010, 2009, 2001), parece frutífero pensar no sofrimento, na dor, na morte e na perda como fenômenos com potencial de nos dar consciência de nossa vulnerabilidade comum. Algo que não necessariamente nos caracteriza enquanto humanos, na medida em que nem é experiên-cia exclusivamente nossa, nem é universalmente percebida da mesma maneira, mas cuja percep-ção nos diferentes contextos pode oferecer bases para a articulação de comunidades políticas e, consequentemente, para formas de resistência.

Acompanho Butler (2014) no entendimento de que, politicamente, os sujeitos sociais negam a própria vulnerabilidade por crerem que uma performance a partir da qual possam ser vistos como agentes com capacidade de resposta é superior àquela em que seriam tomados como sujeitos passivos perante condições sociais e históricas que os reduzem a objetos de cuidados e proteção. Negamos a vulnerabilidade porque não queremos nos admitir submetidos a poderes, discursos e relações que não escolhemos e que parecem nos subjugar. Não há poucos motivos políticos para negar a passividade de fato presente nessa perspectiva, mas, como pontua a autora, “se nada atua sobre mim, contra a minha vontade ou sem o meu conhecimento, então só há soberania, a postura de controle sobre a propriedade que eu tenho e sobre o que sou, uma forma aparentemente sólida e centrada em si mesma da ideia de “eu”” (BUTLER, Op. Cit: 13). Tanto as ciências sociais, quanto os movimentos sociais (estes, sobretudo, pela forte influência das inúmeras vertentes marxistas) já gastaram muita tinta e saliva para mostrar o quanto essa perspectiva não é razoável. Atuamos em um mundo previamente ordenado por categorias, discursos e relações que não escolhemos

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e que são prévios a nossa decisão de começar “a ordená-los criticamente e nos dispor a mudá-los ou construí-los por nossa conta” (BUTLER, Op. Cit.: 14). Essa ordem prévia participa dos proces-sos ao longo dos quais nossas vidas, corpos, sentimentos e ações são construídos. Sofrer estas condições no sentido de tê-las atuando sobre nós a todo momento, inclusive no instante em que estamos atuando, é a razão pela qual, como diz a autora, assim como tantos outros autores, não podemos crer na performance e na agência política como compreensíveis exclusivamente nos marcos de uma liberdade individual.

Para Butler, quando admitimos essa condição, não fazemos outra coisa que aceitar nossa vulnerabilidade. No entanto, por meio deste termo, a autora não se refere a uma disposição subjetiva ou a uma condição existencial. Tampouco a condições sociais que estariam diretamente associadas a corpos e sujeitos individualizados. Em todas estas opções faria sentido pensar nessas relações como determinações sociais a nos subjugar e nos tomar por seres passivos, bem como considerar que os indivíduos são capazes de vencê-las por meio de uma tomada de consciência de tais condições e de uma agência que busque transformá-las, extinguindo assim sua própria vulnerabilidade. Contudo, por este termo Butler está se referindo a um tipo de relação. Algo que está localizado nesse ponto em que a recepção por parte do sujeito se encontra com sua capacida-de de reação. Ela é o lugar onde estes dois movimentos (ou onde estrutura e agência) não podem ser separados. A vulnerabilidade “dá nome um conjunto de relações entre seres sensíveis e um campo de forças de objetos, organizações, processos vitais e instituições que constituem a possibilidade mesma de uma vida vivível” (BUTLER, Op. Cit.: 17). A vulnerabilidade é, portanto, consequência de nossos corpos e subjetividades socialmente constituídos, marcados pelos laços sociais, paixões, discursos e condições materiais que atuam sobre nós e nos afetam, não somente nos constituin-do enquanto indivíduos, mas nos extrapolando, na medida em que nos expõe aos outros e nos tornam susceptíveis a essa exposição (e, portanto, à perda, à violência, às necessidades materiais).

Em suma, esse complexo campo de forças seria mais do que algo que possuímos, é aquilo que nos despossuí (BUTLER, 2009). Exatamente isso nos indica a percepção de que perco algo em mim, quando perco o outro, tão fortemente presente nas narrativas dos familia-res. A perda produz transformações, mas os desaparecidos continuam presentes, habitando os familiares, fazendo-os nutrir uma consciência da morte, do absurdo e do sofrimento que trazem determinados objetos (bens materiais e morais, como os túmulos, as ossadas, os atestados de óbito corretamente preenchidos) e certos processos (como a reposição da Verdade e a construção da Justiça) para o centro de suas concepções sobre a possibilidade de uma vida vivível, como diz a autora. Todos estes elementos movem e são movidos por sentimentos e sensibilidades que se enraízam no mais íntimo de seus corpos no mesmo movimento em que os arrancam deles, insti-tuindo a vida como uma forma de “ser para ou outro e por causa do outro”, como argumenta Butler (2009), utilizando palavras outrora empregues por Mauss (1979). Creio que tais processos dão aos familiares dimensão de sua própria vulnerabilidade.

