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Este trabalho discute a erudição religiosa na comunidade afro-muçulmana dos Malês e o papel por ela desempenhado na resistência cultural e nas Insurreições por estes encabeçadas na Bahia da primeira metade do século XIX, em especial na grande rebelião de 1835. Particularmente pretende analisar as relações entre as escolas corânicas e mesquitas clandestinas e dos mestres que nelas ensinavam com a erudição islâmica militante presente na África Ocidental durante os jihads dos séculos XVIII e XIX que levariam à ascensão do Califado de Sokoto. Analisa também a presença das confrarias místicas do Islam africano na Bahia do século XIX.
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INTRODUÇÃO
Na madrugada de 24 pa ra 25 de Jane i ro de 1835 cen tenas
de a f r icanos , esc ravos e l ibe r tos , se insu rg i ram nas ruas de
Sa lvado r . Cons t i tu indo -se , em sua g rande ma io r ia , de io rubás
i s lam izados, os rebe ldes ma lês es tavam bem o rgan izados e
un i f o rm izados con fo rme os gue r re i ros i s lâmicos que lu tavam nas
gue r ras san tas da Á f r ica , t razendo ve rs ícu los do Qur ’an
pendurados em seus corpos . Es te even to ímpar da H is tó r ia
nac iona l f i cou conhec ido como “A Revo l ta dos Ma lês ” .
A insu r re ição acabou dom inada pe las fo rças o f i c ia i s após
a lgumas ho ras de comba te . Os rebe ldes sob rev iven tes fo ram
su je i t os a penas que iam da depor tação fo rçada à Á f r i ca a té a
pena de mor te , passando po r aco i tes e ga lés .
Es ta pesqu isa p re tende ana l isa r a e rud ição re l i g iosa na
comun idade a f ro -muçu lmana dos Ma lês e o pape l po r e la
desempenhado na res is tênc ia cu l tu ra l e na insu rgênc ia po r es tes
encabeçada na Bah ia da p r ime i ra metade do sécu lo X IX, em
espec ia l na g rande rebe l ião de 1835 . Pa r t icu la rmente , p re tende
ana l isa r as re lações ex is ten tes en t re as esco las e mesqu i tas
c landes t inas e dos mest res que ne las ens inavam com a e rud ição
i s lâm ica p resen te no Bi lad -as -Sudan (Á f r i ca Oc iden ta l , te r r i t ó r io
onde ho je se loca l i zam pa íses como N igé r ia e Senega l ) du ran te
os j i hads dos sécu los XV I I I e X IX e a ascensão do Ca l i f ado de
Soko to , bem como a t ranspos ição de con f ra r ias m ís t icas da
Á f r i ca pa ra a Bah ia .
Ra imundo N ina Rod r igues , um dos p r ime i ros au to res a
es tuda r o tema, em seu l i v ro “Os A f r i canos no B ras i l ” (1976)
cons ide rou a “Revo l ta dos Ma lês ” uma con t inu idade dos j i hads
af r icanos , em espec ia l o mov imento encabeçado por Usman dan
Fod io , re fo rmador re l i g ioso , p ro fesso r e ju r i sconsu l to is lâm ico
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f u lan i , f undador de um ex tenso impé r io , o Ca l i f ado de Soko to . A
tese de Rod r igues fo i con tes tada , a t ravés do sécu lo XX, por uma
sér ie de au to res de o r ien tação marx is ta e po r ou t ros que
en fa t i zavam o p r inc íp io de so l ida r iedade é tn ica e desp rezavam
os fa to res cu l tu ra i s e re l i g iosos ou con jugavam-os , subo rd inando
os ú l t imos ao p r ime i ro , como fez João José Re is (2003 ) em seu
vo lumoso “Rebe l ião Esc rava no B ras i l ” , cons ide rada “ob ra
de f in i t i va ” sobre os ma lês .
Nes te t raba lho a u t i l i zação de mater ia l em l íngua
es t range i ra f o i reduz ido ao abso lu tamen te essenc ia l , já que
desp rezá - lo de todo to rna r ia pa r t i cu la rmente p rob lemát ico
abo rda r o tema do I s lão e dos movimentos re fo rm is tas na Á f r ica
Oc iden ta l , em v i s ta da reduz ida b ib l iog ra f ia d ispon íve l em
po r tuguês . Os t raba lhos de N ina Rod r igues (1976 ) , José Ca i rus
(2002 ) e João José Re is (2003 ) cons t i tuem as p r inc ipa is f on tes
u t i l i zadas na pesqu isa , todav ia , o mate r ia l de re fe rênc ia é bem
ma is vas to .
D iv id imos o t raba lho em c inco cap í tu los . O p r ime i ro
t ra tando da h is to r iogra f ia do tema das revo l tas ma lês . O
segundo e te rce i ro t ra tam das o r igens do I s lão e da e rud ição
i s lâm ica na Á f r i ca do Oeste , seu desenvo lv imen to e
pecu l ia r idades , bem como a ascensão das i rmandades su f is tas e
dos mov imentos re fo rm is tas na reg ião . O qua r to e o qu in to
cap í tu los t ra tam da p resença do Is lão na Bah ia da década de
1830 , da comun idade a f ro -muçu lmana e de seu in tenso
mov imento de expansão p rose l i t i s ta no pe r íodo , da aná l ise dos
pe r f i s , o rgan ização e es t ra tég ias da e rud ição i s lâm ica ba iana
(ma lams, a lu fás ) e suas imp l i cações pa ra a g rande insu r re ição
a f ro -muçu lmana de 1835 , a Revo l ta dos Ma lês .
Ao in i c ia rmos a pesqu isa pa r t imos do p ressuposto de N ina
Rod r igues , pa ra quem a Revo l ta dos Ma lês t ra tou -se ,
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i deo log icamen te , de uma con t inu idade das gue r ras re l i g iosas
t ravadas na Á f r i ca Oc iden ta l , insp i radas por l ide ranças
re fo rm is tas e pu r i tanas , pa r t i cu la rmente po r Usman dan Fod io e
seu mov imento de j ihad . Levamos em cons ide ração , também, a
p ropos ta de José Ca i rus que suge re que os ma lês se
o rgan izavam, na Bah ia , em i rmandades su f is ( tu ruq , s ing .
ta r iqa ) .
No p resen te t raba lho p re fe r imos p r i v i leg ia r , na g ra f ia dos
te rmos is lâm icos , o uso ma is cor ren te en t re os e rud i tos
muçu lmanos dos pa íses de l íngua po r tuguesa . Ass im, g ra famos
“ I s lão” em luga r de “ I s lã ” , “Makka ” e “Mad ina ” em vez de “Meca”
e “Med ina ” . Também u t i l i zamos “Muhammad” e nunca “Maomé” 1
po is , a lém t ra ta r -se de um f rances ismo ta rd io , cons t i tu i uma
cor rup te la pe jo ra t i va do nome do p ro fe ta do Is lão . Usamos
“Qur ’an ” quando se re fe re ao o r ig ina l á rabe e “A lcorão ” quando
se t ra ta de t raduções ou comentá r ios em l íngua po r tuguesa e ,
com menor f reqüênc ia , u t i l i zamos o te rmo “mos l im” 2 (p l .
mos l imes ) em luga r de muçu lmano.
1 De fato, na literatura portuguesa clássica o profeta do Islão é chamado de “Mahamede”. Por
exemplo, nos versos de Camões: Que aqui gente de Cristo não havia, Mas que a Mahamede celebrava. (Os Lusíadas Canto I:102) 2 Nisso seguimos o professor Helmi Nasr, responsável pela tradução “oficial” do Alcorão em língua
portuguesa, aprovada e distribuída internacionalmente pelo Ministério dos Assuntos Islâmicos do Reino da Arábia Saudita.
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1. A REVOLTA DOS MALÊS E A H ISTORIOGRAFI A
Em nosso es tudo par t imos do p ressuposto cu l tu ra l i s ta que
cons ide ra as revo l tas ma lês como fenômeno insepa ráve l do
re fo rm ismo i s lâmico no Bi lad as -Sudan Oc iden ta l (Á f r i ca do
Oeste ) e dos j i hads dos sécu los XV I I I e XIX que de ram
nasc imento ao Ca l i f ado de Soko to e d i ve rsos em i rados vassa los ,
e no pe rcurso dos qua is m i lhares de m i l i t an tes e e rud i tos
re l i g iosos ca í ram ca t i vos e acabavam abas tecendo os mercados
de esc ravos da Bah ia . Aqu i rec r ia ram ins t i t u i ções e in ic ia ram um
in tenso p rose l i t i smo po l í t i co e re l ig ioso , segu indo o mesmo v iés
ideo lóg ico que os an imava na ou t ra margem do A t lân t i co .
A d iscussão acerca do rea l a l cance e p ro fund idade da
in f luênc ia que o Is lão te r ia exe rc ido na Revo l ta dos Ma lês fez-se
p resen te desde os p r ime i ros es tudos ded icados ao tema.
E t ienne Ignace , pad re jesu í ta a rmên io , f o i um dos p ione i ros
no es tudo da Revo l ta dos Ma lês de 1835 . Tendo po r p r inc ipa l
moto r de suas idé ias um fe rvo roso sen t imento de c ruzada , seu
t raba lho se ca rac te r i za pe la ausênc ia de isenção em sua aná l ise
do mov imento e o pape l cen t ra l que a t r ibu i a re l i g ião . O c lé r igo
c r i t i ca , em seu es tudo (1970) , aque les que o an tecede ram, já
que es tes não te r iam perceb ido as mo t i vações re l i g iosas do
Levan te Ma lê , t ido po r es te como uma gue r ra san ta maometana ,
um j i had , con t ra a Cr i s tandade. O jesu í ta chega a p ropo r a
ex i s tênc ia uma consp i ração is lâm ica in te rnac iona l e a l ança r o
a le r ta pa ra o pe r igo de uma repe t i ção , em so lo b ras i le i ro , do
supos to massacre de a rmên ios pe los tu rcos o tomanos .
A inda que a obra do sace rdo te a rmên io es te ja rep le ta de
um sen t imen to rac i s ta e eu rocên t r ico , não devemos nos de ixa r
cega r po r uma an t ipa t ia moderna e a lgo exage rada po r seu
t raba lho . Devemos , ass im , ev i ta r per igo de sermos
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p reconce i tuosos dema is com os p reconce i tos do au to r ,
pe r fe i t amente consonantes com seu ambien te e época . O
es tudo p ione i ro de E t ienne Ignace (1970 ) , en t re tan to , possu i
seus mér i tos . Ca i rus (2002 ) ass ina la que o jesu í ta f o i de ta lh i s ta ,
desc revendo p rá t icas e t rad ições desconhec idas po r mu i tos que
apenas o ro tu la ram de faná t ico , o que sem dúv ida e ra , mas sem
examinar ma is cu idadosamente seu t raba lho . E es te possu i
i negáve l impo r tânc ia e uma marcada in f luênc ia sob re aque les
que o suceder iam no es tudo da tema ma lê . É , po r exemplo , no
t raba lho de E t ienne B raz i l que a v isão dos ma lês como
segu ido res de um Is lão a f r icano he te rodoxo e s incré t ico (em
opos ição a um Is lão á rabe “puro ” ) , repe t ido ad nauseam po r
au to res pos te r io res (a inda que sem qua lque r embasamento
i s lamo lóg ico ) , debu ta .
O p r ime i ro es tud ioso a ana l isa r o tema das revo l tas ma lês
de modo ma is ap ro fundado fo i Ra imundo N ina Rodr igues (1976 ) ,
méd ico maranhense rad icado na Bah ia . In te lec tua l t íp i co da
v i rada do sécu lo X IX pa ra o XX, evo luc ion is ta e par t idá r io das
teor ias rac i s tas em voga na época e um con temporâneo de
E t ienne Ignace , N ina e ra mov ido “não po r f ana t i smo re l i g ioso ,
mas an tes po r um fana t ismo c ien t i f i c i s ta ” . Os es tudos
pos te r io res sob re os ma lês fo ram, de uma fo rma ou de ou t ra ,
baseados em sua pesqu isa . Confo rme Ca i rus :
. . .as chamadas aná l ises marx i s tas não logra ram es tabe lece r aná l ises du radouras , mas somente t r iun fos e fêmeros , enquanto N ina con t inuou a ser pa rad igmá t i co a t ravés das v ic i ss i tudes do tempo (CAIRUS, 2002 , p .50 ) .
N ina Rod r igues de fend ia a idé ia que as revo l tas ma lês , e
em espec ia l a grande revo l ta de 1835 , t ra tavam-se de uma
con t inu idade das gue r ras re l i g iosas oco r r idas em so lo a f r icano .
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Refer indo -se às revo l tas a f ro -muçu lmana , Rod r igues fo i
en fá t ico :
Para apreender a sua verdadeira significação é mister remontar às transformações étnicas e político-sociais que a esse tempo se operavam no interior da África. Outra coisa não faziam os levantes senão tentar reproduzir delas pálido esboço, deste lado do Atlântico, sob influxo dos sentimentos de que ainda vinham possuídas as levas do tráfico, em que para aqui se transportavam verdadeiros fragmentos de nações negras. E estas bem sabiam manter-se fechadas no círculo inviolável da própria língua, de todos desconhecida. Essas revoltas de que estudo pouco aprofundado dos historiadores pátrios não tem feito mais do que explosões acidentais do desespero de escravizados contra a opressão cruel e tirânica de senhores desumanos, têm assim alta significação da mais acabada sucessão histórica. Elas se filiam todas às transformações políticas operadas pelo islamismo no Hauçá e no Iorubá, sob a direção dos fulos ou fulás (RODRIGUES, 1976, pp. 38-39).
As rebe l iões ma lês se r iam, no en tende r de Rod r igues , ma is
do que uma p rev is íve l res is tênc ia ao ca t i ve i ro . Ma is que is to ,
se r iam a rec r iação , em te r ras amer i canas , dos con f l i tos po l í t i co -
re l i g iosos da Á f r ica Oc iden ta l .
Por sob a ignorância e brutalidade dos senhores brancos reataram-se os laços dos imigrados; sob o duro regime do cativeiro reconstruíram, como puderam, as práticas, os usos e as crenças da pátria longínqua. O comércio continuado com a Costa d’África ia-os instruindo dos sucessos guerreiros e religiosos que por lá se desenrolavam e assim se lhes ministravam pabulum e estímulo novo para a conversão e para a luta. O islamismo organizou-se em seita poderosa; vieram os mestres que pregavam a conversão e ensinavam a ler no árabe os livros do Alcorão, que também de lá vinham importados (RODRIGUES, 1976, p. 41).
N ina Rod r igues p ropõe que os a f r icanos te r iam, a despe i to
das adve rs idades da escrav idão , consegu ido p reserva r seus
va lo res cu l tu ra is e re l i g iosos , bem como os idea is j i had is tas que
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f e rvo rosamen te de fend iam em sua te r ra na ta l e , a se rv i ço das
qua is , ve r iam-se su je i tos a cond ição de escravos . Es tes
a f r icanos , de fa to , nunca te r iam seus laços to ta lmente co r tados
com seus co r re l ig ioná r ios do ou t ro lado do A t lân t ico , já que o
comérc io sup r ia a Bah ia não apenas de mercado r ias e esc ravos,
mas também de no t i c ias da Á f r ica . Em so lo ba iano , os ma lês não
apenas con t inuar iam a cu l t i va r sua ve rsão m i l i tan te do Is lão
como também o fa r iam f lo resce r a t ravés do p rose l i t i smo e da
conve rsão . O au to r , que conc lu iu te r hav ido uma expansão do
I s lão na Bah ia no pe r íodo que an tecedeu a rebe l ião de 1835 ,
quando p rose l i t i smo ma lê te r ia a lcançado seu áp ice , também
desc reveu as madrassas 3 e as mesqu i tas c landes t inas nas qua is
os mest res ma lês e seus es tudan tes congregavam-se pa ra a
ins t rução na esc r i ta a ráb ica e no conhec imen to re l ig ioso , ass im
como pa ra a adoração a A l lah . A ex is tênc ia de uma l ide rança
i s lâm ica e rud i ta , que N ina menc iona em seu t raba lho , cons t i t u i
um e lemen to ind ispensáve l para a compreensão da soc iedade e
insu r re ições ma lês .
A r thur Ramos, ou t ro méd ico e , de cer to modo, um d isc ípu lo
de N ina Rod r igues opôs -se às emergen tes teses marx i s tas . Pa ra
Ramos a pecu l ia r idade das rebe l iões ma lês se encon t ra em seu
cará te r i s lami ta po is “ sua agress iv idade fo i uma herança soc ia l
d i re ta das lu tas secu la res de re l i g ião , que assegu ra ram na
Á f r i ca o domín io do Is lão ” (RAMOS, 1971 , p .52 ) .
Ed ison Carne i ro (1964 ) endossou a o r igem dos p r is ione i ros
de guer ra dos j i hads da Áf r ica Oc iden ta l e a ex is tênc ia de uma
l i de rança muçu lmana e a a f i rmação de que os a f r i canos da
reg ião da Gu iné ser iam po r tadores de uma c i v i l i zação ma is
3 Madrassa: nome dado às escolas corânicas, onde os estudantes se aprofundam na memorização, estudo e na arte da recitação do Qur’an.
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ad ian tada de modo que os aza res do t rá f ico f i ze ram apo r ta r à
Bah ia o que e le chamou de os “ in te lec tua is do A l to Sudão ” .
Os negros muçulmanos, mais inteligentes, mais solidários entre si, organizavam-se, já sob o governo do conde de Arcos, para a guerra santa contra os infiéis (CARNEIRO, 1964, p.67).
Abe la rdo Duar te (1958 ) d i scor reu sob re o I s lão na Á f r ica e
sua chegada ao Bras i l com os “sudaneses i s lam izados ” ,
suge r indo uma aná l ise de d i ve rsos au to res que rea l i za ram
es tudos sob re os a f ro -muçu lmanos fo ra da Bah ia , em espec ia l
em A lagoas e Pe rnambuco. D igna de no ta é a d i f e renc iação fe i t a
pe lo au to r en t re os g rupos is lam izados de A lagoas e da Bah ia
onde , de aco rdo es te , os a lagoanos se r iam s inc ré t i cos e ba ianos
ma is a l i nhados a uma o r todox ia . Or todox ia es ta que exp l ica r ia o
f ana t ismo que resu l tou espec i f i camente no Levan te Ma lê de
1835 . O fana t ismo, pa ra Duar te a lgo ine ren te à fé i s lâmica ,
exo r ta r ia ao j i had , sendo a conqu is ta do pa ra íso a recompensa
daque les que mor ressem em combate . Dua r te s imp l i f i cou ,
con f i rmando a t rad ição h is to r iográ f ica , p ropondo que o
fana t ismo te r ia s ido a causa dos levan tes a f ro -muçu lmanos no
B ras i l .
