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Glosas nº 13 (mpmp Novembro 2015) pp. 23-30, ISSN: 2182-1380.
O Sonho dos Outros
A fenomenologia do sonho de María Zambrano na música de Bernardo Sassetti
Maria João Neves
A partir desse dia passei a ter um sonho
e uma razão para estudar piano. Bernardo Sassetti
Prelúdio
Bernardo Sassetti (1970-2012) foi um dos compositores portugueses mais marcantes da
actualidade. A palavra foi talvez nunca tenha custado tanto escrever como neste caso. Creio que
qualquer leitor concordará comigo: aquele foi deveria ser um é. Bernardo Sassetti deixou-nos cedo
demais. Não podemos restituir-lhe a vida, mas podemos honrar o seu legado artístico, contribuir
para que a sua memória jamais se desvaneça.
Este artigo constitui uma primeira divulgação de resultados obtidos durante o trabalho
experimental desenvolvido no segundo triénio de uma bolsa de pós-doutoramento concedida pela
FCT. Apenas foi possível levar esta investigação a cabo devido ao empenho dos músicos e
musicólogos que durante os últimos três anos colaboraram graciosamente neste projecto: Ana Bela
Covão, Ana Freijo, Helena Soares, Luzia Rocha, Nuno Fidalgo, Rosário Azevedo, Rui Rosa, Tânia
Valente, Tiago Batista e Valter Estevens. Num mundo em que o tempo é o bem que mais escasseia,
é muito raro encontrar tal dedicação. A minha gratidão também ao Pedro Louzeiro pela revisão
científica da parte estritamente musical deste estudo. Quando a investigação cruza áreas de saber
diversas, só o esforço conjunto de diferentes especialistas a torna possível. Um enorme
agradecimento à Beatriz Batarda, ao Francisco Sassetti, à Ajda Zupancic, ao Carlos Barreto, ao
Mário Laginha, ao Rui Rosa e à Casa Bernardo Sassetti, pelo apoio inestimável e toda a informação
concedida.
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O Tempo no Sonho e na Música
O eco das suas notas transporta-me para outro mundo e faz-me sempre sonhar. Bernardo Sassetti
María Zambrano afirma que ao contrário do que normalmente pensamos, o estado de sonho
é o estado inicial da nossa vida, é do sonho que acordamos para o mundo; a vigília advém num
segundo momento. Abandonamos o sonho pela vigília e não o inverso . Também no tão conhecido 1
poema/canção Pedra Filosofal se afirma que o sonho comanda a vida . Apesar destas intuições 2
filosóficas e poéticas, só recentemente, já na segunda década do sec. XXI, a neurociência acabou
por corroborar esta tese:
Waking consciousness actually depends on dream consciousness rather than the other way around. While
dreaming the brain is not only anticipating waking but is actually simulating waking. Furthermore, 80% of d r e a m content is not a reproduction of an experience that happened in preceding waking; it might therefore be a prediction, a creative expectation of what might happen in subsequent waking. 3
A importância dos sonhos e sua influência sobre a vigília relaciona-se com o facto de neles
se experimentarem outros estados de consciência que decorrem de diferentes formas de
experienciar o tempo. Sobre a fenomenologia do sonho de María Zambrano, no âmbito da sua
aplicação à prática filosófica, existem já vários estudos publicados . Neste artigo explora-se, pela 4
“El estado de sueño es el estado inicial de nuestra vida, del sueño despertamos; la vigilia adviene, no el sueño. 1
Abandonamos el sueño por la vigilia, no a la inversa. Zambrano M., (1986) El Sueño Creador, Madrid: Turner, pp. 14-15.
“Eles não sabem, nem sonham/ que o sonho comanda a vida” Gedeão, A. (1956) “Pedra Filosofal” in Movimento 2
Perpétuo, Coimbra: Of. Atlântida.
Hobson, A. (2012) Dream Consciousness, Aquém e Além do Cérebro nº 9, S. Mamede do Coronado: Fundação Bial, 3
25-33, p. 25.
Neves, MJ. (2014) “Phenomenology of Dreams in Philosophical Practice”, Journal of the American Philosophical 4
Practitioners Association, V. 9, Nº3, November, pp. 1475-1486. Neves, MJ. (2011) "Método RVP. Raciovitalismo Poético. Fenomenologia do Sonho na Prática Filosófica" in Studia, Loulé: INUAF nº 14, pp. pp. 266-275; Neves, MJ. (2009) Método RVP© (Raciovitalismo-Poético) – Prática Filosófica no Quotidiano, Lisboa: Instituto Piaget; Neves, MJ. “Fenomenologia do Sonho” (2008) in Faces de Eva, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, pp. 97-116.; Neves, MJ. (2007) “Al Encuentro del Ser Recibido. La Fenomenología del Sueño de María Zambrano en el Asesoramiento Ético y Filosófico” in Aurora nº 8, Universitat de Barcelona; Neves, MJ. (2004) “Estética y Sueño” in Aurora. nº6, Barcelona: Universitat de Barcelona, pp. 44-50.
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primeira vez, a sua aplicação à actividade artística, em particular, à música . Zambrano interessa-se 5
não sobre o conteúdo do sonho, como é apanágio da psicanálise, mas versa antes sobre a forma do
sonho, sobre a percepção do tempo em sonhos. Importa ainda referir que Zambrano não estabelece
uma fronteira entre vigília e sono. Interessam-lhe os estados perceptivos e podem acontecer
penetrações de temporalidades características do sonho em vigília, quando ficamos abstraídos por
exemplo; ou de intromissão de tempo consecutivo no universo do sonho, como acontece com o
sonho lúcido . Existem muito mais formas-tempo que aquela do tempo do relógio, única que 6
estamos habituados a considerar. Em suma, Zambrano estuda o movimento íntimo da temporalidade
humana tomando em especial consideração: “a tensão que precede a liberdade e a profetiza; a
tensão rumo a uma finalidade que se apresenta simbolicamente; o descobrir-se ou mascarar-se do
sujeito; o retroceder ante a finalidade ou o avançar rumo a ela” . Também Langer considera o tempo 7
do relógio muito redutor, incapaz de dar conta do tempo humano realmente vivido, experimentado.
Em consonância com Zambrano, afirma que a temporalidade humana é substancialmente
constituída por tensões:
The phenomena that fill time are tensions ―physical, emotional or intellectual. Time exists because we undergo tensions and their resolutions. Their peculiar building-up, and their ways of breaking or diminishing o r merging on to longer and greater tensions, make for a vast variety of temporal forms. 8
Não é provável que Bernardo Sassetti conhecesse as teorias de María Zambrano ou de Susanne
Langer a respeito da temporalidade humana e da sua consubstanciação em forma de tensões,
distenções e resoluções, passíveis de ser exemplificadas musicalmente. No entanto, ouçamos o que
nos diz o compositor:
Gosto de iniciar o processo de composição usando progressões harmónicas no seu estado mais simples e, a partir do momento que o mote principal está definido, começo então por introduzir notas fora da escala ou a c o r d e s
compostos, assim como linhas de constante tensão e resolução de maneira a poder dar a ideia de d i n â m i c a e movimento. 9
Os resultados desta investigação foram apresentados publicamente pela primeira vez na “32nd Annual Conference of 5
the International Association for the Study of Dreams, June 5-9 de 2015, Virginia, USA: “The Depth of Dreams in Music and Philosophical Practice”.