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Em sua etnografia sobre a poesia entre os Awlad ‘Ali, Lila Abu-Lughod (1986) também reflete acerca da resistência à vulnerabilidade. Observando as formas pelas quais seus interlocutores reagem à morte, a autora argumenta que admitir-se ferido ou afetado por uma perda é algo difícil para tais atores, na medida em que tal ato pode ser percebido como o equiva-lente a admitir uma falta de autonomia e de autocontrole. Algo como aceitar uma dependência por meio da própria vulnerabilidade. Atributos que, entre seus interlocutores (e creio que, pode-mos admitir, também entre nós), são associados aos fracos, aos pobres, aos jovens ou às mulhe-res. Isto é, a toda a sorte de grupos sociais que, politicamente falando desde de nossos conceitos, podemos chamar de “minorias”. Nem sempre provocando, portanto, sentimentos de identidade entre os atores sociais, a vulnerabilidade seria bloqueada por diferentes formas de negação que, em comum, lhes permitiria manter um comportamento adequado às ideologias da honra e do orgulho pungentes naquela sociedade, mobilizando modos de ocultamento da dor, como a ex-pressão da raiva, de desejos de vingança, de culpabilização ou mesmo de dissimulação. Sendo assim, idealizar a resistência como o oposto da vulnerabilidade seria a única forma de resposta honrosa ao ataque sofrido (e à perda), fazendo da raiva sentimento compatível por meio do qual a resistência pode se expressar. “Respondendo com raiva à dor da perda, as pessoas podem afirmar sua força e potência, sua recusa em sucumbir passivamente à imposição alheia. Culpar os outros é um ato agressivo que foca na raiva” (ABU-LUGHOD, Op. Cit.: 206). Contudo, se seus interlocutores mobilizavam no cotidiano estratégias para negar a vulnerabilidade diante da morte e da perda, ao mesmo tempo, sua prática poética seria um meio coexistente através do qual podiam deixar aflorar sua dor, mostrando toda sua dependência e suscetibilidade.

A reflexão da autora é importante porque, quando digo que os familiares tomam dimensão de sua própria vulnerabilidade diante do desaparecimento, isso não significa que essa percepção não conviva com formas de negá-la, seja em seu íntimo, seja nas arenas públicas. Nesse último caso, nos momentos em que lhes parece necessário fazê-lo, sobretudo nos embates com o Estado ou nos processos de culpabilização e autoafirmação política frente aos perpetra-dores. Também não sugiro aqui que os familiares tenham adquirido uma superconsciência ou uma reflexividade que lhes proveria quase de um olhar distanciado acerca de si. Falo de uma percepção alcançada por meio dos sentimentos, sobretudo, do sofrimento. Se os sentimentos podem ser vistos como pensamentos incorporados, significa que atuam a modo de percepção. Como bem pontuou Le Breton, a dor não é uma sensação, mas uma percepção. É o confronto de um fato corporal (ou sensível) com o mundo. “O sentido não está contido nas coisas, ele se instaura na relação com as coisas e no debate estabelecido com os outros para sua definição, na complacência ou não do mundo em adotar essas definições” (LE BRETON, 2013: 226).

Nesse sentido, se os familiares estão lutando por demarcar um protagonismo polí-tico autônomo – independente do Estado e dos riscos de que essa relação possa torná-los passi-vos perante a institucionalidade – isso se estabelece à medida que traçam uma concepção de si

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mesmos como parte dessa comunidade de sujeitos vulneráveis, porque afetados uns pelos outros. Para Butler (2014), a violência explora justamente esse enlaçamento. O fato de existirmos fora de nós mesmos e para os outros, por isso, uma vez abatida sobre os sujeitos sociais, a dor gerada os coloca diante de uma questão política, obrigando-os a pensar sobre sua interdependência. No caso dos familiares, essa reflexão e esse sentir se expressam, por vezes, por meio de sentimentos de negação da vulnerabilidade, como a raiva e outras formas de agir que obscurecem seu aspecto mais vulnerável. São, inclusive, estas ações que dão combustível para que alguns os acusem de ressentidos e outros, estes mais cruéis, de “revanchistas”. Mas, os familiares também são capazes de se expressar pela vulnerabilidade, como vimos ao longo desse capítulo. E é interessante que, muitas vezes, possamos perceber ambos os aspectos por meio das formas de narrar e construir o mesmo artefato político, o caso.

A perda e todo o sofrimento por ela desencadeado atuam sobre os familiares de-safiando suas ilusões de autonomia. Ensinam-lhes que a relação com o outro nos sujeita. Para Butler, o medo dessa sujeição alimentaria um impulso de buscar uma ação restauradora, iludin-do quanto à possibilidade de podermos devolver o mundo à sua ordem prévia (BUTLER, 2009). Muitas vezes, restaurar a situação anterior à perda, repará-la é tudo o que os familiares desejam. Mas, confrontam-se a cada dia com a impossibilidade de fazê-lo. Essa percepção se expressa em sua terminante recusa em retomar a vida como anteriormente dada. Para os familiares, isso significa engajar-se nesse processo de identificação com o sofrimento que não pressupõe seu encerramento em nome de uma agência, nem o reduz a um instrumento de legitimação pessoal em arenas políticas. Reconhecendo sua sujeição, os familiares passam a se expor deliberada-mente e com a intenção de resistir, alterando com isso a própria configuração da vulnerabilidade (BUTLER, 2014). Como acompanhamos no decorrer da tese, são muitas as formas pelas quais, ao longo dos anos, os familiares se expuseram concreta, corporal e sensivelmente a modo de resistência. Eles se expõem ao cansaço, às frustrações, às disputas políticas, aos desentendimen-to entre familiares, à possibilidade de vitimização por parte dos poderes políticos, às criticas e incompreensões por parte da sociedade, às chantagens dos ex-perpetradores, às suas próprias fantasias e vontades de acreditar. No passado, se expuseram à mesma violência sofrida pelos desaparecidos. Nesse processo, os familiares não são nem ativos, nem passivos em sua plenitude. Eles resistem porque são vulneráveis e, muito mais do que expor sua vulnerabilidade para resis-tir, eles se expõem à sua própria vulnerabilidade enquanto resistem.