Sy lv iane D iou f des tacou o pape l do Is lão na Revo l ta dos
Ma lês , mas , ao con t rá r io de ou t ros es tud iosos , não a cons iderou
uma gue r ra san ta (CAIRUS, 2002 ) . D iou f cons ide rou necessá r ias
qua t ro p recond ições pa ra se carac te r i za r um j i had e es tas não
se te r iam fe i to p resen tes em 1835 : os f ié is se rem op r im idos a té
não pode rem ma is p ra t i ca r o I s lão ; cons t i t u í rem pe lo menos a
metade da popu lação loca l ; es ta rem be l i camente n i ve lados aos
in im igos ; a invasão do te r r i tó r io muçu lmano. Pa ra e la apenas a
p r ime i ra dessas cond ições se ap resen tou em 1835 . D iouf
assum iu uma pos ição in te rmed iá r ia den t ro das cor ren tes
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i n te rp re ta t i vas da Revo l ta dos Ma lê , a inda que negando a tese
de “gue r ra san ta ” , a au to ra deu g rande ên fase a p resença
muçu lmana na revo l ta . Con fo rme Ca i rus :
“ela especifica as consultas feitas aos marabouts que então realizam a khalwa (o retiro durante o qual o líder jejua, reza e pratica o dhikr) com o intuito de tentar pressentir o sucesso ou fracasso do empreendimento. Os imames dirigem preces especiais para pedir orientação divina, as chamadas salat al istikharah, que são feitas em situações limite, como, por exemplo, às vésperas de um empreendimento militar. Os revoltosos não teriam saído às ruas para defender a pureza, como o shehu Dan Fodio fez na África, e nem buscavam converter os infiéis. Os inimigos não foram definidos em termos de religião: a guerra era contra os brancos. É um erro, segundo ela, estereotipar qualquer ação militar ou revolta empreendida por muçulmanos como um jihad” (CAIRUS, 2002, p. 64).
Em opos ição aos es tudos de o r ien tação cu l tu ra l i s ta , que
t ra tou Revo l ta dos Ma lês como j i had , ou t ra ve r ten te p ropôs uma
aná l ise marx i s ta pa ra dec i f ra r a ques tão das insu r re ições a f ro -
muçu lmanas na Bah ia .
C lov is Moura , pe los anos 1950 , te r ia s ido o p r ime i ro , após
E t ienne Ignace e N ina Rod r igues , a es tudar os documentos do
levan te ma lê e o p ione i ro na busca de uma exp l i cação pa ra a
rebe ld ia escrava na Bah ia do sécu lo X IX par t i ndo de uma
aná l ise es t ru tu ra l . Mou ra busca r ia em seu t raba lho exp l ica r ,
a t ravés da s i tuação po l í t i ca e soc ia l da p rov ínc ia ba iana da
p r ime i ra metade dos m i l e o i tocen tos , o f enômeno das
sub levações esc ravas .
Lu iz Luna (1968 ) esc reveu sob re o tema du ran te os tempos
con tu rbados da Revo lução Cubana , em cu ja i n f luênc ia ,
poss ive lmen te , encon t remos a exp l i cação pa ra o d i scurso
marcadamente pan f le tá r io com re lação ao mov imento ma lê .
Pa ra Luna , as revo l tas a f ro -muçu lmanas na Bah ia es ta r iam
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dest i tu ídas do esp í r i to de l ibe r tação do qua l se r iam exemp lo os
qu i lombos . Mu i to pe lo con t rá r io , se r iam, dev ido a seu ca rá ter
i s lâm ico , uma mera exp losão de p ro tes to desmed ido e sem
ob je t i vo ou t ro que “mata r b rancos , tomar o Poder e ban i r a
re l i g ião c r i s tã , em nome de A lá ” (LUNA, 1968 , p .131) . Luna
las t ima a p resença do e lemento re l i g ioso no levan te ,
cons ide rando -o como fana t i smo e supe rs t i ção que p re jud icava o
“mov imento revo luc ioná r io ” e imped iu as massas de um
anac rôn ico p ro le ta r iado negro , de se a r t i cu la rem con t ra o
“ reg ime” .
Déc io de F re i tas (1985 ) pub l i cou um l i v ro ded icado à
Revo l ta dos Ma lês , onde o au to r p ropõe que os escravos te r iam
se o rgan izado em “ fo rmas supe r io res de lu ta e ten ta ram se
l i be r ta r med ian te a des t ru i ção do s i s tema esc rav is ta ” (FREITAS,
1985 , p . 9 ) .
F re i tas ob je t i vou o uso po l í t i co dos ma lês a se rv i ço da
esque rda e c r i t i cou o t raba lho de v iés cu l tu ra l i s ta de N ina
Rod r igues e da tese da gue r ra san ta ma lê , t raba lhando a pa r t i r
da h ipó tese de que a lu ta dos ma lês te r ia por ob je t i vo a
des t ru ição do s i s tema esc rav is ta e que o levan te de 1835 se
exp l i ca r ia “na d ia lé t ica de uma p lu ra l idade de causas e t i nham
po r ob je t i vo a des t ru i ção do s i s tema esc rav is ta ” (FREITAS, 1985 ,
p .10) . F re i t as buscou , a t ravés da m is t i f i cação do even to ,
ap rop r ia r -se da Revo l ta dos Ma lês como bande i ra po l í t i ca em
favo r de ideo log ias p róp r ias , t rans fo rmando, num passe de
mág ica , a f r i canos o r iundos de soc iedades com longa t rad ição
esc ravoc ra ta em he ró is do abo l ic ion ismo. Confo rme obse rvou
Ca i rus : “Te r iam os ma lês se to rnado sub i tamen te abo l ic ion is tas
fe r renhos em te r ras ba ianas? ” (CAIRUS, 2002 , p .69 ) .
No que conce rne a evo lução da d iscussão h is to r iográ f i ca
ace rca dos ma lês , pa r t i cu la rmente no que se re fe re aos
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t raba lhos rea l i zados nas ú l t imas décadas, é percep t íve l uma
s ín tese de tendênc ias mate r ia l i s tas e cu l tu ra l i s tas .
João José Re is pub l i cou , nos anos 80 , seu ex tenso
“Rebe l ião Esc rava no B ras i l : A h i s tó r ia do Levan te dos ma lês de
1835 ” . O au to r u t i l i zou -se de vas ta documentação em sua ob ra ,
desde p rocessos jud ic ia i s dos ma lês p resos , a té manusc r i tos
re l i g iosos , passando pe la p rodução h i s to r iográ f i ca que o
an tecedeu e d i ve rsas ou t ras fon tes . As conc lusões e
in te rp re tação que Re is expôs em seu es tudo ganha ram s ta tus de
tex to canôn ico e seu l i v ro f o i cons iderado po r mu i tos a “ob ra
de f in i t i va ” sob re os ma lê e , ass im, a obra de Re is cons t i tu i -se
no pa rad igma a tua l pa ra ou t ros es tud iosos in te ressados no tema
da rebe l ião esc rava na Bah ia .
Re is s in te t i zou em seu t raba lho as tendênc ias que
emerg i ram na d iscussão h i s to r iográ f i ca do tema a t ravés do
sécu lo XX. Po rém, jus tamente por seu es fo rço em busca r um
me io te rmo que escapasse à ó rb i ta tan to do mecan ic ismo
na tu ra l i s ta quan to do mate r ia l i smo t rad ic iona l , não consegue
cap tu ra r p lenamen te a pecu l ia r s ingu la r idade dos a f ro -
muçu lmanos da Bah ia , descambando na c r iação do que José
Ca i rus chamou de “ jacob in i smo ba iano ” .
A análise de Reis quase sempre privilegiou a questão da aculturação, da reinvenção, como se estivéssemos tratando de objetos completamente diversos. Em um movimento como o de 1835, essas escalas de abordagem podem fazer a diferença. Reis argumentou que Nina e Arthur Ramos hereticamente negam a historicidade dos eventos na Bahia. Poder-se-ia igualmente argumentar que os muçulmanos originários de um conflito com forte conteúdo religioso de afirmação de ortodoxia ou mesmo acomodação, tornaram-se subitamente afro-baianos sincréticos. Neste caso, Reis estaria negando a historicidade ao inverso (CAIRUS, 2002, p. 76).
Nas p róp r ias pa lavras de Re is :
21
Se quisermos definir resumidamente o movimento de 1835, podemos dizer que a conspiração foi male e o levante foi africano” (REIS, 2003, p.136).4
Renomado a f r i can is ta e espec ia l i s ta no tema da esc rav idão
na Á f r i ca Oc iden ta l , Pau l Love joy (2000 ) é au to r de um es tudo
demográ f i co dos esc ravos muçu lmanos na Bah ia do in íc io do
sécu lo XIX . Nesse es tudo , Love joy t raça as o r igens dos ca t i vos
ma lês , de e tn ias d i ve rsas , no mov imen to dos j i hads . Love joy
p ropõe que a espec i f i cação da o r igem dos ca t i vos o r iundos dos
j i hads que de ram o r igem ao Ca l i f ado de Soko to e o Emi rado de
I lo r in se r ia f a to r de g rande impor tânc ia a se cons ide ra r no
es tudo da rebe ld ia a f ro -muçu lmana na Bah ia . E le a f i rma , no
in íc io de seu a r t i go , que :
... este estudo examina o material biográfico disponível, em uma tentativa de oferecer subsídios adicionais acerca da comunidade muçulmana para, assim, estabelecer mais claramente as ligações entre padrões de resistência à escravidão na Bahia, que culminariam na insurreição Male de 1835, e o movimento da jihad no interior da Baía de Benin (LOVEJOY, 2000, p.11).
Seu es tudo concen t ra -se nos even tos oco r r idos em so lo
a f r icano que , em seu en tender , te r iam con t inu idade na Bah ia ,
f a to neg l igenc iado , no ge ra l , pe los es tud iosos b ras i le i ros aos
qua is f a l ta r ia a espec ia l i zação necessá r ia pa ra compreender a
i n te r l i gação dos fa tos . Em seu t raba lho , Love joy demonst rou
que :
...os rebeldes transcenderam o que se entende por resistência escrava. Eles estavam integrados em outro mundo: o Dar al Islam5” (LOVEJOY, apud, CAIRUS, 2002, p.81).
4 Os grifos são do próprio Reis. 5 Dar al-Islam: Literalmente casa ou lar do Islão. Refere-se as terras e estados onde predominam os moslimes e a lei e o modo de vida islâmico estão estabelecidos.
22
Para Love joy os e lementos é tn i cos e re l i g iosos es tavam,
a inda que de um modo incomple to , in te r l i gados , con t ra r iamente
a idé ia de Re is , pa ra quem es tes es tavam em con t rapos ição .
D ip loma ta , poe ta , ensa ís ta , h is to r iado r , a f r i canó logo e
membro da Academia B ras i le i ra de Le t ras , A lbe r to da Costa e
S i l va é uma das ma is respe i táve is vozes que se opuse ram as
in te rp re tações de Re is e um dos de fenso res ma is gaba r i tados da
tese da Revo l ta dos Ma lês como j i had . O imor ta l se u t i l i za do
p róp r io es tudo de Re is pa ra se con t rapor às suas conc lusões ,
pa ra e le equ ivocadas, sob re a na tu reza do levan te de 1835 :
Não me rendi a tese de Reis, porque tudo em seu livro me endereça à guerra santa. Procura os possíveis ideólogos, articuladores e chefes do levante, e encontra muçulmanos. Vai ver os mortos, feridos e presos e dá com islamitas, vestidos de islamitas. Nos corpos e guardados dos revoltosos, os rosários são moslins, e os amuletos e os demais escritos estão em árabe. O próprio Reis me dirige os passos (SILVA, 2002, p.10).
Au to r de um t raba lho recen te sob re o tema, José Ca i rus
p ropõe que os ma lês se o rgan izar iam em to rno de i rmandades
m ís t icas su f i s . Chamadas de ta r iqas , são f ra te rn idades
re l i g iosas , onde os d isc ípu los se congregam em to rno de um
l íde r esp i r i tua l de quem recebem o r ien tação em prá t icas como
dh ik r ( invocação cons tan te de fó rmu las p iedosas ou de um ou
ma is dos 99 nomes de Deus menc ionados no A lco rão ) e kha lwa
( re t i ro ) e se bene f i c iam das bênçãos de seu ca r isma esp i r i tua l
(ba raka ) . Ca i rus (2002 ) é con tundente ao a f i rmar que “a Irmandade
Malê aparentemente foi inspirada no modelo sufi” e que:
“Os papéis árabes e os anéis encontrados indicavam que seus companheiros eram igualmente muçulmanos e possivelmente muito orgulhosos de fazer parte uma tariqa sufi” (CAIRUS, 2002, p.80).
23
Ca i rus en fa t i zou o ca rá te r i s lâm ico e a f r i cano das revo l tas
ma lês , p r inc ipa lmente da g rande revo l ta de 1835 , e suas
re lações com ins t i tu ições e p rocessos po l í t i cos , soc ia i s e
h is tó r i cos da Á f r ica Oc iden ta l . O h is to r iador con tes ta também
a lgumas das conc lusões de Re is , espec ia lmen te quan to a
ascendênc ia da so l ida r iedade é tn i ca sob re a in f l uênc ia do I s lão
no levan te de 1835 .
Po r ú l t imo, devemos menc iona r o t raba lho de Muhammad
Sha ree f (1998 ) , au to r no r te -amer i cano com um p ro fundo
conhec imen to das pecu l ia r idades do I s lão a f r icano . Sha ree f
es tudou nos cen t ros t rad ic iona is de conhec imento i s lâm ico da
a tua l N igé r ia e no Sudão, com descendentes do p róp r io Usman
dan Fod io , que lhe pe rmi t i ram acesso a manusc r i tos de p róp r io
punho do fundado r do Ca l i f ado de Soko to , de seu i rmão
Abdu l lah i e ou t ros ideó logos do j i had . O au to r t raduz iu vá r ias
dessas ob ras pa ra l íngua ing lesa . Sua pos ição quan to a
na tu reza das revo l tas a f ro -muçu lmanas da Bah ia é exp l ic i tada
no t í tu lo de sua tese de PhD, depo is t rans fo rmada no l i v ro “The
A f r i can Mus l im S lave Revo l ts o f Bah ia ,B raz i l : A Cont inu i t y o f t he
19 th Cen tu ry J ihaad Movements o f W este rn Sudan ” . O au to r
de fende , como o fez N ina Rod r igues quase um sécu lo an tes , que
o fenômeno das revo l tas ma lês é ind issoc iáve l dos j i hads da
Á f r i ca Oc iden ta l , no que é segu ido de per to pe los au to res do
p resen te es tudo nos cap í tu los a segu i r .
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2. O ISLÃO NA ÁFRICA OCIDENTAL
As re lações en t re a Á f r i ca e o I s lão da tam dos p r ime i ros
anos da reve lação co rân ica . En t re os p r ime i ros segu ido res do
P ro fe ta Muhammad es tava um ex-esc ravo ab iss ín io , B i la l , que
to rnou-se um dos ma is p róx imos de seus companhe i ros , o
p r ime i ro muez im 6 do Is lão e que , no deco r re r dos sécu los e da
expansão da re l i g ião a lém da A ráb ia , t o rnou -se uma espéc ie de
pa t rono da Á f r ica i s lâmica e dos muçu lmanos negros . A Á f r ica
também fo i o des t ino esco lh ido pe lo Pro fe ta como p r ime i ro
re fúg io pa ra seus segu ido res du ran te o endu rec imen to das
pe rsegu ições so f r i das nas mãos dos po l i te ís tas de Makka .
Muhammad env iou um grupo de seus segu ido res encabeçado po r
seu p r imo , Ja ’ f a r i bn Ab i Ta l ib , pa ra a co r te do re i c r is tão da
Ab iss ín ia (a tua l E t ióp ia ) , buscando as i lo da op ressão dos che fes
á rabes pagãos. Segundo a t rad ição i s lâm ica , o Negus ab iss ín io
acabou po r ace i ta r o Is lão , se to rnando o p r ime i ro soberano a
faze r -se mos l im , embora não tenha inc i tado seu povo a ab raça r
a nova fé .
2.1 As or igens do Is lão na Áf r ica Negra
O Is lão fo i in t roduz ido na Á f r ica a t ravés de duas ro tas
d is t in tas . Uma o r ig iná r ia do les te po r v ia mar í t ima , a t ravés do
Oceano Índ ico e ou t ra , pe lo no r te , por te r ra , a t ravessando as
a re ias do Saara .
O Islã seguiu as antiqüíssimas rotas de comunicação entre os países magrebinos e trans-saarianos, sobretudo aquela
6 Designa-se por muezim (al-muadhdhin) aquele que, do alto dos minaretes das mesquitas,
conclama os fiéis para a oração cinco vezes ao dia.
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pista que sai do Marrocos, passa por Sijilmassa e acaba no vale do Níger, perto da atual cidade de Gao. Com a progressiva islamização dos berberes, o número de muçulmanos nas caravanas que se encaminhavam para o sul foi cada vez maior, e a mensagem do Islã difundia-se gradualmente entre os negros sudaneses (REICHERT,1970, p. 111).
O ca rá te r do Is lão do no r te da Á f r i ca , reg ião também
conhec ida po r Maghreb , começou de fa to a se r f i rmado pe los
a lmoráv idas no sécu lo X I , que es tabe lece ram a o r todox ia sun i ta
pe la adoção da esco la ju r íd i ca mal i k i . Sob a d inas t ia a lmôada ,
que os sucede ram, o I s lão magreb ino o r todoxo se m is tu rou a
m ís t ica su f i , que se to rnou o p r inc ipa l agen te da is lam izacão na
Á f r i ca depo is do sécu lo X I I . Na Á f r i ca do Oeste os con ta tos com
as te r ras cen t ra is do I s lão e ram fe i tos somente a t ravés do Ha j j
(pe regr inação a Makka ) , sendo ass im, se r ia o Maghreb que
es tabe lece r ia o mode lo de o r todox ia i s lâm ica pa ra a reg ião .
Devido ao movimento expansionista islâmico na África Ocidental ter-se originado a partir norte da África, os muçulmanos daquela região aderiram à escola legal islâmica malikita, predominante na África do Norte. Na África Oriental, de forma diversa, o Islã foi influenciado pela península arábica, onde prevalecia a escola legal shafiíta” (CAIRUS, 2002, p. 84).
A t ra je tó r ia do I s lão na Á f r ica do Oeste es tá
in t r insecamente l igada a h i s tó r ia e sucessos do Maghreb , como
bem exemp l i f i ca o impacto da ascensão dos A lmoráv idas .
A partir do século XI, quando o movimento Almorávida (Al-Murabitun) desencadeia ondas de erudição indígena e reforma, o Bilad as-Sudan Ocidental viu o surgimento de centros de estudos e a rede de eruditos colocar a religão em pé de igualdade com seus pares através do mundo. A rede de erudição ligando as gerações de sábios na região torna-se cada vez mais clara conforme as pesquisas aumentam. Abdullah b. Yasin e suas façanhas militares costumavam ser tudo que se ouvia do movimento Murabitun. Mas, após
26
pesquisa focando em (personagens) como Imam al-Hadrami, o erudito estudioso trazido por Abu Bakr b. Umar e feito o Qadi de Azzugi, tem sido lançada luz no desenvolvimento da erudição local. A ligação entre os eruditos murabitun e a família Aqit de Timbuktu estabeleceu a continuidade desta tradição. A influência de Ahmad Baba, seu shaykh Muhammad Baghayagho, Shaykh Mukhtar al-Kunti al-Kabir e uma série de outros como eles no pensamento dos líderes califais de Sokoto é bem evidente a partir de seus numerosos escritos (BUGAJE, 2004).