“In lucid dreams, the frontal lobe comes back into the picture as in waking.” Hobson, A., (2012), p. 32.6
Zambrano, M., (2006) O Sonho Criador Lisboa: Assírio e Alvim, p. 95. 7
Langer, S. (1953) Feeling and Form New York: Scribners, pp. 112-113.8
Sassetti, B. “Sobre a música composta” in Ascent.9
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A enorme variedade de formas temporais vividas expressa-se na música, podendo mesmo afirmar-
se que a essência da música é a criação de um tempo virtual:
Music unfolds in a virtual time created by sound, a dynamic flow given directly and, as a rule, purely to the ear. This virtual time, which is an image not of clock-time, but of lived time, is the primary illusion of music. In it melodies move and harmonies grow and rhythms prevail, with the logic of an organic living structure.
Virtual time is to music what virtual space is to plastic art: its very stuff, organized by the tonal forms that create it. 10
A música suspende o tempo da consciência, esse tempo consecutivo que dividimos em
passado, presente e futuro, concebido como um continuo unidimensional e homogéneo. A
linguagem da música é som, aliás, como bem observou Hanslick: “o único e exclusivo conteúdo e
objecto da música são formas sonoras em movimento” . No entanto, há dificuldade em as 11
apreender de uma forma clara; Langer sugere a sua natureza inefável. Como se poderá falar sobre
elas? Este seria, segundo Langer, o grande desafio filosófico:
(...) find us a symbolism whereby we can conceive and express our firsthand knowledge of time. (...) Philosophy must give up discursive thought, give up logical conception, and try to grasp intuitively the inward
sense of duration. 12
A taxinomia da fenomenologia do sonho de María Zambrano poderia constituir a resposta 13
ao desafio lançado por Langer.
Langer, S. (1957) Problems of Art New York: Scibners, p. 41.10
Hanslick, E., (2002) Do Belo Musical Lisboa: Ed. 70, p.4211
Langer, S. (1953), p. 11412
Para exemplos oníricos de cada uma destas categorias veja-se Neves, MJ (2014).13
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A fenomenologia do sonho de María Zambrano apresenta três categorias principais,
Atemporalidade, Tempo Consecutivo e Tempo em Espiral que por sua vez se sub-dividem:
1. Atemporalidade
O fenómeno da atemporalidade corresponde a um tempo quase zero, experimenta-se uma suspensão
do tempo; uma epoche do tempo consecutivo, característico da consciência em vigília. A
atemporalidade dá lugar a uma experiência de padecimento, de passividade verdadeiramente
intensa, que se manifesta pela impossibilidade do sujeito pensar , actuar, ou de exercer a sua 14
vontade. Por mais absurda que seja a situação sonhada, o sujeito nunca se questiona acerca dela.
1.1 Sonhos de Obstáculo
São sonhos em que o obstáculo nunca é superado, o sujeito nunca consegue alcançar os seus
objectivos, pois, ao não dispor de tempo, não possui um mínimo de liberdade que lhe permitiria
tomar uma decisão. Por consequência, além de nunca se estranhar, tão pouco se revolta contra a
situação que lhe cabe viver durante esse sonho. São sonhos em que há que ultrapassar um limiar,
mas se fracassa sempre.
1.2 Sonhos Invertidos
Apresenta-se um objecto que é máscara ou símbolo de outra coisa, podem ser de dois tipos:
“When the subjects goes to sleep and enters REM and starts to dream, the frontal lobes are not reactivated. No 14
wonder you can not think, no wonder you can not remember, no wonder you can not recognize that you are dreaming. You are completely controlled by the automatic activation of the brain and it is coming from the back of the brain.” Hobson, A. (2012), p. 32.
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1.2.1 Sonhos Orexis
A importância dos sonhos de orexis reside na sua capacidade revelar um passado que ainda não se
converteu totalmente em passado, alguma ansiedade abafada, algum desejo reprimido. Através dos
sonhos somos capazes de recuar muito atrás no tempo. O regresso ao passado permite que o que
aconteceu adquira um sentido, convertendo o passado reticente em passado absoluto.
1.2.2 Sonhos Directos
Neste tipo de sonho, o objecto invertido é um símbolo que estimula o desenvolvimento da pessoa.
Aparece neles a exigência de uma acção a executar encaminhada para uma finalidade que não se
mostra totalmente, porque é, em princípio, inesgotável. Estes sonhos em que aparece uma
finalidade-destino propõem uma acção de carácter ético; são sonhos libertadores que denunciam
uma transformação da pessoa, que já se deu ou está em vias de dar-se.
1.2.2.1 Sonhos Monoeidéticos
Se este tipo de forma-sonho se experimenta durante o sono Zambrano chama-lhes monoeidéticos.
São signos hieroglíficos, não contam uma história, são imagem total, unitária, que encerra o destino
daquele que o sonha, como se se tratasse de uma cifra, tal como as cifras musicais, que se
visualizam num instante. Esta imagem tem um poder propulsor, provoca uma tensão rumo à
finalidade-destino, de tal forma que suscita naquele que por ela é visitado uma acção transcendente,
qualquer que seja a forma que esta assuma: pensamento, contemplação ou acção propriamente dita.
O impulso no sentido da acção transcendente desvanece o sonho e com ele a atemporalidade; desfaz
a personagem.
1.2.2.2 Sonhos de carácter real
Se se vivem estando acordado, Zambrano chama a esta forma-tempo sonhos de carácter real. São,
pois, sonhos que presidem o destino.
1.2.2.2.1 Sonhos de carácter real degradados - Obsessões
Estes sonhos encerram um enorme perigo, se aquele em quem se manifestam não sabe dar-se conta
da sua importância, se não exerce por eles estimulado, uma acção transcendente. Neste caso, estes
sonhos podem escravizar aquele na vida do qual se apresentam, tornando-o vítima de obsessões.
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2. Tempo Consecutivo
Trata-se de um tempo estabelecido pela consciência e divisível em termos de passado, presente e
futuro. Consiste no tempo de que somos maiormente conscientes, meio onde se desenvolve a vida
humana. É um tempo onde é possível a vivência da liberdade através do exercício da vontade, da
tomada de decisões, da consciencialização de intenções e do reconhecimento da lógica e da
continuidade dos acontecimentos ou da falta delas. Este tempo corresponde ao que commumente se
entende por vigília.
2.1. Evento Sensorial Exterior 15
São sonhos que convertem uma sensação exterior numa experiência de sonho instantânea.
2.2 Sonho Lúcido
São sonhos em que o sujeito sabe que está a sonhar e pode até alterar o conteúdo do sonho de
acordo com a sua vontade . Esta possibilidade decorre precisamente da intromissão do tempo 16
consecutivo característico da vigília no período REM.