* * *

Através do sofrimento, os familiares vêm construindo formas de estar no mundo que nos confrontam com uma série de questões. Ao refletir sobre elas, fizemos movimentos que transpassaram as fronteiras entre indivíduo e coletividade, público e privado, cotidiano e

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extraordinário, vulnerabilidade e resistência, saturando cada um desses domínios com símbolos e sentidos identificados com o outro. Tendo isso vista, talvez possamos pensar que a tal impertinência que faz dos familiares protagonistas “malvistos, mal quistos e mal entendidos” não seja fruto apenas de sua inadequação a uma modernidade que se volta para a dor e para o luto com expectativas de encerrá-los, escondê-los, amenizá-los e anestesiá-los (LE BRETON, 2013; KOURY, 2014; ELIAS, 2001; ARYÈS, 2012). Para além desse aspecto, certamente presente, creio que também opere aí um certo desconforto diante das ambiguidades que a atuação política dos familiares tornam visíveis. Um incômodo promovido por nossa crença na possibilidade de enquadrar todas as dinâmicas sociais em sistemas estáveis de classificação.

Essa crença compartilhada torna o sofrimento desconcertante para todos, para nós e também para os familiares. Ficamos desconcertados ao perceber que uma vivência tão intensa do sofrimento não necessariamente prostra, mas pode adquirir potência política; quando ve-mos que a resiliência por ele criada pode inspirar, sem contradições, coragem e indignação; ou quando constatamos que o seu sofrer faz da memória e do olhar para o passado as únicas formas possíveis de viverem no presente com sentimentos de esperança e vontade de construir novas possibilidades de futuro. Deve parecer paradoxo que os familiares vivam toda essa intensida-de emocional sem se tornarem pessoas submersas em si mesmas, necessariamente infelizes ou incapazes de (se) identificar (com) o sofrimento do outro. Mas eles o fazem, despertando tanto constrangimentos, quanto admiração.

Ao longo do período em que acompanhei os familiares, não foram poucas as vezes em que vi suas angustiadas expressões públicas de sofrimento serem tratadas como inconvenien-tes. Nessas ocasiões, me admirei ao perceber como muitas pessoas podem se sentir mais des-confortáveis diante das ambiguidades evidenciadas pelo sofrimento do que diante das violências que o provocaram. Algo que possivelmente se repete com as violências que, em nosso absurdo cotidiano, multiplicam, nas periferias, prisões e favelas, o rol dos mortos e desaparecidos polí-ticos brasileiros, fazendo multiplicar também os movimentos sociais compostos por familiares.

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Apontamentos finais

Entre sombra y espacio entre hojas secas y veredas negras,

escucho un grito sin lengua, sin garganta, un llanto que va cayendo desde la piel al alma.

En la penumbra enarbolada aparecen los dientes, uno por uno se ponen en fila y se arquean

hasta formar una sonrisa que cordialmente me susurra. Renato, no seas como eres.

Me miran dos óvalos oscuros, luego suenan los pasos de huesos sin carne que vienen brinque y brinque como títeres

bailando al compás de un ritmo que se me escapa hasta caer sueltos como un elote que se desgrana.

Desconcertado por los sollozos melódicos, me agacho a recoger los escombros desparramados.

(Renato Rosaldo, Viudo)

Conheci Carmem Lapoente no meu primeiro dia no Grupo. Uma senhora tranquila, simpática e afetuosa. Viúva, ela milita há muitos anos junto aos familiares de desaparecidos, levando adiante uma dura luta por justiça, iniciada em 1990, ainda ao lado de seu marido. Naquele ano, seu filho foi morto enquanto realizava um treinamento no curso de oficiais na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN). A morte do jovem cadete Márcio Lapoente resultou de uma tenebrosa sequência de desgaste físico, provocado pelos exercícios, violências, perpetradas por seu instrutor, e negligência no atendimento médico.

Com coragem, o casal levou o caso Lapoente à justiça brasileira, fazendo-o che-gar, mais tarde, ao Sistema Interamericano. Em 2012, por ocasião de sua apreciação pela Comissão Interamericana, a família e o Estado brasileiro chegaram a um acordo em torno dos termos de uma reparação. Entre outras medidas negociadas, uma placa denunciando a vio-lência ocorrida na morte de Márcio seria instalada na AMAN, durante uma cerimônia pú-blica. Assessorada por um advogado, Carmem negociava diretamente com o Comandante da AMAN os detalhes dessa cerimônia, cuja data se aproximava. A cada reunião do Grupo, ia nos deixando mais ou menos a par desse processo.

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No último encontro antes da cerimônia, Carmem surgiu aflita. Segundo nos con-tou, o Comandante estava voltando atrás em certas questões já combinadas. Além de querer instaurar a placa em um lugar pouco visível, ele havia apresentado um protótipo, onde Carmem identificou dizeres estranhos. A formulação proposta pelo Comandante deixava a entender que Márcio estava sendo homenageado por bravura. A ideia não era a de que ele havia sido morto pelo treinamento, mas que dera sua vida em nome dele. Finalmente, mas não menos importan-te, o Comandante não queria que Carmem discursasse durante a cerimônia.

Como não poderia deixar de ser, o informe instalou a imediata indignação na sala. A exaltação deu lugar a diversas sugestões de como o Grupo deveria proceder diante de tais acontecimentos. Victória foi a primeira a apontar seu desacordo: “você tem que ser dura! Nós temos que falar! Foi feito um acordo. Eles têm que cumprir o acordo. Se não cumprirem, nós não vamos. É isso que eles fazem com a gente!”. Outro militante disse concordar plenamente com Victória e pontuou: “eles vão mudando, a coisa vai recuando e a gente fica sem nada. Isso aqui que nos restou não é o acordo firmado, não é nada! Tão usando de má-fé e trabalhando no teu desgaste”. Embora Carmem tenha le-vado a situação ao conhecimento de todos justamente para queixar-se, nesse momento, ela pare-cia a pessoas mais conformada. Era possível vê-la contagiar-se pela disposição dos demais, mas também estava visivelmente tensa. Ou invisivelmente, porque eu só o notei pelo olhar de Beth.