O t raba lho m iss ioná r io ou da ’wa f o i conduz ido po r e rud i tos
re l i g iosos ou u lama (s ing . a l im ) que f i ze ram os p r ime i ros
con ta tos com os gove rnan tes oes te -a f r icanos , que fo ram os
p r ime i ros in f luenc iados pe lo I s lão , “o que ind ica a impo r tânc ia
dos Es tados o rgan izados no p rocesso de i s lamizacão ” (CAIRUS,
2002 , p .85 ) . En t re tan to , a conversão ao I s lamismo po r um
sobe rano e po r seu c í rcu lo admin is t ra t i vo ma is imed ia to não
s ign i f i cava a adesão da a r i s toc rac ia e nobreza , os qua is , em
ge ra l , tend iam a p r i v i leg ia r os sace rdo tes t rad ic iona is . Na nova
o rdem, os e rud i tos muçu lmanos p res tavam serv i ços aos che fes
loca is e in tegravam-se ao s i s tema po l í t i co e soc ia l do Es tado ,
exe rcendo um pape l ou t ro ra reservado aos sacerdo tes da
re l i g ião ances t ra l . Sendo po l i t i camen te neu t ros , ou p re tendendo
ser , esses p r ime i ros u lama a tuavam como med iado res em
d ispu tas que demandassem a rb í t r io .
Não ta rdou mu i to para que a lguns den t re os sáb ios
i s lâm icos buscassem maio r au tonomia das cor tes dos
gove rnan tes , a inda impregnadas de in f luênc ias pagãs .
Em Tombuctu , os e rud i t os i s lâm icos es tabe leceram
comun idades au tônomas e cen t ros de es tudos re l ig iosos sob a
che f ia de um magis t rado muçu lmano (qad i ) .
Tumbuctu e as demais cidades do Império de Songai tinham muitos professores e uma antiga tradição de centros de
27
estudos. Em Tumbuctu, por exemplo, a universidade de Sankore, organizada em torno de três mesquitas (Jingaray Ber, Sidi Yahya e Sankore), abrigava já no século XII cerca de 25.000 estudantes, isso em uma população de cerca de 100.00 pessoas, como vimos (COSTA, 2007).
Muhammad Buga je (2004) esc reve que :
A aprendizado no Sudão Ocidental, onde o Califado de Sokoto está localizado, é perseguido com dedicação total. O erudito é mais que apenas um professor, ele é também um mentor, um modelo, uma figura paterna e um líder comunitário, cuja preocupação vai além de apenas questões educacionais, mas aborda os problemas sociais, médicos e conjugais da comunidade (...) Essa relação entre o erudito e o povo contrasta com a que existe entre o erudito e a burocracia. Primeiro, o erudito é financeiramente independente do estado, quanto mais distante ele está da burocracia, maior é o respeito que lhe é dispensado. O sábio é normalmente sustentado pela comunidade, através de seu zakat e sadaqat7 (BUGAJE, 2004. p.4).
Pode -se imagina r , a pa r t i r do expos to , que como
conseqüênc ia , nas re lações en t re os c lé r igos e o Es tado as
tensões e ram f reqüen tes .
Apesa r de possu í rem e rud i tos muçu lmanos em suas co r tes
e se ap resen ta rem como c ren tes ao ex ib i rem pub l icamen te
s ina is ex te rnos de Is lam ismo, como a p rá t ica das o rações ou a
comemoração dos e ids 8, os che fes gue r re i ros não e ram
cons ide rados po r mu i tos sáb ios i s lâm icos como ve rdade i ros
mos l imes , já que consum iam á lcoo l e p romov iam a matança de
f ié is . Aos f ins do sécu lo XVI I , Nas i r ud -D in , um dos e rud i tos do
sudoes te da Maur i tân ia , insu rg iu -se con t ra os guer re i ros da t r ibo
7 São modalidades de caridade preconizadas pela religião Islâmica. Zakat um tributo obrigatório
para aqueles que tem condições, sendo considerado um dos 5 pilares do Islão. A Sadaqat é voluntária, às vezes feita para expiar alguma falta ou pecado. 8 Eid refere-se a comemoração dos dias santos Islâmicos do fim do jejum de Ramadan (Eid al-Fitr) e do fim da Peregrinação a Makka (Eid al-Adha), este último também rememorando o sacrifício de Abraão (Ibrahim) de seu filho Ismael (Isma’il), substituído no último instante por um carneiro trazido pelo anjo Gabriel (Jibra’il).
28
de Banu Hassan e , após a lgum tempo , os wo lo f e os fu lan is
i s lam izados, e tn ias do te r r i tó r io do que ho je é o Senega l ,
un i ram-se a seu j i had e depuseram as d inas t ias re inan tes em
Jo lo f , W a lo , Cayo r e Fu ta To ro . Já os es tados de Songha i e
Kano fo ram v i s i tados pe lo in te lec tua l m i l i tan te do no r te da
Á f r i ca , Abdu l -Ka r im a l -Magh i l i , que c lamava pe la pu rgação de
todas as sob rev ivênc ias pagãs no Is lão . A l -Magh i l i dec la rou
tak f i r (aná tema ou excomunhão ) àque les que ace i tavam a
acomodação, den t ro do I s lão , de c renças e cos tumes do
fe t i ch ismo.
Na reg ião em to rno do lago Chade, de Kanem pa ra a Á f r ica
do No r te , o t rá f ico de esc ravos e ra a p r inc ipa l a t i v idade . O
I s lão , dessa fo rma, não se expand iu ao su l do lago Chade que
pe rmaneceu como te r reno pa ra cap tu ra de esc ravos , enquanto
Kanem se expand iu po l i t i camente em d i reção ao no r te a té
Fezzan . Nesse cená r io os sheykhs su f is f unda ram madrassas ,
mesqu i tas e loca is de reun ião e p rá t i cas esp i r i tua is . A lém d isso ,
p roduz i ram fa r ta l i te ra tu ra ju r íd ica e teo lóg ica que con t r ibu iu
pa ra o inc remento da e rud ição i s lâm ica na reg ião . Esses
mes t res su f is acompanhavam os comerc ian tes de esc ravos e se
empenhavam na conve rsão e ins t rução das l ide ranças loca is .
En la elaboración de la identidad del Islam ha jugado un papel esencial la educación, a través de las escuelas coránicas. Las escuelas coránicas fueron en su tiempo, y lo son todavía, aunque en menor escala, la institución escolar más importante del Islam en África. Los métodos de enseñanza eran los clásicos de hace todavía poco tiempo: la vara y la repetición sistemática de textos del Corán, escritos sobre tablillas de madera…todo ello en torno a un imám, que disponía de amplios derechos sobre sus pupilos (GOROSTEGUI, 2007).
Em Kanem, ass im como no seu sucesso r , o es tado de
Bo rnu , o I s lão não f i cou res t r i to apenas os c í r cu los co r tesãos ,
29
mas chegou a popu lação em ge ra l . Nos sécu los XVI e XVI I , a
cap i ta l de Bo rnu fo i um impor tan te cen t ro de es tudos i s lâm icos .
Em Bornu a ex i s tênc ia de exemp la res manuscr i tos do Qur ’an
da ta de p r inc íp ios do sécu lo XVI I , com t raduções e g lossá r ios
em l íngua ve rnácu la (CAIRUS,2002 , p . 89 ) . Esse re ino negro
a t ra iu mu i tos es tudan tes das reg iões v i z inhas e seus e rud i tos
fo ram empregados como p ro fesso res e imames en t re povos
hauçás , io rubás , em Borgu e mesmo em reg iões ma is oc iden ta is .
F indado o sécu lo XVI I I , a i s lam ização da popu lação de Bornu já
es tava es tabe lec ida f i rmemen te . Todav ia , a inda e ra poss íve l
pe rcebe r a sob rev ivênc ia de e lementos p ré - Is lâmicos no seu
co t id iano . Ta is e lementos fo ram u t i l i zados como jus t i f i ca t i va
pa ra o j i had empreend ido pe lo Ca l i f ado de Soko to con t ra Bo rnu
no sécu lo XIX .
O know-how i s lâm ico na Hauça lând ia fo i modern izado a t ravés dos povos fu lan is , f u lás ou peu ls que chega ram a reg ião em meados do sécu lo XV . V iv iam em enc laves rurais onde cultivavam a erudição islâmica. Segundo CAIRUS:
Diferentes dos seus correspondentes urbanos de Tombuctu, eles possuíam conhecimento da arte da guerra e da cavalaria. Eles não rendiam seus serviços religiosos aos governantes locais e, portanto, não participavam de cerimônias não-islâmicas. Mantinham contatos com os governantes, mas não estavam integrados no sistema político. As tensões geradas por esse abismo mental e físico tiveram como conseqüência tardia a confrontação através dos jihads (CAIRUS, 2002, p. 111).
O já c i tado Abdu l -Ka r im a l -Magh i l i , in te lec tua l no r te -
a f r icano m i l i tan te , in f luenc iou fo r temente Kano e Songha i . E le
o rdenou que Rumfa , o re i de Kano , co r tasse a á rvo re sagrada
sob a qua l a mesqu i ta f o i cons t ru ída . Muhammad Rumfa fo i
con temporâneo dos soberanos re fo rm is tas de Songha i , Asky ia
Muhammad e de Bo rnu , A l i Gha j i .
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Em Kano, como em Bornu , a devoção e e rud ição dos soberanos
a t ing i ram seu auge na segunda me tade do sécu lo XVI .
O mov imento de is lamização dos io rubás avançou no sécu lo
X IX como conseqüênc ia da conqu is ta dos te r r i tó r ios
se ten t r iona is pe lo j i had f u lan i . En t re tan to , exce to no Emi rado de
I lo r in que fa r ia pa r te do Ca l i f ado de Soko to , en t re os io rubás o
I s lão se es tabe leceu como p rá t ica re l i g iosa sem, no en tan to ,
envo lve r -se na po l í t i ca e nos assun tos do Es tado e o p rogresso
do I s lão en t re a popu lação não anu lou os pad rões de au to r idade
t rad ic iona is .
2.2 As confrar ias suf is na Áf r ica Oc identa l
No sécu lo X IX, uma nova c lasse de mercado res e
p rop r ie tá r ios de te r ra , com r iqueza adqu i r ida no comérc io e
agr icu l t u ra , p romoveu um renasc imento re l i g ioso no Bi lad as-
Sudan . Esses novos - r icos fo ram responsáve is pe lo aumen to
ex t rao rd iná r io de mesqu i tas , esco las i s lâmicas e pe lo emprego
cons ide ráve l de e rud i tos re l i g iosos . Os ma is impor tan tes u lama
e ram env iados pa ra apr imora r seus conhec imentos nas c idades
san tas de Makka e Mad ina . Em conseqüênc ia desse boom
cu l tu ra l , a e rud ição popu la r i zou -se dev ido também à c rescen te
impo r tânc ia das i rmandades su f i s du ran te o sécu lo X IX . A t ravés
das te r ras a f r i canas , os marabouts ou “homens-san tos ” f o ram
capazes de conve r te r seu ca r i sma esp i r i tua l ou “cap i ta l
s imbó l ico ” (CAIRUS, 2002) em pode r econôm ico e po l í t i co . Em
um a r t i go sob re o I s lão na Á f r i ca negra , Monte i l apon ta pa ra o
pape l dos marabouts en t re os povos tucu le res , c i tando Yaya Wane
que teria escrito em 1963 que:
A história individual do touculeur é uma história vivida à sombra do marabout: imposição do nome e ensino corânico,
31
portanto, de um certo modo, educação; celebração do casamento, recuperação da saúde; o sucesso que se busca e o mal que se quer conjurar, sobretudo isso requer a intervenção do homem de saber, ou sua intercessão benevolente” (MONTEIL, 1967, p.13).
A Á f r ica do No r te f o i a te r ra do su f i smo po r exce lênc ia e ,
ass im como a ju r i sp rudênc ia , es te também fo i expor tado pa ra a
Á f r i ca Oc iden ta l . A p r inc íp io não ex is t iam ta r iqas
h ie ra rqu icamen te es t ru tu radas , somen te zawiyas 9 i ndependentes
ou re fúg ios para os marabouts . Fo i apenas pe la metade do
sécu lo XVI I que as novas i rmandades se to rnam soc ia l e
geogra f i camente ma is ab rangen tes e , desse modo, com um
po tenc ia l de a l cance supe r io r as tekkes loca is .
No sécu lo XVI , embora os p r inc ipa is in te lec tua is de
Tombuc tu fossem su f is , ass im como as comun idades em Bornu ,
não e ram a f i l iados a o rdens espec í f i cas .
Durante o século XVIII, uma significativa mudança ocorreu nas irmandades sufis. Os antigos padrões de descentralização e afiliações difusas foram substituídos por formas de organização em larga escala e mais sofisticadas. No processo de reestruturação, o papel do sheyk expandiu-se e as irmandades tornaram-se mais centralizadas. As tariqas transformaram-se em organizações disciplinadas que incluíam uma rede de prepostos (khalifas). Dessa maneira, a característica organizacional das irmandades, mais que seu conteúdo intelectual, foi decisiva para seu peso potencial na política (CAIRUS, 2002, p.95).
A Qad i r i yya f o i a p r ime i ra ta r iqa a se ins ta la r nas reg iões
saa r ianas , nos f ins do sécu lo XV e p r inc íp ios do XVI . Fundada
no I raque pe lo san to Abdu l -Qad i r Gey lan i (ou J i lan i ) essa
i rmandade é uma das ma is an t igas e d i f und idas do Is lão . No
9 Zawiya: local de reunião sufi, onde o mestre instrui os discípulos nos ensinamentos da ordem e ladainhas, orações, danças e outras práticas específicas de cada confraria são realizadas. Também é conhecida pelo nome turco de tekke.
32
p r inc íp io , todav ia , não fo i capaz de se o rgan izar na Á f r ica do
Oeste e man teve -se soc ia l e po l i t i camente ine f icaz . Na segunda
metade do sécu lo XV I I I , encabeçada por Sid i a l -Mukh ta r a l -
Kun t i , essa ta r iqa se rees t ru tu rou e , u t i l i zando-se do ca r isma de
seu l íde r , conqu is tou in f luênc ia po l í t i ca e pode r econôm ico . Sid i
a l -Mukh ta r a l -Kun t i re fo rçou os v íncu los de dependênc ia da sua
c l ien te la a t ravés da cade ia esp i r i tua l da i rmandade . Seus
p repos tos expandem sua in f luênc ia po r in te rméd io da Qad i r i yya
a l -Mukh ta r i yya , um novo ramo da o rdem no Saa ra , no Sae l e
mesmo em Futa To ro . A Qadi r iyya a t ra iu mu i tos novos conve rsos
na Á f r i ca Oc iden ta l . O ma io r impacto da o rdem fo i incen t i va r os
a f ro -muçu lmanos a p ro fessa rem sua fé com ma is f e rvor ,
conv icção e compromisso a t ravés do su f i smo (CAIRUS, 2002 ) .
O tassawwuf ou su f ismo é pa r te s ign i f i ca t i va e ina l i enáve l
da h is tó r ia is lâm ica . De f in i r o su f i smo s imp lesmente como
“m ís t i ca i s lâmica” pode esconde r as complex idades de seu pape l
e de sua na tu reza . O su f ismo fo i o desenvo lv imen to na tu ra l das
tendênc ias eso té r i cas man i fes tadas no I s lão desde os p r ime i ros
tempos da Reve lação e en fa t i zadas a t ravés do desenvo lv imento
das c iênc ias re l i g iosas i s lâmicas , como aspec to essenc ia l da v ia
p ro fé t i ca .
Os sufis levavam um modo de vida que buscava a união com Deus por meio do amor, do conhecimento baseado na experiência e ascese que levaria a uma união estática com o Criador bem-amado. Essa invocação tinha o objetivo de desviar a alma das distrações mundanas para libertá-la até o vôo da união com Deus. Uma das formas do dhikr era um ritual coletivo chamado justamente de hadra: os participantes repetiam constantemente o nome de Alá, cada vez mais rapidamente até se chegar a um transe e perda da consciência do mundo sensível” (COSTA, 2002, pp. 73-74).
Na de f in i ção do es tud ioso do Is lão e do tassawwuf Ma r t in
L ings :
33
O sufismo não é outra coisa além da mística islâmica, o que significa que é a corrente central mais potente desta maré que constitui a Revelação do Islão; após o dito, ficará claro que isso não supõe qualquer descrédito, como alguns parecem pensar. Ao contrário, se trata da afirmação de que o sufismo é ao mesmo tempo autêntico e eficaz (LINGS, 2003, p.3).
In i c ia lmen te ta r iqa s ign i f i cava apenas um método
con temp la t i vo e gradua l de l ibe ração da a lma ou ego 10. C í rcu los
de d i sc ípu los se fo rmavam em vo l ta de mest res , buscando a
p rá t i ca a t ravés da assoc iação e do companhe i r i smo, mas não
po r qua lque r l aço de in i c iação ou ju ramento de f i de l i dade . A
ta r iqa f o i , de aco rdo com Ca i rus (2002 ) , o método p rá t i co de
o r ien ta r ind iv íduos t raçando um caminho de re f lexão e ação
gu iadas em me io a uma sucessão de es tág ios pa ra se
expe r imen ta r a d iv ina Rea l idade (Haq iqa ) .
Um p ressuposto bás ico dessas o rdens e ra o
re lac ionamen to en t re um mes t re (mursh id ) e o d i sc ípu lo (mur id ) ,
po is nada ma is coe ren te que ace i ta r a o r ien tação e reconhece r a
au to r idade daque le que hav ia passado pe las d i ve rsas es tações
(a l -maqamat ) da v ia su f i .
Nas palavras de Abu Hamid al-Ghazali, um dos mujadidun históricos do Islão :
“...sufismo não pode ser ensinado, pode apenas ser atingido por experiência direta, êxtase e transformação interior. O homem embriagado não pode perceber as causas, definições e condições da embriaguez, embora isto não mude o fato de estar embriagado, enquanto o homem sóbrio apesar de ciente de todo processo, não está embriagado” (Al-Ghazali, 1963, p.136).
10 Nafs em árabe significa igualmente “alma” e “ego”.
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Ass im pode ser en tend ida a impo r tânc ia da o r ien tação
in t r ínseca de rec i ta r dh ik r 11 e empreender re t i ros a t ravés dos
qua is se es tabe lece o l im i te a se r imposto a cada ind iv íduo .
Duas tendênc ias con t ras tan tes se es tabe lece ram nos sécu los IX e X , uma po r Beyaz id (ou Abu Yaz id ) B is tam i e ou t ra com Abu l -Qas im a l -Junayd .
“Ali al-Hujwiri referiu-se aos ensinamentos de Bistami como caracterizado pela ghalaba (êxtase, arrebatamento) e sukr (intoxicação) ao passo que os ensinamentos de al-Junaid eram baseados na sobriedade. Esta ficou sendo a mais difundida e mais celebrada das doutrinas, adotada por todos os sheiks não obstante existirem diferenças entre seus ensinamentos e a ética sufi” (CAIRUS, 2002, p. 99).
Com o su rg imento de loca is espec í f i cos que se rv i ram como
cen t ros pa ra os v ia jan tes - secu la res e m ís t icos - nas te r ras
á rabes , mu i tos se es tabe lece ram em hospeda r ias ou pos tos
f ron te i r i ços chamados r iba t .
O ribat era uma espécie de convento militar muçulmano erguido nas fronteiras do dar al-islam (a “Casa do Islã”) e que acolhia voluntários piedosos que desejavam se retirar do mundo e que ali ficavam sob as ordens de um veterano (sheikh) para se purificar e sair em missões conforme o desejo do sheikh. (COSTA, 2007)
No f i na l do sécu lo XI I , g raças ao t raba lho de a l -Ghaza l i , a
pos ição o f i c ia l dos o r todoxos i s lâm icos em re lação ao su f i smo
mudou .