3. Tempo em Espiral
É um tempo indefinidamente aberto, mas centrado e integrador. Esta abertura permite a realização
do ser do homem em constante transcendência e a simultânea integração e centramento
proporcionam a visão de uma unidade de sentido da vida de si próprio. Este tempo experimenta-se
em momentos privilegiados em que se vive a coincidência entre si mesmo e a vida. É uma forma-
tempo em que o princípio está informado pelo fim . Tal sucede quando o homem actua em 17
uníssono consigo, ou seja, quando produz uma acção verdadeira. A pessoa é, existe, mostra o seu
verdadeiro rosto, deixando de lado todas as máscaras. Esta acção verdadeira que o tempo em espiral
Já Freud no seu Die Traumdeutung publicado em 1900 dedica um capítulo aos sonhos induzidos por um estímulo 15
sensorial exterior. Compila dados de outros cientistas que também estudaram este assunto: Meier, G.F., (1758) Versuch einer Erklärung des Nachtwandelns, Halle; Macnish, R. (1830) Philosophy of Sleep, Glasgow; Jessen P. (1855) Versuch einer wissenschaftlichen Begründung der Psychologie, Berlin; Hildebrant, F. W. (1875) Der Traum und seine Verwerthung für’s Leben: Leipzig; Volket J. (1875) Die Traum-Phantasie, Stuttgart; Garnier A. (1872) Traité des facultés de l’âme, contenant l’histoire des principales théories psychologiques, Paris.
“Because they understand that the dream world is purely mental, lucid dreamers can exert a remarkable degree of 16
control over what happens in dreams, including powers of transformation (eg., causing dream figures and objects to appear or disappear at will) and violation of the laws of physics (e.g. flying) that would seem magical, if not impossible, in the physical world.” Laberge, S.,(2012) Exploring the world of lucid dreaming, Aquém e Além do Cérebro nº 9, S. Mamede do Coronado: Fundação Bial, 173-188, p. 25.
“Aparición de una unidad de sentido en que el tiempo sin desaparecer ha sido transcendido por esta unidad en que el 17
principio está ya informado por el fin. Este último en cuanto creación y pensamiento es intransferible como los sueños.” Zambrano M., (1986) p. 27.
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proporciona consiste num despertar do fundo íntimo da pessoa, esse fundo onde reside o ser em
perpétuo crescimento e transformação, que se opõe à forma estática do soberano eu que é apenas
máscara ou personagem. Os sonhos da pessoa proporcionam um despertar transcendente, por isso
são acção poética, criadora. Este poder criativo tem duas vertentes: a vocação e a criação artística.
3.1 Vocação
No caso da vocação, a pessoa comunica plenamente consigo mesma e com o mundo, recebendo
intuitivamente a confirmação de que seu curso de acção é correcto. Normalmente, a vocação é
experimentada em vigília.
3.2 Criação Artística
Quando transferimos esta experiência do tempo para a esfera da criação artística, é como se o artista
já conhecesse de antemão a obra que ainda tem em mãos. Ela inspira-o. Este paradoxo é
exactamente como podemos entender o fenómeno da inspiração na estética de Zambrano. O acesso
a um tempo futuro é o mediador entre o autor e sua criação. O tempo em espiral recolhe a
informação do futuro −a obra de arte configurada− e informa o presente, o processo de criação. É
por este motivo que muitos artistas consideram que são guiados. A vivência do tempo em espiral
explicaria, assim, o fenómeno da inspiração artística.
3.3 Sonhos Prospectivos
Os sonhos também podem ter um caracter preditivo, no sentido de que um sonho pode antecipar
eventos ou acções futuras. O poder preditivo do sonho às vezes prova ser mais preciso do que
conjecturas consciente. De acordo com Zambrano, esta possibilidade ocorre devido ao tempo em
espiral, em que o sujeito viaja a um tempo futuro e regressa com informações para o seu presente.
A Fenomenologia do Sonho de María Zambrano na Música de Bernardo Sassetti
Como é que se cala um pianista? E um guitarrista?
Ao pianista tira-se-lhe a partitura; ao guitarrista põe-se-lhe uma partitura.
Bernardo Sassetti
�8
Neste estudo privilegiou-se o som. Nunca foram utilizadas partituras. Não se pretendeu
analisar de forma tradicional uma determinada obra musical. Se esse tivesse sido o objectivo,
certamente que partituras ou, à falta destas, transcrições, teriam sido muito úteis. Porém, o objectivo
desta investigação foi totalmente diferente. Tendo em conta que a temporalidade humana é muito
mais complexa do que o tempo do relógio permite considerar, e que a música exemplifica a
temporalidade experienciada, o objectivo consistiu em procurar uma possibilidade de falar sobre
esta problemática frequentemente tomada como inexprimível. Para levar a cabo esta tarefa
cruzaram-se parâmetros musicais com as categorias da fenomenologia do sonho zambraniana acima
descritas.
Os participantes apenas tiveram um acesso auditivo às obras, que ouviram no máximo três
vezes seguidas, sendo-lhes permitido tomar notas. Seleccionaram-se parâmetros musicais que
pudessem ser facilmente reconhecíveis:
• ritmo (energias rítmicas e vitais, tipos de ritmo)
• timbre (gradações de cor, gradações de luminosidade e de sombra, contrastes vs. uniformidade)
• características da frase musical (propulsão e/ou retracção da frase musical; direcção;
fragmentação; fluência; acentos)
• dinâmica (variação da intensidade do som)
• articulação (legato, staccato)
• efeitos surpresa (o que os provoca)
• textura (planos musicais; rarefacção vs. densidade; repetição; fragmentação; continuidade vs.
descontinuidade; silêncios)
Uma vez que todos os participantes possuíam conhecimentos musicais, a familiaridade com
os parâmetros musicais seleccionados já vinha dada de antemão. Pelo contrário, a filósofa María
Zambrano e a sua fenomenologia do sonho era-lhes totalmente desconhecida. Foi necessário um
período de tempo significativo para que as categorias da taxinomia do sonho de Zambrano fossem
assimiladas. Uma vez atingido este objectivo passou-se à fase seguinte: durante a audição de uma
obra, cruzar as categorias do sonho de María Zambrano com os parâmetros musicais seleccionados
e determinar a sua classificação de acordo com temporalidade virtual que uma determinada obra
induziu.
Durante os primeiros dois anos, realizaram-se audições de obras de períodos musicais
diferentes e compositores diversos, por forma a permitir maior contraste e facilitar o processo de
reconhecimento da categoria de sonho exemplificada musicalmente. A destreza entretanto adquirida �9
permitiu que durante o último ano se avançasse para um maior grau de minúcia: em cada sessão, o
estudo incidiu sobre obras de apenas um compositor tendo em conta, por vezes, duas interpretações
diferentes de uma mesma obra. Os critérios cruzaram parâmetros musicais enunciados com as
categorias do sonho de Zambrano descritas. Foram dadas instruções aos participantes para que não
refreassem as emoções ou imagens suscitadas pela música, devendo incluí-las no texto que
produziram a partir das audições. Considerou-se cada obra como um todo. Neste sentido, a sensação
predominante originou a classificação, embora se possam encontrar dentro de uma obra momentos
que se subsumiriam noutra categoria. Também por este motivo, não se atendeu à minutagem, salvo
raras excepções. Cada obra foi tomada como um sonho.
Sonho dos Outros - Piano Solo 18
Álbum Nocturno (2002) Compositor: Bernardo Sassetti
https://www.youtube.com/watch?v=2gFBTYcdw6k
A obra está composta num compasso ternário, ritmo regular de valsa, ou de embalo. No
tema, a acentuação acontece no tempo fraco da música, o acompanhamento acentuando o segundo,
o que propicia a retracção da frase musical. A célula rítmica recorrente é semelhante à de Des pas
sur la neige de Debussy que induz ao estatismo, à estagnação. Em termos de energia rítmica
poderíamos falar de desesperança ou de desalento. Trata-se de uma valsa dormente, seguramente
uma valsa triste. No entanto, é uma tristeza doce. Há como que uma aceitação daquilo que
entristece, quase um desistir de lutar, numa palavra: melancolia.