A intervenção de Beth, extremamente sensível, mudaria completamente o debate. Virando-se para Carmem, Beth disse: “eu acho que essa é uma questão sua. Nós levamos com você. Eu acho que você tem que decidir. Essa é uma questão sua. É a sua dor! Acho que nós não temos o direito de pressionar você. Essa é uma decisão sua e o que você decidir, eu assino em baixo. Você tem que saber o seu limite!”. Após sua pontuação, outro militante falou sobre o paradoxo que existiria entre a políti-ca e o pessoal. Disse à Carmem que era possível entender seu lado pessoal e apoiar sua decisão como amigo, ainda que discordasse politicamente dela. Em seguida, estimulou-a a confrontar o Comandante. Diante dessa insistência, Beth colocou-se mais uma vez. Dirigindo-se à Carmem, falou: “eu conheço a sua angústia, sei que isso está te deixando doente. Não se sinta pressionada. Acho que você já está pressionada por eles, não quero que você se sinta pressionada pela gente. Você tem que saber o preço que você quer pagar!”.

Ouvindo essas palavras, Carmem chorou. E foi somente então que eu pude perceber toda a dor e a tensão que estavam guardadas em algum lugar sob a postura militante que ela vi-nha procurando sustentar, não sei dizer à custa de quais esforços emocionais. Foi somente então que Carmem se permitiu a nos contar como esteve doente durante a semana inteira. Seu corpo doía, “parecia que tinha levado uma surra”. Olhei para Victória e sua postura também tinha mu-dado. Ela olhava muito emocionada, enquanto Carmem contava como se sentia aliviada por ter um local de sepultamento para visitar e o quanto não podia imaginar a dor das amigas que não o tinham, mas que ainda assim precisava encerrar esse processo. Após o desabafo, assegurou: “minha vontade é a gente reagir sim, mas não abrir mão do acordo. A gente cede um pouco, mas acaba

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logo com isso”. Carmem precisava acabar com isso. Precisava fechar esse ciclo da forma que fosse e Beth percebera isso. Eu assitia a tudo atônita.

Outros militantes então falaram no sentido de dar ânimo e estimulá-la à briga, mas concordaram que o melhor seria tentar gestões para conseguir um acordo possível. Em seguida, se dividiram em tarefas para efetuar a decisão. A cerimônia na AMAM ocorreu dias depois. Eu não pude ir. Os militantes me contaram que foi aquém daquilo que desejavam inicialmente, mas que, apesar disso, foi um momento catártico. Victória me contou ter chorado muito. Pensava no marido de Carmem que não estava ali para ver a conquista, pensava em seus familiares desapa-recidos e também na derrota que estavam impondo ao Exército. Ao final, o Grupo ficou satisfeito com o simbolismo de serem recebidos no interior de uma instalação militar, forçando-lhes a reconhecer sua própria violência. Uma vitória de sua luta.224

* * *

Eu não poderia terminar a tese sem mencionar os acontecimentos dessa reunião, presenciados ainda durante meu primeiro ano de pesquisa. Entre as situações marcantes vividas em campo, esta foi, para mim, a mais sensível e emocionante de todas. Ao longo de todo o processo de pesquisa e, principalmente, de escrita essas cenas voltavam reiteradamente aos meus pensamentos: o choro de Carmem, a forma como o contido foi libertado pela sensibilidade de Beth, a maneira delicada como o sofrimento pôde mediar um diálogo, primeiro entre as duas, depois com todos nós. Somado a outras situações vividas na pesquisa, o episódio participou das decisões que guiaram os caminhos analíticos traçados pelo texto. Mas, de forma ainda mais determinante, ele me ajudou a refletir sobre minha própria inserção no campo, fazendo-me percebê-la também como um processo mediado pelo sofrimento. É com foco neste último tema que encerrarei a presente reflexão, após uma breve retomada dos principais argumentos da tese.225*

* * *

Ao falar da decisão de terminar sua excelente tese sobre o crack com uma reflexão sobre os cachimbos, Rui (2012) explica que através dele pôde retomar e conectar os temas abordados ao longo do texto, costurando seu argumento principal. O sofrimento atua aqui de forma semelhante. Ele se torna o tema principal do último capítulo após articular uma série de

224 Caderno de campo 2, 01/10/2012

225 Aproveito para registrar aqui minha dívida com a antropóloga Taniele Rui que, lendo alguns capí-tulos desse trabalho, formulou a pertinente provocação sobre minha situação em campo que estimulou a reflexão em sequência.

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questões que atravessam todo o trabalho. A essa altura, espero ter conseguido mostrar seu papel tanto como substrato das complexas relações que fundam o movimento de familiares (aquelas estabelecidas entre estes atores sociais, com os “mortos e desaparecidos” e com as instituições do Estado), quanto como meio através do qual sua atuação atravessa certos domínios simbólicos.

Argumentei, primeiramente, que o sofrimento tem papel essencial na identificação da comunidade política e moral dos familiares. De um lado, porque é o sentimento por meio do qual os mortos os habitam. Ou seja, o sentimento por meio do qual os familiares deslocam a experiência limite da perda para seu cotidiano, e passam a identificar não apenas uma proximi-dade entre suas vivências e a de outros familiares, mas também a vulnerabilidade comum que os caracteriza e os une. Nesse sentido, o sofrimento é o sentimento por meio do qual eles se desco-brem vulneráveis uns aos outros. É também substrato para a produção de novas relações as quais eles denominarão familiares. De outro lado, porque ao inspirar, dar o tom e ser modulado por narrativas em arenas públicas, o sofrimento, em uma associação considerada natural com o pa-rentesco, é aquilo que circunscreve os familiares aos olhos da sociedade, legitimando-lhes a pa-lavra. Dessa maneira, apesar de habitar indiscutivelmente o reino das intimidades, o sofrimento é base para a construção de identidades e formas de sociabilidade. Mas, ele não é apenas isso.