O su f ismo , no en tan to , i r ia so f re r t rans fo rmações em
re lação aos laços que un iam seus adep tos . No in íc io e les se
in tegravam esp i r i tua lmente , mas a mudança ve io com o
desenvo lv imento de f i l iações “genea lóg icas ” e in ic iá t icas nas
ta r iqas , onde os membros se l i gavam a uma cade ia de mest res e
11 Dhikr em árabe significa “recordação” e refere-se a prática islâmica de recitar os 99 nomes de Allah ou outras fórmulas piedosas. Vide Qur’an 8:45; 33:35, 4:190 e 29:45
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d isc ípu los iam a té o Pro fe ta Muhammad, o que con fe r ia
au ten t ic idade aos ens inamentos da con f ra r ia e seus shaykhs .
O su f i smo fo rneceu a f i loso f ia h ie rá rqu ica que fo i d i l u ída e
adap tada às necess idades da soc iedade . Não apenas o g rande
shaykh , mas os seus sucesso res , he rde i ros de sua ba raka , e ram
in te rmed iá r ios do pode r d i v ino . Como em ou t ras ve r ten tes
re l i g iosas , ex i s t iam d is t inções c la ras en t re o su f i smo e rud i to e o
popu la r .
No Magrebe , essa ins t i tuc iona l i zação das o rdens su f is
su rg iu , a p r inc íp io , o rgan izada sob mat i zes é tn i cos ( t awa ’ i f ) e
em impor tan tes ins t i tu ições ru ra i s como o Riba t T i tn -F i t r e o
Riba t Asa f i . Com a c rescen te comp lex idade e a in f luênc ia dos
r i ba t , o ra io de ação dessas ins t i tu ições u l t rapassou seus l im i tes
o r ig ina is .
De acordo com Geertz o Islão magrebino é basicamente o Islã da veneração dos santos, da severidade moral, do poder mágico e de piedosa agressividade. Isto é, para todos os efeitos, verdadeiro nos becos de Fes e Marrakech, assim como nos espaços do Atlas ou do Saara. No período de 300 anos compreendido entre os séculos XVI e XIX, 60 a 80 por cento de todos os muçulmanos africanos pertenciam a alguma ordem sufi” (CAIRUS, 2002 , p .105 ) .
As i rmandades su f is t ranscenderam, no Bi lad -as -Sudan
Oc iden ta l , v íncu los de pa ren te la , c lasse , p ro f issão , que se rv iam
pa ra in tegra r esses g rupos ve r t i ca lmen te . A manutenção dos
v íncu los dessas o rgan izações m ís t i cas e ra conc re t izada a t ravés
das expe r iênc ias ind iv idua is em congregações. Nessas reun iões ,
os membros rea l izavam sessões de hadras e dh ik rs e dev ido à
in tens idade dessas expe r iênc ias emoc iona is a t ravés do c í rcu lo
do dh ik r , a i rmandade es t re i tava seus laços de devoção e
so l ida r iedade , não apenas en t re os novos in ic iados na ta r iqa ,
mas também com seus l íde res (shayks , mursh ids ) . A um c í rcu lo
de dh ik r , jun tavam-se ou t ros loca lmente e , no caso de o rdens
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maio res , a t ravessavam f ron te i ras , c r iando dessa mane i ra um
coes ivo corpo de membros .
As ta r iqas mais popu la res tend iam a se im iscu i r ma is em
assun tos po l í t i cos dev ido ao ma io r g rau de dependênc ia
emoc iona l en t re os seus membros e l íde res . Lea ldade,
en tus iasmo e compromisso com a i rmandade são p ressupostos
pa ra a a t i v idade po l í t i ca . De fo rma aná loga , o g rau de con t ro le
exe rc ido pe lo shaykh sob re uma i rmandade e ra fundamenta l .
Sendo essenc ia lmente o rgan izações m ís t i cas , as o rdens
pe rmanec iam p r imord ia lmente f ié is aos seus p ropós i tos .
En t re tan to , essa pos ição e ra pass íve l de mudança no caso das
i rmandades es ta rem su je i tas a p ressões ex te rnas .
O mundo Is lâm ico no f i na l do sécu lo XVI I I encon t rava-se
sob p ressão da Eu ropa . As o rdens su f i s , ass im como toda
comun idade muçu lmana, pa r t i lhava do medo conc re t i zado com a
pe rda de te r ras muçu lmanas para pa íses eu ropeus.
B .G. Mar t in (1976 ) de f in iu os l i de res dos j i hads como
mís t icos moderados que , po r me io da insu rgênc ia is lam is ta ,
to rna ram-se re fo rmadores po l í t i cos e soc ia i s . Nesse g rupo es tão
inc lu ídos os shaykhs l i gados a con f ra r ia Qadi r iyya , Usman dan
Fod io , Am i r Abdu l -Qad i r e o shaykh Uways a l -Ba rawi .
Os t rês e rud i tos c i t ados es tavam mu i to ma is l i gados ao
m is t i c i smo e menos comprome t idos com a po l í t i ca .
Dotado de grande sensibilidade, amabilidade e de devoção puramente religiosa, Usman dan Fodio retirou-se da vida publica e do seu jihad para viver entre os seus estudantes e práticas místicas (CAIRUS, 2002, p.107).
As i rmandades su f i s tas desempenha ram um pape l -chave na
ascensão do re fo rm ismo Is lâm ico na Á f r ica do Oeste e nos
levan tes is lam is tas que se desenvo lve r iam nos j i hads de fu lan is
e t ucu le res nos f ins do sécu lo XVI I I e po r todo o sécu lo X IX . Ao
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f o rnece rem uma es t ru tu ra o rgan izac iona l que con t r i bu ía para a
ráp ida d i f usão de ideo log ias pu r i tanas e a l inhadas com as
demandas de pas to res e camponeses , as con f ra r ias to rna ram-se
um exce len te ve ícu lo pa ra o p rose l i t i smo po l í t i co e re l i g ioso .
A lém d isso , e ram o rgan izações que p r i v i leg iavam as l ide ranças
car i smát icas . E rud i tos i s lâmicos lança r iam mão de todos os
recursos soc ia i s , po l í t i cos e dou t r iná r ios das redes de
madrassas e das ta r iqas para levar a cabo seu empreend imen to
de re fo rmar o mundo a sua vo l t a , como fa r ia Usman dan Fod io
no Bi lad as -Sudan . E , como ve remos ma is ad ian te nes te
t raba lho , ten ta r iam faze r também os ma lês na Bah ia em 1835.
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3. O REFORMISMO NO ISLÃO AFRICANO NOS SÉCULOS XVI I I
e X IX: ERUDIÇÃO RELIGIOS A E JIHAD NO BILAD AS-SUDAN
Re l ig ião do l i v ro po r exce lênc ia , o I s lão é ind issoc iáve l da
pa lavra escr i t a . O p rópr io Qur ’an 12, seu l i v ro sagrado , é
cons ide rado o ma io r dos m i lagres de Deus para a human idade :
um l i v ro cu ja be leza e e loqüênc ia desa f ia ram os ma is ta len tosos
poe tas á rabes do sécu lo V I I , que fo i reve lado po r in te rméd io de
um p ro fe ta i le t rado , po is , de aco rdo a t rad ição i s lâmica ,
Muhammad e ra ana l fabe to ( ISKANDAR, 2007 ) . O L iv ro Sagrado
e as t rad ições p ro fé t i cas (ahad i th ) abundam em exo r tações à
le i tu ra e à busca do conhec imento . De fa to , o p r ime i ro ve rs ícu lo
reve lado do Qur ’an d i z ia en fa t i camente : “ Iq ra ! ” (96 :1 ) , ou se ja ,
“Lê ! ” . Den t re os a fo r i smos do P ro fe ta p rese rvados pe la t rad ição
i s lâm ica são cé leb res os que d i zem que “o conhec imento é uma
ob r igação pa ra todo muçu lmano e toda muçu lmana” e que “deve -
se busca r o conhec imento , mesmo que se tenha de i r a té a
Ch ina ” (L INGS,1973 ) .
Com a v i t ó r ia dos muçu lmanos na A ráb ia no sécu lo V I I ,
houve a subseqüen te expansão do Impér io I s lâm ico sob re
te r r i tó r ios an te r io rmente sob domín io dos impé r ios Pe rsa e
B izan t ino . Es tes te r r i tó r ios ab r igavam renomadas b ib l io tecas ,
ta i s como a da c idade de A lexand r ia no Eg i to . Os mos l imes
ganharam, desse modo, acesso a manusc r i tos remanescen tes da
an t igu idade , obras , em gera l , esquec idas na Eu ropa . Ass im, o
conhec imen to f i losó f ico e c ien t í f i co de o r igens tão d i ve rsas
quan to a Índ ia , Eg i to , Gréc ia e Roma an t igos , t raduz ido ao
á rabe de t ra tados abandonados em b ib l io tecas pe rsas e
12 Alcorão ou Corão designariam mais as traduções do livro sagrado do Islão, onde “Qur’an” refere-se ao texto original que, segundo esta religião, é de origem divina e precede a eternidade.
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b izan t inas , f o i abso rv ido e ape r fe i çoado pe los muçu lmanos
du ran te toda a Idade Méd ia , somente v indo a se r redescobe r to
pe los eu ropeus a t ravés da p resença is lâm ica na Pen ínsu la
Ibér i ca (a l -Anda lus ) .
Dada a ên fase con fe r ida pe lo pensamen to i s lâm ico a
ins t rução , pa r t i cu la rmente no que se re fe re às c iênc ias
d i re tamen te re lac ionada ao I s lão , como a teo log ia (ka lam ) e o
d i re i to ( f iqh ) , o pape l rese rvado aos dou tos em ta i s maté r ias ,
que r d i ze r , dos de ten to res da e rud ição i s lâmica , não pode r ia
se r ou t ro senão o p ro tagon ismo. A e les coube – e cabe a inda
ho je – a l ide rança de fac to das comun idades muçu lmanas.
O conce i to de ta jd id ( renovação ou re fo rma) es tá
d i re tamen te re lac ionado à e rud ição i s lâm ica . Segundo um had i th
do P ro fe ta , a cada sécu lo A l lah fa r ia su rg i r um homem pa ra
rev i v i f i ca r o Is lão , con fo rme os mos l imes fossem degenerando
em sua c rença e p rá t i ca . Esses renovado res (mujad idun ) f o ram,
quase sem exceção , sáb ios das c iênc ias ju r íd i co - teo lóg icas ,
como A l -Ghaza l i no sécu lo X I e Usman dan Fod io no X IX . Ta jd id
f o i o mo to r in i c ia l dos mov imentos m i l i tan tes da Á f r i ca i s lâm ica
dos sécu los XVI I I e XIX e , po r ex tensão , podemos cog i ta r sua
in f luênc ia en t re os ma lês da Bah ia , mu i tos dos qua is f o ram
esc rav izados no pe rcurso do j i had de Usman dan Fod io .
3 .1 O shehu Usman dan Fodio e o re formismo is lâmico na
Áf r ica Ocidenta l
O c resc imento da m i l i tânc ia is lâm ica nos sécu los XVI I I e
X IX fo i o pon to de par t ida de uma rup tu ra rad ica l do
re lac ionamen to es tabe lec ido in ic ia lmente en t re os c lé r igos e os
in te lec tua is muçu lmanos , co locados à margem da d ispu ta do
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pode r po l í t i co por gove rnan tes apenas nom ina lmente
muçu lmanos.
Os j i hads dos sécu los XV I I I e XIX f o ram ob ras de povos
pas to res de l íngua fu l f ude (ou peuh l ) , sob a l ide rança dos
in te lec tua is f u lan is pe r tencen tes aos grupos Torodbe e
Toronkawa . É s ign i f i ca t i vo o fa to de todos os l íde res dos j i hads
da Áf r i ca Oc iden ta l se rem o r iundos do campo e não das cap i ta i s
e cen t ros comerc ia is .
O desa f io à pos ição marg ina l do I s lão nas soc iedades
a f r icanas não pode r ia te r v indo daque les que e ram pr i v i l eg iados
pe la o rdem po l í t i ca ex is ten te . Os p r inc ipa is bene f i c iá r ios da
o rdem es tabe lec ida e ram os comerc ian tes p ro teg idos pe los
gove rnan tes e os c lé r igos cor tesãos .
Nas te r ras hauçás , o shehu 13 Usman dan Fod io c r i t i cava os
abusos dos governan tes , e seu f i l ho e sucesso r , Muhammad
Be l lo , evocava a i ra de Al lah sob re os em i res que t i ravam seu
sus ten to às cus tas da m isé r ia do povo (CAIRUS, 2002 ) .
O Shehu jus t i f i cava o j i had dev ido à s incre t i zação do I s lão
com as re l i g iões ances t ra i s en t re g rupos hauçás , ta i s como o
cu l to bo r i , ou as consu l tas dos che fes t r iba is , nom ina lmente
mus l imes , aos fe i t i ce i ros t rad ic iona is .
O culto bori, por exemplo, foi a sobrevivência religiosa mais comum entre os hauçás. Aos espíritos bori foram dados nomes islâmicos e simultaneamente, os jinns muçulmanos ou demônios identificaram-se com os espíritos bori. O fato dos espíritos bori tornarem-se islamizados dificultou sua erradicação. (CAIRUS, 2002, p.112)
Pa ra en f ren ta r os reco r ren tes a taques de Kworara fa e
Ka ts ina nos sécu los XVI I e XV I I I , os re is de Kano p rocu ra ram
re fúg io em r i tua is e mág icas dos sace rdo tes t rad ic iona is e dos
13 Corruptela do árabe “shaykh” . Usman dan Fodio era respeitosamente chamado de “o Shehu”
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c lé r igos i s lâmicos loca is . Os che fes de Kano vac i lavam en t re as
duas p rá t i cas re l i g iosas , op tando po r uma ou ou t ra de aco rdo
com os resu l tados ob t idos .
A té o sécu lo X IX, Ka ts ina , ao no r te de Kano, f o i a ma is
impo r tan te c idade comerc ia l dos domín ios hauçás . Ao longo do
sécu lo XVI I , o conhec imento i s lâm ico es teve assoc iado a Dan
Mar ina como f i cou conhec ido na Hauça lând ia o e rud i to is lâmico
Muhammad b in as -Sabbagh . Dan Mar ina reun iu à sua vo l ta uma
comun idade in te lec tua l ve rsada em todos os ramos do
conhec imen to is lâm ico . A lguns desses e rud i tos f o ram
empregados na co r te , po rém os p r inc ipa is pos tos na
adm in is t ração e ram ocupados po r esc ravos e eunucos l i gados ao
fe t i ch ismo t rad ic iona l .
Os eruditos islâmicos alienados do poder preferiam viver na periferia de Katsina, em vilas dentro de um raio de quinze quilômetros da capital. Nessas localidades, desfrutavam de grande autonomia e suas mesquitas atraíam mais devotos que as da cidade grande. Foi dessas vilas que saíram os partidários do jihad de Usman dan Fodio. Os governantes ignoravam-nos devido ao seu pequeno número e de sua localização periférica distante dos principais centros populacionais e do poder político. (CAIRUS, 2002)
S id i Mukh ta r A l -Kun t i não e ra pa r t idá r io do j i had mi l i tan te ,
mu i to embora apo iasse a insurgênc ia de Usman dan Fod io no
que é a a tua l N igé r ia se ten t r iona l .
Nos sécu los XV I I e XVI I I , o Is lão expande-se dos cen t ros
u rbanos para o in te r io r . E rud i tos ma is ze losos de seus p r inc íp ios
re t i ra ram-se dos cen t ros de pode r po l í t i co e es tabe lece ram
comun idades re l ig iosas au tônomas.
Ao mesmo tempo que o comérc io serv iu como base
econôm ica pa ra a e rud ição i s lâmica nas c idades , o I s lão ru ra l
e ra dependen te do t raba lho de escravos e es tudan tes ( ta lebes ) .
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Pregadores muçu lmanos i t ine ran tes pe rco r r iam as
comun idades ru ra i s , onde o p róp r io Usman dan Fod io se d i r i g ia
aos camponeses e a rb i t rava seus agravos (CAIRUS, 2002 ) .
Segundo B .G. Mar t in (1976) , Usman Fod io fo i o homem
ta lhado para p romover a revo lução da comun idade i s lâmica na
Á f r i ca do Oeste . Or ig iná r io de um t rad ic iona l c lã f u lan i to rodbe
seus ances t ra i s im ig ra ram por vo l ta do sécu lo XV pa ra a
Hauça lând ia .
E rud ição e in te lec tua l i dade e ram pa r tes in tegran tes do seu
mundo . Usman dan Fod io fo i ins t ru ído por me io do Qur ’an , da
g ramát ica á rabe , da in te rp re tação da le i mal i k i e dos ahad i th
p ro fé t i cos que , segu indo os cos tumes se seu c lã , es tudou com
seus t i os , u lama i s lâm icos . Esse conhec imento fami l ia r ,
en t re tan to , f o i supe rado po r aque le adqu i r ido de mest res
tuaregues do su l do Saa ra . En t re esses es tava J ib r i l b in Umar
A l -Aqdas i , que hav ia v i v ido no Egi to po r longo tempo e fe i to a
pe regr inação a Makka po r duas vezes .
A t raves de seu mes t re J ib r i l o fu tu ro shehu Usman fo i
i n ic iado nas con f ra r ias su f i s tas , Qadi r iyya , Kha lawat iyya e
Shad i l i yya (ou Sha zu l i yya ) (DAN TAFA, 2004 ) . Pu r i tano e ze loso ,
no que se t ra tava dos chamados kaba i r 14 ou “pecados g raves” , o
mes t re J ib r i l possu ía uma pos ição p róx ima a in to le rânc ia .
Segundo e le , se come t idos po r muçu lmanos esses pecados
leva ra im a desc rença , f azendo de seu p ra t i can te um ka f i r , um
in f ie l . O pensamen to de J ib r i l es tava p róx imo às dou t r inas
teo lóg icas is lâm icas med ieva is Khawa j i e Mu’ta zi l a . Usman dan
Fod io i r ia , f u tu ramente , d isco rda r das idé ias do seu p ro fesso r e
es tabe lece r uma o r todox ia sun i ta um pouco menos ex t rema.
14 Al-Kabair podem ser interpretados como os "pecados capitais do Islão". Referem-se aos pecados graves como, entre outros, o adultério, consumo de álcool, a prática da feitiçaria e sortilégios, homicídio e, é claro, a idolatria.
43
As expe r iênc ias m ís t icas de Usman dan Fod io cons t i tu í ram
e lemento fundamen ta l em sua t ra je tó r ia po l í t i ca (CA IRUS, 2002 ) .
Segundo M. Sha ree f (2004) , no f ina l do sécu lo XVI I I , po r vo l ta
de 1794 , dan Fod io teve uma v i são desper ta , um encon t ro
m ís t ico com o fundado r da ta r iqa Qad i r i yya , o san to Abdu l -Qad i r
Gey lan i , que o chamou de “ Sayfu l -Haqq ” ( “Espada da
Ve rdade” ) , que deve r ia v i r a se r empunhada con t ra os in im igos
de A l lah e do I s lão . Dez anos depo is , em ou t ro encon t ro m ís t i co ,
Abdu l -Qad i r Gey lan i ins t ru iu Usman dan Fod io a pe regr ina r a
Dege l . Es te se r ia seu ú l t imo a to an tes de se lançar no j i had que
da r ia o r igem ao Ca l i f ado de Soko to .