Há no timbre o toque característico de Bernardo Sassetti: doce e cristalino. O ataque do
instrumento tão suave e envolvente torna-se quase encantatório. A atmosfera é de penumbra e
mantém-se uniforme ao longo de toda a peça. A dinâmica acontece sem grandes contrastes, também
aqui se poderia falar de uniformidade.
O acompanhamento mantém-se estável, regular, quase metronómico. A sua presença
vagarosa e constante contribui para a sensação de obstáculo. A figuração da melodia é sempre de
gestos em anacrusa de colcheia para o tempo forte. No entanto, ao ser tocada de forma muito
O disco foi dedicado por Bernardo Sassetti à sua sobrinha Rita Wemans que, com apenas 20 anos, faleceu num 18
acidente de viação. Transcreve-se aqui um texto que o compositor partilhou, na altura, na sua página do Facebook: "Há sempre uma imagem.../ Sempre esta imagem de nós/ imperfeitos, inacabadamente longe dos sonhos./ E há sempre sonhos/ sonhos doces, tão mágicos, tão desejáveis/ mas tão longe do que somos e temos./ Há sempre outros/ sempre esses outros que nos avaliam/que nos fazem corar, sorrir, amar, chorar./ E há sempre nós.../ nós bonitos, nós feios,/nós sozinhos, nós amados.../ Quem me dera que houvesse/ sempre uma imagem de nós nos/ sonhos dos outros! Para a Rita, imagem eterna no SONHO DOS OUTROS. Esta versão é dedicada aos pais, Mimi e Luís, e aos irmãos, Tiago e Nuno. A Rita está sempre connosco. Todos os dias..."
�10
flutuante, induz instabilidade Não há sincronização absoluta entre as mãos, as notas da mão direita
vêm sempre um bocadinho depois, num intervalo de tempo impreciso: tempo Rubato na mão
direita. O carácter repetitivo do desenho melódico e rítmico tanto na mão esquerda como na mão
direita também contribui para esta sensação de obstaculização, de beco sem saída. Exceptuando
ligeiras mudanças na harmonia, ouve-se a repetição de uma melodia descendente de pares de notas
ascendentes, sem contrastes de dinâmica ou timbre. Uma certa probidade circular sugere que a peça
poderia continuar a repetir-se eternamente. Não se consegue escapar ou encontrar uma saída. Há
uma tensão que nunca é resolvida, um desespero permanente sem solução. Tudo isto indica o sonho
de obstáculo.
Sonho dos Outros - 3 Pianos
Compositor: Bernardo Sassetti
http://www.youtube.com/watch?v=BLSPFO4Imvw
Na interpretação para três pianos, encontramos muito bem diferenciados três planos
musicais, cada um com uma função, tanto do ponto de vista harmónico, como da simbologia
psíquica ou emocional. Cada plano encarna uma diferença de carácter, bem delimitada pela
articulação, sonoridade e figuração. Estas variações aliviam um pouco as características opressivas,
de obstáculo, da primeira interpretação para piano solo, introduzindo na obra maior criatividade. O
ritmo, sobretudo do solo do Mário Laginha, aponta para uma estrutura menos rígida, mais livre.
Apesar do ritmo da melodia no tema inicial ser mais rigoroso que na primeira versão, nesta segunda
interpretação parece existir mais liberdade que na anterior. O facto de haver maior variedade torna
esta versão menos confinada, conferindo-lhe algo de esperança, de possibilidade de mudança. O
final em forma ascendente contribui para o indiciar da esperança. O acorde final é tocado de forma
mais afirmativa, conferindo uma certa pacificação ao resto da obra.
A versão para três pianos apresenta três planos musicais distintos: melodia principal,
acompanhamento em acordes e um terceiro plano de enriquecimento textural. Numa primeira fase,
há maior semelhança com a interpretação em piano solo. A partir de certa altura desenha-se uma
melodia, e não simplesmente uma sucessão de acordes, que trás mais luminosidade à composição.
Num segundo momento, a melodia vai evoluindo, progredindo, embora o ciclo repetitivo se
mantenha. Há na condução da linha um impulso para a frente, variando a energia e o tempo,
acelerando e retardando, embora a repetição dos acordes da mão esquerda dê ao todo uma sensação
de regularidade temporal. As mãos do pianista correm suavemente pelas teclas do piano �11
procurando, mas, sem angústia. No final retorna-se à regularidade inicial, mas agora pontuada por
acordes inesperados, que não destroem a fluidez nem a cor, antes a tornam mais positiva que na
interpretação em piano solo.
Nesta segunda interpretação aparece o mesmo acompanhamento mas apontando já a
mudança através da dissonância remarcada. Surge, de novo, a melodia de carácter anacrúsico, mas
uma nova cor emerge na improvisação de Mário Laginha incrementando a propulsão da frase
musical. A luminosidade aumenta, os contrastes também. A improvisação permite que se origine um
diálogo que transforma a melodia. Ela dilui-se, muda o tipo de notação, agora mais rápida, para
voltar no fim à sua característica essencial de instabilidade.
É de especial importância destacar o momento em que a melodia sofre esta transformação. A
seguir à sucessão de vários acordes, a melodia já não aparece como a voz preponderante, mas passa
timidamente a um plano secundário. É neste momento de contraponto que ela sofrerá essa
transformação que propiciará a fluidez que depois apresenta. A certa altura a melodia dá um passo
atrás para retomar com mais força esse primeiro plano que lhe é característico. Este dar um passo
atrás, o regressar a um passado longínquo que é reticente, para o resolver e converter finalmente em
passado absoluto, é a característica principal do sonho de orexis.
Música Callada - Piano Solo
Álbum Nocturno (2002) Compositor: F. Mompou
http://www.youtube.com/watch?v=i_5Ro3bolUg
Em anacrusa surgem três notas rápidas em ascensão para eclodir num acorde que fica
suspenso e ecoa sob uma melodia simples. Ouvimos uma melodia nítida e recorrente: dó, ré, mi, mi,
mi, mi, fá, ré, mi. Há no registo agudo uma insistência no mi. Quase uma declamação de mi. Vive-
se uma atmosfera de mistério com o uso de cadências e escalas que evocam modos antigos, como
uma memória sonora arcaica. Experimenta-se um deambular sonoro que induz um carácter onírico
e melancólico. O tema de três notas introdutórias repete-se ao longo da obra, por vezes com
mínimas alterações harmónicas nos acordes que sustentam a melodia desencadeada.
Poderíamos distinguir três fases na obra:
A primeira é de carácter introspectivo, dado pela forma fragmentada da linha melódica, que
é suavizada pelo ataque doce das teclas. Acordes algo estranhos, mas serenos, entrecortam as
pequenas frases melódicas. No entanto, a melodia é apoiada e impulsionada pelos acordes.
Segue-se um trecho mais enérgico, de maior articulação, velocidade de execução,
intensidade e densidade sonora. A melodia parece ser catapultada para a frente, em direcção ao �12
futuro. Depois da breve ornamentação melódica aparece uma segunda voz, o que propicia um
crescendo de dinâmica e uma diluição da figuração. Este movimento expansivo, tanto rítmico como
dinâmico, e de extensão de registo, será seguido por um movimento de contracção onde há um
retorno que acaba na melodia solitária em piano. Embora as mudanças de configuração e de
dinâmica sejam radicais, a peça progride num contorno descendente e registos mais sombrios. mas
de uma grande envolvência e profundidade. Tema a subir, variações a descer. Note-se a importância
do registo grave a apoiar certos momentos de perturbação algo dissonante que acontece à superfície,
no registo agudo.