Vimos também que o sofrimento se constitui como uma forma de conhecer, quan-do a produção dos casos conduz a uma verdade que traz em si mesma a incerteza e o absurdo. Associado aos processos de produção da verdade, o sofrimento ainda oferece terreno para o de-senvolvimento de certas disputas políticas, como aquelas que perpassam a definição das “mortes e desaparecimentos” como questões “das famílias” ou “da sociedade”. Disputas a partir das quais o Estado é acusado pela insuficiência de suas ações. Conectando o micro ao macro, ele ora está presente na construção dos casos e do programa reivindicativo do movimento, ora é convocado como legitimador dos processos de reformulação de políticas públicas e repertórios profissionais sobre MVJ. Nesse processo, como não poderia deixar de ser, ele dá contornos morais aos deba-tes políticos que engendra, ao longo dos quais a empatia, a compaixão e a solidariedade vão se afirmando como mais do que sentimentos, como valores e atitudes políticas progressivamente incorporadas aos procedimentos, discursos e práticas que integram a gestão estatal (FASSIN e RECHTMAN, 2009; BOLTANSKI, 2004).

Não podendo mais serem confinados ao terreno das emoções privadas, tais senti-mentos invadem a esfera pública, em geral, tomada como reino da racionalidade. Eles propor-cionam o alargamento da comunidade dos que creem nessas mortes como dignas de serem chora-das (BUTLER, 2009). Movimento a partir do qual, vimos, também as fronteiras entre “família” e “Estado” podem ser atravessadas, subvertidas ou deslocadas. Nesse processo, se o sofrimento legitima a voz dos familiares, também encontra momentos em que precisa ser dosado, pois pode ser instrumento para sua desqualificação como os sujeitos de conhecimentos, como os enuncia-dores de saberes que reivindicam ser. Se há temores de que a ênfase no sofrimento abra o caminho

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para a vitimização dos atores sociais, também o descobrimos como uma forma de nos acercar de sua autoimagem de protagonistas políticos, composta em meio a processos em que a vulnerabi-lidade assumida encontra condições de tornar-se resistência, e que o resistir é visto como um ato de exposição. Um se expor vulnerável ao desgaste emocional sobre o qual age a violência.

Reino de incertezas, ambiguidades e possibilidades, o sofrimento é uma forma de conhecer, de comunicar, de se relacionar e atuar politicamente. Uma forma de estar no mundo e de ser para o outro. Entre os familiares de mortos e desaparecidos, aquilo que entendemos como ação política se constrói no enlaçamento dos afetos com o sofrimento de tal maneira que o político e o pessoal, o público e o privado, não podem ser vistos como polos apartados, tal como defendeu o militante no debate sobre o caso Lapoente, fossem harmonizáveis ou conflitantes. O político e o pessoal são domínios indissociáveis, como Beth insistiu em nos mostrar. Nesse sentido, mencionar os debates em torno do caso Lapoente me pareceu importante também para afastar qualquer tentação que possa ainda restar entre nós de ver os familiares (ou de acreditar que os familiares vejam a si mesmos) através do viés do heroísmo.

É comum vermos certas virtudes heroicas (TODOROV, 1995) serem atribuídas aos “mortos e desaparecidos”: o engajamento a partir de convicções não apenas forjadas em torno a ideais abstratos (a revolução, o povo brasileiro, a liberdade, a justiça), mas diretamente voltadas para eles; uma fidelidade tamanha com estes ideais que abandoná-los, mesmo em defesa da pró-pria vida, seria traição; a valorização da coragem e do sacrifício pessoal a um ponto tal em que o risco de morrer perde importância, podendo se tornar um ato honroso, ou mesmo um objetivo. De minha parte, creio que atribuir estas ou outras virtudes heroicas aos “mortos e desaparecidos políticos” requereria reflexões mais aprofundadas. Em relação aos familiares, penso desde já que elas realmente não se encaixam. Não que eles não tenham convicção no que defendem, perse-verança na luta, ou que não se engajem com ideais abstratos, como a justiça e a verdade. Algo que esta tese procurou mostrar e suas quatro décadas de movimento atestam. No entanto, creio que certas características que lhes atribuí, como a consciência da morte ou a exposição pessoal como resistência, podem até decorrer de um engajamento com ideais, mas não se voltam para eles. Voltam-se para sujeitos concretos. Por essa razão, como aponta Todorov (Op. Cit.), essas características seriam melhor definidas como virtudes cotidianas. Ao articular atos de vontade e de coragem frente ao arbítrio, os familiares desejam tanto conservar a própria dignidade, quanto concretizar gestos de cuidado. Atos voltados para pessoas em específico, para si mesmo e para o outro. Daí que Carmem precise identificar seus limites e respeitá-los. Sua luta é uma forma de preservar as possibilidades de uma vida vivível e não de se desfazer dessa noção em nome de algo que seja maior que a própria vida.

* * *

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Mas não é só pela possibilidade de retomar resumindo o argumento da tese que volto ao sofrimento nesses apontamentos. Conforme disse, é também a partir dele que quero falar, por fim, sobre minha inserção em campo.

Em diferentes momentos do texto, passei (sem me deter) por esse tema, quase sempre me referindo a certas dificuldades que estão postas pelo próprio empreendimento etnográfico. Nunca me pareceu politica ou eticamente fácil me envolver no cotidiano de sujeitos sociais, tecer com eles relações de confiança para, em seguida, discorrer sobre suas vivências de um modo sobre o qual eles não teriam o menor controle. Sobre esse ponto de vista, nós antropólogos realizamos uma atividade permeada por tensões. Na tentativa de lidar com elas, optei por revelar no decorrer do texto os principais dilemas que me afligiram durante a pesquisa, bem como as posturas assu-midas em atenção a eles. A maioria delas inspirada por uma boa dose de espontaneidade.