Usman dan Fod io insp i rou e apo iou mu i tos ou t ros e rud i tos
i s lâm icos a t ravés das te r ras fu lan is , hauças e io rubas ,
resu l tando na p ro l i f e ração de em i rados Is lâm icos au tônomos ou
vassa los de Soko to . Quando, f indado seu j i had e es tabe lec ido o
Ca l i f ado de Soko to , que inc lu ía a ma io r pa r te do que é ho je a
N igér ia e vas tos te r r i tó r ios dos es tados v i z inhos , o Shehu
abd icou do gove rno e da v ida púb l i ca , se re t i rando de vo l ta a
seus es tudan tes , ao ens ino m ís t i co e co rân ico . O ca l i f ado
passou , en tão , pa ra seu f i lho e sucesso r Muhammad Be l lo que,
como o pa i , p roduz iu uma vas ta ob ra ju r íd i ca , teo lóg ica e
h is tó r i ca (SHAREEF, 1996 ) .
3.2 O re formismo is lâmico na Ioruba lândia : o Emirado de
I lo r in
No es tudo das revo l tas ma lês é ind ispensáve l uma aná l ise
da re fo rm ismo is lâmico nas te r ras io rubás e dos even tos que
leva ram a fundação do Emi rado I s lâm ico de I l o r in , j á que ,
segundo bem observou Re is (2004 ) , o g rosso dos rebe ldes
insu rg idos em 1835 e ram o r ig iná r ios dessa reg ião .
44
Há , segundo H.A.S . Johns ton (1967 ) , mu i tas semelhanças
en t re os p rocessos pe los qua is os fu lan is es tabe lece ram seu
pode r em reg iões como Nupe e aque les que leva ram à c r iação
do Emi rado I lo r in . A ún ica d i f e rença impo r tan te é que os nupes,
sendo mu i to menos numerosos do que os io rubás , f o ram
comple tamente abso rv idos pe lo Impér io de Soko to , ao passo
que , no caso de I l o r in , os fu lan is consegu i ram ass im i la r apenas
um dos mu i tos Es tados da reg ião io rubá .
Os io rubás , como os nupes e ce r tamen te o hauçás ,
o lhavam pa ra o passado em busca de um fundado r m í t ico ou
he ró i cu l tu ra l . Es te se r ia Oduduwa, que supõem te r s ido o f i lho
do gove rnador de Makka duran te os tempos p ré - i s lâm icos , e que
te r ia im ig rado para o Oc iden te dev ido a uma b r iga com seu pa i .
Depo is de mu i tas andanças , e le t e r ia a t ing ido a Io ruba lând ia e
se es tabe lec ido em I fe . Ma is t a rde , seus descendentes
espa lha ram-se e funda ram as c idades io rubás e ou t ros es tados .
En t re tan to , de aco rdo com es ta lenda , do is de seus i rmãos, que
hav iam de ixado Po r tuga l , ao mesmo tempo , to rna ram-se os
gove rnan tes de Kanu r i e Gob i rawa.
As h is tó r ias de Bo rnu e Gob i r f o rnecem pa ra le los a inda
ma is es t re i tos , t endo e les igua lmente p rese rvado a t rad ição de
uma or igem em Por tuga l , como já f o i menc ionado e também
reconhecem uma re lação de paren tesco en t re os t rês povos .
Como em Bornu e Gob i r , os es t range i ros do Or ien te te r iam s ido
ace i tos como uma ar i s tocrac ia pe lo povo Io rubá , en t re os qua is
se es tabe lece ram. A lém d isso , as a r tes e as hab i l i dades que
t rouxe ram com e les p rovave lmente f i ze ram uma con t r ibu ição
s ign i f i ca t i va pa ra a cu l tu ra avançada e a comp lexa es t ru tu ra da
soc iedade que os io rubás , ma is ta rde , desenvo lve r iam. Po r ou t ro
l ado , os im ig ran tes não pa recem te r s ido su f i c ien temente
numerosos pa ra te r de ixado qua lque r ves t íg io é tn i co
45
s ign i f i ca t i vo já que , f i s icamente fa lando , os á rabes e os io rubás
são bem d i f e ren tes . No que se re fe re a l íngua não de ixa ram
qua lque r marca , j á que a ev idênc ia most ra ser o i o rubá uma
l íngua pu ramente a f r icana (JOHNSTON, 1967 ) .
Nosso conhec imento da Io ruba lând ia an tes do sécu lo XVI I I
de r i va ma is de lenda do que h is tó r ia . É de consenso ge ra l ,
en t re tan to , que Oyó , que v i r ia a se to rnar o ma is pode roso dos
Es tados io rubás , su rg iu por vo l ta do ano de 1400 D .C. e que a
sua p r ime i ra cap i ta l , a ve lha Oyó, fo i f undada po r essa a l tu ra . O
sobe rano de t inha o t í tu lo de Ala f in e a d inas t ia a legava que o
fundado r de sua l i nhagem hav ia s ido o ne to do m í t ico Oduduwa.
O Ala f in de Oyó g radua lmente c resceu em fo rça e
au to r idade , a té have r es tend ido o seu domín io sob re toda a
reg ião io rubá e to rnou -se o suserano dos Es tados menores que
a rodeavam.
Em 1700, quando acabava de conqu is ta r o re ino v i z inho de
Daomé, Oyó es tava no apogeu de seu pode r e , com o ex-
pode roso re ino do Ben in já em dec l ín io , ago ra dominava toda a
reg ião su l e oes te do Ba ixo N íge r .
No sécu lo XV I I I , no en tan to , Oyó começou a mos t ra r s ina is
de dec l ín io . Seu pode r m i l i ta r e ra baseado em sua cava la r ia e
sua p rospe r idade no comérc io te r res t re com os es tados hauçás .
Com o c resc imento do comérc io mar í t imo, o comérc io te r res t re
d im inu iu em impor tânc ia e com a impo r tação de a rmas de fogo
pape l dominan te da cava la r ia começou a d im inu i r . O resu l tado
dessas mudanças fo i que os es tados no l i t o ra l c resc iam em
es ta tu ra , enquanto na Ve lha Oyó, s i tuada numa reg ião de
savana no nordes te e d is tan te do A t lân t i co , os Ala f ins
encon t ravam cada vez ma is d i f i cu ldade de con t ro lá - los . Fo i ,
po r tan to , um s ina l dos tempos quando, no f ina l do sécu lo ,
Daomé se recusou a paga r o seu t r i bu to e Egbá, em ou t ro es tado
46
vassa lo , jogou fo ra seu vo to de f ide l idade comp le tamen te .
Os io rubás , nes te momen to , ade r iam a uma comp lexa
re l i g ião . Apesa r de os mest res e m iss ioná r ios muçu lmanos já
te rem apa rec ido en t re e les , o I s lão não hav ia a inda lançado
nenhuma ra i z rea l . A lém d isso , a p resença da mosca t sé - tsé
hav ia mant ido popu lações pas to r i s a d i s tânc ia e , ass im, os
fu lan is não t inham pene t rado no pa ís em um número
s ign i f i ca t i vo . Se o cam inho não t i vesse lhes s ido abe r to ,
po r tan to , é inconceb íve l que os fu lan is pudessem te r se
es tabe lec ido como a po tênc ia dom inan te em te r ras io rubás .
Fo ram, no en tan to , as d issensões ex is ten tes en t re os p róp r ios
io rubás que to rna ram poss íve l aos fu lan is f aze r exa tamente
i sso .
A sudes te da ve lha Oyó es tava a c idade de I lo r in , um
impor tan te bas t ião io rubá gove rnado po r um comandan te m i l i ta r
chamado Afon já . Quando o Mal lam Dendo, o l íde r do j i had em
Nupe, hav ia s ido expu lso de Raba fo i em I l o r in que e le
encon t rou gua r ida , p rovave lmente po rque A fon já a es ta a l tu ra já
hav ia ca ído sob a in f l uênc ia de um ou t ro e rud i to f u lan i ,o mal lam
A l im i . Se ja como fo r , a v i são que A fon já , em segu ida , adqu i r iu
das qua l idades marc ia is dos fu lan is , pa rece te r - lhe dado a idé ia
de usá- los nos p lanos que es tava a rqu i te tan to .
De sua es t re i ta assoc iação com o mal lam A l im i podemos
supo r que a nessa época A fon já te r ia se conve r t ido ao Is lão .
I sso po r s i só se r ia su f i c ien te pa ra en f raquece r sua lea ldade ao
Ala f in de Oyó, que con t inuava a vene ra r deuses pagãos. A lém
d isso , A fon já e ra um homem ambic ioso , que se i r r i tava com sua
pos ição de vassa lo e ans iava se to rna r um che fe po r d i re i to
p róp r io . Em todo caso , logo após A fon já a juda r os fu lan i de
Nupe a repe l i r os seus pe rsegu ido res , e le f ez um pac to com
mal lam A l im i para o rec ru tamento de vo lun tá r ios fu lan is e
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hauçás do no r te . E le , sem dúv ida , convenceu o mal lam a
acred i ta r que o seu ob je t i vo e ra dec la ra r um j i had e es tabe lece r
um em i rado muçu lmano em I lo r in , que deve r ia f ide l idade a
Gwandu 15 e Soko to . Todav ia parece ma is p rováve l que , na
ve rdade , que se t ra tasse de apenas pa r te de um jogo de A fon já .
Se A l im i t inha qua isque r dúv idas sob re os rea is mot i vos de
A fon já , não sabemos , mas não hav ia nenhuma dúv ida sob re o
sucesso de seu rec ru tamento , a t ravés do qua l e le a t ra iu para
I lo r in g randes números de vo lun tá r ios fu lan is e hauçás . Po r
vo l ta de 1817 , ano da mor te do shehu Usman dan Fod io , A fon já
sen t iu que chegara sua ho ra . Desse modo, e le jogou fo ra sua
f ide l idade ao Ala f in e I lo r i n dec la rou -se independente de Oyó . O
Ala f in imed ia tamen te reag iu , env iando uma exped ição pun i t i va
con t ra e le , mas, com a a juda de seus a l iados muçu lmanos,
A fon já venceu os so ldados de Oyó e os mandou de vo l ta .
A rebe l ião de A fon já em I lo r in f o i in te rp re tada como um
s ina l po r ou t ros vassa los pa ra abandona r seus vo tos de
f ide l idade e o Impér io de Oyó, já f rag i l i zado , começou a quebrar .
Em 1821, o Ala f in já t i nha pe rd ido g rande pa r te de sua
au to r idade fo ra da Oyó met ropo l i tana e já não e ra fo r te o
su f ic ien te para co locar de vo l ta sob seu pode r I lo r in ou ou t ros
ex-vassa los rebe lados . Na h i s tó r ia io rubá es te fo i um
desenvo lv imento da ma io r impor tânc ia , po is a remoção da
au to r idade de Oyó i r ia leva r a se ten ta anos de gue r ra c i v i l .
Em I lo r in , A fon já manteve boas re lações com seus a l iados
fu lan is e hauçás apenas enquanto Oyó pe rmaneceu um suse rano
a se r tem ido . No en tan to , ass im que o pode r de Oyó ru iu , e a
ameaça de conqu is ta f o i remov ida , logo surg i ram a t r i tos en t re
A fon já e seus a l iados is lam i tas . Há duas ve rsões con f l i tan tes de
15 Gwandu era um emirado islâmico governado pelo irmão e discípulo fiel de Usman dan Fodio, o erudito Abdullahi dan Fodio.
48
como isso acon teceu . A p r ime i ra d iz que os combaten tes fu lan is
e hauçás rec ru tados pe lo mal lam A l im i , que ass im como os
m i l i tan tes re fo rm is tas do Shehu , e ram conhec idos como
Jama ’ah , sa iu de con t ro le após sua v i tó r ia e começaram a
saquea r c idades e v i l as amigáve is . Uma segunda versão,
con tudo , de fende que e ram o Ala f in e as e l i tes io rubás que ,
após a ameaça de Oyó te r s ido remov ida , ten ta ram nega r aos
seus a l iados os f ru tos da v i tó r ia e expu lsá - los do re ino que e les
hav iam a judado a c r ia r .
Há p rovave lmente ve rdade em ambas as ve rsões . En t re os
vo lun tá r ios fu lan is e hauçás , devem te r ex i s t ido mu i tos
aven tu re i ros e so ldados da fo r tuna e não se r ia su rp resa se e les
fossem cu lpados de a lgum saque ou p i lhagem. Por ou t ro lado , a
mot i vação de A fon já pa rece te r s ido a amb ição pessoa l , e não a
devoção ao I s lão . Depo is que hauçás e fu lan is já t inham se rv ido
a seus p ropós i tos , e le ten tou se l i v ra r de les .
A l im i e ra um so ldado e um p ro fesso r cu jos ob je t i vos e ram
re l i g iosos e não po l í t i cos . Enquanto v i veu , e le f ez o seu me lhor
pa ra man te r seus segu idores sob con t ro le , ass im como sua
in f luênc ia moderado ra sob re e les . I sso comb inado com a
modést ia de seus ob je t i vos pessoa is , pa rece te r imped ido uma
v io lação abe r ta dos aco rdos f i rmados. Quando e le mor reu , em
1831 , po rém, fo i suced ido como l íde r do g rupo muçu lmano po r
seu f i lho , Abdu Sa lami dan A l im i , que e ra um homem do tado de
mu i to ma is amb ições mundanas que seu pa i .
A fon já sab ia , sem dúv ida , com que t ipo de homem e le
ago ra te r ia que l ida r e reso lveu pa r t i r pa ra o a taque con t ra os
im ig ran tes hauças e fu lan is e expu lsá - los do re ino de uma vez .
Pa ra esse f im , e le buscou sec re tamente o apo io das c idades
io rubás v i z inhas . E las , en t re tan to , não fo rnece ram a a juda com
que e le es tava con tando e o resu l tado fo i que , quando se
49
con f ron ta ram, Abdu Sa lam i f o i capaz de v i ra r a mesa con t ra e le .
A fon já f o i mor to no comba te que se segu iu e a causa io rubá
desabou .
A t ravés dessa v i tó r ia Abdu Sa lam i se fez mes t re de I lo r in .
Como seu pa i an tes de le , e le se vo l tou para o emi rado is lâm ico
de Gwandu, gove rnado po r Abdu l lah i dan Fod io , i rmão do Shehu,
em busca de l ide rança e p ro teção . Em t roca , e le e ra agora
p resen teado com uma bande i ra e i nves t ido com o t í tu lo e as
rega l ias de um Emir . O Emi rado de I lo r in , ass im, su rg iu em 1831
já como pa r te de um impér io .
Abdu Sa lam i não se con ten tou com os domín ios que e le
hav ia a r rancado de A fon já , mas dec id iu amp l iá - lo , f azendo
gue r ra con t ra seus v i z inhos . E le f o i , ge ra lmen te , bem-suced ido,
embora incapaz de mante r todos os te r r i tó r ios conqu is tados ,
ob teve mu i tas v i tó r ias no táve is con t ra o poder em des in tegração
de Oyó e seus sa té l i tes .
Com a expansão da in f luênc ia de I l o r in na Io ruba lând ia fo i
dado um novo fô lego ao Is lão en t re os io rubás . Os mos l imes
io rubás a l i s tavam-se nas f i l e i ras de Abdu Sa lami e o f e rvo r
p rose l i t i s ta f az ia novos conversos na reg ião . E ra den t re esses
io rubás i s lamizados que encon t ravam-se o grosso dos rebe ldes
i s lâm icos de Sa lvado r em 1835, duran te o levan te ma lê .
3.3 Os movimentos de ta jd id e as revo l tas a fro -muçulmanas
na Bahia
Os mov imentos i s lâm icos de ta jd id no Bi lad as-Sudan
reve lam o pon to a l to do pape l dos e rud i tos na d i f usão e re fo rma
do I s lão a f r icano . Com os u lama l i gados às con f ra r ias e
de ten to res de um so f is t i cado conhec imen to ju r íd ico - teo lóg ico , a
re fo rma ganha con to rnos apa ren temente con t rad i tó r ios de um
50
I s lão ao mesmo tempo in te lec tua l i zado e m i l i tan te . Es te
re fo rm ismo que tem po r bande i ra o combate ao t rá f ico de
esc ravos muçu lmanos enquan to , ao mesmo tempo, aumen ta o
t rá f i co com a o fe r ta c rescen te de ind iv íduos o r ig iná r ios das
reg iões de con f l i to e que a tende a demanda , i gua lmente
c rescen te , do t rá f i co a t lân t i co .
O con f l i t o in tenso , no p r inc íp io em te r ras hauçás e
pos te r io rmente em d i reção à Io ruba lând ia , p roduz iu p r is ione i ros
de d i ve rsos ex t ra tos soc ia i s e re l ig iosos . O t rá f i co negre i ro não
d i f e renc iou nob res de pas to res , nem e rud i tos de muçu lmanos
nom ina is ou de fe t i ch i s tas .
Con t ra r iando as aná l ises mate r ia l i s tas , é mu i to d i f íc i l negar
a es t re i ta re lação ex is ten te en t re e rud ição e m ís t ica i s lâm ica e
a m i l i t ânc ia e re fo rm ismo j i had is ta na Á f r i ca Oc iden ta l na v i rada
do sécu lo XVI I I pa ra o XIX . Confo rme t ra ta remos nos cap í tu los
segu in tes , es tas mesmas re lações podem ser t raçadas en t re o
f lo resc imento da e rud ição re l i g iosa e do p rose l i t i smo I s lâmico na
Bah ia da década de 1830 e a Revo l ta dos Ma lês .
Segundo a teo r ia de Lev tz ion (CAIRUS, 2002 ) , quando os
c lé r igos assumem o pode r , o I s lão to rna -se m i l i tan te , re fo rmador
e revo luc ioná r io e segundo esse parad igma , isso pode se r
ap l icado , em te rmos ge ra is , a todos os mov imentos re fo rmadores
i s lâm icos na Á f r ica do sécu lo X IX, e no sécu lo XX a mov imentos
ma is con temporâneos no Sudão, no I rã e no caso espec i f i co da
ascensão da ou t ro ra exc lu ída e ago ra ma jo r i tá r ia e pode rosa
comun idade x i i t a que emerg iu após a gue r ra c i v i l l ibanesa .
O des t ino dos e rud i tos e m i l i tan tes ca t i vos , em te r ras
ba inas , f az pa r te de uma nova rea l idade que ab range uma
grande va r iedade de a t i tudes que pod iam i r da acomodação à
rebe l ião abe r ta . Esses a f ro -muçu lmanos , na ma io r ia adu l tos e
saudáve is , con forme p r io r i zava o t rá f ico t ransa t lân t ico , não
51
pode r iam s imp lesmente te r se “c r io l i zado ” , nem se l im i tado ao
mero cu l t i vo nos tá lg ico de a lgumas sob rev ivênc ias cu l tu ra i s ,
mas , mu i to pe lo con t rá r io , ded icavam in tensamente suas
ene rg ias pa ra res tabe lecer , em um novo e hos t i l con t inen te ,
suas c renças , va lo res , en f im, seu modo de v ida (Din ) . E isso se
fez sob a d i reção dos e rud i t os i s lâmicos esc rav izados no
pe rcurso dos j i hads .
Con fo rme obse rvou José Ca i rus :
Um aspecto decerto perturbador para alguns poderá ser percebido na comunidade escrava muçulmana de Salvador, quando em 1835 os clérigos eruditos assumem a direção dos negócios dessa comunidade. Dentro de um padrão historicamente coerente, o Islão tornar-se-á militante, organizado dentro dos padrões de solidariedade rebelde (CAIRUS, 2002, p.137).