No final acentua-se a calma, a serenidade. A melodia suaviza-se e os acordes finais parecem
conduzir a uma conclusão. No entanto, inesperadamente, as últimas notas deixam-nos em suspenso.
A conclusão não é, portanto, definitiva.
A peça musical no seu todo induz uma atmosfera de profundidade e mistério, aliada a um
mergulho na memória antiga (características modais tanto a nível melódico como harmónico). O
final da obra surge como um despertar inquietante. As dissonâncias não ferem, antes apontam para a
descoberta, o desbravar de um horizonte novo, ou o fazer sentido de algo que há muito se não
entendia, que confere a resolução do passado reticente em passado absoluto: sonho de orexis.
Música Callada - Trio
Álbum Nocturno (2002) Compositor: F. Mompou
http://www.youtube.com/watch?v=MtMFy2tWfVE
Nesta segunda interpretação de Musica Callada aparece-nos a mesma melodia, mas o
carácter muda, com a instrumentação que acrescenta ao piano o contrabaixo e a percussão. A
melodia inicia no contrabaixo, o conjunto de instrumentos vai criando um campo harmónico de
ressonância profunda. O contrabaixo soa com um vibrato microtonal que proporciona uma
instabilidade do som, mesmo quando está aparentemente na mesma nota. Esta microtonalidade
sugere um ambiente oriental, o mesmo acontecendo com as cordas glissantes. Com notas
sustentadas e oscilação, a corda friccionada dá uma predominância ao todo da melodia. Não se trata
de um acontecimento que desencadeia muitos outros associados, pelo contrário, soa uma voz. Há
uma omnipresença da pedal em vários registos: lá-sol-lá. A melodia no contrabaixo é acompanhada
pelo piano e a percussão, constituindo estes dois últimos o plano de fundo, adquirindo uma forma
quase plástica. Melodia e plano de fundo comunicam de diferentes formas: ora se contradizem, ora
dizem o mesmo.
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A atmosfera é austera, dir-se-ia quase ritual, monástica. Transmite alguma agitação pelo
constante marulhar da percussão A articulação no piano é bastante marcada, por vezes quase dura,
tal como o pizzicato, em 2’48, no contrabaixo. A austeridade decorre das sonoridades
intencionalmente ásperas, o carácter ritualístico é omnipresente, talvez pela presença muito
marcada, no início, de determinados timbres explorados na percussão.
Desde o início da melodia no contrabaixo que a composição se vai tornando mais complexa
até ao momento improvisado do piano. A percussão cria um efeito de acompanhamento, faz rolar o
tempo numa atmosfera em que os acontecimentos harmónicos e melódicos parecem menos
desencadeadores de transformações do que na primeira versão para piano solo.
Existe definição, contorno, estrutura. A cadência final acaba, após a improvisação
melismática do piano, na modalidade esperada. Poderíamos pensar na agitação após o despertar do
sonho (a audição anterior). Do estado de contemplação para um estado de maior inquietação, ou no
contraste entre o interior, ou regresso a um passado longínquo e arcaizante que a primeira
interpretação induz e o exterior que a presente audição sugere. Há como que um estar afogado (1ª
interpretação) e vir ao de cima. Da interioridade afectiva, memória longínqua e doce à realidade
mais dura e marcada. É a mesma melodia que regressa sempre, apesar da margem de
indeterminação melódica. O som com mais espaço de ressonância e a melodia distorcida conferem
orientalismo. Sente-se a vontade deliberada de sair da afinação ocidental
Em síntese, numa primeira parte a espiral ganha novas texturas devido à percussão. A voz
passa a estar no contrabaixo que canta a melodia e o piano, no seu acompanhamento, torna-se
também ele um instrumento mais de percussão do que de ressonância como acontece na primeira
interpretação. Num segundo momento, a melodia passa a estar no piano, é mais articulada que na
primeira interpretação e, de novo, deixa-se que sejam os outros instrumentos (sobretudo a
percussão) a ocupar o lugar que na primeira interpretação teve o pedal no piano ao provocar
ressonâncias. As improvisações no piano contribuem também para este aumento de texturas,
timbres e cores. Nesta segunda interpretação aumentam a variedade tímbrica e de ritmos, mas
mantém-se o carácter intimista e desafiante de descoberta que já sentimos na primeira interpretação.
A atmosfera de serenidade que permeia a obra, apesar da intensificação da ressonância e do
incremento da liberdade e criatividade, indicam o tempo em espiral.
Alice (2005) - Piano Solo
Compositor: Bernardo Sassetti
Banda sonora do filme Alice de Marco Martins �14
https://www.youtube.com/watch?v=cY1i1tgAgS4
Ouvimos primeiro uma introdução que vai desde o baixo até aos acordes, criando o chão
musical sob o qual se erige a melodia.
Depois de uma pequena pausa, inicia-se uma nova secção contrastante em termos de métrica
e andamento. O início é um esboço de melodia acompanhada, podia ser uma canção, mas este
indício de canção dura pouco; as notas adquirem uma importância igual na mão esquerda e direita,
que se relacionam num desencontro. A melodia é melancólica, ritmo calmo, pensativo, numa
intensidade mezzo-piano. O modo menor confere um ambiente geral de tristeza, há algo que tem de
ser resolvido mas não se consegue. A melodia acaba na 3ª menor do acorde, não na fundamental, o
que cria uma sensação de inacabamento, inconclusão. Há uma pausa muito pequena que faz a
transição, mas que devido aos acordes finais que a antecipam, transmite uma sensação de suspensão
do tempo.
Após esta breve pausa ocorre uma mudança do material temático que agora apresenta uma
textura mais densa e de carácter repetitivo. Esta secção é toda ela mais enérgica e de tempo mais
rápido, criando uma certa tensão ansiosa que é acentuada pela repetição do tema principal. É um fio
condutor repetitivo, quase minimal, com pequenas variações. Não há momentos de quebra de
tensão, a composição desenvolve-se em círculos de igual intensidade, energia e rapidez que se
repetem sucessivamente, criando uma sensação de ansiedade obsessiva. Com a insistência na
repetição, aquilo que era apenas previsível torna-se quase insuportável, quer-se fugir mas não se
consegue. Não há desenvolvimento ou relação a uma conclusão, a obra termina com um acorde
surdo, quase esmagado pelo largar algo súbito do pedal. Este andar em círculos repisando uma e
outra vez o caminho percorrido, sem conseguir sair do mesmo sítio, denotam o sonho de carácter
real degradado, a obsessão.
Alice (2005) - piano; clarinete; contrabaixo; percussão
Compositor: Bernardo Sassetti
Banda sonora do filme Alice de Marco Martins
https://www.youtube.com/watch?v=RZLHk9lWARY
Nesta versão de Alice para quatro instrumentos, o piano dirige o discurso musical, destacado
num primeiro plano, o contrabaixo serve de apoio nos baixos, o clarinete reforça a linha melódica
com notas longas (à excepção da parte onde dobra a linha melódica do piano) e o vibrafone terá as
funções ora de pontuação, ora de eco de algumas notas da melodia do piano. No final da peça
desaparecem o contrabaixo, o clarinete e o vibrafone, finalizando a peça só o piano, algo que �15
constata o que ouvimos desde o início: o piano esteve quase sempre sozinho no discurso musical, os
outros instrumentos tiveram como principal função expandir a cor da peça, aumentar a diversidade
de texturas.