Considerando o antropólogo “alguém que discorre sobre o discurso de um nativo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 113), não posso realmente dizer que minha primeira an-siedade, promover minha palavra sem desqualificar a deles, seja minha. Contudo, como uma preocupação presente no fazer antropológico, essa ansiedade tem sido de diferentes maneiras articulada. No que se refere a esta pesquisa, nunca tive a preocupação de que meu discurso pudesse reduzir os familiares a objeto, tirar sua condição de sujeitos ou de vocalizadores de sua própria história. A razão é simples. Falamos de um movimento social que tem plenas condições de se fazer ouvir e contestar com legitimidade as análises ventiladas sobre ele. Se os familiares querem ser as vozes mais autorizadas a falar sobre o passado, não há porque duvidar que também o queiram ser quando falam sobre si mesmos. Conforme pontuei na Introdução, é preciso partir do princípio de que os familiares constroem discursos e conceitos sobre sua própria história, so-bre o mundo em que atuam e sobre si mesmos. Colocada ao lado de suas análises, esta não pode ser assumida como um retrato fiel em forma, em conteúdo ou em objetivo, ainda que eu tenha me dedicado genuinamente a apreender, descrever e compreender o que move e sensibiliza os familiares. Tampouco pode ser tomada como uma narrativa que irá representá-los ou dar-lhes voz. Como antropóloga, creio na importância de assumirmos os processos que se desenrolam entre o estar lá e o estar aqui (GEERTZ, 2009). Para além do processo de produção narrativa e da própria leitura das questões que importam aos familiares à luz dos problemas que concernem à antropologia, essa etnografia foi construída tendo em vista uma diferenciação entre os limites da observação e os limites da investigação, como pontua Feldman-Bianco (2010a). Na medida em que lança seu olhar para processos de transformação social, valendo-se de uma perspectiva processual, ela se serve de instrumentais e dados documentais que estão além da observação et-nográfica. Conforme bem pontuou Geertz (2009), todos esses processos que se interpõem entre o estar em campo e o resultado final vêm se tornando cada vez mais visíveis no texto antropoló-gico. Resultado de movimentos históricos que, ao mesmo tempo, transcendem e participam do desenvolvimento da disciplina.

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Ao pensar sobre as “regras do jogo” antropológico, concordo com Viveiros de Castro (2002) quando o autor diz que, se o conhecimento por nós produzido nasce de uma relação de sentido estabelecida com o chamado discurso nativo, essa relação se baseia tanto na percepção da existência de uma alteridade discursiva, quanto em um pressuposto de semelhança entre seus enunciadores. Antropólogo e nativo são ambos humanos, são ambos sujeitos. Com perspicácia, o autor defende que a desqualificação da palavra do sujeito “observado” não resultaria propria-mente de sua objetificação pelo antropólogo, tampouco de uma possível falta de empatia, mesmo quando pensamos na antropologia clássica. Na verdade, ela decorreria da pressuposição de que o discurso nativo deriva de uma relação espontânea ou inconsciente com sua própria cultura, enquanto o antropológico traz em si uma disposição reflexiva. Por concordar com esta crítica, creio que a reiteração da alteridade entre o meu discurso e aquele articulado pelos familiares não prescinde da negativa de uma diferença de status entre essas duas narrativas. O que tento dizer é que reconhecer a diferença entre uma narrativa militante e outra antropológica não traz em si uma visão da segunda como a única com objetivo e capacidade analítica. Tampouco como a única a produzir sentido ou a transmitir verdade. Não a torna, em resumo, sob nenhum aspecto, mais qualificada que a primeira. Como consequência, nunca considerei a possibilidade de escre-ver para um leitor radicalmente separado daqueles sobre quem eu escrevia. Ainda que este texto tenha sido pensado tendo como referência os debates acadêmicos da antropologia e não aqueles travados nas arenas políticas ou mesmo nas redes de debate acadêmico sobre a Ditadura, isso não significa que ele não poderá atingir esses espaços. Tampouco que os familiares e demais atores no campo MVJ não terão acesso ao texto. Nesse caso, exercendo sobre ele suas capacidades críticas. Essa consciência de que a interlocução do campo pode se estender ao texto etnográfico, mais uma vez, não é apenas minha. Hoje, ela atinge cada vez mais e de variadas maneiras os etnógrafos, pois decorre dos processos de transformações históricas e disciplinares que, como bem salientou Geertz (2009), distanciaram a reflexão antropológica do pressuposto de que os sujeitos descritos não se manifestam sobre a etnografia, enquanto os sujeitos informados não estão nela implicados.

Pensando nesses termos a diferença entre o meu discurso e o dos familiares, senti a obrigação política e ética de explicitar esse entendimento a eles. Assim, como me parece meto-dologicamente importante explicitá-lo agora ao leitor. Em campo, certas situações me levaram a lembrar a meus interlocutores o marco antropológico (e não militante) a partir do qual minha narrativa seria posteriormente construída. Ações mais sutis, como a não utilização das camisas, e outras mais diretas, como referências à minha condição de pesquisadora, tinham em vista este objetivo. No entanto, se isso me parecia o “correto” a ser feito, eu preciso reconhecer que tais ações não resolveram (provavelmente dificultaram) o problema de como eu seria capaz de aces-sar plenamente a verdade dos familiares. Ou seja, eu preciso reconhecer que tal postura, como qualquer outra assumida em campo, tem implicações epistemológicas. É razoável pensar que ela pode ter fechado canais de comunicação, pois não se pode supor que os familiares me di-riam certas coisas simplesmente por eu ser etnógrafa, conforme ironizaria Favret-Saada (2005).