O I s lão na Bah ia da década de 1830 , sob a d i reção dos
sáb ios re l i g iosos , re tomar ia o f e rvo r m i l i tan te dos tempos dos
j i hads de Soko to e I lo r in e se empenhar ia no p rose l i t i smo
re l i g ioso e rebe lde , i nsu rg indo -se ago ra não con t ra aque le
fe t i ch ismo ances t ra l ou aque les t i ranos apenas nom ina lmente
muçu lmanos da Á f r ica , mas con t ra uma soc iedade ba iana c r i s tã
e escravocra ta .
52
4. PROSELIT ISMO E MILITÂNCIA ISLÂMICA NA BAHI A DO
SÉCULO X IX
Na no i te 24 de Ramadan do ano de 1250 da Hég i ra ,
co inc iden te com a madrugada de 24 para 25 de Jane i ro de 1835 ,
um grupo fo rmado de cen tenas esc ravos e l i be r tos muçu lmanos
in ic iou uma insur re ição a rmada nas ruas de Sa lvado r . A da ta
não e ra desp rov ida de s ign i f i cados : e ra uma das dez ú l t imas
no i tes do sagrado mês de je jum i s lâmico , en t re as qua is se
encon t ra r ia La i la tu l -Qad r , a No i te do Pode r ou No i te da G ló r ia ,
na qua l A l l ah reve lou o Qur ’an a human idade . E ra também a
da ta da fes ta ca tó l i ca de Nossa Senho ra da Gu ia .
A rqu i te tado , p rovave lmente , po r um logo pe r íodo , o p lano
fo ra de la tado às au to r idades ob r igando o levan te a se r
an tec ipado em a lgumas ho ras , pe rdendo a van tagem do
e lemento su rp resa .
O con f ron to en t re os insu rgen tes e fo rças m i l i ta res e
pa ram i l i t a res na cap i ta l ba iana du rou toda a madrugada. Os
revo l tosos tomaram p réd ios do gove rno e ins ta lações m i l i ta res
a té se rem f ina lmente de r ro tados .
A Revo l ta dos Ma lês , como passou a se r conhec ida , te r ia
repe rcussões em todo o Impér io e a lém de le , sendo cons ide rada
a ma io r rebe l ião de esc ravos u rbanos nas Amér icas e v i s ta , por
mu i tos es tud iosos , an t igos e modernos , como uma con t inu idade
dos j i hads da Á f r ica Oc iden ta l no novo mundo .
4.1 – A Noi te do Poder de 1835: O Levante dos Malês
Segundo Pau l Love joy (2000 ) o j i had de Usman dan Fod io
fo i responsáve l po r pa rce la s ign i f i ca t i va de das expo r tações de
esc ravos da Ba ía de Ben in pa ra a Bah ia depo is de 1804 .
53
Em 1806 a Baía de Benim supria a Bahia com 8.307 indivíduos Gege (Ewe/Fon/Gbe), Ussá (Hauçá) e Nagô (Iorubá)” (LOVEJOY, 2000, p. 14).
A impo r tânc ia do j i had na ge ração de esc ravos en t re 1804
e 1810 , a f i rma Love joy, é a tes tada po r me io das b iogra f ias dos
ca t i vos que hav iam s ido cap tu rados nessas guer ras san tas .
Se r ia o caso daque les en t rev i s tados po r d ’And rada na Bah ia em
1819 . De acordo a Re is (2003 ) , ao menos 15 ,8% dos esc ravos e
fo r ros da Bah ia na década de 1830 p rov inham da reg ião do j i had
f u lan i . Esse pe rcen tua l exc lu i os esc ravos io rubás , chamados
“nagôs ” no B ras i l , adv indos das á reas de con f l i to de Oyó e I lo r in
e da expansão de Soko to sob re as te r ras io rubás . Love joy
obse rva que “escravos io rubás e l ibe r tos cons t i tu i rão 28 ,6% nas
amost ragens de Re is (699 pessoas) , e pa rece p rováve l que
mu i tos , senão a ma io r ia de les , resu l t avam d i re ta ou
ind i re tamente da j i had ” (LOVEJOY, 2000 , p . 15) . Na insur re ição
de 1835 a g rande ma io r ia dos rebe ldes e ra de o r igem io ruba ,
que também rep resen tavam a ma io r par te da popu lação a f ro -
muçu lmana na Bah ia . Segundo N ina Rod r igues :
Em geral, os nagôs do centro da Costa dos Escravos, os de Oyó, Ilorin, Ijesá, etc., são quase todos, na Bahia, muçulmis, malês ou muçulmanos, e a seus compatriotas se deve atribuir a grande revolta de 1835” (RODRIGUES, 1976, p. 104).
O a to in ic ia l da rebe l ião , segundo Re is (2003 ) , coube
somente ao g rupo que se reun ia na casa do mest re ma lê Manoe l
Ca la fa te , na lade i ra da p raça , nas p r ime i ras ho ras de 25 de
Jane i ro . Manoe l Ca la fa te , como veremos ao t ra ta r da
o rgan ização e l i de rança ma lês , e ra um dos p r inc ipa is expoentes
da e rud ição i s lâmica na Bah ia na década de 1830 .
Os insu r re tos a taca ram em d i f e ren tes pon tos da c idade ,
tendo po r a l vos de l ibe rados ins ta lações m i l i ta res e
54
gove rnamenta is , como o quar te l de São Bento e o do La rgo da
Lapa e a p r i são mun ic ipa l , onde ou t ro mest re ma lê , L icu tan , se
encon t rava p reso . A es t ra tég ia dos ma lês não se r ia ocupar
Sa lvado r de imed ia to , expondo -se a um ce rco pos te r io r , mas
t ra tava -se de ag i ta r a c idade e par t i r pa ra o Recôncavo . Há a í
pa ra le los com es t ra tég ias u t i l i zadas pe los hauçás na Á f r i ca e
que também não e ram desconhec idas dos io rubás i s lam izados
de I lo r in . Segundo Re is (2003 ) , os ma lês compreende ram a
pos ição es t ra tég ica do Recôncavo na geogra f ia po l í t i co -m i l i ta r
da Bah ia . O know-how m i l i ta r adqu i r i do du ran te os j i hads na
Á f r i ca do Oes te fo ram co locados em p rá t i ca no B ras i l em 1835 .
Um ind íc io que as mot i vações dos insu rgen tes es tavam
a lém da mera revo l ta con t ra a esc rav idão , f o i que es tes não
pa r t i ram pa ra a v io lênc ia ind isc r im inada con t ra a popu lação
c i v i l , não invad i ram casas , nem se en t regaram a saques e
incênd ios . Na ve rdade , não p romove ram a v io lênc ia nem con t ra
seus senho res e suas famí l ias , o que te r ia s ido fác i l naque le
momento . Todav ia , os ma lês l im i ta ram-se a um en f ren tamento
ma is c láss ico (REIS, 2003 ) , lu tando somente con t ra as fo rças
o f i c ia i s o rgan izadas pa ra comba tê - los . A l iás , os p róp r ios ma lês
sa í ram pa ra lu ta un i f o rm izados (NINA, 1976 ; CA IRUS, 2002 ) . O
p róp r io Re is , que nega o ca rá te r j i had is ta da revo l ta ma lê ,
obse rva que “ ta lvez t i vesse hav ido n i sso a lgo do p ro toco lo
m i l i ta r muçu lmano” (REIS , 2003 , p . 149 ) .
O p rópr io p res iden te da p rov ínc ia v ia no fa to de não
mata rem seus senho res e de nada roubarem, um c la ro ind ic io de
que buscavam a lgum f im po l í t i co . O cônsu l f rancês , d ian te da
mesma cons ta tação , a f i rmava que seu ob je t i vo se r ia “ tomar o
gove rno ” (REIS , 2003 ) .
Con tando p r inc ipa lmente com armas b rancas , os ma lês
es tavam desp repa rados para uma lu ta convenc iona l , con t ra
55
so ldados equ ipados com armas de fogo . Seu me lhor a rmamen to
e ram as parna íbas a lemãs , g randes facões cu rvos , semelhan tes
às espadas u t i l i zadas pe los combaten tes i s lâm icos na Á f r ica .
Seu acesso a a rmas ma is modernas fo i l im i tado , mas não
inex is ten te . Na casa do nagô l ibe r to de 64 anos , An ton io Manoe l
Boncam inho , a po l íc ia encon t rou 5 esp inga rdas , 2 mosquetes , 8
p is to las e ma is 8 espadas e a lgumas a rmas de fogo que
necess i tavam de repa ros . Com os rebe ldes também fo ram
encon t rados a lgumas f lechas , s im i la res a u t i l i zadas pe los
hauçás nos j i hads a f r i canos (REIS, 2003 ) .
O número de a f r i canos que de fa to sa í ram às ruas de
Sa lvado r pa ra lu ta r em 1835 é d i f í c i l de espec i f i ca r . O cônsu l
f rancês os ca lcu lou en t re 400 e 500 e o p res iden te da p rov ínc ia
ba iana fo i vago em seus números , l im i tando -se a d i ze r que
ser iam ma is de 200 ind iv íduos . Pa ra o comerc ian te Gey de
Ca r te r , se r iam, em suas con tas ma is de 500 , en t re esc ravos e
l i be r tos . Pa ra João José Re is (2003 ) se r iam 600 combaten tes
ma lês . O mesmo au to r ca lcu la que se levarmos em con ta os
números menores (200 ) em 1835 , p ropo rc iona lmente a
popu lação da cap i ta l ba iana em 2002 , i sso equ iva le r ia a uma
insu r re ição a rmada de 9000 pessoas em Sa lvado r . Já as fo rças
o f i c ia i s con tavam com, pe lo menos , 1500 homens equ ipados com
a rmas de fogo . Dos ma lês mor tos e fe r idos , quase todos o fo ram
po r a rmas de fogo e a l ve jados a d is tânc ia .
Quando os combates f inda ram, o número dos mor tos do
lado ma lê fo i de ma is de se ten ta , de aco rdo a Ca i rus (2002 ) e
Re is (2003) . Os mor tos pe los revo l tosos con tab i l i zavam apenas
nove ind iv íduos , sendo den t re es tes , qua t ro pa rdos e um c r iou lo ,
todos pa isanos que in tegravam pa t ru lhas que combat iam os
ma lês .
56
A re t r ibu ição das au to r idades fo i du ra . Re is (2003 ) dá os
números : dos 231 ma lês p resos , 16 fo ram condenados a p r isão ,
8 a ga lés , 45 a aço i tes , 34 depor tados a Á f r ica e 4 f o ram
condenados a mor te (3 escravos e um fo r ro ) . Os abso lv idos
con tab i l i zavam 28 ind iv íduos e o res tan te teve penas não
espec i f i cadas . A os tens iva rep ressão que se segu iu , con t ra a f ro -
muçu lmanos e o Is lão negro ao longo sécu lo X IX, não apenas na
Bah ia , mas em todo o Impér io , imped iu a con t inu idade do a té
en tão c rescen te mov imento de p rose l i t i smo is lâm ico na Bah ia e
con t r ibu i r ia pa ra o desapa rec imen to dessa t rad ição re l i g iosa no
B ras i l nos in íc ios do sécu lo XX. O is lam ismo ma lê , todav ia , te r ia
marcada in f luênc ia sob re usos e p rá t icas das re l i g iões a f ro -
b ras i le i ras , como o uso de ba r re tes , pa tuás e ves t imentas
b rancas e o respe i to pe la sex ta - fe i ra .
4.2 A Comunidade Malê
Nas pa lavras de Ro l f Re iche r t :
Os muçulmanos usaram e usam, para designar a si próprios, uma única palavra, em qualquer parte do mundo e em todos os tempos: a palavra árabe muslim (muslimun no plural, nos casos oblíquos muslimin). Todas as denominações, ou sejam as que não derivam da palavra muslim, foram inventadas pelos adeptos de outras religiões (REICHERT, 1970, p. 109).
No Bras i l os a f ro -muçu lmanos e ram chamados de “ma lês ” ,
não po r s i p rópr ios , obv iamente , mas por aque les que não
comungavam de sua fé . N ina Rod r igues (1976 ) , que conheceu e
en t rev i s tou os ú l t imos anc iões ma lês da Bah ia , obse rvou que
essa exp ressão e ra t ida como ab je ta pe los a f ro -muçu lmanos,
p r inc ipa lmente os de o r igem hauçá .
A pa lavra “ma lê ” vem do io rubá ima le que tem o s ign i f i cado
de “muçu lmano” , “mos l im” . Esse vocábu lo io rubá , por sua vez , é
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de r i vado da pa lavra á rabe mu’a l l im , que des igna os le t rados e
c lé r igos i s lâmicos . A pa lavra hauçá mal lam (na Bah ia “ma lam” )
tem mesma or igem e s ign i f i cado .
A e t imo log ia do te rmo a lu fá já é ma is obscu ra . No pa recer
de Re iche r t :
“Trata-se, evidentemente de uma classe análoga aos malemi dos hauçás, o que nos afirmam também os africanistas franceses. Monteil dá ao alufá o significado de marabout, Marty traduz o termo por “professor de escola”, e Ricard por “advinho muçulmano”. Todas estas funções são características também do mu’allim. (REICHERT, 1970, p.116)
De fa to , todos essas a t r ibu ições (e a lgumas ma is ) se r iam
desempenhadas pe los e rud i tos is lâm icos em te r ras ba ianas .
No que se re fe re a gene ra l i dade dos a f ro -muçu lmanos ,
Roge r Bas t ide (1985 ) ca rac te r i zou os ma lês como,
essenc ia lmen te , uma comun idade pu r i tana .
Não só pela moral externa, pela sobriedade, a temperança que freava consideravelmente a exuberância, a gritaria, o gosto pela bebida, os cantos e gritos dos outros africanos e que se notava até na aparência externa, a calma nas conversas, a moderação dos gestos, o uso da barba “à la Cavaignac”, como símbolo de diferenciação étnica e religiosa, mas também porque a fé marcava toda a vida dos muçulmanos, os diversos momentos de sua existência, desde o nascimento até a morte, e as diversas etapas do dia, desde o alvorecer ao pôr do sol (BASTIDE, 1985, p. 208).
É in fo rmação reco r ren te , no t raba lho de d i ve rsos au to res ,
que cada a to do ma lê e ra p reced ido da exp ressão “b iss imi la i ” .
Na ve rdade , “b ismi l l ah i ” (em nome de A l lah ) 16.
Todas os tes temunhos documen ta is t o rnam ind iscu t íve l que
os ma lês in te rag iam a t i vamente com ou t ros g rupos . Todav ia ,
16 A expressão completa é Bismillahir-Rahmanir-Rahim: em Nome de Deus, Clemente e Misericordioso. Essa invocação encabeça todas os capítulos do Qur’an, exceto um.
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a inda que pareça pa radoxa l , buscavam v ive r vo l tados pa ra seu
p róp r io mundo . O cu l t i vo da sobr iedade e temperança de que
fa la Bas t ide faz ia o ma lê i r de i ta r -se cedo e levan ta r -se
igua lmente an tes da a l vo rada pa ra as o rações mat ina is (sa la tus -
subh ) .
A po l i g in ia ex is t ia e e ra p ra t icada po r a lguns den t re os
a f ro -muçu lmanos da Bah ia . As mu lhe res não ve lavam o ros to ,
um cos tume quase desconhec ido na Á f r i ca Oc iden ta l , mas
cob r iam os cabe los com um tu rban te (BASTIDE, 1985 ) . Não
cons ta nem mesmo que a cé leb re f i lha de Usman dan Fod io ,
Nana Asmau, e la p róp r ia responsáve l po r uma impor tan te
p rodução l i te rá r ia , m ís t i ca e h i s tó r i ca , bem como ou t ras
mu lhe res de seu c lã , ve lassem o ros to . Também não temos
no t íc ia de nenhum texto do ze loso Shehu que advogasse seu
uso .
A educação e ra mu i to es t imada na comun idade malê e e ra
g rande o p res t ig io dos que possu íam ma io r g rau de e rud ição nos
assun tos i s lâmicos . Bas t ide (1985 ) d i z que aos 10 anos os
men inos e ram c i r cunc idados e in ic iavam-se nos es tudos do
Qur ’an . As esco las co rân icas e ram loca l i zadas nas res idênc ias
de a lu fás e ma lams , loca is que também serv iam de mesqu i tas
pa ra as o rações , p regações de sexta - fe i ra e tekkes pa ra p rá t icas
su f is . As au las dos mest res e rud i tos , que ens inavam a esc rever
em ca rac te res a ráb icos e ram mu i to conco r r idas , mesmo com
todas as cond ições adve rsas apresen tadas pe lo ca t i ve i ro . Re is
comenta que :
É realmente impressionante que a experiência da leitura e da escritura disciplinadas pudessem interessar tão vivamente a libertos e sobretudo a escravos que, embora cansados do trabalho, sempre arranjavam tempo para se dedicar a elas.” (REIS, 2003, p. 225).
59
Os neó f i tos receb iam ins t rução dos ma lês , tan to esc ravos
quan to l ibe r tos , que sab iam le r e esc rever . Aque les t raba lhando
no ganho se reun iam nas ruas , esqu inas ou no po r to , pa ra
o fe rece r seus se rv i ços e , na espe ra po r f regueses , se ocupavam
de re l i g ião e rebe l ião .
A comun idade e ra d i r i g ida pe los mes t res (ma lams, a lu fás)
i ns t ru ídos nas c iênc ias is lâm icas e as res idênc ias que se rv iam
de esco las -mesqu i tas e ram o cen t ro ao redo r do qua l a
soc iedade ma lê grav i t ava .
Muhammad Sharee f (1998 ) demonst ra em seu t raba lho que
o I s lão pe rmi t iu , no Bi lad as -Sudan , a un ião de g rupos é tn icos
va r iados – e po r vezes an tagon is tas – sob uma bande i ra ún ica.
O au to r advoga que o mesmo fenômeno teve luga r na Bah ia do
sécu lo XIX . De fa to , a despe i to da ma io r ia dos a f ro -muçu lmanos
ser de o r igem nagô ou io rubá , os mes t res possu íam uma or igem
é tn i ca ma is va r iada e um grupo de segu ido res que , po r vezes ,
não cor respond ia aos pad rões de a f i l iação baseadas em l inhas
é tn i cas . A leg i t im idade adv inda da e rud ição t ranspunha as
leg i t im idades é tn icas . Apesa r de a lguns g rupos é tn icos como os
hauçás te rem a fama de ma is ins t ru ídos no I s lão , e ra o n íve l de
e rud ição e o ca r isma m ís t i co de cada mest re , independente de
sua o r igem é tn ica , que de te rm ina r ia seu s ta tus e o tamanho de
seu “ rebanho ” .
... da mesma forma que os haussás, os nagôs contavam com velhos muçulmanos em suas fileiras e o prestígio, a influência e ascendência que tinham não podem ser subestimados (REIS, 2003, p. 180).
Como ind icam os es tudos de Re is (2003 ) e Ca i rus (2002)
po r vo l ta de um te rço dos rebe lados em 1835 e ra composto de
l i be r tos e a lguns , na ava l iação de N ina Rod r igues (1976 ) se r iam
“ r i cos ” . O a lu fá Danda rá , po r exemp lo , e ra comerc ian te de fumo.