O timbre quente do clarinete, que nos chega como uma voz distante, confere um carácter
talvez mais lírico, ou doce, contrabalançando a natureza repetitiva do piano. Esta versão torna-se
mais contemplativa ou distanciada que a audição anterior. Menor insistência no carácter obsessivo,
pela exploração e maior contraste de timbres e dinâmicas, tornando a escuta mais suave.
Esta segunda versão não tem secção introdutória, apenas uma pequena frase musical
despojada, como um lamento contido que o clarinete deixou escapar. O andamento é bastante mais
rápido que na primeira versão. A melodia veloz, sem pausas, repete o tema. A natureza melódica do
clarinete não é explorada nesta primeira secção, ele só prolonga notas enriquecendo o timbre,
preenchendo espaço, saturando a música. Não há tempo para respirar. A primeira parte termina com
um acorde parado, breve, surdo, esmagado.
Na segunda parte embora a repetição constante da melodia continue a ocorrer, o andamento
é ligeiramente mais lento. Os apontamentos do clarinete acentuam o primeiro acorde, sempre grave,
que inicia as diferentes frases da melodia, estabelece-se um diálogo com o vibrafone que por vezes
polvilha a nota mais aguda do piano. A conjugação dos instrumentos permite fazer maiores
contrastes de dinâmica. A certo momento, a melodia do clarinete, como um vôo de pássaro,
aumenta a luminosidade, um raio de sol num dia escuro e enevoado. Mas é um brilho fugaz que
rapidamente se desvanece entre as nuvens carregadas. O clarinete regressará ainda uma segunda e
uma terceira vez, num sopro de esperança. Mas a esperança é sempre vencida. O horizonte fecha-se.
A obsessão mantêm-se. Sonho de carácter real degradado ou obsessão.
Ouçamos o que o próprio compositor diz sobre esta obra, tendo em mente que todos os
elementos do grupo de trabalho desconheciam este texto:
O tema principal, minimalista e obsessivo, só aparece numa fase avançada da narrativa; foi concebido num
compasso de 7/4 (sete tempos num compasso/sete dias da semana), sem que eu tivesse prévia consciência disso. A pontuação do tempo é produzida nos graves lentos de um contrabaixo e as notas longas de um c l a r i n e t e sugerem uma voz perdida, a de Alice. Todos os movimentos musicais que se lhe seguiram, assim como todos
os outros sons pontuais, baseiam-se, sem excepção, em variações harmónicas, passionais ou c ircunstancias , do mesmo tema.
Morning Circles - Piano Solo
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Compositor: Bernardo Sassetti
Álbum Motion (2009) https://www.youtube.com/watch?v=rWKDx99rYRc 19
Em Morning Circles surge, desde o início, um ritmo regular que será o motor de toda a peça.
O seu balanço na mão esquerda, sobre uma nota pedal, com pequenas nuances harmónicas,
determinará o espaço de acção sobre o qual incidirá a melodia. Mantém-se a regularidade rítmica
que induz, neste caso particular, um espaço fixo e fechado. Esta dimensão espacial será preenchida
como primeiro ponto de fuga, por uma melodia de carácter sincopado onde há uma direcção
intervalar constante, só quebrada por pequenas notas de transição melódica. Se este ritmo sincopado
pode ser percebido como primeiro ponto de fuga, é ainda mais marcante nos pequenos desenhos
melódicos dos agudos e nas notas graves que só aparecem de forma fugaz e pouco frequente. São
pequenos pontos de fuga numa quadratura constante.
As frases musicais acabam no tempo fraco sendo que a pulsação no tempo forte é sempre
assegurada pela mão esquerda num ostinato não-obsessivo. O acompanhamento obedece a uma
lógica de simplicidade, tanto no desenho como na harmonia. Só pequenas variações ornamentam
este movimento continuo, fazendo que o simples e repetitivo se torne variado. Apesar da
simplicidade, não é previsível, há sempre algo que pode surgir sem quebrar o movimento continuo e
estável da peça. Muito luminoso no registo agudo da mão direita, há qualquer coisa de muito puro,
de transparência, de leveza. O minimalismo da melodia evoca uma canção para crianças. A beleza, a
magia, a inocência e a frescura da vida a despontar.
O movimento da mão direita é mais circular, quando comparado com o da mão esquerda,
que é mais linear. A linha melódica em terceiras maiores recorda o dobrar dos sinos nas igrejas e o
som dos próprios a propagar-se no espaço; movimento circular das ondas sonoras, cujas
ressonâncias evocam Avo Pärt. O baixo move-se como um pêndulo. Este movimento torna-se
hipnotizante.
A modulação que acontece a determinado momento da obra é passageira, regressando
rapidamente ao centro sugerido pela nota-pedal. Esta ideia é reiterada com o recurso a uma oitava
mais baixa (que indicia uma certa profundidade / reconhecimento profundo do centro) e a uma
maior acentuação dinâmica (maior quantidade de som, maior presença / consciência do centro).
A ordem e a regularidade da composição conferem uma sensação de tranquilidade e certeza
e não de repetição. A sensação de serenidade, de paz interior, e não de obstáculo ou obsessão talvez
No interior deste CD citam-se os seguintes versos de Edgar Allan Poe: “All that we see or seem is but a dream within 19
a dream”.�17
decorra do facto de que embora a melodia se repita, repete-se sempre de uma maneira nova, aberta e
não fechada sobre si. Qualquer coisa que apesar da repetição flui.
Atmosfera de devaneio onírico, calmo e positivo, que sugere um estado de plenitude.
Sensação de paz, que se vai mantendo ao longo de toda a peça com novos ângulos através das
pequenas variações. Interpretação muito doce e cristalina que contribui para as sensações já
descritas anteriormente. Um espraiar da essência, do ser recebido, na linguagem de Zambrano.
Sente-se a espiral na ressonância. Tempo em espiral.
Reflexos. Movimento Circular
Compositor: Bernardo Sassetti
Álbum Motion (2009) https://www.youtube.com/watch?v=2BsVxthty8E
Ao passo que em Morning Circles a existência de um centro e de uma repetição imprimiam
uma sensação de tranquilidade e certeza, como se a nota-pedal constituísse um espaço de
recolhimento para o qual se pode sempre voltar. A presença de um motivo repetitivo imprime uma
sensação de inquietude, talvez pela maior variedade cromática que acontece, em menor tempo, e
pela sensação de arritmia, de solavanco, de sobressalto, de síncopa constante. Gera-se um ambiente
de alerta e de inquietação, sublinhado pela repetição constante do tema de forma obsessiva. Esse
motivo recorrente dado no início converter-se-á em material germinal a partir do qual a composição
se desenvolve. No entanto, este desenvolvimento pode acontecer por oposição: a partir de certa
altura as melodias parecem resistir ao motivo-base a partir do qual nascem. Dá a sensação que se
constroem contra o motivo repetitivo.