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Sabemos pelas experiências de desenfeitiçamento vividas pela autora, e por diversos outros casos etnográficos, como a já clássica fuga de Geertz com balineses (1978), o quanto uma interlocução pode ser transformada pela disposição e a abertura do antropólogo para certas vivências comuns.

Em minha defesa, posso dizer que minha postura em campo nunca refletiu uma visão da “participação” como o mínimo necessário para que uma “observação” fosse possível, para ficarmos novamente com os termos críticos de Favret-Saada (Op. Cit.) ao definir uma disposi-ção duradoura que, para a autora, estaria vinculada ao método conceitualizado por Malinowski (1976). Na verdade, é razoável pensar que minha necessidade de reiterar fronteiras indica justa-mente o contrário. Ela sugere a existência tanto de uma demanda de meus interlocutores por uma abertura cada vez maior para as vivências de seu cotidiano, quanto o meu enredamento político e afetivo nessas vivências. Da tarefa semanal de dar informes nas reuniões do Grupo ao apoio ati-vo em uma grande variedade de atividades militantes em diferentes espaços de disputa política, minha observação sempre passou por uma participação revestida de caráter solidário e afetivo. Algo que, logo percebi, borrava fronteiras além das minhas pretensões e capacidades de controle. Sei que alguns familiares puderam me ver em certas situações como “companheira” e, apesar de minhas angústias, não desejei realmente que pensassem diferente. Isso deve-se ao fato de que no trabalho de campo como na vida as relações são mais complexas do que isso. Elas são fugidias e resistentes às nossas investidas classificatórias. Mas, ao mesmo tempo, nunca deixei de pensar esta etnografia nos marcos de uma antropologia engajada. Como comenta Feldman-Bianco (2010b), aquela que tem em vista não somente a política do texto, mas também a do contexto social.

Os momentos de remarcação de minha não militância (especialmente no GTNM/RJ) nunca exprimiram, portanto, nem uma falta de solidariedade política com meus interlocu-tores, nem uma decisão de não me deixar afetar em campo. Como Favret-Saada (Op. Cit.), creio que o acesso a certas questões só me foram possíveis a partir do momento em que meus inter-locutores acreditaram que eu havia sido pega. Mas, também do momento em que eu senti este enredamento e me expus àquela rede de relações e seu conjunto de afetos. O fato dessa exposição ter sido em parte controlada no que diz respeito à militância, não significa que ela não tenha se dado plenamente por outro canal. Este canal foi o sofrimento.

Sabemos que a relação com os interlocutores é motor de angústias éticas, morais e politicas não separáveis dos debates metodológicos e epistemológicos da disciplina. Nossa hi-pocondria moral, como diria divertidamente Geertz (2009), tem considerável responsabilidade pela constante reformulação daquilo que entendemos como o fazer etnográfico. Críticas em tor-no das ilusões de objetividade; da autoria; da autoridade etnográfica; das formas de entrar e sair do campo, das assimetrias, hierarquias e tipos de relação de interlocução; e dos diferentes mo-vimentos que perfazem a comparação, sejam eles voltados para a alteridade/estranhamento ou para a identidade/familiarização. Apenas exemplos de um conjunto mais amplo de preocupações nada recentes implicadas na variabilidade dos métodos aplicados em campo e das estratégias

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persuasivas na escrita. E se eu falei de afetos e de emoções é porque, no correr desses debates, autores diversos os assimilaram não apenas como temas de suas análises, mas como elementos a serem considerados em termos de seus efeitos sobre o tipo de conhecimento produzido. Nesse sentido, creio que minhas experiências se aproximam das já pontuadas por outros autores.

Segundo Ruth Behar (1996), a tarefa de confrontar-se com o outro não possui uma rota única ou segura. O mesmo vale para os momentos posteriores ao campo, quando recupera-mos esse encontro desde um movimento de afastamento reflexivo, em que a tomada de decisões narrativas introspectivas visam tornar a pesquisa pública em ambientes no qual assumimos uma posição de autoridade. Para a autora, os métodos surgem como formas de defesa, de contornar ao menos nossa ansiedade diante da constatação de que cada encontro é um evento único, insubs-tituível, irreproduzível, cujas situações e variáveis escapam ao nosso controle e, muitas vezes, ao nosso entendimento. Os métodos possibilitam também que a etnografia seja esse estranho cruzamento entre um texto saturado e esvaziado de autoria (GEERTZ, 2009). Quando expli-citados, os métodos podem refletir tanto o intuito de que a assunção de subjetividade possa dar mais objetividade ao conhecimento etnográfico, quanto, ao contrário, de assumir a subjetividade como inerente a esse conhecimento. Com Behar (Op. Cit.), compartilho a crença no potencial do que a autora chama de uma escrita vulnerável, em que a subjetividade ganha um status espe-cial, não como forma de transformar a etnografia em uma autobiografia, mas de explicitar certos aspectos que funcionam como filtros a partir dos quais percebemos o assunto estudado e sem os quais não teríamos chegado aos mesmos resultados.

Ocorre que, ao longo da escrita dessa tese, tive momentos de dúvidas sobre se eu estava escrevendo sobre os familiares ou sobre mim mesma. Essa dúvida me atravessava todas as vezes em que as reflexões sobre temas como o afeto, o sofrimento e a correlatividade me re-metiam a processos pessoais de lida com um conjunto de perdas e com um afastamento físico temporário, porém extremamente doloroso. A escrita dessa tese foi inteiramente atravessada pela vivência de um grande sofrimento. Na medida em que meus pensamentos se revezavam aleatória e incontrolavelmente entre minha própria vulnerabilidade e a dos familiares, foi me parecendo fundamental entender como isso se refletia na construção da tese.