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Cabe aqu i sa l ien ta r que mu i tos dos l i be r tos a f r icanos , ma lês ou
não , e ram e les p rópr ios donos de esc ravos . Esse dado é
impo r tan te para desmis t i f i ca r a Revo l ta dos Ma lês como uma
revo l ta esc rava com ob je t i vos abo l ic ion is tas . Tan to E t t iene
Ignace (1970 ) quan to N ina Rod r igues (1976 ) menc iona ram o
p ro je to ma lê de , após “ tomar a te r ra ” e exte rm ina r os b rancos ,
esc rav iza r a c r iou los e mu la tos . Os ma lês e ram, p r inc ipa lmen te ,
esc ravos de ganho. Não se enca ixando naqu i lo que o imag iná r io
con temporâneo tem po r esc rav idão : os g r i lhões nos pés , a
senza la , as p lan tações de cana-de -açúca r e ca fé . Os esc ravos
de ganho e ram uma ca tego r ia de ca t i vos que v i v ia “ l i v re ” ,
t raba lhando du ran te o d ia p res tando se rv i ços va r iados como
carp in te i ro , a l f a ia te ou ca r regado r , re to rnado a casa do senho r
apenas pa ra en t rega r o ganho do d ia e do rmi r . E hav ia mesmo
aque les que v iv iam em res idênc ias a lugadas, to ta lmen te
sepa rados dos senho res , aos qua is en t regavam uma quan t ia
semana l espec i f i cada . No rma lmente hav ia um exceden te que e ra
ende reçado a um ca ixa com f ins de p romove r a p róp r ia a l f o r r ia e
a de seus co r re l ig ioná r ios . Esse ca ixa também a judava a man te r
os mes t res ma lês e , é c la ro , f inanc ia r a rebe l ião .
4.3 O Is lão negro na Bahia
Na década de 1830 , es tava em curso na Bah ia um in tenso
mov imento de p rose l i t i smo is lâm ico (da ’wa ) . Pa ra João José
Re is (2003 ) o amb ien te u rbano te r ia f ac i l i tado sob remane i ra o
c resc imento do Is lão na Bah ia , onde a re la t i va independênc ia
dos esc ravos de Sa lvado r e a p resença de numerosos l i be r tos
somados a in te ração en t re os do is g rupos con t r ibu í ram pa ra
cons t ru i r uma d inâm ica rede de conv ív io , p rose l i t i smo,
rec ru tamento e mob i l i zação .
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Hav ia , é c la ro , n íve is va r iados de compromisso e
p ro fund idade en t re aque les que aden t ravam a comun idade ma lê .
A penetração muçulmana na comunidade escrava se realizava em níveis distintos de profundidade religiosa e de compromisso, porém. Como em toda religião, havia um centro mais doutrinário e uma periferia menos douta e relaxada. Num nível mais superficial encontramos a adoção de símbolos exteriores da cultura muçulmana. O mais notável e difundido desses símbolos eram os amuletos malês” (REIS, 2003, p.180).
Esses amu le tos cons t i t u íam-se , p r inc ipa lmente , de
ve rs ícu los se lec ionados do Qur ’an e du ’as 17 esc r i tos em pape l e
gua rdados em pequenas bo lsas de cou ro ou c i l ind ros de meta l e
usados em vo l ta do pescoço . Es tão na o r igem dos “pa tuás ” e
“mand ingas” usados pe las re l i g iões a f ro -b ras i le i ras e pe lo
ca to l i c ismo popu la r . De fa to , “mand inga ” e ra o nome de uma das
p r ime i ras e tn ias i s lamizadas a se r in t roduz ida no B ras i l
(RODRIGUES, 1976 ) . A despe i to da opos ição de g rupos
fundamenta l is tas modernos , a con fecção e uso de amule tos
corân icos , chamados taw iz , é conhec ida no Is lão desde os
p r ime i ros sécu los da Hég i ra . O p róp r io malam A l im i
con fecc ionava tawiz pa ra os gue r re i ros de I lo r in . Essa p rá t ica
não es tava l im i tada ao con t inen te a f r i cano , sendo popu la r da
Tu rqu ia à Indonés ia . Segundo Re is (2003 ) esses amu le tos
pod iam te r f unções ex t remamen te espec ia l i zadas , da p ro teção
con t ra in t r i gas dos in im igos , de demôn ios e a té con t ra f lechas e
ba las . Const i tu íam também, na Bah ia , um exce len te ins t rumen to
de p ropaganda is lâmica , já que e ram mu i to requ is i tados pe los
não -muçu lmanos que , ao a tes ta rem sua e f i các ia , pod iam mu i to
bem dese ja r um ma io r comprom isso com a fé dos a f ro -
17 Du'a: literalmente "súplica", refere-se a orações oriundas dos ahadith ou da biografia do Profeta Muhammad, de seus Companheiros ou de autoria de santos e eruditos do Islão clássico.
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muçu lmanos. Os amu le tos cons t i tuem a p r inc ipa l f on te tex tua l
de ixada pe los ma lês e fo ram ob je to de aná l i se de N ina
Rod r igues (1976) no in íc io do sécu lo XX, que os mandou
t raduz i r por um pad re maron i ta á rabe e de Ro l f Re iche r t (1966)
que pub l i cou uma se leção de les com t radução e comen tá r ios .
Os “pa tuás ” ma lês e ram con fecc ionados pe los mest res
re l i g iosos , malams e a lu fás , que t ransmi t iam seu car i sma pa ra o
ob je to e ass im es t re i tavam os laços com seus segu ido res .
As c inco o rações d iá r ias (as -Sa lah ) são a p r inc ipa l
man i fes tação ex te rna do I s lão . Os ma lês , ze losos mos l imes que
e ram, não se fu r tavam a sua p rá t i ca .
Às quatro horas da manhã, depois de estar vestido (camisa fechada, calças, gorro com borla caída, tudo de algodão bem alvo), munido de seu tecebá, um rosário de cinqüenta centímetros de comprimento, composto de noventa e nove contas grossas de madeira, e terminado por uma bola, o fiel abria o dia que começava por orações pronunciadas sobre uma pele de carneiro. Era o que se chamava de “fazer sala”. (...) Cada prece era precedida de uma ablução em que o negro deixava sua vestimenta comum e vestia uma longa camisa branca de mangas compridas, chamadas abadá” (BASTIDE, 1985, p. 212).
A ves t imenta e ra ou t ro d is t in t i vo i s lâm ico na Bah ia ,
j un tamen te com os amu le tos . A idé ia i s lâmica de pu reza r i tua l
( taha ra ) , sem a qua l não se pode o ra r ou mesmo toca r o Qur ’an ,
ma rcava o uso das ves tes b rancas envergadas pe los ma lês .
Chamadas abadá, do io rubá agbda , t ra tavam-se de uma espéc ie
de cam iso lão compr ido , hab i tua lmente fe i t o de pano -da -cos ta .
D i fe ren temen te de seu uso co t id iano na Á f r ica , na Bah ia , dev ido
à pe rsegu ição das au to r idades , os abadás fo ram res t r i tos a uma
função ma is r i tua l . Os ma lês os usavam em casa , longe de o lhos
cur iosos , du ran te suas rezas e ou t ros r i tua is . E ser ia com e les
un i f o rm izados que os insu rgen tes de 1835 sa i r iam às ruas de
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Sa lvado r para a gue r rea r . Os bar re tes e tu rban tes cons t i tu íam
ou t ra pa r te da indumentár ia ma lê . Como obse rvou Re is :
Outro ponto interessante é saber o que os malês usavam sobre a cabeça. Esses objetos foram descritos ora como barretes, ora como carapuças. Tinham alguma função ritual, porque aos não-iniciados não se permitia que os usassem (REIS, 2003, p. 211).
O fa to do uso de ba r re tes e ou t ras va r iedades de
indumentár ias para cabeça es ta r cond ic ionado a uma “ in i c iação ”
é bas tan te s ign i f i ca t i vo , p r inc ipa lmente se leva rmos em
cons ide ração ou t ro s ímbo lo i s lâmico na Bah ia , o uso do “ane l de
ma lê ” . Pode se r o i nd ica t i vo de que , como suge r iu Ca i rus
(2002 ) , os ma lês es t i vessem o rgan izados em con f ra r ias su f is .
Vo l tando aos ané is , uma vez que ev i tavam sa i r em púb l ico com
suas roupas t rad ic iona is , os a f ro -muçu lmanos ba ianos
t rans fe r i ram da Á f r ica uma fo rma ma is d isc re ta de iden t i f i ca rem
seus con f rades : o uso dos chamados kendé , do is g randes ané is
de fe r ro u t i l i zados no po legar e anu la r ou dedo méd io da mão
esque rda . Quando ba t idos um con t ra o ou t ro p roduzem um ru ído
fo r te e seco . Dezenas desses kendés fo ram apreend idos pe la
po l íc ia após o levan te ma lê . Re is apon ta pa ra o depo imento do
nagô l ibe r to João , de que os ané is “e ram o d i s t in t i vo de que
usam os daque la soc iedade (ma lê ) pa ra se conhece rem” (RE IS,
2003 , p . 212 ) . Pa rece poss íve l que essa “soc iedade ” da qua l
f a la o nagô se re fe r isse a uma con f ra r ia ou i rmandade
espec í f i ca , de na tu reza su f is ta .
Manoe l Que r ino desc reve o que Bas t ide (1985 ) a f i rma se r a
o ração de sex ta - fe i ra (sa la tu l - jumu ’a ) . En t re tan to , sua desc r i ção
não possu i qua lque r s im i la r idade com esse r i to i s lâm ico
semana l , e é ma is p rováve l que se t ra tesse de uma ce r imôn ia
su f is ta rea l i zada pe los a f ro -muçu lmanos na Bah ia :
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“Pela manhã, era servida uma mesa, em que sobressaía a toalha muito alva, de algodão, ocupando a cabeceira do chefe Lemano, como, lugar de honra. Após ligeira refeição, cada um, munido de seu rosário, ouvia do chefe as palavras: Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama (Deus único e verdadeiro, o seu profeta é quem nos guia). Acheado Ana lá-i-lá, i-la-lau (vós sois o único Deus verdadeiro). Acheádo-ana-manmadú ara-su-luai (e Teu profeta é o nosso mestre). Ai-á-la-li-salá (eis as minhas preces). Ai-á-la-li-falá (eis o meu coração). Cadecama-i-salá (no monte Sinai). Durante a celebração do ato religioso, as mulheres, de espaço a espaço, repetiam a frase: Bi-similai. Em dado momento o chefe levantava-se, dava as costas ao auditório, soerguia as mãos, descansava-as sobre o peito, ajoelhava-se, baixava, em sinal de reverência, e proferia as mesmas palavras do início: Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama. Isto feito, o chefe apertava as mãos de seus imediatos, e estes, das demais pessoas presentes, e estava terminada a missa. Em plena cerimônia, a dona da casa se dirigia às pessoas presentes, cruzando os braços, e, na atitude de quem dobra os joelhos, proferia a seguinte saudação: Barica da suba môtumbá, que quer dizer: “Meus respeitos.” (BASTIDE, 1985, p. 212-213) 18
Obv iamente , dev ido a cond ição escrava em que se
encon t rava a ma io r ia dos ma lês , se r ia imposs íve l cumpr i r com o
Ha j j (pe regr inação ) à Makka . Embora , segundo Ca i rus (2002 ) e
Re is (2003 ) , o ve lho Mohammed Abdu l lah , que na década de
1850 ten tou conve r te r o cônsu l f rancês , F ranc is de Caste lnau
po r me io do deba te teo lóg ico , dec la rasse te r pe regr inado a
C idade Santa an tes de seu ca t i ve i ro .
18 A "tradução" apresentada por Querino também é incorreta e, por vezes absurda. O correto significado das frases e sua forma árabe seriam: Lá-i-lá-i-lá-lau, mamadú araçá-lu-lai. Sa-la-lai-a-lei-i-salama (na verdade: La ilaha il Allah, Muhammadar Rassulu-Llah. Sallallahu alaihi wa salam = Não há Deus senão Allah, Muhammad é o Mensageiro de Allah. Que as Bençãos e Paz de Allah sejam sobre ele) Acheado Ana lá-i-lá, i-la-lau (Ash-Hadu an la ilaha il Allah = testemunho que não há Deus senão Allah). Acheádo-ana-manmadú ara-su-luai (Ash-had anna Muhammadar Rassulu-Llah = testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Allah). Ai-á-la-li-salá (Haya 'alas-Salah = vinde a Oração). Ai-á-la-li-falá (Haya 'alal-Falah = vinde à Salvação). Cadecama-i-salá (Qad Qamatis-Salah = se levantem para a Oração)
65
O je jum do Ramadan , po rém, e ra obse rvado com todo o
r i go r e ded icação , a despe i to de todas as d i f i cu ldades impos tas
pe lo ca t i ve i ro . Fo i den t re os ú l t imos d ias desse mês,
cons ide rados os ma is sagrados , que os mes t res ma lês
esco lhe ram pa ra a da ta para sua insu r re i ção .
Não nos empenhamos aqu i num es tudo ma is de ta lhado dos
r i tos e p rá t icas ma lês , po is f ug i r i a do ob je t i vo do p resen te
t raba lho . Es fo rçamo-nos em demonst ra r que , na década de
1830 , o I s lão e a cu l tu ra muçu lmana na Bah ia es tavam em
f ranca expansão , sob a d i reção de l ide ranças e ideo log ias
po l í t i co - re l i g iosas es t re i tamen te l i gadas aos pur i tanos
mov imentos re fo rm is tas do Bi lad as-Sudan oc iden ta l . Os ma lês
rec r ia r iam, em te r ras b ras i le i ras , ins t i tu ições do I s lão a f r i cano ,
como as esco las corân icas e as i rmandades m ís t i cas . T ra tava -se
de uma comun idade composta ma jo r i ta r iamente po r homens
adu l tos , educados na Á f r i ca em esco las co rân icas sob a tu te la
de e rud i tos i s lâm icos re fo rm is tas , quando não e ram, e les
p róp r ios , mes t res co rân icos .
Na Bah ia , sob a d i reção dos de ten to res da e rud ição
i s lâm ica , ma lams e a lu fás , os ma lês ten ta r iam repe t i r os fe i tos
do shehu Usman dan Fod io em Soko to e do ma l lam A l im i e Abdu
Sa lam i em I lo r in . Em 1835 os ma lês lança r iam seu j i had .
Ana l isa remos, no cap í tu lo a segu i r , a e rud ição is lâm ica na
Bah ia do sécu lo X IX , suas l ide ranças e o rgan ização .
66
5 ERUDIÇÂO ISLÂMICA E INSURGÊNCI A: A ORGANIZAÇÃO E
L IDERANÇA DA “ SOCIEDADE MALÊ”
Os e rud i tos ma lês cons t ru í ram uma ampla rede con ta tos , que se
espa lhavam po r toda Sa lvador e possu ía rami f icações pe lo
Recôncavo ba iano . Esco las e mesqu i tas c landes t inas fo ram o
ú te ro onde a insur re i ção e ra ges tada , e os p r inc ipa is ve ícu los de
p ropaganda e recru tamen to re l i g ioso e rebe lde .
5 .1 Pr inc ipa is cent ros ma lês na década de 1830
Como menc ionado no cap í tu lo 4 , as casas de a f r icanos l i v res
serv iam como cen t ros de cu l to , es tudo e rebe l ião .
As casas de africanos libertos abrigavam encontros de malês para rezar, refeições rituais, celebrações do calendário islâmico e naturalmente conspirações (REIS, 2003, p. 216)
A lém de res idênc ias pa r t i cu la res , também se rv iam como mesqu i tas e madrassas es tabe lec imentos comerc ia i s pe r tencen tes a ma lês l i v res ma is p róspe ros e mesmo as res idênc ias e qu in ta i s de a lguns senho res .
Em 1835 os p r inc ipa is núc leos ma lês se r iam: I ) A casa do a lu fá Manoe l Ca la fa te . I I ) A venda do Mest re Dandará , loca l i zada no Mercado de
San ta Bá rba ra . Segundo con f i ssão do p róp r io ma lam, e le reun ia a l i os jovens pa ra ens ina r - lhes a pa lavra de Deus e tes temunhas ga ran t i ram que e le l ide rava o rações ao menos duas vezes ao d ia no loca l .
I I I ) A casa do nagô l ibe r to Be lch io r , onde os ma lês se reun iam sob a d i reção do a lu fá San in .
Informações sobre o grupo dirigido por Sanin ilustram que os malês se encontravam em diversos níveis de formação. Alguns eram provavelmente recém-conversos. Os barretes guardados na casa de Belchior, por exemplo, não podiam ser usados pelos iniciantes nesses encontros (REIS, 2003, p. 217).
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IV ) A mesqu i ta cons t ru ída po r James e D iogo , esc ravos
pe r tencen tes ao ing lês Ab raham Crab t ree . Na d i reção des ta
es tavam os a lu fás Mama, Bu remo e Su le , cu jos nomes c r is tãos
e ram Dassa lú , Gus ta rd e N icobé .
Essa mesqu i ta ma lê teve pape l impo r tan te no mov imen to de
da ’wa ma lê , sendo que Ca i rus (2002 ) e Re is (2003 ) apon tam sua
des t ru ição como uma das mot i vações pa ra a revo l ta , po r tan to
va le a pena nos de te rmos um pouco ma is no assun to .
Con tando com a au to r i zação do l ibe ra l mis te r Crab t ree , os
esc ravos ma lês D iogo e James cons t ru í ram uma espéc ie de
pa lhoça no qu in ta l de seu senhor , no d is t r i to de V i tó r ia , que
t inha a função exc lus i va de mesqu i ta e esco la co rân ica e , a té
p rova con t rá r ia , f o i a p r ime i ra cons t rução desse gêne ro a se r
e rgu ida na h is tó r ia do B ras i l .
Este se tornaria talvez o centro muçulmano mais atuante da Bahia em 1835, ou pelo menos aquele que reunia mais gente e para onde convergiam principalmente escravos dos comerciantes estrangeiros moradores do bairro (REIS, 2003, p. 217-218).
O d i s t r i to da V i tó r ia e ra ce rcado po r uma densa mata , o
que poss ib i l i t ava aos esc ravos se reun i rem com mu i to ma is
l i be rdade que no cen t ro de Sa lvado r . Os ma lês a l i se
congregavam sob a au to r idade dos mes t res ac ima c i tados , todos
os t rês esc ravos de D iogo S tua r t , que res id ia na Bar ra , pa r te da
f regues ia da V i tó r ia . O a lu fá Su le ocupava uma pos ição
h ie ra rqu icamen te supe r io r na mesqu i ta da V i tó r ia , tendo
ascendênc ia sob re Mama e Bu remo.
A mesqu i ta da V i tó r ia f o i o loca l de ce leb ração do La i la tu l
M i ra j , a v iagem no tu rna do p ro fe ta Muhammad aos céus , de
onde te r ia receb ido d i re tamente de Deus a o rdem pa ra as c inco
o rações ob r iga tó r ias . Oco r r ida num sábado, 29 de novembro de
68
1834 , co r responden te ao 26 de Ra jab do ca lendá r io muçu lmano ,
a comemoração reun iu g rande número de f ié is . O even to po rém
fo i in te r romp ido pe la chegada do inspe to r André Marques ,
conhec ido in im igo dos a f r icanos , que fo rçou os ma lês a se
d ispersa rem sob a a legação de que es tavam “quebrando a paz”
na v i z inhança . O inspe to r in fo rmar ia o f a to ao ju i z da f regues ia
da V i tó r ia que , po r sua vez , d i r ig i r ia suas que ixa r ao ing lês
Ab raham Crab t ree . Para ev i ta r p rob lemas com as au to r idades o
ing lês o rdenou aos do is esc ravos ma lês , responsáve is pe la
cons t rução da mesqu i ta , que e les p róp r ios a demol i ssem. Uma
hum i lhação que não de ixa r ia de te r suas conseqüênc ias .