Numa segunda parte o registo grave do piano dá o impulso necessário para a
experimentação melódica do contrabaixo, efeitos que se misturam com os efeitos da percussão. Um
impulso de urgência e evolução característico do sonho monoeidético. A presença destes outros
instrumentos cria uma atmosfera ventosa e agreste. Certos timbres metálicos sobressaem
pontualmente e a sua natureza crua e desprovida de tratamento recorda o som de ferramentas
(martelos, ferros). O improviso cria uma sensação de grande indefinição em relação ao que se
segue, não se consegue adivinhar uma possível evolução. Como se alguém andasse completamente
desorientado e perdido no caos, de forma angustiante. O movimento mais rápido do
acompanhamento é de uma enorme riqueza: há uma alternância de alturas nas diferentes vozes, a
percussão e as cordas a silvar, sonoridades cruas, timbres quase guturais e um tremor de fundo que
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tornam a audição angustiante. Chega a ser assustador, como um cenário de um mundo perigoso e
degradado característicos da obsessão ou do sonho de carácter real degradado.
Em certo momento deste marulho sonoro, sobressairá, de novo, a voz do piano que se
encaminhará para a repetição de uma nota, depois várias notas, de forma percussiva, para criar uma
nova forma de diálogo entre os instrumentos não apenas de carácter melódico mas também de
carácter rítmico. A repetição percussiva de uma mesma nota levar-nos-á à 3ª parte em que acontece
uma retoma do material inicial. No entanto, há uma tensão que nunca é atenuada e que se intensifica
no final da obra sem ser resolvida.
Em síntese: o caracter de urgência no sentido da evolução, característico do sonho
monoeidético, é dado pela figura rítmica e melódica com que a peça inicia. Este será um motivo
recorrente durante toda a obra. Há uma atmosfera de inquietação e, de cada vez que esta figura
rítmica e melódica se repete, a urgência para a acção. Numa primeira parte trata-se, portanto, de um
Sonho Monoeidético.
Depois da pausa em 1’58 a música retoma com a figura rítmica e melódica do início
parecendo que vai terminar no minuto 3. No entanto, a partir daqui gera-se um estado de
improvisação que pode parecer caótico devido ao caracter surpreendente, não se consegue antecipar
o que vai acontecer a seguir. Há abertura mas também angústia e receio, embora não
demasiadamente pronunciados. Talvez seja mesmo o vislumbrar de algo novo, a transformação para
que o sonho monoeidético aponta. No entanto, também lá está a possibilidade da queda, da
transformação em sonho de carácter real degradado, sobretudo a partir da insistência numa só nota
em torno dos 5’50 que se vai acentuando até diminuir no 6’50 em que se regressa à figura rítmica e
melódica inicial. O sujeito reencontra-se (não se perdeu de todo, não se degradou) e o carácter de
urgência é retomado. O fim ascendente confere um toque de esperança.
Alternância: sonho monoeidético — obsessão — sonho monoeidético.
Do Silêncio - Revelação
Compositor: Bernardo Sassetti
Álbum Ascent (2005) https://www.youtube.com/watch?v=UfS_snMb7eE
A obra começa com uma interrogação: duas notas, a segunda mais aguda que a primeira,
seguida de um tempo de espera, como se se esperasse que a resposta surgisse. Ouvimos sons muito
distantes uns dos outros. Lentidão. Espaço. Há um estatismo que só não se estabelece de forma
absoluta graças à ressonância. São quase silêncios: pianíssimos. No entanto o silêncio nunca chega
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a instalar-se apesar da escassez do som. Todas estas características: muito espaço, a redução ao
essencial.
O piano apresenta-se como chão fértil sobre o qual o violoncelo canta livremente. O canto
do violoncelo torna-se então o suporte dos outros instrumentos. Instala-se um certo ambiente
nostálgico e triste, que se vai intensificando com a sucessão de acordes. Ouve-se o ostinato desde
2’14 e é tocado três vezes, a terceira já com o violoncelo. Depois, a composição deriva por outro
caminho, já não é ostinato mas antes repetição da figuração. Os acordes acordes no piano são
sempre ascendentes mas a linha no violoncelo é, de uma forma geral, descendente e com
cromatismos, o que reforça o ambiente geral de tristeza, tensão e não resolução.
Junta-se ao diálogo a percussão e o contrabaixo, num jogo de texturas e registos, expandindo
as coordenadas da paisagem sonora que entrevíamos no piano. O violoncelo soa com um certo
carácter onírico, enquanto o piano continua a repetir um mesmo motivo, que funciona como
pontuação à voz do violoncelo. Assiste-se a uma construção progressiva da peça, há um incremento
da textura e um maior preenchimento rítmico. Dá a sensação de que conseguimos observar o seu
processo de criação. Por fim o piano termina a obra, já sem as vozes dos outros, novamente só.
Inesperadamente ouvem-se duas notas, como dois toques de um pequeno sino. Continua à espera?
Um polvilhar metálico da percussão desagua num final suspenso, talvez aberto a uma
transcendência.
A obra está envolta numa atmosfera de melancolia, de penumbra. Embora haja espiral nas
ressonâncias, é demasiado triste, não atinge a plenitude. É um sonho de orexis, uma viagem a um
passado longínquo, algo misterioso. Saudade. Nostalgia. Talvez a promessa de uma revelação que
ainda está para acontecer.
Da noite ao Silêncio
Álbum Ascent (2005) www.youtube.com/watch?v=0iewd3kBRIc
Da noite ao silêncio quase se poderia considerar uma continuação de Do Silêncio -
Revelação. As duas obras são semelhantes no início difuso e tenso que desencadeia uma dança
criativa. Há um carácter fragmentário, embora menos acentuado que na peça anterior. Os acordes
lentos, numa paisagem sonora indefinida, vão tomando forma até dar entrada a um novo
instrumento, o vibrafone, e logo, a continuação, ao violoncelo.
As primeiras notas do piano caem como gotas de chuva, e o violoncelo soa como um canto à
lua. As notas do violoncelo são sempre longas e sustentadas. O seu legato constante transmite uma
ideia de harmonia e apaziguamento. O alternar de notas agudas e graves, consonantes e com ritmo �20
regular, cria no piano um campo harmónico límpido e redondo que descreve espirais. É envolvida
nesta espiral de som que se desenvolve a melodia terna e cantabile do violoncelo. Há um lirismo na
voz do violoncelo, quente e sonhador; também imbuída de uma certa tristeza, como que evocando
lembranças agridoces. O violoncelo é o humano, o quente. Os outros timbres translúcidos sugerem
a pureza de uma noite profunda. O ambiente é nostálgico, sonhador.
A introdução da percussão provoca como que um acordar. Quando a percussão se silencia a
melodia do violoncelo regressa, agora mais serena, o acompanhamento do piano é mais brilhante,
com acordes menos graves, e a melodia termina em paz: o que causava mágoa está agora sarado. O
tempo desenvolve-se numa espiral que avança recuperando o início da construção musical. Tempo
em espiral.