Como referência mais notória, os escritos de Renalto Rosaldo (2004) não me deixam ver qualquer ineditismo nesse processo. Como sabemos, seu luto pela morte trágica da esposa, a antropóloga Michelle Rosaldo, funcionou como uma ponte para processos de identificação pessoal com seus interlocutores. Sua experiência teria lhe permitido finalmente entender a rela-ção entre o luto e a raiva que diversos ilongots já haviam lhe indicado como sendo a verdadeira motivação por trás de sua prática de caça de cabeças. Talvez desejando diferenciar “aquilo que os nativos fazem, dizem que fazem e pensam sobre o que fazem”, Renato não foi capaz de dar completa atenção a tal explicação. Se Michelle Rosaldo é reconhecida como uma referência na antropologia das emoções, Renato deve ter reconhecida sua importância ao assumir o impacto

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dos sentimentos na reflexão antropológica. Ao notar sua falta de condições para compreender a força da raiva no luto até experimentar sentimentos semelhantes, o autor passa a refletir mais sistematicamente sobre o conjunto de fatores (sentimentos, raça, gênero, classe, posição social, experiências de vida, etc.) que fazem do etnógrafo (como do nativo) um sujeito posicionado, pre-parado para entender certas coisas, mas não outras. Algo presente a despeito de sua formação teórica, sua preparação para a pesquisa, ou mesmo sua disposição para rever suas questões em campo diante dos imponderáveis da vida real, para os quais já Malinowski (1976) chamara aten-ção. Na medida em que vê processualmente os elementos que posicionam o etnógrafo, Rosaldo defende que todas as nossas interpretações são provisórias e relacionais.

Compartilho com o autor a crença nesse caráter relacional e posicionado do conheci-mento. Por isso, menciono meu próprio sofrimento. Mas, diferente do autor, não o vejo propria-mente como uma forma de identificação, mas sim como um canal de afetação. Para mim, ambos os sofrimentos funcionaram como meios através dos quais me tornei vulnerável aos familiares. Segundo Favret-Saada (Op. Cit.), ser afetado não se confunde com uma aproximação por empatia em nenhum de dois sentidos atribuídos do termo. Não significa se colocar no lugar do outro e ex-perimentar indiretamente suas sensações e percepções, pois isso pressuporia uma distância, como no sofrimento à distância definido por Boltanski (2004). Tampouco seria o mesmo que experimen-tar uma comunhão afetiva, na qual a comunicação seria instantânea e a identificação sentida como uma fusão com o outro. Isso porque na relação com os familiares e outros atores com os quais convivi, a distância inicial aos poucos deixou de existir. Nas reuniões do Grupo ou nas audiências da CVRP, eu ouvia seus relatos e me envolvia diretamente na rede afetiva formada em torno da resolução de pequenos problemas práticos ou da discussão de conflitos mais amplos. Tais eventos nos comoviam, nos angustiavam e nos mobilizavam juntos e de uma maneira muito intensa. Não foram poucas as vezes em que cheguei em casa mobilizada por estas sensações, ou que discuti com interlocutores assuntos que nos aproximavam afetivamente. Nesse período, me preocupei e sofri com eles. Mas, se entre nós não havia tanta distância, também não posso dizer ter havido uma comunhão, tal como aquela estabelecida entre Carmem e Beth e que tanto me impactou.

O tipo de envolvimento que experimentei me parece hoje muito próximo daquele que Favret-Saada definiu como ser afetado. Ao ser inserida em um sistema de relações, foi possí-vel mais do que me imaginar nesse lugar dos familiares. Foi possível deveras perceber o quanto esse lugar é no fundo inimaginável, mas também como nada nessa aproximação me informava, a princípio, sobre seus afetos e seus sofrimentos. O que a afetação fazia era me modificar e, na medida em que eu me tornava vulnerável, abria-se um canal específico de comunicação entre nós. Canal que eu acredito ter sido reavivado no momento da escrita por meio do meu próprio sofrimento. Com isso, devo reconhecer que, do ponto de vista pessoal, essa tese é uma espécie de conhecimento venenoso. Também por esse ponto de vista, creio que os familiares fizeram mais por mim do que eu pude fazer por eles.

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Mas, se gastei algum tempo nesses apontamentos tentando atenuar as assimetrias que, querendo ou não, estão sempre presentes quando a palavra está sendo monopolizada, não posso deixar de concordar com Mintz (1984) que desigualdades residem também no controle que eu exerci sobre o início e o fim de nossa convivência. Como na performance com a qual ini-ciei o capítulo 1, depois da minha saída de campo, os familiares seguem lidando com os mesmos sofrimentos que, agora, se tornam para mim distantes e invisíveis. Sentimentos sobre os quais não tenho nenhuma possibilidade de ação, embora, contraditoriamente, siga falando sobre eles em outros espaços.

Na medida em que eu vi os familiares como outros sujeitos, talvez eu não tenha podido vê-los como sujeitos outros, como critica Viveiros de Castro (2002). Talvez eu tenha me aproximado demais a partir de um envolvimento que me fez reconhecer o nós no outro. Mas isso são eles quem nos dirão.

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Em busca de Iara. Direção: Flávio Frederico. Kinoscópio, 2013. 91 minutos.

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Marighella. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Downtown Filmes, 2012. 100 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7Mw386dVhcY

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Fotos de capa: Gustavo Germano / Projeto Ausências Brasil.

Capa, projeto e diagramação: Fábio Marinho.

Esta obra foi composta em fonte Adobe Caslon Pro e editada

em fevereiro de 2016, para impressão digital.

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