A exceção da congregação da V i tó r ia , a ma io r ia dos
núc leos de reun ião a f ro -muçu lmanos loca l i zavam-se na á rea
cen t ra l de Sa lvado r . Na ve rdade , mesmo o da V i tó r ia es tava a
apenas a lguns m inu tos do cen t ro so te ropo l i t ano . L icu tan reun ia
seus d isc ípu los num qua r to a lugado na Rua das La ran je i ras .
Ou t ros ma lams e a lu fás , como Manoe l Ca la fa te e Lu ís San in
também a tuavam na C idade Ba ixa , num ra io de ação que ia da
Lade i ra da P raça ao Te r re i ro de Jesus . Dandará , po r sua vez ,
reun ia seus segu ido res na C idade A l ta , na f regues ia por tuá r ia .
Segundo Re is (2003 ) cada a lu fá , a mane i ra a f r icana ,
rec ru tava e reun ia em to rno de s i sua p róp r ia t u rma de pup i los ,
os qua is poss ive lmente p rov iam pa r te da subs is tênc ia de seus
mes t res . I sso dava a es tes um tempo ma io r pa ra o es tudo , a
med i tação , a esc r i ta , a p regação e pa ra consp i ra r . Ex is tem
ind íc ios também que , ao menos em ce r tas ocas iões , como a
ce lebração do La i la tu l Mi ra j , se reun issem malês pe r tencen tes a
d i ve rsos g rupos . Po r f im , é bem poss íve l que nem todos os
agrupamen tos e l i de ranças ma lês tenham s ido iden t i f i cados
pe las au to r idades da época ou pe los pesqu isadores que v ie ram
depo is .
69
5.2 As faces da erudição is lâmica na Bahia: malams e a lu fás
Em seu t raba lho José Ca i rus esc reve que :
Por razões óbvias não é possível fazer uma análise hagiográfica dos principais líderes muçulmanos envolvidos na rebelião de 1835. Nesse lado do Atlântico eles eram escravos, e, portanto, as informações sobre origens, cultura e religião apenas interessavam na medida certa de controlá-los e puni-los. Infelizmente, suas trajetórias individuais são desconhecidas, mas dentro dos limites das fontes iremos propor uma nova abordagem da liderança. Nos processos, inicialmente, inúmeros africanos foram apontados como “cabeças”, apesar de nem todos efetivamente terem tido qualquer papel de liderança. Nina Rodrigues foi o pioneiro na identificação dos líderes de acordo com os processos. Reis posteriormente estabeleceu uma hierarquia de sete “mestres” e outros tantos “estudantes” não muito diferente de Rodrigues (CAIRUS, 2002, p.182).
De fa to , Re is (2003 ) iden t i f i cou os ind iv íduos que se r iam
as se te p r inc ipa is l ide ranças ma lês em 1835: Ahuna , Pac í f i co
L icu tan , Lu ís San in , Manoe l Ca la fa te , Danda rá , Su le e Dassa lú .
Começamos po r Ahuna . Esc ravo io ruba , p rovave lmente
na tu ra l de Oyó , po is ca r regava em cada um dos lados do ros to
qua t ro coca t r i zes , marcas que se r iam s im i la res ao pe lé , comuns
a subgrupos da reg ião .
Ahuna e ra um nome comum en t re mos l imes hauçás e
io rubás , e se r ia uma co r rup te la hauçá- fu lá do p ro fe ta co rân ico
Ha run (o Aa rão b íb l i co ) . Seu nome c r i s tão se r ia Pedro de Luna .
O mest re ma lê e ra escravo de um homem que morava nas
imed iações do Pe lou r inho , onde comerc iava beb idas a l coó l i cas ,
tão abom inadas pe los sequazes do I s lão . Seu senho r o mandava
f reqüentemente ao Recôncavo , ma is p rec isamente a San to
Amaro , onde es te possu ía um engenho . A lguns meses an tes da
70
rebe l ião fo i mandado pa ra lá a lgemado , sob acusação de a lgum
de l i to domést i co e a no t íc ia chegou aos ma lês , que fo rmaram um
cor te jo pa ra acompanhá- lo a té por to , onde se r ia co locado num
ba rco pa ra o Recôncavo .
As tes temunhas de acusação se re fe r iam a Ahuna como “o
Ma io ra l ” e , de fa to , f o i o ún ico dos l íde res ma lês a se r ass im
chamado. Pa ra Re is (2003 ) Ahuna fo i o homem-chave do levan te
de 1835 . C i tando o depo imento do nagô Be lch io r :
"Ele ouviu falar em fazer guerra aos Brancos e somente no Sábado (...) pela manhã, quando indo comprar cal, que o seu ofício é de Pedreiro, lhe disseram alguns negros que ‘Ahuna’ já tinha chegado de Santo Amaro.” Esse “já” denota que só faltava ele, Ahuna, para a rebelião ter início (REIS, 2003, p. 284).
No p rocesso o nome de Ahuna apa rece no ro l dos
cu lpados , enquad rado como cabeça da revo l ta , po rém, fo i
condenado a reve l i a . Seu des t ino f ina l é desconhec ido .
Pac í f i co L icu tan e ra , como Ahuna, de e tn ia io rubá , porém
pe r tencen te a um subgrupo d i f e ren te . Seu ros to e ra esca r i f i cado
com marcas pe rpend icu la res e ou t ras t ransve rsa is , pa rec idas ao
gombo , que na época e ra popu la r en t re os mos l imes io rubás .
T ra tava-se de um homem idoso desc r i to como magro , com ba rba
ra la e cabeça e o re lhas pequenas. T raba lhava no ca is do
Dou rado como en ro lado r de fumo. No in te r roga tó r io , a legou
so f re r “mau ca t ive i ro ” nas mãos de seu senho r , o méd ico
An ton io P in to de Marques Va re l l a , que res i s t ia a todas as
o fe r tas dos d i sc ípu los do ve lho a lu fá de a l f o r r i á - lo . Es tes te r iam
levan tado g rande soma de d inhe i ro , da qua l o méd ico es tava
rea lmente necess i tado . Vare l la es tava end iv idado , mot i vo pe lo
qua l teve seu esc ravo L icu tan con f i scado , sendo essa a razão
do mes t re ma lê se encon t ra r na p r isão mun ic ipa l na da ta do
71
l e van te . A p r i são se rv ia pa ra guardá - lo a té que fosse pos to a
l e i lão pa ra paga r os c redores de Va re l l a .
L icu tan reun ia e i ns t ru ía seus d i sc ípu los , tan to no qua r to
da casa onde res id ia com seu senho r quan to num qua r to com
ou t ros a f r i canos e a lugado pa ra essa f i na l idade .
Era um alufá estimadíssimo, um homem de grande influência e poder na comunidade africana da Bahia, pregador e recrutador de adeptos para a “sociedade malê” (REIS, 2003, p. 288).
N ina Rod r igues (1976 ) acred i tava ser e le o imam ou l íde r
re l i g ioso máx imo dos ma lês em 1835.
L icu tan e ra , na ve rdade , um nome é tn ico io rubá , ma is
cor re tamente se r ia Lak i tan ou ta l vez O lak i i tan . Recebeu no
B ras i l o nome cr i s tão de Pac í f i co , o que não de ixa de se r
i rôn ico . Nos in te r roga tó r ios que se segu i ram ao levan te , e le
reve la r ia que seu nome muçu lmano e ra B i la l , sem dúv ida em
homenagem ao companhe i ro negro do P ro fe ta e p r ime i ro muez im
do Is lão .
Audac ioso , f o r te e in f luen te , o anc ião ma lê não pôde
esconder a amargu ra que adve io da de r ro ta . No tes temunho de
um de seus d i sc ípu los , após recebe r a no t íc ia , o mes t re B i la l
L icu tan :
deitou a cabeça e não levantou mais, muito apaixonado, e chorando quanto entravam outros negros de manhã presos, dos quais um deu-lhe um livro, ou papel dobrado com letras dessas que têm aparecido, e o mesmo negro se pôs a ler e a chorar (RODRIGUES, 1976, p. 55-56).
Lu ís , chamado San in en t re os a f ro -muçu lmanos, ou ta l vez ,
ma is co r re tamente San i , que em á rabe s ign i f i ca b r i lhan te , e ra
esc ravo e t raba lhava en ro lando fumo no ca is , como seu co lega
L icu tan . A re lação en t re os do is e ra , ce r tamente , es t re i t a :
72
i rmãos na fé , pa rce i ros de t raba lho , com uma fo rmação
in te lec tua l p rovave lmen te s im i la r e i gua lmente su je i tos a
esc rav idão . Quando L icu tan fo i l evado pa ra a cade ia mun ic ipa l ,
San in ia v is i t á - lo e leva r - lhe com ida .
Como L icu tan , e ra também um anc ião e , a despe i to dos
vá r ios anos de ca t i ve i ro , San in ma l f a lava o po r tuguês . Era ,
todav ia , f luen te tan to no hauçá quan to no io rubá , a inda que
fosse , e le p rópr io , um nupe ( chamados tapa na Bah ia ) .
O a lu fá t inha po r cen t ro de ação a casa dos l i be r tos
Be lch io r e Gaspar , onde e ra conhec ido como “mes t re de ens ina r
as rezas de ma lê ” (RODRIGUES, 1976 ) .
P ragmát i co , o rgan izou uma espéc ie de poupança , com a
qua l cada um con t r ibu i r ia com a lgo em to rno de 320 ré is , sendo
esse d inhe i ro d i v id ido em t rês pa r tes : uma pa ra compra r tec ido e
cos tu ra r os abadás, ou t ra para paga r d iá r ias dev idas aos
senho res pe los esc ravos e uma te rce i ra pa ra compra r ca r tas de
a l f o r r ia . Re is (2003 ) cons ide ra que o va lo r rese rvado a paga r os
senho res se des t inasse a : a )pagar as d iá r ias dos mes t res , b )
cob r i r a d iá r ia de sexta - fe i ra , d ia reservado as o rações e não ao
t raba lho e c ) cob r i r a d iá r ia de esc ravos ded icados a ta re fas
l i gadas à consp i ração . Parece -nos poss íve l que San in fosse o
responsáve l pe las f inanças ma lês .
Manoe l Ca la fa te e ra chamado po r seus pup i los
car inhosamente de “Pa i Manoe l ” . E ra nagô e l ibe r to , exe rcendo
a p ro f i ssão de o f i c ia l de ca la fa te , de onde vem seu ep í te to .
Como menc ionado no cap í tu lo 4 , fo i de sua casa que pa r t iu o a to
i n ic ia l do levan te .
Segundo Re is :
Manoel foi inegavelmente um personagem importante no esquema insurrecional. Relembro sua viagem a Santo Amaro, às vésperas do levante, aparentemente para
73
mobilizar gente lá.(...) Recordo também o juramento que seus discípulos faziam de morrer na luta com o mestre, e não de doença na cama (REIS, 2003, p. 294).
Esse ju ramen to , segundo depo imento de seus d isc ípu los ,
e ra fe i to d ian te de um grande lenço ou bande i ra b ranca . É um
dado in te ressan te , j á que o Shehu Usman dan Fod io também
ex ig ia que aque les submet idos a sua ou to r idade dessem a baya
ou vo to de f i de l idade sob a bande i ra b ranca de Soko to .
Manoe l Ca la fa te fo i , t a l vez , o ún ico dos idosos a lu fás a
tomar pa r te na ba ta lha , na qua l f o i , quase ce r tamen te ,
mar t i r i zado .
Ou t ro mest re muçu lmano dos ma is a tuan te em 1835 fo i
Danda rá , ba t i zado E lesbão do Carmo no ca t i ve i ro . Fo i o ún ico
ma lam hauçá ind ic iado . Re is (2003 ) especu la que seu nome
ser ia , numa t ransc r i ção ma is cor re ta , dan Dau ra , ou se ja “ f i lho
de Dau ra ” , s ign i f i cando “na tu ra l de Dau ra” , um pequeno re ino
hauçá que se submeteu pac i f i camen te a au to r idade de Usman
dan Fod io , nos p r ime i ros tempos do j i had .
L ibe r to e p rop r ie tá r io de uma venda de fumo no mercado de
San ta Bá rba ra , Danda rá e ra o ma is p róspe ro den t re os mest res
ma lês . Em seu comérc io reun ia seus d i sc ípu los pa ra es tudo ,
o rações e p rá t i cas p iedosas . No in te r roga tó r io , f o i o ún ico a
con fessa r te r s ido “mest re em sua te r ra ” , ind icando sua
p ro f i ssão de e rud i to co rân ico na Hauça lând ia .
Como acon teceu com Ahuna , não se sabe que f im levou
Danda rá , embora seu nome cons te no ro l dos cu lpados . Sua
companhe i ra , Emerenc iana , todav ia , cons ta como condenada a
qua t rocen tos aço i tes .
Encon t ramos bem menos in fo rmações re fe ren tes a Su le e
Dassa lú , e o p r inc ipa l já f o i expos to quando t ra tamos da
mesqu i ta da V i tó r ia .
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Era nosso ob je t ivo nes te cap í tu lo f o rnecer , a t ravés da
aná l ise das l ide ranças ma lês , seus pe r f i s e es t ra tég ias , recursos
que demonst rassem a es t re i ta re lação ex is ten te en t re a
p resença de uma e l i te de e rud i tos is lâm icos na Bah ia e a
Revo l ta dos Ma lês e os mov imen tos m i l i tan tes encabeçados pe la
e rud ição i s lâm ica na Á f r ica Oc iden ta l e os j i hads t ravados
naque la margem do A t lân t ico .
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao conc lu i rmos es te t raba lho , espe ramos te r con t r i bu ído
pa ra o en r iquec imento da d i scussão h i s to r iográ f ica do tema
ma lê , ass im como pa ra a “ redenção” da tese de fend ida po r N ina
Rod r igues um sécu lo a t rás , obscu rec ida po r ge rações de au to res
de o r ien tação marx i s ta e ten ta t i vas de coop tação da Revo l ta dos
Ma lês pa ra uso de ideo log ias to ta lmente a lhe ias àque les ve lhos
a lu fás a f r i canos .
Na aná l i se das l ide ranças e o rgan izações re l i g iosas , que
nas p r ime i ras décadas do sécu lo X IX , ag lu t inavam em to rno de
s i esc ravos e homens l i v res de e tn i c idade d i ve rsa , po rém
in t imamente l i gados por uma fé comum, cons ide ramos te r
l evan tado a rgumen tos conv incen tes pa ra de te rm ina r o ca rá te r
i negave lmente i s lam is ta do mov imento de insurgênc ia ma lê , bem
como suas es t re i tas re lações com a m i l i tânc ia i s lâmica da Á f r i ca
Oc iden ta l .
A Revo l ta dos Ma lês fo i uma con t inu idade das gue r ras
san tas a f r icanas , não no sen t ido de que , ao ca í rem ca t i vos no
con t inen te amer icano , os gue r re i ros e e rud i tos is lâm icos
con t inuavam lu tando por “ con t ro le remoto ” as mesmas ba ta lhas
do ve lho mundo. Na Bah ia os ma lês lança r iam seu j i had p róp r io ,
com ob je t i vos espec í f i cos e con formes àque le tempo e luga r ,
po rém ca lcados nos mesmos p r inc íp ios dos mov imen tos
re fo rm is tas de ta jd id do con t inen te negro .
Os ma lês , an tes de se rem esc ravos , negros ou a f r i canos
e ram mos l imes e ser muçu lmano imp l i ca em pa r t i c ipar do
p rocesso is lâm ico , e isso não cons t i tu i apenas uma obse rvação
h is tó r i ca , soc io lóg ica , po l í t i ca ou an t ropo lóg ica , mas uma
cons ta tação tan to teo lóg ica quan to p rá t i ca . Não vem ao caso o
fa to de se r muçu lmano m i l i t an te , he ré t i co ou s inc ré t i co . Se r
76
mos l im é compar t i l ha r da h i s tó r ia e cu l t u ra Is lâm ica , do modo de
v ida , daqu i lo que chamam Din , e es ta r envo lv ido , de mane i ra
consc ien te , em uma orgu lhosa he rança re l i g iosa e submete r -se
a um Deus Todo -Poderoso po r me io de r i tos e p rá t icas
pa r t i cu la res .
No deco r re r des te t raba lho , também pudemos apurar que a
rea l i dade do Is lão ma lê ia a lém da consagrada fó rmu la de
"ma lês = s incre t i smo a f ro -ba iano" . Os a f ro -muçu lmanos da
Bah ia , a inda que , como todas as comun idades re l i g iosas ,
possu íssem n íve is va r iados de p ro fund idade , e ram d i r i g idos po r
uma e rud ição i s lâmica abso lu tamente o r todoxa , em
con fo rm idade com o Is lão c láss ico e med ieva l . Em sua aná l i se
do I s lamismo en t re os ma lê a ma io r ia dos au to res , inc lus i ve Re is
e N ina Rod r igues , tomaram por mode lo de o r todox ia os
nascen tes mov imen tos fundamen ta l is tas do mundo á rabe , os
ma is an t igos dos qua is da tam do f ina l do sécu lo XVI I I , como o
wahhab ismo saud i ta , que invad iu e impôs seu c redo nas duas
c idades san tas de Makka e Mad ina apenas na década de 1920.
Cremos que fo i poss íve l demons t ra r em nossa pesqu isa a
ex i s tênc ia tan to do marabout i smo popu la r quan to de um su f i smo
ma is e rud i to na Bah ia . A ta r iqa e ra pa r te insepa ráve l da
rea l i dade a f ro -muçu lmana.
A insu rgênc ia is lâm ica levada às ruas de Sa lvado r es tava
o rgan izada em to rno de uma p ro funda e i r res is t íve l s imbo log ia
m ís t ica . A in te lec tua l idade muçu lmana , rep resen tada po r ma lams
e a lu fás o r iundos dos mov imen tos j i had is tas a f r i canos , f o r jou
uma rede de a l ianças po l í t i cas , econômicas e , ac ima de tudo ,
esp i r i tua is . Desses homens, mu i tos de les e ram esc ravos idosos
dema is para a lme ja r os lou ros da l ibe rdade nesse mundo , e
ou t ros , como o mest re Danda rá , a l cança ram uma pos ição
econôm ica e soc ia l que supe rava as expec ta t i vas de mu i tos
77
b rancos de en tão . Mu i tos dos ma lês l ibe r tos , a f r i canos o r iundos
de soc iedades com longa t rad ição esc rav is ta , e ram senho res de
esc ravos . Em v is ta d i sso , cons ide ramos se r por dema is absu rdo
ve r mot i vações abo l ic ion is tas no Levan te Ma lê . Re lu tamos
mesmo em de f in i r o mov imento como uma revo l ta esc rava , dado
que um te rço dos insu rgen tes e ra composto de a f r i canos l i v res .
A Revo l ta dos Ma lês fo i uma insu r re ição i s lâm ica e
a f r icana , f i lha leg í t ima do j ihad de Usman dan Fod io .
78
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ANEXO A
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ANEXO B
Amu le to ma lê con tendo vers ícu los do Qur ’an .
84
ANEXO C
Amu le to ma lê con tendo a su ra co rân ica Al -Qadr , onde um dos ve rs ícu los d i z que “La i la tu l Qad r é me lho r que m i l meses ” .
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ANEXO D
Documento ma lê p reservado no Museu His tó r ico da Bah ia
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