Finale Só tenho certezas
quando o instinto me diz que não tenho muito tempo para pensar e a sequência dos sons deve ser
um espaço de espontaneidade criativa e uma constante entrega ao prazer de tocar
Bernardo Sassetti
Até agora não são conhecidas técnicas para lidar com a música apenas ouvida. As
transcrições, por seu lado, criam problemas de vária ordem. A pulsação é algo que se sente de forma
tão íntima que a notação se torna muito discutível , principalmente quando o próprio compositor 20
não escreveu. Quando essa ausência de escrita foi propositada que legitimidade existe em adentrar-
se por esse território? Ou, pelo contrário, quando um compositor escreveu muito, variadíssimas
versões de uma mesma obra, quem tem autoridade para decidir sobre a versão oficial, se o próprio
Musical time is notated with remarkable imprecision and ambiguity. Composers, more often than not, rely upon 20
qualitative rather than quantitative directives to inform performers of intended tempo. And if the vagaries of such terms as Adagietto (somewhat slow), or Lentissimo (slower than slow) are not ambiguous enough, terms such as Allegro ma non troppo (fast, but not too fast), or terms that connote speed through emotion such as Allegro appassionato, Bravura, or Agitato, or terms that confuse complexity with speed, such as Tempo semplice, oblige the performer to imagine temporality from the composer’s perspective through guesswork. My favorite temporal marking is the term Tempo rubato, literally “stolen time,” in which duration is added to one event at the expense of another. Long after German inventor Johann Maelzel patented the metronome in 1815, composers continued to persistently avoid strict measures of time in their scores, instead relying primarily on adjectival description. J. Berger (2014) How Music Hijacks Our Perception of Time http://nautil.us/issue/9/time/how-music-hijacks-our-perception-of-time
�21
já não se encontra entre nós? Com a restrição da análise musical à música escrita, a música não
notada, frequentemente, não é analisada. Muito do jazz, por exemplo, não está escrito, ou, por
vezes, existem apenas cifras. A maioria do som que realmente ouvimos é improvisado, facto em
virtude do qual uma grande parte destas composições não são tomadas como objectos de estudo.
Existe ainda um problema de outra natureza, com implicações sérias: a análise musical
formal deixa de lado o som propriamente dito. E o que é a música sem som? Música desvitalizada?
O que são partituras? Cadáveres musicais que o intérprete, por ventura, ressuscita? Na análise de
partituras a interpretação e a performance ficam excluídas, a natureza alquímica do som desprezada.
Se pensarmos que a música é um modelo da temporalidade humana por excelência , acaba por ser 21
uma grande falha deixar de atender à temporalidade da música na interpretação e na performance.
Bernardo Sassetti considera o momento de interpretação de uma obra como expressão máxima:
Todos sabem (ou imaginam) que o desafio de comunicar, a espontaneidade, a harmonia, o conflito de sons e ideias, assim como a energia sob várias formas e feitios, serão sempre lugares comuns quando falamos de
música, escrita ou improvisada. Interpretá-la no momento é a expressão máxima do nosso caminho e a c o n s t a n t e procura de caminhos outros. 22
Já no texto Sobre a música interpretada o compositor coloca as seguintes questões:
Poderei eu fazer uma análise consistente e fiel da minha música? E poderá essa análise, ao mesmo tempo, trazer alguma novidade ou interesse particulares? Sinceramente, acho que não.
O pudor de um criador em analisar a sua própria obra é frequente e legítimo. A intimidade
que experimenta poderia impossibilitar o distanciamento que toda a análise requer. Quanto à
segunda questão, importaria saber qual é o interesse da análise musical, e se esta é susceptível de
alcançar um conhecimento novo.
De acordo com Langer e Burrows a música simboliza a temporalidade humana, constitui um
acesso a esta esfera complexa que constantemente tomamos de forma redutora, tendo em conta
apenas o tempo do relógio. Langer conscencializou-se do problema de natureza inefável que a
música não resolve, antes mostra, exemplifica. Com a introdução da taxinomia do sonho de María
Zambrano criaram-se condições para passar a ser possível falar sobre estes outros tempos
vivenciados pelo sujeito humano. Ao contrário do que acontece com a pulsação cardíaca, que é uma
D. Burrows (2007) Time and the Warm Body. A Musical Perspective on the Construction of Time. Boston: Brill, p. ix.21
Sassetti, B. “Sobre a música interpretada” in Ascent.22
�22
experiência particular, a experiência do tempo virtual da música é partilhável. A audição conjunta
de uma obra traz os ouvintes para um universo comum, um agora colectivo:
Sound spaces are short-lived inflated containers like soap bubbles, defined by the common resonance they
contain. 23
Neste espaço de ressonância comum, os músicos e musicólogos que participaram neste
projecto adquiriram ferramentas que lhes permitiram expressar-se sobre a experiência temporal que
uma obra musical específica induziu. A possibilidade de falar sobre algo torna esse algo mais
presente, a palavra é reconhecedora de existência. Daqui decorre que a investigação realizada, ao
nomear temporalidades virtuais experimentadas, contribuiu para a sua consciencialização. Passou a
ser possível referir estados temporais do humano que a música tem o poder de exemplificar, e o
ouvido atento a capacidade de reconhecer.
Os músicos que formaram parte deste grupo de trabalho não tiveram acesso a nenhuma
partitura nem a nenhum texto de Bernardo Sassetti. No entanto, podemos constatar como
encontraram − ouviram − nas suas obras, características musicais que o compositor enuncia:
Como muitos compositores e intérpretes, não me é fácil traduzir por palavras a música que imagino
interiormente. Posso, no entanto, referir o meu método de composição e interpretação, baseado essencialmente n a construção de ostinatos − ideia obsessivas e linhas melódicas que me “perseguem”, mesmo que eu esteja l o n g e d o piano; estas surgem como determinação da estrutura e do desenvolvimento de cada uma das peças, podendo ser (ou não) objecto de infindas variações. 24
Não se pretendeu neste estudo, de forma alguma, esgotar a apreciação de uma obra, tarefa
impossível por natureza! Os objectos artísticos têm vida própria e propiciam infinitas possibilidades
de acesso. O objectivo foi bem mais modesto: introduzir a taxinomia do sonho de Zambrano como
uma possibilidade de categorizar o tempo virtual da música. Ao privilegiar o som esta técnica
poderia permitir o acolhimento de obras cuja notação é inexistente. Por outro lado talvez pudesse
vir a ser desenvolvida como um complemento da análise musical formal, acolhendo as
componentes alquímicas do som, que ficam relegadas para um segundo plano com a análise restrita
à partitura.
D. Burrows (1990) Time, Speech and Music. Massachusetts: University of Massachusetts Press, p.36.23
Sassetti, B., Sobre a música composta in Ascent.24
�23
Música composta ou improvisada, condicionada ou absoluta, é uma questão cada vez mais sem limites. Talvez seja o reflexo da nossa vida; talvez seja a realidade juntamente com o universo dos sentidos. Porem, mais do
que a própria realidade, é o espelho das coisas que dela imaginamos: do silêncio e de regresso a ele, as imagens em forma de música terão sempre um carácter abstracto, suspenso, inacabado... 25
As categorias da fenomenologia do Sonho de María Zambrano quando cruzadas com uma
selecção de parâmetros musicais passíveis de serem reconhecidos por qualquer um, sem
necessidade de conhecimentos musicais específicos, poderia também ser muito benéfica para o
amante da música aprofundar a sua audição. Existem qualidades auditivas, minúcias de atenção e
apreciação estética, que se podem desenvolver mesmo sem o ensino formal da música. Em qualquer
caso, o que aqui se pretendeu explorar foi a possibilidade de falar sobre a sonoridade da música, a
alquimia do som que se nos oferece na sua virtualidade temporal.
Sassetti, B., Sobre a música interpretada in Ascent.25
�24
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